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Escola Secundária Domingos Rebelo

Português – Vocacional O PAI (60 anos)


A FILHA (24 anos)
Módulo 5 – “A vida em representação” O HOMEM TRISTE (36 anos)

Como um raio de Sol


É uma sala de jantar larga. Grandes janelas ao fundo. Uma porta à direita e
outra à esquerda. Pequena mesa ao centro, com cadeiras de vime ao redor. Sobre a
mesa, um livro. Manhã de sol. Através das janelas - por onde a luz entra a jorros -
vêem-se as árvores do jardim e um pedaço rútilo de céu azul.
Érico Veríssimo Batem à porta da esquerda, primeiro levemente, depois com mais força.
Entra o PAI. É um velho de fisionomia simpática. Caminha para a porta; abre-a
devagar.

O HOMEM TRISTE (de fora) - Dá licença?

O PAI- Tenha a bondade de entrar.

(Entra o Homem Triste. Está vestido com modéstia. Parece uma criatura tímida.
Olha para todos os lados, como que embaraçado. O Pai, com um gesto, mostra-lhe a
cadeira ao pé da mesa.)

O PAI - Sente-se. A quem tenho o prazer de falar?

O HOMEM TRISTE (sentando-se) - Obrigado. Eu moro aqui na pensão ao lado.

O PAI - Perfeitamente. Estou às suas ordens.

O HOMEM TRISTE - Eu lhe suplico que não se zangue...

(O velho sorri sem compreender.


O rapaz fala com dificuldade, comovido.)

O HOMEM TRISTE - Eu tomo a liberdade... (Muda bruscamente de tom.) - A moça


que todas tardinhas aparece ali na janela que dá pra o jardim, é sua filha?

O PAI - Sim, é minha filha. Que é que há?

(Silêncio prolongado. O Homem triste se agita na cadeira, enleado.


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O velho observa-o com serenidade.) O HOMEM TRISTE - Muitas tardes seguidas, eu continuei a ver a janela florida com a
moça bonita olhando o jardim... Mas seria que ela olhava o jardim? Oh! Eu nem
O HOMEM TRISTE - Senhor, não leve a mal... É uma ousadia da minha parte... Não se ouso...
zangue, sim?
(O Homem Triste cala-se de repente. O outro sacode a cabeça com ar triste.)
O PAI - Vá falando sem preocupação. Eu não me zango nunca.
O HOMEM TRISTE - Mas... Enfim: tudo começou a mudar na minha vida. Senti algo
O HOMEM TRISTE - Há poucas semanas que estou morando na casa vizinha, onde estranho dentro de mim. E o dia em que não enxergava a sua filha, eu não era feliz...
aluguei um quarto. Sou professor de matemática. Um homem... assim diferente dos É que eu já estava irremediavelmente apaixonado... O senhor vai dizer que sou um
outros...Nunca tive na minha vida... nunca tive... Eu me refiro a mulheres, - o senhor insolente, não é mesmo?
me entende?
(Pausa.
O PAI - Perfeitamente. Continue. Embaraçado, o rapaz começa a folhear à toa o livro que se acha sobre a mesa.)

O HOMEM TRISTE - Tudo o que vou contar é ridículo, muito ridículo... Eu vejo... Mas, O HOMEM TRISTE - Antes, a minha vida, o meu mundo, era aquele quarto sombrio
como dizia, sou uma criatura que nunca amou. Estou maduro: ando beirando os onde eu morava com os meus números, as minhas equações, binómios... o diabo!
quarenta. Passei toda a mocidade absorvido pelos livros. A matemática é a minha Sonhava com problemas intrincadíssimos em que os algarismos dançavam
única paixão. Era... Hoje, senhor, vai ver, eu tenho outra paixão, maior, muito maior... loucamente. Muita vez, em pesadelo, me apareceu a quarta dimensão como um
Isto não é mesmo muito ridículo? fantasma...

O PAI - Qual?! Já tive a sua idade... O PAI (Sorrindo] - E depois?

O HOMEM TRISTE - Obrigado. (O moço demora a olhar sobre a capa do livro.


Lê o título a meia voz.)
(Pausa. Tira do bolso um lenço com o qual enxuga o rosto perolado de suor.)
O HOMEM TRISTE - "COMO UM RAIO DE SOL". Romance. (Elevando a voz.) O senhor
O HOMEM TRISTE - Veja como estou comovido. É uma vergonha... me desculpe, mas a sua filha entrou na minha vida como um raio de sol... Veja o
título deste livro... É uma coincidência: bem como um raio de sol...
O PAI - Fique calmo. Faz de conta que está falando com o seu pai... Vamos!
O PAI (Tristemente) - Como um raio de sol...
O HOMEM TRISTE - Pois uma tarde, do meu quarto, olhei pra sua casa... E vi,
debruçada à janela que dá para o jardim, uma moça... Que linda! Uma roseira subia O HOMEM TRISTE - Assim é que, resumindo: eu... eu... amo a sua filha...
até à janela, circundando-a. E a moça parecia uma santa no nicho coroado de rosas
vermelhas... Vê como até estou ficando poeta? Oh! Isto é de um ridículo atroz... O PAI (Sereno.) - E acredita que ela o ama também?

O PAI - É naturalíssimo quanto o senhor sente... O HOMEM TRISTE - Oh!, meu caro senhor! Eu não ouso afirmar... Mas... sim...
realmente, sou um homem triste, feio, sem encantos de espécie alguma...Mas todas
as tardes na janela florida, a sua filha... Por favor, não me olhe com essa cara tão
triste, sim?
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O HOMEM TRISTE - Eu vim tão contente... Não entrei cantando porque seria uma
O PAI - Fale, meu amigo, fale... falta de respeito. Mas quando atravessei o jardim tive a impressão de que penetrava
no castelo encantado da felicidade...
O HOMEM TRISTE - A sua filha me olhava muito, muito fixamente... A princípio me
pareceu que ela olhava pra nada, estava como que sonhando... Depois - todas as (Há um longo silêncio. Cantam pássaros no jardim. Ouvem-se, vindos de longe,
tardes aquilo se repetiu - fiquei acreditando que... que os olhos dela estavam pregões diversos. O velho caminha para o interlocutor e põe-lhe paternalmente a
voltados para mim... Que mal há nisso, não é mesmo? mão no ombro.)

(Cala-se, ofegante. Torna a enxugar o suor que lhe roreja a pele do rosto. O velho O PAI - Escute: eu simpatizo com a sua pessoa. Não lhe desejo nenhum mal. Mas é
esfrega as mãos tranquilamente.) melhor que volte para sua casa e não pense mais na minha filha.

O PAI - E agora, o que deseja? O HOMEM TRISTE - Então?...

O HOMEM TRISTE - Agora eu lhe venho pedir permissão pra me aproximar da sua O PAI - Espere... Faz de conta que ela é a felicidade. E a felicidade, meu amigo, não
filha... passa duma mulher bonita que nos mira, debruçada a uma janela florida... Entre nós
e ela há sempre um muro. Mas nunca, nunca devemos saltar esse muro. Porque a
O PAI - Meu caro, eu não o conheço. Sei apenas que é meu vizinho... Mas, mesmo felicidade só é bonita, só nos dá alegria de longe... Se todos os homens
que o conhecesse não o permitiria... compreendessem isto, não haveria tanta tristeza no mundo...

O HOMEM TRISTE (Interrompendo-o) - Não permitiria? O HOMEM TRISTE - Nunca mais posso ver a sua filha, então?

O PAI - Não. O PAI - Fique tranquilo. Quer fazer uma promessa? É para seu bem.

(O Homem Triste baixa os olhos e fica calado. O outro continua a falar com a voz O HOMEM TRISTE - Uma promessa? P'ra meu bem? (Pensa.) Quero.
pausada.)
O PAI - Pois prometa que nunca falará de minha filha a ninguém, nunca procurará
O PAI - Olhe, eu tenho idade pra ser seu pai. Ouça o que lhe vou dizer. Não procure saber quem ela é...
saber quem é a minha filha, nem saber se ela realmente o ama.
O HOMEM TRISTE - Oh! Mas isso...
O HOMEM TRISTE - Vou perder o meu raio de sol?
O PAI - Prometa. É p'ra seu bem. Garanto-lhe que assim será mais feliz. Volte para o
O PAI - Ela só poderia trazer mais sombra pra sua vida. seu quarto, p'ra os seus números, p'ra os seus livros. E todas as tardes venha olhar a
minha filha, lá de longe, do outro lado do muro... Dou-lhe licença...
O HOMEM TRISTE - Não diga!...
O HOMEM TRISTE - Posso olhar sempre o meu raio de sol?
O PAI - Estou a fazer o possível pra evitar que o senhor tenha uma desilusão maior.
Mas eu lhe juro que a minha filha não o pode amar, compreende? O PAI - Perfeitamente. (Com brandura.) Vá. Vá e não me fique querendo mal.
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(Apertam-se as mãos. Encaminham-se lentamente p'ra porta, que o velho abre


devagar. O moço se volta, passeia o olhar pelo compartimento, depois encara o O PAI - Em que ponto ficámos?
outro.)
A FILHA (Sem fazer um gesto.) - Quando o príncipe encontrou a pastorinha no jardim
O HOMEM TRISTE - E o senhor não fica zangado por tudo o que eu disse? do castelo...

O PAI - Não. E o senhor vai cumprir o que prometeu? O PAI - Bem.

O HOMEM TRISTE - Vou. (Folheia rapidamente o volume. Depois começa a ler com lentidão.)

O PAI - Adeus. O PAI - "O príncipe Edevaldo tomou as mãos alvas da pastorinha e lhe disse com voz
doce como mel: «És a minha vida. Não te trocaria por nenhuma princesa da terra.
O HOMEM TRISTE - Adeus. Eis-me aqui a teus pés, príncipe mas escravo...»"

(Sai. O velho fecha a porta. Depois vai à janela e fica longo tempo olhando p'ra fora. A FILHA (Interrompendo a leitura.) - Pai! Como devia ser bonito o príncipe... Pai!
Pela porta da direita entra A Filha. Vem de cabeça erguida, olhos muito abertos Como deve ser lindo o amor!
parados. Temos braços estendidos, tateantes. O Pai, vendo-a, caminha p'ra ela e
toma-lhe as mãos.) O PAI (Continuando a ler.) - "Os lábios dos jovens se uniram num beijo puro e
apaixonado. Por fim o príncipe, como que embriagado de felicidade, exclamou:
O PAI - Filha! «Minha vida era escura e triste! Tu surgiste como um raio de sol, como um raio de
sol!»" (Aqui, uma nuvem de tristeza ensombra o rosto da moça.)
A FILHA - Papai.
A FILHA (Com voz sumida.) - Pai!
O PAI - Como estás?
O PAI - Filha!
A FILHA - Bem. A manhã está bonita?
A FILHA - Como um raio de sol... Oh! Pai! Se eu pudesse ver a vida, se eu pudesse ver
O PAI - Maravilhosa. a minha casa, o meu jardim, as minhas rosas. Pai! Se eu pudesse ver o sol, pai! O sol!
O sol!
A FILHA - Eu sinto...
(Deixa cair a cabeça sobre o ombro do velho e desata a soluçar baixinho. Longe, na
O PAI - Queres que eu continue a leitura do nosso romance? rua, um garoto passa cantando uma canção alegre. Cantam também pássaros no
jardim. Os vidros da janela, as paredes da sala, os móveis, os cabelos da moça, tudo
A FILHA - sim. rebrilha na luz dourada da manhã.)

(O velho fá-la sentar-se. Pega num livro e manuseia-o. A moça fica imóvel na sua
cadeira, com as mãos enlaçadas caídas sobre as coxas. Seus olhos, muito abertos,
têm uma fixidez enorme.)
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