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ACÓRDÃO Nº 644/98

 
 
Processo nº 43/97.
2ª Secção.
Relator: Conselheiro Bravo Serra
 
I
 
 
1. Após ter transitado em julgado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
proferido em 30 de Junho de 1994, o qual, por entre o mais, veio a condenar o arguido
A. na pena de quatro anos e seis meses de prisão pela autoria de um crime
continuado de furto qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos
artigos 297º, nº 1, alínea a), 30º, nº 2, e 78º, nº 5, todos do Código Penal, e de um
crime de burla agravada, previsto e punível pelas combinadas disposições dos artigos
313º e 314º, nº 1, alínea c), 30º, nº 2, e 78º, nº 5, estes também daquele corpo de leis,
fez o mesmo arguido juntar aos autos requerimento por intermédio do qual, em
síntese, solicitou que - ponderando que as alterações introduzidas no Código Penal
pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, vieram a estabelecer molduras penais
menos gravosas para os tipos de ilícito pelos quais ele foi condenado - viesse a ser
efectuado julgamento "com vista a decidir quais as disposições penais mais
favoráveis ao arguido, se as vigentes no momento da prática dos factos puniveis ou as
posteriores, as introduzidas pelo Decreto-Lei nº 48/95 de 15/3, e a decidir em
conformidade".
 
O assim peticionado veio a ser indeferido por despacho de 12 de Julho de
1996, prolatado pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça,
essencialmente com base no argumento segundo o qual, estando já transitado o
acórdão proferido por aquele Supremo, não tinha aplicação o disposto no nº 4 do artº
2º do Código Penal, sendo certo ainda, por um lado, que, aquando da data do
proferimento do acórdão do mesmo Alto Tribunal, ainda não se encontravam em vigor
as alterações introduzidas naquele Código pelo D.L. nº 48/95 e, por outro, que a
"ressalva da parte final do nº 4 do artº 2º CP, se confrontada com o disposto no artº
666º, nº 1, do Cod. Proc. Civil, tem de ser entendida como com ela não entrando em
colisão".
 
Desse despacho reclamou o arguido para a conferência vindo, de entre o mais,
a sustentar que a norma constante do nº 4 do artº 2º do Código Penal é materialmente
inconstitucional na parte em que ressalva o trânsito em julgado, visto ofender o nº 4 do
artigo 29º da Lei Fundamental, outrossim ofendendo esta última disposição a norma
constante do nº 1 do artº 666º do Código de Processo Civil "se interpretada no sentido
de o trânsito em julgado da decisão ter de ser aferido ao momento da prolação do
acordão e de que a partir daí o poder jurisdicional do juiz se esgota".
 
 
2. O aludido Supremo Tribunal, por acórdão de 14 de Novembro de 1996,
manteve o despacho impugnado, em face das razões nele aduzidas, acrescentando que
"[q]uando o artº 29º, nº 4 da CRP dispõe que se aplicam «retroactivamente as leis
penais de conteúdo mais favorável ao arguido» de forma alguma pretende pôr em
causa o valor do caso julgado e do esgotamento do poder jurisdicional do juiz (artºs
666º, nº 1 e 671º, nº 1 CPC e 4º CPP)".
 
É deste aresto que vem, pelo A., interposto recurso para o Tribunal
Constitucional, visando a apreciação da desconformidade com o Diploma Básico de
que enfermarão, na sua óptica, as normas do nº 4 do artº 2º do Código Penal - "na
interpretação segundo a qual o Supremo Tribunal de Justiça, quando há alteração
das leis penais, não tem que, oficiosamente, proceder a novo julgamento para aferir
da aplicação ou não da lei nova, mesmo que entretanto tenha transitado em julgado a
decisão anterior sem ter havido julgamento para aferir qual a lei concretamente mais
favorável", e "na interpretação segundo a qual para julgar qual a lei mais favorável,
se a vigente no momento da prática dos factos se a posterior, não é necessário ouvir o
Mº Pº e os arguidos, apresentar motivação de recurso e efectuar novo julgamento" - e
do nº 1 do artº 666º do Código de Processo Civil - "se interpretada no sentido de o
trânsito em julgado da decisão ter de ser aferido ao momento da aplicação da lei, ou
seja, ao momento da prolação do acordão e de que a partir daí o poder jurisdicional
do juiz se esgota".
 
 
3. Determinada a feitura de alegações, produziram-nas o recorrente e o
Ministério Público.
 
O primeiro concluiu a peça processual por si apresentada do seguinte modo:-
 
"1 - A norma do artº 2º nº 4 do Código Penal, ao limitar a
aplicação retroactiva da lei penal mais favorável aos casos em
que não tenha havido trânsito em julgado da sentença - ou
acordão - colide frontalmente com a norma do artº 29º nº 4 da
CRP, pelo que é materialmente inconstitucional;
2 - A norma do artº 29º nº 4 da CRP está inserida no título II da
Parte I, Capítulo I, Direitos Liberdades e Garantias, pelo que é
aplicável directamente vinculando entidades públicas e privadas,
por força da norma do artº 18º nº 1 da CRP;
3 - A norma do artº 2º nº 4 do Cód. Penal é restritiva de
direitos, liberdades e garantias, pelo que viola também a norma
do artº 18º nº 3 da CRP, uma vez que diminui a extensão e o
alcance do conteúdo essencial da norma do artº 29º nº 4 da CRP,
colidindo com o princípio da aplicação retroactiva da lei penal
mais favorável, com o princípio da máxima restrição da pena, da
igualdade;
4 - Por força da norma do artº 18º nº 2 da CRP a lei ordinária
só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na constituição, pelo que a norma do
artº 2º nº 4 do Cód. Penal só poderá ser conforme à constituição
se outra norma, ou princípio constitucional, permitir ao
legislador ordinário restringir a extensão e alcance da norma do
artº 29º nº 4 da CRP;
5 - O STJ invoca em apoio da sua tese de conformidade
constitucional da norma do artº 2º nº 4 do Cód. Penal, o
princípio da intangibilidade do caso julgado e o princípio 'ne bis
in idem' mas não lhe assiste razão;
6 - O princípio da intangibilidade do caso julgado não tem
consagração constitucional hoje, como também não a tinha na
versão originária da CRP/76, no sentido de impedir a aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável.
7 - Mesmo no domínio da versão originária do artº 281º nº 2 da
CRP/76, a boa doutrina defendia e a Comissão Constitucional
julgou que não estava consagrado constitucionalmente o
princípio intangibilidade do caso julgado;
8 - Após a revisão de 1982, o limite imposto no artº 281º nº 2 da
CRP originária desapareceu e o artº 282º nº 3 da CRP veio
dispôr que, desde que a norma da lei nova respeite a matéria
penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social, e for de
conteúdo mais favorável ao arguido, não ficam ressalvados os
casos julgados;
9 - Por sua vez o princípio 'ne bis in idem' não pode obstar à
aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, porque este
princípio, contido na norma do artº 29º nº 5 da CRP, não
conflitua nem colide com o do artº 29º nº 4, porquanto é um
direito subjectivo fundamental, é uma norma de protecção do
indivíduo contra o Estado, uma garantia política, uma segurança
jurídico-penal individual face ao 'jus puniendi' do Estado, não
proibindo novo julgamento para aplicação da lei penal mais
favorável, mas sim que quem tenha sido definitivamente
absolvido, torne a ser julgado pela prática do mesmo crime, ou
que haja dupla punição pela prática do mesmo crime;
10 - O princípio do caso julgado cede sempre que são
publicadas leis de amnistia, ou que por alteração da lei penal,
disciplinar ou de mera ordenação social, deixe de ser crime ou
infracção disciplinar ou contraordenacional, um determinado
comportamento, havendo necessidade de reformular as penas, ou
mesmo nos casos em que há necessidade de efectuar cúmulos
jurídicos supervenientes;
11 - Se no domínio do direito penal, disciplinar ou de mera
ordenação social, o caso julgado ou o princípio 'ne bis in idem'
fossem intransponíveis para a aplicação da lei penal mais
favorável, verificava-se violação do princípio da igualdade e da
máxima restrição da pena, consagrados no artº 13º nº 1 e 18º nº
1 da CRP/76, porque aconteceria que individuos que tivessem
praticado o mesmo crime, mas fossem julgados com decisões
transitadas, uma na vigência da lei velha e outro na vigência da
lei nova mas mais favorável, teriam penas diferentes;
12 - A aplicação retroactiva da lei penal mais favorável não
colocará especiais problemas de ordem processual em Portugal,
não será o 'descalabro', o 'caos', como alguns querem fazer crer,
pois é tudo uma questão de coragem, de vontade política, na
medida em que países como o Brasil e a Espanha o fazem;
13 - De igual forma o facto de a norma do artº 29º nº 4 da CRP
conter a palavra 'arguido' e não de 'condenado', a exemplo do
que acontece com a norma do artº 282º nº 3 da CRP, não
significa que tivessem querido excluir do seu campo de aplicação
os casos em que 'hic et nunc' o cidadão já não teria o estatuto de
arguido mas sim o de condenado;
14 - Porque a norma do artº 29º nº 4 da CRP já na versão
originária tinha a palavra arguido e a do artº 282 nº 3, desde a
revisão constitucional de 1982, no momento, portanto, em que o
CPP/29 estava em vigor e não continha tal terminologia, uma
vez que a palavra arguido apenas substituiu a de réu - CPP/29 -
desde a entrada em vigor do CPP/87, tratando-se pois de
argumento meramente formal;
15 - O STJ sustentou que o trânsito em julgado de uma decisão
tem de ser aferido em relação ao momento da aplicação da lei,
ou seja, ao momento da prolação do acordão, esgotando-se o
poder jurisdicional do juíz a partir daí por força da norma do
artº 666º nº 1 do CPC, mas não lhe assiste razão, porque da
mesma forma que uma lei de amnistia, v.g., pode conduzir a que
o S.T.J., ou outro tribunal, tenha que modificar a sentença ou o
acordão, reformulando a pena, ou tenha a necessidade de
efectuar cúmulo jurídico, também a superveniência de uma lei
penal mais favorável determinará a reformulação da pena, com
a consequente alteração da sentença ou do acordão;
16 - De qualquer das formas, a norma do artº 666º nº 1 do CPC
não pode sobrepor-se ou limitar o sentido e a extensão da norma
do artº 29º nº 4 da CRP, pelo que se interpretada no sentido de
que o poder jurisdicional do juíz se esgota e por essa via não
pode ser aplicada retroactivamente a lei penal mais favorável, é
materialmente inconstitu- cional, por violação da norma do artº
29º nº 4 e 32º nº 1 da CRP;
17 - Quando o recorrente requereu ao STJ que fosse efectuado
novo julgamento para aplicação da lei nova mais favorável,
ainda não tinha transitado o acordão condenatório do STJ, pelo
que deveria ter sido efectuado novo julgamento;
18 - O julgamento para aferir da aplicação ou não da lei nova,
ou seja, o julgamento se a lei nova é mais favorável ou não,
implica que seja ouvido o MºPº e o recorrente, com
apresentação, se o desejar, de nova motivação de recurso, em
que tome posição sobre qual a lei mais favorável, e, v.g., em que
sentido, qual o 'quantum' da pena a aplicar à luz da lei nova;
19 - A norma o artº 2º nº 4 do Cód. Penal, é materialmente
inconstitucional e, naturalmente, também na 'interpretação
segundo a qual o Supremo Tribunal de Justiça, quando há
alteração das leis penais, não tem que, oficiosamente, proceder a
novo julgamento para aferir da aplicação ou não da lei nova,
mesmo que entretanto tenha transitado em julgado a decisão
anterior sem ter havido julgamento para aferir qual a lei
concretamente mais favorável', por violação da norma do artº 29
nº 4 da CRP;
20 - A norma do artº 2º nº 4 do Cód. Penal é materialmente
inconstitucional, por violação da norma do artº 29º nº 4 da CRP,
na interpretação segundo a qual para julgar qual a lei mais
favorável, se a vigente no momento da prática dos factos ou se a
posterior, não é necessário ouvir o Mº Pº e os arguidos,
apresentar motivação de recurso e efectuar novo julgamento, por
violação da norma do artº 29º nº 4 da CRP;
21 - A norma do nº 1 do artº 666º do CPC é materialmente
inconstitucional, por violação das normas do artºs 29º nº 4 e 32º
nº 1 da CRP, se interpretada no sentido de o trânsito em julgado
da decisão ter de ser aferido no momento da aplicação da lei, ou
seja, ao momento da prolação do acordão e de que a partir daí o
poder jurisdicional do juíz se esgota;
22 - O presente recurso tem toda a utilidade, na medida em que
o recorrente foi julgado e condenado pela prática de um crime p.
e p. no artº 297º nº 1 al. a) do Cód. Penal, na forma continuada e
de um crime p. e p. no art. 314º nº 1 al. c) do Cód. Penal, na
forma continuada e posteriormente, mesmo antes do trânsito em
julgado da decisão, o Cód. Penal foi alterado, sendo que hoje os
factos imputados subsumem-se, na pior das hipóteses, na norma
do artº 204º nº 1 al. c) e 218º nº 1 do Cód. Penal revisto, com
pena de prisão até 5 anos;
23 - A nosso ver os factos subsumem-se nas normas do artº 203º
e 207º do Cód. Penal, porque as agravantes do artº 204º e 218º
do mesmo código não são de funcionamento automático, mas sim
caso a caso, quando ocorra o especial desvalor da acção ou do
resultado que a lei levou em conta para fundamentar a
qualificativa;
24 - Embora esta matéria deva ser discutida no tribunal 'a quo'
sempre cumpre dizer que no caso concreto não se verificam as
agravantes. face à lei nova, que é concretamente mais favorável;
25 - Devem pois ser julgadas materialmente inconstitucionais
as normas dos artºs 2 nº 4 do Cód. Penal e artº 666º nº 1 do
CPC."
 
 
De seu lado, rematou o Ministério Público a sua alegação dizendo:-
 
"Suscitada a questão de inconstitucionalidade da norma do nº 4
do artigo 2º do Código Penal por limitar a aplicação retroactiva
da lei penal mais favorável aos casos em que ainda não tenha
havido trânsito em julgado da decisão e assim colidir com a
norma do artigo 29º, nº 4, da Constituição, mas não podendo, no
caso, o Tribunal Constitucional tomar posição sobre se a suposta
lei penal mais favorável o é ou não - por na lógica do recurso ser
matéria a discutir no tribunal 'a quo' - e, consequentemente, se
deve ou não prevalecer sobre o caso julgado, deverá julgar-se
improcedente o recurso, por, embora se admita que aquela
norma pode colidir com a referida norma constitucional, não
pode afirmar-se que tal possa acontecer em todos os casos".
 
Cumpre decidir.
 
 
II
 
 
1. Preliminarmente anotar-se-á que, muito embora no requerimento de
interposição do vertente recurso o ora impugnante tenha suscitado a
inconstitucionalidade da norma ínsita no nº 4 do artº 2º do Código Penal na dimensão
segundo a qual "o Supremo Tribunal de Justiça, quando há alteração das leis penais,
não tem que, oficiosamente, proceder a novo julgamento para aferir da aplicação ou
não da lei nova, mesmo que entretanto tenha transitado em julgado a decisão
anterior", e na sua alegação começasse por equacionar a questão "aos casos em que
ainda não tenha havido trânsito em julgado" (cfr. transcrita «conclusão» 1), isso não
significa que se tenha ineludivelmente de entender que o mesmo quis limitar o objecto
do recurso referentemente à falada norma e quanto às situações em que ainda se não
formou caso julgado.

Na verdade, do teor daquela alegação resulta que o recorrente igualmente


equaciona os casos em que já ocorreu o trânsito em julgado da decisão condenatória
(cfr., verbi gratia, as também transcritas «conclusões» 5, 6, 7, 8, 10, 11 e 15), sendo
certo que tudo indica que a sua postura quanto à colocação da questão de ainda se não
ter constituído caso julgado poderá ser explicada face a um seu entendimento segundo
o qual, in casu, o aresto sob censura ainda não teria transitado aquando do
requerimento que formulou e no qual solicitava a aplicação das prescrições constantes
do Código Penal na versão emergente do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março.
 
Sendo assim, será unicamente no particular das situações em que já ocorreu a
formação de caso julgado que se irá analisar a questão, pois que foi com esse sentido
que o nº 4 do artº 2º do Código Penal foi aplicado na decisão impugnada, é esse o
trecho normativo que foi pelo recorrente questionado antes da prolação da decisão em
crise e, por último, não pode deixar este órgão de fiscalização concentrada da
constitucionalidade normativa de aceitar, no ponto, o juízo, efectuado pelo Alto
Tribunal a quo, de que, efectivamente, o acórdão condenatório por ele proferido já
tinha formado caso julgado.
 
 
1.1. De outra banda, não irá incidir a atenção sobre a mencionada norma na
interpretação segundo a qual "para julgar qual a lei mais favorável, se a vigente no
momento da prática dos factos se a posterior, não é necessário ouvir o Mº Pº e os
arguidos, apresentar motivação de recurso e efectuar novo julgamento", uma vez que
no acórdão sob censura essa questão não foi, directa ou implicitamente, resolvida.
 
De facto, aquele aresto (porque acolheu as razões constantes do despacho do
Conselheiro Relator então sob reclamação), ao indeferir a pretensão do recorrente,
bastou-se com a circunstância de a ressalva da parte final do nº 4 do artº 2º do Código
Penal não permitir a aplicação da lei nova às situações em que já ocorreu caso julgado,
sendo certo que o apelo ao nº 1 do artº 666º do Código de Processo Civil apenas serviu
como faceta meramente argumentativa e adjuvante para, na óptica do Supremo
Tribunal de Justiça, justificar a solução contida naquela ressalva, até porque tem sido
com base neste último normativo que o aludido Alto Tribunal se tem posicionado no
sentido de, proferido que seja um acórdão condenatório no domínio da lei penal antiga
e ainda não transitado, a superveniência de lei penal porventura mais favorável não
terá como efeito desencadear que esse órgão de administração de justiça venha a
reapreciar a sua anterior decisão.
 
Significa isso, na realidade das coisas, que o nº 1 do artº 666º do C.P.C. não
serviu no acórdão sub specie como suporte normativo da decisão que ali foi tomada.
 
Daí que o âmbito do vertente recurso se deva limitar à apreciação do segmento
final da norma constante do nº 4 do artº 2º do Código Penal (deixado intocado pela
reforma operada pelo dito Decreto-Lei nº 48/95), não interessando, por outro lado,
saber se, tendo-se já formado caso julgado sobre a decisão condenatória e havendo
superveniência de lei de conteúdo mais favorável, a reapreciação tem, oficiosamente,
de ser levada a efeito.
 
E não interessará este ponto justamente porque, in casu, a reapreciação foi
solicitada a pedido do ora recorrente, não se tendo o Supremo Tribunal de Justiça
pronunciado sobre se deveria ou não, oficiosamente, proceder à reapreciação.

Isto posto, passemos, pois, à análise de uma tal questão.


 
 
2. Este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão nº 240/97 (tirado por
unanimidade e publicado na 2ª Série do Diário da República de 15 de Maio de 1997)
decidiu que, por ofensa do nº 4 do artigo 29º da Lei Fundamental, eram
inconstitucionais "as normas conjugadas dos artigos 2º, nº 4, do Código Penal e 666º,
nº 1, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, entrando em
vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido e antes de esta ter
formado caso julgado material, uma lei penal que, eventualmente, se apresente como
mais favorável em concreto, não pode tal lei conduzir à modificação de decisão
proferida pelo próprio tribunal, se a mesma já não for passível de recurso".
 
Porventura por razões de comodidade e de economia, transcrevem-se
determinados passos argumentativos que a esse mesmo Acórdão foram carreados.
 
Assim, disse-se ali:-
 
".................................................
..................................................
2. Como se sabe, os princípios da irretroactividade da lei penal
e da retroactividade da lei in melius não podem, simplistamente,
ser visualizados como o verso e reverso da mesma questão; e
isso porque haverá que reconhecer que um e outro,
geneticamente, têm diversas fontes: enquanto que o primeiro
decorre do princípio nullum crimem sine lege e nulla poena sine
lege - que, afinal, manifesta o princípio da legalidade (cfr. José
de Sousa e Brito - A lei penal na Constituição, Estudos sobre a
Constituição, II vol., 236 e segs) -, o que implica que, para uma
sua mera aplicação, bastaria que o arguido tivesse uma conduta
que, então, já fosse considerada como integrante dos
pressupostos da uma infracção, já o segundo, derivando embora
do princípio da legalidade, entendido este como 'superiormente
graduado na ordem axiológica constitucional' (para se
utilizarem as palavras de Rui Pereira, ob. cit., 61), não deixa de
derivar daqueloutros princípios constitucionais tais como os da
igualdade e da necessidade das penas e medidas de segurança
(cfr. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, I, 1981,
115, que refere que a retroactividade da lei penal mais favorável
se justifica pela garantia dos cidadãos face a uma limitação do
poder punitivo do Estado, o qual nunca poderá ser mais amplo
do que aquele que estiver consagrado na lei aquando do
momento da sua aplicação, no caso de esta o consagrar em
menor medida; Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 234 e 235, e
ob. cit. na Revista O Direito, onde, expressamente, defende que,
por razões de liberdade e de igualdade entre os membros da
comunidade jurídica, deve ser aplicável a lei penal de conteúdo
mais favorável, por isso que é a que menos comprime os direitos,
liberdades e garantias, sendo, pois, a menos gravosa ou
restritiva desses direitos).
 
Taipa de Carvalho, depois de assinalar (ob. cit.,42 e segs) que
'quer o princípio da culpa quer o princípio da irretroactividade
penal desfavorável são garantias individuais ou, talvez mais
correctamente, direitos fundamentais da pessoa humana', e que
'uma concepção humanista da política criminal verá, sempre e
independentemente da sua fundamentação política, na proibição
da retroactividade da lei fundamentadora ou agravante da pena
um dos seus princípios essenciais', e depois de expor os
processos históricos que levaram à consagração dos princípios
da irrectroactividade da lei penal e da retroactividade da lei
penal mais favorável, conclui que 'no actual momento, tanto a
proibição da retroactividade in peius como a imposição da
retroactividade in melius devem considerar-se como garantias
ou mesmo direitos fundamentais constitucionalmente
consagrados' (63 e segs.) e que 'o Estado-de-Direito Material, na
sua função de protecção da pessoa humana, com a decorrente
afirmação da liberdade como princípio geral e fundamental, não
apenas proíbe a retroactividade das leis penais desfavoráveis,
como também impõe a aplicação retroactiva das leis penais
favoráveis', o que, segundo o Autor, vale por dizer que 'o
princípio constitucional da liberdade, o «favor libertatis», é hoje
a matriz comum e o princípio superior de que derivam não só a
irretroactividade in peius como também a retroactividade in
melius' (pág. 71) e que se deverá, 'e com legitimidade, afirmar
que o princípio [geral da aplicação da lei penal no tempo] é o da
aplicação da lei penal favorável'.
..................................................
................................................."
 
 
E, seguidamente, fundamentava-se do modo seguinte e que levou ao
julgamento de desconformidade com a Constituição:-
 
".................................................
..................................................
De facto, seguindo-se a postura, apontada pela Constituição, de
que as penas e as medidas de segurança deverão ser justificadas
pelo princípio da necessidade, aferida pela medida da culpa (e
não se entrando agora na dilucidação da questão de saber se a
culpa há-de, desde logo, fornecer uma certa medida quadro da
pena - cfr. José de Sousa e Brito, A medida da pena no novo
Código Penal, número especial de Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Eduardo Correia do Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, 580, e Figueiredo Dias,
Direito Penal 2, 311 -, e qual a relevância da prevenção criminal
nas suas dimensões de prevenção geral e especial tendo em
conta a sua repercussão na presente problemática), seria injusta
a aplicação de uma punição mais severa ao agente de uma
conduta que, no momento da sua submissão a julgamento, razões
de ordem político-criminal determinaram que deveria ser menos
gravosamente punida uma conduta como aquela que aquele
agente tinha adoptado.
 
Acresce ainda que se perspectiva como ofensiva da igualdade o
tratamento diferenciado a que conduziria a tese da decisão ora
sob censura, se se visualizar a situação de um agente que veio a
prosseguir um comportamento ainda em face da lei antiga, mas
que, por vicissitudes várias, o recurso perante o tribunal
superior só foi conhecido quando já estava em vigor a lei nova
de conteúdo mais favorável, e aqueloutra situação de diverso
agente que, tendo também praticado factos no âmbito da lei
antiga, viu o recurso ser apreciado pelo tribunal superior ainda
no âmbito dessa mesma lei, e que, pela circunstância de da
decisão deste último já não poder haver recurso, por a lei o não
permitir, não pode beneficiar do regime mais favorável
estabelecido pela lei nova, muito embora a decisão tomada pelo
tribunal superior ainda não tenha transitado.
 
Assim sendo, e se se estiver, verdadeiramente, face a uma real
sucessão de leis penais no tempo (como tudo parece apontar no
presente caso), os princípios que acima se deixaram expostos
hão-de redundar numa interpretação dos normativos ordinários
perante a qual se deverá, tanto quanto possível, aplicar a lei
penal favorável às condutas levadas a cabo no domínio da lei
anterior, de conteúdo menos favorável ao arguido. E isto, como
se torna claro, se nos postarmos perante situações em que a lei
penal aplicável ao tempo do cometimento dos factos não seja
perspectivável como integradora da previsão do nº 3 do artº 2º
do Código Penal.
..................................................
................................................."
 
 
Não se colocando no caso então em apreciação no aresto que abundantemente
se tem vindo a citar uma situação em que tivesse já a decisão condenatória constituído
caso julgado, não se deixou de referir se não desejava dizer que a postura tomada era
transponível para uma tal situação, alertando-se, desde logo, que esta era
"possivelmente de mais difícil solução".
 
E é este enfrentamento que se impõe ser agora efectuado.
 
 
2.1. Reafirmando-se a argumentação em que se ancorou o Acórdão nº 240/97, a
questão que, claramente, se colocará, há-de ser a de saber se é compatível com o nº 4
do artigo 29º do Diploma Básico a ressalva que se encontra na parte final do nº 4 do
artº 2º do Código Penal.
 
Para dar resposta positiva a essa questão mister é que - considerando que nos
situamos no campo dos direitos, liberdades a garantias constitucionalmente
consagrados e que, de harmonia com o nº 2 do artigo 18º da Lei Fundamental, a lei só
os pode restringir nos casos nela expressamente previstos, "devendo as restrições
limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos" -, se aceite que o caso julgado se perspectiva como
um daqueles interesses.
 

2.1.1. Como se sabe, a Constituição não consagra expressamente em nenhum


dos seus preceitos que o caso julgado jurisdicional é intangível.
 
Significará isso, porém, a um tal princípio quis o Diploma Básico ser
indiferente ou que - e é isso que ora releva - o não consagrou, ainda que de modo não
explícito?
 
Sobre esta problemática nunca o Tribunal Constitucional se debruçou até ao
momento.
 
Mas a Comissão Constitucional, no seu acórdão nº 87 (tirado por maioria e
publicado no Apêndice ao Diário da República, de 3 de Maio de 1978), proferido no
domínio da versão originária da Constituição, teve ocasião de discretear sobre uma tal
matéria na vertente de "garantia do caso julgado relativamente a leis gerais que,
incidindo sobre as situações materiais do tipo das que tenham sido objecto de
sentença, vão determinar a sua alterabilidade".
 
Nesse acórdão, aceitando-se embora que não se justificava qualquer dúvida
àcerca da "inconstitucionalidade de uma decisão política ou administrativa, até sob a
forma de lei, que pusesse em causa uma sentença com trânsito em julgado" - pois que
esse vício defluiría, desde logo, do artigo 210º e depois, além do mais, do artigo 114º,
nº 1, ambos da Lei Fundamental -, e após se ter efectuado explanação, quer sobre
possíveis argumentos estribados nos princípios e valores do Estado de direito
democrático, no princípio da separação de poderes e da natureza soberana das
sentenças judiciais e, por fim, no princípio da certeza a segurança dos direitos dos
cidadãos e das demais entidades privadas ou públicas interessadas nas decisões dos
tribunais, quer sobre também possíveis argumentos que vinham a ser aduzidos contra
uma orientação estribada nos primeiros, foi dito:-
 
".................................................
..................................................
9 - Pesando os argumentos num e noutro sentido, não parece
fácil chegar a uma conclusão peremptória. Mas exactamente por
isso e porque se assiste no século XX a fenómenos de acelerada
mutação social, julga-se que, para além do disposto no artigo
210º da Constituição, não se encontra princípio constitucional
que, só por si, impeça a lei geral (insista-se, a lei geral e não
qualquer lei individual) de se reflectir sobre quaisquer situações
e relações, mesmo que haja sentença com trânsito em julgado.
 
As interpretações e ilações à volta da separação dos poderes
são ambivalentes. O seu exame prende-se com a definição
rigorosa dos conceitos de função legislativa e função
jurisdicional, tema que excede naturalmente o presente acórdão.
De todo o modo, esta Comissão quer sublinhar a natureza
soberana das sentenças, cuja eficácia se funda na Constituição e
não na lei (seja qual for a interpretação a dar ao artigo 208º).
 
Mais próximos da realidade são os argumentos respeitantes à
segurança e à igualdade. Não deixa de impressionar a segurança
inerente à estabilidade e imodificabilidade do caso julgado, a
segurança inerente à garantia dada pelo Estado aos cidadãos de
que, uma vez dito o direito pelos tribunais, outros órgãos não
irão diminuir a força obrigatória das decisões. Não obstante, a
segurança não deve ser hipostasiada a ponto de obnubilar
exigências de igualdade e de justiça que fluem da própria vida e
que requerem uma acção constante desse mesmo Estado. O caso
julgado não é um valor em si; a sua protecção tem de se estar em
interesses substanciais que mereçam prevalecer, consoante o
sentido dominante na ordem jurídica.
 
O único ponto firme constitucional que pode supor-se existir diz
respeito aos direitos, liberdades e garantias, sujeitos a um
regime consolidada de tutela. Como os direitos, liberdades e
garantias apenas podem ser restringidos nos casos previstos na
Constituição e por lei geral e abstracta (artigo 18º, nºs 2 e 3),
não parece então que uma lei mais restritiva retroactiva possa
pôr em causa sentença já transitada à sombra de lei anterior.
..................................................
..................................................
Bem elucidativas de como o caso julgado material não pode ser
um princípio só por si, sem limites, invocado em nome do Estado
de direito, são, porém, as hipóteses referidas de revogação ou
declaração de inconstitucionalidade (e, porventura, também de
não ratificação de decreto-lei no caso de ter havido autorização
legislativa ao Governo) de lei penal incriminadora e a hipótese
de concessão de amnistia. E isso porque é um imperativo da
justiça, que o Estado de Direito não pode esquecer, que leva a
extinguir a pena quando a infracção deixou de ser punível ou se
considera que nunca foi punível por lei válida ao tempo da
conduta.
..................................................
................................................."
 
 
 
2.1.2. Entende este Tribunal que o caso julgado deve ser perspectivado como
algo que tem consagração implícita na Constituição, constituindo, desta sorte, um
valor protegido pela mesma, esteado nos valores de certeza e segurança dos cidadãos
postulados pelo Estado de direito democrático - consagrado, quer no preâmbulo do
Diploma Básico, quer no seu artigo 2º - e, também, num princípio de separação de
poderes - consagrado igualmente naquele artigo e no nº 1 do artigo 111º - e do nº 2
artigo 205º (a que aquelas outras normas não são alheias), um e outro do actual texto
constitucional.
 
E entende, identicamente, que o aludido valor, constitucionalmente
consagrado, do caso julgado, não se posta como um valor que a Lei Fundamental
considere inultrapassável.
 
Prova disso, na óptica deste Tribunal, constitui a estatuição constante do nº 3
do artigo 282º da Constituição.
 
Na verdade, o legislador constituinte derivado, na revisão operada pela Lei
Constitucional nº 1/82, de 8 de Julho, veio a prescrever que da declaração de
inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral ficavam "ressalvados
os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a
norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou ilícito de mera ordenação social e for
de conteúdo mais favorável ao arguido".
 
Dessa prescrição extrai o Tribunal, conjugando-a com os artigos 2º, 111º, nº 1,
e 205º, nº 2, que, efectivamente, a Constituição aceita como um valor próprio o
respeito pelo caso julgado. Porém, é ela própria, naquele nº 3 do artigo 282º, que vem
estabelecer situações de excepcionalidade ao respeito pelo caso julgado; e daí o dever-
se concluir que um tal valor se não perfila como algo de imutável ou inultrapassável.
 
 
2.1.3. Aceite a consagração constitucional do valor ou interesse consistente no
respeito pelo caso julgado, e não podendo deixar de perspectivar a regra constante da
parte final do nº 4 do artigo 29º como um garantia constitucional fundamental, a
questão que se coloca será a saber se, atentos os números 2 e 3 do artigo 18º, a
restrição operada pela norma em apreço não ultrapassa o necessário para a salvaguarda
desses valor ou interesse e se posterga o alcance mínimo daquela garantia (cfr., sobre
os fundamentos e consequências da aplicação da lei penal no tempo, por entre outros e
para além dos autores citados no texto do Acórdão nº 240/97, acima parcialmente
transcrito, António Rodrigues Maximiano, Aplicação da Lei Penal no Tempo e caso
julgado, Revista do Ministério Público, Ano 4º, Vol. 13, 11 e segs., Rui Pereira, obra
ali citada, 63, nota 22, José Lobo Moutinho, A aplicação da lei penal no tempo
segundo o Direito português, in Direito e Justiça, VIII, tomo 2, 104, 108 e 110, Maria
Fernanda Palma, Direito Penal - Parte Geral, 130 e segs., e a posição, quiçá
dubitativa, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª edição, 800, 1041 e 1042.
 
Sublinhe-se que, na impostação deste problema, não serão colocadas as
situações conexionadas com a aplicação da lei penal posterior mais favorável quando
desta resulte uma mudança «qualitativa» da pena, mas tão só quando resulte uma
mera mudança «quantitativa», como se trata no vertente caso.
 
E, outrossim, não se debruçará este aresto sobre os casos em que da lei
superveniente possa resultar alteração dos pressupostos, quer do procedimento, quer
da punição.
 
Pois bem.
 
Opina-se por que o «núcleo duro» do nº 4 do artigo 29º da Constituição há-de,
necessariamente, abarcar a aplicação ao arguido da lei penal de conteúdo que lhe for
mais favorável no momento em que é submetido a julgamento, identicamente
abarcando as situações de descriminalização das condutas, conquanto, neste ponto, se
tenha de entrar em jogo com outras normas ou princípios constitucionais, como, verbi
gratia, o princípio da última ratio da lei penal e da dignidade da pessoa humana - que
fundamenta a República Portuguesa -, de onde é de extrair que atentaria contra ela
uma condenação pela prática de acções, omissivas ou comissivas, que o legislador,
como emanação do sentir colectivo, considerou posteriormente como não devendo
sofrer uma reprovação grave de tal modo grave justificativa da aplicação de sanção
penal.
 
Neste contexto, não se vislumbra que a norma em apreciação vá «tocar»,
diminuindo, a extensão e o alcance do conteúdo essencial da garantia postulada pela
parte final do nº 4 do artigo 29º.
 
E, sendo o respeito pelo caso julgado um valor constitucional, a restrição que
deflui da norma sub iudicio não deixa de poder ser considerada como uma situação
prevista na Lei Fundamental.
 
Ponto é saber se essa restrição, atentos os valores em jogo, se mostra necessária
e proporcionada.
 
A esta questão dá o Tribunal resposta afirmativa.
 
Efectivamente, a superveniência de uma lei penal cujo conteúdo pudesse, num
juízo prospectivo, apontar para a possibilidade de, em concreto, ser mais favorável ao
arguido, não obstante este já ter sido condenado por decisão judicial transitada, iria
criar uma enormíssima perturbação na ordem dos tribunais judiciais.
 
 
Não se pode passar em claro que a aplicação do regime penal mais favorável
tem de ser apreciada em concreto, o que implicaria a feitura de um verdadeiro novo
julgamento, a fim de serem pesadas todas as circunstâncias fácticas rodeadoras do
caso e a própria personalidade do agente.
 
Assim, não colhe razão um argumento fundado em que, também no caso de
aplicação de perdões, parciais ou não, de penas, isso também vai desencadear um
acréscimo de trabalho aos tribunais. É que, a aplicação de perdões (ainda que
implicando, por vezes, a necessidade de reformulação de cúmulos jurídicos) é, passe a
expressão, «quase tabelar», estribando-se em quase meras operações matemáticas.

Não está em causa, na aplicação de regimes penais supervenientes


potenciadores de, em concreto, serem mais favoráveis ao arguido, tão somente um
acréscimo de trabalho (questão que poderia não ter o relevo suficiente para se aferir da
necessidade ou adequada proporcionalidade da restrição em causa). Está, isso sim,
toda uma actividade dos tribunais consubstanciada na feitura de novos julgamentos,
com todas as consequências implicadas.
 
E nem se diga que, estando assente no anterior julgamento a matéria de facto,
bastaria aos juízes que a ele assistiram subsumi-la ao novo regime, impondo a sanção
penal que reconhecessem como sendo, no novo regime, concretamente mais favorável.
 
Na verdade, é perfeitamente hipotisável que esses juízes já não sirvam no
tribunal, já não pertençam à magistratura, já não façam parte da ordem dos tribunais
judiciais ou já não pertençam à composição (cfr. artº 2º da Lei nº 21/85, de 30 de
Julho) a que pertenciam aquando do primitivo julgamento. E daí estarem
impossibilitados de efectuar as acima citadas subsunção e imposição de pena.
 
De outro lado, uma solução assente na realização de um novo julgamento,
ainda que com outros juízes, é facilmente descortinável como algo revestido de
acentuadíssimas dificuldades (pense-se, por exemplo, nas dificuldades de obtenção de
prova e de elementos para a adequação da nova pena a impor às situações económica,
social, cultural e psicológica desfrutadas pelo arguido na ocasião em que se impõe o
novo regime).
 
A perturbação advinda do não respeito do caso julgado ligadas a motivos de
difícil praticabilidade perspectiva-se, pois, como muito extensa e significativa, não
podendo, por isso, reconduzir-se a razões de mero acréscimo de trabalho para os
tribunais.
 
Isso conduz a que a restrição ínsita no normativo em análise se não poste como
desnecessária, irrazoável ou injustificada.
 
 
2.1.4. Não perfilha o Tribunal o entendimento de que se afigura procedente um
argumento estribado em que também as leis de amnistia própria ou de despenalização
(cfr. nº 2 do artº 2º do Código Penal) vão «tocar» nos casos julgados criminais.
 
De facto, no primeiro caso, os factos praticados pelo arguido deixaram, por
razões de índole política (cfr., sobre as razões da amnistia, os Acórdãos deste Tribunal
nº 301/97 e 510/98 in Diário da República, 2ª Série, de 18 de Junho de 1997 e 20 de
Outubro de 1998, respectivamente), de ter relevância jurídico-criminal, tudo se
passando, embora ficcionadamente, como se os mesmos nunca tivessem ocorrido; e,
no segundo, é a própria consciência social, reflectida pela actuação do legislador, que
deixa de considerar como reprovável - e, por isso, não exigindo sancionamento penal -
determinado comportamento. Por isso, em ambas as situações não se reclama punição,
seja ela da sorte ou da gravidade que for.
 
É, pois, diferente o caso de surgimento posterior de uma lei cujo conteúdo,
conquanto mais favorável, não deixa de considerar criminosa e, consequentemente,
sujeita a punição penal, determinada conduta. A razão de ser da existência daquela
punição continua de pé, pelo que se não pode aqui falar em que o respeito do caso
julgado iria, gravemente, ferir a consciência social, causando-lhe acentuado dano.

 
2.1.5. O que se veio de expor no antecedente ponto 2.1.3. não deixa, de certa
sorte, de ser aplicável, com os devidas adaptações, é certo, a uma argumentação que
esgrima com facto de a restrição de que nos ocupamos ir brigar com o denominado
princípio «da máxima restrição da pena».
 
De facto, se constitui valor ou interesse constitucional o do respeito pelo caso
julgado como regra, aqueloutro princípios «da máxima restrição da pena» haverá de
ser com ele perspectivados em termos de se alcançar uma concordância prática, não
olvidando o que, globalmente a respeito da matéria, se refere no próprio texto da
Constituição.
 

III
 
 
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
 
Lisboa, 17 de Novembro de 1998
Bravo Serra
Messias Bento
Guilherme da Fonseca
Luís Nunes de Almeida
José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta)
José Manuel Cardoso da Costa
 
DECLARAÇÃO DE VOTO
 
Votei vencido, por considerar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 4º do
Código Penal, na parte em que exceptua os casos de condenação por sentença transitada
em julgada da aplicação retroactiva do regime penal que se mostrar mais favorável ao
agente, por violação do nº 4 do artigo 29º da Constituição.
 
1. O nº 4 do artigo 29º da Constituição: a letra e a história são inconclusivas.
 
O texto do nº 4 do artigo 29º da Constituição resulta da versão originária da
Constituição, tendo sofrido algumas modificações na revisão de 1982. Na versão
originária tinha o seguinte teor: "Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança
privativa da liberdade mais grave do que as previstas no momento da conduta,
aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido". O
texto aprovado, por unanimidade e sem discussão, na sessão de 27 de Agosto de 1975
(com o singular "a prevista" : Diário da Assembleia Constituinte, p.1020) resultava da
junção da proposta do PPD (correspondente à primeira frase) com a do PS
(correspondente à segunda frase). Ao tempo estava em vigor o nº 2 do artigo 6º do
Código Penal de 1886 (introduzido pela Nova Reforma Penal de 1884) segundo o qual:
"Quando a pena estabelecida na lei vigente ao tempo em que é praticado a infracção for
diversa das estabelecidas em leis posteriores, será sempre aplicada a pena mais leve ao
infractor, que ainda não estiver condenado por sentença passada em julgado". Embora
esta última restrição introduzida no debate parlamentar, contra a proposta do Governo e
contra a do anterior projecto do Levy Maria Jordão, tivesse sido vivamente criticada na
discussão parlamentar da Nova Reforma Penal (cfr. Henriques da Silva, Elementos de
Sociologia Criminal e Direito Penal, Coimbra, 1905, pp. 138 ss.), e igualmente na
doutrina portuguesa que se lhe seguiu (Henriques da Silva, op.cit., pp.149 ss., Caeiro da
Matta, Direito Criminal Português, II, Coimbra, 1911, p.50) e em parte da doutrina
recente (Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal de 1940-1941, ed. Carmindo
Ferreira, Henrique Lacerda, 2ª ed., Lisboa, 1945, p.113; a mesma opinião manteve-se no
ensino: cfr., no mesmo sentido, Direito Penal Português, I, Lisboa, 1981, p.119), a
verdade é que Eduardo Correia tinha proposto na Comissão revisora do Código Penal a
reprodução da doutrina do nº 2 do artigo 6º, em termos substancialmente idênticos aos
do nº 4 do artigo 2º do actual Código, e a proposta fora aprovada por unanimidade
(Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, separata do Boletim do
Ministério da Justiça, Lisboa, 1965, I, p. 64). Neste contexto nada indica que os
constituintes se tivessem representado a polémica antiga, nem que tenham querido
inconstitucionalizar a disposição citada do direito em vigor, na parte em que exceptuou
as condenações transitadas em julgado, ou, em alternativa, a do nº 1 do mesmo artigo,
que não acolhia, explicitamente, tal excepção, antes ordenava a extinção da pena, tenha
ou não começado o seu cumprimento, se a lei nova eliminar a infracção correspondente.
Na verdade, se alguma indicação há, é no sentido contrário, uma vez que um dos
deputados que votaram o artigo foi Costa Andrade, que é um dos defensores da solução
legal então e hoje em vigor. Há que entender que a Constituição se limitou a consagrar o
princípio da retroactividade da lei mais favorável no caso central da sua aplicação na
sentença condenatória, deixando para a jurisprudência constitucional e para a legislação
ordinária o desenvolvimento pormenorizado do princípio, incluindo a determinação
exacta do seu alcance e a resolução dos conflitos com outros princípios constitucionais,
como seja o do valor do caso julgado. Não é, portanto, legítimo argumentar a partir do
teor literal para limitar a retroactividade da lex mitior à situação do arguido, ou para
impor uma solução uniforme aos casos de eliminação da punibilidade e aos de
diminuição da mesma.
 
 
2. A letra e a história do nº 3 do artigo 282º são igualmente inconclusivas.
 
Do mesmo modo, não é conclusivo o teor literal do nº 3 artigo 282º da
Constituição, que confere ao Tribunal Constitucional a faculdade de decidir que não
ficam ressalvados os casos julgados, aplicando-se retroactivamente também a eles a
declaração de inconstitucionalidade de uma norma e repristinando-se a norma anterior
pela mesma revogada, quando a norma declarada inconstitucional respeitar a matéria
penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos
favorável ao arguido. Não se pode deduzir do uso neste preceito da palavra "arguido",
num sentido que abrange os condenados por sentença transitada em julgado, que o
sentido da mesma palavra no nº 4 do artigo 29º abrange os mesmos condenados. Desde
logo, esse uso, mesmo que possa historicamente ter sido influenciado pela redacção do
artigo 29º, é manifestamente impróprio nos casos do nº 3 do artigo 282º, em que nunca
se trata de um arguido, mas sim de um infractor, pelo que se a palavra tivesse o mesmo
sentido no nº 4 do artigo 29º deixava de abranger os casos centrais visados por este
preceito, que são os dos arguidos propriamente ditos. Mas também nada se pode deduzir
em sentido contrário, não obstante as afirmações do deputado Costa Andrade antes da
votação unânime do artigo em plenário, as quais não foram contraditadas nem apoiadas
no debate. Disse Costa Andrade :
 
" ... não podemos deixar de saudar o conteúdo do nº 3, porque o achamos
prudente e achamos que ele tem um conteúdo útil na sistemática do Direito
constitucional futuro, no que concerne ao caso julgado e à matéria do
Direito penal.
A partir de agora fica expresso que a ressalva dos casos julgados em
matéria penal não funcionará quando ela possa ser aplicada em detrimento
do arguido ou melhor do delinquente, porque em caso julgado já se pode
falar em delinquente.
Este preceito, além da vantagem intrínseca própria desta norma, tem uma
utilidade importante do ponto de vista da sistemática da actual Constituição
da República que, na parte referente aos direitos e deveres fundamentais, diz
que as normas penais de conteúdo mais favorável se aplicam
retroactivamente e é duvidoso se esse preceito constitucional é compatível
com o caso julgado.
Até aqui entendia-se que as normas de conteúdo mais favorável ao arguido -
normas estas em matéria de punição e não em matéria de incriminação - se
aplicavam retroactivamente, salvo em relação a caso julgado.
Hoje a Constituição não diz nada sobre esse ponto mas di-lo em relação a
este e parece-nos que se pode entender a contrario que, em matéria de
normas que atenuam as penas, é possível continuar a ter como
constitucional nesta matéria a ideia de ressalva do caso julgado.
Se uma norma que é ferida de inconstitucionalidade, em concreto, por força
deste nº 3, pode vir a servir de suporte mais favorável ao arguido, por
maioria de razão tem que se entender que uma norma não ferida de
inconstitucionalidade pode servir de suporte ao caso julgado, não obstante
norma que venha a atenuar a punição.
Parece-nos que é de aplaudir este preceito que tem um conteúdo útil
sistemático.
Contudo, parece-nos que a referência ao direito de mera ordenação social -
salvo melhor opinião - talvez se possa considerar exagerada. Ressalvar o
caso julgado em matéria de uma norma inconstitucional parece-nos que não
se justifica aqui como se justifica em direito penal e em direito disciplinar.
O direito penal contende com a liberdade fundamental das pessoas, o direito
disciplinar contende com a honoridade profissional dos trabalhadores da
função pública e a ordenação social contende um pouco com o património,
através de multas, coimas, etc.
Enfim, não será da nossa parte que se levantarão grandes objecções a este
artigo, mas não podíamos deixar de formular esta reserva, para que conste."
(Diário da Assembleia da República, I Série, 28.7.1982, pp.5379-5380).
 
 
Desta passagem resulta com suficiente clareza que Costa Andrade entendia que a
solução dualista (sempre retroactiva quanto à descriminalização e respeitadora do
julgado quanto à atenuação) do regime legal em vigor era conforme à Constituição. Mas
não se entende o argumento sistemático que pretende construir para demonstrar isso
mesmo. Com efeito, da norma que manda respeitar o caso julgado em que foi aplicada
norma inconstitucional mais favorável ao delinquente do que a norma posteriormente
repristinada, que se deduz a contrario do nº 3 do artigo 282º, não se deduz por maioria
de razão uma norma que mande respeitar o caso julgado em que foi aplicada norma não
ferida de inconstitucionalidade menos favorável ao delinquente do que norma atenuante
posterior, apenas se deduz por maioria de razão que deve respeitar-se o julgado em que
foi aplicada norma não ferida de inconstitucionalidade mais favorável do que a norma
posterior. Ora esta última conclusão sempre resulta da proibição geral de retroactividade
da lei penal (que não seja mais favorável).
 
O que se poderá concluir do nº 3 do artigo 282º é que a Constituição admite que
possa haver alguns casos em que "a regra" da ressalva dos casos julgados ainda
prevalece sobre o princípio da aplicação da lei mais favorável, deixando, porém, ao
Tribunal Constitucional a definição desses casos. A Constituição não proíbe
expressamente o Tribunal Constitucional de seguir o critério dualista do artigo 2º do
Código Penal, repristinando quando o efeito da repristinação for a extinção da pena, e
respeitando o julgado quando esse efeito for apenas a atenuação da pena, como não o
proíbe de seguir o critério defendido por Costa Andrade, de repristinar contra o julgado
as mesmas normas penais mas nunca as de mera ordenação social. Mas se, na falta da
proibição expressa destes critérios, a Constituição impõe estes ou quaisquer critérios, é
algo que não pode decidir-se em função da letra.
 
Há que concluir que a Constituição, não fornecendo nem no nº 4 do artigo 29º
nem no nº 3 do artigo 282º critério explícito de solução do conflito entre os princípios
da aplicação da lei mais favorável e do respeito pelo caso julgado, deixa à
jurisprudência constitucional a tarefa de determinar o que é critério imposto pela
Constituição e o que é deixado ao arbítrio do legislador sempre limitado pelo princípio
da igualdade.
 
3. A questão da interpretação extensiva do nº 4 do artigo 29º.
 
O nº 4 do artigo 29º contem um comando de aplicação retroactiva ao arguido da
lei penal mais favorável. Trata-se de saber se a razão da norma também vale para a
pessoa que deixou de ser arguida por ter sido condenada por sentença transitada em
julgado. Se a resposta for afirmativa há que fazer interpretação extensiva desse ponto do
nº 4.
 
Como a opinião maioritária reconhece, a razão do comando da retroactividade
da lei penal mais favorável é o princípio da necessidade ou da máxima restrição possível
das sanções penais, que se deduz do artigo 18º da Constituição, uma vez que as sanções
penais são as mais graves restrições dos direitos fundamentais que a Constituição
admite que o Estado possa impor coercivamente. No Estado de direito material tais
restrições só são admissíveis quando necessárias ou indispensáveis para defender a
eficácia das normas que protegem os direitos fundamentais e outros interesses básicos
da vida social, segundo a escala de valores da Constituição, das mais graves agressões.
Ora quando a lei nova considera que certa sanção penal ou certa medida de sanção penal
não é para o futuro necessária como prevenção de factos futuros, há que entender que tal
sanção deixou de considerar-se necessária para factos da mesma descrição,
independentemente do momento da sua prática. Só não será assim se houver
circunstâncias temporalmente delimitadas que sejam razão do tratamento desigual. Tal
será o caso de leis penais temporárias, na medida em que forem constitucionalmente
admissíveis. A questão que se põe é a de saber se o trânsito em julgado da sentença
condenatória é uma dessas circunstâncias.
 
4. Não há diferente fundamento para a retroactividade na discriminalização
e na atenuação de pena.
 
Ora a opinião maioritária admitiu que o trânsito em julgado nenhuma diferença
faz quanto à necessidade da sanção nos casos de descriminalização das condutas. É
certo que a mesma opinião entende entrarem em jogo nesses casos "outras normas ou
princípios constitucionais, como verbi gratia, princípio da ultima ratio da lei penal e da
dignidade de pessoa humana". Só que o princípio da dignidade da pessoa humana é uma
das premissas de que se deduz o princípio da necessidade das penas, pois ofenderia essa
dignidade sacrificar a pessoa do delinquente aos interesses da prevenção geral, salvo se
isso for não só justo como necessário. E o princípio da ultima ratio da lei penal não é
mais do que uma das aplicações do princípio da necessidade das penas: precisamente
porque as sanções repressivas mais graves, as que maiores sacrifícios de direitos
implicam, só podem ser usadas como "último argumento" para referenciar a conduta,
quando nenhuma outra sanção se considera suficiente para evitar a prática de crimes. É
certo que seria incompatível com a dignidade da pessoa humana e com a natureza de
ultima ratio da política preventiva do Estado o manter uma pena ou parte dela que
deixou de se considerar necessária por o facto que é pressuposto dela deixar de ser
crime. Só que o princípio da necessidade da pena não vale só para afastar a pena que se
torna absolutamente desnecessária - cuja existência se torna desnecessária -, vale
igualmente para afastar a pena que se torna relativamente desnecessária - cuja medida
ou espécie se torna desnecessária. Não entram em jogo outras normas ou princípio
constitucionais, mas exactamente os mesmos. O princípio da necessidade das penas é
uma das aplicações do princípio da necessidade das restrições legais dos direitos
fundamentais (artº 18º, nº 2 da Constituição) e implica a não aplicação para o futuro de
penas tornadas desnecessárias, seja de todo, seja em parte ou em certa medida ou
espécie mais grave. Por outras palavras: o fundamento constitucional da retroactividade
da lei penal mais favorável é o princípio da necessidade das penas, e esse fundamento
vale igualmente para as hipóteses de descriminalização e para as de atenuação da pena.
Se ele deve prevalecer sobre o caso julgado nas primeiras hipóteses também deverá
prevalecer nas segundas, se não houver razões em contrário específicas destas últimas
que mereçam relevância constitucional. A argumentação do Acórdão, afastada a
diferença de fundamento, reduz-se assim ao argumento da "enormíssima perturbação na
ordem dos tribunais judiciais".
 
 
5. A não-atenuação não é menos grave que a não-descriminalização.
 
A esta redução não poderá opor-se qualquer argumento, sugerido pela parte final
do Acórdão, e tirado da maior consciência social da injustiça da não retroactividade no
caso da descriminalização, consciência social que seria menos gravemente ferida pela
não-retroactividade de mera atenuação da pena. A consciência social que aqui pode
relevar é a consciência social bem formada pelas valorações constitucionais. Não é
admissível invocar contra as valorações da Constituição as valorações de uma hipotética
maioria social. Mas então não há um argumento autónomo tirado da consciência social.
Se bem o entendo, o argumento do Acórdão é o seguinte: tanto no caso da atenuação de
pena como no da descriminalização há um conflito entre a justiça - intuída pela
consciência social -, que manda aplicar retroactivamente a lex mitior, e a segurança, que
manda respeitar o julgado, mas no caso de atenuação o sacrifício da justiça não é grave,
porque continua a haver razão para punir, ao passo que no da descriminalização é o
contrário que se passa.
 
Assim entendido, o argumento mantem-se, mesmo prescindindo do argumento
anterior: a diferença entre o regime da descriminalização e o da atenuação legal
explicar-se-ia, não já por uma diferença qualitativa de fundamentos, mas por uma
diferença quantitativa, que tornaria um dos princípios constitucionais em conflito, o da
retroactividade da lex mitior, menos ponderoso na hipótese de atenuação, pelo que
cederia só nessa hipótese perante o princípio do respeito pelo caso julgado.
 
Penso, porém, que a intuição da consciência social vai em sentido contrário.
Tanto se faria injustiça a um condenado a 3 anos de prisão, dos quais já cumpriu, se não
fosse extinta a pena, em caso de descriminalização da conduta, como se faria injustiça a
um condenado a 5 anos de cadeia, dos quais já cumpriu 3, se não fosse atenuada em 2
anos a sua pena, por força de uma atenuação legal. Em ambos os casos haveria 2 anos
de prisão desnecessária a cumprir.
 
 
6. A haver violação da norma do nº 4 do artigo 29º a violação do princípio
da igualdade não tem autonomia.
 
Mais clara ainda é a consciência da desigualdade de tratamento no confronto
entre um arguido e um condenado pelas mesmas ofensas - ou por ofensas idênticas -
cometidas na mesma data. Se sobrevier uma atenuação legal, o arguido beneficia de
uma diferença de tempo de duração do processo que é inteiramente estranha a todas as
razões da punição que possam relevar no caso. Mesmo quando não há identidade de
data e de ofensa, sempre terá que considerar-se injusto que a duração do processo influa
na medida da pena, em benefício dos criminosos que conseguiram protelar a formação
de caso julgado.
 
O argumento da identidade de razão tem como complemento necessário o da
violação do principío da igualdade, quer no diferente tratamento dado às hipóteses de
lex mitior por descriminalização e às de lex mitior por atenuação, quer no diferente
tratamento dado aos agentes do mesmo crime consoante sejam arguidos ou condenados.
Se não estivesse em causa a violação de uma mesma norma constitucional, o nº 4 do
artigo 29º, haveria que invocar a violação do artigo 13º da Constituição.
 
É também claro que o argumento da violação do princípio da igualdade, tal
como o da identidade de razão, seria afastado pela demonstração de que o caso julgado
é uma razão suficiente de tratamento desigual dos duplamente discriminados, isto é, dos
condenados (já não arguidos) em pena entretanto abstractamente eliminada e substituída
por outra mais leve (mas não extinta).
 
 
7. Não está em questão o respeito pelo caso julgado. Sua relevância na
problemática da «revisão» da sentença.
 
Antes de mais, uma decisão judicial não pode obrigar para além do que está
logicamente incluído no seu conteúdo. A decisão transitada em julgado, como qualquer
outra, tem uma premissa de direito e outra de facto. Se qualquer delas é alterada, a
conclusão deixa de ter fundamento, pelo que toda a decisão deixa de ser aplicável ao
caso. Não se diga que a constatação de que não há que respeitar o julgado, porque o
julgado deixou de ser aplicável no caso, terá que caber a um tribunal, sob pena de
ofender a separação dos poderes e a supremacia das decisões judiciais. Tal não impede a
logicamente necessária cessação de obrigatoriedade do julgado que fundamenta a sua
revisibilidade. Neste sentido, há que desfazer o "fetichismo do caso julgado" (como
fazem, nomeadamente, Jimenez de Asua, Tratado de Derecho Penal, II, 4ª ed., Buenos
Aires, 1964, p.674 e Cavaleiro de Ferreira, "Os Pressupostos Processuais", Obra
Dispersa, I, Lisboa, 1996, p.346). Ponto é que a lei mais favorável se queira
efectivamente aplicar também retroactivamente aos casos dessa espécie, mas isso há que
resolver por interpretação, sem invocar o argumento "fetichista" do julgado. Colocada a
questão nestes termos, é claro que o princípio de necessidade da pena, que é essencial à
fundamentação da pena no Estado de direito, sempre implicará que a lei nova mais
favorável se aplique retroactivamente, seja em casos de descriminalização, seja em
casos de atenuação da pena. O argumento ou argumentos relativos à "perturbação na
ordem de tribunais judiciais" são de ordem processual e têm a ver com a problemática
de uma reapreciação do caso depois de findo o processo e transitada a sentença. Não se
trata de uma verdadeira revisão de sentença porque esta não tem que ser corrigida. Há
apenas, eventualmente, que aplicar a lei nova no caso. Mas para a realização dessa
tarefa o trânsito em julgado faz diferença: não se trata de aplicar a lei nova a um arguido
que se presume inocente; trata-se de a aplicar a um condenado cuja culpa não é
questionada, apenas se questionando, no todo ou em parte, a punibilidade.
 
O caso julgado, portanto, em face da lei mais favorável, apenas pode pretender
ser respeitado quanto à decisão sobre a culpa. O Código de Processo Penal prevê que
modificações posteriores de punibilidade devem ser aplicadas pelo juiz da execução das
penas (artigo 474º). Isso em nada afecta o princípio do respeito pelo caso julgado. O
princípio da separação dos poderes (artigos 2º e 111º, nº 1 da Constituição) e da
supremacia das decisões judiciais (artigo 205º, nº 2 da Constituição) e da reserva de
função juridicional em tribunais (artigo 202º, nº 1 da Constituição) impõem certamente
que a constatação da inoponibilidade parcial do julgado e a aplicação da nova lei
incumbam ao tribunal competente, mas não mais.

Nesta perspectiva, as dificuldades práticas invocadas pelo acórdão existem


realmente e não respeitam, em primeira linha, ao acréscimo de trabalho dos tribunais
judiciais, mas à difícil justiça de aplicar a lei penal nova a um caso concreto sem novo
julgamento sobre a culpa.
 
 
8. O direito comparado revela que a retroactividade da lex mitior não
levanta dificuldades insuperáveis nem impede a reforma do direito penal.
 
Assim também há que explicar as grandes divergências que o direito comparado
revela na matéria (cfr. o panorama desactualizado mas esclarecedor de Jimenez de
Asua, ob.cit, II, pp.674-680). No direito francês e no direito alemão - e direitos penais
por eles inspirados - recusa-se a retroactividade da lei mais favorável depois do trânsito
em julgado, mesmo nos casos de descriminalização. Mas reclama-se - especialmente na
França (cfr. também Marc Puech, Les grands arrêts de la juriprudence criminelle, Paris,
I, 1976, p.28) e na Suiça (cfr. Paul Logoz, Commentaire du Code Pénal Suisse. Partie
Générale, 2ª ed. , Neuchâtel, 1976, p.35) - a correcção das desigualdades através de leis
transitórias retroactivas, mesmo quanto aos casos julgados, e através do uso de indultos.
No direito italiano adopta-se uma solução dualista idêntica à do artigo 2º do Código
português, mas as reformas legislativas foram acompanhadas de disposições transitórias
e Carrara considerava a correcção por indultos das desigualdades subsistentes com um
"dever de justiça" (apud Jimenez de Asua, ibidem). No direito espanhol desde 1870
(cfr.o artigo 2º, nº 2 do Código de 1995) e na generalidade dos países da América
Latina, incluindo o Brasil (cfr. o artigo 2º, § único, do Código Penal em vigor), aplica-se
retroactivamente a lex mitior, sem distinção de efeitos, aos casos julgados, sem prejuízo
de leis transitórias (assim o Código Penal espanhol de 1995 contem a final várias
"disposições transitórias", segundo a quinta das quais, tratando-se de sentenças
transitadas e em que o condenado está cumprindo efectivamente a pena, se aplica "a
disposição mais favorável considerada taxativamente e não pelo exercício do arbítrio
judicial" e "nas formas privativas de liberdade não se considerará mais favorável este
Código quando a duração da pena anterior aplicada ao facto com as suas circunstâncias
seja também aplicável segundo o novo Código").
 
Uma apreciação do direito comparado não pode deixar de reconhecer que o
apelo a indultos como exigência da justiça não pode deixar de considerar-se o
reconhecimento da insuficiência da solução legal ou interpretativa adoptada. Deste
ponto de vista, a solução espanhola é a mais coerente.
 
A extensão temporal e especial da experiência espanhola e latino-americana
revelam, porém, que as preocupações de opinião maioritária com as dificuldades
práticas de aplicação da lex mitior são infundadas, derivam apenas da falta de
experiência. Os juízes espanhóis e latino-americanos têm aplicado a lex mitior nem
sempre ajudados por leis transitórias. A solução deixou de ser questionada onde foi
experimentada e não tem impedido as iniciativas de reforma legislativa.
 
Temos que a falta de experiência das dificuldades efectivamente ligadas a uma
solução justa não deve servir de pretexto para a manutenção da injustiça.
9. O quadro geral legal de aplicação retroactiva aos casos julgados da lei
penal mais favorável
 
Para resolver as injustiças ligadas à não aplicação da lei penal mais favorável
não basta uma interpretação extensiva do comando de retroactividade, apesar do caso
julgado, da descriminalização, constante do nº 2 do artigo 2º do Código Penal, como
fez, com o meu apoio, o (inédito) acórdão nº 194/97 (que equipara à lei nova
descriminalizadora a que produz efeitos substancialmente análogos), nem ressalvar,
como faz o presente Acórdão, as situações em que a lei mais favorável implica uma
mudança qualitativa da pena, ou uma alteração dos pressupostos, quer do procedimento,
quer da punição. Em todas estas hipóteses é mais fácil a equiparação com as do nº 2 do
artigo 2º.
 
Não sendo tão fácil a equiparação, não é menos fundada a analogia, como se viu,
nos casos de uma atenuação de pena da mesma espécie, que são os casos praticamente
mais importantes, porque a prisão e a multa são as penas mais importantes do sistema
penal, variando a prisão entre um mês e 20 anos e as multas do Código Penal entre 10
dias a 200$00 e 100 dias a 100.000$00 (artigo 234º, nº 1 conjugado com o artigo 204º,
nº 1, por exemplo). Pode haver muitos anos de prisão e muitos milhares de contos de
multa a executar desnecessariamente.
 
Acresce que a opinião maioritária não dá o devido relevo ao quadro legal de
aplicação da lex mitior aos casos julgados, enunciando dificuldades que só existiriam se
a aplicação da lei nova implicasse a total revogação do caso julgado e equivalesse na
prática à anulação do processado a partir do encerramento da discussão. O julgado
mantem-se quanto à culpa e apenas tem que ser revisto quanto à punibilidade (supra nº
7).
Quando os problemas de determinação da lei mais favorável e outros
relacionados com a reapreciação do caso em vista da nova lei não estiverem resolvidos
por disposição transitória, terá o tribunal competente para decidir as questões relativas à
extinção (total ou parcial) da responsabilidade (cfr. os artigos 474º e 470º do Código de
Processo Penal) que aplicar a lei nova aos factos dados como provados na sentença
transitada em julgado, na medida e só na medida em que estes permitirem a subsunção
na lei nova.
 
Assim muitas vezes bastará uma simples operação aritmética. Sem desconhecer
que a função de determinar a medida judicial da pena nunca compete ao Tribunal
Constitucional, e apenas para dar um exemplo, direi que em minha opinião num caso
como o presente basta a aritmética. Estando o juiz da execução obrigado a respeitar os
critérios de facto da medida judicial da pena fixada no caso julgado, é relevante que a
pena tenha sido fixada em quatro anos e seis meses de prisão, que correspondem a
3,5/19 de uma medida legal de variação possível da pena de 19 anos, entre 1 ano e 20
anos, correspondente à medida legal possível da pena do concurso (artigo 78º, nº 2 do
Código Penal de 1982) de um crime continuado de furto qualificado (artigo 297º, nº 1,
alínea a) e 30º, nº 2) e de um crime continuado de burla (artigos 313º e 314º, nº 1, alínea
c) e 30º nº 2). O respeito pela apreciação passada em julgado dos factores de medida
judicial da pena conduziria na hipótese a uma pena de 4 anos e 7 dias de prisão, que
correspondem a 3,5/19 de uma medida legal de variação possível de pena de 14 anos,
entre 2 e 16 anos, correspondente à medida legal possível da pena do concurso de um
crime continuado de furto qualificado (os pressupostos de facto do nº 2, alínea a) do
artigo 204º da revisão de 1995 correspondem à alínea a) do nº 1 do artigo 297º) de burla
qualificada (artigo 218º, nº 2, alínea a), cujos pressupostos de facto correspondem aos
dos artigos 313º e 314º, nº 1) do Código revisto de 1995).
Não é possível, nem necessário, resolver aqui todos os problemas que se podem
levantar. Mas note-se que muitas das dificuldades evocadas no Acórdão também podem
surgir, em princípio, na situação de descriminalização de um crime, quando está em
causa um concurso de crimes e o outro ou outros crimes não foram descriminalizados.
Também aí há que determinar a pena mais favorável em concreto. E nesta hipótese tem
a opinião maioritária que admitir que o tribunal competente pode resolver as
dificuldades.
 
José de Sousa e Brito
 
Voto de vencida
 
Votei vencida porque considero materialmente inconstitucional a norma contida no nº 4
do artigo 2º do Código Penal, na parte em que impede a aplicação da lei penal mais
favorável se tiver transitado em julgado a sentença condenatória, por violação dos
princípios da necessidade da pena (nº 2 do artigo 18º, da Constituição), da aplicação da
lei penal mais favorável (nº 4 do artigo 29º) e da igualdade (artigo 13º), pelas seguintes
razões:
 
1ª) O problema de constitucionalidade suscitado reside em saber se é ou não compatível
com a Lei Fundamental a norma do nº 4 do artigo 2º do Código Penal de 1982, na parte
em que determina a não aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao agente, “se
este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado”.
É nos seus artigos 1º e 2º que o Código Penal estabelece as regras relativas à
aplicação no tempo das normas penais. A par do princípio “tempus regit actum”,
consagrado no nº 1 do artigo 2º (cfr. a primeira parte do nº 4 do art. 29º da
Constituição), cuja dimensão mais importante se concretiza na irretroactividade da lei
penal incriminadora (nº 1 do artigo 1º do Código Penal e nº 3 do artigo 29º da
Constituição), prescreve este diploma um outro princípio, complementar do anterior,
nos números 2 e 4 do seu artigo 2º: o da retroactividade da lei mais favorável.
Distingue o Código Penal, quanto a este último ponto, duas hipóteses: a de o
facto, punível segundo a lei vigente no momento da sua prática, deixar de o ser, porque
a nova lei o eliminou do número das infracções (nº 2 do artigo 2º); e a de “as
disposições penais vigentes no momento da prática do facto” serem “diferentes das
estabelecidas em leis posteriores” (nº 4 do mesmo artigo 2º).
Incluem-se, assim, na primeira as situações em que é eliminada a punibilidade
de um facto concreto, independentemente da via técnica através da qual se alcançou tal
resultado (eliminação da norma incriminadora, alteração da descrição do facto típico,
aditamento de uma nova causa de justificação ou de exculpação, ou alargamento do
âmbito de aplicação das já existentes...). Diferentemente, na segunda contemplam-se os
casos em que o facto, que era punível com base na lei antiga, continua a ser punível à
luz da lei nova, mas agora com diferente regime penal (é alterada a pena que
concretamente deve ser aplicada, são alteradas as condições da suspensão da execução
da pena, os casos ou os prazos em que pode ser concedida a liberdade condicional, por
exemplo).
A esta distinção vem a corresponder uma diferente estatuição. Assim, por força
do nº 2 do artigo 2º, a aplicação da lei mais favorável, que elimina a incriminabilidade
do facto concreto praticado, acarreta uma não punição do agente, e, em consequência, a
cessação da execução da pena e dos efeitos penais decorrentes de uma eventual
condenação, ainda que transitada em julgado. Ao invés, a aplicação da lei nova mais
favorável, quando não afasta a incriminabilidade do facto, está legalmente condicionada
à não formação anterior de caso julgado da sentença condenatória, nos termos do nº 4
do artigo 2º.
Substancialmente, a diferença de regimes explicar-se-ia pela circunstância de
neste último caso não haver “uma nova avaliação quanto à natureza criminal do facto,
que permanece punível”, apenas se entendendo “que bastará para o reprimir uma sanção
mais leve ou que comporte efeitos penais menos graves” (MANUEL ANTÓNIO
LOPES ROCHA, “Aplicação da lei criminal no tempo e no espaço”, Jornadas de
Direito Criminal – o Novo Código Penal e Legislação Complementar, Lisboa, 1993,
pág. 99).
Cumpre assim apurar se pode reputar-se constitucionalmente admissível o
limite consagrado no nº4 do artigo 2º do Código Penal à aplicação retroactiva da lei
mais favorável ao arguido, excluída se o agente tiver sido condenado por sentença já
transitada em julgado à data da entrada em vigor da lei nova.

2ª) É no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais que a


Constituição consagra os princípios básicos relativos à “aplicação da lei criminal”
(artigo 29º). Entre eles, contam-se o princípio da legalidade, o princípio da
irretroactividade da lei incriminadora, o princípio da aplicação retroactiva da lei
penal mais favorável, o princípio ne bis in idem e princípio do direito à revisão da
sentença e à indemnização em caso de condenação injusta.
Na parte que agora nos importa considerar, o nº 4 do artigo 29º determina que
se aplicam “retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao
arguido”.
Não se afigura difícil encontrar o fundamento substancial para esta regra. Ela
traduz a consideração de que a pena criminal se deve justificar “no momento da sua
efectiva aplicação e execução perante os sucessivos juízos de valor ou valorações
diferentes sucessivamente expressos na lei” (JOSÉ LOBO MOUTINHO, “A aplicação
da lei penal no tempo segundo o Direito português”, Direito e Justiça, vol. VIII, t. 2,
1994, pág. 104), decorrendo directamente do princípio que a doutrina tem denominado
da necessidade das penas (ou da tutela penal) ou da máxima restrição das penas
( Acórdão deste Tribunal nº 290/97, de 12 de Março de 1997, publ. no Diário da
República, II, de 15 de Maio de 1997 e FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE,
“Direito Penal – Questões fundamentais – a doutrina geral do crime”, em curso de
publicação, Coimbra, 1996, págs. 66 e segs.; MARIA FERNANDA PALMA, “Direito
Penal - Parte Geral”, Lisboa, 1994, pág. 65 e segs.; TERESA PIZARRO BELEZA,
”Direito Penal”, 1º vol., 2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 50 e segs.; JOSÉ SOUSA E BRITO,
“A lei penal na Constituição”, Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 178, págs.
199 e segs. e 222 e segs.; TAIPA DE CARVALHO, “Sucessão de Leis Penais”, 2ª
edição, Coimbra, 1997, págs. 102 e segs.).
Resulta deste princípio a asserção de que a legitimidade das penas criminais
depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a
protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados; e o seu valor assenta na
verificação de que “qualquer criminalização e respectiva punição” (ANABELA
MIRANDA RODRIGUES, “A determinação da medida da pena privativa de
liberdade”, Coimbra, 1995, pág. 255) determina a restrição de direitos, liberdades e
garantias das pessoas (maxime, do direito à liberdade, consagrado no nº 1 do artigo 27º
da Constituição). Ora, tal restrição só pode justificar-se, nos termos do nº 2 artigo 18º,
quando se mostre necessária para a salvaguarda de outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos.
Pode afirmar-se, assim, que a garantia da aplicação da lei penal mais
favorável se limita a exprimir, ou a traduzir, na matéria dos limites temporais da
aplicação da lei penal, o princípio da necessidade das penas. Na verdade, se, em
momento posterior à prática do facto, a pena se revela desnecessária, torna-se
constitucionalmente ilegítima.
 
3ª) Encontrado o fundamento do princípio da aplicação retroactiva da lei mais
favorável, importa agora referir a respectiva extensão, ou âmbito de protecção.
Importa desde logo averiguar se a expressão “arguido” utilizada no nº 4 do
artigo 29º da Constituição pode ser entendido no sentido de que a Constituição só
garante a aplicação da lei mais favorável quando ainda exista tecnicamente arguido, por
ainda não ter transitado em julgado a sentença condenatória.
Impõe-se, sem dúvida, uma resposta negativa a esta questão. Em primeiro lugar,
porque a própria Constituição emprega o mesmo termo para abranger os que foram
condenados por sentença transitada em julgado (cfr. o nº 3 do seu artigo 282º); em
segundo lugar, sobretudo porque o fundamento em que assenta substancialmente a
garantia da aplicação da lei mais favorável – o princípio das necessidade das penas –
conduz a que esta garantia deva ter aplicação em ambos os casos.
De resto, diferente entendimento levaria a considerar, contra o consenso da
doutrina, que a garantia constitucional não teria aplicação nos próprios casos de
descriminalização quando já houvesse caso julgado da condenação.
Em terceiro lugar, porque o nº 2 do artigo 27º da Constituição, que autoriza a
privação da liberdade “em consequência de sentença judicial condenatória pela prática
de acto punido por lei com pena de prisão”, não tem naturalmente por efeito legitimar
constitucionalmente toda e qualquer privação da liberdade determinada por sentença
condenatória, por isso que não se refere às condições em que é constitucionalmente
legítima a norma incriminadora ou a sua aplicação e execução. Razão pela qual o nº 2
do artigo 27º em nada afecta a determinação do âmbito de protecção do nº 4 do artigo
29º.
Acresce, ainda, que não é de aceitar o entendimento segundo o qual não cabe à
lei constitucional “regular as condições de aplicação dos seus comandos, antes pelo
contrário lhe compete deixar ao legislador ordinário o seu âmbito próprio de actuação.
Devendo limitar-se – como faz expressamente a CRP no artigo 18º, especialmente no nº
2 – a regular os limites deste âmbito, definindo os requisitos a que devem submeter-se
as leis restritivas de direitos fundamentais” (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pág. 190).
Com efeito, se há casos em que a consagração na Constituição de determinados
direitos fundamentais é compatível com diversos modos de regulamentação legal,
através de normas conformadoras, tendo em conta o carácter vago ou indefinido dos
conceitos utilizados (cfr. o nº 6 do artigo 29º, que determina que “os cidadãos
injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da
sentença e à indemnização pelos danos sofridos), já no nº 4 do artigo 29º, como em
muitos outros preceitos constitucionais (cfr. os artigos 24º, nº 2, 30º, nºs 1 e 3, 33º, nº 1,
para dar apenas exemplos relativos à matéria penal e processual penal) o âmbito de
protecção do direito fica desde logo, no essencial, definido directamente pela
Constituição. Só pode assim convocar-se o artigo 18º em sede de restrição do direito, e
não em sede de fixação das condições normais do seu exercício.
Por último, não altera o que fica dito a objecção formulada por FIGUEIREDO
DIAS, ob. e loc. cits., segundo a qual “também a lei fundamental tem, na sua
interpretação, de ser submetida a uma cláusula de razoabilidade – e não seria
obviamente razoável pensar que a totalidade das condenações penais cuja execução ou
cujos efeitos se mantêm teria de ser reformada todas as vezes que uma lei nova viesse
atenuar a responsabilidade penal: isso seria seguramente razão bastante para que
nenhum legislador jamais se dispusesse a levar a cabo uma reforma do CP!”.
A citada objecção apenas teria valor interpretativo se lograsse demonstrar a
impossibilidade de aplicação prática do pensamento claramente vertido no nº 4 do
artigo 29º, e não meramente um acréscimo de trabalho dos tribunais, o que não sucede.
Em Espanha, desde há muito o caso julgado não restringe a aplicação retroactiva
da lei penal mais favorável, o que não impediu a entrada em vigor do recente Código
Penal de 1995, que, aliás mantém o mesmo princípio no seu artigo 2º, nº 2 (cfr.
MIGUEL POLAINO NAVARRETE, “Derecho Penal – parte general”, tomo I,
“Fundamentos científicos del Derecho Penal”, Barcelona, 1996, pág. 504; GONZALO
QUINTERO OLIVARES, com a colaboração de F. MORALES PRATS e M. PRATS
CANUT, “Curso de Derecho Penal – parte general”, Barcelona, 1996, págs. 117-118); e
também não inibiu “o legislador penal do Estado vizinho de fazer as amplas reformas
penais que, ao longo destes 125 anos, entendeu necessárias (assim, CP de 1928, CP de
1932, CP de 1944, Revisão de 1963, Reforma de 1973, Revisão de 1983 e Revisão de
1989)” (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., pág. 251). Pode ler-se em MIGUEL
POLAINO NAVARRETE (ob. cit., págs. 504-505) :
 
“Poucas disposições na legislação penal se revelam tão adequadas às
exigências político-criminais de execução da Justiça penal como a que estabelece o
artigo 2º, 2 do Código Penal de 1995 (cujo precedente legislativo esteve constituído
pelo artigo 24º do anterior Código).
No marco do debate doutrinal em torno da ratio da retroactividade penal
favorável, é de assinalar que a mesma representa o único critério congruente com as
exigências de Política criminal consideradas prevalecentes no momento da real
aplicação efectiva da lei penal. (...)
Não podem as disposições legais servir de forma mais autêntica a Justiça penal
senão sendo, antes de mais, leais consigo mesmas. E a norma penal, assim como em
geral o sistema punitivo do Estado, que não acolham com incessante dinamismo as
novas exigências político-criminais, perceptíveis em cada momento como co-
determinantes das sanções penais previstas, não respondem à ratio que essencialmente
os legitima.
Política criminal e Justiça penal material aparecem assim incindivelmente
unidas. Os limites da culpabilidade anterior adequam-se às reais exigências da
punibilidade, determinantes da necessidade e do merecimento da sanção penal
correspondente ao momento histórico de referência”.
 
4ª) Apurado o fundamento e a extensão da proposição constitucional em análise, impõe-
se a conclusão de que se verifica uma contradição formal entre o nº 4 do artigo 2º do
Código Penal, na parte em que afasta a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável
se a decisão condenatória transitou em julgado, e o nº 4 do artigo 29º da Constituição
(assim, TERESA PIZARRO BELEZA, op.cit., 1º vol., 2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 455,
que sustenta que a parte final do nº 4 do artigo 2º do Código Penal deve “considerar-se
inconstitucional face ao disposto no nº 4 do artigo 29º”).
É necessário, no entanto, averiguar se tal contradição é admissível, o que só
ocorrerá se constituir uma restrição constitucionalmente permitida de direitos,
liberdades e garantias, em razão da sua necessidade, adequação e proporcionalidade
relativamente à defesa de outros direitos ou interesses também constitucionalmente
protegidos. Com efeito, “... as restrições e os condicionamentos dos direitos
fundamentais ... só se justificam quando, para além do mais, se mostrem necessários e
adequados à salvaguarda de outros direitos ou valores constitucionais. Por outro lado,
têm sempre que ser proporcionados. E, tratando-se de restrições, têm que deixar
intocado o conteúdo essencial do respectivo preceito constitucional (cf. artigo 18º da
Constituição) (acórdão nº 392/89 deste Tribunal, publicado no Diários da República, II,
de 14 de Setembro de 1989).
Pode desde logo invocar-se, precisamente, a tutela constitucional do caso
julgado como fundamento da admissibilidade da ressalva constante do nº 4 do artigo 2º
do Código Penal (cfr. PAULO OTERO, “Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional”,
Lisboa, 1993, pág. 51, que defende a existência de uma “margem de liberdade conferida
pela Constituição ao legislador ordinário para este ponderar e escolher, dentro dos
limites constitucionais, uma de várias formas de relacionamento entre o princípio da
retroactividade da lei mais favorável e o princípio da intangibilidade do caso julgado”).
Mas a invocação do caso julgado não é suficiente para, só por si, tornar legítima
a restrição ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável.
Na verdade, e ainda que aceitando que o pressuposto de que o caso julgado é
constitucionalmente garantido, tornar-se-ia indispensável demonstrar que, tendo em
conta os respectivos fundamentos substanciais, a sua tutela impõe necessariamente uma
restrição daquele outro princípio. Por outras palavras, é necessário que o valor
constitucional do caso julgado deva prevalecer nestas hipóteses – nos casos em que a
nova lei se revela mais favorável a um agente condenado por decisão transitada em
julgado – perante a aplicação da lei mais favorável, tendo em conta o princípio da
unidade da Constituição. O que supõe não apenas um respeito pelo conteúdo essencial
da norma que garanta direitos, liberdades e garantias, mas também adequação,
necessidade e proporcionalidade (em sentido estrito) da restrição relativamente ao
direito ou interesse que a restrição visa garantir.
Como todos sabem, o instituto do caso julgado serve fundamentalmente o valor
da segurança jurídica (cfr. JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”,
tomo II, 3ª edição, reimp., Coimbra, 1996, pág. 494); e a protecção da segurança
jurídica relativamente a actos jurisdicionais funda-se, em último caso, no princípio do
Estado de Direito (GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria da
Constituição”, Coimbra, 1998, pág. 257), cabendo distinguir a este propósito uma
dimensão objectiva, consubstanciada na ideia de “estabilidade das instituições” (cfr.,
quanto ao caso julgado penal, MARIA FERNANDA PALMA, ob. cit., p. 131), e uma
dimensão subjectiva, que se projecta na tutela da certeza jurídica das pessoas, ou na
estabilidade da definição judicial da sua situação jurídica.
Ora, em matéria criminal, a segurança jurídica visada pela protecção do caso
julgado é, num plano subjectivo, exclusivamente a do arguido. Num plano objectivo,
está em causa quando muito a “estabilidade das instituições penais cujo valor é
necessariamente inferior à igualdade e à necessidade da pena” (MARIA FERNANDA
PALMA, ob. cit., pág. 131.
Não podem utilizar-se, no domínio penal, pelo menos em toda a sua extensão, os
argumentos esgrimidos no âmbito do Processo Civil para justificar objectivamente a
estabilidade da decisão que adquiriu força de caso julgado, consistente na certeza e
segurança dos direitos dos outros interessados. “Consequentemente, para além do
aspecto da multiplicação do trabalho envolvido na repetição de decisões, só tem
verdadeiramente relevo a segurança ou estabilidade da situação do arguido. Seria, no
entanto, absurdo, fazer prevalecer a segurança e a estabilidade da situação do arguido
sobre a respectiva justiça, por forma que o arguido devesse ser ou continuar a ser
injustamente punido para assegurar a estabilidade da sua situação de injustiçado. É isso
que explica as notáveis diferenças existentes entre os casos em que é admitida a revisão
de sentenças penais e os casos em que é admitida a revisão de sentenças civis” (JOSÉ
LOBO MOUTINHO, op. cit., pág. 108).
“Com mais frequência do que seria desejável, a jurisprudência tem defendido
afincadamente a estabilidade de decisões em processo penal, com indevida postergação
do interesse concreto da justiça, para salvaguardar o valor daquelas decisões
independentemente da sua justificação, como se a manutenção dum valor jurídico se
confundisse com o prestígio funcional de órgãos criadores de direito autónomo”,
escreve CAVALEIRO DE FERREIRA, por seu turno (“Os pressupostos processuais”,
Obra Dispersa, I, 1933/1959, Lisboa, 1996, pág. 349).
De resto, é a própria Constituição que estabelece, a propósito dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (artigo 282, nº 3), que o
caso julgado penal não é intangível, já que cede perante decisão em contrário do
Tribunal Constitucional, quando a norma inconstitucional for de conteúdo menos
favorável ao arguido. Assim, observam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA,
na “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 193:
“não estabelecendo a Constituição qualquer excepção, a aplicação retroactiva da lei
penal mais favorável (despenalização, penalização menor, etc.) há-de valer, ao menos
em princípio, mesmo para os casos julgados, com a consequente reapreciação da
questão, devendo notar-se que, quando a Constituição manda respeitar os casos
julgados, admite uma excepção exactamente para a lei penal (ou equiparada) mais
favorável”; por seu turno, afirma JORGE MIRANDA, em “Os princípios
constitucionais da legalidade e da aplicação da lei mais favorável em matéria criminal”,
O Direito, ano 121º, 1989, IV, págs. 698-699: “tão grande realce presta a nossa
Constituição à lei penal mais favorável que a antepõe ao respeito do caso julgado; tão
preciosas são para a Lei Fundamental as garantias jurídico-criminais dos cidadãos que
prevalecem sobre a garantia do caso julgado; entre a liberdade e a segurança individual
em concreto ou subjectiva e a segurança objectiva da comunidade dá preferência, numa
postura personalista, à primeira”.
“Não deixa de impressionar a segurança inerente à estabilidade e
imodificabilidade do caso julgado, a segurança inerente à garantia dada pelo Estado aos
cidadãos de que, uma vez dito o direito pelos tribunais, outros órgãos não irão diminuir
a força obrigatória das suas decisões. Não obstante, a segurança não deve ser
hipostasiada a ponto de obnubilar exigências de igualdade e de justiça que fluem da
própria vida e que requerem uma acção constante desse mesmo Estado. O caso julgado
não é um valor em si; a sua protecção tem de se estear em interesses substanciais que
mereçam prevalecer, consoante o sentido dominante na ordem jurídica” (Acórdão nº 87
da Comissão Constitucional, publicado no Apêndice ao Diário da República de 3 de
Maio de 1978).
E não se diga que a possibilidade de o Tribunal Constitucional não ressalvar os
casos julgados relativamente a leis inconstitucionais permite a conclusão de que a
Constituição faz prevalecer o caso julgado perante a aplicação da lei mais favorável. Se
assim fosse, seria logo o nº 2 do artigo 2º do Código Penal que padeceria de
inconstitucionalidade, na parte em que determina o desrespeito pelos casos julgados.
Ninguém defenderá semelhante consequência, seguramente. Na verdade, mesmo
que não se entenda, com alguns autores, que existe uma obrigação e não uma mera
faculdade de o Tribunal Constitucional destruir os casos julgados penais (cfr. JORGE
MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, II, cit., págs. 498-499 e RUI
PEREIRA, “A relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável”,
Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, nº 1, 1991, págs. 71-72), sempre haverá
que ter em conta que a segunda parte do nº 3 do artigo 282º abrange também matéria
disciplinar e de mera ordenação social, devendo este Tribunal obedecer a critérios não
arbitrários, mas conformes com as valorações constitucionais, e acompanhar do mesmo
passo “a diferenciação de regimes a que constitucionalmente estão sujeitos esses
domínios” (assim, com argumentação mais desenvolvida, JOSÉ LOBO MOUTINHO,
ob. cit., pág. 110).
Em qualquer caso, o respeito pelo princípio da unidade da Constituição e das
regras da interpretação sistemática leva necessariamente a entender que não existem
aqui fundamentos substanciais para uma derrogação do princípio da necessidade das
penas e do consequente princípio da aplicação da lei mais favorável, sediados
constitucionalmente no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, com todas as
consequências hermenêuticas que daqui devem decorrer.
 
5ª) Não se afigura também de todo admissível, por outro lado, invocar o nº 5 do artigo
29º da Constituição, que garante que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez
pela prática do mesmo crime”, para defender a intangibilidade do caso julgado (cfr. a
invocação do nº 5 do artigo 29º como um dos argumentos para a defesa da não
inconstitucionalidade da última parte do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, em
PEREIRA TEOTÓNIO, “Interpretação da lei criminal e sua aplicação no tempo”,
Revista do Ministério Público, ano 3º, vol. 12, 1982, pág. 64). Na verdade, a disposição
constitucional invocada, que consagra o princípio ne bis in idem, constitui, sem margem
para qualquer dúvida, uma garantia do arguido, não podendo pois ser invocada contra
ele, em manifesta violação da sua ratio.
 
6ª) Não poderia também proceder uma possível chamada à colação, para admitir a
ressalva do caso julgado, do carácter obrigatório das decisões judiciais (artigo 205º, nº
2), ou do princípio da separação de poderes (artigo 111º, nº 1). Antes de mais, porque, a
admitir-se a relevância destes princípios para a resolução do problema sub judicio,
haveria logicamente de considerar-se inconstitucional a destruição dos casos julgados
nos termos do nº 2 do artigo 2º do Código Penal. Acresce em qualquer caso que não é
posta em causa a obrigatoriedade das decisões judiciais, pois do que se trata é de não
permitir a continuação para o futuro da execução de uma pena ou de uma pena mais
grave fixada em lei anterior, tendo em conta a nova lei. A aplicação retroactiva da nova
lei não determina a invalidade da sentença judicial anterior, mas tão só a cessação (ou
alteração) da produção dos seus efeitos, sem questionar os seus pressupostos.
Diga-se, ainda, que se é admissível que actos de diversa natureza (nova lei que
despenaliza; amnistia; perdão; indulto), ulteriores ao caso julgado, venham fazer cessar
o cumprimento da pena, por maioria de razão terá de aceitar-se a aplicação à parte da
pena que falta executar de uma lei nova que tenha por efeito tão-só uma atenuação da
responsabilidade penal. Deve ainda atender-se à circunstância de que a lei penal mais
favorável tem as características da generalidade e abstracção, pelo que não afecta o
princípio da separação de poderes.
Pode assim reafirmar-se que o valor constitucional do caso julgado não
constitui fundamento para restringir a garantia da aplicação retroactiva da lei
penal mais favorável. Na verdade, os fundamentos em que assenta uma possível tutela
constitucional do caso julgado penal de nenhum modo conduzem à restrição do
princípio consagrado no nº 5 do artigo 29º.

7ª) Por último, a não aplicação da lei mais favorável às penas em execução por força de
decisão transitada em julgado lesaria ainda o princípio da igualdade (neste sentido,
MARIA FERNANDA PALMA, ob. cit., págs. 130 e segs.; GERMANO MARQUES
DA SILVA, “Direito Penal Português”, I, Lisboa, 1997, pág. 270; RODRIGUES
MAXIMIANO, “Aplicação da lei penal no tempo e caso julgado”, Revista do
Ministério Público, ano 4º, vol. 13, 1983, pág. 29; RUI PEREIRA, ob. cit., pág. 59, nota
13; TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., págs. 234 e segs.). Na verdade, se a sucessão de
leis no tempo cria sempre desigualdade (cf. CAVALEIRO DE FERREIRA, “Direito
Penal Português”, I, Lisboa, 1991, pág. 119), algumas das quais inevitáveis, o princípio
da igualdade obriga a que não subsistam as desigualdades que ainda podem ser
eliminadas ( “se é impossível afastar inteiramente a desigualdade e se ela é irremediável
em certos casos ou quando a pena já foi completamente executada, é preferível que se
atenuem os rigores das penas na medida do possível a que se renuncie a obter esse
resultado com a aplicação da lei nova só para respeitar uma igualdade ilusória”).
A aplicação da lei mais favorável, sem o limite dos casos julgados, vem
precisamente afastar a desigualdade que resultaria da solução contrária: a execução da
pena, ou da pena mais grave, dependeria da circunstância, meramente fortuita, de o
trânsito em julgado da decisão condenatória ocorrer antes ou depois da entrada em vigor
da lei mais favorável.
 
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 

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