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A MORALIDADE SEM DEUS

Kátia Vanessa Tarantini SILVESTRI1

“A Moral, enquanto fundada no conceito do homem


como um ser livre que, justamente por isso, se vincula a si
mesmo pela razão a leis incondicionadas, não precisa nem
da ideia de outro ser acima do homem para conhecer o seu
dever, nem de outro móbil diferente da própria lei para o
observar”. (KANT, A religião nos limites da simples razão,
2008, p.9)

Há uma pergunta que com certeza todos nós já nos fizemos alguma vez:
“por que obedecer a Deus?”. Kant (1724- 1804) é um dos filósofos mais
respeitados quando o assunto é a ética. Suas definições acerca do que é ser
um sujeito moral prevalecem ainda hoje como podemos ver na aplicação do
direito penal, pelas noções de crime culposo e doloso, ou todas as vezes que
dizemos que fizemos algo e que tínhamos uma boa intenção.
Normalmente, as pessoas dizem que devem ser éticas, ou em termos
teológicos, que devem obedecer a Deus tendo como fundamento a noção
teleológica da moral, ou seja, “Deus quer”; “é Vontade de Deus”. Kant
desconstrói esse raciocínio. Vale ter em mente que Kant tinha uma sólida
formação cristã, porém jamais concordou com o argumento de autoridade que
os filósofos desde Santo Agostinho vinham estabelecendo. O argumento de
autoridade coloca a autoridade externamente ao sujeito, isto é, alguém pensa/
decide por mim e eu fico como que “livre” dessa responsabilidade. Kant chama
esse outro que pensa por mim de tutor e este podem ser os pais, os padres, os
professores, os médicos, os políticos entre outros. Mais precisamente, o sujeito
fica como que preso a menoridade: não usa de seu próprio discernimento, de
sua vontade para tomar suas decisões. O argumento do tipo é vontade de
Deus, nessa perspectiva, não passa de um exemplo desses álibis que nos
limitam a menoridade.
Não obstante, Kant critica os esforços para demonstrar a existência de
Deus que se iniciam fortemente na Idade Média, por exemplo com Santo
Agostinho, e chegam à modernidade com a tentativa lógica de Descartes.

1 Filósofa. Doutora em Linguística. Mestre em Linguística pela Universidade Federal de São


Carlos. Membro do Grupo de estudos dos gêneros do discurso – GEGe. Professora de
Filosofia da Rede Estadual de Ensino de São Paulo. vanetarantini@yahoo.com.br.
Vejamos a tentativa de Descartes e a crítica kantiana. Descartes estabeleceu
a prova da perfeição, dizia ele: “Deus é perfeito, eu sou imperfeito; eu penso
imperfeitamente. Eu penso Deus”. E continua: “Esse raciocínio é absurdo”.
Então, para vencer esse absurdo, conclui Descartes: “Deve haver alguém que
me permita pensar o perfeito. Logo, é Deus aquele que me permite vencer
esse absurdo. Então Deus existe!” Não precisamos ser Kant para percebermos
a fragilidade desse raciocínio. Kant resolve essa fragilidade dizendo duas
coisinhas. Primeiro, podemos pensar Deus imperfeitamente, visto que somos
imperfeitos. Ou seja, “Deus é aquele que me permite pensar a perfeição
imperfeitamente!” Pronto, acaba o absurdo. Segundo, apesar de resolver o
absurdo de Descartes, Kant diz que essas tentativas de demonstração da
existência de Deus são estúpidas, pois a relação com Deus é de fé. E a fé é a
certeza daquilo que não pode ser demonstrado. O demonstrado acaba com a
fé! Genial Kant, não é mesmo?! Ele ainda diz que “a existência de Deus escapa
da competência do entendimento humano, só a fé a permite”.
Se Deus é a certeza sem demonstração e em contrapartida a moral é a
certeza com demonstração, a questão se recoloca: se uma pessoa obedece a
Deus, obedece (é moral) por quê? Kant afirma existir duas linhas mestras para
essa obediência, mas alerta que ambas são vergonhosas. Uma é que se
obedece a Deus, aos mandamentos divinos, porque queremos ser salvos,
outra é por medo do castigo infernal. Em ambos os casos há, como salienta
Kant, um interesse pessoal e a dignidade moral não pode estar fundada num
principio exterior a nós - os tutores – nem ser interessada - por medo ou por
querer se salvar. E não pode por quê? Conforme Kant, nossa dignidade moral
reside no fato de sermos sujeitos racionais, que deliberam por si mesmos.
Tudo o que for imposto ou fundando em paixões como o medo ou glorificação
será em nós como um corpo estranho que tentaremos eliminar como se fosse
uma doença. A moralidade é, portanto, o vencer constante de nossos instintos
que nos dominam (as mais diversas paixões como medo, raiva, desejo etc),
não por medo, por salvação ou por conformismo – sentimento que os tutores
nos causam – mas por buscarmos ser livres. Eis que liberdade é fazer o que
não queremos. Vejamos, querer em Kant é sinônimo de instinto/desejo e a
vontade é sinônimo de razão, deliberação racional ou ainda a boa vontade – a
intenção. Kant diz que a única coisa boa em si é a boa intenção, está nunca
precisa ser confirmada como todas as outras coisas. Tudo pode ser
corrompido, menos a boa intenção. Daí o raciocínio que sendo um ser racional
devo escolher e ao escolher pratico minha liberdade e serei bom/moral por
deliberação racional e não por interesses pessoais como medo, salvação ou
conforto advindo do conformismo.
Nossa dignidade moral é decidida pela nossa boa vontade. Como diz
Kant, até a inteligência pode ser usada para o mal. E somente a boa vontade é
incorruptível, daí a noção que repetimos muito: “valeu a intenção”, e como está
é fruto de uma deliberação racional sobre nossos instintos/desejos, ela só pode
ser boa sempre. E Kant dá uma dica para sabermos se nossa intenção é boa,
diz ele que basta nos perguntarmos se o que fazemos pode ser repetido por
todo mundo. Se a resposta for sim, é uma boa intenção.
Notemos que Kant exige muito de cada um de nós. Exige que façamos
um exame constante de nossas deliberações, que pensemos antes de agir e
que só ajamos quando a intenção for para um bem maior – para todos/
sociedade – e não um bem particular, egoísta – particular. Por fim, com Kant,
muito antes de Nietzsche, Freud ou Sartre, podemos ser sujeitos de bem,
morais sem recorrer ao princípio de autoridade, mas sim por sermos seres
dotados de razão e capacidade para julgar o que é o bem para todos nós, do
contrário, enfatiza Kant, estaremos negando nossa própria racionalidade e
liberdade.

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