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A Escola e a Educação Física em sociedades democráticas e

republicanas1

Paulo Evaldo Fensterseifer


Doutor em Educação. Professor na Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul (Unijuí), Ijuí-RS

Fernando Jaime González


Doutor em Ciências do Movimento Humano. Professor na Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Ijuí-RS

Como sugere o título deste texto, vamos enfrentar o tema da Escola e da


Educação Física tendo por referência os marcos de uma sociedade democrática e
republicana, portanto não estamos falando de escola e Educação Física em outras
formas de organizar a sociabilidade humana que não essa.
As questões orientadoras desta reflexão, portanto são as seguintes:

1. O que significa viver em uma sociedade democrática e republicana?


2. Que lugar o conhecimento tem em uma sociedade com estas
características?
3. Que lugar a Educação Escolar2 ocupa nesta sociedade?
4. Que lugar tem a Educação Física nesta escola?

Há que se destacar que uma perspectiva democrática e republicana consiste


basicamente em tornar pública a responsabilidade pela condução das questões
que dizem respeito a todos. Algo distinto das sociedades monárquicas,
aristocráticas, oligárquicas ou ditatoriais (seja de “direita” ou de “esquerda”). Noção
que trouxe novas dificuldades para o modo de lidar com a sociabilidade humana,
expresso nesta história de Quino, que denominaremos o Dilema da Mafalda (Figura
1).

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Disciplina Escola, Educação Física e Planejamento
Figura 1 – Dilema de Mafalda

Fonte: Mafalda, criação de Quino (Joaquín Salvador Lavado).

Como resolver o Dilema da Mafalda? A chave platônica de um rei filósofo, ou


a crença em uma vanguarda iluminada por Deus ou por pretensamente possuir uma
episteme (verdade de natureza científica) acerca do social, alimentou boa parte da
filosofia política. Aposta, segundo Hannah Arendt (2002), de que esse dilema fosse
de natureza teórica, portanto passível de ser enfrentado pela contemplação e não
como problema prático, portanto do plano da ação, como pressupõe a autora.
Também Castoriadis (1987) chama a atenção para o modo como a tradição
política ocidental tratou este “dilema”. No entender deste pensador a grande
perdedora nesses modos de enfrentar o problema da sociabilidade humana foi a
democracia, entendida esta como:

[...] impossível sem a liberdade, a diversidade de opiniões. A


democracia pressupõe que ninguém possui uma ciência por meio da
qual possa afirmar, no domínio político, que “isto é verdadeiro”, e
“isto é falso”. Caso contrário, aquele que “possuísse” essa ciência,
poderia e deveria tomar o lugar do corpo político do soberano.
(CASTORIADIS, 1987, p. 82).

Para Castoriadis (1987, p. 78) “[...] a fonte da verdade, especialmente em


assuntos de política, não deve ser buscada no céu ou em livros, mas na atividade
viva dos homens existentes na sociedade”. Não é, portanto, uma questão a priori,
independente do contexto e dos sujeitos envolvidos. Se não levarmos isto em conta,
cairemos facilmente em uma racionalidade instrumental, incompatível com uma
república democrática. Esta forma de organização da sociabilidade humana
demanda outro modo de enfrentar o dilema da Mafalda, com uma complexidade,
cabe destacar, muito maior, tendo em vista que deve considerar as diferentes
posições que convivem no interior da sociedade e que todos têm potencialmente a
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capacidade de uma opinião correta (doxa). Tal como entende Cassasus (1995, p.
109), “a noção básica de democracia aparece como a apropriação por parte dos
cidadãos3 da capacidade de analisar e propor ações acerca de assuntos de
interesse comum, num espaço público”.
Não é preciso destacar o quanto é frágil entre nós o que podemos chamar de
uma “tradição democrática” e os valores republicanos que a sustentam. Assim como
a democracia, o entendimento de “república” também se apresenta como um tema
controverso no universo da política. Dado a pluralidade de seu uso, a tomamos aqui
como forma de organização política fundada:

1. Na igualdade de direitos (isonomia).


2. No princípio de que o bem privado não pode dirigir o bem comum.
3. No governo das leis, que são comuns aos cidadãos e por eles forjadas e
revistas.
4. Na existência da esfera pública como lugar de manifestação da
pluralidade de opiniões e demandas da cidadania.

Preceitos que necessitam, para a saúde da república, ser constantemente


reafirmados, algo que, lembrando a noção de democracia que esboçamos, nos
permite entender porque a escola não é só um direito como também uma obrigação
nestas formas societárias. Também entendemos a posição de Condorcet (2008), de
que as novas gerações deveriam necessariamente aprender que houve algo antes
da república. Segundo o autor, a liberdade dos cidadãos associa-se ao
conhecimento, dado que a ignorância e a desigualdade da instrução estão na base
das tiranias. Aposta iluminista na maioridade alicerçada no conhecimento. Mas no
que consiste o conhecer?
Entendemos o conhecer como o esforço de se sentir em casa cada vez que
mudamos de casa – do útero ao universo – e esta parece ser a tarefa sociopolítica
mais relevante da educação escolar. Esforço de tornar-se contemporâneo, tomando
como também sua a tarefa face ao mundo comum, considerando que este “mundo
comum” é responsabilidade de todos, e de que a educação escolar deve pautar-se
por isso.

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Porém, segundo Condorcet (2008), a educação patrocinada pelo Estado não
pode se confundir com propaganda política, pois isto significaria dar origem a uma
nova submissão intelectual. Daí o respeito à pluralidade inerente a democracia
republicana e a especificidade da educação escolar. Em outras palavras a educação
patrocinada pelo Estado deve pautar-se numa política de Estado republicano e não
numa política de governo “A”, “B” ou “C”.
Portanto, na escola não podemos fazer “qualquer coisa”, a licença que temos
significa assumir a responsabilidade com o componente curricular para o qual fomos
contratados e estamos habilitados, lembrando que ele se articula com um projeto
maior (Projeto Político-Pedagógico do estabelecimento em que atuamos) e, em
última instância, com as expectativas que a sociedade tem com este
estabelecimento e em particular com este componente. Logo, no interior da escola
todos os componentes curriculares respondem pelo caráter republicano desta
instituição no modo como lidam com o conhecimento e com as relações sociais que
acontecem neste espaço público.
Isso significa, entre outras coisas, não limitar-se a reproduzir os
sentidos/significados encarnados pelas diferentes manifestações culturais, mas
tematizando-os, desnaturalizá-los, evidenciando a pluralidade de
sentidos/significados que os sujeitos podem produzir nos mais variados contextos.
Pluralidade que só instituições com esse caráter republicano podem preservar e que
não são necessariamente compatíveis com os marcos de outros modos humanos de
organizar a vida em sociedade4.
Poderíamos nos perguntar: é possível isso? Não estaríamos sendo ingênuos?
Sabemos que essa isenção é difícil, porém, se quisermos preservar a pluralidade
conquistada pela República, é fundamental que a busquemos. Isso significaria que a
educação é neutra? Sim e não. Se tomarmos como referência as possibilidades de
organização social dos humanos, diremos “não”, pois a forma republicana é já uma
escolha. Esta escolha, porém, demanda que a educação escolar se abstenha de
“tomar partido” nas questões de natureza religiosa, política e ideológica. Só assim
estaremos preservando seu caráter plural, o que não impede, ao contrário deveria
ser sua obrigação, que ela torne esclarecida a diversidade de posições que compõe
nossa sociedade. Quanto ao professor, no exercício da atividade docente, não lhe

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são permitidas escolhas pessoais frente a questões que a República normatiza 5, por
exemplo, ser complacente com atitudes racistas.
A sociedade democrática compatível com o ideário republicano é uma
construção datada e que se apoia única e exclusivamente na disposição dos seus
membros em mantê-la (orfandade assumida). Esse é o propósito de suas
instituições, lembrando que este exercício não é dissociado do esforço constante em
trabalhar as diferenças presentes em seu interior no sentido de radicalizá-las, tendo
em vista seu intento fundador de realizar o “bem comum”, considerando a
diversidade de pontos de vista que convivem em seu interior6.
Cabe lembrar que se educamos para a autonomia estamos pressupondo,
primeiramente, a liberdade republicana para seu exercício e, coextensivamente, que
a República demanda indivíduos autônomos. Possibilitar este intento em relação à
diversidade de temas/conteúdos que compõem os diferentes componentes
curriculares parece ser a grande contribuição da escola. Os meios escolhidos não
podem destoar dos fins a serem atingidos, uma vez que não são independentes das
opções ético-políticas que os sustentam. Logo, as questões didático-metodológicas
não deveriam ser independentes das questões político-pedagógicas, ou seja, se
imaginamos que uma sociedade democrática demanda sujeitos autônomos 7, esse
propósito deve orientar nossas escolhas metodológicas.
A compreensão deste vínculo entre o modo de sociabilidade e a
responsabilidade sociopedagógica da educação significa que os profissionais
responsáveis por determinado componente curricular sejam capazes de tornar
explícita a intencionalidade de suas proposições8.
Em seu livro “Educação e Republicanismo”, Flávio Brayner (2008, p. 110) se
pergunta: “O que seria, então, uma escola republicana e democrática?”. E responde
o autor: Seria a escola que, aberta a todos, se preocuparia em restituir aquilo que
ele chamou de “dívida política” (exclusão da participação das deliberações políticas).
Como? Fornecendo um mínimo de competências para que os indivíduos possam vir
a se interessar e a participar das decisões públicas. Que competências seriam
estas? Vamos a elas:

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1. ter uma relação com o mundo da cultura que permita entender as
diferentes sensibilidades, concepções, entendimentos que ao longo das
gerações constituíram o mundo comum (se situar no mundo);
2. uma competência que franqueie o acesso a uma intersubjetividade
responsável entre interlocutores dispostos a participar do debate público;
3. uma competência que permita a compreensão e a inserção qualificada
num mundo de vertiginosos avanços e mudanças tecnológicas
(atualização do ler, escrever e contar);
4. uma competência capaz de interrogar os próprios fundamentos de nossas
certezas sociais (perceber a plasticidade do mundo humano).

Todas essas competências, adverte o autor, não garante a vida ativa de


cidadãos, nem a existência e preservação de sociedades democráticas. Trata-se,
afirma ele, de “apostas neste oceano de incertezas que é a educação” (BRAYNER,
2008, p. 110-111).
Uma escola republicana prossegue Brayner (2008, p. 111-112), “é aquela que
não dissolve a autoridade do professor e o transforma num simples ‘interlocutor’ ou
alguém a serviço dos ‘interesses’ (difusos, manipuláveis e instáveis) dos alunos”.
Mais,

[...] também não é aquela que, em nome de uma crítica ao


‘conteudismo’9, transforma tudo em ‘pesquisa’ e a sala de aula em
fórum de deliberação sobre conteúdos de aprendizagem ou, ainda,
que proclama uma ‘avaliação emancipatória’ como forma de superar
o ‘poder normalizador’ supostamente autoritário da avaliação
centrada sobre objetivos claros e intenções pedagógicas definidas,
onde o conteúdo tem uma grande importância.

A aposta de Brayner (2008, p. 112) é de que:

[...] uma escola será tão mais democrática quanto mais ela propiciar
aos seus alunos as competências para intervirem, mais tarde,
naqueles espaços onde suas vidas sociais e individuais se decidem.
Sugiro pois, um “elitismo para todos”, se me permitem insistir em
expressão arriscada.

Algo que tem sido bandeira de luta atual no Brasil: Educação de qualidade
para todos. A adjetivação (de qualidade) ganha relevância à medida que o aspecto
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quantitativo (acessibilidade) está em boa medida resolvido. Entendemos que para
garantir este aspecto qualitativo, cabe a escola possibilitar o acesso ao
“conhecimento poderoso”, o qual, segundo Young (2007), é independente de
contexto (conhecimento teórico), e permite generalizações, buscando a
universalidade. Também é ele que fornece a base para se fazer julgamentos, sendo
geralmente de natureza científica10 (YOUNG, 2007).
Logo, cabe à escola, segundo Carvalho (1996), primeiramente conservar e
transmitir os conteúdos culturais de uma civilização ou nação, os quais cabem aos
formuladores de currículos proporem. Ainda, preparar a passagem do privado
(família) para o público (política/cidadania), viabilizando sua inserção e sua ação no
mundo, através da qualificação da capacidade de interlocução, colocando-se à
altura dos problemas de seu tempo.
É em consideração a esses “problemas de seu tempo” que os sujeitos, a cada
vez e em cada contexto, deverão produzir respostas. Entendemos assim que o
esforço de educar é “afinar um instrumento, de dentro para fora, de fora para
dentro”. Este fora é a cultura de nosso tempo. No caso da Educação Física, a cultura
corporal de movimento. Logo, a tarefa da educação em uma escola republicana é
educar ensinando e ensinar educando. Arte que se encontra sempre em algum
ponto entre o “abandonar” e o “sufocar” as novas gerações, a nós todos cabe, em
cada contexto, encontrar a justa medida. Mais que ciência, é uma arte.
Tratamos até agora da especificidade da Educação Escolar como espécie de
pano de fundo que nos permite avançar no entendimento das responsabilidades da
Educação Física escolar, único modo que entendemos pertinente para enfrentar as
questões que nos propomos neste texto.
Podemos primeiramente nos perguntar: Para que Educação Física na escola?
Afinal,

1. Não teríamos atividade física sem Educação Física na escola?


2. Não nos exercitaríamos sem Educação Física na escola?
3. Não nos socializaríamos sem Educação Física na escola?
4. Não haveria lazer sem Educação Física na escola?
5. Não teríamos aptidão física sem Educação Física na escola?
6. Não teríamos saúde sem Educação Física na escola?

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7. Não haveria esporte, ginástica, dança, lutas, jogos... sem Educação Física
na escola?

Como consideramos difícil responder negativamente a alguma destas


questões, cabe interrogar: o que significa a existência da Educação Física para cada
um desses temas? Ainda: O que agregamos no mundo e na percepção de mundo
de nossos alunos? O que perderia alguém que não tivesse esta oportunidade?
Diante destas interrogações esboçamos (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER,
2009; 2010) o entendimento de que a Educação Física escolar, na condição de
disciplina, tem como finalidade formar indivíduos dotados de capacidade crítica em
condições de agir autonomamente na esfera da cultura corporal de movimento e
auxiliar na formação de sujeitos políticos, munindo-os de ferramentas que auxiliem
no exercício da cidadania (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2010). Ou como propõe
Betti (2003, p. 54),

[...] tem por finalidade propiciar aos alunos a apropriação crítica da


cultura corporal de movimento, visando formar o cidadão que possa
usufruir, compartilhar, produzir, reproduzir e transformar as formas
culturais do exercício da motricidade humana: jogo, esporte,
ginásticas e práticas de aptidão física, dança e atividades
rítmicas/expressivas, lutas/artes marciais, práticas alternativas.

No caso dos documentos legais do Brasil, em particular no que se refere aos


objetivos da Educação Física segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
temos a intencionalidade de integrar o aluno na cultura corporal de movimento.
Lembrando que reside aqui uma ambiguidade, pois “integrar”, pode ter o sentido de
adaptação pura e simples, mas também pode ser uma integração mediada pela
reflexão, principalmente a medida que tomamos a cultura (e a cultura corporal de
movimento) no sentido weberiano de teia de significados na qual nós nos inserimos
tecendo-a. O que nos permite afirmar que a educação, em sentido amplo, nos insere
na cultura, e a educação escolar (Educação Física) por sua vez, potencializa-nos
para “tecê-la”.
O desafio de legitimação que aqui apresentamos difere de nossa tradição,
dado que nossos argumentos não passavam de generalidades do tipo: “formação
integral”; “socialização”; “interdisciplinaridade” (cabendo a nós a função de “bengala”
para as outras disciplinas); “compensação desestressora” entre outras evasivas.
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Afinal, nós não passávamos de uma “atividade”, um “exercitar-se para... (saúde,
rendimento, formação do caráter...)”, que acontecia no seu interior. Nosso
compromisso resumia-se a um fazer e hoje somos desafiados a construir um saber
“com” esse fazer. Mais que isso, pensar um saber que se desenvolve ao longo dos
anos escolares em complexidade e criticidade. Algo que poderíamos esboçar
graficamente como a Figura 2.

Figura 2 – Relação entre o passo dos anos escolares e aumento da complexidade e


criticidade dos conteúdos em Educação Física

Fonte: Elaborado pelos autores.

Neste esforço cabe destacar que não podemos esquecer que o saber com o
qual lidamos não se resume a um saber conceitual, mas envolve experiências
corpóreas “pré-linguísticas”, que para ser objeto de tematização em uma prática
pedagógica necessitam ser “traduzidos” linguisticamente, sofrendo um
“deslocamento”.
Também, alertado por Betti (2005), devemos ter o cuidado de não nos
transformarmos em um discurso acerca do movimento, mas um discurso com o
movimento, ou, como grafa Bracht (1999), um “movimentopensamento”.

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Mas, se nos propomos a tematizar algo, cabe especificar o que é este algo
que nos propomos tematizar? Se a resposta é a cultura corporal de movimento,
cabe especificar: o que nesta cultura? A resposta que esboçamos (GONZÁLEZ;
FENSTERSEIFER, 2010) é a seguinte:

1. Possibilidades do se-movimentar
2. Práticas corporais sistematizadas
3. Representações sociais sobre a cultura corporal de movimento

Vamos ver a que se refere cada uma delas.

Possibilidades do se-movimentar

1. A dimensão que se refere às possibilidades do se-movimentar dos seres


humanos, aparece na Educação Física como um esforço de oportunizar,
particularmente à criança, o aprofundamento do conhecimento do próprio
corpo, sua capacidade de realizar movimentos e de relacionar-se
corporalmente com as dimensões espaço-temporais do ambiente físico.
Esse conhecimento brota da experiência que permite a síntese das
possibilidades filogenéticas dos seres humanos para se-movimentar e os
desafios oportunizados/colocados pelo contexto cultural.

Práticas corporais sistematizadas

2. [...] entendemos que a Educação Física enquanto componente curricular


deve ocupar-se com o estudo do conjunto de práticas corporais
sistematizadas que se vinculam com o campo do lazer, o cuidado do
corpo e à promoção da saúde. Nesta perspectiva, entendemos que as
práticas sociais estudadas têm alguns elementos em comum, como: a) o
movimento corporal como elemento essencial, b) uma organização interna
(de maior ou menor grau) pautada por uma lógica específica e c) serem
produtos culturais vinculados com o lazer/entretenimento e/ou o cuidado
do corpo e a saúde.

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Representações sociais sobre a cultura corporal de movimento

3. Esta dimensão é composta pelos conceitos que permitem refletir sobre


origem e a dinâmica de transformação nas representações e práticas
sociais que se relacionam com as atividades corporais de tempo livre, o
cuidado e a educação do corpo, seus vínculos com a organização da vida
coletiva e individual, bem como, os agentes sociais envolvidos em sua
produção (estado, mercado, mídia, instituições esportivas, organizações
sociais, etc.).

Porém com que propósitos fazemos isso? Arriscando uma resposta


poderíamos afirmar que o lugar da Educação Física como componente curricular é
então pensar no modo como ela pode contribuir para formar o “espírito republicano”
acerca dos temas/conteúdos que lhe são específicos. Uma espécie de “Janela para
o Mundo”, mirada possível, e, em sociedades com as características traçadas
(democráticas e republicanas), algo necessário para o próprio aperfeiçoamento
destas sociedades, dado seu não acabamento, sua perfectibilidade (ou plasticidade).
Concluindo, esperamos ter ficado claro que o propósito principal desta
reflexão é chamar a atenção para o fato de que se leve em consideração, na
produção de possíveis respostas para a função social da escola pública, e em
particular para a Educação Física, no que se refere ao ensinar e aprender, os
marcos de uma sociedade democrática e republicana, a não ser que nos
coloquemos abertamente contrários a estes marcos.
Sabemos que as respostas a serem produzidas são dependentes da decisão
dos implicados em agir e das variáveis presentes nos contextos específicos.
Entendo que esta não é uma questão menor quando nos deparamos com a
necessidade de resolver problemas, pois estes podem ser resolvidos em registros
políticos não democrático-republicanos11, o que, esperamos ter ficado claro, não é a
nossa posição. Levar isto em conta implica reconhecer que quando falamos em
autonomia da escola, devemos pensar que esta autonomia é sempre relativa.
Contudo, se cada um opta por sua “filosofia de vida”, afirma Almeida (2009),
referenciada em Hannah Arendt, tomando em conta apenas suas necessidades
individuais, “o mundo comum deixa de existir e o que nos une é apenas o consumo

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de sentidos”. Este parece ser o “espírito do nosso tempo”, e é frente a ele que se
coloca o maior desafio da educação escolar: pensar, se essa for nossa escolha, no
modo como ela pode contribuir para formar o “espírito republicano” acerca dos
temas/conteúdos que lhe são específicos12. Lembrando sempre que em uma
República Democrática as instituições por mais fundamentais que sejam são
instituições seculares, nós que as instituímos, essa é a sua fragilidade e sua força.
Não devemos esconder seus limites, porém, o mais importante é radicalizar suas
possibilidades, em outras palavras, comer a fruta até o caroço.

Nota explicativa

O presente texto é uma adaptação do que originalmente foi publicado em:

FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo; GONZÁLEZ, Fernando Jaime. Desafios da


legitimação da educação física na escola republicana. Horizontes – Revista de
Educação, Dourados, MS, n. 2, v. 1, p. 33-42, julho a dezembro de 2013. Disponível
em: <https://goo.gl/gPxe3G>. Acesso em: 13 jul. 2018.

FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. O que ensinar e aprender nas aulas de Educação


Física. CONGRESSO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA:
“EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: DESAFIOS A PRÁTICA PEDAGÓGICA”, 2., 2013,
Lajeado, RS. Anais do II Congresso Estadual de Educação Física na Escola:
“Educação Física Escolar: desafios a prática pedagógica”. Lajeado: Univates, 2013.
128p. Disponível em: <https://goo.gl/5FH9MY>. Acesso em: 13 jul. 2018.

Referências

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REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
EDUCAÇÃO, 31., 2008, Caxambu, MG. Grupos de Trabalhos (GTs)... Caxambu,
MG: ANPed, 2008. Disponível em: <https://goo.gl/SVmJ7e>. Acesso em: 13 jul.
2018.

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2002.

BETTI, Mauro. Sobre teoria e prática: manifesto pela redescoberta da educação


física. Revista Digital, Buenos Aires, v. 10, n. 90, dez., 2005. Disponível em:
<http://www.efdeportes.com/efd91/ef.htm>. Acesso em: 13 jul. 2018.

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Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional – PROEF
Disciplina Escola, Educação Física e Planejamento
BETTI, Mauro. Educação física escolar: do idealismo à pesquisa-ação. 2002. 336 f.
Tese (Livre-Docência em Métodos e Técnicas de Pesquisa em Educação Física e
Motricidade Humana) – Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2003.

BRACHT, Valter. Educação física & ciência: cenas de um casamento (in)feliz. Ijuí,
RS: UNIJUÍ, 1999.

BRAYNER, Flávio H. A. Educação e republicanismo: experimentos arendtianos para


uma educação melhor. Brasília, DF: Liber Livro, 2008.

CARVALHO, José Sérgio F. Algumas reflexões sobre o papel da escola de 2o grau.


Revista paulista de educação física, São Paulo, SP, supl. 2, p. 36-39, 1996.

CASASSUS, Juan. Tarefas da educação. Campinas, SP: Autores Associados, 1995.

CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto II. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1987.

CONDORCET. Marie-Jean Antoine Nicolas de Caritat [Marquês de]. Cinco memórias


sobre a instrução pública. São Paulo: UNESP, 2008.

GONZÁLEZ, Fernando Jaime; FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. Entre o “não mais”


e o “ainda não”: pensando saídas do não-lugar da EF escolar I. Cadernos de
formação RBCE, Porto Alegre, RS, v. 1, n. 1, p. 9-24, set., 2009.

GONZÁLEZ, Fernando Jaime; FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. Entre o “não mais”


e o “ainda não”: pensando saídas do não-lugar da EF escolar II. Cadernos de
Formação RBCE, Porto Alegre, RS, v. 1, n. 2, p. 10-21, mar., 2010.

YOUNG, Michael. Para que servem as escolas? Educação e sociedade, Campinas,


SP, v. 28, n. 101, p. 1287-1302, set./dez., 2007.

Notas de fim de página

1
Texto oriundo das publicações: FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo; GONZÁLEZ, Fernando Jaime.
Desafios da legitimação da educação física na escola republicana. Horizontes – Revista de
Educação, Dourados, MS, n. 2, v. 1, p. 33-42, julho a dezembro de 2013. Disponível em:
<https://goo.gl/gPxe3G>. Acesso em: 13 jul. 2018. e FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. O que
ensinar e aprender nas aulas de Educação Física. CONGRESSO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO
FÍSICA NA ESCOLA: “EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: DESAFIOS A PRÁTICA PEDAGÓGICA”,
2., 2013, Lajeado, RS. Anais do II Congresso Estadual de Educação Física na Escola: “Educação
Física Escolar: desafios a prática pedagógica”. Lajeado: Univates, 2013. 128p. Disponível em:
<https://goo.gl/5FH9MY>. Acesso em: 13 jul. 2018.
2
Deve-se levar em conta que não estamos tratando da educação em sentido amplo, como
experiência humana que antecede a forma escolar de educação, por isso é preciso levar em conta
a especificidade desta.
3
Se para Descartes o bom senso é a coisa mais bem distribuída entre os homens, aqui
consideramos que este bom senso pode e deve ser desenvolvido com vistas a aprimorar a
capacidade de discernimento dos indivíduos acerca dos problemas que lhes são comuns.
4
Certamente, isso não vale para sociedades em que o Estado não é laico, ou onde há uma “ideologia
oficial”. No primeiro isso seria heresia e, no segundo, desvio de conduta.

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5
É preciso lembrar que é em nome das leis da república que os professores recebem sua licença
para a docência (licenciados).
6
Aqui também temos diferença radical, pois todas as ditaduras (ou outros regimes não
republicanos/democráticos) se instalam em nome do bem comum, logo, não necessitam da
manifestação dos indivíduos em relação ao que consiste este “bem comum”.
7
Constata-se em nossas escolas que quanto maiores os alunos, maior o descompromisso, a
irresponsabilidade. Podemos pressupor que não estamos conseguindo realizar a passagem de
uma moral heterônoma para uma moral autônoma, condição para a sociedade republicana e que
demanda uma normatividade não metafísica no universo ético-político.
8
Logo o professor não deveria se incomodar com as interrogações dos alunos acerca do sentido de
estudar algo.
9
Temos afirmado que não somos parceiros para falar mal dos conteúdos e da disciplina.
10
Sabemos que no caso da Educação Física (EF) esse tipo de saber corresponde a uma das
dimensões do conhecer que nos ocupamos.
11
É só ver o número de vezes em que lemos defesas fervorosas de saídas técnicas (gestores
eficientes) ou de rupturas revolucionárias.
12
Brayner afirma que uma escola republicana é uma forma de responder a questão: “podemos ainda
viver juntos?”

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