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MENTE EM

CHAMAS

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Tradução
José Fernando Cristófalo

Supervisão editorial
Marcos Simas

Capa
Oliverartelucas

Revisão
Carlos Buczynski

Diagramação
Pedro Simas



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MENTE EM
CHAMAS
FÉ PARA O CÉTICO E INDIFERENTE

Blaise Pascal

Editado por
James M. Houston

Introdução
Os Guinness

Brasília
2007

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© 2007 Editora Palavra

© 2006 by James M. Houston, second edition


Cook Communications Ministries, 4050 Lee Vance View, Colorado Springs, Colorado 80918
U.S.A. Originally published 1982 by Multnomah Press, Portland, Oregon 92766

Título original
The Mind on Fire

Impressão
Imprensa da Fé, SP

1ª Edição brasileira
Abril de 2007

Todas as citações bíblicas foram extraídas da NVI – Nova Versão Internacional,


da Sociedade Bíblica Internacional. Copyright © 2001, salvo indicação em contrário.

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sem o consentimento prévio,
por escrito, dos editores, exceto para breves citações, com indicação da fonte.

Publicado no Brasil com a devida autorização


e com todos os diretos reservados pela
Editora Palavra
CLN 201 Bloco “C” subsolo
Brasília - DF
CEP. 70832-530
Tel: 61-3326-7883
www.editorapalavra.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


CIP-Brasil. Catalogação na fonte

P278m Pascal, Blaise


Mente em Chamas: fé para o cético e indiferente / Blaise Pascal;
resumido e editado por James M. Houston. – Brasília-DF : Palavra, 2007.

384p.; 21cm.

Obra publicada originalmente em inglês sob o título: Real Christianity : discerning true
faith from false beliefs.

ISBN 978-85-60387-12-0

1. Homem – Teologia. 2. Antropologia Cristã. 3. Deus – Religião.


4. Condição Humana e Religiosidade. I. Título.

07-056 CDU: 233.5


CDD: 233

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O Dr. James M. Houston nasceu em um lar de missionários
que serviam na Espanha, tendo atuado como conferencista
na Universidade de Oxford, Inglaterra, de 1949 a 1971. Foi
membro do Hertford College, no período de 1964 a 1971,
e Reitor da Regent College, de 1969 a 1978, onde também
exerceu o cargo de chanceler e, atualmente, é professor
emérito de Teologia Espiritual.

O Dr. Houston tem trabalhado ativamente na propaga-


ção e no estabelecimento de centros de treinamento
para leigos em todos os continentes. Na lista, incluem-se
o C. S. Lewis Institute, em Washington, D.C. e o Lon-
don Institute for the Study of Contemporary Christianity
(Instituto para o Estudo do Cristianismo Contemporâneo
de Londres). Além de seu trabalho com a série de clássi-
cos, o Dr. Houston publicou no Brasil as seguintes obras:
Mentoria Espiritual, publicada pela Editora Textus, e a
trilogia sobre espiritualidade que inclui os livros Orar com
Deus, A Fome da Alma e Em Busca da Felicidade,
publicados pela Abba Press.

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Sumário

Prefácio à série Clássicos da Espiritualidade Cristã .......................... 11


Nota do Editor – Blaise Pascal e a
relevância de seus escritos cristãos .................................................. 15
Cronologia – Da vida e da época de Pascal ..................................... 29
Introdução de Os Guinness ............................................................ 33
Testemunho – Pascal fala sobre sua conversão ................................ 47

A obra PENSAMENTOS, reorganizada e


selecionada como uma apologética cristã

I. Introdução ....................................................................... 51

Parte Um: A miséria do homem sem Deus ................................ 55


II. A condição natural do homem ......................................... 57
III. A condição infeliz do homem .......................................... 71
IV. O vazio do homem ........................................................... 81
V. O homem vivendo racionalmente .................................... 83
VI. A grandeza da dignidade humana .................................... 91
VII. Contradições humanas ................................................... 97
VIII. Distrações humanas ..................................................... 105
IX. A busca da felicidade pelos filósofos ............................... 113
X. A busca pelo bem supremo .............................................. 119

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Parte Dois: A iniciativa racional humana ................................ 123
XI. Introdução: Sobre a contraditória natureza humana ...... 125
XII. A razão pode recomeçar pelo reconhecimento
do que jamais pode ser conhecido ................................. 143
XIII. Submissão: O correto uso da razão ............................... 149

Parte Três: A iniciativa divina ................................................. 161


XIV. A transição do conhecimento humano
para o conhecimento de Deus ...................................... 163
XV. A corrupção da natureza humana ................................. 171
XVI. A falsidade das outras religiões .................................... 173
XVII. O que torna a verdadeira religião atrativa? ................ 179
XVIII. Fundamentos da fé e respostas às objeções ............... 181
XIX. Significados figurativos da Lei do Antigo Testamento ..... 189
XX. Escritos rabínicos ........................................................... 205
XXI. Perpetuidade ou princípios eternos da fé cristã ........... 209
XXII. Provas de Moisés ........................................................ 217
XXIII. Provas de Jesus Cristo ............................................... 221
XXIV. Profecias da Escritura ............................................... 231
XXV. Figuras particulares da profecia .................................. 237
XXVI. Moralidade cristã ...................................................... 241
XXVII. Conclusão ................................................................ 249
Outras máximas de Pensées (Pensamentos) e de Provérbios ........ 257

Cartas a um provinciano escritas


por um de seus amigos

Carta I: Observações sobre uma disputa entre teólogos,


na Sorbonne, para censurar A. Arnauld .................. 267
Carta II: Sobre o objetivo da graça suficiente ...................... 279
Carta IV: Sobre a graça real e os pecados da ignorância ...... 289
Carta V: A razão dos jesuítas em estabelecer uma
nova moralidade .................................................... 303

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Carta X: O fácil expediente dos jesuítas com
respeito ao sacramento da penitência ................. 315

Oração ....................................................................................... 323


Apêndice .................................................................................... 333

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Prefácio

Série Clássicos da
Espiritualidade Cristã

C om a profusão de livros sendo agora publicados,


grande parte dos leitores cristãos necessita de algu-
ma orientação acerca de uma coleção básica de obras espirituais
que permaneçam como companheiras para toda a vida. Esta sé-
rie de clássicos da espiritualidade cristã está sendo editada para
oferecer uma biblioteca básica para o lar. As obras selecionadas
podem não ser todas conhecidas na atualidade, mas cada uma
delas possui um interesse central de relevância para o cristão
contemporâneo.
Outro objetivo desta coletânea de livros é o de um des-
pertamento. Um despertamento para os pensamentos e medi-
tações espirituais dos séculos esquecidos. Muitos cristãos, hoje,
não têm noção do passado. Se a Reforma é importante para suas
convicções, eles saltam da Igreja apostólica para o século XVI,
esquecendo-se de catorze séculos da obra do Espírito Santo en-
tre muitos que se dedicaram a Cristo. Estes clássicos retirarão o
fosso, e enriquecerão seus leitores por meio da fé e da consagra-
ção de santos de Deus através de toda a história.
E assim, nos voltamos para os livros, e ao seu propósito.
Alguns deles mudaram a vida de seus leitores. Observe como
A Vida de Antônio, de Atanásio, afetou Agostinho ou Um Cha-

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mado Sério para a Vida Santa, de William Law, influenciou John


Wesley. Outros, tais como as Confissões, de Agostinho, ou a Imi-
tação de Cristo, de Thomas à Kempis, têm permanecido como
fontes perenes de inspiração através dos séculos. Esperamos de
coração que as obras selecionadas nesta série tenham um efeito
semelhante sobre nossos leitores.
Cada um dos clássicos escolhidos para esta série é profun-
damente significativo para o leitor cristão contemporâneo. Em
alguns casos, os pensamentos e reflexões do escritor clássico se
espelham nas ambições e desejos genuínos do leitor atual, uma
identificação de corações e mentes incomum de se encontrar.
Assim, alguns indivíduos foram convidados a escrever a intro-
dução do livro que teve um significado tão importante para sua
própria vida.

Editando os clássicos

Alguns clássicos de espiritualidade tiveram seus obstácu-


los. Sua linguagem original, o estilo arcaico das edições mais
recentes, sua extensão, as digressões, as alusões a culturas ultra-
passadas – tudo isso torna seu uso desestimulante para o leitor
moderno. Reimprimi-los (como feito em larga escala no século
passado e ainda hoje) não supera estas deficiências de estilo,
extensão e linguagem. A fim de buscar pelo grão e remover a
casca, o trabalho desta série envolve resumir, reescrever e editar
cada um dos livros. Ao mesmo tempo, procuramos manter a
mensagem essencial da obra, e manter, tanto quanto possível, o
estilo original do autor.
Os princípios de edição são os seguintes: manter as sen-
tenças curtas. Também diminuir os parágrafos. O material é re-
sumido quando há digressões ou alusões a questões específicas
de seu tempo. As palavras arcaicas são atualizadas. As conexões
lógicas podem ser acrescentadas ao material resumido. A iden-
tidade do tema ou do argumento é mantida o tempo todo em

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A BUSCA PELO BEM SUPREMO 13

mente. Alusões a outros autores recebem uma breve explicação.


E textos de rodapé são acrescentados a fim de fornecer resumos
concisos de cada seção principal.
Para o cristão, a Bíblia é o texto básico para a leitura es-
piritual. Todas as outras leituras devocionais são secundárias e
jamais deveriam substituí-la. Portanto, as alusões às Escrituras
nestes clássicos de espiritualidade e devoção são pesquisadas e
mencionadas no texto. É neste ponto que outras edições desses
livros ignoram as suas qualidades bíblicas, que são inspiradas e
conduzidas pela Bíblia. O foco nas Escrituras é sempre a marca
registrada da verdadeira espiritualidade cristã.

O propósito para os clássicos: leitura espiritual

Uma vez que nossa cultura impaciente e guiada pelos sen-


tidos torna a leitura espiritual algo estranho e difícil para nós, o
leitor deveria estar pronto a ler esses livros com vagar, estar dis-
posto a meditar e a refletir. Não se pode lê-los de maneira afoba-
da, como se lê uma história de detetive. Em lugar da novidade,
eles se concentram na recordação, em nos lembrar de valores de
conseqüências eternas. Podemos apreciar muitas coisas novas,
mas valores são tão antigos quanto a criação de Deus.
O alvo do leitor desses livros não é o de buscar informa-
ção. Ao contrário, esses volumes nos ensinam acerca de viver
sabiamente. Isso demanda obediência, submissão da vontade,
mudança de coração e um espírito dócil e terno. Quando João
Batista viu Jesus, reagiu, “Convém que ele cresça e que eu di-
minua”. Do mesmo modo, a leitura espiritual diminui nossos
instintos naturais para permitir que o Seu amor cresça dentro
de nós.
Esses livros também não são textos ou pacotes de “como
fazer” algo. Eles nos recebem como somos – ou seja, como pesso-
as, e não como funcionários. Eles nos guiam para que “sejamos”
autênticos, e não necessariamente nos ajudam a promover mais

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atividades profissionais. Tais livros demandam tempo para sua


digestão vagarosa, espaço para que seus pensamentos entrem
em nossos corações e disciplina para deixar que novas percep-
ções “grudem” e tornem-se parte de nosso caráter cristão.

James M. Houston

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Nota do Editor

Blaise Pascal e a relevância


de seus escritos cristãos

Na sociedade secular de nossos dias, muitos crêem que a


conversão ao cristianismo é o mesmo que cometer suicídio in-
telectual. Tais pessoas pensam que aceitar as doutrinas cristãs é
unir-se a uma multidão de iletrados e tolos supersticiosos.
Pascal rejeita esta crença. Ele escreveu com o intuito de
comunicar a fé cristã ao cético, ao indiferente e ao hostil. Pas-
cal foi um gênio da matemática e da física, além de um notável
pensador religioso.

Sua vida

Blaise Pascal (1623-1662) nasceu na região central da


França, em Clermont, filho de um oficial do governo. Pensa-
dor notável, ele tem sido considerado por muitos como um dos
maiores escritores da prosa francesa. Pelo fato de sua mãe ter
falecido quando tinha apenas três anos de idade, Pascal cresceu
sob os cuidados de sua irmã Gilberte, três anos mais velha. Sua
mais constante companhia foi sua outra irmã, Jacqueline, dois
anos mais jovem.1
Ele cresceu em uma época de auto-evidente fé religiosa.
O ceticismo de Montaigne, o empirismo racional de Descartes

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e o ateísmo de Vanini começavam a seduzir as mentes dos ho-


mens rumo ao espírito do secularismo moderno.
Muito embora os reis católicos da França tenham evi-
tado que o protestantismo se tornasse uma influência pública
no país, poderosas tensões religiosas ainda estavam em ação.
Enquanto os jesuítas procuravam importar um casuísmo libe-
ral, outros movimentos religiosos de renovação estavam cres-
cendo em importância, influenciados pela espiritualidade de
Francisco de Sales, Bérulle e Vicente de Paulo. O abade de
Saint-Cyran, Jean Du Vergier de Hauranne, particularmente
expressava um ardente anseio pelo renascimento espiritual.
Ele próprio era influenciado pelo teólogo holandês Cornelius
Jansen, mais tarde nomeado Bispo de Ypres. Mantido em cár-
cere por cinco anos pelo governo francês, o abade de Saint-
Cyran veio a falecer logo após sua libertação, mas não antes
do pai de Pascal, Étienne, ser influenciado por dois de seus
discípulos.2
Quando Blaise completou sete anos de idade, seu pai
deixou o cargo governamental em Clermont e mudou-se
para Paris. Apesar de terem sido ensinados pelo próprio pai,
foi nesta cidade que seus filhos foram influenciados pelo
pensamento livre e o espírito cético de Montaigne, e foi
lá também que eles foram expostos a uma vida moderna e
mundana. Por um curto período de tempo, o pai de Blaise
deixou Paris, em exílio, ao cair em desgraça com o Cardeal
Richelieu. Mais tarde ele foi reintegrado e designado como
Comissário Real para cobrança de impostos na Norman-
dia.
Os estudos científicos fascinavam Blaise. Aos 16 anos ele
apresentou seu primeiro tratado matemático sobre as proprieda-
des das secções de um cone.3 Aos 19, Blaise começou a traba-
lhar em uma máquina calculadora, designada para auxiliar seu
pai na laboriosa tarefa de tributar e coletar impostos. Após al-
guns anos de desenvolvimento, ele colocou sua “máquina arit-

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NOTA DO EDITOR 17

mética” à venda, porém seu proibitivo preço evitou que fosse


um sucesso financeiro.
Após um acidente, em 1646, o pai de Blaise – assistido
por um padre que se tornara adepto do movimento de reno-
vação jansenista – convenceu-se de que “a religião cristã nos
obriga a viver somente para Deus e não ter outro objeto que
não seja Ele”. Nesse meio tempo, sua irmã Jacqueline anunciou
seu chamado a uma vocação religiosa. Com todo esse interesse
familiar pela religião, Blaise começou a estudar a Bíblia com
seriedade, muito embora prosseguisse com seus experimentos
científicos. Em 1646, ele reproduziu o conhecido experimento
de Torricelli sobre a existência do vácuo e, mais tarde, realizou
experimentos sobre a pressão do ar no cume do Puy de Dôme,
a fim de demonstrar a diminuição da pressão atmosférica em
função da altitude.
Embora Jacqueline tenha sido dissuadida por seu pai da
idéia de entrar para um convento, a ela foi dada permissão para
visitas ocasionais ao Convento de Port-Royal-des-Champs,
localizado ao sul de Paris. A partir do falecimento de seu pai,
Étienne, em 1651, Blaise começou a refletir mais seriamente
sobre a vida após a morte. Depois que Jacqueline o deixou
para dedicar-se à vida dentro do convento, ele entregou-se
uma vez mais às práticas mundanas da sociedade parisiense.
Porém, ao ter seu comportamento desaprovado por sua irmã,
Blaise se deu conta do quão confuso ele realmente estava. En-
tão, na noite de 23 de novembro de 1654, ao ler o capítulo
17 do Evangelho de João, Pascal passou por uma experiência
sublime. Misteriosamente, o vazio de sua vida pregressa foi
preenchido com a presença do próprio Deus. Quando a expe-
riência começou a esmaecer, ele rapidamente pegou papel e
pena e a descreveu em “O memorial”, reproduzido nessa obra.
Ele fez uma cópia em pergaminho e a costurou no forro de seu
casaco, prática que repetiu sempre que substituía suas roupas,
durante oito anos, até sua morte. No entanto, ele não contou

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a experiência ocorrida naquela noite a ninguém, nem mesmo


a sua irmã Jacqueline.
Em janeiro do ano seguinte, Blaise realizou a primeira das
inúmeras visitas feitas ao convento de Port-Royal, onde a co-
munidade ali recolhida buscava reavivamento espiritual, esfor-
çando-se por uma vida de auto-esvaziamento e devoção a Deus,
em resposta à irresistível graça divina. Pascal lá encontrou uma
vida tão moralmente rigorosa quanto a vida intelectualmente
vigorosa que havia buscado até então. Por intermédio de seus
contatos no convento, viu-se envolvido em uma controvérsia
entre o confessor do rei, Padre Annat, e o líder da comunidade
jansenista, Antoine Arnauld. Arnauld divulgou duas cartas em
apoio a Jansen, cujo trabalho havia sido considerado herético
por Roma em 1653.
Após extensa discussão, a Faculdade de Teologia da Sor-
bonne censurou Arnauld em 1656. Este, então, decidiu levar
seu caso à opinião pública francesa, solicitando auxílio a Pas-
cal. Contando com o auxílio de dois amigos que lhe forneciam
menções e afirmações pertinentes, Pascal começou a escrever
cartas anônimas, dezoito das quais foram escritas entre janeiro
de 1656 e março de 1657. Deste total, cinco foram reeditadas
de forma resumida nesta antologia. Tais cartas foram recebidas
com grande entusiasmo pelo público devido à grande lucidez
que apresentavam e, como Voltaire afirmou, elas estabeleceram
Pascal como o melhor escritor da prosa francesa, muito embora
a verdadeira identidade do autor tenha permanecido em segre-
do até 1659.
Nas missivas, Pascal atacava a base da casuística religio-
sa dos Jesuítas, com sua frouxidão moral e restrições mentais
conhecidas como “probabilismo”. A posição jesuíta era rea-
lista quanto à natureza humana, porém totalmente ignorante
quanto à graça de Deus. Tal questão foi atacada por Pascal de
maneira brilhante. Em contraste, os jansenistas insistiam na
abordagem da natureza radical da conversão, da necessidade

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NOTA DO EDITOR 19

de arrependimento diário pelos pecados e da irresistível graça


de Jesus Cristo. Para Pascal, esta ênfase soava como verdade
para sua própria experiência de conversão e para a nova vida
de graça.
Em seus últimos anos de vida, Pascal começou a escrever
textos relacionados à apologética cristã. Em 1657 e 1658, ele
acumulou uma grande quantidade de notas planejadas com este
propósito. Tais notas foram reunidas em 21 módulos ou liasses,
que formaram as secções de sua obra, Pensées (Pensamentos).5
Porém, esse trabalho foi interrompido por inúmeras enfermi-
dades, que amiúde o acometeram ao longo de sua breve vida, a
partir dos 24 anos. Seus últimos anos foram marcados por uma
saúde extremamente debilitada, o que provavelmente o levou
a compor, em 1660, sua “Prayer for the Good Use of Sickness”
(Oração para o Bom Uso da Enfermidade), que encerra a nossa
antologia. Em 1661, um conflito mais sério eclodiu entre as
autoridades e o Convento de Port-Royal, culminando com a
dissolução da comunidade e a morte de sua irmã, Jacqueline.
No ano seguinte, 1662, em 19 de agosto, Pascal veio a falecer.
Suas últimas palavras foram aquelas registradas em “O memo-
rial”: “Meu Deus jamais me desampara!”

O pensamento de Pascal

Após sua conversão, ocorrida aos 31 anos de idade, Pas-


cal registrou como sua mente queimou com a ardente convic-
ção de estar sendo invadido pela luz. A certeza que o dominou
levou-o a um novo nível de conhecimento.6 Agora, a magni-
ficência da alma humana, apesar da realidade do pecado, apo-
derou-se dele com renovado poder. Durante muitos anos, ele
examinou Deus meramente como uma série de conceitos, mas
agora estava na presença do próprio Deus e de Sua realidade,
o mesmo Deus que havia aparecido a Abraão, Isaque e Jacó.
“O Deus dos filósofos” era visto agora como um deus apenas

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teórico, não o ser pessoal com o qual ele podia desfrutar um re-
lacionamento eterno e que ele havia acabado de descobrir. Foi
isso que lhe proporcionou “alegria, alegria, alegria, lágrimas de
alegria”. Naquele instante, a alma de Pascal foi inundada com
“certeza, alegria indizível e paz”. Ele entendeu que ao homem
foi concedida a dádiva de uma nova dimensão de conheci-
mento, o ingresso em um novo nível de existência.
Foi durante os últimos oito anos de sua vida que sua
obra, Pensées (Pensamentos), foi produzida. Pascal enxergou
claramente que por intermédio apenas da razão ninguém se-
ria capaz de compreender toda a realidade. O conhecimento
não pode esquadrinhar o todo, mas somente pode substituir a
totalidade com uma pretensão para o todo. De fato, o todo é
substituído pela redução. Pascal desafiou o reducionismo que
viu nos escritos de homens como Montaigne. Ele percebeu
que havia diferentes níveis de conhecimento, infinitamente
distantes entre si. Assim como a inteligência do homem é
infinitamente distinta da matéria, também a sua alma está
infinitamente distante de Deus. Em Pensées (Pensamentos),
Pascal enxerga com inequívoca clareza a necessidade de ha-
ver formas de conhecimento apropriadas. Ele afirma:

“A infinita distância entre corpos e mentes simboliza a


infinitamente maior distância entre mentes e amor, pois
o amor é sobrenatural.
Toda a glória da grandeza não possui brilho algum para
os que estão engajados em questões intelectuais.
A grandeza dos intelectuais é invisível aos reis, aos ricos,
aos capitães, a todos os que são grandes segundo a carne.
A grandeza da sabedoria, que não é nada se não provém
de Deus, é invisível aos de mente carnal e aos intelectu-
ais. Assim, existem três ordens diferentes de gênero.
Grandes gênios possuem seu domínio, seu esplendor,
sua grandeza, sua vitória, sua glória e não necessitam da

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NOTA DO EDITOR 21

grandeza da carne, que não possui nenhuma relação com


seu domínio. Eles não são vistos por meio dos olhos, mas
por intermédio das mentes, e isso lhes basta.
Os santos, igualmente, possuem seu domínio, sua glória,
sua grandeza, sua vitória, seu esplendor e não necessitam
da grandeza carnal ou intelectual, pois não possuem qual-
quer relevância para seu domínio, já que não adicionam
ou subtraem. Eles são vistos por Deus e pelos anjos, não
pelos corpos ou mentes curiosas. Deus lhes é suficiente”.7

Se é assim, então o fato de Jesus Cristo ter vindo a este


mundo sem riquezas e honra, possuindo sua própria glória e
santidade, significa que não deveríamos tropeçar em Sua hu-
mildade e paciência. Pois Ele não reinou em esplendor no sen-
tido sensual, tampouco desenvolveu invenções intelectuais. Se
a vida de Cristo foi marcada por tamanha distinção, por que
então sermos escandalizados por Sua humildade? Pois a ordem
moral é totalmente distinta dos níveis carnais ou intelectuais
da humanidade. Sendo tão diferentes, em termos qualitativos,
cada qual deve continuar a ter a sua forma apropriada de co-
nhecimento.
Porém, a miséria do homem é que ele se encontra per-
dido e não é capaz de descobrir os meios de conhecimento
apropriados, apenas por intermédio de seu intelecto. De fato,
Pascal sentiu-se surpreso ao perceber quão poucos, em sua épo-
ca, realmente estavam investigando a natureza humana. Talvez
isso tenha ocorrido quando ele percebeu que o homem estava
aprisionado em uma tensão dialética, “um ser pensante”, cuja
nobreza jaz em seu intelecto e, por isso mesmo, a sua busca pela
verdade era fútil, por conseguinte, a busca pela felicidade era
frustrada. Nós desejamos a verdade, Pascal argumentou, mas ja-
mais poderemos ter a certeza de tê-la alcançado. Necessitamos
da felicidade, porém, uma vez mais, jamais teremos a certeza
de tê-la atingido. Assim, a razão é sabotada por todos os lados

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22 MENTE EM CHAMAS

e seus alicerces são incertos. Da mesma forma, perseguimos a


justiça, mas não detemos um verdadeiro conhecimento sobre
ela. Miséria, então, ele vê ser a chave para a vida do homem.
“Vaidade de vaidades” é como o autor do livro de Eclesiastes
descreve a condição humana. Somos infelizes e, embora veja-
mos também a nossa grandeza, ver a nossa miséria nos torna
ainda mais infelizes.
O homem com Deus, entretanto, pode ter fé, e Pascal
vislumbrou que a fé consegue enxergar além das limitações da
razão. A fé pode ver a futilidade da mera filosofia, seja ela pla-
tônica, epicurista ou estóica. Para o cristão, a fé vê e descreve
a condição humana como nada mais pode ver. A explicação
cristã do pecado sobre a dualidade humana considera o homem
como nenhuma filosofia pode fazer. Somos confrontados com
a afirmação cristã e devemos aceitá-la ou rejeitá-la. Quando
percebemos que o racionalismo é uma forma de amor-próprio,
na verdade uma rebelião contra Deus, então adentramos uma
perspectiva totalmente nova sobre a falência da razão humana.
A Escritura declara duas grandes verdades: O homem é um ser
decaído, porém foi redimido.
No centro dessas afirmações repousa a declaração de Je-
sus Cristo como sendo o Redentor da humanidade. Esta é uma
doutrina que explica tanto a condição do homem quanto a sua
possibilidade de redenção. Ela também encontra ressonância na
experiência pessoal, pois mesmo a visão de Deus, seja ela reve-
lada ou não, nos relembra constantemente nossa ambigüidade,
ou seja, decaídos, porém capazes de redenção.
As Escrituras apontam para o Messias, assim como os es-
critos rabínicos. O Evangelho cristão possui uma história longa
e contínua. Os profetas predisseram Sua vinda eras atrás. Este
contraste com as demais religiões – a histórica continuidade da
ação de Deus na história – impressionou Pascal profundamen-
te. O Novo Testamento dá continuidade à promessa do Antigo
Testamento, e afirma que o Messias veio. O próprio Jesus Cristo

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NOTA DO EDITOR 23

deixou claras as implicações não reveladas no Antigo Testa-


mento. Recebê-lo e crer nEle requer conversão, e aqui Pascal
se detém, pois claramente enxergou que embora a crença seja
racional, ela vai muito além disso. A fé pessoal em Jesus Cristo
é um dom de Deus. Isso requer um salto no escuro, o que ele
chama de “uma aposta”, o qual a vida provará ser verdadeiro.
Após aceitar a fé com nossas mentes, devemos então dar
o passo final de submetermos a nossa vontade a Deus e nos dis-
ciplinarmos para desenvolver novos hábitos. Esperamos e de-
pendemos da graça divina para isso. Pascal conclui sua apologia
com este estágio final, a necessidade de conversão. Pois se a
descrença é irracional, isso não significa que a fé deva ser apenas
racional e nada mais. Se nossa vontade e imaginação fossem
direcionadas a Deus, deveríamos ver as coisas de maneira di-
ferente da visão dos racionalistas, que nunca sobrepujaram a
vontade própria. A razão pode pavimentar o caminho, porém
cedo ou tarde cada indivíduo irá encarar o fato da cruz. Dar
este salto em direção à fé é um dom de Deus, caso contrário
nos auto-justificaríamos apenas com a nossa própria aceitação
intelectual da fé. Portanto, é aqui que devemos humildemente
aceitar e responder à graça de Deus.

A edição de PENSÉES (PENSAMENTOS), de Pascal

Pascal colocou seus pensamentos no papel da maneira


como brotavam em sua mente, deixando sua organização para
mais tarde. Assim, quando faleceu, em 1662, seus testamentei-
ros encontraram milhares de fragmentos, como mais tarde seu
sobrinho registrou: “Sem qualquer ordem e nenhuma progres-
são de pensamento”, embora Pascal conhecesse os trabalhos de
outros apologistas cristãos, notadamente Agostinho, a quem se
considerava, particularmente, devedor. Pascal também escre-
veu como um apologista e, de fato, ele nos pede que julguemos
sua apologia, não em função de seu pensamento original, mas

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24 MENTE EM CHAMAS

devido ao novo caminho no qual seus pensamentos deviam


ser ordenados, algo que sua morte prematura não lhe permitiu
completar.
Procurei nesta antologia tanto selecionar quanto rearran-
jar o material de sua obra, Pensées (Pensamentos), de forma a re-
construir a apologia ao longo das linhas indicadas pelo próprio
Pascal. Eu me sinto em débito com muitos estudiosos que têm
argüido sobre a organização de Pascal, em especial L. Lafuma e
Anthony R. Pugh, os quais reorganizaram esta obra de acordo
com dois manuscritos do século XVII.8 A publicação original de
1670 não se ateve a reconstruir a apologia com base nas linhas
indicadas por Pascal.
Os editores dos séculos XVIII e XIX não se preocuparam
em discernir uma ordem mais próxima daquela intencionada por
Pascal. Na última geração, evidências têm demonstrado que o
próprio Pascal preencheu e dividiu seus escritos em 21 módulos
ou liasses. Os numerais arábicos, localizados à esquerda do texto,
são referências à lista de nossa própria seleção da obra de Pascal.
Uma vez que há inúmeras edições e seqüências de vários editores,
os números encontrados à direita da página representam dois dos
editores mais importantes, nominalmente Louis Lafuma em sua
edição de 1962, exibida no lado esquerdo do parêntese,9 e a edi-
ção mais antiga de L. Brunschvicg, de 1904, à direita.10

O sofrimento de Pascal

Cremos ser apropriado concluir esta antologia com a ora-


ção de Pascal, pedindo a Deus que use sua enfermidade como
bênção. A luta esteve presente em toda a sua vida.11 Primeiro,
lutou contra a violência de sua própria vida interior. Esta é a
razão pela qual foi, no princípio, atraído pela atitude estóica
de Montaigne e seus predecessores. Ele também precisou lutar
contra o espírito do mundo e suas atraentes seduções para um
ambicioso intelectual como ele.

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NOTA DO EDITOR 25

Além disso, ele combateu o forte traço individualista de


ser um Pascal, de simultaneamente amar e questionar sua irmã
caçula, Jacqueline. A necessidade de abandonar, de abrir mão do
próprio eu, calou fundo no íntimo de Pascal. Como todo devoto
de Cristo deve aprender, mais cedo ou mais tarde, Pascal precisou
compreender que o significado da vida não repousa em nós mes-
mos, mas somente em Cristo. Crescer em humildade é impres-
cindível para crescer em Cristo. Jacqueline disse a respeito de seu
irmão: “Eu o vi crescer pouco a pouco até não conhecê-lo mais”.
Este é o efeito da conversão ao Evangelho de Jesus Cristo.
“Submissão total a Jesus Cristo e ao meu Diretor” era uma
nova condição de alma para Pascal, porém ele a aceitou. Em
sua obra, Pensées (Pensamentos), ele escreveu: “A piedade cristã
destrói o ego humano enquanto a polidez humana a esconde e
reprime” (361). Para Pascal, a renúncia ao casamento, dinhei-
ro, intelecto, propriedades e à mesquinha tirania do egoísmo
humano era necessária. De forma voluntária ele submeteu-se
à direção espiritual e amizade de alma com a comunidade de
Port-Royal, embora fosse uma comunidade suspeita em termos
de habilidades intelectuais para um gênio como Pascal. Este
lado de Pascal jamais foi compreendido e, a esse respeito, ele
permaneceu sozinho. Sem mãe, sem lar, sem a compreensão da
comunidade, ele viveu como um homem sofredor e solitário.
Isolado, porém não abandonado, Pascal viveu nas Escrituras, na
oração e no auto-exame diante de Deus. “Esteja eu sozinho, ou à
vista de outros, todas as minhas ações estão à vista de Deus, que
irá julgá-las, e para quem eu as tenho devotado” (931-550).
Após a morte do pai, Pascal escreveu uma carta na qual
fala da necessidade essencial de enxergar todas as coisas, a res-
peito da vida ou da morte, na pessoa de Jesus Cristo, o nosso
Mediador.

“Se olharmos através deste intermediador, que é Jesus Cris-


to, não iremos encontrar nada em nós, exceto misérias re-

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26 MENTE EM CHAMAS

ais ou prazeres repulsivos. Porém, se considerarmos todas


as coisas em Jesus Cristo, descobriremos que tudo é con-
solação, satisfação e edificação. Vamos, então, ver a morte
em Jesus Cristo; não sem Ele. A morte sem Jesus Cristo é
terrível e repugnante, é o terror do que é natural. Em Jesus,
a morte é totalmente diferente. Ela é afável e santa, a ale-
gria do crente. Todas as coisas, até a própria morte, são uma
doce redenção em Cristo. Foi para isso que sofreu. Ele mor-
reu para santificar a morte e o sofrimento em nosso favor”.

Mais tarde, provavelmente em 1660, ao passar por um


período de convalescença de seus periódicos embates com as
doenças, Pascal orou dizendo que deveria “sofrer como um cris-
tão”. Com esta afirmação, ele quis dizer que não seria eximido
da dor, nem seria abandonado, sem as consolações do Espírito
de Deus: “Oh, que eu jamais sinta dor sem o conforto! Mas, que
eu sinta dor e consolação em conjunto!... Enfermo como me
encontro, possa eu glorificar-Te em meus sofrimentos”. Pascal
desejava apenas ser preenchido com a glória que Cristo havia
adquirido com Seus sofrimentos e na qual Ele continua hoje “a
viver com o Pai e o Espírito Santo para todo o sempre”.
Os seis últimos meses da vida de Pascal foram marcados
por intenso sofrimento físico. Ele vendeu tudo, até mesmo seus
livros (exceto sua Bíblia, os trabalhos de Agostinho12 e uns pou-
cos livros de sua estima). Ele viveu profundamente nas Escritu-
ras, especialmente no Salmo 119, que o transportava em êxtase
para além de si mesmo.
Ele desejou ser levado para morrer em um albergue ao lado
dos moribundos e ansiou também celebrar a Eucaristia, mas seus
pedidos lhe foram negados. Em seus momentos derradeiros, ele
recebeu a Eucaristia e, após 24 horas de extremo sofrimento,
Pascal faleceu na noite de 19 de agosto de 1662.
Talvez outras palavras não expressem tão eloqüentemente
o propósito de seus escritos como estas: “O coração tem razões

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NOTA DO EDITOR 27

que a própria razão desconhece”. Como ele explica em outro


lugar:

“A compreensão possui um método próprio através de


princípios e demonstrações. O coração possui um método
totalmente diferente. Não provamos a nós mesmos dis-
cernir o amor através da descrição sistemática das causas
do amor; na realidade, isso seria ridículo. Jesus Cristo e o
apóstolo Paulo utilizaram com muito mais freqüência este
método do coração, que é mais do amor que da compreen-
são. Porque o principal propósito deles não foi tanto o de
informar, mas o de inflamar. Agostinho fez o mesmo.”

Esta também é a razão pela qual podemos falar de Pascal


como a mente em chamas, inflamado pelo amor de Jesus Cristo.
O texto desta antologia é baseado em uma comparação
dos textos franceses de L. Brunschvicg e J. Mesnard com os tex-
tos ingleses de John Warrington e A. J. Krailsheimer, da obra
Pensées. A seqüência é alinhada com a composição do texto de
Anthony R. Pugh. Quanto a Cartas Provinciais, segui o texto
de Pascal: Oevres Complètes (Paris: Seui, 1963), em conjunto
com uma edição de 1889, em inglês, publicada por Griff Farran,
Okeden & Welsh (London and Sydney). A oração de Pascal foi
extraída de Thoughts on Religion ... of Blaise Pascal (Pensamentos
sobre Religião... de Blaise Pascal), Oxford and London, 1851.
Sou muito grato ao meu grande amigo Os Guinness, que
escreveu a introdução a esta antologia. Como Pascal, ele é um
crítico profético de nossos tempos e exemplifica o rigor de pen-
samento necessário para julgar se temos tido mentes cristãs em
nossa própria sociedade. Igualmente, estou em débito com Jean
Nordlund e Valerie Milne pela assistência na digitação deste
manuscrito.

James M. Houston

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28 MENTE EM CHAMAS

NOTAS

1. Roger Hazelton, Blaise Pascal, The Genius of his Thought


(Philadelphia: Westminster Press, 1974), p. 16.
2. Idem, p. 23
3. Romano Guardini, Pascal for Our Time (New York:
Herder and Herder, 1966), p. 24.
4. Idem, pp. 28-44.
5. Provavelmente, cerca de 80% de sua obra, Pensées, foi
reunida nestes últimos anos. Veja Philippe Sellier, Les Pensées
de Pascal (Paris: Mercure de France, 1976), p.7.
6. Hugh M. Davidson, The Origins of Certainty, Means and
Meanings in Pascal’s Pensées (Chicago: University of Chicago
Press, 1979), pp. 1-35.
7. Citado por Hazelton, p. 117.
8. Anthony R. Pugh, The Composition of Pascal’s Apologia
(Toronto: University of Toronto Press, 1984).
9. Isso foi usado por John Warrington em sua tradução
para a língua inglesa, Blaise Pascal, Pensées, Everyman’s Library
(London: J. M. Dent & Sons Ltd., 1967).
10. A edição de Brunschvicg é anotada pela edição da
Penguin Classics, trans. A. J. Krailsheimer, Blaise Pascal: Pen-
sées (Harmondsworth, Middlesex, England).
11. Veja Guardini, pp. 173-225.
12. É provável que, de todos os escritores cristãos, Agos-
tinho foi o que mais influenciou Pascal. Veja P. Sellier, Pascal et
saint Augustine (Paris: A. Colin, 1970).

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Cronologia

Da vida e da
época de Pascal
(1623–1662)

Vida e Obra Eventos Históricos


Morte do Papa Gregório
Nascido em Clermont-
1623 XV. Aliança entre
Ferrand, em 19 de junho.
França, Savóia e Veneza.
1627 Morte de sua mãe.
Mudança da família para
Obras de Corneille,
Paris, seu pai, Étienne, foi
1631 Mairet, Balzac sendo
nomeado para um posto
exibidas em Paris.
governamental.
Formação da academia
Blaise começa a mostrar
científica por P.
1635 sua precocidade na
Mersenne, uma das
ciência.
primeiras na Europa.
A família de Pascal muda-
se para a Normandia.
Étienne é nomeado Reforma monetária na
1640
Coletor de Impostos. França.
Primeira publicação de
Pascal, “Essay on Cones”.

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30 MENTE EM CHAMAS

Vida e Obra Eventos Históricos


A primeira tentativa de Fim da Guerra Civil
Pascal em construir uma Inglesa. Morte do cardeal
1642
máquina de calcular (até e estadista da França,
1652) Richelieu.

A família de Pascal
1646 compromete-se com a fé
cristã.

Retorno de Pascal a Paris


1647
por razões de saúde.

Blaise e sua irmã, O Tratado de Westphalia


Jacqueline, começam põe fim à Guerra dos
1648
a relacionar-se com a Trinta Anos. Revolta de
comunidade de Port-Royal. Paris contra Luis XIV.

A família busca refúgio


1649
em Clermont-Ferrand.
Conflito entre o
Morte de seu pai, em 24 Parlamento Francês e
1651
de setembro. o monarca. Levante de
Turenne.
Jacqueline entra para
a comunidade de Port-
1652 Royal, em 4 de janeiro. Luis XIV retoma Paris.
Blaise começa a fazer
anotações em Pensées.

Blaise experimenta sua


Reconciliação entre
1654 conversão a Cristo, em 23
Mazarin e Cromwell.
de novembro.

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CRONOLOGIA 31

Vida e Obra Eventos Históricos

A primeira estada de
Pascal em Port-Royal. Ele
1655
leva o duque de Roannez
a Cristo.

Ele escreve a primeira


Carta Provincial, em 23
de janeiro. As demais
17 cartas continuam
sendo escritas até 24 Divisão da Polônia entre
1656
de março de 1657. Ele Suécia e Brandenburgo.
organiza Pensées. Sua
sobrinha Marguerite é
miraculosamente curada,
em 24 de março.

Pascal compõe Elements


of Geometry para os
estudantes de Port-Royal
e, no ano seguinte,
1657 começa a corresponder- Aliança franco-britânica.
se com proeminentes
matemáticos europeus,
como Carcavi, Hugheus e
Latouère.

Pascal realiza uma


conferência para explicar
Criação da Academia de
1658 sua obra, Pensées ou
Ciências em Paris.
Apology of the Christian
Religion.

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32 MENTE EM CHAMAS

Vida e Obra Eventos Históricos


Pascal adoece gravemente Casamento de Luís XIV
até junho de 1660. com Marie-Therese e
1659 Provavelmente compôs sua a Restauração Inglesa.
oração durante esse período Bispos católicos
(veja Oração de Pascal). censuram os jansenistas.
Ato de Uniformidade
Morte de Pascal, em 19
1662 Inglês contra os
de agosto.
Puritanos.
1668 Perseguição a Port-Royal.

Edições de PENSÉES

1669-70: Comitê constituído por familiares e amigos edita e su-


prime alguns dos Pensées e o denomina “edição de Port-Royal”.

1776: Nova edição de Condorcet para incluir toda a obra Pen-


sées e reorganizá-la de forma mais lógica.

1842: Descoberta de dois textos na biblioteca da Sorbonne 73


conduz à edição do texto de Faugere. Muitas outras edições se-
guiram-se em 1873, 1879, 1896-1897.

1897: Leon Brunschvicg beneficia-se de todas as edições an-


teriores e lança sua edição padronizada, dividindo Pensées em
catorze subdivisões.

1952: Louis Lafuma acrescenta mais notas de Pascal à sua edi-


ção de Pensées, publicada na língua inglesa, em 1960.

1980: Pesquisa de Anthony R. Pugh, para revisar The Composi-


tion of Pascal’s Apologia, University of Toronto Press, 1984.

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Introdução

Um ser humano inflamado


com a glória de Deus

Como típicas pessoas modernas, a maioria de nós tende


a cumprir a maldição do “homem atualizado”, termo adequado
criado por Daniel Boorstin para definir a ilusão de que quanto
mais perto estamos da informação total, tanto mais perto esta-
remos da sabedoria. Uma de suas mais insensatas conseqüências
é que parecemos conhecer tudo sobre as últimas 24 horas, po-
rém próximos de não saber nada sobre os últimos 24 anos, sem
mencionar os últimos 24 séculos.
Esta miopia é parcela de nossa cultura do “último ho-
mem”, pois como Nietzsche previu em Assim Falou Zaratus-
tra, a maioria das pessoas é incapaz de responder à “morte de
Deus”, tornando-se heróicos sobreviventes ou “super-homens”.
Ao perder o contato com o transcendente, as pessoas perdem,
com o passar do tempo, a capacidade de desprezar a si mesmas
e terminam por confundir não apenas Céu com felicidade, mas
felicidade com saúde.
A descrição de Nietzsche é quase uma paródia da tirania
do bem-estar físico, típica da era na qual vivemos. A saúde tem
substituído tanto o Céu quanto a ética. O atletismo é a nova
forma de asceticismo. O pensamento positivo é considerado su-

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34 MENTE EM CHAMAS

perior à reflexão ou à meditação. A experiência humana, com


as suas complexidade ricas, trágicas e irônicas, é reduzida ao
fascínio do bem-estar físico. O auto-conhecimento e o auto-do-
mínio nos são prometidos através dos regimes e dos exercícios.
Nietzsche comentou: “Pode-se ter um pequeno prazer durante
o dia e outro durante a noite, mas é necessário cuidar da saúde.
‘Nós inventamos a felicidade’, dizem os últimos homens, e pis-
cam”.
Em suma, uma das enfermidades de nossos tempos é que
possuímos corpos sarados, porém mentes flácidas e almas vazias.
Assim como um sonolento dorminhoco que se joga na cama
após a refeição e reluta em levantar o corpanzil para atender
ao telefone, nos descobrimos indispostos a prestar atenção ao
desafio de nos elevarmos acima de nossa época.
Para os que desejam elevar-se acima de seu tempo ou per-
manecer além de suas culturas, há três maneiras seguras. Em
ordem ascendente, elas são viagem, história e conhecimento
direto de Deus – e há poucas vidas e testemunhos de maior au-
xílio nos dois mais importantes deles que os de Blaise Pascal.
Como Nietzsche, Pascal viveu uma vida de solitária au-
dácia intelectual, falecendo jovem e suportando constante dor
física. Como Nietzsche, Pascal tornou-se consciente da náusea
do “abismo”, o qual chamou de “infinito” e chamou sua mais
profunda conseqüência de “vaidade”, ao invés de “insignificân-
cia”.
No entanto, as similaridades terminam aqui. Nietzsche se
autoproclamou anticristo e escalou a alta montanha, para pro-
pagar o Super-Homem e “ver o abismo, porém com orgulho”.
Ao contrário, Pascal utilizou o pseudônimo “Louis de Montal-
te” (Luís da Montanha), porém foi mais consciente com res-
peito à “alta montanha”, vendo-a como o lugar onde Satanás
tentou a Jesus e vendo a si mesmo, no coração e na pena, como
campeão em Cristo e um “amigo da verdade”. Para Nietzsche,
foi a profundidade da morte de Deus e nada ser que reduziram

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INTRODUÇÃO 35

o homem sem Deus à insignificância. No entanto, para Pascal,


foi a profundidade do viver de Deus e tudo ser que reduziram o
homem sem Deus à vaidade.
Pascal, então, é, depois de Agostinho, o maior herói san-
to, cuja vida é uma inspiração e desafio, antídoto tanto eficaz
quanto drástico para o discipulado em nossos dias.
Mas, qual é o segredo da inspiração de Pascal? Para mim,
pelo menos, esse segredo não se encontrava nos superlativos
que o precediam. É a mais pura verdade que, como um gênio
matemático, inventor e pai do computador moderno, ele pode
ser considerado um dos grandes pensadores humanos de todos
os tempos. Igualmente é verdade que como contemporâneo e
confidente de alguns líderes do Iluminismo, tais como Descar-
tes e a Rainha Cristina, da Suécia, Pascal foi um verdadeiro
pensador Renascentista, bem versado em matemática, física,
filosofia e teologia. Como também é verdadeiro que ele foi um
dos maiores prosadores franceses, que escreveu o que outros es-
critores franceses, como Voltaire, consideraram a maior obra-
prima da prosa francesa.
No entanto, para a maioria de nós, todas essas reali-
zações podem ser elogiáveis, mas não têm muita serventia.
Elas estão tão distantes de nós, que qualquer pensamento de
imitá-las conduz a um momento de arrogância e uma vida
de desespero. Felizmente, a real inspiração de Pascal repousa
em outro lugar. De muitas formas, as suas realizações não
foram obtidas com facilidade. Elas eram contra a tendência
tanto de seu caráter quanto de sua época. Mas o que acendeu
e inflamou o profundo potencial de seu caráter e dons foi
algo que está acessível a todos nós – ele conheceu a Deus de
maneira tão profunda, que se tornou um homem consumido
pela chama divina.
Em resumo, o testemunho de Pascal através dos tempos
é de uma vida breve, mas consumida por intensa chama capaz
de aquecer nossos corações, reacender nossa fé e lançar milha-

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36 MENTE EM CHAMAS

res de fagulhas da verdade sobre o pensamento obscurecido de


nossos dias.
Permita-me descrever algumas das razões pelas quais con-
sidero a vida e as obras de Blaise Pascal tão instrutivas e por que
creio serem merecedoras de maior atenção nos círculos cristãos
de hoje. Antes, porém, um aviso: Pascal é um herói santo, po-
rém controvertido. Assim como os discípulos que seguiam Jesus
tiveram sua fidelidade transformada em medo quando viram a
determinação de Sua face em direção a Jerusalém, assim – para
melhor ou para pior – há elementos na história de Pascal que
nos atraem para mais perto, porém não tão perto assim. Nós
o admiramos, mas, algumas vezes, à distância e outras vezes, a
nenhuma distância.
O gênio de Pascal possui um lado humano que contrabalan-
ça o sobre-humano. Ele amava futilidades infantis. Como muitos
de nós, ele foi inconscientemente ruim ao escrever cartas e, como
alguns de nós, foi, por um período de tempo, ardoroso fã de dirigir
carruagens em alta velocidade. Ele tinha grande orgulho de ter
desenvolvido o primeiro ônibus de Paris e, por conseqüência, o
primeiro sistema de transporte público da cidade.
Entretanto, todas essas coisas, somadas ao seu grande
amor pelos familiares e sua devoção aos mais desfavorecidos,
são marcos pelo caminho no qual Deus o guiou e algumas das
práticas que ele escolheu ao longo do percurso. Pessoalmente,
não escolheria nem seu cálice de dor, nem sua morte prematu-
ra aos 39 anos. Tampouco a maioria de nós concordará com as
formas e extensões adotadas por sua ascética devoção. Atitudes
como remover todas as tapeçarias de seu quarto e abster-se de
todos os molhos, iguarias da culinária, frutas e tudo o mais que
pudesse excitar o seu apetite é uma coisa. Porém, repreender
sua irmã por cuidar de seus filhos e, literalmente, “desistir” de
seus amigos ou vê-los somente se estivessem em apuros é outra
coisa totalmente diferente. A maioria dos leitores modernos
ressentir-se-á da falta de conhecimento prático do conceito

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INTRODUÇÃO 37

de “mortificação da carne”, mas se a pesquisarmos, nossa ten-


dência teológica seria em direção ao “asceticismo interior”,
que adveio da Reforma, ao invés do asceticismo externo que
a precedeu.
Desta forma, Pascal está tão distante quanto possível das
“celebridades nascidas de novo” de nossos dias, cujo brilho to-
dos nós refletiremos e continuaremos imutáveis. A sua vida e
pensamento apresentam uma realidade palpável teimosa, dolo-
rosa e gloriosamente real. Ambos têm o efeito de nos surpreen-
der e nos levar a questionamentos profundos em nosso íntimo.
Ler Pascal, quase todos os anos, durante trinta anos, tem
sido meu privilégio, e há quatro razões pelas quais continuo vol-
tando a seus textos sem jamais ter um pensamento de enfado.
Primeira, Pascal deve ser admirado e imitado como um pen-
sador cristão para quem a adoração é fundamental. Muito tem sido
realizado por meio de sua piedade profunda e das práticas que
usava. Seu asceticismo foi realizado em segredo, assim como sua
oração, leitura bíblica e caridade. De acordo com familiares,
Pascal literalmente conhecia a Bíblia de cor.
Porém, o que distingue Pascal é o segredo por trás da pie-
dade e das atitudes, como definido em “O Memorial” da “noite
de fogo”, incluído no início de sua coleção. Na noite de segun-
da-feira, 23 de novembro de 1654, aos 31 anos, tendo acabado
de escapar da morte em um acidente de carruagem, ele experi-
mentou um profundo encontro com Deus, que mudou o curso
de sua vida. Iniciando-se por volta das 22h 30min e prolongan-
do-se até 00h 30min, a experiência esgotou os recursos da lín-
gua e Pascal apenas conseguiu defini-la em uma palavra: fogo.
Mas a experiência foi tão preciosa e fundamental para sua vida,
que ele costurou o registro dela no forro de seu casaco e até o
fim de seus dias deu-se ao trabalho de costurá-lo novamente a
cada novo casaco que adquiria.
Algumas vezes, essa experiência é denominada como
a “segunda conversão” de Pascal, considerando-se a pri-

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38 MENTE EM CHAMAS

meira ocorrida em Rouen, em 1646, quando tinha 24 anos.


Porém, claramente, esse foi o momento no qual ele foi in-
vadido pela chama divina que o consumiu nos últimos anos
de sua vida.
Podemos compreender plenamente o que Pascal experi-
mentou? Deveríamos esperar reproduzir a mesma experiência
em nossas próprias vidas? Enfaticamente, não. Mas devemos
nos atrever a esquadrinhar as mentes gélidas de incontáveis
pensadores cristãos de nosso tempo sem anelar por algum temor
perceptível de Deus? Algum conhecimento aproveitável das
dimensões espirituais da luta intelectual? Alguma irreprimível
paixão que traia o ato de uma direta, imediata e inquestionável
experiência com Deus? Em uma época na qual propósitos de
conhecimento são divididos entre técnicos e fanáticos, entre
eunucos e prostitutos do conhecimento, a inconfundível mente
cristã, penetrante, objetiva e crítica, mas comprometida e ado-
radora, é muito rara.
Segunda, Pascal deve ser admirado e imitado pela solitá-
ria coragem de sua obra. Não podemos cair na armadilha de
sermos influenciados por tudo o que ele poderia ter tido ou
sido. Amores, cultura, prazeres e todos os privilégios de uma
vida abastada estavam ao alcance de Pascal, bem como cin-
tilantes contatos e deslumbrantes perspectivas descortinadas
por sua genialidade e reputação – sem mencionar a oferta da
mão de uma jovem dama descrita como sendo “a melhor no
reino em termos de riqueza, nascimento e pessoa”. Desfrutar
de tais dons, amigos e oportunidades na época do “Rei Sol”
da França (Luís XIV) representava uma vista dourada para
a qual poucos teriam dado as costas. Porém, como Francisco
de Assis fizera anteriormente, assim também o fez Pascal, e
com alegria.
Acrescente-se que, quando Pascal abandonou seus estu-
dos matemáticos a fim de dedicar-se à defesa geral da fé e de
Port-Royal, a sua especial comunidade, ele se transformou de

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INTRODUÇÃO 39

admirável em ridículo, de vitorioso em fracassado. A defesa de


Pascal aos jansenistas, em suas Cartas Provinciais, foi deveras
habilidosa e altamente eficaz em influenciar a opinião pública.
Mas após dois exaustivos anos ele perdeu essa batalha. A união
entre o papa, o rei e os jesuítas foi demasiado forte. As cartas
foram proscritas, uma tradução foi queimada em praça pública,
houve uma sentença para sua prisão e até mesmo a sua amada
Port-Royal des Champs foi derrubada, pedra por pedra, seu ce-
mitério violado, sob as ordens de Luís XIV.
Assim como fizeram mais tarde com Isaac Newton quan-
do este abandonou a física e abraçou a teologia, muitos céticos
foram rápidos em propagar o seu deboche. Como Voltaire, que
disse a Condorcet, com escárnio: “Não me canso de dizer que
desde o acidente na Ponte Neuilly, o cérebro de Pascal jamais
foi o mesmo!”
A coragem singular de Pascal pode ser vista, sobretudo,
em sua longa batalha contra a enfermidade e a crescente cer-
teza de sua prematura morte. Desesperadamente doente como
um bebê e debilitado como uma criança, Pascal lutou contra as
enfermidades por toda a sua vida. Como recordou sua irmã Gil-
berte: “Algumas vezes ele nos disse que desde os dezoito anos
não havia vivido um dia sequer sem sentir dor”. A sua alegre
obediência à vontade de Deus irradia por meio de sua “Oração
pedindo a Deus que usasse a doença apropriadamente em sua
vida”, encontrada ao final desta coleção. Porém, a firmeza da
coragem de Pascal e suas tentações são capturadas no seguinte
comentário de Gilberte: “Deus, que lhe concedeu a inteligência
necessária para grandes feitos, não lhe concedeu saúde suficien-
te para complementá-los”.
Para a nossa geração, o conhecimento é a chave para o
poder, e a educação é um passaporte para a riqueza e satisfação
pessoais. O pensamento e a sabedoria cristã são, em geral, como
camaleão, em sua adaptação ao meio que os cercam. A vida de
Pascal coloca-se em meio à nossa peregrinação como um teste-

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40 MENTE EM CHAMAS

munho natural à coragem, vocação e uma elevada possibilidade


para todos nós.
Terceira, Pascal deve ser admirado e imitado pela ousadia e
equilíbrio de seu pensamento. Quando lemos o que Pascal escre-
veu, descobrimos que suas idéias não são profundas e originais
apenas, mas possuem um misterioso poder de gerar idéias adi-
cionais e, até mesmo, mais conexões em nosso íntimo. O efeito
é destruir velhos conceitos e derrubar padrões empoeirados, até
que nossas mentes capturem algo da fértil intensidade de sua
própria mente.
O que deve ter sido viver com tal mente penetrante ou
trabalhar debaixo de tal torrente de pensamentos e insights?
Para mim, duas características de seu pensamento se sobressa-
em. Uma é a originalidade de seus pontos individuais (como
suas brilhantes descrições do “entretenimento” humano e sua
análise pré-sociológica do impacto da sociedade sobre a verda-
de). A outra é a panorâmica abrangência de sua visão sobre a
verdade cristã e, em particular, as ousadas e altamente equili-
bradas afirmações sobre ela.
Em nossos dias, projetos intelectuais são como cabanas,
não catedrais. Em sua estreiteza, eles excedem em segurança o
que lhes falta em grandiosidade. Pascal, em contraste, conhece-
dor de que seus dias já estavam contados, exibe tanto em seus
projetos traçados quanto em pequenos trabalhos uma rara afi-
nidade não apenas com grandes catedrais, como Lincoln, Salis-
bury e Chartres, mas também com seus pares em idéias, como
Agostinho.
Isto não significa que Pascal foi um construtor de sistemas
do nível de um Aristóteles ou Tomás de Aquino. Para ele, os
sistemas de pensamento humano são mais um desvio da verda-
de. O ceticismo era uma de suas ferramentas favoritas, e as ques-
tões reais que ele confrontava não eram abstratas ou teóricas,
mas existenciais e concretas. Forjada a partir de seus próprios
dilemas, sua penetrante visão do coração humano sistemati-

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INTRODUÇÃO 41

camente confronta o problema elementar de toda a existência


humana.
O singular faro de Pascal para o equilíbrio é, igualmente,
raro nos dias de hoje. Sem dúvida alguma, era sua característica,
embora possa em parte ter sido desenvolvida contra o cenário
de falsas alternativas ofertadas em sua época. Ele parecia estar
fadado a sempre estar no meio entre ortodoxos e céticos, entre
católicos e protestantes, entre o rei e seus partidários galicanos
e o papa e seus ultramontanistas, entre os jesuítas e os liberti-
nos, entre Montaigne e Epíteto, entre o convento e a taverna e
entre a capela e o laboratório.
A reação de Pascal em permanecer entre os extremos
opostos não é uma trégua covarde ou simples divisão das di-
ferenças. Explorando tais tensões ao extremo, ele expõe a
própria existência humana em termos de suas mais profundas
tensões, por exemplo, seres humanos, que não são anjos nem
demônios, são apanhados entre o finito e o infinito, entre a
miséria e a grandeza, entre razão e coração, entre razão e au-
toridade.
Para Pascal, esses dualismos não são fundamentais, mas
são a verdade de um mundo decaído, e ele os utiliza de maneira
brilhante, desenvolvendo uma técnica algumas vezes denomi-
nada de “dialética das contradições”. Repetidas vezes, ele der-
ruba argumentos ao exibi-los em termos de pólos opostos que
se cancelam mutuamente quando suas lógicas são pressionadas
até o fim. Então, repentinamente, ele mostra que as contradi-
ções podem ser reconciliadas apenas com a introdução de uma
terceira verdade, que contém as meias-verdades dos opostos fa-
lhos. O Evangelho sozinho, por exemplo, explica tanto a misé-
ria do homem quanto a sua grandeza. Esta terceira verdade – a
verdade cristã – não é uma síntese nascida das falhas da tese e
da antítese. Pelo contrário, ela precede e sustenta as outras po-
sições, cujas deficiências crescem diretamente de sua ignorância
ou rejeição da plena verdade.

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42 MENTE EM CHAMAS

Portanto, dualismo significa que os seres humanos são


“apanhados” em apuros, ao invés de capazes de sua própria sal-
vação. Porém, para Pascal, esta condição, ao contrário das vi-
sões existencialistas de abandono do século XX, não conduz em
direção ao absurdo, mas constitui um golpe além da razão e da
auto-suficiência humana, que leva o olhar do pecador para além
de si mesmo em direção a Deus.
Finalmente, Pascal deve ser admirado e imitado por sua su-
prema dedicação em proclamar a Deus e Sua verdade. Ao conhe-
cer Deus de forma tão intensa, seu profundo desejo é torná-Lo
conhecido, e o resultado é o seu dedicado compromisso com a
apologética, ou a arte da persuasão cristã.
Nos dias atuais, a apologética cristã está em crise. Dis-
tante do cenário evangelístico e missionário, ela se posiciona
entre tendências contrárias de um amplo movimento conser-
vador (“Não convença, proclame!”) e um amplo movimento
liberal (“Não debata, dialogue!”). Neste processo, a apologética
ou tem sido grandemente incompreendida (como uma apologia
abjeta) ou tacanhamente definida (assumindo um papel pura-
mente defensivo), sendo criticamente restrita a certos tipos de
argumentos e certos níveis de desenvolvimento educacional.
Sua preocupação e capacidade de persuadir pessoas reais en-
contram-se praticamente perdidas.
Ninguém que busque recuperar o propósito e o poder da
apologética deve ignorar Pascal. Ele não somente é distinta-
mente original das abordagens intelectuais que passaram pela
apologética de sua época, assim como na nossa, como possui
também uma das mais brilhantes e persuasivas mentes da his-
tória humana. A existência de Deus era por demais importante
para ser relegada apenas a provas não-convincentes, raciocí-
nios convolutos e argumentos dúbios de teólogos e filósofos. Tal
idéia pedia uma nova abordagem a ser determinada pelo caráter
do objetivo (persuasão, ou “abertura de mente”), assim como a
natureza do instrumento (o descrente ou mente fechada).

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INTRODUÇÃO 43

Inúmeras características da apologética adotada por Pas-


cal são dignas de nota, sem mencionar seus argumentos reais
e seu celebrado estilo singular. Em primeiro lugar, o seu senso
de humildade é notável e pertinente em toda a sua argumen-
tação. A apologética, assim como a filosofia, pode ser retro-
agida a disputas “polêmicas” (“competições entre mentes”),
e muitos apologistas exibem uma tendência egoísta, ou seja,
a “constante compulsão à vitória” que C. S. Lewis confessou
possuir.
Pascal, ao contrário, mostrou uma rara humildade a esse
respeito, muito embora sua precocidade o caracterizasse com
uma natural arrogância própria dos jovens, a qual ele reconhe-
cia como seu pecado mais freqüente. Ele sempre se recusou a ter
seu retrato pintado, ou ter um epitáfio em seu túmulo e, para
surpresa de seus amigos, ele mostrou, nas palavras de sua irmã,
“nenhuma paixão por sua reputação!”, ou mesmo obter lucros
com seu brilhantismo matemático. Ao falecer, Pascal segurava
em suas mãos um pedaço de papel que lia com freqüência. O
texto em parte dizia: “É injusto que alguém se apegue a mim,
ainda que seja com prazer e voluntariedade. Eu desapontaria
qualquer um no qual provocasse tal desejo, pois não possuo
nada que o possa satisfazer. Não estou eu prestes a morrer? Por-
tanto, o objeto de apego deles morrerá”.
Porém, essa humildade, que contrastava agudamente com
seu contemporâneo, Descartes, era mais que uma virtude. Ela
moldou sua apologética na prática. Como Søren Kierkegaard,
tempos mais tarde, Pascal sabia muito bem que o negócio prin-
cipal do pecador não era com ele, mas com Deus. Assim, como
apologista, ele deveria ficar fora do caminho o máximo possível,
atuando apenas como um obstetra. Isto explica a deliberada fal-
ta de direção dos dois argumentos. Caso contrário, proclamar a
verdade é facilmente mutável em conquistar com a verdade.
Outra característica marcante da apologética de Pascal é
seu corajoso compromisso com ela como um projeto estratégi-

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44 MENTE EM CHAMAS

co. As pessoas, com freqüência, esquecem que a obra Pensées


(Pensamentos) está incompleta; ela é composta apenas de es-
quemas arquitetônicos para sua Apology for the Christian Reli-
gion, uma defesa grandiosa da fé cristã que, infelizmente, tam-
bém se encontra inacabada. Inicialmente concebidos para “oito
fortes mentes da província de Poitou que não criam em Deus”,
eles foram esquematizados em um amplo esboço e então ano-
tados rapidamente após serem compostos integralmente, como
os livros de Alexander Solzhenitsyn nos campos de trabalhos
forçados, ou seja, na mente.
Portanto, tudo que temos são fragmentos, reunidos em vá-
rios maços, cuja forma final podemos apenas imaginar. Presumi-
velmente, se não tivesse adoecido, Pascal não teria escrito nada
até que todo o trabalho estivesse completo. Portanto, a obra
Pensées que temos é constituída de “fragmentos reflexivos”, re-
gistrados sob a pressão de uma enfermidade debilitante e morte
iminente. Uma vez mais, a ousadia de Pascal é inconfundível:
Sua obra apologética foi planejada e executada pela fé.
Os críticos, algumas vezes, dizem que os argumentos de
Pascal não convencem ninguém nos dias atuais. Eles esquecem
que, nos dias de hoje, muitos milhares são atraídos e conven-
cidos pelos tais “fragmentos reflexivos” de Pascal mais do que
quando Pensées foi inicialmente publicado. Sem dúvida, muito
mais do que jamais foi extraído das provas tradicionais. Porém,
ainda mais importante, eles também esquecem que embora Pas-
cal tenha recebido um apelo quase universal, ele não acreditava
em provas eternas, mas cria em argumentos persuasivos, “abri-
dores de mentes” moldados para um grupo particular de pessoas,
épocas e lugares. Cabe a nós, hoje, redescobrir sua tradição de
“convencer tolos” e aplicá-la novamente a serviço do mesmo
Deus de Abraão, Isaque e Jacó, não “o deus dos filósofos e dos
cultos”, mas o Eu Sou. Em resumo, o Deus de fogo.
Certa feita, quando Winston Churchill estava hospedado
na casa de amigos no sul da França, ele sentou-se, em uma noite

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INTRODUÇÃO 45

fria, e fixou o olhar na lareira. Pedaços de pinho crepitavam e


assobiavam enquanto queimavam. Então, sua voz familiar soou:
“Eu sei por que os pedaços de pinho crepitam. Eu sei o que é ser
consumido”.
Homens e mulheres consomem e são consumidos por
muitas coisas, algumas das quais apenas as diminuem e desva-
lorizam. Na grande pessoa e na grande causa, seja o que for que
as consuma, pode se tornar uma obsessão impressionante e um
destino heróico. Mas com Pascal, assim como com os grandes
santos de Cristo, vemos o derradeiro – um ser humano inflama-
do com a glória de Deus, como se consumido por fogo divino.
É claro que devemos seguir Pascal tanto quanto ele seguiu a
Cristo, mas fazer isso nos levará, cedo ou tarde, a um lugar onde
nossos sapatos deverão ser retirados, porque estaremos pisando
em solo santo.

Os Guinness

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Testemunho

Pascal fala sobre


sua conversão

A memória é necessária para todas as operações da razão (651-369).

O Memorial

Em um pedaço de pergaminho, Pascal registrou a decisiva ex-


periência de 1654, quando se converteu. Após sua morte, tal tes-
temunho foi encontrado costurado no forro de seu casaco. Supõe-se
que o tenha carregado consigo por todo o tempo, desde sua conversão
até o fim de seus dias.

Ano da graça de 1654

Segunda-feira, 23 de novembro, dia de São Clemente,


papa e mártir, e de outros no martirológio.
Vigília de São Crisógono, mártir e outros.
Das dez horas e meia da noite, mais ou menos, até cerca
de meia-noite e meia.

Fogo

“Deus de Abraão, Deus de Isaque, Deus de Jacó” (Êxodo


3.6) não dos filósofos e dos sábios.

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48 MENTE EM CHAMAS

Certeza, alegria sincera, paz.


Deus de Jesus Cristo.
Deus de Jesus Cristo.
“Meu Deus e Vosso Deus” (João 20.17).
“O teu Deus será o meu Deus” (Rute 1.16).
Esquecimento do mundo e de tudo, menos de Deus.
Ele só pode ser encontrado pelos caminhos ensinados nos
Evangelhos.
Grandeza da alma humana.
“Pai justo, embora o mundo não te conheça, eu te conhe-
ço” (João 17.25).
Alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria.
Eu me separei d’Ele.
“Eles me abandonaram, a mim, a fonte de água viva” (Je-
remias 2.13).
“Meu Deus! Meu Deus! Por que me desamparaste?” (cf.
Mateus 27.46).
Que eu não me separe dele por toda a eternidade!
“E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (João 17.3).
Jesus Cristo.
Jesus Cristo.
Eu me separei d’Ele. Evitei-O, reneguei-O, crucifiquei-O.
Que eu jamais seja separado d’Ele.
Ele só pode ser mantido pelos caminhos ensinados no
Evangelho.
Doce e completa renúncia.
Submissão total a Jesus Cristo e ao meu diretor.
Alegria eterna em troca de um dia de provação na terra.
“Não me esqueço da tua palavra” (Salmos 119.16). Amém
(913-29, 61).

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PENSAMENTOS

OBRA REORGANIZADA E SELECIONADA


COMO UMA APOLOGÉTICA CRISTÃ

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Capítulo I

Introdução

1. Antes de examinarmos a evidência da verdade do cris-


tianismo, preciso apontar uma inconsistência daqueles que são
negligentes sobre a verdade, ainda que isso lhes seja vital, pois
intimamente afeta suas vidas. De todos os seus julgamentos
equivocados, este é o que mais ostensivamente mostra sua in-
sensatez e cegueira: a presente vida é momentânea, mas o esta-
do de morte é eterno, uma vez que isso afeta tudo o que fazemos
ou pensamos! Já que nada é mais óbvio que esta observação,
quão absurdo é viver de maneira diferente.
Visto por esse prisma, não faz qualquer sentido as pessoas
passarem pela vida sem considerar o destino final para o qual
irão. Ao invés disso, elas são guiadas por suas inclinações e von-
tades, irrefletida e negligentemente, como se pudessem elimi-
nar a eternidade e desfrutar de alguma felicidade passageira pela
simples repressão de seus pensamentos. Contudo, a morte é real
e nos ameaça a todo instante, enquanto a eternidade também é
real e, de fato, uma ameaça de derradeira destruição e miséria.
Isto cria um cenário de terríveis conseqüências; na rea-
lidade, um cenário de condenação eterna. No entanto, as pes-
soas nem mesmo se incomodam em descobrir se a eternidade é
apenas um conto da carochinha. Ainda que esta realidade es-

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52 MENTE EM CHAMAS

teja diante de seus olhos, elas não fazem o mínimo esforço para
descobrir se os argumentos são válidos ou não. As pessoas não
fazem a menor idéia se deveriam ou não encarar esta questão.
Que forma lastimável de agir (12-195).

Pensamentos

2. Quão difícil é submeter-se à opinião de alguém sem


se preocupar em fazê-lo! É natural agirmos de modo contrário;
eu acho horrível algo que você considera bonito. Isto é pensar
exatamente o oposto do que você deseja que eu pense. Talvez,
então, seja melhor não dizer nada, de modo que o outro possa
pensar mais objetivamente consigo mesmo e à luz de seu próprio
e adequado contexto. Então, pelo menos você não interferiu,
exceto se o seu próprio silêncio possa também ser interpretado,
ou ainda os seus gestos, ou tom de voz, possam igualmente ser
vistos como uma forma de interferência pessoal. Quão difícil
é não perturbar o julgamento de outrem, ou expressar algo de
outra forma, ou quão raro é para a opinião pessoal ser vista de
maneira firme e consistente! (1-105).

3. Falando de maneira geral, somos mais firmemente con-


vencidos por razões que nós mesmos descobrimos do que por
aquelas fornecidas pelos outros (6-10).

4. Sempre que desejamos lograr êxito em convencer al-


guém de que está errado, buscando assim corrigi-lo, também te-
mos que ver as coisas do ponto de vista dele, pois é possível que
ele esteja certo, de sua perspectiva, porém talvez necessite ver as
coisas de um ponto de vista diferente. Talvez esteja na natureza
das coisas que nós, seres humanos, jamais sejamos capazes de
enxergar todos os ângulos possíveis e, assim, não temos comple-
ta visão das coisas. No entanto, isso não deveria nos aborrecer
se percebêssemos que está por trás de toda correção sábia. Ao

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INTRODUÇÃO 53

mesmo tempo, a partir de seu ponto de vista, a percepção dos


sentidos pode ser válida para outra pessoa (5-9).

5. Não podemos perder de vista o fato de que pensamos


de maneira automática, como máquinas, assim como agimos de
modo inteligente. Eis porque provar as coisas racionalmente
não é a única faculdade que possuímos. De fato, quão pouco nós
realmente “provamos”, pois provas convencem apenas a men-
te. Porém, hábitos nos fornecem provas mais efetivas e abran-
gentes, modificando a mente, sem nem mesmo nos conscienti-
zarmos disso. Por exemplo, como podemos “provar” que todos
devemos morrer, ou que haverá um amanhã? Entretanto, o que
poderia ser mais óbvio? Na realidade, é o hábito que nos leva
a esse convencimento e, de fato, isso se aplica aos cristãos, tur-
cos, pagãos, negociantes, soldados ou qualquer outro grupo! Em
tudo isso, temos de agir com a fé que se encontra além do lugar a
que a “simples prova” pode nos levar, muito embora o exercício
da fé seja mais conscientemente realizado pelos cristãos. Assim,
temos que lançar mão da fé quando a mente é convencida da
direção na qual reside a verdade, ou para influenciar a mente
quando a verdade parece nos frustrar. Estaríamos exagerando
se insistíssemos em ter provas para tudo o que fizéssemos, todo
o tempo.
O hábito, portanto, é a expressão mais simples da fé, a
qual é não-forçada, não-planejada e não-racional, embora nos
predisponha a crer, favorecendo assim nossas crenças com as
quais nossas almas concordam, naturalmente. Há algo errado
conosco se temos de ser convencidos todo o tempo. Ao invés
disso, temos que equilibrar convicções específicas com uma ati-
tude habitual de aceitação. Como o salmista expressou: “Incli-
na o meu coração para os teus estatutos” (Salmos 119.36). Em
contraste, a razão delibera com mais vagar enquanto observa
as alternativas. Assim, isso pode também levar ao sono ou ao
vagar absorto quando seus princípios não estão sendo aplicados.

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54 MENTE EM CHAMAS

Porém, o sentimento não age assim. Antes, age com mais es-
pontaneidade e sempre está pronto a entrar em ação. Portanto,
nós devemos confiar em nossos sentimentos, pois ao não agir
assim nossa fé irá vacilar (7-252).

6. A respeito do que estou escrevendo, não deixe nin-


guém pensar que isto é algo novo. Apenas a organização de meu
material é que pode parecer nova. Pois é semelhante a um jogo
de tênis, onde ambos jogamos com a mesma bola, mas nenhum
de nós utiliza esse fato para assegurar vantagem. Portanto, eu
gostaria que fosse dito que estou, simplesmente, utilizando pa-
lavras bem desgastadas em uma nova estrutura, pois quando
pensamentos familiares são reorganizados, eles apenas apresen-
tam uma forma diferente de expressar a mesma verdade. Assim,
também podemos usar nossas próprias palavras (4-22).

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PARTE UM

A MISÉRIA DO HOMEM SEM DEUS

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Capítulo II

A condição natural do homem

7. Tudo o que vemos na terra nos mostra ou a miséria


do homem ou a misericórdia de Deus. Pode-se ver ou a impo-
tência do homem sem Deus ou a força do homem com Deus
(43-562).

8. A condição do homem é de inconsistência, tédio e an-


siedade (61-127).

9. A preocupação do homem com coisas superficiais e sua


insensibilidade quanto a assuntos de real importância revelam
que ele possui uma estranha desordem (20-198).

10. Os que conheceram e falaram com maior eficácia so-


bre a miséria do ser humano são Salomão e Jó. Um é o mais
bem-aventurado dos homens, enquanto que o outro o mais mi-
serável. Um conhece por experiência a vaidade do prazer, e o
outro conhece a realidade do sofrimento (403-174).

11. O livro de Eclesiastes mostra como o homem sem Deus


é completamente ignorante e inescapavelmente miserável, pois
todo aquele cuja vontade está aprisionada a futilidades é infeliz.

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58 MENTE EM CHAMAS

Ele deseja ser feliz e possuir algumas convicções, embora seja


incapaz tanto do conhecimento quanto do desejo de conhecer.
Ele não pode nem mesmo duvidar (75-389).

12. As pessoas desprezam a fé cristã. Elas a odeiam e te-


mem que seja verdadeira. A solução para esse impasse é mos-
trar-lhes, antes de tudo, que ela não é irracional, que é digna
de reverência e respeito. A seguir, mostrar-lhes que a fé cristã é
cativante, fazer com que homens bons desejem que seja verda-
deira, provando-lhes, então, que ela é realmente verdadeira. A
fé cristã é digna de reverência porque compreende perfeitamen-
te a condição humana. Igualmente, é atraente porque promete
a verdadeira bondade (12-187).

13. O homem é vaidoso o suficiente para dar muita aten-


ção a coisas que realmente não interessam. Estas são as opiniões
que devem ser refutadas. As pessoas ainda são vazias mesmo
quando suas opiniões são sólidas, porque não enxergam a ver-
dade diante de si, mas assumem como verdadeiras coisas que na
realidade não o são. O resultado é que suas opiniões são sempre
totalmente equivocadas e superficiais (93-328).

14. O fato de a vaidade terrena ser tão óbvia e, ainda as-


sim, ser tão pouco reconhecida pelas pessoas é certamente in-
crível, muito embora considerem estranho lhes ser dito que é
tolice perseguir a grandeza. Com certeza, isto é mais notável
ainda (16-161).

15. A vaidade é ilustrada na causa e efeito do amor, como


no caso de Cleópatra (46-163).

16. Para se ver a dimensão exata da vaidade humana bas-


ta apenas considerar as causas e efeitos do amor. A causa pode
ser tão trivial que mal se consegue reconhecê-la, porém, ainda

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A C ONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM 59

assim, pode abalar os alicerces de todo um império, de perturbar


príncipes, exércitos e mesmo o mundo inteiro. Este é o caso
do nariz de Cleópatra. Fosse ele de pequenas dimensões, talvez
toda a face do mundo seria diferente (413-162).

17. Que vaidade constitui a pintura! Ela recebe aplausos


apenas por representar coisas, enquanto que os originais nem
mesmo são admirados (40-134).

18. Os homens estão completamente obcecados em bus-


car os seus próprios interesses, mas eles não podem justificar seus
direitos a eles, porque não possuem nada, exceto imaginação
humana e força alguma para assegurar a possessão. O mesmo
ocorre com o conhecimento, que a enfermidade pode remover.
Assim, somos igualmente incapazes de possuir tanto a verdade
quanto o que é bom (23-436).

19. Os que se entregam à perversão dizem aos que vivem


vidas normais que estes é que estão desviados do que é natural,
pois acham que o que seguem seja natural. Os tais são como pes-
soas em um barco que pensam que os que estão no porto é que
na verdade se afastam. Porém, nós precisamos de uma referên-
cia, um ponto fixo, por meio do qual podemos julgar. Portanto,
o ancoradouro é este ponto fixo para os que estão se afastando,
juntamente com o barco. Mas, na moralidade, para onde esta-
mos indo a fim de encontrar um porto? (697-383).

20. Em tempos de tristeza, a ciência física não irá trazer


consolação por minha ignorância da moralidade. Porém, o co-
nhecimento da moralidade sempre me consolará por minha de-
ficiência no conhecimento da ciência física (23-67).

21. A faculdade dominante no homem é a imaginação.


Ela é a origem das falsidades e erros, ainda mais por sua im-

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60 MENTE EM CHAMAS

postura não ser tão evidente. Pois se fosse consistentemen-


te falsa, então, a imaginação seria um critério infalível pelo
qual se determinar o que é verdade. Mas, por ser freqüente-
mente enganosa, ela não fornece sinais consistentes de sua
natureza, nos confundindo assim quanto ao que é verdadeiro
e o que é falso.
Eu não estou falando a respeito de tolos, mas de homens
extremamente sábios, pois é entre estes que a imaginação se
reveste do grande poder da convicção. Em vão protesta a razão,
pois não pode avaliar as coisas em seus verdadeiros valores.
Esta faculdade arrogante, inimiga da razão, que adora
dominar a fim de mostrar que pode alcançar todos os lugares,
estabeleceu no homem uma segunda natureza. A imaginação
possui a mente de pessoas felizes e infelizes, sãos e enfermos,
ricos e pobres, tolos e sábios. Ela faz as pessoas acreditarem,
duvidarem ou até mesmo negarem a razão. Ela suspende o con-
trole dos sentidos ao fazê-las sentir. Nada nos frustra mais que
ver como ela traz satisfação a seus clientes com mais completa
integridade do que qualquer razão é capaz de oferecer. Deste
modo, pessoas dotadas de uma vívida imaginação são muito
mais satisfeitas consigo mesmas do que homens prudentes po-
dem razoavelmente ser. Isto as leva a olhar para os outros com
arrogância e a argumentar com ousadia e confiança, enquanto
os demais se comportam com timidez e insegurança; assim, o
olhar seguro dos primeiros, com freqüência, lhes propicia a
vantagem na mente de uma platéia. Esta elevada auto-esti-
ma os faz pensar que são sábios diante das mentes de outros
do mesmo tipo. É claro que a imaginação não pode transfor-
mar tolos em sábios, mas, pelo menos, pode torná-los felizes e
competitivos, com respeito à razão, que apenas pode fazê-los
sentir-se como miseráveis. Uma os cobre de glória, a outra, de
vergonha.
Como as reputações são forjadas? O que é que concede
respeito e veneração a pessoas, livros, leis e aos grandes, senão

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A C ONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM 61

a faculdade da imaginação? Quão inadequadas são as riquezas


deste mundo sem a sua cooperação!
Você realmente acredita que um juiz, cuja venerável
idade exige o respeito da sociedade, é governado unicamente
por uma nobre razão, ou que ele dá um veredicto com base
em seus próprios méritos, desconsiderando aquelas triviali-
dades que afetam somente a imaginação dos de mente débil?
Observe-o enquanto vai religiosamente à igreja ouvir um
sermão, fortalecendo o propósito de sua própria razão com
o ardor de sua caridade. Ali está ele, pronto a ouvir, como
um exemplo para o resto de nós. Entretanto, suponha que o
pregador apareça diante dele com uma voz rouca, uma apa-
rência estranha, barba por fazer e, talvez, sem tomar banho.
Eu duvido que o juiz mantenha seu comportamento solene
apesar das maravilhosas verdades que o pregador esteja pro-
clamando.
Ou imagine que o maior filósofo de todos se encontrasse
em uma prancha de madeira sobre um precipício. Você acha
que apesar de sua razão lhe dizer que ele está em segurança, sua
imaginação não irá ter vantagem sobre ela? Muitos nem mesmo
são capazes de sequer imaginar-se em tal situação sem suar frio.
Portanto, eu não irei prosseguir enumerando todos os efeitos da
imaginação. Todos sabem que a simples visão de um gato preto
atravessando o caminho ou quebrar um espelho pode ser sufi-
ciente para perturbar a razão das pessoas. Mesmo o tom de voz
pode afetar os mais sábios ou alterar a ordem das palavras pode
resultar em um poderoso poema. Amor e ódio alteram o curso
da justiça. Você não acha que um advogado que recebeu um
polpudo adiantamento não considerará a causa de seu cliente
extremamente justa? Veja como sua ousada abordagem do caso
parecerá muito mais convincente aos juízes, que são influencia-
dos por meras aparências! Quão absurdo é ver o quanto a razão
pode ser jogada de um lado para outro por qualquer vento que
sopre.

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62 MENTE EM CHAMAS

Há raríssimas ações dos homens que não sejam motiva-


das, em algum grau, pelo estímulo da imaginação. A razão é
obrigada a fornecer uma base, pois o mais sábio dos homens
aceita como seus princípios aqueles que a imaginação teve a
ousadia de introduzir.
De fato, qualquer um que escolhesse ser guiado apenas pela
razão seria claramente tachado de louco. Ao fazer esta escolha,
tal homem seria forçado a trabalhar todo dia por recompensas,
que são admitidamente da imaginação. Quando ele tivesse se
restabelecido, depois de um período de sono após todos os esfor-
ços da razão, teria de saltar da cama a fim de prosseguir em busca
de fantasias e submeter-se às impressões que esta preceptora tem
sobre o mundo. Embora seja uma das maiores fontes de erro, ela
não é a única. Pois ainda que o homem esteja absolutamente
certo em buscar uma aliança entre esses dois poderes, a paz que
advém da imaginação lhe dá uma grande vantagem. Porém, na
guerra isso é muito mais dominante. Enquanto a razão jamais
logrará êxito em superar o poder da imaginação, o contrário é
muito comum.
Nossos juízes estão muito conscientes do poder secreto
da imaginação. Suas togas vermelhas, a pele de arminho com
as quais se vestem, parecendo gatos peludos, as cortes nas quais
sentam, a decoração com flor-de-lis, toda esta impressionante
parafernália é considerada de extrema necessidade. Ou nova-
mente, se os doutores não tivessem suas sotainas e mulas, com
seus jalecos brancos e chapéus largos, eles jamais enganariam
pessoas que não resistem a alguma pompa. Se os juízes exerci-
tassem a verdadeira justiça e os médicos a verdadeira arte de
curar, não haveria necessidade de chapéus de formatura! Ao
invés disso, a majestade de suas ciências seria suficientemente
imposta por si mesma. Porém, uma vez que a ciência deles é pu-
ramente fictícia, eles precisam lançar mão de ornamentos vãos
a fim de incitar a imaginação. É assim que eles ganham respeito:
somente soldados não precisam se disfarçar para o papel que

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A C ONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM 63

exercem, pois se estabelecem pela força, enquanto os demais


precisam de ostentação para tal fim.
Assim também ocorre com nossos reis, que não têm procu-
rado tais disfarces. Eles não precisam se vestir com roupas extra-
ordinárias para que se pareçam com monarcas. Ao invés disso,
eles são escoltados por guardas e arqueiros. As forças armadas
são seus braços e sua força. Os clarins e tambores marcham à sua
frente, enquanto legiões de soldados os acompanham, de modo
que até o mais ousado de nós treme na presença deles. Eles não
possuem apenas roupas, mas detêm um poder nu. Assim, uma
pessoa teria que ter uma mente absolutamente clara para ver o
Sultão da Turquia como um homem qualquer quando ele está
magnificamente trajado, em seu esplêndido palácio e cercado
por um pequeno exército constituído por quatro mil guarda-
costas. Assim, nunca podemos olhar para um juiz em trajes aca-
dêmicos sem formar uma opinião positiva de suas habilidades.
Portanto, a imaginação domina todas as coisas. Ela cria
beleza, justiça e felicidade, que são tudo o que importa no mun-
do. Eu deveria estar feliz em ver aquele livro italiano que co-
nheço apenas de nome e cujo valor equivale a uma biblioteca
inteira: Concerning the Royal Opinion of the World . Eu aprovo o
que nele está escrito sem ter a necessidade de lê-lo, exceto por
qualquer coisa ruim que possa conter.
Estes são os efeitos, mais ou menos, dessa enganosa fa-
culdade, que parece ter sido concedida a nós com o intuito de-
liberado de alimentar tais erros necessários. Porém, há muitas
outras fontes de erros.
Impressões passadas não são as únicas capazes de nos le-
var a equívocos. O apelo da novidade possui o mesmo poder.
Assim, temos todos os tipos de disputas entre homens que se
acusam de terem sido levados por falsas impressões da infância
ou de correrem como loucos atrás de impressões novas. Quem
mantém um caminho intermediário? Deixem que venha à fren-
te e nos mostre isso, pois não há princípio natural, embora os

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tenhamos a partir da infância, que não possa ser desconsiderado


como uma falsa impressão, seja ela resultante da educação ou
dos sentidos.
Alguém dirá: “Porque você acreditou desde a infância
que uma caixa estava vazia quando viu que não havia nada
em seu interior e assim creu que o vácuo era possível. Isso
é apenas uma ilusão forjada nos sentidos pelo hábito, que a
ciência deve corrigir”. Outros dirão: “Quando lhe ensinam
na escola que não existe tal coisa como o vácuo, o seu senso
comum, que compreendia tão claramente de antemão que
ele existia, é pervertido”. Desse modo, a sua crença tem de
ser corrigida pelo retorno à impressão original. Por quem en-
tão você tem sido ludibriado, pelos seus sentidos ou pela sua
educação?
Outra fonte de erro é a doença, pois ela distorcerá nossa
capacidade de julgamento e nossos sentidos. Assim, se graves
enfermidades os alteram de forma significativa, eu não tenho
dúvidas de que doenças mais brandas irão agir de forma propor-
cional.
Além do mais, o egoísmo é um maravilhoso instrumen-
to para fechar nossos olhos com respeito à realidade da forma
mais prazerosa possível. O homem mais justo na face da terra
não tem o direito de julgar a sua própria causa. Conheço alguns
que, a fim de evitar falhar devido ao egoísmo, têm preferido o
extremo oposto da injustiça. O meio mais certo de se perder
uma causa perfeitamente sólida é submetê-la a parentes muito
próximos.
Justiça e verdade são dois pontos tão delicados que nos-
sos instrumentos são inadequados demais para serem utilizados
sobre eles. Quando são utilizados, eles obscurecem a questão de
tal modo que terminam focando tanto o falso quanto o verda-
deiro.
O homem é tão influenciável que não possui uma direção
confiável da verdade, mas, ao contrário, existem muitos a guiá-

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A C ONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM 65

lo falsamente. No entanto, a mais intrigante fonte de seus erros


é a luta entre os sentidos e a razão (44-82).

22. O homem nada mais é que um ser tão naturalmen-


te cheio de erros que isso somente pode ser erradicado por
meio da graça. Não há nada a lhe mostrar a verdade, pois
tudo o ludibria. Os assim denominados dois princípios da
verdade – razão e sentidos – não são apenas falsos, mas estão
empenhados em mútuo engano. Através de aparências fal-
sas, os sentidos enganam a razão, e assim como enganam a
alma, elas são, por seu turno, enganadas por esta última. Os
sentidos são influenciados pelas paixões, que produzem falsas
impressões (45-83).

23. A razão, como uma mente suprema no mundo, não


é tão independente que não possa ser penetrada por quaisquer
distrações que estejam acontecendo. É necessário apenas o pri-
meiro ruído ao seu redor para que sua atenção seja distraída.
Não há necessidade de se acender um canhão, pois o simples
ranger do cata-vento ou de uma polia é suficiente.
Não fique surpreso se o raciocínio dele não for muito só-
lido naquele instante, pois mesmo o zunir de uma mosca em
seu ouvido será suficiente para perturbar o seu julgamento. Se
você deseja que ele seja capaz de encontrar a verdade, então
livre-o das distrações que estão ocupando seus pensamentos e
perturbando a poderosa inteligência que governa sobre cidades
e reinos. Que razão absurda e boa é esta! Quão ridículo é ele ser
um herói! (48-85).

24. O que me assombra mais é perceber que ninguém


fica surpreso com sua própria fraqueza, pois as pessoas agem de
maneira similar em suas profissões, sem refletir se é bom, mas
sentem-se confiantes de que tudo está bem. Em contínuo de-
sencanto, elas são levadas a crer, por um absurdo sentimento

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66 MENTE EM CHAMAS

de humildade, que são dignas de acusação, ao invés de enxergar


que isso vem da própria disciplina que perseguem. É bom para
a reputação do cinismo que existam muitas pessoas que não se-
jam céticas, para mostrar que o homem é capaz de ter opiniões
sobre a decência humana, que ele permanece cego à inata e
inevitável debilidade de sua condição. Assim, ele confia e segue
o curso da sabedoria natural. Portanto, nada fortalece mais o
ceticismo que a presença de não-céticos. Mas se todos fossem
cínicos, então o cinismo seria visto como falso (33-374).

25. As pessoas são tão irremediavelmente insanas que não


ser louco seria um sinal de excentricidade (412-414).

26. Nosso desejo de receber a estima dos que nos rodeiam


é tamanho que o orgulho nos dominará mesmo em meio a to-
das as nossas misérias e equívocos. Até mesmo morreríamos
contentes se isso desse motivo para as pessoas falarem de nós.
Pense em toda a vaidade que exercemos no jogo, nas caçadas,
nas visitas sociais e toda a falsa perpetuação do próprio nome
(628-153).

27. A vaidade está tão profundamente enraizada no


coração do homem que um soldado, um criminoso, um co-
zinheiro ou um porteiro vangloriam-se e esperam receber a
admiração dos demais. Mesmo os filósofos desejam admi-
radores. Os que escrevem contra tal vontade intimamente
também desejam desfrutar o prestígio de o terem escrito, de
modo que também eles buscam audiência e, na realidade,
querem dizer: “Eu quero a mesma coisa, porém desta vez dos
meus leitores” (627-150).

28. Contudo, os animais não se admiram mutuamente


como fazem as pessoas. Um cavalo não admira sua companhia.
Isto não significa que não façam competição entre si, em uma

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A C ONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM 67

corrida, mas isso não importa, pois de volta ao estábulo o mais


desajeitado e lento não cederá a sua aveia ao outro por este
motivo, como os homens desejam que façam com eles (685-
401).

29. Entretanto, a raça humana não se satisfaz com a


vida que temos em nós, no íntimo de nosso próprio ser. Ao
invés disso, queremos levar uma vida imaginária aos olhos
dos outros e, assim, constantemente tentamos causar diferen-
tes impressões. Esforçamo-nos por nos embelezar e melhorar
a nossa imagem, negando assim nosso verdadeiro eu. Assim,
se formos pacíficos, generosos e leais, ficamos ansiosos para
que tais comportamentos sejam reconhecidos, de modo que
possamos associar tais virtudes à nossa existência imaginária.
De fato, preferimos destacá-las de nosso eu real, projetando-
as sobre os outros. De bom grado seríamos covardes se tal
comportamento fosse a condição para angariar a reputação
de bravura! Tão óbvia é a evidência de nosso próprio vazio
que não nos sentimos satisfeitos com um sem o outro e, com
freqüência, trocamos o verdadeiro eu pelo falso! Pois todo
aquele que não morreria para salvar sua honra seria visto
como um patife (806-147).

30. A fama é tão doce que amamos qualquer coisa a ela


associada, até mesmo a morte (37-158).

31. Se nós exibimos nossos sapatos, exclamamos: “Veja


que sapato bem feito! O sapateiro que o fez deve ser muito
habilidoso!”. E assim, prosseguimos indicando de onde pro-
cedem nossas inclinações e mesmo a escolha de nossas car-
reiras. “Como aquele homem bebe! Como aquele outro bebe
tão pouco!” É desta forma que os homens são tachados de
moderados ou beberrões inveterados, de soldados ou covar-
des (35-117).

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32. A coisa mais importante em nossas vidas é a escolha


de nossa profissão, muito embora seja o acaso que a decida
na maioria das vezes. Pois é o costume que forma pedreiros,
soldados ou carpinteiros. “Ele é um excelente construtor de
telhados”, dizem as pessoas. De soldados, comentam: “Eles
são muito insanos”. Porém, outros irão contradizer isso e afir-
mar: “Nada é mais grandioso que a guerra e tudo o mais é sem
valor se comparado a ela”. Assim, é de ouvir os comentários
de outros sobre as diferentes profissões desde a nossa infân-
cia que fazemos nossas escolhas. Naturalmente, nós amamos
a virtude e detestamos a insensatez, de modo que as próprias
palavras decidirão o que pensamos como certo ou errado ao
aplicá-las em nós. Portanto, tal é o poder do hábito que, onde
deveríamos ser criados naturalmente apenas para ser homens,
ao contrário, criamos todo tipo de condição e status. Isso ex-
plica o fato de algumas regiões estarem repletas de pedreiros,
enquanto outras, de soldados. Os hábitos dos homens criam
esta variedade e forçam a natureza a sair de sua uniformidade.
Porém, algumas vezes, a natureza resiste, prevalecendo os ins-
tintos dos homens apesar de todos os hábitos, quer sejam bons
ou maus (634-97).

33. A condição do homem é de inconstância, tédio e an-


siedade (24-127).

34. Não é da natureza do homem ter uma direção pré-


determinada. Antes, ela apresenta altos e baixos. Assim, a
febre nos fará tanto tremer quanto suar. A sensação de frio é
uma evidência da gravidade da febre tanto quanto a própria
temperatura. O mesmo acontece com as invenções humanas
de uma geração a outra, em que pese todo o bem e mal que
há, em geral, no mundo. Como Horácio afirmou: “a mudan-
ça, habitualmente, agrada aos príncipes” (Odes, 3.29) (27-
354).

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A C ONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM 69

35. Reis e príncipes nem sempre estão sentados em seus


tronos; algumas vezes eles jogam e se sentem entediados com
isso também. A grandeza precisa ser deixada de lado a fim de
ser apreciada. Pois a continuidade em qualquer coisa torna-se
tediosa. Assim, é prazeroso estar com frio de modo que se possa
desfrutar de estar sendo aquecido. A natureza age progressiva-
mente, movendo-se de um lado ao outro, para lá e para cá, indo
e vindo. A vida oscila. As marés dos oceanos vêm em ondas,
enquanto o sol segue em sua elipse (771-355).

36. Qualquer um que não enxergue a vaidade do mundo


é igualmente vazio. Quem, então, não vê isso exceto os jovens,
cujas vidas são repletas de barulho, diversões e sonhos sobre o
futuro? Tire a diversão deles e você os descobrirá entediados
ao extremo. Então, eles sentem todo o vazio interior sem reco-
nhecê-lo racionalmente. Pois nada pode ser mais miserável do
que se sentir intoleravelmente deprimido quando se é forçado à
introspecção por não haver meios de distração (36-164).

37. Os homens gastam seu tempo perseguindo uma bola


ou uma lebre. Os tais são os verdadeiros esportes dos reis (39-
141).

38. Uma coisa frívola nos consolará porque uma outra


coisa frívola nos aborrece (43-136).

39. Nunca vivemos no presente, pois relembramos o pas-


sado e olhamos para o futuro. Se acharmos que este demora a
chegar, procuramos apressá-lo; ou recordamos o passado para
diminuir o tempo futuro se estiver muito rápido. Somos tão in-
sensatos que vagamos por tempos que não são os nossos e ja-
mais dedicamos um pensamento sequer a uma coisa que nos
pertence. Somos tão frívolos que pensamos nas coisas que nada
são e, irrefletidamente, negligenciamos a única coisa que existe.

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70 MENTE EM CHAMAS

Agimos assim porque o presente, em geral, é doloroso. Nós o


reprimimos porque nos machuca. E se nós o consideramos pra-
zeroso, nos entristecemos ao ver que isso logo acaba. Tentamos
suportar o presente pensando no futuro, em como iremos pla-
nejar coisas em um contexto sobre o qual não detemos controle
algum, pois nem mesmo temos certeza de que o viveremos.
Assim, se examinarmos nossos pensamentos, descobrire-
mos que a tendência de nossa mente é estar totalmente ocupa-
da com o passado, ou com o futuro. Raramente pensamos no
tempo presente e, quando o fazemos, é apenas para ver que luz
ele pode lançar sobre nossos planos para o futuro. Porém, o mo-
mento presente jamais é nosso objetivo principal. O passado e
o presente são nossos meios, ao passo que somente o futuro é
nosso alvo. Com este modo de pensar não somos capazes de vi-
ver realmente, e só nos resta viver em esperança. Uma vez que
sempre estamos planejando como iremos ser felizes, é inevitável
que jamais o seremos (47-172).

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Capítulo III

A condição infeliz do homem

40. A causa de nossa inconstância é a percepção de que os


prazeres de nosso presente são falsos, muito embora falhemos em
perceber que os prazeres ausentes também são vãos (73-110).

41. Somos criaturas tão miseráveis que só podemos desfrutar


de sensações ao ver as coisas darem errado. Isto é possível e acon-
tece com milhares de coisas. Qualquer um que descubra o segredo
da verdadeira alegria quando tudo vai bem e não se frustra quando
tudo vai mal compreenderá a questão. Ao invés disso, a vida do
homem é uma constante caminhada na obscuridade (56-181).

42. Se a nossa condição fosse de verdadeira felicidade,


não precisaríamos nos distrair pensando nela (70-165).

43. A bajulação corrompe tudo desde a mais tenra ida-


de. “Muito bem! Grande trabalho! Como ele é talentoso!” As
crianças de nossa comunidade que não são instigadas pela inve-
ja e pela glória tornam-se indiferentes (63-151).

44. Portanto, o homem deve conhecer a si mesmo; mes-


mo se isso não o ajudar a encontrar a verdade, pelo menos o

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72 MENTE EM CHAMAS

auxiliará a viver a sua própria vida. Nada é mais importante que


isso (72-66).

45. Jó e Salomão nos dizem que a sociedade não encontra


outro meio de satisfazer a sua cobiça a não ser prejudicando o
próximo (74-454).

46. É falso assumir que somos dignos de receber amor dos


outros. Não é racional desejar isso, pois se tivéssemos nascido
racionais e imparciais, conhecendo a nós mesmos e aos outros,
não teríamos essa inclinação em nossas próprias vontades. Mas
nascemos com isso e, assim, nascemos pervertidos. Tudo tende
a si mesmo e isto é contrário à ordem (421a-477).

47. Todo homem vive para si mesmo, e com sua morte


tudo está morto para ele. Eis por que cada um de nós tende a
pensar que é tudo para todos. Não devemos julgar a natureza
apenas com base em nossa própria perspectiva, mas a partir de
seus próprios padrões (668-457).

48. A característica da natureza humana é se auto-adorar


e considerar somente o próprio eu. E o que pode ser feito? Não
se pode ajudar o amor-próprio sendo inconsistente e miserá-
vel. Desejar ser grande e ver que é pequeno. Desejar ser feliz e
descobrir a própria miséria. Desejar ser perfeito e perceber que
é cheio de imperfeições. Desejar ser objeto do amor e da esti-
ma de outras pessoas, mas compreender que suas falhas apenas
merecem o desagrado e o desprezo delas. Ao descobrir-se em
tal condição, o homem reage da maneira mais passional, cri-
minosa e injusta imaginável. Essa compreensão gera um ódio
mortal contra a verdade, pois esta o recrimina e o convence de
suas falhas. Ao desejar eliminar a verdade, mas não ser capaz
de destruí-la, a característica da natureza humana é reprimir a
verdade tanto quanto possível na própria consciência e na dos

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A CONDIÇÃO INFELIZ DO HOMEM 73

outros. Assim, ela toma todas as precauções para encobrir suas


próprias falhas de si mesmo e dos outros, e não suporta ver as
falhas exibidas ou mesmo apenas notadas.
Sem dúvida alguma, é um mal ser tão cheio de falhas,
porém é um mal ainda maior ser cheio delas e, mesmo assim,
ignorá-las, já que tal atitude resulta no mal adicional da auto-
ilusão. Não queremos que os outros nos enganem, porém, ao
mesmo tempo, não achamos correto que eles pensem bem de
si mesmos mais do que o merecido. Por similaridade, também
não é correto que os enganemos ou que desejemos receber deles
maior apreciação que merecemos.
Assim, quando eles simplesmente mostram que são fa-
lhos e possuem maus hábitos com os quais compartilhamos, é
óbvio que não nos causam dano algum, uma vez que não são
responsáveis por eles. Na verdade, eles nos fazem bem ao se
exporem, capacitando-nos assim a escapar deles por termos esta
compreensão. Portanto, não deveríamos ficar irritados pelo fato
dos outros conhecerem nossas falhas e nos desprezarem por isso,
porque é correto que eles nos conheçam como realmente somos
e nos desprezem se realmente formos desprezíveis.
Tais sentimentos emanam de um coração cheio de retidão
e justiça. Então, o que poderíamos dizer de nós mesmos, vendo
que isso é disposto de maneira um tanto diferente? Pois não
é fato que tendemos a detestar a verdade e os que a revelam,
e que, ao invés disso, preferimos ser enganados para o nosso
benefício, e queremos ser apreciados pelos outros, mas não pelo
que realmente somos? Aqui está a evidência que me atemoriza.
A Igreja Católica não nos obriga a revelar nossos pecados indis-
criminadamente a todos. Ela nos permite mantê-los escondidos
de todos os demais, com uma exceção, a quem ela nos ordena
revelar o mais profundo de nosso coração e mostrar quem real-
mente somos. Ele é o único homem no mundo a quem ela nos
ordena desiludir. A igreja coloca sobre ele a responsabilidade de
manter sigilo absoluto, o que significa, na prática, que ele não

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74 MENTE EM CHAMAS

possui o conhecimento sobre nós que realmente tem. É possível


imaginar-se algo mais brando e suave? A corrupção do homem
é tamanha que até mesmo essa lei o desagrada. E esta é uma das
razões principais porque grande parte da Europa tenha se revol-
tado contra a Igreja.
Quão irracional e injusto é o coração do homem que o
faz ressentir-se até mesmo da obrigação de comportar-se de uma
maneira reta diante apenas de um homem e não diante de to-
dos! Pois podemos realmente acreditar que seja correto ludi-
briar os outros?
Essa aversão pela verdade ocorre em diferentes níveis, po-
rém ela existe em todos nós até um certo ponto, porque cami-
nha lado a lado com o amor-próprio. É esta falsa sensibilidade
que faz com que os que têm de corrigir outros escolham formas
e qualificações variadas, a fim de evitar ofender. Eles são obri-
gados a minimizar as nossas faltas, fingir perdoá-las e misturar
isso com louvor e sinais de afeição e estima. Mesmo assim, tal
atenuante ainda parece amarga para o amor-próprio, que irá
aproveitar o mínimo possível e sempre com repugnância. Com
freqüência, isso gera um ressentimento secreto contra aqueles
que administram a correção.
O resultado é que qualquer um que deseje conquistar
nossa afeição tentará evitar retribuir este serviço, que ele sabe
não ser bem-vindo. Temos a tendência de tratar os outros
como queremos ser tratados, pois odiamos a verdade e ela é
mantida longe de nós. Ao invés disso, desejamos ser adulados
e, assim, somos adulados, apreciamos ser enganados e somos
enganados.
Eis porque quanto mais promoção buscamos, a fim de gal-
gar os degraus da fortuna, mais nos afastamos da verdade, porque
as pessoas se tornam cada vez mais preocupadas em não ofender
aqueles cuja amizade é considerada mais útil e vêem a inimizade
como algo perigoso. Assim, um príncipe poderia ser motivo de
ridículo e ser o único a não se dar conta disso. Isso não deve ser

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A CONDIÇÃO INFELIZ DO HOMEM 75

motivo de surpresa, pois dizer a verdade é útil para os ouvintes,


mas prejudicial para os que a expressam, porque atrairão para si
tal ódio. Desta forma, os que gozam do relacionamento de prín-
cipes preferem seus próprios interesses em detrimento dos inte-
resses do príncipe a quem servem. Os tais não possuem qualquer
desejo de beneficiá-lo em prejuízo próprio.
Sem dúvida, esse quadro trágico é mais grave e comum
entre os que são mais bem-sucedidos na vida, porém as pesso-
as humildes também não estão a salvo, porque todos nós temos
interesse em sermos aceitos. Assim, a vida humana nada mais é
que uma perpétua ilusão. Não há nada exceto decepção mútua e
bajulação. Ninguém fala a nosso respeito, quando estamos pre-
sentes, da mesma forma que quando estamos ausentes. As rela-
ções humanas são baseadas apenas nesta mútua decepção. Poucas
amizades sobreviveriam se todos soubessem o que seu amigo diz
sobre ele pelas costas, ainda que fosse sincero e objetivo.
Portanto, o homem nada mais é que disfarce, falsidade e
hipocrisia, tanto com respeito aos outros quanto a si mesmo. Ele
não quer ouvir a verdade e evita dizê-la aos outros. Todas essas
tendências, muito distantes da justiça e da razão, possuem raízes
no próprio coração (978-100).

49. “O eu é desprezível. Você pode escondê-lo, Mitton


[Daniel Mitton, jogador mundano e amigo de Blaise Pascal],
porém isso não significa que está livre dele. Você continua sen-
do desprezível”.
“Isso não é assim, porque sendo amáveis com todos como
somos, não lhes damos motivo de ofensa”.
“Sim, isso é verdade, se a única coisa desprezível sobre o
eu fosse o desconforto que ele nos causa. Mas, se eu o odiasse
porque está errado, então isso o torna o centro de tudo, e deve-
mos continuar odiando-o”.
“Em uma palavra, o eu possui duas características: É injus-
to em si mesmo ao se fazer o centro de tudo e é um estorvo aos

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76 MENTE EM CHAMAS

outros por tentar dominá-los, pois cada eu é o inimigo de todos


os outros e seu desejo é tiranizá-los. Você consegue remover o
incômodo, mas não a injustiça”.
“Assim, você não o torna atrativo aos que o odeiam por
ser injusto, apenas o torna agradável a pessoas injustas que não
o vêem mais como inimigo. Portanto, você continua sendo in-
justo e só consegue agradar a pessoas igualmente injustas” (597-
455).

50. Mitton sabe muito bem que a natureza humana é cor-


rupta e que os homens opõem-se à integridade, mas não com-
preende por que os homens não conseguem transcender isso
(642-448).

51. Mesmo a criança mais pobre dirá: “Este é o meu ca-


chorro, este é o meu lugar ao sol”. Esta é a origem e o símbolo de
como o homem é capaz de usurpar todas as coisas (64-295).

52. Portanto, a tirania consiste no desejo de dominar tudo


e todos desconsiderando a lei e a ordem. Nos vários atributos
da humanidade, tais como força, beleza, sensibilidade e pieda-
de, cada qual é senhor de sua própria seara e nada mais. Por
vezes eles entram em conflito mútuo e o mais forte ou o mais
belo tentará exercer domínio sobre o outro, mas isso é absurdo,
porque suas habilidades são distintas. Desse modo, esses atri-
butos não se entendem e recaem no erro de querer dominar
tudo. Nenhum deles é capaz disso, nem mesmo a força. O poder
bruto não tem efeito sobre o mundo da erudição e apenas pode
governar ações externas. Assim, essas tendências humanas são
falsas.
A tirania significa desejar obter a qualquer custo o que
só pode ser possuído por outro. Temos de pagar diferentes cré-
ditos para tipos e méritos distintos. Devemos amar o charme
ou temer a força ou acreditar no conhecimento. Tais dívidas

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A CONDIÇÃO INFELIZ DO HOMEM 77

têm de ser pagas. É errado recusá-las, assim como exigir outras


quaisquer. Vemos assim como alguns desses argumentos são fal-
sos e tirânicos: “Eu sou bonito. Por isso você deve me temer. Eu
sou forte e, portanto, você tem que me amar”. Similarmente,
também é falso e tirânico afirmar-se: “Como ele não é forte não
irei respeitá-lo. Eu não o temerei porque ele não é muito inte-
ligente” (58-332).

53. As leis são, com freqüência, irracionais, de modo que


há uma tendência de querer transgredi-las, mas, no processo, o
infrator pode ser o maior prejudicado.
Pois que base ele irá adotar para a economia do mundo
que deseja governar? Serão seus caprichos? Que confusão have-
ria! Será justiça? No entanto, ele nem mesmo sabe o que isso
significa, pois, se soubesse, certamente jamais ordenaria a mais
aceita de todas as máximas humanas: Cada um deve seguir os
costumes de seu próprio país. A verdadeira justiça cativaria to-
das as pessoas do mundo com seu esplendor. Os legisladores não
adotariam como modelos os caprichos e loucuras, seja dos persas
seja dos germânicos, como um substituto para a justiça consis-
tente. Nós deveríamos ver isto estabelecido em todos os países
do mundo, abrangendo todos os períodos da história, muito em-
bora, na prática, vejamos que o que é considerado certo ou er-
rado varia como as condições climáticas. Uma mudança de três
graus na latitude perturba toda a estrutura da jurisprudência, e
a mudança de meridiano determina o que é verdadeiro. As leis
básicas mudam após alguns poucos anos em vigor, de modo que
mesmo a lei possui seus modismos. É um extraordinário tipo de
justiça, cujas fronteiras são determinadas por um rio limítrofe,
onde é verdadeira em uma margem, porém falsa na outra.
Reconhece-se que a justiça não jaz dentro de limites demar-
cados pelos costumes, mas reside em leis naturais comuns a todas
as nações. Se houvesse apenas uma lei universal, então as pessoas
a manteriam obstinadamente; porém o absurdo é que os caprichos

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78 MENTE EM CHAMAS

dos homens são tão infinitamente variados que ela não existe.
Portanto, roubo, incesto, infanticídio, parricídio, em al-
gum momento da história, têm sido considerados como virtu-
des. Assim, pode haver algo mais absurdo que um homem deter
o direito de me matar pelo simples fato de viver em outro lado
do oceano, e de seu príncipe ter decidido brigar comigo, embora
eu jamais tenha tido qualquer relacionamento com ele?
Sem sombra de dúvida, existem leis naturais, porém, uma
vez que nossa depurada razão é corrompida, ela corrompe tudo o
mais. Tudo parece ser relativo em função das convenções (como
Cícero mencionou em De Fin, 5.21). É pela virtude dos decre-
tos do Senado e votos da população que crimes são cometidos
(como Sêneca bem demonstrou, Ep. 95). Assim como costumá-
vamos sofrer com nossos vícios, agora sofremos com nossas leis
(como Tácito observou, Ann., 3.25).
A conseqüência dessa confusão é que alguns dirão que
a essência da justiça é a autoridade dos legisladores, enquanto
outros argumentarão que é a conveniência dos soberanos, ou
outros mais dirão que os costumes atuais é que são confiáveis.
Se todas as coisas são tão racionalizáveis assim, nada possui um
valor intrínseco que permaneça imutável ao longo do tempo.
Os costumes são o todo da eqüidade simplesmente porque são
aceitáveis. Esta é a base mítica da autoridade que exercem. As-
sim, aquele que retrocede ao seu princípio fundamental apenas
o destrói. Nada é mais defeituoso do que as leis que buscam
corrigir defeitos. Todos os que as obedecem porque são justas o
fazem em obediência a uma lei imaginária, não à essência da lei,
que é intrínseca. É uma lei e nada mais. Qualquer um que deseje
examinar a razão dela descobrirá algo trivial e sem fundamentos
sólidos e, exceto se estiver familiarizado com a complexidade da
imaginação humana, ficará surpreso que tal lei tenha adquirido
tanta importância e reverência ao longo de um século.
É arte da subversão e revolução desafiar costumes estabele-
cidos, pesquisando suas origens a fim de mostrar como lhes faltam

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A CONDIÇÃO INFELIZ DO HOMEM 79

legitimidade e autoridade. Deve haver, argumentam, um retorno


às leis básicas e originais do estado, nas quais costumes injustos
sejam banidos. Nada que é avaliado com tais escalas pode ser
justo. Não obstante, as pessoas estão prontas apenas a ouvir tais
argumentos, desconsiderando o jugo assim que o reconhecem e
aproveitando a oportunidade para arruinarem a si mesmas e a
quaisquer outras, cuja curiosidade as incite a olhar os fundamen-
tos desses costumes impostos pela tradição. Isso explica por que o
mais sábio entre os legisladores costumava dizer que os homens,
em geral, são enganados por seus próprios ideais. Scaevola, outro
sábio político (mencionado por Agostinho em A Cidade de Deus),
disse: “O homem busca pela verdade que o libertará; e acredita-se
que é este o expediente pelo qual é enganado!” (Livro 4.27).
A perversão da verdade deve ser camuflada porque é ge-
rada originalmente pela irracionalidade, apesar de fazerem com
que pareça racional. Temos de ser persuadidos de que permane-
ce autêntica e eterna, mas suas origens têm de ser escondidas de
nós se não queremos que seja extinta (60-294).

54. É perigoso dizer às pessoas que as leis são injustas, por-


que elas as obedecem somente pela presunção de que são justas.
Eis a razão por que lhes dizem que as leis devem ser obedecidas
tão-somente porque são leis, assim como devemos prestar obe-
diência aos nossos superiores pelo simples fato de serem nossos
líderes. Eis como a incitação ao motim pode ser evitada, pois se
as pessoas forem levadas a compreender isso, então elas o verão
como a própria definição de justiça (66-326).

55. Quando eu reflito sobre a breve extensão de minha


vida comparada com a eternidade antes e após – “como a lem-
brança de um hóspede que permanece apenas um dia” (Sabe-
doria 5.14) – vejo o diminuto espaço que ocupo engolido pela
imensidão de esferas sobre as quais nada conheço e que nada
conhecem a meu respeito. Isto me faz sentir medo e, ao mesmo

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tempo, surpresa ao me ver aqui ao invés de lá, pois não há ne-


nhuma razão para que isso aconteça. Quem me colocou aqui?
Pelo comando e ação de quem fui colocado neste tempo e lugar?
(68-205).

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Capítulo IV

O vazio do homem

56. A curiosidade é apenas uma forma de vaidade [ou,


como Bernard de Clairvaux afirmou, a curiosidade é o primeiro
degrau do orgulho]. Normalmente, queremos saber a respeito
das coisas somente para sermos capazes de falar a respeito delas.
Caso contrário, deveríamos nos aventurar em uma viagem ma-
rítima sem jamais ter falado nisso, somente pelo prazer de ver
sem ter qualquer perspectiva de sermos capazes de contar aos
outros o que vimos (77-152).

57. Uma definição do homem é a de um ser dependente,


que anseia por independência e possui necessidades (78-126).

58. Quão frustrados nos sentimos quando temos de abrir


mão de ocupações e atividades que apreciamos! Um homem
pode desfrutar da vida doméstica, mas basta-lhe ver uma mu-
lher que o atraia, ou escapar alguns dias na diversão, e você o
encontrará hesitante e miserável ao ter de retornar a sua vida
normal. Isso acontece todos os dias (79-128).

59. Nada é mais intolerável ao homem que estar em abso-


luto estado de descanso, sem exercitar qualquer paixão, estando

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desempregado, não desfrutando de nenhuma diversão e viven-


do sem qualquer esforço. É nesta condição, então, que ele acha
estar enfrentando o vazio, a solidão e sentimentos de inadequa-
ção, tédio, pessimismo, depressão, frustração, ressentimento e
desespero (622-131).

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Capítulo V

O homem vivendo racionalmente

60. Pessoas simples possuem uma boa dose de senso co-


mum. Por exemplo: (1) Elas escolhem divertir-se e preferem a
caçada ao invés de matar. Os que se supõem instruídos podem
desdenhar e rir-se delas, pensando que são tolas, mas por uma
razão que não compreendem, as pessoas estão certas. (2) Elas jul-
gam os demais pela aparência exterior, como família de origem
ou riqueza. Novamente as pessoas triunfam, mostrando quão
irracionais tais distinções são. Mesmo os canibais rir-se-iam de
um rei-criança. (3) Elas se ofendem quando alguém as atinge
ou em serem ávidos por fama. Alguém que receba um golpe sem
se ofender é, com freqüência, oprimido com insultos e forçado
à condição de penúria, embora a ambição seja mais desejável
devido aos outros benefícios que traz. (4) Elas assumem riscos
como ir ao mar ou atravessar uma prancha (101-324).

61. A deferência aos outros pode significar colocar-se de


lado. Tal atitude pode parecer fora de propósito, embora seja
correta, porque é a mesma coisa que dizer: “Eu certamente me
colocaria como inconveniente em seu benefício se realmente
isso fosse necessário e, de fato, eu já estou fazendo isso porque
você não está”. Além disso, mostrar deferência aos demais serve

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84 MENTE EM CHAMAS

para distinguir os que são superiores. Se a deferência aos outros


realmente significasse apenas permanecer à disposição, então
ela deveria ser mostrada a todos e ninguém seria distinguido por
isso. Ao colocar inconveniências é que fazemos as distinções
claras (80-317).

62. A luxúria e o poder estão na origem de todas as nossas


ações, pois a luxúria nos leva a ações voluntárias e o poder a
involuntárias (97-334).

63. Se não estamos preparados para assumir riscos, nós


não temos nada a fazer com a religião. Pois isso, como tudo o
mais, nos parece incerto. Pense no número de riscos que, cons-
tantemente, assumimos quando nos lançamos ao mar ou vamos
à guerra. Tenho certeza de que não faremos nada disso se não as-
sumirmos riscos. De fato, há mais certeza na religião do que em
nossa presunção de que viveremos para ver o dia de amanhã.
Não temos garantia alguma acerca do futuro. Tampouco pode-
mos dizer que este é o elemento de incerteza na religião. Pode
parecer incerto que seja verdadeiro, mas quem ousa afirmar que
certamente é falso? Não obstante, nós trabalhamos em prol do
amanhã e apostamos que estamos nos comportando de maneira
sensata, pois, como a regra da probabilidade mostra, temos de
assumir riscos.
Agostinho percebeu que assumimos riscos no mar e nas
batalhas, mas não viu a regra da probabilidade que atesta que
devemos agir assim. Montaigne viu que, com freqüência, trope-
çamos por ter um pensamento inadequado sem uma razão ade-
quada ao invés de atitudes habituais.
Todos eles viram os efeitos, mas não compreenderam as
causas. São como pessoas que possuem olhos, mas não usam
suas mentes. Os efeitos podem ser vistos por meio dos sentidos,
porém as causas podem ser percebidas apenas por intermédio da
mente. Embora os efeitos também possam ser vistos por meio

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O HOMEM VIVENDO RACIONALMENTE 85

da mente, ela pode ser equiparada àquela que consegue ver as


causas, assim como os sentidos corporais vêem os efeitos (577-
234).

64. Por que será que um homem coxo não nos incomoda
da mesma forma que uma mente coxa? Não é devido ao fato de
um homem coxo reconhecer que estamos andando de forma
ereta, enquanto uma mente coxa compreende que todos nós
coxeamos ao andar? Não fosse por esta distorção nos compade-
ceríamos dele ao invés de ter raiva.
Epíteto consegue ir muito além quando indaga: Por que
não sentimos raiva se alguém nos diz que estamos com dor de
cabeça, mas ficamos enfurecidos se alguém afirma que estamos
raciocinando de maneira tola e ilógica?
Porque podemos ter absoluta certeza de que não estamos
com dor de cabeça e que não somos mancos, mas não podemos
ter a mesma certeza de que estamos fazendo a escolha certa ou
expressando um argumento correto. Uma vez que nossa certeza
repousa apenas no que nossos olhos vêem, quando alguém vê
algo diferente do que vemos, sentimo-nos surpresos e descon-
fortáveis. Isso é reforçado quando mil outras pessoas ridiculari-
zam nossa decisão, pois somos inclinados a preferir nossa pró-
pria visão em detrimento da visão dos outros e isso é uma coisa
tanto ousada quando difícil de se fazer. No entanto, no caso do
homem manco, nossos sentidos não geram tal contradição (98,
99a-80, 536b).

65. [Uma vez que a força tende a ser o fundamento da justi-


ça], é correto seguir o certo, mas é necessário seguir o poderoso: o
certo sem poder é inútil, ao passo que o poder sem o certo é tirâ-
nico. O certo sem o poder é desafiado porque sempre há pessoas
injustas ao derredor. O poder sem justiça é para ser condenado.
Justiça e poder devem, portanto, andar juntos, de modo que pos-
samos assegurar que o que é certo é forte ou o que é forte é justo.

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86 MENTE EM CHAMAS

O certo tende a ser contestado, enquanto o poder é re-


conhecido e não pode ser discutido. Portanto, é impossível dar
poder à justiça porque o poder tende a repudiar a justiça e a de-
clará-la injusta, se autodeclarando justo. Desse modo, ao sermos
incapazes de transformar o certo em poder, temos transformado
o poder em justiça (103-298).

66. Por que somente as regras universais são as leis da ter-


ra, aquelas referentes aos afazeres do dia-a-dia, e a maioria das
decisões sobre outras matérias? É porque o poder está envolvi-
do. Eis porque reis, que recebem poder de outro lugar, não dão
espaço ao voto majoritário de seus ministros. A igualdade de
posses é, indubitavelmente, justa. Porém, uma vez que o poder
não pode ser forçado a obedecer à justiça, a teoria de que o po-
der é correto nos tem sido legada. Pela incapacidade de impor a
justiça, o poder é justificado, de modo que o forte tende a estar
associado com o justo para alcançar a paz, que é vista como o
bem supremo (81-299).

67. A lei da maioria é considerada a melhor por sua


obviedade a todos e possui o poder de fazer-se obedecida,
embora, com freqüência, expresse as opiniões dos menos
competentes.
Se tivéssemos capacidade para tal, o ideal seria colocar o
poder nas mãos da justiça. Porém, como o poder não nos permi-
te manipulá-lo como desejaríamos - porque o poder é uma qua-
lidade palpável, enquanto a justiça é uma qualidade espiritual
que utilizamos conforme nossa vontade – é a justiça que tem
sido colocada nas mãos do poder. Assim, tendemos a descrever
como justo o que somos forçados a obedecer.
Por conseguinte, encontramos a justiça da espada porque
ela confere uma retidão óbvia. Caso contrário, veríamos a vio-
lência de um lado e a justiça do outro (fim da décima segunda
Carta Provincial).

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O HOMEM VIVENDO RACIONALMENTE 87

Portanto, nós enxergamos a injustiça da guerra da Fron-


da, que se fundamenta em sua pretensa justiça contra o poder.
Igualmente na igreja encontramos genuína justiça sem qualquer
violência (85-878).

68. Concluímos, pois, que não temos mais verdadeira jus-


tiça. Pois se a tivéssemos não consideraríamos nossa submissão
aos costumes de nosso país como uma regra de justiça. Incapazes
de descobrir o justo, nós, em contrapartida, temos encontrado
o forte (86-297).

69. A justiça é normalmente assumida. Assim, todas as


nossas leis estabelecidas são consideradas justas sem qualquer
exame logo após sua promulgação (645-312).

70. Então, por que seguimos a maioria? É porque ela está


certa? Não, é porque a maioria é mais poderosa. Por que acei-
tamos leis sobre os costumes e opiniões? Seria porque são mais
sólidas? De forma alguma, mas porque são únicas e não nos dei-
xam base para contestação (711-301).

71. [Portanto, questionar a justiça é cair na lei da for-


ça novamente]. Um dos grandes males é a guerra civil, pois é
mais provável que aconteça onde as pessoas desejem angariar
os méritos, porque todos clamarão por isso. É um mal menor se,
pelo direito de nascimento, a sucessão for entregue a um tolo
[Outro é, portanto, forçado a assumir uma posição secundária,
onde possa ver os pontos fortes e fracos da opinião popular] (94-
313).

72. Desta forma, a causa e o efeito geram um constante


movimento. Temos mostrado que o homem é tolo com respeito
à importância que concede a coisas que realmente não têm im-
portância, e todas essas opiniões têm sido refutadas.

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88 MENTE EM CHAMAS

Prosseguimos demonstrando que todas essas visões são só-


lidas, e como todas essas formas de vaidade possuem substância,
as pessoas não são tão tolas quanto se diz que são. Isso significa
que demolimos a visão e, por conseguinte, lançamos por terra
também a sua visão do mundo. Porém agora chegamos a um
ponto no qual temos de destruir a última proposição e mostrar
que permanece verdadeira a afirmação de que as pessoas são
tolas, ainda que as suas opiniões pareçam ser substanciais. Não
enxergar a verdade como realmente é significa encontrá-la em
lugares onde ela não existe e, assim, as suas opiniões são sempre
débeis e desorientadas (93-328).

73. Deve-se, portanto, ter motivos sólidos e julgar de for-


ma adequada e, apesar disso, parecer falar como uma pessoa co-
mum (91-336).

74. Assim, é verdade dizer-se que todos estão vivendo


em um estado de ilusão. Embora as visões das pessoas sejam
sólidas, elas de fato não o são, porque imaginam encontrar a
verdade onde ela não existe. Certamente, há verdade em suas
opiniões, mas não no alcance que elas imaginam. Por exem-
plo, é verdade que devemos honrar a aristocracia, mas o nas-
cimento nobre não deve ser considerado uma vantagem real
(92-335).

75. Pessoas comuns honram aqueles que nascem em ber-


ços aristocráticos. O pouco inteligente os despreza afirmando
que o nascimento é uma obra do acaso e não de mérito pessoal.
O que é realmente inteligente lhes presta honra, não porque
pensa como pessoas comuns, mas por motivos mais profundos.
Os piedosos, dotados de mais zelo e menos conhecimento, os
desprezam, independentemente da razão que leva pessoas inte-
ligentes a honrá-los, porque os tais julgam os homens pelo direi-
to da piedade. Porém, verdadeiros cristãos também os honram

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O HOMEM VIVENDO RACIONALMENTE 89

porque possuem uma forma de ver diferente e superior. Como


vemos, as opiniões irão variar sobremaneira conforme a visão
de cada um (90-337).

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Capítulo VI

A grandeza da dignidade humana

76. Ainda assim, o homem é dotado de grandeza mesmo


em sua luxúria ou concupiscência. A partir disso ele é capaz de
produzir um sistema notável, de modo a remodelar sua imagem
para a de uma verdadeira caridade (118-402).

77. As causas e efeitos demonstram a grandeza do homem


em sua capacidade de produzir tal excelente ordem de sua pró-
pria luxúria (106-403).

78. Apesar de vermos todas as misérias que nos afligem e


nos agarram pelo pescoço, possuímos um instinto irreprimível
que nos eleva (633-411).

79. Somente seres que tenham sensibilidade podem ser


miseráveis; uma casa em ruínas, não. Somente o homem é mi-
serável. “Eu sou o homem que viu a aflição” - Lamentações 3.1
(437-399).

80. A grandeza do homem é tão óbvia que pode ser deduzi-


da até mesmo de sua miséria. O que é natural nos animais é visto
como miséria no homem. A partir disso, podemos reconhecer

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92 MENTE EM CHAMAS

que sua natureza hoje é semelhante à dos animais, pois o homem


caiu de um estado superior que em tempos muito antigos lhe era
mais apropriado. Quem se sente infeliz por não ser rei, exceto um
rei deposto? As pessoas achavam que Paulus-Emilius era infeliz
por não ser mais cônsul? Pelo contrário, todos o consideravam
um afortunado por ter sido cônsul, porque este não é um cargo
para toda a vida. Porém, Perseu foi considerado um homem infe-
liz pela coroa de rei lhe ter sido tirada, porque é natural a um rei
permanecer no trono até sua morte, mas é estranho que suporte
continuar vivendo sem seu reinado. Quem se considera infeliz
por possuir apenas uma boca? No entanto, quem não se entriste-
ceria por possuir apenas um olho? Ninguém, talvez, tenha imagi-
nado lamentar por não ter três olhos, porém o homem sente-se
inconsolável se perder a sua visão (117-409).

81. Todos estes exemplos da miséria humana provam sua


grandeza. É a miséria de um grande lorde, a desgraça de um rei
destronado (116-398).

82. O pensamento constitui a grandeza do homem


(759-346).

83. Claramente, o homem foi feito para pensar. Esta é a


integridade de sua dignidade e mérito, e é sua obrigação pensar
como deveria. Agora, a seqüência do pensamento deve come-
çar em nós, com nosso Autor, assim como nosso fim. Porém,
sobre o que o mundo pensa? Jamais sobre coisas elevadas, mas
sobre dança, tocar flauta, cantar, escrever versos, participar de
brincadeiras de salão, lutar e até mesmo em tornar-se rei, sem
refletir sobre o que isso significa, seja ser um rei seja ser um ho-
mem (620-146).

84. Com facilidade, posso imaginar um homem que não


possui mãos, pés, ou até mesmo a cabeça, pois somente a expe-

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A GRANDEZA DA DIGNIDADE HUMANA 93

riência nos ensina que a cabeça é mais necessária que os pés. No


entanto, não consigo imaginar um homem que não seja dotado
da habilidade de pensar. Ele seria semelhante a uma pedra ou a
um animal bruto (111-339).

85. O homem é um ser pensante. Não é nos bens que


busco a minha dignidade, mas no controle de minha mente.
Eu não teria mais capacidade mental pela simples possessão de
mais terras. Por intermédio do espaço, o universo me contém e,
de fato, me absorve como a um simples borrão. No entanto, é
por meio do pensamento que eu compreendo o universo (113-
348).

86. Assim, a grandeza do homem advém do conhecimen-


to de que é miserável, pois uma árvore não detém este conhe-
cimento. Portanto, é vil saber que alguém é miserável, porém
conhecer que nossa condição é esta não deixa de ser um sinal
de nossa verdadeira grandeza (114-397).

87. Toda a dignidade do homem consiste no pensamento.


Mas, que pensamento é esse? Como é tolo! O pensamento é
admirável e incomparável por sua própria natureza. Muito em-
bora possua estranhos defeitos, a ponto de se tornar objeto de
contendas, pois apresenta falhas tais que nada pode ser mais
ridículo. Quão grandioso é por sua natureza; no entanto, quão
vil é por suas falhas! (756-365).

88. A característica mais desprezível do homem é a cobi-


ça pela glória, ainda que seja exatamente essa condição que de-
monstre claramente a sua grandeza. Pois quaisquer que sejam os
bens materiais que possua na terra, a condição de sua saúde ou
os prazeres que porventura desfrute, o homem permanece insa-
tisfeito exceto se gozar de boa reputação diante de seus colegas.
Assim, o homem tem tamanha consideração pela razão humana

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94 MENTE EM CHAMAS

que, independentemente dos privilégios que possa desfrutar na


terra, ele jamais será feliz se igualmente não desfrutar de privile-
giada posição na estima dos homens. Este é o ponto de vista mais
sublime que ele pode ter na terra, e nada o deterá na busca desse
desejo. Esta é a mais indelével qualidade do coração humano.
Os que mais desprezam a humanidade e colocam o ho-
mem no mesmo nível de animais ainda desejam ser admirados
e dignos da confiança de seus companheiros. Assim, os seus
próprios sentimentos os contradizem. Pois sua natureza – que é
mais forte que tudo o mais – os convence de forma mais eficaz
da grandeza do homem, ainda que sua razão possa convencê-los
da degradação humana (470-404).

89. Nossa idéia de grandeza da alma humana é tão ele-


vada que não suportamos o desprezo e a privação da estima de
uma simples alma. Toda a felicidade do homem repousa nesta
estima pessoal (411-400).

90. [Não podemos permitir o ceticismo completo]. É curio-


so observar que não conseguimos definir as coisas sem torná-las
também obscuras. Desse modo, prosseguimos falando sobre elas o
tempo todo, pois assumimos que os demais pensam da mesma for-
ma que nós, porém esta é uma grande presunção para a qual não
temos evidências. De fato, eu observo que aplicamos estas palavras
em um contexto particular e, embora duas pessoas estejam vendo
o mesmo objeto e utilizem as mesmas palavras para expressar o que
estão vendo, elas verão o objeto de formas diferentes. Tal confor-
midade de raciocínio sugere a universalidade do pensamento, ain-
da que falte a absoluta força da convicção total, pois sabemos que
conclusões iguais podem ser extraídas de presunções diferentes.
Isto é suficiente para obscurecer o assunto, embora não
elimine completamente a luz natural da razão que nos dá certe-
za em tantas e variadas matérias. Os platonistas teriam apostado
suas fichas neste fato, mas isso torna a luz menos visível e per-

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A GRANDEZA DA DIGNIDADE HUMANA 95

turba os dogmáticos, para vantagem dos céticos, que preferem


sustentar uma ambigüidade sobre a realidade e desfrutar de uma
certa obscuridade duvidosa da qual nossas dúvidas não remo-
vem toda a luz, assim como nossa luz natural não pode dispersar
todas as trevas (109-392).

91. O instinto e a razão são dois sinais de nossa natureza


dualista (112-344).

92. Com instinto e razão não temos capacidade de pro-


var qualquer coisa que nenhum dogmatismo possa superar. Não
obstante, possuímos uma idéia da verdade que nenhum ceticis-
mo pode superar (406-395).

93. Conhecemos a verdade não apenas por meio da ra-


zão, mas também com o coração. É através deste último que
conhecemos os princípios elementares, e é em vão que a razão
tenta negá-los. Assim, os céticos que tentam isso o tempo todo
labutam sem êxito. Nós sabemos que não estamos sonhando,
mas ainda que sejamos incapazes de provar isso racionalmente,
nossa incapacidade nada mais faz que expor a fraqueza de nossa
faculdade do raciocínio e não a incerteza de todo o nosso co-
nhecimento. Visto que o conhecimento dos princípios básicos
como tempo, espaço, movimento, números, é tão dependente
quanto qualquer um derivado da razão, então, é de tal conheci-
mento, que provém do coração e do instinto, que a razão deve
depender e fundamentar toda a sua argumentação. Intuitiva-
mente, o coração sabe que existem três dimensões espaciais e
que os números são infinitos, enquanto a razão continua a mos-
trar que não há dois números quadrados onde um deles seja o
dobro do outro. Pois princípios são conhecidos pela intuição,
enquanto as proposições são inferidas, todas com convicção,
ainda que de maneiras diferentes. É tanto inútil quanto ridículo
a razão exigir do coração provas dos princípios elementares, a

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96 MENTE EM CHAMAS

fim de concordar com eles, como seria para o coração exigir da


razão um conhecimento intuitivo de todas as suas proposições
antes de aceitá-las.
Tais limitações apenas servem para humilhar a razão, a
qual gostaria de ser juiz de todas as coisas, ainda que não seja
para solapar nossa certeza, como se a razão sozinha fosse capaz
de nos abastecer com instrução. Quisera Deus que, ao contrário,
jamais necessitássemos dela e que conhecêssemos todas as coi-
sas pela intuição! Porém este dom nos tem sido recusado pela
natureza. Tanto que isso só tem propiciado a nós um pequeno
conhecimento deste tipo. Todas as outras formas só podem ser
adquiridas por meio da razão.
Eis porque os que receberam fé de Deus por meio da in-
tuição são afortunados. Porém, aos que sem fé estão, podemos
apenas dá-la usando a razão, enquanto esperamos que Deus lhes
conceda iluminação, sem o que a fé é meramente humana e
inútil para a salvação (110-282).

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Capítulo VII

Contradições humanas

[Portanto, o homem é contraditório em muitos aspectos]

94. Naturalmente, o homem é crédulo, embora cético; tí-


mido, embora ousado (124-125).

95. O homem tem desprezo por sua própria vida, morrerá por
nada e terá ódio até mesmo de sua própria existência (123-157).

96. Com freqüência, a fé é paradoxal. Nós devemos come-


çar com esta afirmação, caso contrário, não conseguimos com-
preender nada e tudo, então, é teórico. Mesmo ao fim de cada
verdade que possamos ter alcançado, temos que acrescentar que
estamos criando na mente uma verdade oposta (576-567).

97. Considere a grandeza e a miséria. Uma vez que a mi-


séria pode ser deduzida da grandeza e vice-versa, alguns têm
procurado enfatizar a miséria porque a assumem como uma evi-
dência da grandeza. Mas, como outros têm enfatizado a misé-
ria com muito mais firmeza porque eles têm deduzido isso da
grandeza, tudo o que tem sido dito para demonstrar a grandeza
tem servido apenas para influenciar algumas pessoas a aceitar a
miséria, pois somos os mais miseráveis, porque somos decaídos.
Outros olham para isso em contraste.

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98 MENTE EM CHAMAS

Ambos têm operado em um círculo fechado. Pois é certo


que quanto mais discernimento os homens possuírem, tanto
mais descobrirão a miséria e a grandeza no homem. Em resu-
mo, o homem tem consciência de que é miserável e, portanto,
ele é miserável porque sabe que é assim. Porém, ele também
possui grandeza porque também tem essa consciência (122-
416).

98. Quanto mais esclarecidos somos, mais descobrimos


a grandeza e a miséria no homem. Com a classe comum dos
homens, os que são superiores são os filósofos. Eles conseguem
surpreender pessoas comuns com sua percepção das coisas. No
entanto, os cristãos são os que surpreenderão os filósofos, uma
vez que somente a religião fornece um profundo conhecimento
de algo que reconhecemos mais claramente ao sermos mais ilu-
minados (613-443).

99. É perigoso deixar o homem reconhecer muito clara-


mente o quanto ele tem em comum com os animais sem, ao
mesmo tempo, ajudá-lo a compreender a sua grandeza. De igual
sorte, não é sábio deixá-lo ver essa grandeza tão claramente sem
que ele perceba também sua condição vil. Muito mais arrisca-
do ainda é permitir-se que seja ignorante das duas condições.
Portanto, recomenda-se chamar sua atenção para ambas (121-
418).

100. Após mostrar quão comum e, ao mesmo tempo, quão


elevado o ser humano é, ele se capacita a apreciar seu verdadei-
ro valor. Deixe-o amar-se a si mesmo porque há em seu interior
uma natureza capaz do que é bom. Porém, não permita que ele
também aprecie o que há de comum em si. Deixe que se despre-
ze pelo fato de esta capacidade permanecer insatisfeita. Mas isto
não é razão para que despreze também sua capacidade natural.
Em suma, permita que se ame e se despreze, pois ele possui den-

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CONTRADIÇÕES HUMANAS 99

tro de si a capacidade de conhecer a verdade e ser feliz, mas não


possui também nenhuma verdade que seja tanto permanente
quanto satisfatória.
Por conseguinte, eu deveria buscar implantar no in-
terior do homem o desejo de encontrar a verdade e estar
pronto a segui-la, não importa onde a encontre, ainda que
sem paixão. Porém ele precisa perceber o quanto seu conhe-
cimento é nublado por suas emoções. Eu preferiria que ele
odiasse a própria cobiça, que toma as decisões por ele de ma-
neira automática, de maneira que ela não o cegue quando ele
fizer suas escolhas, nem o impeça, uma vez que a tenha feito
(119-423).

101. Se ele se auto-exaltar, eu o humilho. Se ele se auto-


humilhar, eu o exalto, e continuarei contradizendo-o até que
ele venha a compreender que é um ser monstruoso que está
além de toda compreensão (130-420).

102. A verdadeira religião, que ensina sobre a grandeza e


a miséria do homem, inspira tanto a auto-estima quanto o auto-
desprezo, amor e ódio. [Os filósofos, entretanto, tendem a tomar
partido] (450-494).

103. A natureza humana pode ser considerada de duas


maneiras. Quando o homem é visto de acordo com seu pro-
pósito, então ele é grandioso e incomparável. Ou se é visto
como um homem mediano, então ele é como um cavalo ou
um cachorro que é julgado pelos outros pela maneira como
corre ou pela capacidade de repelir estranhos. Observado
a partir desta perspectiva, o homem é abjeto e miserável.
Cada uma destas duas maneiras de se ver a natureza hu-
mana estimula a diversidade de pensamentos e argumentos
entre os filósofos, porque cada perspectiva nega a hipótese
do outro.

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100 MENTE EM CHAMAS

Alguém dirá: “O homem não nasceu para ter este fim,


porque tudo o que faz nega isso”. Mas, um outro afirmará: “Ele
não atinge o seu fim quando age de maneira tão básica”. [Assim,
embora as dúvidas permaneçam insolúveis no que tange à razão
natural, a revelação cristã declara ter uma resposta] (127-415).

104. Os principais argumentos dos céticos – eu estou, de-


liberadamente, deixando os menores de lado – são de que não
podemos ter certeza destes princípios fora da fé e da revelação,
exceto por meio de alguma intuição natural. Agora, esta intui-
ção natural não fornece provas convincentes de que tais princí-
pios são verdadeiros. Permanecemos na dúvida, fé à parte, se o
homem foi criado por um Deus benigno, um demônio maligno
ou apenas foi obra do acaso. Assim, permanecemos inseguros
quanto à veracidade desses princípios inatos, pois a resposta
deve depender de nossa origem.
Além do mais, fé à parte, ninguém sabe com certeza se
está acordado ou dormindo, pois enquanto estamos adorme-
cidos temos a firme convicção de que estamos tão despertos
quanto estamos agora. Sonhamos com espaço, formas e mo-
vimentos. Sentimos o tempo passar enquanto o medimos. De
fato, nos comportamos exatamente da mesma forma que em
nosso estado de consciência. Pelo menos um terço de nossas
vidas, em nossa própria admissão, gastamos em períodos de
sono, nos quais não temos idéia alguma da verdade, pois todos
os nossos sentimentos são meras ilusões. No entanto, quem
sabe se nos outros dois terços de nossa vida, quando pensamos
que estamos acordados, não estamos em outra forma de sono,
um pouco diferente do primeiro, quando pensamos que esta-
mos acordados, enquanto dormimos? Quem pode duvidar que
se dormíssemos na companhia de outras pessoas e acontecesse
de nossos sonhos convergirem, o que é possível, e então se
despertássemos sozinhos, não deveríamos pensar que as coisas
estavam de cabeça para baixo?

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CONTRADIÇÕES HUMANAS 101

Estes são os argumentos de ambos os lados. Eu desconsi-


derei os menos importantes, como os argumentos dos céticos
contra as impressões deixadas pelo hábito, educação, costumes
locais e assim por diante, que podem ser eliminados pelo mais
leve sopro de ceticismo. Você tem apenas de olhar em seus li-
vros, se não estiver suficientemente persuadido, mais cedo ou
mais tarde.
Agora, devo dizer algo sobre o único ponto forte dos dog-
matistas, que é quando falamos em boa fé e com sinceridade, não
podemos duvidar dos princípios naturais. Os céticos apresentam
apenas uma objeção quanto a isso. A incerteza de nossas origens,
incluindo a origem de nossa natureza, significa que os dogmatis-
tas têm tentado lidar com ela desde que o mundo é mundo. As-
sim, há um conflito constante entre os homens, no qual todos nós
temos de tomar partido, seja do lado dos dogmatistas, seja dos cé-
ticos. Qualquer que se julgar capaz de permanecer na zona neutra
descobrirá ter-se tornado o cético por excelência. A neutralidade
é um traço fundamental desse grupo. Todo aquele que não estiver
contra os céticos torna-se um forte aliado e é onde a vantagem
deles aparece. Eles estão em paz com suas consciências, pois per-
manecem neutros, indiferentes, suspendendo o julgamento sobre
todas as coisas, incluindo eles mesmos.
O que, então, o homem deve fazer em tal estado de coisas?
Duvidará de tudo e de todos? Duvidará de não estar dormindo
quando alguém o beliscar ou mesmo o queimar? Duvidará ele
até mesmo de suas próprias dúvidas? Duvidará de sua existên-
cia? É impossível prosseguir assim, de modo que eu afirmo que
um cético absoluto jamais existiu. Pois a natureza vai contra a
razão inútil e a impede de prosseguir tão fora de centro.
Pelo contrário, ele declarará possuir a verdade quando ao
menor sinal de pressão falhar em provar a sua afirmação e for
impelido a desistir? Que tipo de aberração é o homem! Que
novidade! Como o homem pode ser tão absurdo, caótico, con-
traditório e, ainda assim, ser um prodígio? Ele é juiz de todas as

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102 MENTE EM CHAMAS

coisas, apesar de ser um mísero verme. Ele é um receptor da ver-


dade e, apesar disso, é um náufrago em um oceano de dúvidas e
falhas. Ele é a glória e a escória do universo!
Quem desvendará tal enigma? Isso, certamente, está além
do poder do dogmatismo e do ceticismo ou de toda a filosofia
humana. Pois o homem transcende o homem. Vamos, portanto,
admitir dos céticos o que eles, com freqüência, têm proclama-
do, de que a verdade jaz ao nosso alcance, e apesar disso não é
nossa presa. Ela não habita na terra, mas possui morada no Céu.
Ela repousa no seio de Deus e, assim, só pode ser conhecida
por aqueles a quem Ele se agradar em revelar. Portanto, vamos
aprender sobre a nossa verdadeira natureza a partir da verdade
não-criada e encarnada.
Se procurarmos encontrar a verdade por meio da razão,
não evitaremos uma destas três posições. Você não pode ser um
cético ou platonista sem suprimir a natureza. Você não pode ser
um dogmatista sem dar as costas para a razão.
Porém, a natureza confunde os céticos e os platonistas,
enquanto a razão confunde os dogmatistas. O que, então, será
de você, ó homem, que procura descobrir a sua verdadeira natu-
reza por meio de sua razão natural? Você não consegue escapar
de uma dessas três posições ou sobreviver em nenhuma delas.
Perceba, então, homem orgulhoso, que paradoxo você é
para si mesmo. Seja humilde, razão impotente! Seja silenciosa,
natureza débil! Aprenda a sua verdadeira condição com o mes-
tre, que você não conhece. De fato, dêem ouvidos a Deus! Pois
como último recurso, se o homem jamais tivesse se corrompido,
em sua inocência ele estaria seguro para desfrutar tanto a verdade
quanto a felicidade. Se o homem tivesse sido sempre corrupto,
ele não teria a menor noção de verdade ou bênção. Mas, pobres
infelizes nós somos, e muito mais seríamos se não houvesse ne-
nhum elemento de grandeza em nós, porém temos uma visão da
felicidade que não conseguimos alcançar. Temos consciência da
realidade da verdade e, mesmo assim, possuímos apenas a sombra.

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CONTRADIÇÕES HUMANAS 103

Somos incapazes tanto pela total ignorância quanto pela certeza


do conhecimento e, assim, fica claro que já desfrutamos de um
grau elevado, mas desgraçadamente caímos. Além do mais, é sur-
preendente como o mistério mais distante de nossa compreensão,
o mistério da transmissão do pecado, é algo sem o qual não pode-
mos ter qualquer conhecimento sobre nós mesmos.
Sem dúvida alguma, nada choca mais a nossa razão do que
a afirmação de que o pecado do primeiro homem foi a causa da
culpa naqueles que estão muito distantes do pecado original,
de tal sorte que esta noção parece incapaz de ser compartilhada
pelos homens. Esta transmissão de pecados parece não apenas
ser impossível a nós, como também altamente injusta. Pois, o
que poderia ser mais contrário às regras de nossa pobre visão de
justiça que a condenação eterna de uma criança que não tem a
vontade de pecar, mas está envolvida em um ato pelo qual ela
parece ter pouca responsabilidade, já que, de fato, tal ato foi co-
metido milhares de anos antes de seu nascimento? Certamente
nada nos contraria mais do que essa doutrina e, mesmo sem esse
mistério, que é o mais incompreensível de todos, permanecemos
um mistério para nós mesmos. O confuso nó de nossa própria
condição foi pervertido e transformado nesse abismo. Portanto,
é mais difícil para o homem conceber-se sem esse mistério, do
que viver sem ter consciência disso.
Isso mostra que Deus, em Seu desejo de tornar as dificul-
dades de nossa existência ininteligíveis a nós, ocultou o nó em
lugares tão altos ou, talvez, eu deveria dizer, em domínios tão
baixos, que somos incapazes de alcançá-lo. Conseqüentemente,
não é por meio da ação orgulhosa de nossa razão, mas por meio
de sua humilde submissão que podemos realmente nos conhe-
cer. Tais fundamentos, solidamente estabelecidos na autoridade
inviolável da verdadeira religião, nos capacitam a compreender
que há duas verdades fundamentais da fé. Uma é que o homem,
no estado original de sua criação, ou debaixo da graça, é exal-
tado acima de toda a natureza, criado à semelhança de Deus e

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104 MENTE EM CHAMAS

compartilhando Sua divindade. A outra verdade é que, em seu


estado decaído e pecaminoso, o homem perdeu este primeiro
estado e tornou-se semelhante aos animais. Ambas as proposi-
ções são igualmente sólidas e certas.
A Escritura claramente declara isso quando afirma em di-
versas passagens: “E a humanidade me dava alegria” (Provérbios
8.31b); “Derramarei do meu Espírito sobre todos os povos” (Joel
2.28); “Eu disse: Vocês são deuses; todos vocês são filhos do Altís-
simo” (Salmos 82.6), enquanto em outras: “Que toda a humani-
dade é como a relva” (Isaías 40.6); “O homem, mesmo que muito
importante, não vive para sempre; é como os animais, que pere-
cem” (Salmos 49.12); “Também pensei: Deus prova os homens
para que vejam que são como os animais” (Eclesiastes 3.18).
Destas passagens parece claro que é pela graça que o ho-
mem é feito à imagem de Deus e compartilha de Sua semelhan-
ça, enquanto que, sem a graça, ele é como as feras do campo
(131-434).

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Capítulo VIII

Distrações humanas

105. Estou ciente de que eu possa jamais ter existido, pois


meu eu consiste em meu pensamento. Portanto, o meu eu, que
pensa, não existiria se minha mãe tivesse sido assassinada antes
que eu viesse a nascer. Assim, eu não sou um ser necessário, não
sou eterno ou infinito. Porém, eu vejo na natureza que há um
Ser necessário, eterno e infinito (135-469).

106. Apesar de todas essas mazelas, o homem anseia ser


feliz, apenas isso, e não consegue evitar esse anseio. Mas, como
ele pode pretender isso? Seria melhor se o homem pudesse tor-
nar-se imortal, mas já que isso não é possível, ele decidiu parar
de pensar sobre isso (134-168).

107. Por serem incapazes de evitar a morte, a miséria e a


ignorância, os homens decidiram que, para serem felizes, eles
devem reprimir os pensamentos sobre tais coisas (133-169).

108. Se o homem fosse verdadeiramente feliz, sua maior


felicidade repousaria em um estado inconsciente de auto-esque-
cimento, como os santos e Deus. Sim, mas o homem que en-
contra prazer nas distrações terrestres não é feliz? Não, porque a

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106 MENTE EM CHAMAS

origem delas é externa. Isso significa que o homem é dependen-


te e está sempre sujeito a ser exposto a mil e um acidentes que,
inevitavelmente, irão lhe gerar aflições (132-170).

109. Algumas vezes, quando começo a refletir sobre as


várias atividades dos homens, os perigos e dificuldades que en-
frentam na corte ou em tempos de guerra – que são a causa de
tanta discussão e violência, assim como aventuras selvagens e
malignas – sinto que a única causa da infelicidade humana é
que o homem não consegue permanecer quieto em seu próprio
quarto. Pois um homem que é rico o suficiente para suprir to-
das as suas necessidades até o fim de seus dias jamais deveria se
esforçar para deixar sua casa e se lançar ao mar ou tentar sitiar
uma fortaleza, se pudesse escolher ficar em sua casa e desfrutar
de seu lazer doméstico. Os homens jamais investiriam tanto em
um exército se fossem capazes de viver na cidade por toda a
vida. Eles só procuram pessoas para conversar ou para mútua
competição nos jogos porque não sentem nenhum prazer em
suas casas.
Porém, quando refleti sobre esta questão mais profunda-
mente e cheguei a uma explicação para todos os nossos infor-
túnios, tendo procurado descobrir o porquê, eu me deparei com
uma razão deveras convincente. É que a condição natural, seja
de nossa mortalidade, seja da nossa fraqueza, é tão miserável
que nada é capaz de nos consolar quando realmente pensamos
nisso.
Então, imagine qualquer situação de que você goste e re-
flita sobre todas as coisas boas possíveis de se desfrutar e, com
certeza, a realeza permanecerá no topo da lista das melhores
coisas do mundo. Ainda, se você puder vislumbrar um homem
ocupando-se de todas essas coisas, mas não usufruindo qual-
quer diversão, de modo que tenha de pensar sobre si mesmo e
sua condição, então você descobrirá que a tênue satisfação que
deriva de tudo isso simplesmente não é capaz de fazê-lo pros-

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DISTRAÇÕES HUMANAS 107

seguir. Pelo contrário, ele será forçado a meditar sobre todas


as circunstâncias que ameaçam seus negócios, as revoltas que
podem ocorrer, a morte e a enfermidade, que são inevitáveis.
Como resultado ele se sente infeliz, privado de sua assim cha-
mada diversão, e muito mais miserável que o mais humilde de
seus súditos, pois este pode, pelo menos, desfrutar de esportes e
passatempos.
Portanto, a única coisa boa para o homem é divertir-se,
pois assim ele pára de pensar sobre suas circunstâncias. Os ne-
gócios manterão sua mente longe delas. Talvez haja algum ro-
mance e propósitos agradáveis, de modo a mantê-lo ocupado,
como jogos, caçadas ou algum espetáculo. Em resumo, tudo isso
será o que denominamos distração.
Eis porque os jogos de apostas e a sociedade feminina, a
guerra e a alta sociedade, são tão populares. Essa popularidade
não é pelo fato de eles trazerem felicidade, ou das pessoas ima-
ginarem que a verdadeira felicidade seja alcançada por meio da
vitória nas mesas de apostas ou da lebre que é caçada. Ninguém
aceitaria tal presente. O que as pessoas desejam não é uma vida
mansa e fácil, que nos permita ter tempo para refletir sobre nos-
sa triste sina, ou nos preocuparmos com os perigos da guerra, ou
nas provações impostas pelos altos cargos. No trabalho temos
um agente narcótico para manter nossas mentes afastadas da
reflexão sobre tais coisas. Eis porque preferimos a caçada ao mo-
mento da morte da presa.
Eis a razão pela qual os homens apreciam tanto o barulho
e o alvoroço. Eis porque a prisão pode ser uma punição tão ater-
radora. Eis porque os prazeres da solidão são considerados incom-
preensíveis. Eis porque a melhor coisa para um rei é que as pessoas
gastem seu tempo tentando entretê-lo, como uma interminável
série de prazer para ele. Pois um rei vive rodeado por pessoas cuja
única preocupação é a de mantê-lo entretido e evitar que reflita
sobre si mesmo. Pois apesar de ser rei, ele se sentirá infeliz a partir
do instante em que começar a pensar sobre si mesmo.

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108 MENTE EM CHAMAS

Eis porque os homens tentam pensar em fórmulas que os


façam sentir-se felizes. Os que filosofam sobre este tema sus-
tentam que as pessoas são irracionais por passarem o dia todo
caçando uma lebre que jamais comprariam. Porém, os tais pos-
suem pouca compreensão sobre a nossa natureza. Pois não é a
lebre que nos preserva de pensar sobre a morte e as misérias
que nos tornam tão perturbados, mas a caçada, sim. O conselho
dado a Pirro, para esforçar-se a meditar serenamente, ele o con-
siderou muito difícil de executar.
Dizer-se a um homem que viver em descanso é a mesma
coisa que viver feliz significa aconselhá-lo a desfrutar de uma
condição na qual ele está completamente feliz e na qual ele
pode refletir demoradamente sem ter algo que venha a distraí-
lo. Os que concedem este tipo de conselho não compreendem
a natureza humana.
Portanto, os que naturalmente têm consciência do que de-
sejam evitar evitam o descanso como praga. Eles fariam qualquer
coisa para se manterem ocupados. Não é certo culpá-los, pois eles
não estão errados por querer agitação se tudo o que desejam é dis-
trair-se. O problema é que eles desejam isso com base na compre-
ensão de que uma vez que obtenham as coisas materiais que an-
seiam, com certeza a verdadeira felicidade não lhes faltará. Com
relação a este aspecto é que podemos acusá-los de futilidade. Isso
apenas nos mostra que tanto os críticos quanto os criticados real-
mente não compreendem a verdadeira natureza do homem.
Se, entretanto, quando os homens são criticados por per-
seguirem tão vigorosamente coisas que jamais poderão satisfazê-
los, sua verdadeira resposta deveria ser que tudo o que eles de-
sejam é uma ação violenta e obstinada que distraia suas mentes.
Eis porque eles escolhem um objeto charmoso e atrativo que
os leve entusiasticamente a ele. Para este comentário, os seus
oponentes não teriam resposta. Não lhes ocorre que é apenas
a perseguição e não a matança o que os caçadores buscam. E a
vaidade, o prazer de exibir-se ou o progresso? Com este último,

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DISTRAÇÕES HUMANAS 109

nós devemos pensar onde vocês colocam os pés. O cavalheiro


do campo acreditará, sinceramente, que a caçada é um esporte
nobre e grandioso, mas esta não é a visão de seus caçadores. Eles
imaginam que se conseguirem assegurar certos objetivos, então
eles poderão desfrutar de um merecido descanso após a conquis-
ta. Porém, eles não percebem a natureza insaciável da cobiça.
Eles genuinamente pensam que desejam descansar quando, na
verdade, tudo o que querem é ocupação.
Os homens possuem um instinto secreto que os leva a
procurar distrações e ocupações externas, e este é o resultado
de sua constante percepção de seu estado miserável. Há ainda
um outro instinto, que advém da grandeza de nossa natureza
original. Este outro instinto diz ao homem que a verdadeira feli-
cidade reside no descanso e não na excitação. Estes dois instin-
tos contraditórios geram uma enorme confusão no mais íntimo
de suas almas, levando-os a perseguir o descanso por meio da
atividade. Assim, eles sempre imaginam que a satisfação que
lhes falta será alcançada quando conseguirem superar algumas
dificuldades óbvias. Isso lhes abrirá as portas para um merecido
e bem-vindo descanso.
É assim que toda a nossa vida se desenrola. Nós buscamos
repouso por meio de combater certos obstáculos e, uma vez que
esses obstáculos tenham sido superados, descobrimos que o des-
canso é insuportável pelo tédio que isso gera. Decidimos nos
livrar do descanso e, assim, saímos a esmo implorando por no-
vas excitações. Não conseguimos imaginar uma condição que
seja prazerosa sem que tenha diversão e barulho. Assumimos
que qualquer condição na qual podemos desfrutar algum tipo
de distração é suportável. Porém, pense que tipo de felicidade
é essa que consiste meramente em sermos distraídos, evitando
pensar em nós mesmos!
Nós iremos pensar tanto no presente quanto nas misérias
que nos ameaçam e, mesmo se nos descobrirmos adequadamen-
te protegidos, o enfado emergirá do mais profundo de nossos co-

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110 MENTE EM CHAMAS

rações, onde possui raízes naturais, preenchendo nossas mentes


com seu veneno.
Portanto, o homem é tão infeliz que, pela natureza de seu
temperamento, ele se sentiria entediado mesmo se não tivesse
motivos para tal. Ainda, ele é tão vazio que, apesar de ter mil
e uma boas razões para sentir-se aborrecido, a mínima coisa,
como um jogo de bilhar ou outro divertimento qualquer, é sufi-
ciente para manter sua mente longe delas.
Vocês poderão dizer: “Mas, qual é o objetivo de tudo isso?”
– apenas para que amanhã ele possa vangloriar-se diante de seus
amigos de que foi o melhor jogador de todos. Outras pessoas
estarão sentadas estudando com afinco para convencer os estu-
diosos de que resolveram um exercício de álgebra que ninguém
antes deles foi capaz de solucionar. Muitas outras colocarão suas
vidas em risco a fim de se jactarem mais tarde de haverem con-
quistado alguma posição do inimigo, o que, em minha opinião,
é algo estúpido.
Finalmente, outras irão se desgastar dedicando-se obsti-
nadamente a tais assuntos, não com o intuito de se tornarem
mais sábias, mas apenas para mostrar o que sabem. Estas são as
mais tolas de todas, pois não têm consciência de sua própria
estupidez; podemos presumir que as outras deixarão de ser enga-
nadas ao se aperceberem de suas tolices.
Fulano passa pela vida sem se sentir entediado porque joga
um pouco todos os dias. Todas as manhãs, dê a ele o dinheiro
que talvez ganhe no jogo naquele dia, porém com a condição de
que não faça nenhuma aposta e verá aquele homem tornar-se
um completo infeliz. Pode-se afirmar que ele apenas se importa
com a diversão de apostar e não com o lucro que poderá usu-
fruir. No entanto, faça-o jogar por nada. Seu interesse não será
estimulado e ele também se sentirá entediado nessa situação,
Assim, não é apenas entretenimento o que ele deseja. De fato,
um entretenimento morno sem qualquer excitação irá aborre-
cê-lo. Ele precisa sentir-se estimulado, precisa iludir a si mesmo

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DISTRAÇÕES HUMANAS 111

pensando que seria feliz ao ganhar no jogo o dinheiro que não


quer ganhar de mão beijada, se isso significar desistir de jogar.
Ele tem de criar algum objetivo para as suas paixões e, então,
dar vazão ao seu desejo, ira, medo por esse objeto que construiu,
como crianças que sentem medo de uma face que elas próprias
tenham pintado.
Como um homem que talvez tenha perdido seu único
filho apenas alguns meses atrás e que está sendo pressionado
por processos legais, além de outras disputas, consegue esque-
cer e não se preocupar com tais coisas? Não fique surpreso;
ele está completamente absorto na tentativa de decidir que
caminho a presa, que seus cães farejadores tão arduamente
perseguiram nas últimas seis horas, irá tomar. Isso é tudo de
que ele necessita. Não importa o quão miserável possa ser, se
for convencido de gastar algumas horas se divertindo, ele se
sentirá feliz pelo tempo que a diversão durar. E não impor-
ta quanto um homem possa ser feliz, se lhe faltar distração,
uma paixão arrebatadora ou passatempos para manter o tédio
distante, logo ele será envolvido pela depressão e pelo senti-
mento de infelicidade. Sem as distrações não há alegria, ao
passo que com as distrações não há tristeza. É isso o que cria
a felicidade das pessoas da alta sociedade, porque elas têm
muitas outras pessoas para distraí-las e capazes de mantê-las
entretidas e despreocupadas.
Não se engane sobre esta conclusão, pois o que os coleto-
res de impostos, chanceleres ou chefes da justiça buscam, senão
desfrutar de uma posição que leve muitas pessoas a procurá-los
todos os dias, não permitindo que permaneçam solitários se-
quer uma hora do dia, impossibilitando-os de refletirem sobre
si? Quando eles caem em desgraça e são enviados de volta às
suas regiões de origem, onde possuem muito dinheiro e servos
para administrar cada uma de suas necessidades, logo se sentem
solitários e miseráveis, porque não dispõem de ninguém a evitar
que pensem sobre si mesmos (136-139).

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112 MENTE EM CHAMAS

110. A distração é a única coisa que nos consola por nos-


sas misérias. Ainda assim, ela é a maior de todas as nossas maze-
las. Pois acima de tudo, as distrações nos fazem parar de refletir
sobre nossa condição, levando-nos, assim, inadvertidamente, à
destruição. Pois o tédio deveria nos levar a buscar meios mais
eficazes de escape, mas a distração faz o nosso tempo passar e,
imperceptivelmente, nos conduz à própria morte (414-171).

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Capítulo IX

A busca da felicidade
pelos filósofos

111. [Vamos começar com os estóicos]. Em sua busca


pelo bem verdadeiro, os homens comuns assumem que seu
bem consiste em possuir dinheiro e outras formas de riqueza
ou, pelo menos, desfrutar de muitas diversões. Mas os filóso-
fos têm demonstrado quão vazio e superficial tudo isso é, de-
finindo essa condição da melhor forma que lhes era possível
(626-462).

112. (Falando dos filósofos que, como deístas, crêem em


Deus sem Cristo). Estes crêem que apenas Deus é digno de
ser amado e admirado, mas eles mesmos desejam ser amados
e admirados pelos homens, e não percebem a sua própria cor-
rupção. Se os seus corações estivessem cheios do desejo de
amar e cultuar a Deus, encontrando deleite apenas nEle, eles
se sentiriam satisfeitos consigo mesmos. No entanto, se acha-
rem isso repugnante e se a sua única inclinação for a de obter
a estima dos homens, se a idéia de perfeição que propagam for
simplesmente para fazer os homens pensarem que a felicidade
é encontrada no que propagam, então eu afirmo que essa for-
ma de perfeição é assustadora. Porque, mesmo conhecendo a
Deus, seu único desejo tem sido, não que os homens amassem

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114 MENTE EM CHAMAS

a Deus, mas em angariar a estima sobre si mesmos! Eles têm


procurado ser o objeto da felicidade que os homens tanto bus-
cam (142-163).

113. O que os estóicos propõem é deveras difícil e fútil!


Eles alegam que todos os que não alcançarem o mais alto grau
da sabedoria são tão tolos e corruptos como os que permanecem
em duas polegadas de água (144-360).

114. Estas grandes acrobacias mentais nas quais a alma,


ocasionalmente, se ilumina não são coisas nas quais ela pode
habitar. Ela somente permanece lá por um instante, não perma-
necendo para sempre no trono (829-351).

115. Bela coisa é gritar a um homem, que nem mesmo se


conhece, que deveria construir seu próprio caminho até Deus!
Igualmente, é nobre dizer-se isso a um homem que não conhece
a si mesmo (141-509).

116. Estamos cheios de coisas que nos fazem esquecer de


nós mesmos. Os nossos instintos nos fazem sentir que devemos
buscar nossa felicidade em coisas externas. As nossas inclina-
ções nos levam para fora, mesmo na ausência de qualquer estí-
mulo calculado que as motivem. Assim, os objetos externos são
uma grande tentação para nós, seduzindo-nos mesmo quando
não estamos pensando neles. Os filósofos estão desperdiçando
seu tempo quando dizem: “Vão para dentro de si mesmos, pois
lá vocês encontrarão o melhor da vida”. Por isso não acredita-
mos neles. Mas os que acreditam nos filósofos são os mais vazios
e tolos de todos (143-464).

117. Mesmo se Epíteto tivesse visto o caminho claramen-


te, ele só poderia dizer aos homens: “Vocês estão no caminho
errado”. Ele mostra que há um outro caminho, mas não nos

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A BUSCA DA FELICIDADE PELOS FILÓSOFOS 115

conduz até lá. Pois o caminho verdadeiro é conhecer a vontade


de Deus. Apenas Jesus Cristo nos leva a isso. “O Caminho, a
Verdade” (Jo 14.6). Três formas de cobiça criaram três cenários,
e tudo o que os filósofos têm feito é seguir um destes três tipos
de cobiça (145-461).

118. [Cada qual, estóicos e epicuristas, apenas apresen-


tam metade do quadro]. O estóico diz: “Voltem para dentro de
si mesmos, pois é lá que vocês encontrarão a paz”. Isto não é
verdadeiro. Os outros afirmam: “Voltem-se para as coisas exte-
riores; busquem a felicidade em alguma distração”. Isto também
não é verdadeiro. Somos presas fáceis para as doenças. A felici-
dade não se encontra dentro ou fora de nós, mas está em Deus,
seja dentro seja fora de nós (407-465).

119. Este conflito interno entre a razão e as paixões tem


feito aqueles que desejam paz de mente dividirem-se em dois
cenários. Uns desejam renunciar às paixões e se tornarem
deuses, enquanto outros renunciam à razão tornando-se feras
brutas [como Des Barreaux, 1602-1673, um libertino infame].
Porém, nenhum dos lados tem alcançado êxito, e a razão sem-
pre prevalece para renunciar à infâmia e à injustiça das pai-
xões. Assim, ela perturba a paz dos que a ela se rendem, pois
as paixões estão sempre vivas nos que desejam renunciar a elas
(410-413).

120. O homem não é anjo nem fera bruta, mas, infeliz-


mente, todo o que tenta agir como um anjo termina agindo
como uma fera (678-358).

121. O erro deles é deveras perigoso porque cada qual se-


gue sua própria verdade. O equívoco que cometem não é o de
apenas seguir a falsidade, mas de propagarem seguir uma outra
verdade (443-863).

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116 MENTE EM CHAMAS

122. Se o homem não foi criado por Deus, por que é feliz
apenas nEle? Se o homem foi criado por Deus, por que se opôs
a Ele? (399-438).

123. Os filósofos não prescrevem sentimentos com respei-


to às duas condições humanas. Eles têm inspirado o estímulo à
grandeza, mas esta não é a condição do homem. Têm inspirado
o estímulo à humilhação, mas igualmente esta não é a condição
humana. A humildade deve ser incitada não naturalmente, mas
por meio do arrependimento, não como um estado permanente,
mas como uma etapa rumo à grandeza. Deve haver encoraja-
mentos quanto à grandeza, que sejam instigados não por mé-
ritos pessoais, mas por meio da graça e que, após o estágio de
humilhação, cessem (398-525).

124. Nenhuma outra [religião] tem percebido que o ho-


mem é a mais exaltada das criaturas. Algumas, que reconhecem
plenamente o quanto a grandeza humana é real, ainda mantêm
visões pessimistas que são naturais ao homem devido a sua in-
gratidão e falta de coragem. Outras são dotadas de total cons-
ciência da real indignidade humana e, assim, tratam o sentido
de sua grandeza como ridículo, mas isso também é natural ao
homem realizar.

Mas alguns dizem: “Eleve seus olhos a Deus. Olhe para


Ele, a quem se assemelha, e que o criou para que possa pres-
tar-Lhe culto. Você pode ser como Ele. A sabedoria fará isso
se você escolher segui-Lo”. Epíteto diz: “Elevem suas cabeças,
homens livres”. Outros dizem ao homem: “Olhe para baixo, mi-
serável verme, e veja os animais que são suas verdadeiras com-
panhias”.

Que virá a ser o homem? Virá a ser semelhante a Deus


ou como as feras do campo? Que temível separação há entre

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A BUSCA DA FELICIDADE PELOS FILÓSOFOS 117

os dois! O que será de nós? Quem não compreende que o ho-


mem tem vagado errante, que caiu de seu lugar de direito e que
está procurando o caminho de volta tão desesperadamente e
que, ainda assim, não pode encontrá-lo? Quem lhe mostrará o
caminho? Os maiores homens têm falhado em suas tentativas
(430-431).

125. O homem não reconhece o lugar que deveria ocupar.


Obviamente, ele se extraviou. O ser humano caiu de seu ver-
dadeiro status e não pode encontrá-lo novamente. Desse modo,
ele busca em todos os lugares, ansiosamente, porém em vão, em
meio a profunda escuridão (400-427).

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Capítulo X

A busca pelo bem supremo

126. No debate filosófico sobre o bem supremo do ho-


mem, Sêneca afirmou: “Você pode estar satisfeito consigo mes-
mo e com as boas coisas inatas em você” (Ep., 20.8). Mas há
uma contradição nesta afirmação, porque eles na conclusão
aconselham o suicídio. Que ironia pensar que feliz é a vida que
jogamos fora, da mesma forma que nos livramos de uma praga!
(147-361).

127. Para os filósofos existem cerca de 280 tipos diferen-


tes de bens supremos (479-746).

128. É óbvio que o bem supremo é algo que deveríamos


buscar intensamente, mas quando nos voltamos para aqueles
que são dotados das mais poderosas e penetrantes mentes, ve-
mos que eles não concordam entre si. Um diz que o bem supre-
mo consiste na virtude, outro, no prazer sensual, outro, que está
no seguir a natureza, enquanto outro, que está na verdade. “Fe-
liz é o homem que pode conhecer as razões das coisas” (Virgí-
lio, Geórgicas, 2.490). Outros sustentam que reside na completa
ignorância, ou na preguiça, ou na resistência às aparências, ou
que nunca devemos nos surpreender. “Não se surpreender com

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120 MENTE EM CHAMAS

nada é praticamente a única maneira de encontrar a felicidade


e mantê-la” (Horácio, Ep., 1.6.1). Os céticos, em seu longo e
indeciso estudo, repleto de incertezas, não chegam a qualquer
conclusão. Outros, até mesmo os mais sábios, dizem que isso
não pode ser encontrado, nem mesmo pelo desejo. Portanto,
esta é uma boa resposta!
Ao questionarmos se essa filosofia chegou a alguma con-
clusão significativa após todos os esforços dos filósofos, talvez
uma conclusão seja a alma conhecer-se a si mesma. Assim,
vamos ouvir o que os mestres predominantes do mundo pen-
sam sobre este assunto. Eles se tornaram mais afortunados ao
descobrir isso? O que eles têm descoberto sobre a origem da
alma, sua duração e seu destino final? É a alma um assunto tão
elevado que justifique suas débeis reflexões? O fato é que eles
não conseguiram chegar a nenhuma conclusão importante. Se
a razão é racional, então ela deve ser racional o suficiente para
admitir que falhou em sua tentativa de descobrir algo signifi-
cativo. Porém, longe de cair em desespero por não ser capaz
de agir assim, ela prossegue mordaz como nunca, confiante de
que possui o poder necessário para essa conquista final. Ape-
nas examinando-se o efeito dos poderes que a razão possui é
que seremos capazes de chegar a alguma conclusão se ela real-
mente tem a compreensão para apreender a verdade (76-73).

129. [A pesquisa é infrutífera]. Pois desejamos encontrar a


verdade e nos descobrimos com nada mais do que incertezas. Bus-
camos a felicidade e tudo o que encontramos é miséria e morte.
Somos incapazes de reprimir o desejo pela verdade e pela felicidade
e, ao mesmo tempo, não temos capacidade de alcançar a certeza e,
tampouco, a felicidade. Temos sido punidos por sentir esse desejo,
para que compreendamos o quão fundo caímos (401-407).

130. Apesar disso, é positivo ser fatigado e frustrado com


o insucesso de nossa busca pelo bem, de modo que estendamos

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A BUSCA PELO BEM SUPREMO 121

nossos braços em direção ao Redentor ao invés de ao próximo


(631-422).

131. O homem sem fé não pode conhecer a realidade do


bem ou da justiça. Todos, sem exceção, buscam a felicidade.
Apesar de utilizarem diferentes meios, todos aspiram ao mes-
mo objetivo. Eis porque alguns são voluntários para lutar na
guerra e outros se lançam em outras atividades. Assim, esta é a
motivação para todos os feitos do homem, incluindo os que se
enforcam a si mesmos.
Porém, por muitos anos ninguém sem fé jamais alcançou
este objetivo para o qual todos eles continuam a se esforçar con-
tinuamente. Todos reclamam – príncipes, plebeus, nobres, pes-
soas comuns, velhos, jovens, fortes, fracos, instruídos, ignoran-
tes, saudáveis, enfermos, em todas as nações – em todo o tempo,
em todas as épocas e sob todas as circunstâncias possíveis.
Sem dúvida, uma análise como esta, realizada sem uma
pausa ou alteração, realmente deveria nos convencer de que
somos incapazes de alcançar o bem por nossos próprios esforços
pessoais. Mas o exemplo pouco nos ensina. Não há duas pesso-
as exatamente iguais, e é isso o que nos faz esperar que nossos
esforços não sejam desapontados desta vez como os demais o fo-
ram em outras ocasiões. Embora o presente jamais nos satisfaça,
a experiência nos ilude, levando-nos de uma desilusão a outra,
até que a morte chegue como último e eterno final.
Porém, o que toda essa inquietação e desamparo indicam,
exceto que o homem viveu, em tempos remotos, em verdadeira
felicidade, da qual ele não desfruta mais? Assim, ele inutilmen-
te busca, mas nada encontra que o possa ajudar, apenas conse-
gue enxergar um abismo infinito que só pode ser preenchido
pelo Único que é infinito e imutável. Em outras palavras, este
abismo só pode ser ocupado por Deus.
Pois somente Deus é o verdadeiro bem para o homem,
e, desde que o homem O tem rejeitado, é estranho que nada,

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122 MENTE EM CHAMAS

em toda a natureza, possa ocupar o lugar que lhe é destinado.


As estrelas, o céu, o mundo, os elementos, as plantas, os legu-
mes, as verduras, os animais, os insetos, os bezerros, serpentes,
febre, enfermidade, guerra, fome, vício, adultério, incesto. Uma
vez que o homem perdeu o seu bem verdadeiro, ele é incapaz
de ver esse bem em qualquer objeto, mesmo para sua própria
destruição, embora seja muito diferente daquilo que Deus lhe
ordenou.
Alguns buscam o bem na autoridade, outros no conheci-
mento e erudição ou no prazer. Outros, que dele se aproximam,
descobrem ser impossível que esse bem universal, objeto do de-
sejo de toda a humanidade, seja alcançado por meio de qual-
quer coisa que possa ser possuída pelo indivíduo. Pelo contrário,
com freqüência, causa aos que os possuem mais dor que alegria.
Tais pessoas compreenderam que o bem verdadeiro é algo a ser
possuído por todos sem perda ou inveja, e que ninguém deveria
ser capaz de perdê-lo contra a sua vontade. Eles justificam que
esse desejo é natural ao homem, uma vez que toda a humanida-
de, inevitavelmente, tem esse desejo e não pode viver sem ele
(148-428).

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PARTE DOIS

A INICIATIVA RACIONAL HUMANA

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Capítulo XI

Introdução: Sobre a
contraditória natureza humana

[Provavelmente, notas de uma palestra dada em Port-Royal]


132. Tanto a grandeza quanto a miséria do homem
são evidentes. A verdadeira religião deve nos ensinar que o
homem possui em seu íntimo algum princípio fundamental
de sua grandeza, assim como um princípio, com raízes pro-
fundas, sobre a sua miséria. Pois, para realmente examinar
a nossa natureza em toda a sua extensão, a verdadeira reli-
gião deve levar em conta tais contradições extraordinárias.
Para garantir satisfação ao homem, ela deve mostrar-lhe que
existe um Deus a quem somos compelidos a amar. Deve tam-
bém demonstrar que a nossa verdadeira felicidade é para ser
encontrada nEle, e que nossa fonte fundamental de miséria
é nossa separação dEle. Ainda, deve relatar a grande escuri-
dão que nos incapacita a conhecê-Lo e amá-Lo, mostrando,
assim, que quando falhamos em amar a Deus pela cobiça so-
mos preenchidos com injustiça. Deve explicar as razões pelas
quais justificamos nossa oposição a Deus, que é contrária ao
nosso próprio bem-estar. Deve mostrar a cura para o nos-
so desamparo e os meios de alcançá-la. Portanto, vamos dar
uma olhada e examinar todas as religiões do mundo sobre
esse aspecto e ver se alguma outra além da fé cristã pode sa-
tisfazer tais condições.

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126 MENTE EM CHAMAS

Será que devemos encontrá-la nos filósofos, que oferecem


ao nosso bem nada mais que aquelas formas de bem já exis-
tentes em nós? Será que têm encontrado a cura para as nossas
enfermidades? Será essa cura a presunção do homem de se co-
locar no mesmo patamar de Deus? Os que nos reduzem a meros
animais ou os muçulmanos, que nos oferecem os prazeres do
mundo como nosso único bem, mesmo na eternidade, conse-
guiram encontrar a cura para os nossos apetites sensuais? Que
religião nos ensinará como lidar e curar o nosso orgulho e a
nossa cobiça? Em suma, que religião nos guiará ao verdadeiro
bem, ensinando-nos sobre nossos deveres, a fraqueza que nos
incapacita a realizá-los, a causa dessa debilidade, os remédios
que podem curá-la e os meios de obter tal tratamento? Todas as
outras religiões têm falhado em fazer isso. Portanto, vamos ver
o que a sabedoria de Deus realizará.
Como a sabedoria diz: “Não esperem, ó homens, nem ver-
dade ou conforto dos homens. Pois Eu os criei e somente Eu
posso lhes dizer quem vocês são. Mas, agora, vocês não se en-
contram mais no mesmo estado no qual Eu os criei. Pois Eu criei
o homem para ser santo, inocente e perfeito. Eu o preenchi com
a luz da inteligência. Eu lhe mostrei a minha glória e minhas
maravilhas. O olho do homem, então, viu a majestade de Deus.
Ele não estava cercado pelas trevas que agora o cegam, nem era
vítima da mortalidade e da miséria que hoje o afligem.”
“Mas, o homem não foi capaz de suportar tanta glória sem
cair na presunção. Ele quis ser seu próprio centro e independen-
te de meu auxílio. Assim, o homem afastou-se de meu reino; e
quando ele presumiu ser igual a Mim, desejando encontrar sua
felicidade apenas em si mesmo, Eu o abandonei à mercê de seus
próprios conselhos. Convocando as criaturas que foram colo-
cadas debaixo de seu domínio para se rebelarem contra ele, Eu
as tornei suas inimigas. Assim, hoje o homem tornou-se seme-
lhante aos animais e está tão distante de Mim que escassamente
retém uma pálida imagem de seu Criador. Esta é a extensão

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SOBRE A CONTRADITÓRIA NATUREZA HUMANA 127

para a qual o seu verdadeiro conhecimento tem sido reduzido


ou relegado! Os seus sentidos, que são independentes da razão
e, com freqüência, os seus mestres, os têm subjugado na busca
do prazer.”
“Todas as criaturas são agora uma fonte de tentação ou
aflição para o homem. Como seus tiranos, elas o reduzem pela
força ou o seduzem pelo encanto, o que é de fato uma forma
muito mais terrível e destrutiva de escravidão.”
“Esta é a condição da humanidade em nossos dias. O ho-
mem retém um débil desejo por bênção, que é um legado de sua
primeira natureza. Mas ele se encontra submerso nas misérias
de sua cegueira e cobiça, que se tornaram a sua segunda natu-
reza.”
A partir deste princípio que estou explicando, vocês po-
dem reconhecer a causa de tantas contradições que têm desnor-
teado a humanidade tão profundamente e que têm dividido suas
explicações em tantas e diversificadas escolas de pensamento.
Observem agora todos os impulsos de grandeza e de glória, os
quais a experiência de tantas misérias não pode refrear, e veja se
não são gerados por outra natureza.
“Ó humanidade, em vão busca dentro de si a cura para
sua própria miséria. Toda a sua visão apenas conduz ao conhe-
cimento de que não é em si mesma que descobrirá tanto a ver-
dade quanto a bondade. Os filósofos têm feito tais promessas,
mas eles têm falhado em cumpri-las, pois não conhecem o que
é o bem verdadeiro, nem a sua condição original. Como podem
prover cura para enfermidades que nem mesmo são capazes de
reconhecer ou diagnosticar? Pois seus piores males são o orgu-
lho, que os afasta de Deus; a sensualidade, que os mantém acor-
rentados às coisas terrenas, e tudo o que têm feito é manter bem
nutrida pelo menos uma dessas doenças. Se lhes fornecem Deus
para seu propósito, é apenas para satisfazer seu orgulho. Eles os
têm feito pensar que vocês são como Deus e que se assemelham
a Ele por natureza. Os que viram a vaidade de tal pretensão os

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128 MENTE EM CHAMAS

têm lançado em outro abismo, fazendo-os crer que a sua nature-


za é similar à das feras do campo, levando-os a buscar o seu bem
na cobiça, que é a sina dos animais.”
“Este não é o caminho para a cura de suas iniqüidades,
e esses sábios homens têm falhado em reconhecer tal fato. So-
mente Eu posso fazê-los compreender quem vocês são. Eu não
exijo de vocês fé cega.”
Adão, Jesus Cristo.
Se vocês são um com Deus, isso acontece apenas pela graça
e não por meio de sua natureza. Se vocês têm sido humilhados, é
pelo arrependimento e não pela natureza. Por esta razão há esta
dupla capacidade. Vocês não se encontram no estado original, no
qual foram criados. Uma vez que estas duas condições tenham
sido reveladas, é impossível a vocês não reconhecê-las.
Sigam seus impulsos. Examinem-se e vejam se não en-
contram as características vívidas destas duas naturezas em seu
íntimo. São muitas contradições a serem descobertas em um
simples indivíduo? Incompreensíveis? Tudo o que é incompre-
ensível, não obstante, continua a existir. Números infinitos e
espaço infinito igual ao finito.
“É incrível que Deus Se una a nós.”
Esta opinião deriva-se, simplesmente, da compreensão so-
bre nossa natureza básica. Mas se acreditam nisso, sinceramen-
te, sigam o mais profundo que puderem e percebam que somos
de fato tão vis que somos incapazes de descobrir se a misericór-
dia de Deus não pode nos tornar capazes de conhecê-Lo. Pois
gostaria de saber com que direito essa criatura, que reconhece
a sua própria fraqueza, tem a ousadia de medir a misericórdia
de Deus, mantendo-a dentro de limites estabelecidos por suas
próprias concepções! O conhecimento que possui sobre Deus
é tão ínfimo que ele nem mesmo sabe quem é. Profundamente
perturbado por sua própria natureza, o homem tem a audácia
de declarar que Deus não pode torná-lo capaz de ter comunhão
com Ele.

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SOBRE A CONTRADITÓRIA NATUREZA HUMANA 129

Mas eu gostaria de lhe perguntar se Deus espera alguma


coisa mais dele, exceto que ele O ame e O conheça. Por que
razão o homem pensa que Deus é incapaz de fazer-Se conhecido
e ser o objeto de amor, já que o homem por natureza é capaz de
amar e conhecer? Não há dúvidas de que ele conhece, pelo me-
nos, a sua própria existência e que possui a capacidade de amar.
Portanto, se ele é capaz de vislumbrar nas trevas em que está
encerrado e pode encontrar um objeto de amor entre as coisas
terrenas, por que, então, se Deus revelar algum reflexo de Seu
ser ao homem, este não seria capaz de conhecer e amar a Deus
de uma forma que agrade a Deus comunicar-Se conosco? Em-
bora tal pensamento possa ser creditado a uma aparente humil-
dade, com certeza há uma intolerável presunção neste tipo de
argumento, que nem é sincero ou racional, exceto que ele nos
força a admitir que uma vez que não conhecemos quem somos
por nós mesmos, podemos aprender isso apenas de Deus.
“Eu não tenho a intenção de que vocês creiam em mim
e se submetam a mim sem uma razão. Eu não posso reclamar
o direito de forçá-los a adotar esta posição. Tampouco posso
afirmar que tenho razões que explicam todas as coisas. Ape-
nas com o intuito de reconciliar estas contradições é que dese-
jo mostrar-lhes claramente, por meio de provas convincentes,
sinais da divindade em meu interior, que irão convencê-los de
quem eu sou, e estabelecer a minha autoridade por intermédio
de milagres e provas que vocês não podem rejeitar. Então, vocês
crerão nos meus ensinamentos e descobrirão que não há razão
alguma para rejeitá-los, exceto que vocês não podem conhecer
de si mesmos se eles são verdadeiros ou falsos.”
É pela vontade de Deus que os homens são redimidos, e
o caminho da salvação é aberto aos que o buscam. Porém, os
homens têm se revelado indignos disso, de modo que é direito
de Deus recusar alguns, devido à dureza de seus corações, o que
Ele concede aos outros pela misericórdia à qual não têm direito
algum. Se desejasse sobrepujar a teimosia dos mais endurecidos

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130 MENTE EM CHAMAS

dentre eles, Deus poderia fazê-lo ao revelar-Se tão claramente


que eles não seriam capazes de duvidar de Sua existência. De
fato, Ele surgirá nos últimos dias em tal esplendor e glória, com
proporções apocalípticas, que até mesmo os mortos ressuscita-
rão e os mais cegos O verão.
No entanto, este não é o modo que Deus escolheu para
surgir na humildade de Sua vinda. Pois, visto que muitos se tor-
naram indignos de Sua misericórdia, Deus determinou destituí-
los do bem que eles não desejaram. Não seria, portanto, correto
que Ele aparecesse diante de tais pessoas de uma forma absolu-
tamente divina e suficiente para convencer toda a humanidade.
Tampouco seria direito que a Sua vinda ocorresse na mais abso-
luta clandestinidade, de modo que Ele não pudesse ser reconhe-
cido nem mesmo por aqueles que, sinceramente, O buscavam.
Mas Ele quis apresentar-Se perfeitamente reconhecível com
este objetivo. Ao invés disso, desejando aparecer abertamente
para os que O buscavam de todo o coração e, ainda assim, per-
manecer encoberto para os que O evitavam de todo o coração,
Deus tem dado mostras de Si mesmo que são visíveis aos que O
buscam e invisíveis aos que não O buscam.
“Há luz suficiente para os que desejam apenas ver e escu-
ridão suficiente para os que apresentam uma disposição contrá-
ria” (149-430).

133. Igualmente, condeno os que escolhem louvar o ho-


mem, os que o condenam e os que vivem para si mesmos. Eu
somente posso aprovar os que buscam a Deus com sinceridade
(405-421).

134. Existem apenas três tipos de pessoas: Os que en-


contram a Deus e O servem; os que estão muito ocupados
buscando a Deus, mas ainda não O encontraram, e os que
vivem as suas vidas sem buscá-Lo ou encontrá-Lo. Os pri-
meiros são racionais e felizes; os últimos, tolos e infelizes,

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SOBRE A CONTRADITÓRIA NATUREZA HUMANA 131

enquanto que o segundo grupo são pessoas infelizes, porém


racionais (160-257).

135. Assim, como a condição dos descrentes os torna in-


felizes, começamos a ter compaixão deles. Eles não deveriam
ser humilhados, a não ser que isso os transformasse em crédu-
los, mas usualmente isso apenas os torna ainda mais iníquos
(162-189).

136. Tenham compaixão dos ateístas que buscam, pois já


não são suficientemente infelizes? Mas, censurem os que se van-
gloriam disso (156-190).

137. Os ateístas deveriam dizer coisas que são perfeita-


mente cristalinas. Apesar disso, não está perfeitamente claro
que a alma é apenas matéria (161-221).

138. Os incrédulos que afirmam seguir apenas a razão pre-


cisam ser excepcionalmente racionais. O que então dizem? Eles
afirmam: “Vocês não vêem que as bestas vivem e morrem exata-
mente como os homens, ou como muçulmanos e cristãos? Eles
têm suas cerimônias, seus profetas, seus doutores, seus santos,
sua vida religiosa, assim como o resto de nós”. Isso é contrário à
Escritura? Ela não ensina exatamente isso?
Se vocês são descuidados em relação ao conhecimento
da verdade, então podem conviver em paz com esta afirmação.
Mas se desejarem de todo o coração conhecê-la, isso não basta.
Observem os detalhes com atenção. Fazemos isso não devido a
uma pesquisa filosófica, mas quando tudo está em jogo. E ainda
assim, após uma análise superficial deste tipo, continuamos e
nos divertimos.
Então, vamos inquirir desta religião se ela não abor-
da esta obscuridade. Talvez nos ensine tudo sobre ela (150-
226).

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132 MENTE EM CHAMAS

139. Pelo menos, deixemos que compreendam a natureza


desta religião que estão atacando, antes que iniciem o fogo pe-
sado. Se esta religião se gabasse de ter uma visão clara de Deus,
possuindo-O sem véus, seria uma objeção efetiva dizer-se que
não há nada que possa ser descoberto na terra que lhes forneça
uma clara evidência deste ponto de vista. Mas, ao contrário,
esta religião afirma que os homens jazem nas trevas e vivem
separados de Deus, e que Ele tem Se escondido deles. De fato,
este é o nome que Ele mesmo fornece de Si, na Escritura: Deus
absconditus [“o Deus que se esconde”, Isaías 45.15].
Em resumo, a verdadeira fé busca igualmente manter
duas posições. Primeiro, ela afirma que Deus tem apresentado
evidência visível na Igreja de modo a ser claramente visto por
aqueles que O buscam genuinamente. Segundo, ela afirma que
Deus oculta a evidência de tal maneira que Ele só pode ser vis-
to pelos que O buscam de todo o coração. Que vantagem há,
então, para o indiferente que protesta, afirmando que não há
evidência da verdade em lugar algum? Pois, de fato, uma das ob-
jeções que eles apresentam contra a Igreja – que há obscuridade
em demasia – é na verdade uma das realidades da fé. Assim, ao
invés de provar o erro, isso apenas confirma a fé.
Se eles realmente desejassem atacar a fé de maneira efi-
caz, teriam de nos convencer de que lançaram mão de todos
os recursos e esforços possíveis, mesmo no que a Igreja tem a
oferecer para sua instrução, porém sem alcançar êxito. Se eles
assim argumentassem, então estariam, de fato, atacando uma
das alegações do cristianismo. Mas eu espero mostrar aqui que
nenhuma pessoa racional pode argumentar desta maneira. De
fato, ouso afirmar que ninguém jamais procedeu assim, pois sa-
bemos perfeitamente bem como as pessoas que sustentam tais
visões operam. Elas estão convencidas de que enfrentaram mui-
tos problemas para obter informações, quando gastaram umas
poucas horas lendo alguns livros da Bíblia e, talvez, questio-
naram alguns eclesiásticos com perguntas sobre as verdades da

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fé. Então, eles saem a propagar que buscaram em vão, seja pela
leitura de livros seja pelo debate com outras pessoas sobre o
tema. De fato, eu deveria lhes dizer o que digo com freqüência:
Tal negligência com respeito à verdade é intolerável. O que está
em questão aqui não é um simples e frívolo interesse de algum
estrangeiro a sugerir este comportamento; é uma questão sobre
nós mesmos e tudo o que possuímos.
Pois a imortalidade da alma é de fundamental importância
para nós, afetando-nos tão profundamente que devemos estar
fora de nosso juízo se não nos importamos mais com isso. Todas
as nossas ações e pensamentos seguirão por caminhos distintos,
conforme houver esperança de bênção. Esta é a única maneira
sábia de agir, com discernimento, se for para decidir nossa linha
de ação sobre este ponto, já que isso deveria receber o máximo
de nossa atenção.
Portanto, nosso interesse primordial e nosso dever primá-
rio deve ser buscar esclarecimento nesta matéria, da qual de-
pende todo o curso de nosso destino. Eis porque, entre os que
não estão convencidos, inferi uma importante distinção entre
os que se esforçam com todas as forças para obter tal esclareci-
mento e os que gozam a vida sem se preocupar ou mesmo pensar
sobre o assunto.
Eu consigo sentir compaixão apenas por aqueles que
sinceramente estão perturbados com suas dúvidas e que as
consideram seu maior infortúnio. Os tais não poupam es-
forços para escapar dessa situação, e consideram essa busca
seu mais importante e sério negócio. No entanto, sinto-me
completamente diferente com relação aos que vivem suas
vidas sem ter um pensamento sequer a respeito do fim da
vida, e pelos descrentes que estão satisfeitos com o pouco
esclarecimento que possuem e se esquecem de olhar em ou-
tros lugares. Estes não formam suas opiniões com base em
uma reflexão madura, mas simplesmente aceitam opiniões de
simplória ingenuidade ou aquelas que, apesar de obscuras,

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possuem um fundamento sólido e inabalável. Esta negligên-


cia sobre um assunto que deveria ser de vital relevância para
eles, pois lida com o destino eterno e tudo o que possuem, me
causa mais irritação que pena. Na verdade, isso me assombra
e desconcerta e me parece ultrajante. Eu não estou falando
de um sentimento piedoso. Pelo contrário, quero dizer que
as pessoas deveriam sentir-se assim em virtude dos princípios
básicos do interesse humano e da auto-estima. Isto clama por
nada mais do que aquilo que é aparente ao menos esclarecido
dentre nós.
Não precisamos ser extremamente inteligentes para per-
ceber que não existe verdadeira e sólida satisfação a ser des-
frutada neste mundo. Pois todos os nossos prazeres são mera
vaidade, enquanto nossos infortúnios são infinitos. A morte
nos assombra a cada instante. Em um período de poucos anos
seremos, inevitavelmente, forçados a enfrentar a realidade da
eternidade, que será de condenação eterna para os negligentes,
sem qualquer perspectiva de felicidade.
Não existe nada mais real que isso, nem nada mais terrí-
vel. Podemos tentar exibir a face mais brava de que somos capa-
zes, porém isso é tudo o que resta no final da mais bem sucedida
carreira no mundo. Deixe que as pessoas pensem como preferi-
rem, mas o único bem nesta vida repousa na esperança de outra
vida. Só somos felizes na medida em que antecipamos isso, pois
não haverá infortúnios para os que estiverem plenamente asse-
gurados da vida eterna. No entanto, não haverá felicidade para
os que não possuírem qualquer conhecimento sobre ela.
Claramente, é um grande infortúnio encontrar-se em tal
estado de incerteza. Porém, pelo menos, é um dever indispensá-
vel buscar e questionar, quando estamos nessa condição.
O homem que, embora tendo dúvidas, não procura res-
postas é o mais miserável e equivocado de todos. Se, em adição,
ele se sentir convencido sobre o que abertamente professa e até
mesmo veja isso como uma fonte de complacência e presunção

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SOBRE A CONTRADITÓRIA NATUREZA HUMANA 135

que ele ostensivamente professa, então eu não sou capaz de en-


contrar palavras para descrever tal criatura.
Qualquer coisa pode gerar tais sentimentos? Que razão há
para júbilo quando tudo o que vemos é absoluta miséria? Que
motivos há para a vaidade no fato de ser lançado em tão impe-
netrável treva? Como podem argumentos como esses ocorrer a
uma pessoa racional?
“Eu não sei quem me colocou neste mundo, tampouco o
que este mundo é, nem o que sou. Eu sou profundamente igno-
rante sobre todas as coisas. Eu não sei o que é o meu corpo, os
meus sentidos, a minha alma ou o próprio órgão que pensa o que
estou dizendo, que reflete sobre todas as coisas, assim como sobre
si mesmo, e que não se conhece mais do que conhece todas as
coisas. Eu somente vejo os aterradores espaços do universo que
me aprisionam e me descubro plantado em um minúsculo canto
dessa expansão imensa, sem saber por que fui colocado aqui e não
lá. Tampouco sei por que este breve curso de vida tem sido reser-
vado a mim neste ponto ao invés de em outro, em toda a eterni-
dade do tempo que me precedeu ou que virá após mim. Tudo o
que vejo são infinitos em todos os lados, cercando-me como um
átomo ou como uma sombra de um fugaz momento. Tudo o que
sei é que em breve deverei morrer, porém o que mais ignoro é
sobre a própria morte, da qual não há escapatória.”
“Assim como não sei de onde vim, eu também não sei
para onde estou indo. Tudo que sei é que, quando deixar este
mundo, devo cair eternamente no esquecimento, ou nas mãos
de um Deus irado, sem conhecer qual dos dois será meu des-
tino para a eternidade. Este é o estado em que minha mente
se encontra; débil e repleta de incertezas. A única conclusão
que consigo obter de tudo isso é que devo passar meus dias sem
um pensamento sequer para descobrir o que irá me acontecer.
Talvez eu possa encontrar algum discernimento em minhas
próprias dúvidas, mas não quero ser importunado. Nem mesmo
quero me dar ao trabalho de procurar respostas. Ao invés disso,

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136 MENTE EM CHAMAS

eu devo prosseguir sem medo do porvir e deixar-me levar inexo-


ravelmente rumo à minha morte, incerto de meu estado futuro
por toda a eternidade.”
No entanto, é algo glorioso para a verdadeira fé ter tais
homens irracionais como seus inimigos, pois, ao invés de a opo-
sição que lhe fazem ser perigosa, na verdade, ela apenas con-
corre para estabelecer as verdades da religião. A fé cristã con-
siste quase que totalmente em estabelecer estas duas verdades:
a corrupção da natureza humana e sua redenção por meio de
Jesus Cristo. Eu sustento que se tais homens não servem para
demonstrar a verdade da redenção por intermédio da santidade
de suas vidas, pelo menos eles mostram de forma admirável a
corrupção da natureza humana ao adotar tais atitudes antina-
turais.
Nada é de maior importância para o homem que sua con-
dição, e nada é mais assustador que a eternidade. É contrário à
sua própria natureza haver pessoas que sejam indiferentes à per-
da de suas vidas e negligentes sobre os perigos de uma eternidade
de completa solidão e infelicidade. Elas reagem de maneira dife-
rente com respeito a tudo o mais, ficando ansiosas e temerosas
das mínimas coisas que antecipam e sentem. A mesma pessoa
que passa noites e dias em constante ira, na agonia do desespero
sobre a perda de posição social ou uma possível afronta contra
a sua reputação, é a mesma pessoa que sabe que perderá tudo
com a morte certa e, no entanto, não mostra preocupação ou
qualquer sentimento com respeito a essa sombria perspectiva. É
extraordinário ver no mesmo coração e ao mesmo tempo essa
preocupação com as coisas mais triviais e sem importância e o
mais completo desinteresse com as coisas que realmente im-
portam. Isso é um encantamento incompreensível, um descaso
sobrenatural, que indica a evidência de uma força maior como
sua causa.
Deve haver uma confusão enorme no coração do homem
para que consiga vangloriar-se de uma condição na qual pareça

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SOBRE A CONTRADITÓRIA NATUREZA HUMANA 137

incrível qualquer um estar. Entretanto, a experiência tem me


mostrado tantos assim que seria surpresa se não soubéssemos
que a maioria deles disfarça seus sentimentos e não é o que apa-
rentam. Eles são indivíduos que ouviram dizer que é sinal de
boas maneiras exibir tal atitude. Isto é o que chamam de “re-
mover o jugo”, o que eles procuram imitar. Mas não seria difícil
lhes mostrar que equívoco estão cometendo ao tentarem criar
uma boa impressão valendo-se de tais métodos. Certamente,
esta não é a maneira certa de obter isso – quero dizer entre os
homens do mundo, cujo julgamento é sólido e que sabem que o
único caminho para o sucesso é parecer decente, leal, sensato e
capaz de auxiliar o próximo (pois a humanidade, por natureza,
somente se afeiçoa aos que lhes podem ser úteis).
Que vantagem, pois, temos nós em ouvir alguém dizer que
“removeu o jugo”, que não crê que há um Deus que observa as
suas ações, que se considera o único juiz de seus atos e que de-
pende apenas de si mesmo? Ele imagina que ao dizer tudo isso
estará nos dando alguma confiança quanto ao futuro? Devemos
esperar dele conforto, conselho e auxílio nas adversidades da
vida? Tais pessoas imaginam que nos enchem de encorajamen-
to ao afirmarem que pensam que nossas almas são como uma
brisa ou fumaça, ainda mais expressando tal idéia de maneira
arrogante e presunçosa? Há alguma razão para sermos otimistas?
Não é algo para ser admitido de maneira fúnebre, como se fosse
a coisa mais trágica em todo o universo?
Se tais pessoas pensassem seriamente sobre o tema, per-
ceberiam que isso gera a pior impressão possível, pois contraria
sobremaneira o senso comum, é incompatível com os padrões
da decência, distante sob todos os aspectos da forma de bem que
buscam, que seria mais provável elas reformarem do que cor-
romperem os que se sentissem inclinados a seguir seu exemplo.
De fato, se os forçarem a prestar contas por seus sentimentos
e a explicar as razões para duvidarem da verdadeira fé, sua ar-
gumentação será tão débil de modo a convencê-los da opinião

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138 MENTE EM CHAMAS

contrária. Eis o que alguém, certa feita, lhes disse prontamente:


“Se vocês continuarem a sustentar tal posição, acabarão me con-
vertendo para o outro lado”. E essa pessoa estava absolutamente
certa, pois quem não ficaria horrorizado somente com a idéia de
compartilhar sentimentos de pessoas tão questionáveis?
Assim, os que apenas simulam tal sentimento seriam
imprudentes em reprimir seus sentimentos naturais só para se
tornarem pessoas mais insensatas. Se eles se sentem inquietos
no íntimo, por não enxergarem mais claramente, não deveriam
tentar fingir o contrário. Não é motivo de vergonha admitir
esse fato. A única coisa vergonhosa é não ter nenhum senso
de vergonha. Pois não há evidência mais segura da fraqueza da
mente que falhar em reconhecer a miséria do homem sem Deus.
Nada trai mais agudamente o espírito que não desejar que as
promessas eternas sejam verdadeiras. Nada é mais covarde que
se apresentar desta forma diante de Deus. Assim, deixem as suas
impiedades para aqueles que são tão ingratos; permitam que se-
jam pelo menos pessoas decentes, se não querem ser cristãos.
Em resumo, deixe-os reconhecer que existem apenas duas clas-
ses de pessoas que podemos considerar racionais: as que servem
a Deus de todo o coração porque O encontraram, e as que O
buscam de todo o coração porque ainda não O encontraram.
Aqueles que passam pela vida sem conhecer ou buscar a
Deus, obviamente, sentem-se dotados de tão pouco valor que
não são dignos da preocupação das pessoas; e se valem de toda a
caridade da fé que eles desprezam, por estas não os desprezarem,
a ponto de deixá-los à mercê de sua própria estultícia. A verda-
deira fé nos coloca a obrigação de sempre ter consideração por
essas pessoas, enquanto viverem, enquanto forem capazes de re-
ceber graça e iluminação, e acreditar que em um breve tempo
elas possam ser preenchidas com uma fé maior do que a que
possuímos, e que nós, ao contrário, podemos ser atingidos pela
mesma cegueira que agora as aflige. Portanto, devemos fazer por
elas o que gostaríamos que fosse feito conosco se estivéssemos

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SOBRE A CONTRADITÓRIA NATUREZA HUMANA 139

em seus lugares. Nós apelamos a que tenham consideração por


si mesmas e, pelo menos, a dar alguns passos em direção à luz.
Que devotem algumas horas à leitura, ao invés de gastá-las em
outras coisas que lhes são infrutíferas. Entretanto, elas podem
abordar essa tarefa de maneira relutante, ou talvez encontrem
alguma coisa e, pelo menos, não estarão perdendo muito tempo.
Eu espero que aqueles que embarquem nessa pesquisa com real
sinceridade e um genuíno desejo de encontrar a verdade sejam
recompensados. Que possam ser convencidos pelas evidências
de uma religião tão divina, as quais eu aqui coletei, seguindo
mais ou menos esta ordem (427-194).

[Este tema também está tratado nos seguintes frases que


Pascal, igualmente, escreveu:]

140. Seja a alma mortal ou imortal. Esta questão deveria


fazer toda a diferença na ética, muito embora os filósofos tenham
elaborado seus sistemas quanto à ética independente desta ques-
tão. Eles debatem para ganhar tempo. Falam a respeito de Platão
para que as pessoas não se voltem ao cristianismo (612-219).

141. A última cena da peça é sangrenta, não importa


quanto o resto seja bom. Eles jogam terra sobre suas cabeças e
este é o fim para sempre (165-210).

142. Imagine um número de prisioneiros condenados à


morte, alguns dos quais são executados todos os dias à vista dos
demais. Os que permanecem vêem que a condição deles é igual
à de seus companheiros mortos e, olhando-se mutuamente com
desespero e dor, esperam sua vez chegar. Este é o quadro da con-
dição humana (434-199).

143. Antes de discutirmos a evidência para a fé cristã,


acho necessário enfatizar o quanto estão equivocados os que

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140 MENTE EM CHAMAS

vivem sem qualquer preocupação em buscar a verdade, quando


esta lhes é de tamanha importância, afetando-os de forma tão
íntima. De todos os seus erros, sem dúvida alguma este é o que
mais expõe sua estupidez e cegueira, e onde eles podem ser mais
facilmente confundidos pelo primeiro uso do senso comum e de
seus instintos naturais. É óbvio que esta vida nada mais é que
um instante de tempo, enquanto o estado de morte é eterno,
independente de sua natureza e, portanto, todas as nossas ações
e pensamentos devem seguir padrões diferentes, de acordo com
o estado dessa eternidade. Assim, é evidente que o único cami-
nho possível para um agir sábio é decidir nosso curso de ação à
luz dessa percepção, o que na verdade deveria ser a nossa supre-
ma preocupação.
Não existe nada mais claro e lógico que isto, ou seja, que
as pessoas estarão agindo de maneira racional se agirem assim.
Vamos então, a partir desta base, julgar aqueles que vivem des-
preocupados com o final da vida, apenas se deixando levar por
suas inclinações e prazeres, sem qualquer reflexão ou ansiedade.
Eles agem assim como se pudessem se livrar da eternidade ape-
nas não pensando nela, apenas se preocupando com a felicidade
do momento presente.
Mas a eternidade existe, e também a morte. Tais realida-
des nos ameaçam a cada instante e tornam inevitável o fato de
que um dia as enfrentaremos face a face, com a inescapável e
temível alternativa de ser eternamente condenado e miserável,
sem ter conhecimento de qual dessas duas formas de eternidade
devem nos encontrar para sempre.
Inegavelmente, as conseqüências são terríveis. As pessoas
arriscam uma eternidade de condenação, muito embora a des-
considerem como se não valesse a pena pensar nela, ou como
se não fosse possível, ainda que apresente fundamentos sólidos,
embora ocultos. Como eles não se importam em saber se é verda-
deira ou falsa, ou se as provas são fortes ou fracas, desconsideram
as provas que estão diante de seus olhos, recusando-se a olhar,

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SOBRE A CONTRADITÓRIA NATUREZA HUMANA 141

preferindo permanecer na mais completa ignorância. É como se,


deliberadamente, escolhessem cair nessa calamidade esperando
pelas provas após a morte, agindo de maneira aberta e orgulhosa.
Nós, os que pensamos a esse respeito com seriedade, não devería-
mos nos sentir horrorizados com tal comportamento?
Relaxar nesse estado de ignorância é um feito extraor-
dinário, e os que desperdiçam suas vidas dessa forma devem
compreender como tal comportamento é tolo e absurdo, pela
comprovação desse equívoco, de modo que se sintam embara-
çados ao verem a própria estupidez. Eis como os homens reagem
quando decidem viver sem buscar qualquer conhecimento so-
bre quem são ou procurar esclarecimento. Eles imediatamente
dizem: “Eu não sei” (428-195).

144. Quando um herdeiro encontra os documentos que


lhe dão direito à sua herança, ele diz que talvez sejam falsos e
não valem o esforço de uma olhadela? (823-217).

145. Certamente, a sensibilidade que o ser humano apre-


senta com respeito às coisas menos importantes e a insensibili-
dade que apresenta com relação às coisas mais importantes são
evidências de uma estranha desordem (632-198).

146. Ser tão insensível a ponto de desprezar assuntos de


importância, principalmente com respeito ao ponto mais vital
para nós, é absurdo (383-197).

147. As visões de Copérnico não precisam ser examinadas


mais detalhadamente. Porém, o que estamos discutindo afeta
toda a nossa vida, qual seja, saber se a alma é mortal ou imortal
(164-218).

148. Imagine que um prisioneiro no cárcere – desconhe-


cedor da sentença a que foi condenado e dispondo de uma hora

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142 MENTE EM CHAMAS

apenas para descobri-la – sabe que há tempo suficiente para que


sua sentença seja revogada. Não seria natural que gastasse aque-
la última hora jogando algum passatempo, indiferente quanto
à situação de sua sentença. Portanto, é totalmente contrário à
natureza que o homem seja indiferente quanto ao peso que as
coisas têm nas mãos de Deus. Não é somente o zelo dos que O
buscam que prova a existência de Deus, mas também a cegueira
dos que não O buscam (163-200).

149. Os que se sentem miseráveis por sua falta de fé nos


mostram que Deus não os iluminou. Mas os outros nos mostram
que há um Deus que os está cegando (596-202).

150. O ateísmo revela a força da mente, mas somente até


um certo ponto (157-225).

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Capítulo XII

A razão pode recomeçar


pelo reconhecimento do que
jamais pode ser conhecido

151. Infinidade. Inexistência. Nossa alma é lançada em


um corpo onde encontra número, tempo, dimensões. Ela ra-
ciocina sobre eles e os chama de naturais ou necessários, e não
pode acreditar em nada mais.
Acrescentar unidade ao infinito não lhe aumenta em
nada, ou seja, é o mesmo que acrescentar um metro em uma
medida infinita. O finito é eliminado na presença do infinito e
torna-se absolutamente nada. Assim é com respeito às nossas
mentes diante de Deus, ou com nossa justiça na presença da
justiça divina. Não há desproporção maior entre nossa justiça
e a de Deus que a existente entre a unidade e a infinidade. A
justiça de Deus deve ser tão ampla quanto Sua misericórdia.
Agora, a justiça mostrada aos condenados é menos impressio-
nante e chocante que a misericórdia com relação aos salvos.
Nós sabemos que o infinito existe sem conhecer sua natureza,
assim como sabemos que é falsa a afirmação de que os números
são finitos. Portanto, é verdade que há um número infinito, em-
bora não saibamos qual seja. É falso que seja par ou ímpar, por-
que pela adição de uma unidade a sua natureza não é alterada,
muito embora seja um número e todo número é par ou impar. É
verdade que isto se aplica a todos os números finitos. De igual

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144 MENTE EM CHAMAS

sorte, podemos ter certeza de que há um Deus sem conhecer


quem Ele é.
Conhecemos, portanto, a existência da natureza, do fini-
to, porque somos finitos e, como a natureza, somos constituídos
de uma extensão no espaço. Sabemos da existência do infinito
e não conhecemos sua natureza, porque também possui exten-
são, mas, ao contrário de nós, não tem limites. Porém, não o
conhecemos. Da mesma forma, podemos ter certeza de que há
um Deus, mesmo sem sabermos o que Ele é.
Não existe uma verdade substancial vendo que há tan-
tas coisas verdadeiras que não são verdade em si mesmas? Nós,
portanto, sabemos da existência e da natureza do finito porque
somos finitos e constituídos, igualmente, de extensão no espa-
ço. Sabemos da existência do infinito, mas não conhecemos sua
natureza, porque possui extensão, como nós, mas não os limites
que temos. Porém, não conhecemos a existência ou a nature-
za de Deus, porque Ele não possui extensão, tampouco limites.
Mas, pela fé sabemos que Ele existe, e por meio de Sua glória
viremos a conhecer a Sua natureza.
Já demonstrei que podemos conhecer perfeitamente bem
a existência de algo sem conhecer a sua natureza. Assim, vamos
falar agora conforme nossa própria perspectiva natural. Se exis-
te um Deus, Ele está infinitamente além de nossa compreensão,
uma vez que é indivisível e sem limites. Ele não mantém nenhu-
ma relação conosco. Somos, portanto, incapazes de saber tanto
o que Ele é quanto o que pode ser. Devido a este fato, quem
ousaria tentar responder à questão sobre Ele? Certamente, não
seríamos nós, pois não temos nenhuma relação com Ele.
Quem, então, pode acusar os cristãos de não serem capa-
zes de fornecer razões que justifiquem suas crenças, uma vez que
eles professam a fé em uma religião que não pode ser explicada
em bases racionais? Eles afirmam que é pura insensatez tentar
expor tal crença ao mundo. Reclamam que não pode ser pro-
vada. Se pudessem prová-la, eles não manteriam sua palavra.

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A RAZÃO PODE RECOMEÇAR PELO RECONHECIMENTO
145
DO QUE JAMAIS PODE SER CONHECIDO

É por não ter provas que eles mostram que não lhes falta bom
senso.
“Sim, porém mesmo que isso justifique os que apresentam
tal argumento e os absolva das críticas de expor isso sem dar
razões, isso não justifica os que o aceitam.”
Vamos, então, examinar esta questão e dizer: “Deus existe
ou não”. Mas, qual das duas alternativas nós devemos escolher?
A razão não pode decidir nada. O caos infinito nos separa. Ao
fim desta distância, uma moeda está sendo lançada ao alto e
logo cairá com a cara ou a coroa voltada para cima. Como você
irá apostar? A razão não pode determinar o que irá escolher,
tampouco a sua escolha pode ser defendida de forma racional.
Portanto, não acuse de falsidade os que escolheram a sua
opção simplesmente porque você não conhece como tal esco-
lha foi feita.
“Não”, talvez você argumente, “eu não os acuso pela es-
colha feita, mas por terem feito uma escolha. Pois tanto o que
escolhe cara quanto o que escolhe coroa são culpados do mes-
mo erro. Ambos estão equivocados. A coisa certa a fazer é não
apostar”.
“Sim”, talvez você argumente, “nós temos de apostar,
pois você não é um agente livre. Você tem o compromisso de
fazer uma escolha. Qual delas, então, escolherá? Vá em frente.
Já que você tem que escolher, permita-nos ver o que lhe é de
menor interesse, pois você pode perder duas coisas: a verdade
e o bem. E há duas coisas que você está colocando em risco:
a sua razão e a sua vontade; o seu conhecimento e a sua feli-
cidade. Por sua natureza, há duas coisas das quais você deve
escapar: o erro e a infelicidade. Já que você tem de fazer uma
escolha, a sua razão não é mais afrontada por escolher uma
opção ou outra. Este é um ponto esclarecido. Mas, e quanto
a sua felicidade? Vamos pesar as conseqüências presentes em
escolher que Deus existe. Vamos avaliar as duas situações. Se
você ganhar, leva tudo, mas se perder, não precisa abrir mão

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146 MENTE EM CHAMAS

de nada. Não vacile, então, mas faça uma aposta na opção de


que Ele existe”.
“Está bem. Sim, eu tenho de apostar, mas talvez eu esteja
arriscando muito.”
“Vá em frente, já que há chances iguais de ganhar ou
perder. Se fosse para ganhar duas vidas por uma, ainda poderia
apostar, mas se fossem três vidas a serem ganhas, você teria que
jogar (como é viciado em apostas mesmo). Seria tolice não ar-
riscar sua vida, quando se é obrigado a apostar e tendo a possibi-
lidade de ganhar três vidas em um jogo. Porém, na verdade, há
uma eternidade de vida e de felicidade em jogo. Se fosse assim, e
houvesse um número infinito de chances das quais apenas uma
seria para você, ainda estaria certo você arriscar uma para ga-
nhar duas. Mas, você estaria tomando a decisão errada se, ao ser
forçado a apostar, se recusasse a arriscar uma vida contra três,
em um jogo no qual, de um infinito número de possibilidades,
uma é para você, considerando-se que o prêmio fosse desfrutar
de vida e felicidade sem fim, pois nesse jogo você pode ganhar a
vida eterna, a felicidade eterna. Você tem uma chance de ven-
cer contra um número finito de chances de perder e o que você
está arriscando é quase nada. Sem dúvida, isso é determinante.
Onde existe infinidade e onde não há infinitas chances de per-
der contra a chance de vencer, por que hesitar? Certamente,
você deve arriscar tudo, então. E, portanto, já que é forçado a
jogar, você deve ser irracional se não arriscar sua vida por essa
possibilidade infinita de ganhar, que é tão provável de aconte-
cer quanto arriscar uma perda de pequena importância”.
“Com certeza, é desnecessário dizer que é duvidoso se
você irá vencer, que é certo que está assumindo um risco e
que a distância infinita que jaz entre a certeza do que você
está arriscando e a incerteza do que deve ganhar é equivalen-
te ao bem finito que, certamente, arriscamos contra o infi-
nito incerto. Mas não é bem assim, pois cada jogador arrisca
algo que é certo na esperança de ganhar algo que é incerto.

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A RAZÃO PODE RECOMEÇAR PELO RECONHECIMENTO
147
DO QUE JAMAIS PODE SER CONHECIDO

Ainda assim, ele arriscará uma certeza finita a fim de ganhar


uma incerteza finita sem ser irracional. Aqui não existe uma
vasta distância entre o risco certo e o ganho incerto. Isso não
é verdade. Há, de fato, uma distância infinita entre a certeza
de ganhar e a certeza de perder, mas a proporção entre a in-
certeza de ganhar e a certeza do que está sendo colocado em
risco diz respeito às chances de ganhar ou perder. Assim, se
há tantos ímpares em um lado quanto no outro, você está jo-
gando por chances iguais. Neste caso, a certeza do que você
está arriscando é igual à incerteza do que pode ganhar. De
modo algum isto é infinitamente distante daquilo. Assim, o
nosso argumento apresenta um peso mais importante quando
nós percebemos que os riscos são finitos em um jogo onde
há chances iguais de vencer ou perder, mas há um prêmio
infinito a ser ganho”.
“Se isso é evidente e os homens são capazes de ver qual-
quer verdade, isto é fato”.
“Eu admito e confesso isso, mas não há jeito de ver o que
o reverso das cartas mostram?”
“Sim, de fato há, na Escritura”.
“Sim, mas minhas mãos estão atadas e meus lábios sela-
dos. Estou sendo forçado a jogar e não sou livre, pois eles não
me deixarão ir. Eu fui feito de tal maneira que não consigo des-
crer. Então, o que espera que eu faça?”
“É verdade, mas pelo menos você pode perceber que, se
for incapaz de crer, isto não é devido à sua razão, mas devido
às suas emoções. Assim, não tente convencer a si mesmo por
meio da multiplicação das razões para a existência de Deus,
mas pelo controle de suas emoções. Você quer ter fé, mas
não sabe o caminho. Você deseja ser curado da descrença,
então pergunte pelo remédio. Aprenda com os exemplos dos
que, como você, estavam antes na escravidão, mas agora es-
tão preparados para arriscar suas próprias vidas. Estes são os
que conhecem o caminho que você gostaria de seguir e que

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148 MENTE EM CHAMAS

têm sido curados de uma doença da qual, igualmente, você


gostaria de obter a cura. Siga o caminho por onde eles come-
çaram. Eles simplesmente viveram conforme criam, bebendo
da água santa ou orando. Isto o inclinará, naturalmente, a
aceitar e a ter paz”.
“Mas, é disso que tenho receio”.
“Por quê? O que você tem a perder? A fim de lhe provar
que isso realmente funciona, as suas emoções serão controladas,
o que para você é uma grande pedra de tropeço. Agora, que
dano lhe acarretará a escolha desse curso de ação? Você será fiel,
honesto, humilde, agradecido, cheio de boas obras, um amigo
genuíno e verdadeiro. De fato, você não se verá mais chafurda-
do em meio a prazeres nocivos, tais como a lascívia e o desejo
de fama. Mas, você não terá nada mais? Eu lhe asseguro que irá
ganhar nesta vida, e que a cada passo que der ao longo deste
caminho você perceberá que apostou em algo certo e infinito
que não lhe custou nada”.
“Como estas palavras me enchem de alegria e prazer!”
Se este argumento o atrai e parece convincente você de-
veria saber que ele veio de um homem que se colocou de joelhos
antes de escrever e depois orou a este indivisível e infinito Ser,
a quem ele submeteu todo o seu próprio ser para que Ele possa
conceder a sua submissão para seu próprio bem e para glória
dEle, e que o poder seja dado a tal humildade (418-233).

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Capítulo XIII

Submissão:
O correto uso da razão

152. A submissão e o uso da razão fazem o verdadeiro cris-


tianismo (167-269).

153. Eu devo saber quando duvidar, quando afirmar que


algo é certo e quando me submeter. Qualquer um que age de
modo contrário não compreende a força da razão. Há alguns
que violam todos estes três princípios, seja afirmando que tudo
pode ser provado, porque nada sabem sobre provas, seja duvi-
dando de tudo porque não sabem quando devem submeter-se,
seja submetendo-se sempre porque não sabem quando devem
usar seu julgamento.
Cético, matemático, cristão; dúvida, certeza e submissão
(170-268).

154. A humanidade sofre de dois excessos: por excluir a


razão e por viver exclusivamente pela razão (183-253).

155. Há poucos cristãos reais, mesmo com respeito à fé.


Há muitos que crêem, mas o fazem pela superstição. Há muitos
outros que não crêem, mas porque são libertinos. Há uns pou-
cos no meio. Eu não incluo nesta lista os que vivem uma vida

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150 MENTE EM CHAMAS

verdadeiramente devota, nem todos os que crêem pela intuição


do coração (363-256).

156. Se submetermos todas as coisas ao teste da razão, a


nossa fé será deixada de lado, como algo nada misterioso ou so-
brenatural. Se chocar os princípios da razão, nossa fé será con-
siderada absurda e ridícula (173-273).

157. Santo Agostinho: “A razão jamais se submeteria a


não ser que considerasse haver ocasiões em que deve submeter-
se” [Cartas, 122.5]. Portanto, é certo que a razão deve submeter-
se quando reconhecer que deve assim agir (174-270).

158. Não há nada tão compatível com a razão do que a


rejeição da razão [como derradeira explicação] (182-272).

159. O último passo que a razão deve dar é reconhecer


que existe um infinito número de coisas além dela. É simples-
mente medíocre se ela não for distante o suficiente para com-
preender esta realidade. Se as coisas naturais estão além dela, o
que podemos dizer do sobrenatural? (188-267).

160. Uma das coisas a confundir os condenados será o


reconhecimento de que são condenados por sua própria razão,
pela qual condenam a fé cristã (176-261).

161. De fato, a fé nos diz o que os sentidos não conse-


guem, mas isso não contraria suas descobertas. Simplesmente,
os transcendem, sem contrariá-los (185-265).

162. Há duas maneiras de persuadir as pessoas sobre as


verdades de nossa fé: a primeira é mediante o poder da razão, e
a segunda é por meio da autoridade carismática de quem fala.
Claro que não estamos utilizando esta última, mas a primeira.

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SUBMISSÃO: O CORRETO USO DA RAZÃO 151

Assim, não dizemos: “Você tem que acreditar porque a Escritura


diz que é divino”, mas dizemos que isto deve ser crido por esta
ou aquela razão, muito embora existam argumentos fracos, por-
que a razão pode enveredar por qualquer direção (820-561).

163. Santo Agostinho disse: “Eu jamais seria um cristão,


exceto pelos milagres” (169-812).

164. Não teria sido pecado não acreditar em Jesus sem os


milagres. “Olhai para mim, e vede que não minto na vossa cara”
(Jó 6.28 ARA) (184-811).

165. Quando vejo a cegueira e a miséria do ser humano,


quando volto meus olhos para o universo em toda a sua estupidez
e para o homem sem luz, abandonado à mercê de seus próprios
artifícios, sem saber quem o colocou aqui, o que veio fazer neste
mundo ou o que acontecerá com ele após sua morte, incapaz,
portanto, de saber coisa alguma, sou tomado pelo medo. Somos
como um homem que é carregado enquanto dorme e deixado
em alguma ilha deserta e amedrontadora. Lá, ele desperta sem
saber onde está e sem qualquer possibilidade de fuga. Fico sur-
preso pelo fato de as pessoas não serem tomadas pelo desespero
ao viver nesta condição. Olho para meus semelhantes em derre-
dor e me indago: “Estão eles melhor informados que eu?” Estou
bem certo de que não, e que essas criaturas miseráveis e perdi-
das olham ao redor e se apegam a alguns objetos atraentes dos
quais se tornam escravos. Mas eu não posso formar tais cone-
xões, e, considerando como as aparências fortemente sugerem
que há outras coisas além das que consigo ver, tenho tentado
descobrir se Deus deixou alguns traços de Si mesmo. Observo
um sem número de crenças religiosas em conflito entre si: com
uma exceção, todas as demais são falsas. Cada uma delas deseja
reivindicar sua própria autoridade, ameaçando os descrentes.
Qualquer um pode se auto-intitular profeta, mas eu vejo a fé

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152 MENTE EM CHAMAS

cristã e descubro que suas profecias não são algo que qualquer
um possa cumprir (198-693).

166. O silêncio eterno dos espaços infinitos [do universo]


enche-me de pavor (201-206).

167. Por que foram estabelecidos limites ao meu conhe-


cimento, à minha altura, até mesmo à minha vida, para que eu
viva cem anos ao invés de mil? Qual foi a razão para a criação
ter sido feita assim, escolhendo este meio em detrimento de
outro, dentre todo o infinito, quando não havia razão aparente
para escolher um e não outro, já que nenhum é mais atraente
que o outro? (194-208) [Veja o número 54].

168. Desproporção do homem. Isto vai muito além do que


nosso conhecimento instintivo pode nos levar. Se for falso, en-
tão, não existe verdade no homem, mas se for verdadeiro, será
motivo de muita humilhação, pois ele é obrigado a degradar-se
de um jeito ou de outro.
Uma vez que o homem não pode existir sem acreditar
neste conhecimento, antes de se lançar a uma pesquisa mais
profunda sobre a natureza, quero que ele considere isso seria-
mente e em descanso. Deve também olhar para si e, então, jul-
gar se há qualquer proporção entre ele e a natureza.
Que o homem contemple toda a natureza e sua plenitude e
altiva grandiosidade; que desvie o olhar dos objetos rasteiros que
o cercam e, ao invés disso, observe a deslumbrante luz estabeleci-
da como uma eterna lâmpada a iluminar o universo. Então, que
veja a terra como um simples ponto em comparação com a vasta
órbita descrita pelo sol. Deixe-o ponderar sobre o fato de que esta
vasta órbita em si mesma é uma minúscula partícula comparada
com a descrita pelas estrelas em sua jornada pelo universo.
Se nossa visão não for além deste ponto, entretanto, dei-
xemos que a nossa imaginação prossiga. Tornar-se-á enfadonho

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SUBMISSÃO: O CORRETO USO DA RAZÃO 153

conceber as coisas antes que a natureza esteja cansada de pro-


duzi-las, pois todo o mundo visível é um imperceptível átomo
na imensidão da natureza. Nenhuma idéia pode sequer chegar
perto de compreendê-la. Não é positivo tentar aumentar nossas
noções para além do espaço inimaginável, mas podemos con-
ceber meros átomos em comparação com a realidade, pois a re-
alidade é uma esfera infinita cujo centro está em todo lugar e
cuja circunferência está em lugar nenhum. Em resumo, esta é
a maior indicação da onipotência de Deus, pois a imaginação
humana perde-se apenas em pensar nela.
Ao retornar a si, o homem deve considerar a realidade
das coisas com as quais é comparado. Que considere a si mesmo
perdido neste remoto canto do universo e de sua minúscula cela
onde habita, dentro do universo, examine o real valor da terra,
seus reinos, as cidades e o próprio homem, pois o que é o ho-
mem quando se encontra face a face com tamanha infinidade?
Porém, para lhe oferecer um outro prodígio, tão maravi-
lhoso quanto esse, eu lhe pediria que examinasse as coisas mais
diminutas que conhece. Um pequeno ácaro lhe mostrará em
seu minúsculo corpo partes incomparavelmente mais minúscu-
las, pernas com articulações, veias no interior das pernas, san-
gue fluindo dentro das veias, corpúsculos e plasma no sangue,
água no plasma e gases. Que o homem divida ainda mais estes
elementos utilizando à exaustão o poder de sua imaginação e
que o nível mais elementar que conseguir chegar seja o assunto
de nosso discurso. Ele pode pensar que chegou ao fim do mun-
do microscópico existente na natureza, mas eu lhe mostrarei a
grandeza infinita da natureza além. Eu abrirei diante dele um
novo abismo. Eu quero descrever-lhe não apenas o universo vi-
sível, mas toda a inconcebível imensidão da natureza contida
neste minúsculo átomo. Que ele possa ver que há infinitos uni-
versos, cada qual com seu próprio firmamento, seus planetas,
sua terra, nas mesmas proporções que no mundo visível, no rei-
no dos animais e, finalmente, nos ácaros, nos quais encontrará

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154 MENTE EM CHAMAS

os mesmos resultados que no primeiro. Ao encontrar a mesma


coisa repetidas vezes sem fim ou repouso, ele se sentirá perdido
em meio a tantas maravilhas, tanto em amplitude macroscópica
quanto em escala microscópica.
Quem não se maravilha com o fato de nosso corpo huma-
no, que um momento atrás parecia perdido no universo, imper-
ceptível na imensidão do todo, surgir agora como um colosso
comparado com a insignificância que jaz além da nossa compre-
ensão? Qualquer um que refletir sobre si mesmo desta forma fi-
cará aterrorizado com a própria visão. Ao contemplar a própria
massa concedida a ele pela natureza, que o suporta entre estes
dois abismos da infinidade e da insignificância, ele estremece
diante de tais maravilhas. Eu imagino que à medida que sua
curiosidade mudar para assombro, ele passará a contemplá-las
em silêncio ao invés de ousar investigá-las com presunção.
Pois, afinal, o que é o homem na criação? Ele não é um
simples zero comparado com o infinito, tudo comparado com o
nada, um meio termo entre o zero e o tudo, totalmente distante
da compreensão de qualquer um destes extremos? Quem pode
acompanhar estes processos maravilhosos? Somente o Autor
destas maravilhas pode compreendê-las, e ninguém mais.
Ao fracassarem na percepção desses extremos, os homens
obstinadamente se lançam à investigação da natureza como se
houvesse alguma proporção entre si e ela. Estranho dizer-se,
mas eles têm procurado apreender os princípios das coisas e,
então, prosseguir na compreensão do todo. Porém, a presunção
deles é tão infinita quanto o objeto que buscam. Pois é certo que
não se pode embarcar nessa busca sem possuir uma presunção
ou capacidade infinita – de fato, tão infinita quanto a própria
natureza.
Quando sabemos melhor, começamos a compreender que
desde que a natureza tem estampadas a sua imagem e a de seu
Criador em todas as coisas, esta infinidade é duplicada. Portan-
to, vemos que todas as ciências são infinitas quanto à abran-

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SUBMISSÃO: O CORRETO USO DA RAZÃO 155

gência de suas pesquisas. Pois quem duvida que a matemática,


por exemplo, possui uma infinidade de infinitas proposições a
demonstrar? Igualmente infinita é a multiplicidade e a sofis-
ticação de seus princípios, pois qualquer um pode ver que os
supostamente derradeiros não estão sozinhos, mas conectados
em uma interdependência com os demais, jamais permitindo
chegar ao fim. Tudo o que podemos fazer é lidar com essas coi-
sas que parecem derradeiras para a nossa razão como em coisas
materiais quando denominamos um ponto indivisível, quando
nossos sentidos não conseguem ir além, embora naturalmente
seja passível de infinitas subdivisões além daquele ponto.
Naturalmente, cremos ter mais capacidade de alcançar
o centro das coisas do que abraçar a sua circunferência. Des-
tes dois extremos da ciência, a grandeza é muito mais óbvia
e, assim, apenas algumas poucas pessoas têm reivindicado ser
conhecedoras de tudo. “Eu irei falar sobre todas as coisas”, De-
mócrates costumava afirmar.
Porém, infinitas miudezas são ainda menos perceptíveis.
Os filósofos têm afirmado muito mais prontamente terem alcan-
çado as coisas menores e é aí que todos se equivocaram. Esta é
a origem de títulos tais como Of the Principles of Things (Sobre
os Princípios das Coisas), Of the Principles of Philosophy (Sobre os
Princípios da Filosofia) [René Descartes, 1644] e similares, que
na verdade são tão pretensiosos, embora menos em aparência,
quanto este mais ostensivo: Of All That Can be Known (Sobre
Tudo o Que Pode Ser Conhecido) [Picco della Mirandola, 1486].
Naturalmente, pensamos que somos muito mais capazes
de compreender o centro que a circunferência, pois a expan-
são visível do mundo é nitidamente maior que nós. Porém, já
que, em contrapartida, somos maiores que as coisas pequenas,
pensamos que podemos dominá-las com mais facilidade, muito
embora não demande menos capacidade para alcançar o nada
que o todo. Em qualquer caso, é necessária uma capacidade infi-
nita, e me parece que qualquer um que compreenda o princípio

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156 MENTE EM CHAMAS

elementar das coisas deve encontrar êxito também no conheci-


mento do infinito. Pois um depende do outro, e um conduz ao
outro. Esses extremos se casam e se combinam indo em direções
opostas e se encontram em Deus, e somente nEle.
Deste modo, vamos compreender as nossas limitações.
Somos alguma coisa e não somos tudo. Tal existência que te-
mos nos oculta o conhecimento dos princípios elementares,
cuja origem surge do nada, e a insignificância de nosso ser es-
conde o infinito de nossa vista. A nossa inteligência ocupa a
mesma posição na ordem do intelecto que o nosso corpo dentro
de toda a extensão da natureza. Estamos confinados em todos
os sentidos. Esta condição intermediária entre as duas extremi-
dades figura em todas as nossas faculdades. Nossos sentidos não
distinguem nada que é extremo; o barulho elevado nos atordoa,
a luz em excesso nos ofusca; quando estamos muito próximos ou
muito distantes, a nossa visão não é adequada. Igualmente, um
argumento é obscurecido por ser muito longo ou muito curto.
A verdade em excesso nos confunde (conheço alguns que não
conseguem entender que o resultado de 0 menos 4 é 0). Os
princípios elementares são muito óbvios para nós. O prazer em
excesso é enfadonho; harmonia em excesso na música é desto-
ante. A gentileza excessiva nos incomoda, pois nos sentimos na
obrigação de retribuí-la mais tarde.
“A gentileza é bem-vinda até ao ponto em que seja possí-
vel retribuí-la. Além disso, a gratidão transforma-se em ressen-
timento”.
Não sentimos o calor extremo ou o frio extremo. As qua-
lidades em excesso nos são hostis e não podem ser percebidas.
Não mais as sentimos, mas, ao contrário, sofremos com elas.
Assim, a juventude excessiva ou a idade avançada prejudicam
o pensamento. Igualmente, sofremos com o excesso de conhe-
cimento ou a falta dele. Em uma palavra, os extremos parecem
não existir para nós e vice-versa. Escapamos deles ou eles nos
escapam.

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SUBMISSÃO: O CORRETO USO DA RAZÃO 157

Esta é a nossa verdadeira condição, nos incapacitando


de certo conhecimento ou da absoluta ignorância. Flutuamos
sobre uma vasta imensidão, continuamente incerta, sempre à
deriva, sendo soprados para lá e para cá. Sempre que supomos
ter um ponto fixo ao qual podemos nos apegar, ele muda e nos
deixa para trás. Ao segui-lo, ele ilude nossa compreensão, nos
escapa de modo sorrateiro, distanciando-se cada vez mais. Nada
nos resta. Esta é a nossa condição natural, ainda que seja tão
contrária às nossas inclinações. Possuímos um desejo ardente de
encontrar um solo firme, alguma base final e suprema na qual
podemos edificar uma torre que se eleva até o infinito. No en-
tanto, toda a nossa fundação entra em colapso e a terra se preci-
pita na profundeza do abismo. Portanto, não vamos correr atrás
da segurança ou da estabilidade. Nossa razão será sempre enga-
nada pela inconsistência das aparências. Nada pode determinar
o finito entre dois infinitos que o encerram e o evadem.
Uma vez que compreendamos isso claramente, creio que
devemos permanecer em repouso no estado a nós designado.
O estado intermediário, que é nossa sina, está sempre distante
dos extremos. Assim, que importância há se alguém possui uma
compreensão um pouco mais clara das coisas? Se esse alguém
tiver tal compreensão, ainda não estará infinitamente distante
do objetivo final? Não é a extensão de nossa vida igualmente
infinitesimal se comparada à eternidade? Que diferença faz dez
anos a mais de vida? Diante dessas infinidades, todos os finitos
são iguais, e não vejo razão para aplicar nossa imaginação a um
mais que a outro. Simplesmente, nos compararmos com o finito
é algo doloroso.
Se o homem refletisse sobre isso, ele veria quão incapaz é
de ir além. Como poderia uma parte conhecer o todo? Embora,
talvez, ele aspire conhecer, pelo menos, as partes com as quais
tenha alguma proporção. Porém, todas as partes do universo são
tão interligadas que eu creio ser impossível conhecer uma sem
conhecer a outra ou, de fato, sem conhecer o todo.

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158 MENTE EM CHAMAS

Há, por exemplo, um relacionamento entre o homem e


tudo o que ele conhece. Ele necessita de espaço para contê-lo,
tempo para existir, movimento a fim de viver, elementos para
sua constituição, aquecimento e comida para seu desenvolvi-
mento, ar para respirar. Ele vê a luz, sente os corpos. Em resumo,
todas as coisas estão relacionadas a ele. Para se compreender o
homem, portanto, é preciso saber onde ele precisa de ar para
viver, e para compreender o ar deve-se compreender como o ar
está relacionado com a vida do homem, e assim por diante.
A chama não pode existir sem o ar. Assim, para conhe-
cê-la é necessário compreender o ar. Portanto, todas as coisas
são vistas tanto como causa quanto como efeito, dependente
e sustentador, mediador e mediado, mantidos juntos por uma
corrente, uma ligação que é natural, ainda que imperceptível,
unindo as mais distantes e diversas coisas. Assim, eu considero
igualmente impossível conhecer as partes sem conhecer o todo
ou conhecer o todo sem conhecer as partes individuais.
A eternidade das coisas em si mesmas ou em Deus deve
continuar a maravilhar a nossa breve existência. A constante
imobilidade da natureza, comparada com as contínuas mudan-
ças que nos assaltam, deve produzir o mesmo efeito.
O que nos torna incapazes de conhecer as coisas de ma-
neira absoluta é que elas são simples em essência, enquanto nós
somos constituídos por duas naturezas contrárias de diferentes
tipos, corpo e alma, pois é impossível que a parte de nós que ra-
ciocina possa ser qualquer coisa exceto espiritual, e mesmo se for
afirmado que somos apenas corporais, isso obstruiria ainda mais a
possibilidade de nosso conhecimento sobre as coisas, já que nada
é mais inconcebível que a idéia da matéria se auto-conhecer.
Possivelmente, não podemos sequer saber como seria esse auto-
conhecimento da matéria. Assim, se somos apenas matéria não
nos é possível ter conhecimento sobre coisa alguma; e se formos
constituídos de mente e matéria, não podemos conhecer perfei-
tamente as coisas que são simples, seja espiritual seja corporal.

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SUBMISSÃO: O CORRETO USO DA RAZÃO 159

Eis porque, praticamente, todos os filósofos confundem


as idéias das coisas, falando sobre coisas materiais em ter-
mos do espírito, e de coisas espirituais em termos da matéria.
Pois eles confiantemente afirmam que os corpos apresentam
uma tendência à queda, ou que aspiram ao centro, ou que
evitam a destruição, que evitam o vácuo, ou ainda que pos-
suem inclinações, simpatias, antipatias, todos pertencentes
ao reino espiritual. Mas, quando eles falam sobre mentes,
eles as consideram como em um lugar, e lhes atribuem mo-
vimento de um lugar ao outro, que são coisas pertinentes
apenas a corpos. Ao invés de receber idéias destas coisas em
sua pureza, nós as tingimos com nossas próprias qualidades e
impregnamos nosso ser composto em todas as coisas simples
sobre as quais pensamos.
Quem não pensaria, ao nos ver compondo todas as coisas
de mente e matéria, que tal mistura nos é perfeitamente inteli-
gível? Ainda assim, isto é o que menos compreendemos. O ho-
mem se considera a maior maravilha da natureza, pois ele não
consegue conceber o que é o corpo, o que é a mente, e muito
menos ainda como o corpo pode estar unido a uma alma. Esta
é a sua maior dificuldade e, ainda assim, é o seu próprio ser. “A
maneira como as mentes estão relacionadas com os corpos está
muito além da compreensão humana, muito embora seja exa-
tamente isso o que o homem é” [Agostinho, A Cidade de Deus,
21.10] (199-72).

169. O ser humano é simplesmente um junco, o elemento


mais fraco na natureza, mas ele é um junco pensante. Não há
necessidade de que todo o universo o esmague; um vapor, uma
gota de água é suficiente para matá-lo. Mas, ainda que o univer-
so lhe tirasse a vida, o homem ainda seria mais nobre que seu
destruidor, porque ele tem consciência de que está morrendo,
sabe que o universo possui a vantagem sobre ele. O universo,
entretanto, não sabe nada disso.

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160 MENTE EM CHAMAS

Assim sendo, toda a nossa dignidade consiste no pensa-


mento. É do ato de pensar que devemos depender para a nossa
recuperação, não no tempo e no espaço, os quais podemos nun-
ca preencher. Vamos, então, nos esforçar a pensar corretamen-
te; que é o princípio básico da vida moral (200-347).

170. Anime-se! Não é de si mesmo que deve esperar tal


coisa, mas, pelo contrário, você deve esperar isso ao não esperar
nada de si (202-517).

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PARTE TRÊS

A INICIATIVA DIVINA

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Capítulo XIV

A transição do
conhecimento humano para
o conhecimento de Deus

171. Jesus Cristo é a única prova do Deus vivo. Só pode-


mos conhecer a Deus por meio de Jesus. Sem a Sua mediação
não há comunicação com Deus. Porém, por meio de Jesus po-
demos conhecer a Deus. Todos os que reivindicam conhecer a
Deus e afirmam ter provado a Sua existência sem Jesus Cristo
o fazem de forma ineficiente. Mas, para provar Cristo, temos as
profecias, que são provas plenamente palpáveis e confiáveis, as
quais, ao serem cumpridas e comprovadas pelos eventos, mos-
tram que essas verdades são certas. Portanto, elas provam a di-
vindade de Jesus. Somente nEle e por Seu intermédio podemos
conhecer a Deus. Separados dEle, sem a Escritura, sem o pecado
original, sem o necessário Mediador, que foi prometido e veio, é
impossível provar de forma absoluta que Deus existe, ou ensinar
doutrina e moralidade sólidas. Mas, em Jesus e por meio dEle,
podemos provar a existência de Deus e ensinar tanto a doutri-
na quanto a moralidade. Portanto, Jesus Cristo é o verdadeiro
Deus da humanidade.
Ao mesmo tempo, contudo, temos consciência de nossa
própria miséria, pois esse Deus não é outro senão o único ca-
paz de nos resgatar desta nossa condição. Assim, só podemos
conhecer a Deus de forma apropriada pelo reconhecimento de

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164 MENTE EM CHAMAS

nossas próprias iniqüidades. Por conseguinte, os que conhecem


a Deus sem reconhecer a sua condição pecaminosa não têm glo-
rificado a Deus, mas a si próprios.
“Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conhe-
ceu por meio da sabedoria humana, agradou a Deus salvar aque-
les que crêem por meio da loucura da pregação” (1 Coríntios
1.21) (189-547).

172. Os homens blasfemam na ignorância. Para o cristão,


a fé consiste de dois pontos, os quais é igualmente importante
conhecer, porém o desconhecimento de ambos é, de igual sorte,
perigoso. Por Sua misericórdia é que Deus nos tem concedido
evidência de ambos. Mesmo assim, os homens aproveitarão a
oportunidade para presumir que um desses pontos não é ver-
dadeiro, a partir da evidência que os deveria levar a concluir a
realidade do outro. No passado, homens sábios que declararam
haver somente um Deus sofreram intensa perseguição: os judeus
eram odiados e os cristãos ainda mais. Eles viram por meio da luz
da razão que, se há uma religião verdadeira sobre a face da terra,
a conduta de toda a moralidade deve focar sobre ela. O modo
como as coisas são realizadas deveria ser direcionado visando
ao estabelecimento da fé, tornando-a soberana. Os homens de-
veriam sentir como seu íntimo reage ao ensino. Em resumo, a
natureza do homem, em particular, e toda a conduta do mundo,
em geral, deveriam ser o objetivo e o foco do conhecimento.
Porém, devido a isso, eles não perdem a oportunidade de
ridicularizar a fé cristã, simplesmente porque pouco ou nada sa-
bem sobre ela. Os tais acreditam que a fé consiste apenas na
adoração a Deus, que é considerado como grande, poderoso e
eterno – o que, falando adequadamente, é deísmo, um credo
tão remoto da fé cristã quanto o ateísmo. Desse modo, eles con-
cluem que essa fé não é verdadeira, porque presumem de muitas
formas que Deus não Se revelou aos homens tão claramente
quanto poderia ter feito. De qualquer forma, que concluam o

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A TRANSIÇÃO DO CONHECIMENTO HUMANO
165
PARA O CONHECIMENTO DE DEUS

que bem entenderem contra o deísmo, porém as suas conclusões


não são aplicáveis ao cristianismo, que consiste, essencialmen-
te, do mistério do Redentor, que uniu duas naturezas em Si, a
humana e a divina, para salvar a humanidade da corrupção do
pecado, reconciliando-nos com Deus, por meio de Sua divina
pessoa.
A fé cristã ensina aos homens estas duas verdades: Há um
Deus capaz de ser conhecido pelos homens, mas a corrompida
natureza humana os torna indignos dEle. Para os homens, é de
igual importância conhecer os dois pontos. Contudo, é igual-
mente perigoso para o homem conhecer a Deus sem reconhecer
a sua própria condição pecaminosa, como também seria conhe-
cer esta sua condição de pecado sem conhecer o Redentor que
pode curá-lo. Conhecer apenas um destes aspectos pode con-
duzir tanto à arrogância dos filósofos, que conhecem a Deus,
mas não reconhecem a própria condição pecaminosa, quanto
ao desespero dos ateístas, que reconhecem o estado miserável
em que vivem sem, contudo, conhecerem o Redentor.
Portanto, é necessário ao homem ter igual conhecimento
sobre estes dois temas, assim como é necessária a misericórdia
de Deus para revelá-los a nós. A fé cristã abrange ambos.
Assim, vamos continuar examinando a condição do mun-
do e ver se todas as coisas não tendem a estabelecer estas duas
doutrinas principais dessa fé. Jesus Cristo é o objeto de todas as
coisas, o centro para o qual todas as coisas convergem. Porém,
aqueles que se extraviam o fazem apenas por não enxergarem
uma das duas doutrinas, pois é perfeitamente possível conhecer
a Deus, mas não reconhecer a nossa desprezível condição, ou re-
conhecê-la, mas não conhecer a Deus. Não é possível conhecer
a Cristo sem conhecer tanto a Deus quanto a nossa miserável
condição.
Eis porque não estou tentando provar naturalmente a
existência de Deus, ou mesmo a Trindade, tampouco a imorta-
lidade da alma ou qualquer coisa do gênero. E assim faço não

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166 MENTE EM CHAMAS

por me achar incompetente para encontrar argumentos natu-


rais que convencerão obstinados ateus, mas porque tal conhe-
cimento, sem Cristo, é inútil e vazio. Mesmo se alguém fosse
convencido de que as proporções entre números são imateriais,
verdades eternas, dependentes de uma verdade fundamental,
na qual subsistem e a quem denominam Deus, eu ainda não
pensaria que esse alguém teria feito qualquer progresso com res-
peito a sua salvação.
O Deus dos cristãos não consiste apenas em um Deus que
é o Autor das verdades matemáticas e da ordem dos elementos.
Esta é a noção dos bárbaros e dos epicuristas. Ele não é apenas
um Deus que estende o Seu providente cuidado sobre a vida e
a propriedade de tal modo que aos homens seja concedida uma
vida feliz se eles O adorarem. Esta é a atitude dos judeus. No
entanto, o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó é um Deus de
amor e de consolação. É um Deus que preenche a alma e o cora-
ção daqueles a quem possui. É um Deus que os faz intimamente
conscientes de sua condição miserável, enquanto lhes revela
Sua infinita misericórdia. É um Deus que Se une a eles no mais
profundo do ser. Ele é o Único que os preenche com humildade,
alegria, confiança e amor. De fato, Ele é o Único que os torna
incapazes de ter qualquer outro objeto, exceto Ele próprio.
Todos os que buscam a Deus separadamente de Cristo
e que não avançam além de observações da natureza, ou não
encontram luz que os satisfaça ou não descobrem nenhum ca-
minho de conhecimento e serviço a Deus sem um mediador, a
menos que sejam seduzidos pelo ateísmo ou pelo deísmo. Am-
bos são igualmente incompatíveis com a fé cristã.
Sem Cristo, o mundo não sobreviveria, pois seria destru-
ído ou se tornaria um tipo de inferno. Se o mundo existisse a
fim de ensinar aos homens sobre Deus, Sua divindade brilharia
intensamente em todo lugar de tal modo que não poderia ser
negado. Mas como ele existe apenas por meio de Cristo, e para
Ele, para ensinar aos homens a respeito de sua iniqüidade e ne-

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A TRANSIÇÃO DO CONHECIMENTO HUMANO
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PARA O CONHECIMENTO DE DEUS

cessidade de redenção, todas as coisas nesta revelação resplan-


decem com provas destas duas verdades.
O que pode ser visto na terra não indica a total ausência
de Deus, tampouco Sua manifesta presença, mas, ao invés disso,
a presença de um Deus oculto. Todas as coisas revelam esta mar-
ca. Assim, o único ser que conhece a natureza deve conhecê-la
a fim de ser miserável? O único a conhecê-la deve ser o único
fadado a ser infeliz? Ele não é forçado a não ver nada, nem a ver
o suficiente para presumir que possui Deus, mas deve ver o su-
ficiente para reconhecer que está perdido, sem Deus, pois, para
saber que alguém perdeu algo, deve-se ver e, ainda assim, não
ver. Tal é a nossa condição natural. Seja qual for a direção que
ele adote, eu não o deixarei em paz (449-556).

173. As provas metafísicas para a existência de Deus en-


contram-se tão distantes do raciocínio humano e são tão com-
plexas que provocam uma impressão geral nas pessoas e, mesmo
se ajudassem, isto ocorreria apenas durante o período de tempo
em que as pessoas estivessem observando a demonstração. Uma
hora mais tarde, elas sentiriam receio de terem cometido um
erro. Assim, “o que elas ganharam pela curiosidade, perderam
pelo orgulho” [Agostinho, Sermões, 141].
Este é o resultado de conhecer a Deus sem Jesus Cristo.
Em outras palavras, é a comunicação, sem um mediador, com
um Deus supostamente passível de ser conhecido sem um me-
diador. Os que chegam ao conhecimento de Deus por inter-
médio de um mediador conhecem a sua própria condição vil
(190-543).

174. Não apenas é impossível conhecer a Deus sem Jesus


Cristo, como também é inútil. As pessoas são atraídas a Ele, não
repelidas. Elas não são humilhadas, mas como se diz: “Quanto me-
lhor alguém é, pior se torna se atribui sua excelência a si mesmo”
[Bernard de Clairvaux, O Cântico dos Cânticos, 84] (191-549).

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168 MENTE EM CHAMAS

175. Obter conhecimento sobre Deus sem reconhecer


nossa própria condição miserável só nos leva ao orgulho. Reco-
nhecer a nossa condição miserável sem conhecer a Deus leva-
nos apenas ao desespero. O conhecimento de Cristo nos forne-
ce o equilíbrio porque Ele nos mostra tanto Deus quanto a nossa
miserabilidade (192-527).

176. Todo o universo ensina ao homem que ele é corrupto


ou redimido. Todas as coisas ao redor mostram-lhe sua grandeza
ou sua miserabilidade. A separação de Deus pode ser vista nos
pagãos; a proteção divina está evidenciada na história dos ju-
deus (442-560b).

177. Em todas as coisas ao nosso derredor podemos ver


a nossa vil condição natural e a misericórdia de Deus, assim
como a completa impotência do homem sem Deus e o poder do
homem com Deus (468-562).

178. Maravilha-me a audácia com a qual algumas pesso-


as presumem falar a respeito de Deus. Ao apresentarem suas
evidências aos descrentes, normalmente o primeiro capítulo é
dedicado a provar a existência de Deus a partir das obras da
natureza. Eu não ficaria surpreso com este projeto se estivessem
dirigindo-se aos crentes, pois os que possuem a fé viva em seus
corações podem claramente ver, de imediato, que todas as coi-
sas existentes são resultado da obra de Deus, a quem cultuam.
Entretanto, para aqueles nos quais essa luz interior encontra-se
extinta e que estamos procurando reacender, o orgulho da fé e
da graça, tais pessoas vêem a natureza por essa luz e, portanto,
apenas enxergam obscuridade e sombras. A estes eu digo que
têm apenas de olhar em volta para ver Deus claramente reve-
lado nas mínimas coisas. Não há necessidade de lhes fornecer
outra evidência desta grandiosa marca do que o curso da lua e
dos demais planetas. Se este argumento lhes fosse apresentado,

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A TRANSIÇÃO DO CONHECIMENTO HUMANO
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PARA O CONHECIMENTO DE DEUS

não seria surpresa se reagissem dizendo que as provas de nossa


religião são de fato débeis, e a razão e a oportunidade me dizem
que nada é mais provável de provocar-lhes o desdém.
Porém, não é isto o que a Bíblia afirma, com seu conhe-
cimento mais profundo sobre as coisas de Deus. Pelo contrário,
ela fala de Deus como um Deus escondido que, devido à corrup-
ção da natureza, abandonou o homem à mercê de sua própria
cegueira. O homem só pode escapar desta situação por meio de
Jesus Cristo, pois sem Ele toda a comunicação com Deus está
bloqueada. “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai.
Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai, e ninguém conhece
o Pai a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser revelar”
(Mt 11.27).
Isto é o que a Escritura nos revela, quando afirma em mui-
tos lugares que os que buscam a Deus O encontrarão. Esta não
é a luz natural do sol do meio-dia. Não estamos argüindo que
os que procuram pelo sol ao meio-dia ou pela água no mar os
encontrarão e que, da mesma forma, isso ocorrerá com a evi-
dência de Deus na natureza. Absolutamente, ao contrário, le-
mos: “Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde, ó Deus e
Salvador de Israel” (Is 45.15) (181-242).

179. Se a tentativa de provar a existência de Deus a partir


da natureza for um sinal de fraqueza, não despreze a Escritura.
Se, ao contrário, o reconhecimento dessas contradições for um
sinal de força, então, respeite a Bíblia por isso (466-428).

180. É notável o fato de que nenhum escritor dentro do


cânon jamais utilizou a natureza para provar a existência de
Deus. Todos eles procuram auxiliar as pessoas a crer nEle. Nem
Davi, Salomão ou qualquer um dos outros escreveu: “Não existe
tal coisa como o vácuo, portanto Deus existe”. Eles foram mais
espertos que o mais inteligente de seus sucessores, os quais, sem
exceção, têm utilizado as provas da natureza. Isto é deveras sig-
nificativo (463-243).

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Capítulo XV

A corrupção da natureza humana

181. Sem Jesus Cristo, o homem consegue apenas ser pe-


caminoso e miserável. Com Cristo, o homem é liberto do peca-
do e de sua miserabilidade, pois nEle está toda a nossa virtude
e felicidade. Separado dEle só pode haver vícios, miséria, erros,
trevas e desespero (416-546).

182. Podemos conhecer Deus somente por meio de Cris-


to, assim como também apenas por Ele é que conhecemos a nós
mesmos. Somente por intermédio de Jesus obtemos conheci-
mento sobre a vida e a morte. Separado dEle não somos capazes
de conhecer o significado de nossa vida e de nossa morte, de
Deus e de nós mesmos. Sem a Escritura, cujo único objetivo é
proclamar a Jesus Cristo, não sabemos nada, e tudo o que pode-
mos ver são trevas e confusão na natureza de Deus e em nossa
própria (417-548).

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Capítulo XVI

A falsidade das outras religiões

[O cristianismo possui a verdadeira compreensão sobre a


necessidade do homem]


183. A verdadeira natureza do homem – seu bem e sua
virtude –, bem como a verdadeira religião, não podem ser co-
nhecidas separadamente (393-442).

184. Para uma religião ser verdadeira, a nossa natureza


deve ser conhecida. Ela deve reconhecer sua grandeza e insig-
nificância, bem como a razão para ambas. Que outra religião,
exceto a fé cristã, tem esse conhecimento? (215-433).

185. Se existe uma única origem para todas as coisas, e


se existe um único fim para tudo, a origem e o destino de tudo
é Deus. Então, a verdadeira religião deve nos ensinar que Ele
deve ser o único objeto de nossa adoração e amor. Porém, uma
vez que somos incapazes de cultuar o que não conhecemos e
amar outra coisa que não seja o nosso próprio eu, a religião que
nos instrui nestas atividades deve também nos revelar esta in-
capacidade juntamente com o remédio.
O cristianismo nos ensina que por um único homem tudo
se perdeu, que a ligação entre Deus e a humanidade foi rompi-
da, mas ensina também que por um só homem essa relação foi

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174 MENTE EM CHAMAS

restaurada. Nascemos com uma natureza tão contrária a esse


amor fundamental de Deus, que entramos neste mundo na con-
dição de culpados, ou Deus não seria justo (205-489).

186. Todos os homens, naturalmente, se odeiam. Eles fin-


gem usar a ambição no serviço de seus semelhantes, mas isso é
puro fingimento, uma falsa imagem de caridade, pois no âmago
dessa atitude há apenas ódio (210-451).

187. Sem este conhecimento de Deus, como seria possí-


vel ao homem ser exaltado por essa consciência íntima de sua
grandeza passada, ou ser deprimido pela visão de sua fraqueza no
presente? Incapaz de enxergar toda a verdade, o homem tam-
bém não alcança a virtude perfeita. Alguns, que consideram a
natureza incorruptível, enquanto outros a consideram incurá-
vel, não são capazes de evitar o orgulho, por um lado, nem a
indolência, pelo outro (que são as origens de todos os vícios),
já que a única alternativa é a desistência por meio da covardia
ou o escape, por intermédio do orgulho. Se a excelência do ho-
mem fosse compreendida, então a corrupção seria ignorada e,
como resultado, a indolência seria evitada, levando, porém, ao
orgulho. Por outro lado, se o homem reconhecesse ter evitado
o orgulho, lhe restaria apenas render-se precipitadamente ao
desespero.
É por esta razão que temos as várias escolas de filosofia,
como a dos estóicos, dos epicuristas, dos dogmatistas e dos cé-
ticos.
Somente a fé cristã tem mostrado capacidade de curar es-
tes dois vícios, não fazendo uso de um para suplantar o outro,
como dita a prática da sabedoria do mundo, mas dominando
ambos conforme a simplicidade do Evangelho, pois ele ensina
o justo, a quem exorta até mesmo a ponto de compartilhar a
própria divindade, que neste estado sublime o homem pode su-
portar a fonte de toda a corrupção, que expõe sua vida ao erro,

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A FALSIDADE DAS OUTRAS RELIGIÕES 175

à miséria, à morte e ao pecado. Ao mesmo tempo, o Evangelho


clama aos mais incrédulos que eles são capazes de receber gra-
ça do Redentor. Portanto, a fé cristã leva ao temor os que são
justificados por ela e ao consolo aqueles a quem ela condena,
de modo que o temor e a esperança são equilibrados. Por meio
desta dupla capacidade quanto à graça e ao pecado, comuns a
todos, ela humilha o homem infinitamente mais do que apenas
a razão poderia fazer. Ainda assim, ela o humilha sem provocar
desespero e o exalta acima do que o orgulho natural conseguiria
sem inflar o ego humano. Este fato mostra, de maneira inequí-
voca, que apenas o Evangelho, por ser isento de erros e vícios, é
a única fé com direito a ensinar e a corrigir a humanidade.
Quem, então, pode recusar-se crer e respeitar tal revela-
ção celestial? Pois não é claro como o dia que observamos em
nosso interior marcas indeléveis de excelência, contudo, tam-
bém não é verdade que experimentamos, com freqüência, os
efeitos de nossa deplorável condição?
O que mais esta caótica e confusa condição demonstra,
além da verdade sobre essas duas condições, de uma forma tão
poderosa quanto inegável? (208-435).

188. Jesus Cristo é um Deus do qual podemos nos aproxi-


mar sem orgulho e diante do qual podemos nos humilhar sem
desespero (212-528).

189. Outras religiões, como as pagãs, são mais populares,


pois são constituídas na sua totalidade de atos exteriores; elas
não são para pessoas com um pouco mais de instrução. Uma
religião puramente intelectual seria mais indicada aos dotados
de maior inteligência, porém não seria de muita serventia para
pessoas comuns. Apenas a fé cristã não possui contra-indicação,
pois apresenta uma abrangência tanto externa quanto interna.
Ela desperta o íntimo das pessoas comuns para o que é espiri-
tual, assim como humilha os orgulhosos com respeito ao que

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176 MENTE EM CHAMAS

é material. Não seria completa sem estas duas ações, pois as


pessoas precisam compreender o espírito da lei, enquanto os
mais inteligentes necessitam submeter o seu próprio espírito à
lei (219-251).

190. De fato, vivemos às cegas exceto se percebermos que


somos cheios de orgulho, ambição, egoísmo, fraqueza, miserabi-
lidade e injustiça. E, se alguém possui essa percepção, e, ainda
assim, não deseja ser salvo, o que mais podemos dizer sobre essa
pessoa? Respeito é o mínimo que podemos sentir por uma reli-
gião que conhece as falhas humanas com tanta propriedade. Por
acaso é surpresa que uma fé que promete remédios tão aguarda-
dos seja verdadeira? (595-450).

191. A influência corruptora da razão pode ser vista em


diversos e exagerados costumes. Era necessário que a verdade
surgisse para que o homem parasse de viver para si mesmo (600-
440).

192. Por comparação, as afirmações de Maomé são muito


fracas. Ele não tem autoridade alguma, de modo que precisou
inventar argumentos poderosos já que não tinham força algu-
ma, exceto em si mesmos. O que ele afirma, então? Simples-
mente, que temos de acreditar nele! (203-595).

193. Falsidade de outras religiões. Elas não possuem teste-


munhas; estas pessoas possuem. No entanto, Deus desafia as ou-
tras crenças a produzir tais sinais (Isaías 43.9-44.8) (204-592).

194. O mundo todo reverbera o testemunho do livro de


Salmos (veja Salmo 48.4). Quem sustenta o testemunho de
Maomé? Ele próprio. Jesus deseja que Seu testemunho não
conte. A qualidade dos testemunhos torna necessário que exis-
tam para sempre, em todo lugar, pois Jesus é único (1-596).

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A FALSIDADE DAS OUTRAS RELIGIÕES 177

195. Jesus Cristo foi alvo de profecias. Maomé, não. Este


assassinou, porém os discípulos de Jesus foram assassinados de
forma bárbara. O líder muçulmano proibiu a leitura, mas os
apóstolos ordenaram isso. Em resumo, a diferença entre eles é
tão notória que se Maomé seguiu o caminho do sucesso, huma-
namente falando, Jesus trilhou o caminho da morte. Ao invés
de presumir que onde Maomé triunfou, Jesus não logrou igual
êxito, devemos dizer que como Maomé triunfou, Jesus precisou
morrer (209-599).

196. Eu não desejo julgar Maomé pelo que é obscuro nele,


com base na possibilidade de ser considerado místico, mas pelo
que é evidente – como sua idéia, por exemplo, do paraíso e as-
suntos relativos. A esse respeito, ele beira o ridículo. Eis porque
não é correto assumir suas obscuridades como um mistério, pois
o que é claro nele é absurdo.
Tal conclusão não se aplica à Escritura. Eu admitirei que
há passagens obscuras tão estranhas quanto às de Maomé, po-
rém, em contrapartida, algumas delas apresentam tão grande
e maravilhosa clareza, acompanhadas por profecias cujo cum-
primento é notável. Portanto, não existe qualquer comparação
entre os dois casos. Não devemos confundir e conceder igual
tratamento a questões que se assemelham apenas nas obscurida-
des. No entanto, isto não se aplica a questões cuja clareza exige
nosso respeito quanto aos detalhes obscuros (218-598).

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Capítulo XVII

O que torna a verdadeira


religião atrativa?

197. Jesus é para todos, porém Moisés é para um povo.


Os judeus foram abençoados em Abraão: “Abençoarei os que o
abençoarem e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem; e por meio
de você, todos os povos da terra serão abençoados” (Gênesis
12.3). “Para você é coisa pequena demais ser meu servo.” (Isaías
49.6) “Luz para revelação aos gentios” (Lucas 2.32).
“Ele não fez isso a nenhuma outra nação; todas as outras
desconhecem as suas ordenanças” (Salmos 147.20), disse Davi,
a respeito da lei, mas, referindo-nos a Jesus Cristo, devemos
afirmar: “De igual modo ele aspergirá muitas nações” (Isaías
52.15). Portanto, Jesus é universal. A igreja oferece o seu sacri-
fício apenas para os fiéis, mas Jesus, o sacrifício da cruz a todos
os homens (221-774).

198. “Jesus Cristo, o Redentor de todos”. “Sim, pois Ele


Se ofereceu como um homem redimindo todos os que desejas-
sem vir a Ele. Se alguns morrem no caminho, é responsabilida-
de deles, mas quanto a Cristo, Ele lhes ofereceu a redenção”.
Poderia ser argumentado que isto se encaixa bem neste
exemplo, onde o que redime e o que previne a morte são vis-
tos como duas pessoas diferentes. Porém, não se aplica a Jesus

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180 MENTE EM CHAMAS

Cristo, que realiza ambos! “Não, pois Cristo como o Redentor


não é, talvez, o Senhor de tudo como dizem acerca dEle, mas é
o Redentor de todos” (911-781).

199. Quando você afirma que Cristo não morreu por


todos os homens, explora uma fraqueza da humanidade, pois
de imediato eles irão aplicar esta exceção em si mesmos, insti-
lando, assim, o desespero, ao invés de encorajar a esperança. É
desta maneira que uma pessoa pode habituar-se a desenvolver
virtudes internas a partir de hábitos exteriores (912-781).

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Capítulo XVIII

Fundamentos da fé e
respostas às objeções


200. Nos dias atuais, as religiões pagãs não têm funda-


mentos. Afirma-se que seus alicerces costumavam compor-se de
expressões por meio de oráculos. Mas onde estão hoje os livros
que falam a esse respeito? Tais obras são dignas de confiança de-
vido ao caráter de seus autores? Elas têm sido preservadas com
todo o cuidado de modo a termos a certeza de que seus textos
não foram corrompidos? A religião islâmica tem como alicerces
o Alcorão e Maomé. Porém, foi este o profeta anunciado como
sendo a derradeira esperança do mundo? Que sinais ele exibiu,
jamais mostrados antes por nenhum outro homem que tenha se
autoproclamado profeta? Que oráculos ele alegou ter realizado?
Que mistérios ele ensinou, de acordo com sua própria tradição?
Que sistema moral e que forma de felicidade anunciou?
A religião judaica deve ser considerada de maneira distinta
com respeito à sua tradição dos Livros Sagrados e à tradição po-
pular. As noções de moralidade e felicidade desta última são ri-
dículas, porém as encontradas na Escritura são admiráveis. Igual-
mente, os seus princípios são magníficos, pois é o mais antigo
livro no mundo e o mais autêntico. No entanto, Maomé tentou
preservar seu livro proibindo seus seguidores de lê-lo. Pela mesma
razão, Moisés ordenou que todos lessem o que escreveu. Assim

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182 MENTE EM CHAMAS

acontece com qualquer religião. Mas nossa fé é tão divina que


outra religião divina apenas fornece seus princípios (243-601).

201. A essência da fé consiste em Jesus Cristo e Adão. A es-


sência da moralidade consiste na ganância e na graça (226-523).

202. Uma fonte de contradição. Um Deus que se humi-


lhou até a morte na cruz. Duas naturezas em Jesus Cristo. Dois
adventos. Duas condições da natureza humana. Um Messias
triunfante sobre a morte com a sua própria morte (241-765).

203. A existência de Deus é incompreensível, assim como


é inconcebível a idéia de que não exista. Outros mistérios são
com respeito à alma ser unida ao corpo, e que não deveríamos
ter alma; sobre o mundo ter sido criado, ou não; sobre a existên-
cia do pecado, ou não (809-230).

204. Tudo aquilo que é incompreensível, entretanto, não


deixa de existir (230-430b).

205. Se argumentarmos que o homem é muito vil para


que mereça ter comunhão com Deus, devemos, na verdade, ser
grandes para conceber tal julgamento (231-511).

206. O homem é indigno de Deus, embora não seja inca-


paz de se tornar digno. Não é digno de Deus unir-Se ao homem
pecador, embora não seja indigno de Sua parte tirar o homem
da sua miserabilidade (239-510).

207. Os ateus objetam que nós “não temos luz” (244-


228).

208. O Deus eterno existe para sempre, uma vez que Ele
sempre existiu (440-559b).

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FUNDAMENTOS DA FÉ E RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES 183

209. Se jamais houvesse qualquer evidência da existência


de Deus, tal perda eterna seria ambígua e igualmente seria usada
para explicar a ausência de qualquer deidade. No entanto, o
fato de Deus aparecer, algumas vezes, remove toda a ambigüi-
dade. Se Deus aparece uma única vez, Ele existe para sempre.
Assim, a única conclusão possível é que há um Deus, mas os
homens não são dignos de Sua presença (448-559).

210. É verdade que o homem é conscientizado de sua con-


dição por tudo o que o cerca. Porém, não deve haver enganos,
pois não é verdade que todas as coisas revelam Deus, assim como
não é verdade que todas as coisas O ocultam. Em contrapartida,
é verdade que Deus, de fato, Se esconde dos que O desafiam,
mas revela-Se aos que O buscam, pois embora os homens sejam
indignos devido a sua corrupção, ao mesmo tempo, são aceitá-
veis diante de Deus através da criação original (444-557).

211. Que podemos concluir de toda a nossa escuridão a


não ser evidência de nossa própria indignidade? (445-558).

212. Se não houvesse escuridão, o homem não teria cons-


ciência de seu estado corrupto. Se não houvesse luz, o homem
não teria esperança de cura. Portanto, o fato de Deus ter Se
ocultado e Se revelado de maneira parcial não é apenas cor-
reto, mas também útil. Pois ao homem é igualmente perigoso
conhecer a Deus sem compreender a sua própria miserabilida-
de, como conhecer sua miserabilidade sem o conhecimento de
Deus (446-586).

213. A conversão dos pagãos somente foi possível por meio


da graça do Messias, pois os judeus os atacaram por muito tempo
sem obter qualquer êxito. Tudo o que Salomão e os profetas dis-
seram contra eles foi inútil. De fato, homens sábios, como Platão
e Sócrates, também falharam em persuadi-los (447-769).

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184 MENTE EM CHAMAS

214. Deus está oculto, mas permite aos que O buscam


encontrá-Lo. Sinais evidentes dEle sempre existiram ao longo
das eras. Nós temos as profecias, enquanto outras eras tiveram
outros sinais. Todas estas evidências estão conectadas, de modo
que se uma é verdadeira, por conseguinte a outra também o é.
Assim, por haver sinais apropriados ao contexto de cada época,
uma leva ao reconhecimento da outra, de tal sorte que os que
viram o dilúvio creram na criação, assim como no Messias que
estava para vir. As testemunhas de Moisés creram no dilúvio
e no cumprimento das profecias. De igual modo, nós, os que
vimos as profecias serem cumpridas, deveríamos crer no dilúvio
e na criação (“Adicionais de Pensées”, 14).

215. Confesse a verdade da fé em sua própria obscuridade,


apesar da tênue luz que somos capazes de lançar sobre ela e, de
fato, da nossa indiferença com respeito a ela (439-565).

216. Reconheça que Deus ocultou-Se por Sua própria de-


liberação. Se houvesse apenas uma única religião, Deus seria
evidenciado de forma clara. De igual sorte seria se não houvesse
mártires, exceto em nossa fé. Mas, com Deus permanecendo
oculto, qualquer religião que não afirma que Ele está oculto não
é verdadeira, e qualquer religião que não explica por que Ele
age assim, não instrui verdadeiramente. No entanto, a nossa fé
faz tudo isso. “Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde”
(Isaías 45.15) (242-585).

217. Deus deseja mover a vontade ao invés da mente.


O amor perfeito auxiliará a mente e causará danos à vontade.
Portanto, deixemos que o orgulho do homem seja humilhado
(234-581).

218. Faça um contraste entre a cegueira de Montaigne


(Apology for Sebond) e a visão de Santo Agostinho. Sempre há

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FUNDAMENTOS DA FÉ E RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES 185

luz o bastante para iluminar os eleitos e escuridão suficiente


para os humilhar. Há escuridão o bastante para cegar os perver-
sos e luz suficiente para os condenar, privando-os de qualquer
desculpa. No Antigo Testamento, a genealogia de Jesus é men-
cionada em meio a tantas outras que parece irrelevante que seja
indistinguível. Se Moisés tivesse registrado apenas os ancestrais
de Jesus, a genealogia seria muito óbvia. Se ele não a tivesse
indicado, não teria sido evidente o bastante. Afinal de contas,
qualquer um que a examine com atenção pode ver que a gene-
alogia de Jesus é facilmente distinguida pela linha de Tamar,
Rute, e assim por diante.
Aqueles que ordenaram os sacrifícios no Antigo Testa-
mento perceberam o quanto eles eram inúteis, embora esta
percepção não tenha levado à interrupção deste sistema de pu-
rificação. Igualmente, se Deus tivesse permitido haver apenas
uma religião, isto seria facilmente reconhecido. No entanto, se
observarmos com atenção, torna-se fácil discernir a verdadeira
religião em meio a toda esta confusão.
Princípio: Moisés era um homem inteligente. Portanto,
se estivesse sendo governado por sua inteligência, ele não teria
escrito nada que fosse contrário a ela.
Desse modo, reconhecemos que as mais óbvias fraquezas
são, na verdade, forças. Veja, por exemplo, as duas genealogias
de Mateus e Lucas. O que poderia ser mais claro do que reco-
nhecer que não poderia haver cooperação? (236-578).

219. Ao invés de sempre reclamar que Deus tem Se ocul-


tado, deveríamos agradecer-Lhe pelas revelações que nos forne-
ceu de Si mesmo. Você também deveria agradecer-Lhe por não
ter se revelado a homens sábios, cheios de orgulho e indignos de
conhecer um Deus sobremaneira santo.
Há dois tipos de pessoas que conhecem a Deus. Os que
são humildes de coração e amam a sua humildade, independen-
temente de seu nível de inteligência, seja ele baixo ou elevado.

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186 MENTE EM CHAMAS

E há os que são suficientemente inteligentes para enxergar a


verdade, não importando o quanto possam ser contrários a ela
(394-288).

220. O mundo é um estágio para o exercício de miseri-


córdia e julgamento. Não é como se a humanidade tivesse sido
criada por Deus, mas como se os homens fossem inimigos de
Deus, iluminados por Sua graça o bastante para retornar se hou-
ver desejo de buscá-Lo e segui-Lo. De igual sorte, no entanto,
tal luz é suficiente para que o homem receba o devido castigo se
decidir não segui-Lo (461-584).

221. Não compreendemos as obras de Deus exceto se


aceitamos o princípio de que Ele pode cegar alguns e iluminar
outros (232-566).

222. Jesus veio para cegar os que tinham plena visão e dar
visão aos que eram cegos. Ele veio para curar os enfermos, mas
também para deixar os sãos morrerem. Cristo veio para concla-
mar os pecadores ao arrependimento, justificando-os, porém, ao
mesmo tempo, veio para levar os justos aos seus pecados. Ele
veio para saciar os famintos com coisas boas, como também,
esvaziar os ricos (235-771).

223. Jesus jamais nega ter vindo de Nazaré, nem que seja
filho de José. Isto tem como objetivo manter os perversos em
sua cegueira (233-796).

224. Se Jesus tivesse vindo a este mundo apenas para san-


tificar, toda a Escritura, assim como tudo o mais, teriam trans-
mitido esta orientação e, assim, teria sido muito fácil convencer
os incrédulos. Se Cristo tivesse vindo apenas para ministrar aos
cegos, todo o Seu comportamento seria obscuro e não haveria
meios de convencer os não-crentes. Porém, como afirmou Isa-

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FUNDAMENTOS DA FÉ E RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES 187

ías, Ele veio para ser “um santuário, mas também uma pedra
de tropeço” (Isaías 8.14). Portanto, não podemos convencer os
incrédulos e, tampouco eles são capazes de nos convencer. Mas
nós não os convencemos por causa desse fato, uma vez que sa-
bemos que todo o comportamento deles também não nos prova
nada convincente (237-795).

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Capítulo XIX

Significados figurativos da
Lei do Antigo Testamento

O pensamento de Pascal é sensível e sutilmente equilibrado


entre o uso de expressões simbólicas e literais da verdade. “Se sub-
metermos todas as coisas à razão, nada restará à nossa religião
que seja misterioso ou transcendental”, ele argumenta (173-
273).

Porém, mencionando Agostinho, ele acrescenta: “A razão ja-


mais deveria ceder, exceto se julgasse que há ocasiões em que
seja necessário que isso ocorra. É certo, portanto, que a razão
deve ceder quando ela deve ser submissa” (174-270). Eis porque
expressões figuradas da verdade são importantes, como a erudição
moderna está reconhecendo, uma vez mais. Assim, Pascal pergun-
ta: “Por que Jesus não veio de maneira mais óbvia, ao invés de
provar quem Ele era por meio das previsões do passado? Por
que profetizou de Si mesmo de maneira figurada?” (389-794).
Assim, à luz de Sua inefável natureza, toda a conversa sobre Deus
deve ser na linguagem metafórica. “A última ação da razão é o
reconhecimento de que há um sem número de coisas que trans-
cendem a compreensão racional. É um caso débil, se não reco-
nhecer isso. E se coisas naturais estão além da razão, o que dizer
de realidades sobrenaturais?” (188-267).

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190 MENTE EM CHAMAS

Ainda assim, Pascal empregou o pensamento equilibrado de


que, ao contrário da noção grega sobre “universais”, há também um
conteúdo literal na verdade divina. Pois Ele é o Deus da história,
o Deus de poderosos feitos em benefício do povo escolhido, Israel.
A verdade é especificada e, em seu caráter literal, não contraria a
razão. Como ele mesmo observa, a religião torna-se absurda e ridí-
cula se nós ofendemos os princípios da razão. Então, retomamos a
própria linguagem de Pascal quando ele lida com o caráter figurado
do Antigo Testamento.

225. Gostaríamos de argumentar que o Antigo Testamen-


to é apenas figurativo, e que ao abordar bênçãos temporais, os
profetas queriam expressar outros tipos de bênção.
Em primeiro lugar, isso seria indigno de Deus. Os profetas
expressaram claramente a promessa de bênçãos temporais e, as-
sim, é absurdo argumentar-se que suas declarações são obscuras
e por isso seus significados não serão compreendidos. Portanto,
parece que o significado oculto que alegam não ter sido clara-
mente revelado explica por que eles argüiram que deve haver
outros sacrifícios, assim como outro Redentor. Eles argumentam
que o significado não será entendido antes de seu cumprimento
(Veja Jeremias 33).
A segunda evidência é que suas afirmações são contradi-
tórias e se anulam mutuamente. Se concluirmos que pelas pa-
lavras “lei” e “sacrifício” o significado era simplesmente “aquele
dado por Moisés”, isto será uma contradição grosseira e patente.
Assim, alguns sustentam que há um outro significado e que, al-
gumas vezes, se contradizem em uma mesma passagem (501-
659).

226. Há ocasiões em que apenas podemos fornecer uma


boa descrição, reconciliando os elementos conflitantes em nós
mesmos, e não é suficiente exibir uma sucessão de qualidades
harmoniosas sem reconciliar as antagônicas. Para compreender

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SIGNIFICADOS FIGURATIVOS DA LEI DO ANTIGO TESTAMENTO 191

o significado de um autor, é necessário harmonizar todas as pas-


sagens conflitantes.
A fim de compreender a Escritura, um significado pre-
cisa ser encontrado de modo a harmonizar todas as passagens
contraditórias. Não basta ter um significado que se encaixe em
algumas passagens que simplesmente parecem convergir. Deve
haver um que reconcilie mesmo as passagens contraditórias.
Todo escritor possui um significado ao qual todas as passa-
gens conflitantes estão subordinadas, caso contrário o seu traba-
lho é em vão. Não podemos afirmar que as Escrituras e os pro-
fetas são sem nexo. Com certeza, sua importância é inegável.
Desse modo, devemos buscar um sentido que harmonize todas
as contradições.
O verdadeiro significado não é aquele dos judeus, mas em
Jesus Cristo todas as contradições são reconciliadas. Os judeus
não eram capazes de reconciliar o fim da linhagem real predita
por Oséias com a profecia de Jacó (Oséias 3.4; Gênesis 49.10).
Se aceitarmos a lei, os sacrifícios e o reino como realida-
des, não podemos reconciliar todas as passagens que lhes fazem
referência. Assim, segue-se que tais elementos devem ser consi-
derados apenas de modo figurado. Nem mesmo deveríamos ten-
tar reconciliar as diferentes passagens de um mesmo autor, ou
de um livro ou capítulo, que mostrassem claramente a intenção
do autor. Por exemplo, no livro de Ezequiel, capítulo 20, lemos:
“Também os abandonei a decretos que não eram bons e a leis
pelas quais não conseguiam viver” (258-684).

227. Quando a Palavra de Deus, que é verdadeira, é falsa


no sentido literal, ela é verdadeira no espiritual. “O Senhor dis-
se ao meu Senhor: ‘Senta-te à minha direita’” (Salmos 110.1),
não é verdade, em termos literais, mas sua aplicação espiritual
é veraz.
Em tais expressões, Deus está falando em termos huma-
nos, mas isto simplesmente possui o mesmo significado expresso

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192 MENTE EM CHAMAS

pelos homens quando fazem uso da mesma expressão. Este verso


apenas indica a intenção de Deus, e não a maneira como Ele irá
agir.
Portanto, também está escrito: “O Senhor sentiu o aroma
agradável...” (Gênesis 8.21) e o recompensará com uma terra
rica. Isto significa que Deus tem a mesma intenção que um ho-
mem que sente um doce aroma e o recompensa com uma terra
rica. Deus possui a mesma intenção com relação a você porque
você tem a mesma intenção com relação a Ele, semelhante a
um homem com respeito a alguém a quem ele oferece seu aroma
agradável.
Em outra passagem encontramos: “a ira do Senhor acen-
deu-se” (Isaías 5.25), que Ele é um “Deus ciumento”, e assim
por diante. Uma vez que as coisas de Deus são inexprimíveis,
elas não podem ser ditas de outra maneira que não seja em ter-
mos humanos, como a igreja ainda faz. Assim, está escrito: “Pois
ele reforçou as trancas de suas portas” (Salmos 147.13), e assim
por diante.
Concluindo, não podemos atribuir à Escritura significa-
dos que ela não revela possuir (272-545).

A chave para o simbolismo é fornecida por Jesus

228. Jesus Cristo abriu suas mentes de modo a entende-


rem as Escrituras. Duas grandes revelações foram feitas: Primei-
ro, tudo veio até eles por meio de simbolismos – “Um verda-
deiro israelita, de fato serão livres, o verdadeiro pão do céu”
(João 1.47; 8.36; 6.32). Segundo, um Deus humilhado até a
cruz. Cristo precisou sofrer para entrar em Sua glória, “... para
que, por sua morte, derrotasse aquele que tem o poder da morte”
(Hebreus 2.14) (253-679).

229. Símbolos. A letra mata. Tudo surge na forma de sím-


bolos. Foi necessário que Cristo sofresse e fosse humilhado por

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SIGNIFICADOS FIGURATIVOS DA LEI DO ANTIGO TESTAMENTO 193

Deus. Esta é a chave que o apóstolo Paulo nos fornece (2 Corín-


tios 3.6). Circuncisão do coração, jejum e sacrifício verdadei-
ros, templo real (Romanos 2.29). O profeta mostrou que tudo
isso tinha que ser espiritual.
Pois não é a carne que perece, mas é a carne que não mor-
re (João 6.53-57). “Vocês de fato serão livres” (João 8.36). Des-
ta forma, a outra liberdade é apenas um símbolo da verdadeira.
“Eu sou o pão vivo que desceu do céu” (João 6.51) (268-
683).

230. Símbolos. Uma vez que o mistério tenha sido revela-


do, é impossível não vê-lo. Vamos ler o Antigo Testamento à
luz desta revelação e verificar se os sacrifícios eram verdadeiros,
se a linhagem de Abraão não foi a verdadeira razão para a ami-
zade de Deus, se a Terra Prometida era o verdadeiro lugar de
descanso. Não. Portanto, todos eles eram simbólicos.
Desse modo, todos esses sacrifícios e cerimônias eram
símbolos ou absurdos. No entanto, essas coisas são cristalinas e
sublimes demais para serem desconsideradas como absurdos.
Observe se a visão dos profetas estava confinada aos even-
tos do Antigo Testamento, ou se eles viram além deles (267-
680).

231. O véu descerrado sobre as Escrituras para os judeus tam-


bém está lá para os maus cristãos e para todos os que não odeiam a
si mesmos. Porém, quão dispostos nos sentimos a conhecer a Cristo
quando realmente odiamos a nós mesmos! (475-676).

232. Tudo que Jesus fez foi ensinar aos homens que se
amassem a si mesmos, que eles eram escravos, cegos, enfermos,
miseráveis, pecadores, e que Ele veio para resgatar, para esclare-
cer, para santificar e para curá-los. Esta condição seria alcança-
da por aqueles que odiassem a si mesmos e seguissem a Jesus por
intermédio de Sua miséria e Sua morte na cruz (271-545).

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194 MENTE EM CHAMAS

233. Os judeus estavam acostumados com grandes e ma-


ravilhosos milagres, por terem experimentado as grandes mara-
vilhas da travessia do Mar Vermelho e o acesso à terra de Canaã
como uma amostra dos grandes feitos a serem realizados pelo
Messias. Assim, os judeus esperavam algo ainda mais incrível e
sublime, dos quais os milagres operados por Moisés formavam
apenas um prelúdio (264-746).

234. Os judeus materialistas não reconheceram a gran-


deza ou a humildade do Messias, cuja vinda havia sido prenun-
ciada pelos seus profetas. Eles falharam em reconhecer em Jesus
a grandeza que havia sido profetizada, como quando foi dito
que o Messias seria o Senhor de Davi, embora fosse seu filho
(Mateus 22.45), ou que Ele existia antes de Abraão e que este
o havia visto (João 8.56, 58). Eles não creram que Ele era tão
grande quanto eterno. Igualmente, fracassaram em reconhecê-
Lo em Sua humilhação e morte. “A lei nos ensina que o Cristo
permanecerá para sempre; como podes dizer: ‘O Filho do ho-
mem precisa ser levantado’? Quem é este ‘Filho do Homem’?”
(João12.34). Portanto, os judeus não acreditaram que Ele era
mortal, nem que era eterno. Pelo contrário, eles buscaram ver
em Jesus uma grandeza terrena (256-662).

235. Símbolos. Isaías 51. O Mar Vermelho, uma figura da


Redenção.
“Mas, para que vocês saibam que o Filho do homem tem
na terra autoridade para perdoar pecados – disse ao paralítico
– eu lhe digo: Levante-se...” (Marcos 2.10,11).
Desejando mostrar que Ele podia criar um povo santo com
uma santidade invisível, dotando-o com glória eterna, Deus criou
coisas visíveis. Como a natureza é uma imagem da graça, Ele
criou entre as boas coisas na ordem da natureza o que iria criar
na ordem da graça, para que os homens compreendessem que Ele
podia criar coisas invisíveis, assim como criou as visíveis.

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SIGNIFICADOS FIGURATIVOS DA LEI DO ANTIGO TESTAMENTO 195

Portanto, Deus resgatou o povo do dilúvio, fez com


que fossem descendentes de Abraão, libertou-os de seus
inimigos e lhes deu descanso. O propósito divino não foi
resgatar todas as pessoas do dilúvio ou fazer com que todos
fossem filhos de Abraão, mas simplesmente guiá-los até a
terra prometida.
Mesmo a graça é um símbolo da glória, pois não é a con-
dição final. Ela foi antecipada por meio da lei e é, por si mesma,
um símbolo de glória. Porém, tanto é o símbolo como a origem
ou causa.
A vida comum dos homens é como a dos santos. Todos
nós buscamos satisfação e nossa atitude apenas difere quanto
ao objeto no qual colocamos nossa satisfação. Os que os ho-
mens chamam de inimigos são os que os impedem de obtê-la.
Deus, portanto, tem mostrado Seu poder de conceder dons
invisíveis, mostrando o poder que exerce sobre coisas visíveis
(275-643).

A razão para tal ambigüidade

236. Símbolos. Os judeus haviam sido criados com esses pen-


samentos terrenos. Eles viram que Deus amava seu pai Abraão;
que, por esta razão, Deus os fez multiplicar, separando-os dos ou-
tros povos, não permitindo que houvesse miscigenação. Quando
eles estavam definhando no Egito, Deus os retirou de lá por meio
de muitos sinais miraculosos, operados em favor deles. Deus os
alimentou no deserto com maná e os conduziu a uma terra rica.
Ele lhes deu reis e um templo magnífico no qual podiam ofere-
cer sacrifícios de animais e ser purificados pelo derramamento do
sangue. No final, Ele enviaria o Messias para torná-los senhores
sobre todo o mundo e para predizer o tempo de Sua vinda.
Quando o mundo estava acostumado com essas falácias
materialistas, Jesus Cristo veio no tempo indicado. No entanto,
Ele não surgiu com a chama de glória esperada, levando os ju-

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196 MENTE EM CHAMAS

deus a não apreciarem essa condição do Cristo. Após Sua mor-


te, o apóstolo Paulo veio para ensinar aos homens que todos
aqueles eventos haviam acontecido de forma simbólica (1 Co-
ríntios 10.11), pois o reino de Deus não pertence à carne, mas
ao espírito. Os inimigos dos homens não eram os babilônios,
mas suas próprias paixões. Deus não habita em templos feitos
por mãos humanas, mas em um coração puro e humilde (He-
breus 9.24). A circuncisão do coração era necessária (Romanos
2.29). Moisés não lhes deu o pão que desce dos céus, e assim
por diante.
Uma vez que Deus não estava disposto a revelar estas coi-
sas a um povo tão indigno delas, mas desejando predizê-las de
modo que viessem a crer, Ele revelou, de maneira clara, o tempo
em que as profecias iriam se cumprir. Com freqüência, Ele o fez
de maneira figurada, de tal sorte que os que amavam os símbolos
permaneceriam sobre eles, e aqueles que gostavam das coisas
simbolizadas as veriam.
Tudo o que não conduz ao amor é simbólico. O único
tema da Escritura é amor. Tudo o que não faz referência direta
a este bem único é figurativo. Já que há somente um objetivo,
tudo o que não conduz a ele é, explicitamente, figurativo. As-
sim, Deus permite diversidade a um único princípio de amor
a fim de satisfazer a nossa curiosidade, que busca a diversidade
sempre em direção à única coisa necessária, pois uma só coisa é
necessária e nós amamos a diversidade. Deus satisfaz essas duas
necessidades por meio da diversidade, que conduz ao único bem
necessário.
Os judeus eram tão apegados a símbolos e os aguardavam
com tamanha expectativa que fracassaram em reconhecer o
elemento real quando este veio no tempo e da maneira previs-
ta. Por exemplo, os rabinos consideravam os seios da esposa de
maneira figurativa (Cantares 4.5).
Os cristãos sempre tomam a Eucaristia como um símbolo
da glória à qual aspiram (270-670).

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SIGNIFICADOS FIGURATIVOS DA LEI DO ANTIGO TESTAMENTO 197

237. A fim de tornar o Messias reconhecível para os ho-


mens de bem e irreconhecível aos maus e perversos, Deus ante-
cipou a maneira como o Messias viria de acordo com isso. Se o
caminho do Messias tivesse sido claramente predito, não have-
ria motivos para dúvidas, mesmo para os perversos. Se o tempo
tivesse sido previsto de maneira nebulosa, haveria dúvidas até
mesmo entre os homens de bem, pois a bondade existente em
seus corações não teria sido capaz de levá-los à compreensão,
por exemplo, de que a letra hebraica mem fechada significava
600 anos. Mas o tempo foi profetizado de maneira clara, embora
tenha sido revelado por meio de símbolos.
Desta forma, os perversos entenderam a promessa como
sendo referente à riqueza material e se desviaram, apesar de o
tempo ter sido claramente predito. Mas os justos não. O conhe-
cimento da riqueza prometida depende do coração, que chama
de “bem” aquilo que ama, mas o tempo da promessa não depen-
de do coração. Portanto, a clara revelação do tempo e a obscura
predição das riquezas só enganam os maus (255-758).

O testemunho judeu de Cristo

238. Razões para o uso de símbolos. Eles tinham que en-


volver um povo materialista e torná-lo o repositório de uma
aliança espiritual. A fim de inspirar a fé no Messias, era neces-
sário haver profecias expressas por pessoas acima de qualquer
suspeita, reconhecidas unanimemente como conscientes, leais
e dotadas de um notável zelo.
Para atingir plenamente tal objetivo, Deus escolheu um
povo carnal, a quem confidenciou as profecias que anunciavam
o Messias como Salvador e Dispensador das bênçãos terrenas
tão aguardadas por eles. E, assim, os judeus mostraram um ex-
cepcional respeito para com seus profetas e providenciaram para
que todos tivessem acesso aos livros que profetizavam sobre o
Messias, assegurando a todas as nações que Ele viria conforme

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198 MENTE EM CHAMAS

anunciado nos livros, que permaneciam disponíveis a todos os


que desejassem ler as profecias. Portanto, os que ficaram desa-
pontados com a humilde e ignóbil vinda do Messias tornaram-
se seus inimigos mais ferrenhos. O resultado foi que, de todas as
pessoas no mundo, os judeus mostraram ser os mais escrupulosos
e zelosos observadores da lei e dos profetas, os quais eles têm
preservado incorruptíveis.
Assim, os que transmitiram os livros que dão testemunho
de Jesus Cristo, dizendo que Ele seria rejeitado e causa de es-
cândalo, são os mesmos que O rejeitaram e crucificaram, pois,
de fato, Jesus foi um escândalo para eles. A própria rejeição de
Jesus por parte dos judeus atesta que Ele era o Messias. De igual
sorte, Suas afirmações foram provadas tanto pelos judeus justos
que O aceitaram, como pelos injustos que O rejeitaram, uma
vez que ambos foram preditos.
Eis a razão por que as profecias possuem um significado es-
piritual oculto, ao qual os judeus foram hostis, por considerarem
apenas o significado material, que mais lhes interessava. Se o
sentido espiritual tivesse sido descoberto, eles seriam incapazes
de recebê-lo em seus corações. Desse modo, eles não os teriam
passado adiante, pois lhes faltaria o zelo para preservar os livros
e as cerimônias. Se eles tivessem legado as promessas espiri-
tuais, preservando-as incorruptíveis até a vinda do Messias, o
testemunho deles não teria peso algum porque eles estariam ao
lado de Jesus. Eis porque o fato de o significado espiritual ter
permanecido oculto é uma coisa positiva. Por outro lado, no
entanto, se esse significado tivesse sido mantido a sete chaves,
sem deixar qualquer vestígio, teria sido inútil como prova das
alegações do Messias. O que, então, aconteceu?
O significado temporal foi mantido oculto na maioria das
passagens e claramente revelado em algumas, além do fato de
o tempo e a condição do mundo terem sido previstos de forma
tão evidente quanto o sol do meio-dia. E esse sentido espiritual
foi explicado de forma tão cristalina em certas passagens que

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SIGNIFICADOS FIGURATIVOS DA LEI DO ANTIGO TESTAMENTO 199

a única explicação para que as pessoas não o reconhecessem


é que estavam acometidas de algum tipo de cegueira imposta
pela carne ao espírito, tornando-se assim propícias a conclusões
equivocadas.
Esta é a maneira como Deus age. Na maioria das passa-
gens, o significado espiritual é obscurecido por outro significa-
do, mas revelado em algumas poucas. Isto é feito de tal maneira
que, onde este significado está oculto, as passagens são dúbias
e dão margem a mais de uma interpretação, enquanto as pas-
sagens nas quais o significado é claramente revelado, a única
interpretação possível é espiritual.
Portanto, não há razão para equívocos e só uma pessoa
carnal poderia ser enganada, não conseguindo enxergar o ver-
dadeiro sentido. Pois, quando coisas boas foram prometidas em
abundância, o que os impediu de compreender como verdadei-
ras bênçãos, a não ser sua própria cobiça? Mas aqueles cuja úni-
ca bênção está em Deus as relacionam somente a Deus.
Pois há dois princípios em constante combate pelo con-
trole da vontade humana: avareza e amor. Isto não quer dizer
que a avareza é incompatível com a crença em Deus, ou o amor
com bens terrenos. Mas a avareza aproveita-se de Deus e tem
seu prazer nas coisas do mundo, ao contrário do amor.
Os eventos são descritos em relação ao propósito supre-
mo. Qualquer coisa que nos impeça de alcançar esse propósito
deve ser considerada como inimigo. Assim, criaturas ainda que
sejam boas se tornarão inimigas dos justos quando as afastarem
de Deus. O próprio Deus é o inimigo daqueles cuja ganância é
frustrada.
Portanto, uma vez que o termo inimigo depende desse pro-
pósito supremo, o justo o adota para referir-se às suas paixões,
enquanto o homem carnal o adota como referência aos babilô-
nios e, assim, tais termos são obscuros apenas para os injustos.
Eis o que diz Isaías: “Guarde o mandamento com cuidado
e sele a lei entre os meus discípulos”; e que Jesus Cristo seria

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200 MENTE EM CHAMAS

uma pedra de tropeço (Isaías 8.6-16). Porém, “feliz é aquele que


não se escandaliza por minha causa” (Mateus 11.6). O último
versículo de Oséias coloca isso de forma hábil: “Quem é sábio,
que entenda estas coisas; quem é prudente, que as saiba, porque
os caminhos do Senhor são retos, e os justos andarão neles, mas
os transgressores neles cairão” (Oséias 14.9 ARA) (502-571).

239. “... neles cairão”. E mesmo assim, a aliança feita para


cegar alguns e iluminar outros forneceu um sinal apenas nos
que foram cegos quanto à verdade que deveria ser conhecida
aos outros. Pois as bênçãos visíveis que receberam de Deus fo-
ram tão divinas e maravilhosas que não deveria haver dúvidas
quanto a Sua capacidade de lhes conceder as bênçãos invisíveis
e o Messias.
A natureza é um símbolo da graça divina, e os milagres
visíveis são imagens dos invisíveis. “Mas, para que vocês saibam
... eu lhe digo: Levante-se...” (Marcos 2.10). Isaías compara a
redenção vindoura à travessia do Mar Vermelho. Deus mostrou,
por intermédio do êxodo do Egito, da travessia do mar, das der-
rotas dos reis, do maná e da descendência de Abraão, que Ele
era capaz de salvar, de mandar pão dos céus, de modo que esse
povo hostil é um símbolo e uma representação do próprio Mes-
sias que eles não reconhecem.
Portanto, Deus tem nos ensinado que, no fim das contas,
todas estas coisas são apenas figurativas e que o verdadeiro sig-
nificado está relacionado com “verdadeiramente livres”, “ver-
dadeiro israelita”, “verdadeira circuncisão” e “verdadeiro pão
do céu “.
Cada um de nós encontra nestas promessas o que jaz no
mais íntimo de nosso coração. Vemos as bênçãos temporais as-
sim como as espirituais, Deus ou as criaturas. Porém, com esta
diferença: Os que buscam a criatura, de fato, a encontrarão, po-
rém com muitas contradições. Somos proibidos de amá-las e
somos ordenados a cultuar e amar somente a Deus, o que leva à

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SIGNIFICADOS FIGURATIVOS DA LEI DO ANTIGO TESTAMENTO 201

mesma coisa. Eles descobrem que o Messias não veio para eles,
mas os que estão buscando a Deus O encontram, sem qualquer
contradição, e descobrem que são ordenados a amar somente a
Ele, e que o Messias veio no tempo predito para lhes conceder
as bênçãos pelas quais ansiavam.
Assim, os judeus testemunharam os milagres e o cumpri-
mento das profecias. A fé deles lhes ensinou a adorar e amar so-
mente um único Deus. Esta foi uma ordem perpétua. Por con-
seguinte, isto possuía todas as características de uma verdadeira
religião, o que, de fato, era. No entanto, os ensinamentos dos ju-
deus devem ser diferenciados dos ensinos da lei judaica. O ensino
dos judeus não foi verdadeiro, apesar do testemunho dos milagres,
profecias e eternidade, porque lhes faltava o preceito adicional,
qual seja, o de adorar e amar somente a Deus (503-675).

240. Seus corações tornaram-se endurecidos. Como? Pelo


incitamento de sua cobiça e pela esperança de satisfação (496-
714).

241. Deus usou a concupiscência dos judeus de modo a


serem usados para Jesus Cristo, que trouxe o remédio para tais
desejos terrenos (614-64).

242. Deus utilizou a cegueira desse povo em benefício de


Seus eleitos (496-577).

243. Aqueles que consideram difícil crer irão buscar alicerce


para tal pensamento na descrença dos judeus. “Se as evidências
são tão claras assim, por que, então, os judeus não creram?”, argu-
mentarão. Eles quase desejam que os judeus tenham crido, real-
mente, de modo que eles mesmos não teriam sido impedidos por
este exemplo da rejeição por parte dos judeus. Porém, essa mesma
rejeição é o alicerce de nossa própria crença. Nós deveríamos ser
menos inclinados a crer se eles estivessem do nosso lado. No en-

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202 MENTE EM CHAMAS

tanto, o incrível é que eles, mesmo fascinados pela profecia, foram


tão hostis com relação ao seu cumprimento (273-745).

244. O que poderiam fazer os judeus, inimigos do Mes-


sias? Se eles O aceitassem, teriam dado mostras de quem Ele
era por meio de tal aceitação. Isto teria significado que os que
buscavam o Messias O haviam aceitado como tal. Porém, se
eles O rejeitaram, apenas mostraram quem Ele era por meio de
sua rejeição (262-496).

245. Os judeus rejeitaram a Jesus, porém nem todos; os


santos O aceitaram, mas não os preocupados com o mundo.
Longe de diminuir a Sua glória, essa rejeição é sua coroa e clí-
max. A razão que deram para a Sua rejeição, e a única encon-
trada em suas Escrituras, no Talmude e nos escritos rabínicos, é
simplesmente que Jesus Cristo não usou de força para persuadir
o povo. “Prende a espada à cintura, ó poderoso!” (Salmos 45.3).
Isto é tudo o que eles têm a dizer? “Jesus Cristo foi condenado
à morte”, eles declaram. “Ele foi um fracasso, pois não subjugou
os pagãos por meio da força. Ele não nos deu o espólio, nem
riquezas”. É tudo o que têm a declarar? Isto é exatamente o que
nos faz querer amá-Lo, pois o tipo de mensagem que tentaram
propagar não me atrai. Claramente, a única razão que os impe-
diu de reconhecer quem é Jesus, de fato, foi a própria concupis-
cência deles. Na verdade, por meio da rejeição, eles se tornaram
testemunhas irrepreensíveis. Além disto, ao agirem assim, eles
estavam cumprindo as profecias feitas a respeito de Jesus.
Por certo, a Sua rejeição de Cristo possibilitou a realiza-
ção desse verdadeiro milagre, pois as profecias são os únicos mi-
lagres permanentes tornados possíveis, embora estejam sujeitos
a desafios (593-760).

246. Está claro que eles são um povo criado com o expres-
so propósito de serem testemunhas do Messias (Isaías 43.9,10;

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SIGNIFICADOS FIGURATIVOS DA LEI DO ANTIGO TESTAMENTO 203

44.8). Pela tradição, eles transmitiram seus livros, amando-os,


embora sem os compreender. Tudo isso foi predito. Os julga-
mentos de Deus lhes foram confiados, mas foram mantidos
como livros selados (495-641).

247. Se isso foi tão claramente predito aos judeus, por que
não creram, ou por que não foram totalmente destruídos por
rejeitarem uma revelação tão óbvia? Minha resposta é esta: Pri-
meiramente, foi predito que eles rejeitariam a verdade previa-
mente revelada; e segundo, foi prenunciado que eles não seriam
exterminados. Nada contribui mais para a glória do Messias que
estas duas verdades. Não era suficiente apenas ter as profecias.
Elas também tinham que ser mantidas acima de qualquer sus-
peita (391-749).

248. Ao destruírem o Messias, uma vez que não O aceita-


ram como o Messias deles, os judeus, na verdade, conferiram a
Jesus este sinal supremo de que Ele era, de fato, o Messias. Por
meio de sua contínua rejeição a Cristo, eles se tornaram teste-
munhas perfeitas de quem Ele era.
Ao matá-Lo e persistir em negá-Lo, os judeus cumpriram
as profecias sobre Ele (488-761).

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Capítulo XX

Escritos rabínicos

249. [Ao olharmos para a própria literatura rabínica], en-


contramos um vasto material a sustentar a doutrina do pecado
original. Considere a afirmação de Gênesis 8.21: “... pois o seu
coração é inteiramente inclinado para o mal desde a infância”.
R. Moses Haddarschan comenta: “Esta maldade está presente no
homem desde o instante de seu nascimento”. Massachet Sukkah
diz: “Este mal que corrompe possui sete descrições na Escritura:
é chamado de pecado, prepúcio, impureza, inimigo, escândalo,
coração de pedra e frio cortante. Todos estes termos represen-
tam a concupiscência oculta e implantada dentro do coração
humano”. Midrash Tehillim faz a mesma afirmação, acrescentan-
do que Deus irá libertar o homem de sua natureza maligna.
Esta perversidade da natureza do homem é reforçada de
forma constante, como está escrito em Salmos 37.32,33: “O ím-
pio fica à espreita do justo, querendo matá-lo, mas o Senhor não
o deixará cair em suas mãos”. Esta maldade tenta o coração do
homem durante sua vida terrena e o acusará na próxima. Tudo
isso pode ser encontrado no Talmude.
Midrash Tehillim faz este comentário sobre o versículo de
Salmos 4.4: “Tenham respeito, receiem o mal e vocês não pe-

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206 MENTE EM CHAMAS

carão”. Portanto, temam e respeitem o espírito concupiscente,


e este não os levará ao pecado. Comentário sobre Salmos 36.1:
“Há no meu íntimo um oráculo a respeito da maldade do ímpio:
Aos seus olhos é inútil temer a Deus”; isto indica que a maldade
natural presente no homem tem dito isto a respeito dos maus.
Midrash el Qohelet comenta: “A criança sábia, porém po-
bre, é melhor que um velho rei tolo que não consegue prever
o futuro”. Isto significa que a criança é a virtude e o rei repre-
senta o pecado do homem. É chamado de “rei” porque todos os
membros do corpo lhe obedecem, e “velho” porque habita no
coração humano desde a infância até a velhice. É qualificado de
“tolo” porque leva o homem a trilhar um caminho de destruição
que ele não consegue prever. Encontramos o mesmo comentá-
rio em Midrash Tehillim.
Bereshith Rabbah faz o seguinte comentário sobre Salmos
35.10: “Todo o meu ser exclamará: Quem se comparará a Ti, Se-
nhor? Tu livras os necessitados daqueles que são mais poderosos
do que eles, Tu livras os necessitados e os pobres daqueles que
os exploram”. Pode haver maior tirania que tal poder exercido
pela maldade no coração do homem? A passagem de Provérbios
25.21 também é mencionada: “Se o seu inimigo tiver fome, dê-
lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber”. Isto é o mesmo que
dizer que se a nossa natureza pecaminosa tiver fome, devemos
dar-lhe o pão da sabedoria, que lemos em Provérbios 9.4,5: “Ve-
nham todos os inexperientes! Aos que não têm bom senso ela
diz: ‘Venham comer a minha comida...’”. Se a alma sente sede,
deixe que beba da água mencionada em Isaías 55.1: “Venham,
todos vocês que estão com sede, venham às águas...”. Midrash
Tehillim afirma o mesmo, acrescentando que nesta passagem a
Escritura, ao falar de nosso inimigo, implica nossa própria natu-
reza tola, e que, ao dar deste pão e desta água, iremos amontoar
brasas sobre as suas cabeças.
Midrash el Kohelet menciona Eclesiastes 9.14,15: “Havia
uma pequena cidade, de poucos habitantes. Um rei poderoso

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ESCRITOS RABÍNICOS 207

veio contra ela, cercou-a com muitos dispositivos de guerra.


Ora, naquela cidade vivia um homem pobre, mas sábio, e com
sua sabedoria ele salvou a cidade”. Por esta razão é dito em Sal-
mos 41.1: “Como é feliz aquele que se interessa pelo pobre”.
Novamente, em Salmos 78.39: “Lembrou-se de que eram meros
mortais, brisa passageira que não retorna”. Com base nesta pas-
sagem, alguns têm sido levados ao erro de negar a imortalidade
da alma. Ao invés disso, o espírito deste contexto refere-se ao
mal existente no interior do homem que o acompanha até a
sua morte, mas que não será restaurado na ressurreição. Outras
passagens são mencionadas: Salmos 103.16 e 16.10.
Tomando por base tais textos, os principais rabinos des-
crevem dois messias: um que é forte e poderoso e o outro que é
fraco e sábio (278-446).

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Capítulo XXI

Perpetuidade ou princípios
eternos da fé cristã

250. Qualquer um que julgar a fé judaica com base em


seus partidários mais radicais irá interpretá-la de forma equivo-
cada. Pode ser claramente visto, a partir dos livros sagrados e da
tradição dos profetas, que eles não interpretavam a lei somente
de acordo com a letra. Assim também nossa fé é divina tanto no
Evangelho como nos apóstolos e na tradição, mas ela pode ser
ridicularizada por aqueles que a manejam de forma errônea.
Segundo os judeus apegados às coisas terrenas, o Messias
deveria ser um grande soberano secular. De modo similar, de
acordo com cristãos carnais, Jesus veio para nos dispensar da
necessidade de amar a Deus e para nos dar sacramentos que pro-
duzem seus efeitos sem o nosso auxílio. Isto não é fé, nem cristã,
nem judaica. Pois verdadeiros cristãos, assim como verdadeiros
judeus, sempre mantiveram a expectativa de um Messias que irá
levá-los a amar a Deus e, por meio deste amor, a superar os seus
inimigos (287-607).

251. Em todas as religiões podemos encontrar dois tipos


de pessoas.
Entre os pagãos, há aqueles que cultuam animais e outros
que adoram o único deus da religião natural.

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210 MENTE EM CHAMAS

Entre os judeus, havia aqueles que eram carnais e aqueles


que podiam ser chamados “cristãos” da antiga lei, porque eram
preocupados com o espiritual.
Entre os cristãos, há aqueles que são estreitos de mente e
que podem ser descritos como “os judeus” da nova lei. Os judeus
carnais aguardavam um Messias carnal, enquanto os cristãos
“judeus” acreditam que o Messias os tem dispensado da obriga-
ção de amar a Deus. Judeus e cristãos verdadeiros adoram um
Messias que os leva a amar a Deus (286-609).

252. Os judeus carnais estão no meio entre cristãos e pa-


gãos. Os pagãos não conhecem a Deus e amam apenas o mundo.
Os judeus conhecem o verdadeiro Deus, mas amam apenas o
mundo. Judeus e pagãos amam as mesmas coisas. Judeus e cris-
tãos reconhecem o mesmo Deus.
Os judeus eram de dois tipos: alguns tinham apenas incli-
nações pagãs, enquanto outros tinham aspirações cristãs (289-
608).

253. Em todas as religiões, a sinceridade era fundamental,


de modo que podemos descrever as pessoas como pagãos, judeus
e cristãos verdadeiros (480-590).

254. Eu vejo a fé cristã como fundamentada sobre uma


religião anterior, na qual encontro os seguintes fatos. Não es-
tou falando aqui simplesmente sobre os milagres de Moisés,
de Jesus Cristo e dos apóstolos, porque eles não parecem ser,
à primeira vista, convincentes, e não desejo mencionar nada
como evidência, exceto o que for acima de quaisquer dúvidas
e questionamentos. O certo é que em várias partes do mundo
encontramos um povo característico, distinto de todas as outras
pessoas do mundo, chamado de povo judeu.
Portanto, vejo edificadores de religiões em muitas partes
do mundo e em diferentes tempos da história. Porém, a mora-

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PERPETUIDADE OU PRICÍPIOS ETERNOS DA FÉ CRISTÃ 211

lidade deles falha em me satisfazer e, tampouco, seus argumen-


tos são capazes de me convencer. Eis porque tenho rejeitado
igualmente a religião maometana, ou do oriente, ou dos antigos
romanos e egípcios, única e exclusivamente porque todas elas
permanecem não-convincentes, sem exibir o selo da verdade
ou me forçar a ser persuadido por elas.
Porém, enquanto considero as mutáveis e estranhas va-
riedades de costumes e crenças que têm existido ao longo de
diferentes períodos da história, descubro em um pequeno canto
do planeta um povo peculiar, separado de todos os outros povos
do mundo, cuja história data de muitos séculos antes das mais
antigas histórias que conhecemos.
Assim, encontro este grande e numeroso povo, descenden-
tes de um único homem, adorando a um único Deus e vivendo
conforme os preceitos de uma lei que alegam ter recebido desse
Deus. Eles afirmam ser o único povo entre todos os habitantes
da terra a quem esse Deus revelou Seus mistérios. Eles também
declaram que todos os homens são corruptos e desaprovados
por Deus. Propagam ainda que todos estão à mercê da influên-
cia de seus sentidos e inclinações, e que estranhas aberrações
procedem desse domínio, além de crenças e costumes incertos
entre eles, enquanto os judeus permanecem inabaláveis em sua
conduta. Da mesma forma, afirmam que Deus não permitirá que
as demais nações permaneçam para sempre na ignorância, pois
um Redentor virá para todos no mundo. Eles acreditam que
foram colocados aqui na terra a fim de proclamá-Lo a todos, e
que são expressamente criados com o propósito de serem bate-
dores e arautos dessa grande Vinda, a fim de conclamar todos
os homens a se unirem a eles na expectativa desse Redentor.
Descobrir tal povo me surpreende e me parece ser digno de toda
a atenção.
Enquanto estudo essa lei que afirmam ter recebido de
Deus, descubro que é digna de admiração, pois constitui o pri-
meiro de todos os códigos legais – tanto assim que foi usada an-

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212 MENTE EM CHAMAS

tes de a palavra lei entrar em uso pelos gregos – e foi recebida e


seguida por quase mil anos ininterruptos. Creio ser notável que
esse primeiro código legal no mundo seja também o mais perfei-
to, de modo que todos os maiores legisladores têm emprestado
suas próprias leis dele, como evidenciado pelas doze tábuas de
Atenas [que é pura ficção] e por outras provas apresentadas por
Josefo.
Entretanto, a lei judaica é, ao mesmo tempo, a mais seve-
ra e a mais rigorosa de todas com respeito à prática da religião.
A fim de obrigar as pessoas aos seus deveres, ela as ameaça de
morte com inúmeras, distintas e árduas observações. Apesar
disso, é extraordinário como a lei tem sido preservada, de forma
diligente, ao longo de muitos séculos, por um povo tão rebelde
e impaciente como eles. Enquanto todas as demais nações têm,
de tempos em tempos, modificado as suas leis, em que pese se-
rem muito mais brandas que a dos judeus, estes nunca o fizeram.
O livro que contém essa lei é, em si mesmo, o livro mais anti-
go no mundo. As obras de Homero, Hesíodo e outros surgiram
apenas seis ou sete séculos mais tarde (451-620).

255. É indiscutível o fato de que, enquanto os filósofos


estão divididos em diferentes escolas, pode ser encontrado, em
um canto remoto do mundo, o mais antigo dos povos que de-
clara que toda a humanidade jaz no erro. Ainda assim, Deus
lhes revelou a verdade, que sempre permanecerá sobre a face da
terra. Todas as outras seitas chegam ao fim, mas esse povo tem
sobrevivido por mais de quatro mil anos. Eles declaram que essa
fé tem sido transmitida por seus antepassados e que o homem
perdeu a comunhão com Deus, tornando-se totalmente aliena-
do do Criador. Mas Deus prometeu redimir a humanidade. Essa
doutrina sempre foi ensinada, enquanto sua lei sempre teve sig-
nificância tanto para a condição contemporânea quanto para
o futuro. Por seiscentos anos eles tiveram profetas que, acredi-
tava-se, prediziam o tempo e a maneira [da vinda do Messias].

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PERPETUIDADE OU PRICÍPIOS ETERNOS DA FÉ CRISTÃ 213

Quando, quatrocentos anos depois, eles foram dispersos por


toda a terra, foi para que Jesus Cristo viesse a ser proclamado
universalmente. A leis dos judeus também ensinou a maneira
pela qual Jesus viria, assim como o tempo em que este evento
aconteceria.
Desde então, os judeus têm sido espalhados por todos os
cantos do planeta, embora continuem a sobreviver (456-618).

256. A sinceridade dos judeus. Com extremo zelo e fideli-


dade, os judeus têm preservado esse livro no qual Moisés decla-
ra a ingratidão do povo para com Deus por toda a vida, e que
ele sabia que esse sentimento aumentaria ainda mais após a sua
morte. Ele conclama o Céu e a terra a testemunhar contra eles,
de maneira muito clara, a fim de mostrar a ingratidão deles.
Ele declara que Deus, no fim, Se indignará com o povo,
dispersando-os entre as nações do mundo, pois eles O ofende-
ram ao adorarem falsos deuses. Assim, Ele os provocará cha-
mando um povo para substituí-los como povo de Deus. Deus or-
dena que todas as Suas palavras sejam preservadas para sempre,
e que Seu Livro seja guardado na arca da aliança, para servir de
perpétuo testemunho contra eles. Isaías afirma o mesmo (Isaías
30.8) (452-631).

257. A continuidade da fé. A única religião que é contra a


natureza humana, o senso comum e o egoísmo do homem tam-
bém é a única a sempre existir (284-605).

258. O único conhecimento contrário à natureza humana


e ao bom senso é o único a sempre existir entre a humanidade
(425-604).

259. [Essa fé bíblica que possui tal continuidade] consiste


em acreditar que o homem decaiu de um estado de glória e re-
lacionamento com Deus para uma condição de desespero, alie-

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214 MENTE EM CHAMAS

nação e necessidade de arrependimento, mas que após esta vida


seremos restaurados por meio de um Messias prometido. Isto
sempre existiu. Todas as coisas já passaram, mas esta verdade,
pela qual são todas as coisas, tem permanecido.
Na primeira era do mundo, os homens eram levados de
roldão por todo e qualquer tipo de ação condenável, mas ainda
assim havia homens de Deus como Enoque, Lameque e outros
que, pacientemente, aguardaram o Messias prometido desde o
princípio do mundo. Noé viu a maldade humana e teve o privi-
légio de salvar a humanidade em sua própria pessoa porque sua
esperança estava no Messias, o qual ele prefigurou. Abraão vi-
via cercado por idólatras quando Deus lhe revelou o mistério do
Messias, a quem ele saudou à distância. Nos tempos de Isaque e
Jacó, o mal estava sobre toda a terra, mas estes devotos homens
perseveraram em sua fé. Jacó, ao abençoar os filhos em seu leito
de morte, clamou em um êxtase que interrompeu a sua fala: “Ó
Senhor, eu espero a tua libertação!” (Gênesis 49.18).
Os egípcios viviam cheios de idolatria e magia e, até mes-
mo o povo de Deus, foi atraído pelo exemplo deles. Não obstante,
Moisés e outros creram em Deus, a quem não tinham visto, fixan-
do sua atenção nos dons eternos que Ele lhes estava preparando.
Os gregos e, mais tarde, os romanos estabeleceram falsos
deuses. Seus poetas criaram uma centena de diferentes sistemas
teológicos, enquanto seus filósofos os dividiam em diferentes
escolas de pensamento. Mas, ainda assim, no coração da Ju-
déia, sempre houve homens escolhidos que profetizavam a vin-
da daquele Messias, que fora revelado apenas a eles. O próprio
Messias veio no pleno cumprimento dos tempos e, desde então,
temos presenciado o surgimento de tantos cismas e heresias,
tantas nações destruídas, tantas mudanças de toda sorte, en-
quanto a igreja que O cultua tem sido preservada incólume.
O maravilhoso, singular e totalmente divino é que essa reli-
gião sobrevivente tem estado sob constante e intenso ataque.
Por diversas vezes quase chegou à total extinção, porém sempre

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PERPETUIDADE OU PRICÍPIOS ETERNOS DA FÉ CRISTÃ 215

que esteve perto desta condição, Deus a restaurou por meio da


extraordinária manifestação de Seu poder. Realmente, isto é
incrível, de tal sorte que o fato de haver sobrevivido sem ja-
mais ter se curvado à vontade de um tirano sugere que suas leis
podem ter se rendido à necessidade, [mas ainda transcende as
circunstâncias] (281-613).

260. Deus almejou criar um povo para Si, um povo santo


que Ele manteria isolado de todas as demais nações, livrando-o
de todos os seus inimigos e conduzindo-o a um lugar de descan-
so. Ele prometeu assim agir, antecipando, por meio de seus pro-
fetas, o tempo e a maneira de Sua vinda. A fim de fortalecer a
esperança do povo escolhido, ao longo dos tempos, Ele lhes deu
a imagem de tudo isso; Ele não os deixou sem demonstrações de
Seu poder e vontade quanto à salvação deles. Adão, na criação
do homem, foi uma testemunha disso, recebendo a promessa de
um Salvador que seria nascido da mulher.
Em um tempo no qual a humanidade estava tão perto do
princípio do mundo de modo a não se esquecer de sua própria
criação e queda, embora Adão já não mais estivesse vivendo
aqui, Deus enviou Noé, salvando-o e aniquilando todo o mun-
do por meio de um milagre, o que claramente demonstrou o
poder de Deus para salvar o mundo. Ele expressou a Sua vonta-
de de assim agir e de fazer nascer da semente da mulher Aquele
que havia sido prometido.
Este milagre foi adequado para fortalecer a esperança dos
eleitos. A memória do dilúvio permaneceu muito fresca entre
a humanidade; enquanto Noé ainda estava vivo, Deus fez pro-
messas a Abraão, e, enquanto Sem ainda vivia, Deus também
enviou Moisés (392-644).

261. Se a igreja primitiva estivesse em engano, a igreja


de nossos dias seria decaída. Mas, ainda que ela pudesse cair em
erros, nos dias atuais, a situação não seria a mesma, pois sempre

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216 MENTE EM CHAMAS

há a orientação superior da tradição da fé da igreja primitiva.


Esta submissão e conformidade, com relação à igreja primitiva,
prevalecem e corrigem todos os erros. Porém, a igreja primitiva
não pressupôs a futura igreja nem a considerou, da mesma forma
que a pressupomos e consideramos (285-867).

262. A história da igreja deveria ser mais precisamente


denominada de “a história da verdade” (776-858).

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Capítulo XXII

Provas de Moisés

263. A antiguidade dos judeus. Que contraste há entre um


livro e outro! Não é surpresa que os gregos tenham composto a
Ilíada, nem os egípcios e chineses suas próprias histórias. Você
apenas precisa ver como elas foram escritas. Esses historiadores
de lendas e fábulas não eram contemporâneos dos fatos sobre os
quais escreveram. Homero compôs uma história que foi ofere-
cida e aceita como tal. Ninguém jamais questionou que Tróia e
Agamenon jamais tenham existido de verdade, tão inverossímeis
quanto a fábula da maçã dourada. Ele nunca pretendeu escrever
uma história a esse respeito, mas apenas um entretenimento. Ele
é o único escritor destacado de seu tempo, pois a beleza da obra
literária é que tem possibilitado sua sobrevivência. Todos apren-
dem e discutem essa obra, pois é algo para ser conhecido cultu-
ralmente e todos a conhecem de cor. Quatrocentos anos mais
tarde, as testemunhas desses fatos não mais existiam. Ninguém
mais sabe, por sua própria experiência, afirmar se essa obra é uma
fábula ou história. Simplesmente, ela foi aprendida por meio das
gerações anteriores, passando, desta maneira, por verdade.
Porém, qualquer história que não seja escrita por um con-
temporâneo é passível de suspeição. Assim, os livros de Sibylli-
ne e Trismegistus e muitos outros que têm desfrutado de credi-

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218 MENTE EM CHAMAS

bilidade são falsos e, com o passar do tempo, têm surgido provas


desta condição. No entanto, isto não se aplica aos autores con-
temporâneos, pois existe uma grande diferença entre um livro
composto por um indivíduo, transmitido por ele às pessoas, e
um livro que as pessoas escrevem. Assim, não há dúvidas de que
um livro é tão antigo quanto as pessoas (436-628).

264. Por que Moisés representa as vidas da humanidade


tão longas e suas gerações tão poucas? Não é a extensão de anos,
mas uma multidão de gerações que torna as coisas obscuras. Pois
a verdade somente é pervertida quando os homens mudam. E,
ainda assim, os dois mais significativos eventos já imaginados,
ou seja, a criação e o dilúvio, são colocados tão proximamente
que nos parece possível tocar em ambos (292-624).

265. Outro Círculo. A longevidade dos patriarcas, ao invés


de provocar o esquecimento de eventos passados, ajuda a preser-
vá-los. Algumas vezes, não estamos bem informados a respeito da
história de nossos antepassados porque dificilmente vivemos com
eles por algum período de tempo e, com freqüência, já estão mor-
tos antes que alcancemos a idade da razão. Assim, na época em
que os homens viviam por muitos anos, os filhos viviam por mui-
to tempo na companhia de seus pais. Eles mantinham os relatos e
conversas por um prolongado período. E sobre o que mais eles po-
diam conversar a não ser sobre a história de seus ancestrais? Isto
foi tudo que a história realmente acumulou. Eles não dispunham
de estudo, nem ciências ou arte que, nos dias de hoje, ocupam a
maior parte de nossas conversações diárias. Igualmente, desco-
brimos que, naquele tempo, as pessoas tinham uma preocupação
especial em preservar as suas genealogias (290-626).

266. Sem, que viu Lameque, que viu Adão, também viu
Jacó, que viu os que viram Moisés. [Com tal continuidade], eis
porque as histórias sobre o dilúvio e a criação são verdadeiras.

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PROVAS DE MOISÉS 219

Esta evidência é conclusiva entre certas pessoas que realmente


compreendem o assunto (296-625).

267. Quando o evento da criação começou a ficar no pas-


sado remoto, um notável historiador contemporâneo foi levan-
tado por Deus, que confiou a um povo inteiro a preservação de
seu livro, de modo que esta poderia ser a mais autêntica história
do mundo. Assim, todos os homens podiam aprender algo cujo
conhecimento era fundamental e que só estava disponível nessa
obra (474-622).

268. Quando a criação e o dilúvio aconteceram, Deus


prometeu não apenas que jamais destruiria o mundo dessa ma-
neira novamente, mas também que Se revelaria de muitas e
maravilhosas formas. Deus iniciou estabelecendo um povo so-
bre a terra, especialmente criada, o qual deveria permanecer até
que o Messias criasse um povo por meio de Seu próprio Espírito
(435-621).

269. Enquanto os profetas estiveram lá para manter a lei,


o povo não deu atenção a ela, mas quando eles não estavam
mais lá, instaurou-se o zelo por parte deles (294-703).

270. O zelo do povo judeu com respeito a sua lei era notá-
vel, especialmente a partir da ausência dos profetas (297-702).

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Capítulo XXIII

Provas de Jesus Cristo

271. [Chegamos agora a] Jesus Cristo, sobre quem os dois


Testamentos dizem respeito. O Antigo foca a expectativa, en-
quanto o foco do Novo Testamento é a realização. Porém, Jesus
está bem no centro de ambos (388-740).

272. Só Jesus Cristo poderia gerar um grande povo, tê-


los eleito para serem santos e escolhidos, liderá-los, alimentá-
los e conduzi-los a um lugar de descanso e santidade. Ele é o
Único capaz de torná-los santos para Deus, templos divinos,
por meio da reconciliação deles com Deus, salvando-os da ira
divina. Apenas Ele poderia resgatá-los da escravidão do pe-
cado que, de maneira tão evidente, domina a humanidade,
fornecendo leis a este povo e escrevendo-as em seus corações.
Somente Cristo poderia oferecer-Se a Deus em lugar dos ho-
mens, sacrificando-Se por eles como oferta perfeita, tornando-
se Ele mesmo o Sumo Sacerdote que oferece o próprio corpo
e sangue, oferecendo pão e vinho em culto a Deus. Como está
escrito em Hebreus 10.5: “Quando Cristo veio ao mundo...”.
A referência é feita, novamente, em Marcos 13.2, onde lemos
que quando o templo fosse totalmente destruído não restaria
“pedra sobre pedra”. Então, o que veio antes continuaria após.

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222 MENTE EM CHAMAS

Comparados a Jesus Cristo, os judeus simplesmente sobrevi-


vem como errantes. (608-766).

273. Numerosas profecias são feitas com respeito ao Messias:


uma parábola (Ezequiel 17); Seu precursor (Malaquias 3); Ele vi-
ria como uma criança (Isaías 9); Ele nasceria na cidade de Belém
(Miquéias 5); Ele atuaria principalmente em Jerusalém, e nasceria
da família de Judá e Davi. Foi profetizado que Ele seria o Único
a cegar os sábios e os cultos (Isaías 6, 8-29, 61). Ele anunciaria as
boas novas aos pobres e humildes, abriria os olhos do cego, curaria
enfermos e conduziria os que definham nas trevas para a luz (Isaías
61). Ele é predito como o Único a ensinar o caminho da perfeição
e ser o Mestre dos gentios (Isaías 56; 42.1-7).
De fato, as profecias são ininteligíveis para os incrédulos
(Daniel 12; Oséias 14.9). Mas elas seriam compreendidas por
aqueles que fossem adequadamente instruídos nelas. As profecias
representam o Messias como pobre, mas ainda assim O vêem go-
vernando as nações (Isaías 52.13–53.12; Zc 9.9). As profecias que
anteciparam o tempo de Sua vinda falam dele como o soberano
dos gentios e, ainda assim, o Único que sofre, não surgindo de for-
ma transcendente entre as nuvens e como um juiz. Aquelas profe-
cias que falam dEle como juiz e de Sua glória não especificaram o
tempo. Elas também O descrevem como a vítima dos pecados do
mundo (Isaías 49, 53).
Ele é profetizado como a preciosa pedra angular (Isaías
28.16). Ele é pedra de tropeço e rocha de ofensa (Isaías 8). Jeru-
salém seria destruída contra essa pedra. Os construtores a rejei-
tariam (Salmos 118.22). No entanto, Deus faria dela a pedra de
esquina. Ele se transformaria em uma grande montanha que en-
cheria toda a terra (Daniel 2). Mas as profecias também falam
de Sua rejeição, não reconhecimento e traição (Salmos 109).
Foi predito que Ele seria vendido em traição (Zacarias 11.12),
que cuspiriam nEle, o açoitariam e caçoariam dEle, afligindo-O
de muitas maneiras, e Lhe dariam vinagre para beber (Salmos

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PROVAS DE JESUS CRISTO 223

69.21). Seu corpo seria perfurado (Zacarias 12.10), Suas mãos e


pés seriam pregados. Ele seria morto e Sobre Suas vestes seriam
lançadas sortes (Salmos 22).
No entanto, Ele ressuscitaria ao terceiro dia (Salmos 16;
Oséias 6.2). Ele ascenderia aos céus para sentar-Se à direita de
Deus (Salmos 110). Foi profetizado que reis pegariam em armas
para combatê-Lo (Salmos 2). Ao vencer todos os Seus inimigos,
Ele se sentaria à direita do Pai. Os reis da terra e todos os povos O
adorariam (Isaías 60). Os judeus seriam preservados como nação
(Jeremias). Eles vagariam errantes sem reis (Oséias 3) e sem pro-
fetas (Amós), aguardando a salvação, porém não a encontrando
(Isaías). Os gentios seriam chamados por meio de Jesus Cristo
(Isaías 52.15; 55-60; Salmos 72.8-17). Oséias 1.9-10 profetiza:
“Então o Senhor disse: ‘Dê-lhe o nome de Lo-Ami, pois vocês
não são meu povo, e eu não sou seu Deus... No lugar onde se dizia
a eles: Vocês não são meu povo; eles serão chamados de filhos do
Deus vivo’” (487-727).

274. Moisés primeiro ensinou a Trindade, o pecado origi-


nal e o Messias. Davi foi uma grande testemunha: Ele é terno,
bom, misericordioso, nobre de alma, poderoso e com uma men-
te elevada. O que ele profetiza se cumpre. Isto não tem limi-
tes. Se ele fosse cheio de vaidade, poderia ter-se autodeclarado
como o Messias , pois as profecias eram mais claras sobre ele do
que sobre Jesus Cristo. O mesmo pode se dizer com respeito ao
apóstolo João (315-752)

275. A sinagoga surgiu antes da igreja, assim como os ju-


deus com relação aos cristãos. Porém, os profetas profetizaram
sobre os cristãos, o apóstolo João e Jesus Cristo (319-699).

276. O zelo dos judeus pela lei e pelo templo está bem evi-
denciado nos escritos de Josefo e Filo, o judeu. Que outro povo
demonstrou tal zelo? Talvez isso tenha sido necessário.

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224 MENTE EM CHAMAS

Jesus predisse os tempos e a condição do mundo. Gênesis


49.10 O descreve como “bastão de comando” e Daniel 2.40 fala
sobre um “quarto reino”. Como somos afortunados em possuir
essa luz em meio a tanta escuridão! Que bom é ver com os olhos
da fé personagens como Dario e Ciro, Alexandre, os romanos,
Pompéia e Herodes, todos eles dando sua contribuição, ainda
que de forma inconsciente, para a glória do Evangelho! (317-
701).

277. Quando no cativeiro os judeus tiveram a confirma-


ção de que seriam libertados após setenta anos, na realidade
isto não foi um cativeiro. Porém, agora, eles estão cativos e sem
esperança. Deus lhes prometeu que ainda que Ele lhes permitis-
se serem espalhados pelos quatro cantos do mundo, se perma-
necessem fiéis à Sua lei, Ele os reuniria novamente. Ainda que
sob intensa opressão, os judeus permaneceram fiéis à lei de Deus
(305-638).

278. Quando Nabucodonosor levou o povo cativo, Deus,


de antemão, lhes revelou que o cativeiro não duraria muito
tempo e que eles seriam restaurados, para que não pensassem
que a autoridade real havia sido removida para sempre de Judá
(Jeremias 29.10). Eles foram confortados por meio dos profetas
e sua casa real foi preservada. No entanto, a segunda destruição
veio sem qualquer promessa de restauração – sem a presença de
profetas, reis, consolação e esperança, porque o cetro foi remo-
vido para sempre (314-639).

279. É de fato incrível e notável ver como o povo judeu


tem conseguido sobreviver ao longo de tantos séculos, sempre
difíceis e desafortunados. Porém, isso é necessário como uma
prova de Jesus Cristo, pois eles devem sobreviver para demons-
trar quem Ele é e ainda será nessa condição infeliz, desde que O
crucificaram. E, embora seja um paradoxo que eles tanto devam

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PROVAS DE JESUS CRISTO 225

sobreviver como ser afligidos, eles ainda sobrevivem, apesar de


seus infortúnios (311-640).

280. O retrato do Evangelho. Parece haver uma aparente


discrepância entre os Evangelhos (318-755).

281. Quem ensinou aos evangelistas as qualidades de uma


alma supremamente heróica, de modo que a retratassem de for-
ma tão perfeita em Jesus Cristo? Ainda, por que, então, mostrá-
Lo como fraco em Sua agonia? Eles não sabem como retratar
uma morte resoluta? Sim, de fato, pois o mesmo Lucas descreve
a morte de Estêvão de maneira mais heróica que a própria mor-
te de Jesus Cristo (Atos 7.58-60).
Eles O retrataram como capaz de sentir medo, diante da
crescente inevitabilidade de Sua morte, como também Sua ab-
soluta determinação. Mas quando os evangelistas O mostram
tão afligido, é quando Ele mesmo Se aflige. No entanto, quando
os homens O afligem, a Sua resolução é inabalável (316-800).

282. Ou os apóstolos foram enganados ou eram engana-


dores. Mas as duas suposições são sustentadas com dificuldades,
pois não é possível equivocar-se com um homem que ressusci-
tou dentre os mortos.
Assim, pelo tempo que permaneceu entre eles, Jesus Cris-
to os liderou, mas, após sua ascensão, se Ele não mais lhes apa-
receu, quem os inspirou em suas ações? (322-802).

283. A hipótese de que os apóstolos teriam sido im-


postores é totalmente absurda. Vamos examinar essa pos-
sibilidade de maneira crítica e apenas imaginar os doze
homens reunidos após a morte de Jesus, conspirando para
afirmar que Ele havia ressuscitado dentre os mortos. Ao
fazerem isso, eles estavam atacando todos os poderes esta-
belecidos à época. Agora, uma vez que o coração humano

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226 MENTE EM CHAMAS

é extremamente inconstante, suscetível a mudanças, pro-


messas e suborno, considere as conseqüências. Entretanto,
se apenas um deles fosse convencido a negar essa história
sob tais ações persuasivas, ou se alguns mais se sentissem
aterrorizados diante da perspectiva de serem aprisionados,
torturados e mortos, todos eles estariam irremediavelmente
perdidos. Porém, como isso não ocorreu, a conclusão lógica
é evidente. (310-801)

284. O estilo dos Evangelhos é notável sob muitos aspec-


tos. Uma de suas características é que eles nunca despejam in-
júrias contra os executores e inimigos de Cristo. Nenhum deles,
como historiadores, escreve contra Judas, Pilatos ou qualquer
dos judeus.
Se essa restrição dos evangelistas tivesse contribuído para
a fé, juntamente com muitas outras características nobres pre-
sentes em seu estilo, e se eles apenas colocassem isso com a
intenção de chamar atenção, não ousando eles mesmos reparar
nisso, não teriam falhado em fazer amigos em benefício próprio
por meio de tais observações. Porém, uma vez que agiram com
integridade e sem auto-interesse, eles não levaram ninguém a
reparar nesses fatos. Eu creio que muitas dessas coisas jamais
tinham sido observadas antes. Isto apenas mostra como o com-
portamento deles foi singular (812-798).

285. Qualquer um pode fazer o que Maomé fez. Ele não


realizou milagres e não foi profetizado. Ninguém pode fazer o
que Jesus Cristo fez (598-600).

286. Um trabalhador que fale sobre riquezas, um advogado


que fale sobre guerra ou da realeza [falará de maneira inadequada].
Mas o homem rico fala acertadamente sobre riqueza, o rei pode
falar indiferentemente sobre um grande presente que tenha dado
e, assim, Deus fala corretamente sobre Ele mesmo (303-799).

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PROVAS DE JESUS CRISTO 227

287. Jesus Cristo falou sobre coisas sublimes de maneira


tão simples que parece não as ter considerado, e as expressa tão
claramente que vemos exatamente o que Ele pensou a respeito
delas. Tal combinação de clareza e simplicidade é maravilhosa
(309-797).

288. A igreja tem enfrentado dificuldades tanto em de-


monstrar que Jesus Cristo foi homem, contra os que negam este
fato, quanto em demonstrar que Ele era Deus, muito embora
ambos sejam evidentes (307-764).

289. A obscuridade de Jesus Cristo. Jesus Cristo está en-


volto em tal obscuridade (de acordo com o que o mundo en-
tende por este termo) que historiadores, preocupados apenas
em escrever sobre importantes assuntos de estado, raramente O
notaram (300-786).

290. Que outro ser humano obteve maior glória? Toda a


nação judaica O prevê antes de Sua vinda, enquanto os gentios
O adoram após Seu advento. Tanto o povo judeu quanto os
gentios O consideram como seu foco principal.
Ainda, que homem ao menos já desfrutou de tal glória?
Pois, 30 anos, dos 33 que viveu, Ele passou no anonimato. E
nesses três anos de vida pública ele foi tratado como um im-
postor. Os sacerdotes e governadores O rejeitaram. Os que Lhe
eram mais próximos e queridos O desprezaram. Finalmente, Ele
morreu traído por um de seus discípulos, foi negado por outro e
abandonado por todos.
Que benefício, então, Jesus obteve de tal glória? Se nin-
guém desfrutou de glória maior, também ninguém sofreu vergo-
nha maior. Toda essa glória tem sido apenas para nosso bene-
fício, para nos ajudar a reconhecê-Lo, pois Ele não considerou
nada disso para Si mesmo (499-792).

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228 MENTE EM CHAMAS

291. A infinita distância entre a mente e o corpo é um


símbolo da distância infinitamente maior entre o intelecto e o
amor, pois o amor é divino.
Todo o esplendor da grandeza não atrai os que estão enga-
jados na busca de sabedoria. A grandeza dos sábios não é visível
aos reis, aos abastados, aos líderes militares e a todos os que são
grandes no sentido terreno.
A grandeza da sabedoria, que não é nada exceto se con-
cedida por Deus, não é vista pelos que estão voltados a coisas
terrenas e materiais, ou pelas pessoas intelectuais. Eles repre-
sentam três ordens distintas que diferem em caráter.
Os grandes gênios possuem seu domínio, seu esplendor,
sua grandeza, sua vitória e reputação e, assim, não precisam de
um reconhecimento terreno, com o qual não têm nenhuma afi-
nidade. Pois eles não são visíveis exteriormente, mas apenas à
mente, e isto basta. Igualmente, os santos possuem seu domínio,
seu brilhantismo, sua vitória, seu esplendor e também não pre-
cisam do reconhecimento terreno, nem da grandeza intelectual,
que não tem qualquer relevância para eles, pois não aumenta ou
diminui sua própria estatura. Pois Deus e as hostes angelicais os
reconhecem, mas não por meio do corpo ou de mentes curiosas.
Deus lhes basta.
Arquimedes, ainda que na obscuridade, nos inspira
respeito. Ele enfrentou batalhas não visíveis aos olhos hu-
manos, mas, não obstante, enriqueceu todas as mentes com
suas descobertas. Quão magnificamente brilhou nas mentes
humanas!
Jesus Cristo, sem possuir riquezas ou qualquer demonstra-
ção exterior de conhecimento, ocupa Sua própria posição em
santidade. Ele não fez descobertas, não dominou, mas foi hu-
milde, paciente, santo aos olhos de Deus, terrível com os demô-
nios, e sem pecado algum. Óh!, com que pompa e maravilhosa
glória Ele revela a Si mesmo aos olhos do coração que percebe
a sabedoria!

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PROVAS DE JESUS CRISTO 229

Teria sido inútil para Arquimedes desempenhar o papel


de príncipe em seus trabalhos matemáticos, embora fosse, de
fato, um príncipe. Igualmente, não teria sido de grande utili-
dade para Jesus Cristo vir como rei com o tipo de glória inade-
quada para Seu propósito. Assim, é um total absurdo sentir-se
escandalizado pela humildade de Jesus, como se essa humildade
fosse da mesma ordem que a grandeza que veio revelar, pois se
considerarmos a Sua grandeza em vida, Sua paixão, Sua obscu-
ridade e Sua morte, em Sua secreta ressurreição, e no restante,
não há qualquer razão para nos sentirmos chocados pela Sua
humildade, que não é da mesma ordem.
Porém, há alguns que são capazes apenas de admirar a
grandeza terrena, como se não existisse algo como eminência
intelectual ou como se não houvesse formas infinitamente mais
elevadas de grandeza no reino da sabedoria. Todos os corpos, o
universo, as estrelas, a terra e seus reinos não são equivalentes
à menor das mentes, pois esta conhece todas as outras coisas,
assim como a si mesma, enquanto que os corpos nada conhe-
cem. Portanto, todos os corpos reunidos e todas as mentes, com
todos os seus produtos, não são dignos de serem comparados
com a menor ação do amor, que pertence a uma ordem de coi-
sas infinitamente mais elevada. É impossível se obter um único
e pequeno pensamento de todos os corpos reunidos, uma vez
que o pensamento pertence a uma dimensão diferente. De igual
modo, não se pode produzir qualquer sentimento de amor ver-
dadeiro de uma combinação de todos os corpos e mentes. Isto
não é possível porque o amor pertence a uma outra dimensão,
que é sobrenatural (308-793).

292. Contra a objeção de que a Escritura não possui uma ordem.


O coração tem a sua própria ordem, assim como a mente, que uti-
liza princípios e demonstrações. O coração tem uma distinta, de
modo que a nosso clamor por ser amados não pode ser suprida pela
colocação em ordem das causas do amor, pois isto seria absurdo.

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230 MENTE EM CHAMAS

Jesus Cristo e Paulo empregaram o método do amor, não


do intelecto. Eles buscaram promover a humildade, não a ins-
trução. O mesmo ocorreu com Santo Agostinho. Este méto-
do consiste, primariamente, em desviar-se de qualquer ponto
relacionado com o fim, de modo que isso sempre fique visível
(298-283).

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Capítulo XXIV

Profecias da Escritura

293. O clímax de tudo o que foi profetizado foi demons-


trar que tudo o que aconteceu não foi devido ao acaso.
Qualquer um que disponha apenas de uma semana de
vida não está interessado em acreditar que tudo isso é apenas
obra do acaso.
Agora, se as paixões não tivessem nenhuma influência
sobre nós, o fato de termos sete dias ou cem anos de vida signi-
ficaria a mesma coisa (326-694).

294. Porém, não foi apenas por essa razão que deveria
haver profecias. Elas tinham de ser comunicadas aos quatro
cantos do mundo e preservadas ao longo das gerações. Desta
forma, não poderia ser imaginado que, por mero acaso, houve
a profecia sobre a vinda do Messias. Assim, na verdade, foi
muito mais para a glória do Messias que os judeus tivessem
de ser os espectadores, e mesmo instrumentos de Sua glória,
em separado do fato de que Deus havia proposto isso para eles
(385-707).

295. As profecias são as provas mais fortes a favor de Jesus


Cristo. Foi para isso que Deus deixou tantas evidências, pois o

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232 MENTE EM CHAMAS

evento que as cumpriu é um milagre que permanece desde o


início até o fim da igreja. Com este propósito Deus levantou
profetas por um período de mil e seiscentos anos e, então, du-
rante quatrocentos anos, Ele propagou as profecias por meio
da diáspora dos judeus, transmitindo-as a todos os cantos do
planeta. Esta foi a preparação para o nascimento de Jesus Cris-
to. Uma vez que Seu Evangelho tinha de ser crido por todo o
mundo, era necessário que não apenas as profecias estivessem
ali para criar tal crença, mas também que elas fossem espalhadas
por todas as nações do mundo de modo que todas as pessoas da
terra pudessem abraçar tal fé (335-706).

296. Só podemos permanecer em assombro diante de um


homem que, claramente, prevê acontecimentos que venham a
ocorrer, que declara sua intenção como sendo tanto de iluminar
quanto de cegar e que mistura a obscuridade com coisas crista-
linas que se concretizam (344-756).

297. Se apenas um homem tivesse escrito profecias a res-


peito de Jesus Cristo, predizendo o tempo e a forma de Seu ad-
vento, e se Jesus tivesse vindo de acordo com suas profecias, isso
já seria de grande relevância.
Porém, há muito mais coisas a esse respeito. Por cerca de
quatro mil anos, muitos homens sucederam uns aos outros e, de
maneira consistente e constante, fizeram profecias sobre o mesmo
evento. Todo um povo proclamou esse evento e existiu pelo mesmo
período de tempo, a fim de constituir um testemunho corporativo
de afirmações que haviam recebido e do qual não podiam se esque-
cer, não importando o tipo de ameaças e perseguições que fossem
obrigados a sofrer. Isto é muito mais impressionante (332-710).

298. Portanto, durante mil e seiscentos anos, houve ho-


mens que o povo acreditava serem profetas, predizendo a forma
e o tempo de Seu advento.

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PROFECIAS DA ESCRITURA 233

Quatrocentos anos mais tarde, os judeus foram espalha-


dos, porque Jesus Cristo tinha de ser proclamado em todos os
lugares. Desde então, os judeus têm sido mantidos em todo lugar
como uma maldição, mas ainda assim sobrevivem como povo
(456-618).

299. É preciso ter coragem para predizer a mesma coisa


em diferentes formas. Os quatro reinados, idólatras ou pagãos,
o fim do reino de Judá e as setenta semanas, tudo tinha que
acontecer ao mesmo tempo e antes de o segundo templo ser
destruído (336-709).

300. A pequena pedra de Daniel 2.34,35 implica que


Jesus seria pequeno no início, porém cresceria depois. Se eu
jamais tivesse ouvido qualquer coisa sobre o Messias, mes-
mo após ver o cumprimento de profecias tão maravilhosas,
veria que isso é realmente de Deus. E se eu conhecesse esses
mesmos livros predizendo um Messias, teria plena certeza de
Sua vinda, e vendo que os livros estabeleciam o tempo desse
advento por acontecer antes da destruição do segundo tem-
plo, teria total confiança em afirmar que Ele, de fato, já veio
(329-734).

301. Após muitos profetas O terem antecedido, Jesus


Cristo, finalmente, veio para dizer: “Aqui estou eu, é chegada a
hora. O que os profetas disseram que aconteceria na plenitude
dos tempos, eu lhes digo, meus apóstolos, irá se cumprir. Os ju-
deus serão expulsos, Jerusalém será em breve destruída. Os ím-
pios entrarão no conhecimento de Deus. Isto se cumprirá após
vocês matarem o herdeiro da vinha” (Marcos 12.8).
Então, os apóstolos disseram aos judeus: “Vocês serão
amaldiçoados” (embora Celsus risse desta afirmação). E disse-
ram aos pagãos: “Vocês entrarão no conhecimento de Deus”, e
isto veio a ocorrer (327-770).

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234 MENTE EM CHAMAS

302. Foi predito que, ao tempo da vinda do Messias, Ele


estabeleceria uma nova aliança que os faria esquecer como fo-
ram retirados do Egito (Jeremias 23.7; Isaías 43.16). Igualmente,
foi predito que Ele estabeleceria a Sua lei não em coisas exte-
riores, mas no íntimo de seus corações; e que Ele implantaria o
temor do Senhor, que sempre foi uma expressão exterior, dentro
do mais profundo de seus corações. Quem não consegue ver que
a lei cristã é tudo isso? (346-729).

303. Foi profetizado que os judeus iriam rejeitar Jesus


Cristo e que seriam rejeitados por Deus, porque a videira esco-
lhida tinha gerado somente uvas amargas. Foi também predito
que o povo escolhido seria infiel, ingrato e incrédulo (Romanos
10.21; ver Isaías 65.2). Eles foram descritos como “um povo de-
sobediente e obstinado”.
Também foi predito que Deus iria lhes infligir uma ceguei-
ra, de modo que eles caminhariam às apalpadelas, ao meio-dia,
como os cegos. À frente do Messias viria também um precussor
a fim de preparar o Seu caminho (Malaquias 3.1) (347-735).

304. Já que os eventos subseqüentes têm provado que


essas profecias foram divinamente inspiradas, o restante delas
deveria ser crido; portanto, podemos ver a ordem do mundo
dessa maneira.
Quando os milagres da criação e do dilúvio começaram a
ser esquecidos, Deus, então, enviou a lei, os milagres de Moisés
e os profetas que profetizaram certos eventos. Deste modo, a
fim de preparar o milagre derradeiro, Deus preparou profecias e
seu cumprimento. Portanto, para que as próprias profecias não
pudessem ser questionadas, Ele desejou que fossem acima de
qualquer suspeita (594-576).

305. Portanto, eu rejeito todas as demais religiões e descu-


bro uma resposta para todas as objeções. É razoável que um Deus

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PROFECIAS DA ESCRITURA 235

sobremodo santo Se revele apenas para aqueles cujos corações


são santificados. Deste modo, essa religião atrai pessoas, e eu a
considero cabalmente convincente por meio de moralidade tão
divina. Porém, eu descubro mais em um que no outro. Descubro
que, tanto quanto a memória humana pode retroceder, há re-
gistros de um povo mais antigo que qualquer outro. Os homens,
de maneira constante, têm ouvido que são totalmente corrup-
tos, mas que um Redentor viria. Não foi apenas um homem
que trouxe esta palavra, mas inúmeros outros e, de fato, uma
nação inteira, que profetizou este evento de maneira explícita,
por quatro mil anos. Seus livros foram difundidos ao longo de
todo esse tempo.
Quanto mais estudo esta matéria, tanto mais verdade eu
encontro. Uma nação inteira prediz Seu advento e todo um
povo O cultua após esse mesmo advento. O que veio antes
também veio após. A sinagoga que veio antes dEle, inúmeros
judeus miseráveis sem profetas vieram a Ele. Todos os que,
apesar da hostilidade, foram testemunhas notáveis da verdade
presente nas profecias que antecipavam sua própria cegueira
e infelicidade. Finalmente, os judeus encontram-se sem ídolos
ou rei.
A assustadora escuridão dos judeus foi profetizada: “Ao
meio-dia vocês ficarão tateando às escuras, como um cego na
escuridão. Vocês não serão bem-sucedidos em nada que fizerem;
dia após dia serão oprimidos e roubados, sem que ninguém os
salve” (Deuteronômio 28.29). Também foi predito: “Para vocês
toda esta visão não passa de palavras seladas num livro. E se
vocês derem o livro a alguém que saiba ler e lhe disserem: ‘Leia,
por favor’, ele responderá: ‘Não posso; está lacrado. Ou, se vocês
derem o livro a alguém que não saiba ler e lhe disserem: ‘Leia,
por favor’, ele responderá: ‘Não sei ler’” (Isaías 29.11,12).
Embora o cetro real ainda esteja em mãos do primeiro
usurpador estrangeiro, há esse rumor do advento de Cristo.
Como eu me maravilho diante dessa fé original e inspiradora:

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236 MENTE EM CHAMAS

totalmente divina em sua autoridade, continuidade, longevida-


de, moralidade, conduta, doutrina e em seus efeitos.
Assim, eu estendo as minhas mãos para o meu Salvador, o
qual, tendo sido profetizado por cerca de quatro mil anos, veio
a este mundo para morrer e sofrer por mim, no tempo e nas cir-
cunstâncias preditas. Por meio de Sua graça posso aguardar até
mesmo a morte em tranqüilidade, na esperança de estar junto a
Ele por toda a eternidade. Enquanto isso, vivo cheio de alegria,
com as bênçãos que Ele se agrada em me conceder ou com as
aflições que Ele permite para o meu próprio bem e por meio das
quais me ensina como resistir pelo exemplo da fé (593-737).

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Capítulo XXV

Figuras particulares da profecia

306. A dupla lei, as duas tábuas da lei, os dois templos, os


dois cativeiros (349-652).

307. Jafé começou a genealogia. Jacó cruzou seus braços e


escolheu o filho mais novo (350-623).

308. Os judeus ainda eram estrangeiros no Egito, sem pos-


suir propriedades ou bens, fosse naquela terra ou em qualquer
outro lugar. (Nem havia lá o menor sinal de realeza entre eles,
o que surgiu muito tempo depois. Tampouco havia um supremo
conselho de setenta juízes, que eles chamaram de “Sinédrio”, que
foi estabelecido por Moisés e prosseguiu até o tempo de Cristo.
Todas essas instituições estavam deveras distantes das circunstân-
cias originais dos judeus como eles as conceberam). Pois, origi-
nalmente, em seu leito de morte, Jacó abençoou seus doze filhos
e lhes disse que eles herdariam uma grande terra e predisse, em
particular, que um dia reis da família de Judá reinariam sobre to-
dos os irmãos de sua própria raça. (Mesmo o Messias, a esperança
de todos os povos, seria levantado de sua linhagem e o reinado
não seria tomado de Judá, nem o soberano e legislador de seus
descendentes, até que o Messias nascesse em sua família).

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238 MENTE EM CHAMAS

Jacó, passando à frente aquela terra futura (como se já fos-


se o proprietário), deu a José uma porção maior que a concedida
aos outros. Ele disse: “E a você, como alguém que está acima de
seus irmãos, dou a região montanhosa que tomei dos amorreus
com a minha espada e o meu arco”. Então, quando Jacó foi
abençoar os dois netos, Efraim e Manassés, que José havia lhe
apresentado, com Manassés, o mais velho, à direita de Jacó e
Efraim, o mais jovem, à sua esquerda, Jacó cruzou os braços e os
abençoou conforme a posição em que se encontravam. Quando
José avisou seu pai que este estava abençoando o mais novo,
Jacó respondeu com voz resoluta: “Eu sei, meu filho, eu sei. Ele
também se tornará um povo, também será grande. Apesar dis-
so, seu irmão mais novo será maior do que ele”. Assim, isso se
tornou verdade, sendo sozinho quase tão próspero quanto as
duas linhas familiares juntas que formaram todo o reino. Estas
linhas eram, em geral, chamadas apenas pelo nome de Efraim
(ver Gênesis 48.22).
O mesmo José, quando estava à beira da morte, incumbiu
seus filhos de carregarem seus ossos com eles até entrarem na
terra, o que ocorreu cerca de 200 anos depois.
Moisés, que escreveu todas estas coisas muito tempo
após seus acontecimentos, designou a cada família a sua parti-
lha da terra antes mesmo que eles lá entrassem, como se ele já
estivesse na posse dela. Então, finalmente, declarou que Deus
levantaria de sua nação e de seu povo um profeta, a quem ele
próprio prefigurava. Ele predisse exatamente o que lhes acon-
teceria na terra em que entrariam após a sua morte, as vitó-
rias que Deus lhes concederia, a ingratidão do povo para com
Deus, as punições que sofreriam em conseqüência e o restante
de suas aventuras.
Deus lhes permitiu terem juízes que dividiram a terra. Ele
prescreveu toda a organização e estrutura de governo que o povo
deveria instituir, as cidades de refúgio que deveriam construir e
muito mais (484-711).

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FIGURAS PARTICULARES DA PROFECIA 239

309. Cristo prefigurado por José. Inocente, amado por seu


pai, enviado por seu pai para encontrar seus irmãos, ele foi ven-
dido por vinte peças de prata por eles. Porém, foi por meio dis-
so que ele se tornou mestre e salvador de seu povo, salvador
dos estrangeiros e, de fato, de todo o mundo. Nada disso teria
acontecido se não houvesse a trama para vendê-lo, destruí-lo e
rejeitá-lo por completo.
Na prisão, José foi mantido inocente, em meio a dois cri-
minosos. De modo similar, Jesus foi posto na cruz em meio a
dois ladrões. Ele prenuncia a salvação de um e a morte de outro,
quando por todas as aparências o destino deles parecia igual.
Cristo salva o eleito e condena o reprovado pelo mesmo crime.
Porém, enquanto José apenas profetiza, Jesus age. José pede ao
homem que será salvo para lembrar-se dele quando fosse ele-
vado. Mas Jesus salva o homem que pede para ser lembrado
quando Jesus chegar ao Seu reino (570-768).

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Capítulo XXVI

Moralidade cristã

310. Considere a miserabilidade do homem sem Deus, e a


felicidade do homem com Deus (6-60).

311. Ninguém é tão feliz quanto o verdadeiro cristão.


Ninguém é tão racional, tão virtuoso, tão amável (357-541).

312. Somente o cristianismo torna os homens tanto feli-


zes quanto amáveis. Visto que a honra de um cavalheiro não lhe
permite ser, ao mesmo tempo, feliz e amável (426-542).

313. O Deus dos cristãos é um Deus que torna a alma


consciente de que Ele é somente bem. Apenas nEle o ho-
mem pode encontrar paz. Somente no amor a Deus o ho-
mem pode encontrar alegria. Ele é um Deus que, ao mesmo
tempo, preenche nossa alma com uma aversão pelas coi-
sas que nos mantêm distantes e, portanto, nos impedem de
amar o Criador com toda a nossa força. O egoísmo e a lu-
xúria, que nos mantêm afastados de Deus, são intoleráveis.
Assim, Ele conscientiza a alma desse amor próprio subja-
cente que destrói isso. Somente Deus pode curar-nos desse
mal (460-544).

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242 MENTE EM CHAMAS

314. Nós devemos amar tão-somente a Deus, odiando-


nos a nós mesmos (373a-476a).

315. Estas duas leis são suficientes para governar toda a


república cristã melhor que todas as leis políticas (376-484).

316. Se Deus existe, devemos amar somente a Ele e não


às criaturas que passarão. O argumento do ímpio na sabedoria
é alicerçado apenas na presunção de que Deus não existe. Eles
dizem: “Isto garantido, vamos então nos regozijar nas criatu-
ras”. Porém isto vem em segundo lugar, pois, se houvesse um
Deus para amar, eles jamais chegariam a esta conclusão, mas o
oposto. E o sábio conclui o seguinte: “Deus existe, então não
devemos nos regozijar nas criaturas”.
Tudo que nos leva a ficar conectados às criaturas é ruim,
uma vez que isso nos impede de servir a Deus, se O conhece-
mos, ou de buscá-Lo, se ainda não O conhecemos. Então, como
somos cheios de luxúria, somos cheios do mal e, portanto, de-
vemos odiar a nós mesmos e a todas as coisas que nos seduzem e
nos impedem de servir tão-somente a Deus (618-479).

317. A experiência nos mostra a grande diferença entre


piedade e bondade (365-496).

318. De todas as coisas existentes sobre a face da terra, o


homem apenas compartilha as dores e não os prazeres. Ele ama
as coisas que lhe estão próximas, mas sua caridade não as man-
tém dentro dos limites, mas estende-as a seus inimigos e, então,
aos inimigos de Deus (355-767).

319. Para controlar o amor que devotamos a nós mesmos,


devemos imaginar um corpo cheio de membros pensantes (pois
somos membros do todo) e ver como cada membro deveria se
amar (368-474).

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MORALIDADE CRISTÃ 243

320. Quando Deus criou os céus e a terra, que não são


cônscios de sua existência, Ele almejou criar seres que compre-
endessem isso, compondo um corpo de membros pensantes, pois
nossos próprios membros não estão conscientes da felicidade
proveniente de sua união, da sua maravilhosa compreensão, do
cuidado adotado pela natureza de inspirá-los com espíritos, capa-
citando-os a crescer e ter resistência. Quão felizes eles poderiam
ser se pudessem sentir e reconhecer tudo isso. Porém, para ter
isso, eles necessitariam possuir inteligência e a boa vontade que
a confirmaria juntamente com a vontade divina. Se, quando lhes
fosse concedida inteligência, eles a usassem a fim de alimentar-se
sem compartilhar com os demais membros, não seriam apenas
errados, mas miseráveis, odiando-se ao invés de se amarem, pois
seu deleite, assim como suas responsabilidades, consiste em pro-
mover o bem-estar de toda alma à qual pertencem, que os ama
melhor que eles próprios amam a si mesmos (360-482).

321. Para garantir que os membros são felizes, eles devem


ter uma vontade e permiti-la conformar-se ao corpo (370-480).

322. Ser um membro significa não possuir vida, existência


ou movimento exceto por meio do espírito de todo o corpo e
para o bem do corpo. Um membro separado, que não mais reco-
nhece todo o corpo ao qual pertence, é apenas uma coisa can-
cerosa e inútil. Ele assume que é parte de um todo, mas não vê
o corpo do qual depende, acreditando ser dependente apenas de
si mesmo e mantendo o foco em sua própria existência. Por não
possuir em si mesmo nenhuma fonte de vida, o membro pode
apenas divagar sobre isso e tornar-se confuso na incerteza de sua
própria existência, consciente de que não é o corpo, mas não
reconhecendo que é um membro do corpo. O resultado é que,
ao conseguir reconhecer-se, ele retorna para casa como antes e
somente ama a si mesmo para o bem de todo o corpo. Então, o
membro irá lamentar a sua teimosia anterior.

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244 MENTE EM CHAMAS

Ele não pode por seu próprio ser amar algo exceto por
razões egoístas e com o intuito de subjugar a si mesmo, porque
cada coisa ama a si mesma mais que tudo.
Mas, ao amar o corpo, o membro ama a si mesmo, porque
não há ser exceto no corpo, para o propósito do corpo e por
meio dele. “Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com
ele” (1 Coríntios 6.17).
O corpo ama a mão, e se esta tivesse vontade amaria a si
mesma da mesma forma que a alma o faz. Qualquer amor que
vá além é errado.
“Aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele”.
Isto é dizer: amamos a nós mesmos porque somos membros de
Cristo. Amamos a Cristo porque Ele é o corpo do qual somos
membros. Todos são um. Um está no outro como as três pessoas
da Trindade (372-483).

323. Se o pé jamais percebesse que faz parte do corpo e


que havia um corpo do qual ele dependia, se tivesse apenas
conhecido e amado a si mesmo e, então, viesse a conhecer que
realmente pertencia ao corpo e que dependia deste, pense no
arrependimento e vergonha que o pé sentiria por sua existên-
cia até ali. Ele reconheceria quão inútil tinha sido ao corpo,
apesar da vida que lhe fora concedida, e como poderia ter sido
destruído caso o corpo o tivesse rejeitado e o cortasse como o
próprio pé cortou a si mesmo do corpo! Como o pé, sincera-
mente, desejaria ser mantido no corpo! Quão docilmente se
deixaria governar pela vontade a cargo do corpo, a ponto de
ser amputado, se necessário fosse! Caso contrário, deixaria de
ser membro, pois todo membro deve estar pronto a perecer
pelo bem do corpo, pois pelo bem deste todos os membros
existem (373b-476).

324. O exemplo de mortes nobres como a dos espartanos


e outros dificilmente nos comove, pois não vemos que bem nos

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MORALIDADE CRISTÃ 245

faz. Mas o exemplo de mortes como a dos mártires cristãos nos


comove, pois eles são nossos membros, e possuímos uma ligação
comum com eles, de modo que a devoção por eles demonstrada
nos inspira, não apenas pelo exemplo, mas porque deveríamos
agir da mesma maneira.
Não há nenhuma motivação como esta nos exemplos
celestiais, pois não temos ligações com eles, assim como não
ficamos ricos vendo um abastado estrangeiro, mas, ao contrário,
sendo inspirados por um pai ou marido rico (359-481).

325. Há dois tipos de homens em toda religião: os que são


supersticiosos e os que são concupiscentes (330-366).

326. É mera superstição colocar a esperança de alguém


em formalidades, mas é orgulho recusar submeter-se a elas
(364-249).

327. Precisamos integrar o que é exterior com o que é


interior a fim de receber algo de Deus. Em outras palavras, de-
vemos ficar de joelhos e, então, orar com nossos lábios, de modo
que o homem arrogante que não se submeterá a Deus deve ago-
ra submeter-se à criatura de Deus. Se nós simplesmente espe-
rarmos socorro de uma aparência exterior, estamos sendo su-
persticiosos. Se nos recusarmos a combinar isso com o interior,
mostramos que somos arrogantes (944-250).

328. O cristianismo é estranho. Ele ordena ao homem re-


conhecer que é mau, até mesmo abominável. Apesar disso, ele
também o incita a desejar ser como Deus. Sem tal equilíbrio, essa
dignidade o tornaria terrivelmente vazio, ou promoveria tal hu-
milhação que o tornaria extremamente miserável (351-537).

329. Quão pequeno orgulho o cristão sente em ser um


com Deus! Com que pequena humildade ele se compara a um

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246 MENTE EM CHAMAS

verme! Que modo singular de encontrar a vida e a morte, o bem


e o mal! (358-538).

330. A moralidade cristã não consiste em um grau de hu-


milhação tal que nos leve a considerarmos que somos incapazes
de algum bem, nem um grau de humilhação tal que nos leve a
pensar que estamos livres do mal (353-529).

331. Não existe doutrina mais adequada ao homem que


aquela que o ensina sobre sua dupla capacidade, tanto de rece-
ber como de perder a graça, por conta da perigosa dupla – deses-
pero e orgulho – à qual ele está sempre exposto (354-524).

332. A miséria conduz ao desespero. O orgulho leva à pre-


sunção.
A Encarnação revela ao homem a enormidade de sua mi-
séria por meio da grandeza do remédio exigido (352-526).

333. As Escrituras nos fornecem passagens que nos con-


fortam, mas que também nos levam a temer em toda e qualquer
situação. A natureza parece atuar da mesma forma por meio de
duas infinidades naturais e morais, pois devemos sempre possuir
tanto o superior como o inferior, o que é mais e menos capaz, o
que é mais glorioso e mais miserável, para humilhar nosso orgu-
lho e para nos elevar em nossa humilhação (800-532).

334. “Pois tudo o que há no mundo – a cobiça da carne, a


cobiça dos olhos e a ostentação dos bens – não provém do pai,
mas do mundo” (1 João 2.16). Quão miserável é aquela área
amaldiçoada que é consumida ao invés de ser irrigada por estes
três rios de fogo! Felizes são os que estão às margens desses rios,
não inundados ou varridos, mas imutavelmente enraizados ao
lado deles, não resistindo, mas posicionados em um lugar seguro
e humilde. Eles não se auto-exaltarão de forma arrogante, aci-

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MORALIDADE CRISTÃ 247

ma da luz, mas descansam em paz, estendendo suas mãos para


Ele, que os exaltará, a fim de resistirem resolutos, nos pórticos
de Jerusalém, a esfera dos abençoados, onde o orgulho não é
mais capaz de contestá-los ou diminuí-los. Ainda assim, eles
clamam não apenas à vista de todas as coisas perigosas varridas
por essas inundações, mas à memória de seu querido lar, a Jeru-
salém celestial. Isto eles constantemente relembraram ao longo
dos extensos anos de seu exílio (545-458).

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Capítulo XXVII

Conclusão

335. As evidências da fé cristã são as seguintes:

1. Ela se estabelece de modo tão firme e, ainda assim, tão


gentil, embora seja tão contrária à vida natural do homem.
2. A santidade, a sublimidade e a humildade de uma alma
cristã.
3. Os milagres da Santa Escritura.
4. Jesus Cristo, em particular.
5. Os apóstolos, em particular.
6. Moisés e os profetas, em particular.
7. O povo judeu.
8. As profecias.
9. Sua continuidade. Nenhuma outra religião desfruta de
tal perpetuidade.
10. As doutrinas da fé que esclarecem todas as coisas.
11. A santidade da lei.
12. Pela evidência da ordem do mundo.
Sem qualquer hesitação, após refletir sobre estas evidên-
cias e ao considerar a natureza da vida e da fé cristã, não deve-
ríamos resistir à inclinação de segui-la, se nossos corações esti-
verem assim tão inclinados. Certamente, não há fundamentos
para caçoar dos que a seguem (482-289).

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250 MENTE EM CHAMAS

336. As profecias encontradas na Escritura, mesmo os mi-


lagres e provas de nossa fé, não são o tipo de evidências que
convencem de forma absoluta. Ao mesmo tempo, não é racio-
nal desacreditar delas. Há, pois, evidência e obscuridade, para
iluminar a alguns e confundir a outros. Porém, a evidência é tal,
de modo a exceder ou, pelo menos, equilibrar a evidência con-
trária, ou seja, que não é a razão que decide se vamos seguir a fé
ou não. Portanto, as únicas coisas que nos impedem de aceitar
a evidência devem ser a perversidade e a luxúria do coração hu-
mano. Portanto, há evidência suficiente para condenar e, ainda
assim, não o suficiente para convencer, de modo que é óbvio
que os que seguem essa fé são impelidos a tal atitude pela graça
e não pela razão. Os que evitam essa mensagem são induzidos a
agir assim pela luxúria e não pela razão.
“Verdadeiramente serão meus discípulos” (João 8.31). “Aí
está um verdadeiro israelita” (João 1.47). “Verdadeiramente li-
vres” (João 8.36). “Verdadeira comida” (João 6.55). Eu presumo
que alguém acredita em milagres (835-564).

337. [Segundo a Summa Theologica, de Tomas de Aquino], “mi-


lagres não servem para converter, mas para condenar” (379-825).

338. Ele argumenta: “um milagre não fortaleceria a mi-


nha fé”. Ele afirma isso quando não vê nada.
Há razões que, quando vistas à distância, parecem limi-
tar a nossa visão. Porém, quando chegamos mais perto, co-
meçamos a ver além delas. Pois nada impede o fluxo vivo de
nossas mentes. Argumentamos que não há regra para a qual
não exista nenhuma exceção, nem qualquer verdade que seja
tão genérica que não apresente nenhum aspecto defeituoso.
É suficiente, pelo fato de não ser absolutamente universal,
fornecermos desculpas por aplicar a exceção ao assunto em
mãos e dizer: “Nem sempre isso é verdade. Portanto, há casos
em que isso não se aplica”. Tal fato somente permanece para

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CONCLUSÃO 251

mostrar que este é um desses casos e devemos ser infelizes


ou limitados se não conseguirmos descobrir alguma brecha
(574-263).

339. A eloqüência é uma representação do pensamento.


Assim, os que acrescentam ainda mais à pintura original estão
produzindo uma imagem ao invés de um retrato (578-344).

340. A nossa fé é, ao mesmo tempo, sábia e tola. Sábia


porque é dotada de maior instrução, assim como é fortemente
fundamentada em milagres, profecias e assim por diante. Mas
também é tola porque não é por estas razões que as pessoas ade-
rem a ela. Isto é razão suficiente para condenar os que a ela não
pertencem, mas não o bastante para fazer os que pertencem crer
nisso. O que os faz acreditar é a cruz. “Pois Cristo não me en-
viou para batizar, mas para pregar o evangelho, não porém com
palavras de sabedoria humana, para que a cruz de Cristo não
seja esvaziada” (1 Coríntios 1.17).
Portanto, o apóstolo Paulo, que veio com sinais e sabe-
doria, afirmou que veio, não com sinais ou sabedoria, pois veio
para converter. Aqueles que vêm apenas para convencer são os
que afirmam que vêm com sinais e sabedoria (842-588).

341. A fé é um dom de Deus. Assim sendo, não imagine


que a fé pode ser descrita como um dom da razão. Outras reli-
giões não fazem esta afirmação de sua fé. Pelo contrário, elas
não oferecem nada além da razão como um caminho rumo à fé,
embora esse destino jamais seja alcançado (588-379).

342. A fé é diferente da verdade, pois a primeira é um


dom de Deus, e a segunda é humana. “O justo viverá pela fé”
(Romanos 1.17). Esta é a fé que o próprio Deus coloca em nos-

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252 MENTE EM CHAMAS

sos corações, embora muitas vezes Ele utilize a prova como ins-
trumento. “Conseqüentemente, a fé vem por se ouvir a men-
sagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo”
(Romanos 10.17). Assim, essa fé habita em nossos corações e
nos ajuda a dizer “Eu creio”, ao invés de “Eu sei” (7-248).

343. Não se surpreenda ao descobrir pessoas simples cren-


do sem argumento algum. Pois Deus as faz amarem a Ele e odia-
rem a si mesmas. Ele inclina seus corações a crer. Jamais acre-
ditaremos com uma fé eficaz a não ser que Deus incline nossos
corações. Quando Ele o fizer, então creremos. Foi exatamente
isso que Davi experimentou de maneira tão profunda: “Inclina
o meu coração para os teus estatutos, e não para a ganância” (Sl
119.36) (380-825).

344. Os que crêem sem ler os Testamentos o fazem por-


que possuem uma disposição interior com relação ao que é ver-
dadeiramente santo, e também porque tudo o que eles ouvem
sobre a nossa fé os atrai. Eles sentem que um Deus os criou, a
quem desejam amar e, portanto, desejam odiar a si mesmos. Eles
sentem que não possuem força em si mesmos e que são incapa-
zes, ao mesmo tempo, de ir até Deus. E, se Deus não vai até eles,
são incapazes de ter qualquer relacionamento com Ele. Além
disso, eles são convencidos por meio de nossa fé que os homens
devem amar somente a Deus, e odiar a si mesmos. Porém, como
todos os homens são corruptos e indignos de Deus, Ele mesmo
tornou-se homem a fim de unir-Se conosco. Este fato basta para
convencê-los, uma vez que seus corações estão predispostos, e
que eles têm conhecimento de suas responsabilidades e de sua
própria insuficiência (381-286).

345. Consideramos a fé dos que são cristãos sem terem co-


nhecimento das profecias e demais evidências igual à daqueles
que possuem tal conhecimento. Eles julgam com seus corações,

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CONCLUSÃO 253

enquanto outros julgam com suas mentes. Pois é o próprio Deus


que os inclina a crer e, portanto, eles são mais eficazmente con-
vencidos.
Pode-se questionar que este modo de julgamento não é
confiável, e que é por seguir tal método que os hereges e des-
crentes se desviam.
A minha resposta quanto a este questionamento é que
Deus, genuinamente, inclina os que Ele ama a crerem na fé cris-
tã, e que os descrentes não possuem provas daquilo que dizem.
Porém, aqueles que conhecem as provas da fé provaram sem
qualquer dificuldade que tal crente é verdadeiramente inspira-
do por Deus, embora ele próprio não possa provar isso. Pois,
como Deus declarou por meio de Seus profetas, que no reinado
de Jesus Cristo enviaria o Seu espírito por entre as nações, de
tal sorte que os jovens e as mulheres da igreja profetizariam,
assegurando igualmente que o Espírito de Deus está sobre estes
e não sobre os outros. Deus inclina os corações dos que Ele ama
(Salmos 119.36) (382-287).

Disciplina

346. Que grande diferença há entre o reconhecimento e


a experiência do amor de Deus! (377-280).

347. Com freqüência, as pessoas confundem sua imagi-


nação com seu coração e dessa forma são convencidas de sua
conversão assim que começam a pensar em se tornar converti-
das (975-275).

348. Não devemos interpretar mal a nós mesmos. Tanto


somos máquinas como mente. Como resultado, a maneira na
qual a persuasão é realizada não é pela demonstração apenas.
De fato, como poucas coisas são demonstradas! As provas só
convencem a mente. As nossas evidências mais fortes e, em ge-

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254 MENTE EM CHAMAS

ral, aceitas com mais convicção, são aquelas criadas pelo hábi-
to. Assim, é o hábito que guia o autômato, que conduz a mente
de forma mecânica ou inconsciente. Se alguém provasse que irá
amanhecer amanhã ou que iremos morrer? O que é aceito mais
amplamente?
Está claro, então, que o hábito nos persuade do fato. É
o hábito que torna a maioria dos cristãos, assim como faz aos
turcos ou pagãos, trabalhadores, soldados e assim por diante. A
fé recebida no batismo é a vantagem que os cristãos possuem
sobre o mundo pagão. Em resumo, devemos apelar à fé quan-
do a mente tiver visto onde a verdade reside, a fim de saciar a
nossa sede e absorver aquela crença que sempre iludiu a nossa
compreensão. Pois é difícil ter provas sempre à mão. Portanto,
devemos adquirir uma crença mais fácil, ou seja, aquela que for
transmitida pelo hábito, que gentil, simples e intuitivamente
alimenta a crença, inclinando assim todas as nossas faculdades e
poderes de modo que nossa alma possa aceitá-la naturalmente.
Isto não é suficiente quando a nossa crença tem de ser estimu-
lada pela convicção, embora o autômato ainda esteja inclinado
a crer o contrário. Nós devemos, portanto, reunir as duas partes
de nossa natureza e integrá-las em uma única crença – a mente
por razões que sejam suficientes ver uma única vez em toda a
vida, e a máquina pelo hábito, não permitindo que se incline ao
contrário. “Inclina o meu coração”, (Salmos 119.36).
A mente trabalha vagarosamente, observando com freqüên-
cia muitos e diferentes princípios, que sempre devem ser conside-
rados em conjunto. Assim, a mente está sempre concordando ou
questionando porque todos os princípios não estão presentes. Já o
sentimento não trabalha desta forma, mas imediatamente, e sem-
pre está alerta. Portanto, devemos colocar a nossa fé em nosso sen-
timento, caso contrário ela estará sempre vacilando (821-252).

349. Há três caminhos para a crença: razão, hábito e reve-


lação. A fé cristã que possui apenas razão não admite como seus

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CONCLUSÃO 255

filhos verdadeiros os que rejeitam a revelação. Isto não quer


dizer que ela exclui a razão e o hábito, muito pelo contrário,
mas a mente deve estar habitualmente aberta a provas e deve
humilhar-se, reverenciando a revelação como a única influên-
cia salutar e verdadeira. “... para que a cruz de Cristo não seja
esvaziada” (1 Coríntios 1.17) (808-245).

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Outras máximas de
Pensées (Pensamentos)
e de Provérbios

O estilo de Pascal

350. Todas as boas máximas já existem no mundo; apenas


falhamos em aplicá-las (540-380).

351. A última coisa que descobrimos ao compor um tra-


balho é o que suprimir primeiro (976-19).

352. Autores que sempre fazem referência às suas obras


como “meu livro, meu comentário, minha história” parecem
cidadãos com suas propriedades que sempre estão falando sobre
“a minha casa”. Seria muito melhor dizerem “nosso livro, nosso
comentário, nossa história”, reconhecendo que, normalmente,
há muito mais material de outras pessoas que dos próprios auto-
res (Provérbios, 1).

353. As pessoas me perguntam por que razão utilizo um es-


tilo divertido, irônico e agradável. Eu respondo que se tivesse es-
crito de um modo dogmático, somente os eruditos leriam os meus
trabalhos, e eles não precisam disso, porque sabem tanto quanto
eu sobre o assunto. Ao invés disso, achei que deveria escrever para

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258 MENTE EM CHAMAS

que homens e mulheres comuns se sentissem atraídos a ler as mi-


nhas cartas, de modo que pudessem perceber o perigo que todas
essas máximas e proposições representam, as quais são ditadas pelos
modismos e facilmente aceitas pelas pessoas (Provérbios, 3.3).
As pessoas também me perguntam se eu li todos os livros
que menciono. A minha resposta é não, pois isso certamente
significaria passar toda a minha vida lendo livros, em geral mui-
to ruins. Tenho meus amigos para lê-los, mas jamais utilizei uma
única passagem sem que a tenha lido no original, considerando
todo o contexto e lendo a passagem antes e depois dele, a fim de
evitar o risco de mencioná-la fora do contexto, o que é errado e
injusto (Provérbios, 3.4).

Vivendo em um Mundo Caótico

354. As coisas mais irracionais deste mundo tornam-se as


mais racionais, porque os homens são desequilibrados (977-320).

355. A piedade cristã destrói o ego humano, ao passo que


a cortesia humana o esconde e suprime (Provérbios, 7).

356. As condições mais fáceis de se viver, do ponto de


vista do mundo, são as mais difíceis do ponto de vista de Deus,
e vice-versa. Na ótica do mundo, nada é mais difícil de viver
que uma vida de fé, embora seja a mais fácil pela perspectiva
divina (693-906).

357. O mundo deve ser verdadeiramente cego se acredita


em você (676-397).

358. É absurdo pensar-se que há no mundo pessoas que


têm rejeitado todas as leis de Deus e da natureza, apenas para
inventar leis para si mesmas a que, escrupulosamente, obede-
cem. Parece que sua licenciosidade é sem limites e sem restri-

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OUTRAS MÁXIMAS DE PENSÉES (PENSAMENTOS) E DE PROVÉRBIOS 259

ção, considerando-se o número de normas de bom senso que


tais pessoas têm quebrado (794-393).

359. O poder domina o mundo, não a opinião. Porém, é a


opinião que explora o poder (554-303).

360. Não possuímos mais uma justiça verdadeira. Se ain-


da a tivéssemos, não deveríamos aceitar como norma de justiça
que as pessoas devam simplesmente seguir os costumes de seu
próprio país. Eis porque temos encontrado o “talvez” quando
não encontramos o “correto” (86-297).

361. A imaginação dá uma dimensão exageradamente


maior às coisas pequenas até que elas preencham toda a nossa
alma. Então, com uma ousadia insolente, ela reduz coisas gran-
diosas ao seu próprio tamanho, como quando fala a respeito de
Deus (551-84).

362. O caráter cristão é a “humildade de coração” (Roma-


nos 12.16). O caráter humano é o oposto (897-533).

363. Eu não consigo perdoar Descartes. Em toda a sua filoso-


fia ele gostaria de agir sem Deus. Mas ele não deixa de reconhecer
que Deus coloca o mundo em movimento com um estalar de de-
dos. Depois disso, ele não tem mais uso para Deus (Provérbios, 2).

364. Escreva contra aqueles, como Descartes, que esqua-


drinham a ciência de modo tão profundo (553-76).

365. Estudiosos piedosos são raros (952-956).

366. A sabedoria nos leva de volta à infância “... a não ser


que vocês se convertam e se tornem como crianças” (Mateus
18.3) (82-291).

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260 MENTE EM CHAMAS

A natureza do homem

367. A condição humana é de inconstância, tédio e an-


siedade (24-127).

368. Somos igualmente incapazes da bondade e da verda-


de (28-436).

369. Duas coisas ensinam ao homem sobre sua natureza: o


instinto e a experiência (128-396).

370. Os homens são tolos tão inevitáveis que, se assim


não fosse, eles atingiriam outra forma de estultícia (412-414).

371. O homem é suficientemente corrompido para reve-


renciar as feras e até mesmo adorá-las (53-429).

372. Como o homem perdeu a sua verdadeira natureza,


qualquer coisa pode tomar o lugar dela. Igualmente, como o
bem verdadeiro está perdido, qualquer coisa pode ser adotada
como o que ele julga ser bom (397-426).

A busca pela verdade

373. O pensamento constitui a grandeza do homem (759-


346).

374. Quando desejamos pensar sobre Deus, não existe


sempre algo que nos distrai e nos seduz a pensar em alguma ou-
tra coisa? Isso é algo inato e maligno em nós (395-478).

375. A maneira mais rápida de impedir heresias é ensi-


nando todas as verdades, e a forma mais certa de refutá-las é a
total exposição delas (733b-862b).

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OUTRAS MÁXIMAS DE PENSÉES (PENSAMENTOS) E DE PROVÉRBIOS 261

376. Em geral, somos mais rapidamente convencidos pe-


las razões que temos descoberto por conta própria do que por
aquelas ocorridas a outras pessoas (737-10).

377. É por meio do coração que Deus é percebido e não


pela razão. De modo que a fé é isto: Deus percebido pelo cora-
ção, não pela razão (424-278).

378. O coração tem razões que a própria razão desconhe-


ce; sabemos isso de inúmeras formas (423-277).

379. Devido à natureza corrupta do homem, ele não age


conforme a razão que constitui o seu ser (491-439).

380. E se estamos convencidos de que jamais devemos


nos arriscar, então não deveríamos fazer nada para a religião,
pois a certeza não é total (577a-234a).

381. Há duas fontes de erro: considerar tudo de forma li-


teral e considerar tudo de forma espiritual (252-668).

382. É uma piedade falsa preservar a paz à custa da verda-


de. Igualmente, é um zelo falso preservar a verdade à custa do
amor (949-930).

383. Nós fazemos da própria verdade um ídolo, pois a ver-


dade separada do amor não é Deus, mas a Sua imagem. Portan-
to, é um ídolo que não devemos amar ou adorar para o nosso
próprio bem. Muito menos devemos cultuar o oposto, que é
uma fraude (926-582).

384. Qualquer um que deseje dar à Escritura um sig-


nificado que não esteja presente no texto é inimigo dela
(251-900).

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262 MENTE EM CHAMAS

385. Você abusa da confiança que as pessoas depositam na


igreja quando as faz acreditar em qualquer coisa (186-947).

386. Empenhemo-nos em refletir bem, que é o princípio


básico da moralidade (200b-347b).

A vida cristã

387. Veja Jesus Cristo em cada pessoa e em nós mesmos,


de tal sorte que Ele poderia estar em todos e ser um modelo para
todas as condições da raça humana (946-785).

388. As nossas orações e virtudes são abominações pe-


rante Deus se não forem as orações e virtudes de Jesus Cristo
(948-668).

389. A oração não está em nosso poder... para que aqueles


que perseveram algum tempo em oração por meio do poder efe-
tivo de Deus, não parem então de orar ao sentirem falta desse
poder efetivo (969-514).

390. Não devemos pensar que a oração deriva de nós mes-


mos. Isto é absurdo, pois mesmo o fiel pode não ser virtuoso;
assim, como podemos ter fé por nós mesmos? Não é mais difícil
passar da falta de fé para a crença do que passar da fé para a
virtude? (930-513).

391. A fim de manter a Sua soberania, Deus concede o


dom da oração àqueles de quem Se agrada (930a-513a).

392. O homem justo age pela fé nos mínimos detalhes.


Quando reprova os seus servos, ele deseja que a conversão deles
se concretize pelo Espírito de Deus. Ele ora para que Deus os
corrija, esperando tanto de Deus quanto de suas próprias exor-

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OUTRAS MÁXIMAS DE PENSÉES (PENSAMENTOS) E DE PROVÉRBIOS 263

tações, orando a Deus para que suas correções sejam abençoa-


das. E, assim, ele age em todas as outras situações (947-504).

393. É uma condição excelente para a igreja quando ela


não conta com nenhum apoio, exceto o de Deus (845-861).

394. Existe uma enorme diferença entre não ser de Cristo


e expressar isso e não ser de Cristo, mas fingir ser. O primeiro
pode realizar milagres, mas o segundo, não. Pois na primeira
situação é óbvio que eles são contrários à verdade e, assim, seus
milagres são igualmente mais óbvios (843-836).

395. Os milagres não são necessários para demonstrar que


devemos amar somente a Deus. Isto é evidente! (844-837).

396. Devemos combinar o que é exterior com o que é in-


terior para obtermos algo de Deus. Em outras palavras, devemos
dobrar nossos joelhos e orar com nossos lábios, de modo que o
homem orgulhoso que não se submete a Deus submeta-se à cria-
tura [o pastor]. Se esperarmos auxílio apenas dessa expressão
exterior, somos supersticiosos. Se nos recusarmos a combiná-la
com o nosso interior, estamos sendo arrogantes (944-250).

397. Atitudes nobres são mais admiráveis quando manti-


das em segredo. Pois a coisa mais notável com relação a elas é a
tentativa de mantê-las no anonimato (643-159).

398. Esteja eu isolado ou à vista dos demais, em todas as


minhas ações estou à vista de Deus, que irá julgá-las e a quem
devoto todas elas (931-550).

399. A aversão à verdade existe em diferentes graus, mas


pode ser dito que ela existe em nós em alguma escala, pois é
algo inseparável do amor-próprio (978-100).

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CARTAS A UM PROVINCIANO
ESCRITAS POR UM DE SEUS AMIGOS

Em 23 de novembro de 1654, Pascal converteu-se ao ler,


sozinho em seu quarto, o capítulo 17 do Evangelho de João.
No mês seguinte, ele se colocou sob a direção espiritual de M.
Siglin, e cerca de 30 dias depois iniciou o primeiro dos muitos
retiros na abadia de Port-Royal-des-Champs. Por meio de seus
contatos no mosteiro, Pascal foi envolvido em uma controvér-
sia que veio a alcançar proporções nacionais.
Antoine Arnauld, um eminente advogado e reconheci-
do líder dos partidários da abadia de Port-Royal, publicou duas
cartas abertas à população, defendendo a ortodoxia do livro
de Cornelius Jansen, sobre Agostinho. O livro veio a ser con-
denado como herético, em 1653. Arnauld foi contestado pelo
confessor do rei, o padre jesuíta Annat, e a polêmica foi le-
vada à Faculdade de Teologia da Sorbonne para uma decisão.
Após intensos debates, a faculdade censurou Arnauld em 14
de janeiro de 1656. Conhecedor da habilidade de Pascal em
debates, Arnauld solicitou-lhe auxílio. “Você é jovem, pos-
sui uma mente brilhante. Você tem de fazer algo”. Utilizando
diversos pseudônimos, Pascal respondeu, secretamente, por
meio de dezoito cartas, das quais os seguintes extratos foram
retirados.

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Carta I

Observações sobre a disputa


entre teólogos, na Sorbonne,
para censurar A. Arnauld

Paris, 23 de janeiro de 1656

Senhor,

Temos sido grandemente iludidos. Foi apenas ontem que


eu fui desenganado, pois, até então, imaginava que as disputas na
Sorbonne eram realmente de suma importância aos interesses da
fé cristã. As reuniões freqüentes de uma sociedade tão celebrada
como a da Faculdade de Teologia, em Paris, na qual tantas, extra-
ordinárias e maravilhosas coisas ocorrem, em geral, têm suscitado
grande expectativa, compartilhada por todos, de que algum assun-
to significativo está sendo considerado. Ao invés disso, você ficará
atônito ao saber, por meio desta comunicação, o assunto em ques-
tão, com o qual estou familiarizado de maneira pessoal e plena.
Eu o descreverei em poucas palavras, como segue. Dois
assuntos estão sob consideração. Um deles é uma questão de
fato e o outro, uma questão de direito.
O primeiro considera se o Sr. Arnauld é culpado de im-
prudência por afirmar em sua segunda carta que leu, de ma-
neira cuidadosa, o livro do Sr. Jansen e que não foi capaz de
descobrir lá as proposições condenadas pelo último papa (Ino-

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268 MENTE EM CHAMAS

cêncio X). No entanto, como ele condena tais proposições


onde quer que elas ocorram, também as condenaria em Jan-
sen, caso lá estivessem. Assim, a questão é se seria de extrema
imprudência levantar uma dúvida quanto à real presença de
tais proposições na obra de Jansen, como os bispos afirmam
que há.
Quando este assunto foi levado para decisão, na faculdade
da Sorbonne, setenta e um doutores levantaram-se em defe-
sa do Sr. Arnauld, sustentando que ele não poderia dar outra
resposta aos inúmeros questionamentos quanto à sua opinião
sobre a existência de tais proposições no livro mencionado. Ou
seja, que ele não as viu em sua obra, muito embora tenha sido
condenado com base na presunção de que provavelmente elas
lá estivessem.
Alguns mais declararam que, após exaustiva pesquisa, não
foram capazes de descobri-las lá e que, pelo contrário, Jansen
havia escrito contra elas. Eles, então, procederam com alguma
veemência, requerendo que se qualquer um dos doutores as ti-
vesse encontrado, o mesmo deveria ser bom o suficiente para
apontá-las. Esta pareceu uma forma óbvia de convencer a todos,
até mesmo o próprio Sr. Arnauld. No entanto, esta abordagem
jamais foi permitida.
Pelo contrário, os procedimentos contra ele foram reali-
zados por oitenta doutores seculares e cerca de quarenta monges
franciscanos que condenaram a afirmação do Sr. Arnauld, sem
qualquer tentativa de examinar se a acusação era verdadeira ou
falsa. Até mesmo afirmaram que a questão não era sobre a vera-
cidade de sua afirmação, mas sobre sua obstinada imprudência
em promovê-la a todo custo.
Outros quinze mostraram-se relutantes em concordar com
a censura. Nós os chamamos de os indiferentes.
A questão do fato termina aqui, com a qual confesso não
estar muito preocupado, pois a minha própria consciência não
é afetada, seja o Sr. Arnauld culpado de imprudência ou não. E

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CARTA I 269

caso eu tivesse a menor curiosidade em descobrir se as propo-


sições realmente estão nos escritos de Jansen, o seu livro não é
difícil de ser encontrado nem muito volumoso que me impeça
de lê-lo, a fim de satisfazer a minha própria curiosidade sem
consultar a comunidade da Sorbonne.
Se tivesse receio de eu mesmo ser considerado impruden-
te, estaria disposto a concordar com a maioria dos que tenho
encontrado e que crêem na afirmação de que as proposições
estão na obra de Jansen. Mas, pelo contrário, encontrei uma
estranha recusa por parte de todos em me mostrar onde tais pro-
posições estariam. Eu não tenho encontrado uma única pessoa
que pudesse me afirmar que realmente as leram com seus pró-
prios olhos. Portanto, temo que esta censura venha a trazer mais
malefícios que benefícios, dando aos que possam vir a ser infor-
mados dos fatos uma impressão diferente da que foi realmente
intencionada. De fato, as pessoas agora estão se tornando muito
desconfiadas, não acreditando em nada que não possam ver por
si mesmas. O ponto, entretanto, é de tão ínfima importância
que não chega a interferir com a nossa fé.
À primeira vista, a questão do direito me parece muito
mais importante. Assim, tenho tido a máxima preocupação em
me informar sobre este assunto. Você ficará feliz em saber que,
como o anterior, este também é insignificante.
A investigação questionou as palavras do Sr. Arnauld na
mesma carta: “...que a graça, sem a qual nada podemos fazer, foi
insuficiente em Pedro por ocasião de sua queda”. É de se esperar
que os grandes princípios da graça sejam examinados, tal como
se ela é concedida a todos os homens e se é certamente eficaz.
Mas, por Deus, como temos sido ludibriados! Pois eu mesmo,
em pouco tempo, tornei-me um grande teólogo, do qual vocês
possuem algumas evidências.
Para descobrir a verdade, procurei o meu vizinho mais
próximo, o Sr. N., um doutor do College de Navarre, que é,
como você sabe, um dos mais ferrenhos opositores dos janse-

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270 MENTE EM CHAMAS

nistas. Como a minha curiosidade me tornou quase tão zelo-


so quanto ele mesmo, perguntei-lhe se, para eliminar todas as
dúvidas, eles poderiam chegar a uma decisão formal “de que a
graça é dada a todos os homens”.
Porém, ele respondeu com extrema rudeza, dizendo
que aquele não era o ponto, embora alguns de seu grupo ar-
gumentassem que “a graça não é concedida a todos”, e que
mesmo os examinadores haviam declarado na assembléia ge-
ral que esta opinião era problemática. Esta foi a sua própria
convicção, confirmada por meio de uma famosa passagem de
Agostinho: “Nós sabemos que a graça não é concedida a to-
dos os homens”.
Eu me desculpei por interpretar mal o seu significado e
perguntei-lhe se eles, pelo menos, condenariam uma outra opi-
nião dos jansenistas, que havia criado tal acalorado debate, isto
é, “que a graça é eficaz e determina a vontade na escolha do
bem”.
Novamente, não fui feliz: “Você não conhece nada sobre
isso”, ele retrucou. “Não há heresia; é perfeita ortodoxia. Todos
os tomistas defendem isso, e eu tenho feito o mesmo em meus
debates na Sorbonne.”
Eu não ousei prosseguir, mas ainda não pude descobrir
onde estava a dificuldade. Assim, a fim de ganhar alguma per-
cepção, eu lhe implorei que afirmasse exatamente em que con-
sistia a heresia da proposição do Sr. Arnauld.
Ele respondeu: “É que ele não admite que o justo possua
o poder de cumprir os mandamentos de Deus, da maneira pela
qual nós entendemos”.
Após esta informação me retraí, convencido de haver en-
contrado o difícil âmago da questão. Apressei o Sr. N., já com
a saúde recuperada o suficiente, para me acompanhar ao seu
cunhado, um jansenista quase radical, mas, apesar disso, um bom
homem! A fim de receber uma recepção melhor, fingi ser parti-
dário do seu grupo e perguntei se seria possível que a Faculdade

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CARTA I 271

da Sorbonne introduzisse tal equívoco como aquele no seio da


igreja, ou seja, “que o justo sempre possui o poder de cumprir os
mandamentos de Deus”.
“O que você está dizendo?”, perguntou-me. “Você se refe-
re a tal sentimento cristão como um erro, uma doutrina à qual
ninguém, exceto luteranos e calvinistas, se opôs?”
“Então, não é esta a sua opinião?”, eu questionei.
“Decerto que não, nós a condenamos como herética e ím-
pia”.
Um tanto surpreso, percebi que tinha agora provocado
o jansenista, como havia feito antes com o molinista. Porém,
como não estivesse totalmente satisfeito com a sua resposta, eu
o incitei, de forma dissimulada, a me dizer se ele realmente afir-
mava “que o justo sempre tem o poder de manter os preceitos
divinos”.
Ele se enervou com isso, claro que com um zelo santo, e
me disse que jamais disfarçaria suas opiniões por nenhuma razão
no mundo. Era sua firme crença, e tanto ele quanto seus par-
tidários a defenderiam até o fim, como uma genuína doutrina
tanto de Tomás de Aquino quanto de Agostinho, seu mestre.
Ele falou com tamanha seriedade que eu não pude desa-
creditá-lo. Desse modo, voltei de imediato ao meu primeiro in-
terlocutor para assegurar-lhe com extrema satisfação que tinha
a certeza de que, em breve, a paz na Sorbonne seria restabeleci-
da. Pois os jansenistas concordavam sobre a questão de o justo
possuir poder para cumprir os mandamentos. Eu apresentaria
isso e faria todos escreverem com o próprio sangue.
“Espere”, ele me disse, “um homem deve ser um exce-
lente teólogo para discriminar estas sutilezas; tão tênue e su-
til é a diferença entre nós que dificilmente conseguimos dis-
cerni-la por nós mesmos. Portanto, não se deve esperar que
você compreenda isso, mas você se dá por satisfeito apenas
em ouvir dos jansenistas que o justo sempre detém o poder de
cumprir os mandamentos divinos. Nós não contestamos isso,

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272 MENTE EM CHAMAS

mas eles não lhe informarão que isto é poder adjacente. Este é
o ponto”.
Este termo era totalmente novo e absurdo para mim. Eu
imaginei que havia compreendido toda a situação, mas agora
tudo havia ficado obscuro novamente. Quando solicitei alguma
explicação, ele fez disso um grande mistério e despediu-se sem
me dar qualquer satisfação, de modo a inquirir os jansenistas
sobre se eles admitiam este poder adjacente.
Para não me esquecer disso, corri ao encontro de meu
amigo jansenista, e, após os primeiros cumprimentos, pergun-
tei-lhe: “Você admite o poder adjacente?”.
Ele começou a rir e, friamente, respondeu: “Você me diz
o que isso significa e então estarei preparado para lhe revelar o
que creio”.
Porém, como não fazia a menor idéia, não consegui res-
ponder. Vagamente, eu disse: Eu compreendo isso no mesmo
sentido dos molinistas.
“Ah, e a qual dos molinistas você se refere?”
“Todos eles”, disse eu, “já que eles compreendem um mes-
mo corpo e compartilham um mesmo espírito”.
“Você sabe muito pouco a respeito deste assunto”, ele
disse. “Eles são tão desunidos entre si que a única coisa com
a qual todos concordaram foi em arruinar o Sr. Arnauld. Por-
tanto, eles estão determinados de comum acordo em utilizar o
termo adjacente com o objetivo de enfraquecê-lo e arruiná-lo,
muito embora eles o compreendam de diversas maneiras.”
Esta resposta me deixou perplexo. Mas eu não estava dis-
posto a receber uma impressão dos motivos ilegítimos dos mo-
linistas sobre a palavra de um indivíduo e, assim, minha única
preocupação tornou-se descobrir em que diferentes maneiras
eles empregavam o termo poder adjacente.
Ele estava desejoso de me explicar isso, mas observou:
“Você verá tamanha contradição e inconsistência que isso o
confundirá e fará com que suspeite de minha própria veraci-

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CARTA I 273

dade. Então, é melhor obter isso diretamente deles. Portanto,


se você me permitir orientá-lo, eu recomendaria uma visita em
separado a M. le Moine e padre Nicolai”.
“Eu não conheço nenhum desses cavalheiros”, respondi.
“Mas talvez você conheça alguns outros que posso indi-
car, e que têm as mesmas opiniões”. Este foi, de fato, o caso.
“Você não conhece”, acrescentou, “alguns dos dominicanos,
chamados de os novos tomistas, que concordam, todos, com
padre Nicolai?”.
De fato, eu estava familiarizado com alguns deles. Como
estivesse determinado a buscar conselho e perseguir meu obje-
tivo, deixei-o de imediato e fui procurar um dos discípulos de
M. le Moine. Pedi-lhe que me contasse o que era ter o poder
adjacente para fazer qualquer coisa.
“Ah”, ele respondeu, “isto é muito óbvio: Significa ter
todo e qualquer poder necessário para cumprir o que se deseja,
de tal maneira que nada falte para completar a ação”.
“Então”, respondi, “possuir este poder adjacente para atra-
vessar um rio é dispor de um barco, um barqueiro, remos e ou-
tras exigências, de tal sorte que não lhe falte nada”.
“Isso mesmo”.
“E possuir este poder para ver é ter bons olhos e uma boa
luz. Por essa sua perspectiva, se alguém possui bons olhos no
escuro, ele não teria este poder adjacente para ver, porque a luz
seria necessária, sem a qual é impossível ver”.
“Realmente, é muito lógico”.
“Por conseqüência”, prossegui, “quando você diz que to-
dos os justos, em todo o tempo, possuem o poder adjacente de
cumprir os mandamentos, quer dizer que eles sempre têm a gra-
ça necessária para a sua execução; pelo menos, que nada falta
da parte de Deus”.
“Espere um minuto”, ele disse. “O justo sempre possui o
que é necessário para a sua obediência, ou, ao menos, o que for
indispensável pedir a Deus”.

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274 MENTE EM CHAMAS

Então, repliquei: “Eu compreendo muito bem que eles


têm tudo o que é necessário para buscar o auxílio divino por
meio da oração, mas não precisam de nenhuma outra graça que
os capacite a orar”.
“Perfeitamente correto”.
“Mas, não é necessária uma graça eficaz para nos estimu-
lar a orar?”
“Não”, ele respondeu, seguindo a opinião de M. le Moine.
Para não perder tempo, eu me apressei a ir aos jacobi-
nos, perguntando por aqueles que sabia serem tomistas da
nova escola. Eu lhes pedi que me fornecessem informações
sobre esse poder adjacente. Primeiro, perguntei se aquilo não
era algo deficiente em caso de uma real necessidade. A res-
posta foi um categórico “Não”. Então, perguntei: “Por que
então vocês chamam isso de poder adjacente quando alguma
deficiência acontece? Vocês afirmarão, por exemplo, que al-
guém à noite, sem qualquer tipo de luz, possui o poder adja-
cente para enxergar?”.
“Certamente, se ele não for cego”.
“Eu não tenho objeções quanto a isso”, disse, “mas M. le
Moine possui uma visão um tanto diferente deste assunto”.
“É verdade. Mas eu lhe contarei como nós entendemos
esta questão”.
A isto concordei, afirmando “pois eu jamais discutirei so-
bre o termo se sou apenas informado do significado dado a ele.
Porém, vejo que quando você afirma que o justo sempre tem o
poder adjacente para orar a Deus, você quer dizer com isso que
ele precisa de algum outro auxílio, sem o qual ele não poderia
orar de maneira alguma”.
“Excelente, excelente”, expressou um dos padres, abra-
çando-me, “mais do que excelente, pois o justo necessita de uma
graça eficaz não concedida a todos os homens e que influencia a
vontade deles para orar, e qualquer um que negar a necessidade
dessa graça eficaz é um herege”.

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CARTA I 275

“Excelente, de fato, deveras excelente”, exclamei por meu tur-


no. “Mas, de acordo com a sua opinião, os jansenistas são ortodoxos
e M. le Moine é um herege. Pois eles afirmam que o justo possui po-
der para orar, mas a graça eficaz é, no entanto, essencial, posição esta
que vocês aprovam. Moine afirma que o justo pode orar sem a graça
eficaz, que é uma afirmação condenável por vocês”.
“É verdade”, disseram, “mas então M. le Moine denomina
este poder pelo peculiar epíteto de poder adjacente”.
“Realmente, meu bom padre”, prossegui, “é um mero jogo
de palavras dizer que vocês concordam respeitando o mesmo
termo, mas o utilizam com sentido oposto”.
Assim, eu não tinha mais nada a dizer. Mas, felizmente,
veio ao nosso encontro um dos discípulos de M. le Moine, a
quem eu havia consultado anteriormente. Na hora fiquei sur-
preso com essa incrível coincidência, mas tenho aprendido que
esses acidentes felizes não são incomuns, já que acontecem com
certa freqüência.
De imediato, abordei o discípulo de M. le Moine: “Co-
nheço um cavalheiro que sustenta que todos os justos sempre
possuem, em todo o tempo, o poder para a oração. No entanto,
eles jamais orarão sem que uma graça eficaz os estimule, graça
que Deus não concede a todos os justos. Isto é heresia?”
“Pare”, disse o médico, “você me pegou de surpresa! Espere
um minuto, espere um minuto – se ele chama este poder de poder
adjacente ele é um tomista e, portanto, um ortodoxo. Se não chamar,
ele é um jansenista e, por conseqüência, um herege”.
“Mas ele não chama isso de adjacente e, tampouco, de não
adjacente”.
“Então, ele é um herege – eu apelo a estes bons padres”.
Entretanto, eu não obtive a opinião desses juízes, pois eles
já tinham dado sua concordância com um significativo aceno
com a cabeça e, então, prosseguiram: “O cavalheiro recusa-se a
adotar o termo adjacente porque não consegue obter uma expli-
cação para ele”.

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276 MENTE EM CHAMAS

A esta altura, um dos padres estava a ponto de nos favo-


recer com uma definição, porém o discípulo de M. le Moine o
interrompeu, dizendo: “Por que você quer reacender os nossos
ferrenhos debates? Não fizemos um acordo para não dar explica-
ções sobre o termo adjacente e utilizá-lo em ambos os lados, sem
definir o significado?” Ele, de imediato, concordou.
Agora eu tinha sido introduzido ao segredo. Levantando-
me para partir, exclamei; “Padres, eu me sinto extremamente
apreensivo de que todo este caso é um mero conchavo e seja o
que for que resulte de nossas reuniões, eu me aventuro a predi-
zer que qualquer que seja a censura a ser infligida, a paz não será
estabelecida, pois, se há um acordo para pronunciar o termo
adjacente sem lhe dar qualquer definição, cada um dos grupos irá
reivindicar a vitória. Os dominicanos irão dizer que o termo é
compreendido no sentido deles, M. le Moine irá afirmar o mes-
mo em seu benefício, e os debates sobre o significado desta pa-
lavra se sucederão, com muito mais freqüência que a sua simples
introdução. Porém, será indigno da Sorbonne e da Faculdade
de Teologia fazer uso de termos ambíguos sem lhes dar qualquer
explicação. Pela última vez lhes pergunto o que é isto em que
devo crer a fim de ser um cristão ortodoxo?”
Em uníssono, eles responderam: “Você deve dizer que to-
dos os justos possuem o poder adjacente sem acrescentar qualquer
significado às palavras”.
Ao despedir-me, repliquei: “Isto é o mesmo que dizer que
esta palavra deve ser proferida com lábios de medo pela possi-
bilidade de ser estigmatizada com a pecha de herege. Este é um
termo da Escritura?”.
“Não.”
“É utilizado pelos padres, os Conselhos e os papas?”
“Não.”
“É utilizada por Tomás de Aquino?”
“Não.”
“Então, qual é a necessidade de usar esse termo, já que

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CARTA I 277

não é sustentado por nenhuma autoridade e tampouco possui


qualquer significado característico?”
“Você é deveras obstinado”, exclamaram, “mas tem de
pronunciar isso ou ser considerado um herege, assim como o
Sr. Arnauld. Pois nosso grupo compreende a maioria e, se for
necessário, nós podemos constranger os outros a votarem co-
nosco”.
Esta última razão foi tão convincente que eu consenti
com um meneio de cabeça e me retirei para lhes dar este relato.
Por meio dele vocês podem constatar que nenhum dos pontos
seguintes tem sido examinado e, por conseqüência, eles não fo-
ram condenados ou aprovados:
1. Que a graça não é concedida a todos os homens.
2. Que todos os justos têm o poder de guardar os manda-
mentos divinos.
3. Que eles, todavia, precisam da graça eficaz para deter-
minar a sua vontade em obedecer-lhes e mesmo para orar.
4. Que essa graça eficaz não é sempre concedida a todos os
justos, e que depende unicamente da misericórdia de Deus.
Assim, não existe nada além da estéril palavra adjacente,
sem qualquer significado, que não traz risco algum.
Bem-aventurados são os que vivem em completa igno-
rância disso! Afortunados são aqueles que existiram antes
do surgimento dessa palavra! Assim, não vejo solução se os
cavalheiros da academia não banirem da Sorbonne, por meio
de uma ordem oficial, esse estúpido termo, que tem sido a
razão de muitas divisões. A não ser que isso ocorra, a censura
deve ser confirmada. Porém, não vejo outra conseqüência
que a de tornar a Sorbonne desprezível, além de destruir a
autoridade que essa instituição desfrutou em outras ocasi-
ões.
Sinta-se livre para votar a favor ou contra esse termo, pois
tenho por você tamanho apreço que não sou capaz de perturbá-
lo por tão fútil pretexto.

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278 MENTE EM CHAMAS

Se esta descrição trouxe-lhe algum deleite, continuarei a


lhe enviar informações sobre os acontecimentos.

Eu sou, et cetera.

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Carta II

Sobre o objetivo
da graça suficiente

Paris, 29 de janeiro de 1656

Senhor,

No exato momento em que estava selando minha última


carta, nosso velho amigo, Sr. N., entrou. Tal fato foi venturoso para
minha curiosidade, por ele estar totalmente informado sobre as
controvérsias do dia e o segredo dos jesuítas. Pois o Sr. N. é compa-
nhia constante entre eles e íntimo de seus líderes. Após mencionar
o propósito particular de sua visita, pedi-lhe que expressasse em
poucas palavras os pontos em debate entre os dois grupos.
Com a máxima prontidão, ele me contou que eram prin-
cipalmente dois: um com respeito ao poder adjacente e outro com
relação à graça suficiente. O primeiro eu já expliquei; portanto,
permita-me falar sobre o segundo ponto.
A diferença sobre o tema da graça suficiente é, sobretudo,
este: os jesuítas afirmam que há uma graça geral concedida a
toda a humanidade, porém subordinada ao livre arbítrio, em
certo sentido, de modo que essa graça é feita eficaz ou ineficaz
conforme a escolha do mundo, sem qualquer assistência adicio-
nal por parte de Deus. Não há necessidade de nada externo a si

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280 MENTE EM CHAMAS

mesmo para tornar as suas ações eficazes. Por esta razão, ela é ca-
racterizada pela palavra suficiente. Em contraste, os jansenistas
afirmam que nenhuma graça é suficiente a não ser que também
seja eficaz. Isto é, todos aqueles princípios que não determinam
a vontade de agir de maneira eficaz são insuficientes para a ação
porque, dizem eles, ninguém pode agir sem a graça eficaz.
A seguir, como desejasse estar informado sobre a doutrina
dos novos tomistas, eu lhe perguntei a respeito deles.
“É ridículo”, ele exclamou, “pois eles concordam com
os jansenistas na admissão de uma graça suficiente concedida a
todos os homens, mas insistem que jamais podem agir somente
com ela. Pois ainda há a necessidade de Deus lhes conceder
uma graça eficaz de modo a influenciar a vontade, e essa graça
não é concedida a todos”.
Então, eu disse: “Essa graça é, ao mesmo tempo, suficiente
e insuficiente”.
“É verdade”, ele respondeu. “Pois se for suficiente nada
mais se requer para produzir uma ação, e se não for, não pode ser
chamada de suficiente”.
“Então, qual é a diferença entre eles e os jansenistas?”
Ele replicou: “Eles diferem no fato de os dominicanos
pelo menos reconhecerem que todos os homens possuem a gra-
ça suficiente”.
“Eu compreendo, mas você diz isso sem pensar assim, por-
que eles são rápidos em afirmar que, para agir, devemos possuir a
graça eficaz que, no entanto, não é concedida a todos. Portanto,
embora eles concordem com os jesuítas na utilização dos mes-
mos termos ilógicos, eles se contradizem no significado substan-
cial, e concordam com os jansenistas”.
“É verdade.”
Assim, eu perguntei: “Como é que os jesuítas e esses ho-
mens são tão unidos, e por que eles não lhes fazem oposição,
assim como aos jansenistas, pois sempre os considerarão opo-
nentes poderosos. Embora afirmem a necessidade da graça eficaz

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CARTA II 281

para determinar a vontade, eles evitam o estabelecimento do


que julgam ser auto-suficiente”.
Ele respondeu: “Os dominicanos são um corpo podero-
so e os jesuítas são muito astutos para lhes fazer uma oposição
franca. Eles se contentam em levá-los a admitir o termo graça
suficiente, embora o sentido no qual o utilizam seja totalmen-
te diferente. Por tais meios, eles ganham a vantagem de, fa-
cilmente, tornar os sentimentos de seus oponentes parecerem
indefensáveis, sempre que lhes aprouver. Suponha que todos
os homens possuam princípios da graça suficiente; é natural de-
duzir que a graça eficaz não é necessária para a ação, porque
a graça suficiente, do princípio geral, evitará a necessidade de
qualquer coisa adicional. Aquele que utiliza o termo suficiente
inclui tudo o que seja requisito essencial e, assim, não haverá
benefício algum aos dominicanos se eles protestarem que dão
um outro sentido à expressão. As pessoas habituadas ao uso ge-
ral da palavra não darão ouvidos às suas explicações. Portanto,
a sociedade dos jesuítas tem se beneficiado sobremaneira com a
expressão adotada pelos dominicanos, sem incitá-los. E se você
estivesse informado sobre o que ocorreu durante o período dos
papas Clemente VIII e Paulo V, ou seja, de como os domini-
canos se opuseram aos esforços dos jesuítas para estabelecer a
doutrina da graça suficiente, você não se surpreenderia com a
presente suspensão das hostilidades, nem com o pronto con-
sentimento destes últimos em desfrutar de sua própria opinião,
desde que eles tenham liberdades iguais, especialmente quando
os dominicanos adotaram e concordaram, publicamente, com
seu termo favorito”.
Inquirindo um dos novos tomistas, que ficou encantado
em me ver, perguntei o seguinte: “Meu bom padre, não é su-
ficiente para todos os homens possuir um poder adjacente, por
meio do qual não podem, de fato, fazer nada, pois eles precisam
ter graça suficiente, pela qual muito pouco pode ser realizado.
Esta não é a doutrina de suas escolas?”

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282 MENTE EM CHAMAS

“Certamente que é”, ele respondeu. “Nesta manhã mes-


mo, na Sorbonne, afirmei isso de modo categórico”.
Por meu turno, perguntei-lhe: “Essa graça, que é concedi-
da a todos os homens, é suficiente?”.
“Sim”, respondeu.
“E, ainda assim, não tem utilidade sem a graça eficaz?”
“Não.”
“E todos os homens possuem graça suficiente, mas nem to-
dos possuem graça eficaz?”
“Exatamente.”
“Isto é o mesmo que dizer que todos os homens possuem
graça suficiente e todos os homens não a possuem. Essa graça
é suficiente e insuficiente, ou seja, é nominalmente suficiente
e realmente insuficiente. Padre, esta é uma doutrina interes-
sante! Desde que abandonou o mundo esqueceu-se do que a
palavra suficiente significa? Recorda-se de que ela inclui tudo o
que é necessário para realizar uma ação? Decerto, não esqueceu
o significado! Fazendo uma ilustração óbvia: Se na sua mesa
houvesse apenas dois pedaços de pão e um copo de água como
provisão diária, você ficaria satisfeito com o seu superior se ele
lhe perguntasse o que mais seria necessário para tornar a sua
refeição suficiente, mas não lhe fornecesse nada? Como, então,
você pode afirmar que todos os homens possuem graça suficiente
para agir, embora ao mesmo tempo confesse que algo mais - que
nem todos possuem - é absolutamente necessário? Este é um
artigo de fé dotado de tão pouca importância que qualquer um
tem a liberdade de decidir se a graça eficaz é ou não requerida?
Ou é uma questão de indiferença?”
“O que você entende por indiferença?”, replicou o bom
padre. “Isto é heresia, uma consumada heresia. Admitir a neces-
sidade de graça eficaz para agir eficientemente é fé, mas negá-la
é uma completa heresia”.
“Onde estamos agora”, exclamei, “e que lado devo tomar
aqui? Se eu negar a graça suficiente, sou um jansenista, se a ad-

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CARTA II 283

mito como os jesuítas, com um sentido de que não há neces-


sidade da graça eficaz, sou, como você disse, um herege. Se eu
concordar com você, me coloco contra o bom senso. Eu sou um
louco, dizem os jesuítas. O que então devo fazer nesta situação
inevitável de ser considerado um desajuizado, um herege ou um
jansenista? E, a que situação nós somos reduzidos se os jansenis-
tas evitam confundir fé e razão e, portanto, salvam-se ao mesmo
tempo do absurdo e do erro?”.
Meu bom amigo, o jansenista, pareceu satisfeito com as
minhas observações e imaginou que já havia me conquistado
para a sua causa. Entretanto, ele nada me disse, mas, voltando-
se para o padre, perguntou: “Padre, em que aspecto você con-
corda com os jesuítas?”.
Ele replicou: “Neste, que ambos reconhecemos que graça
suficiente é concedida a todos os homens”.
“Mas”, respondeu este, “há duas coisas no termo graça su-
ficiente. O que é simples ar, e o sentido que é real e significante.
De modo que quando você reconhece haver um acordo com os
jesuítas sobre o uso dessa palavra, mas se opõe a eles quanto ao
seu sentido, é óbvio que há discordância com eles na essência,
muito embora concorde quanto ao uso do termo. Esta realmen-
te é uma atitude transparente e sincera?”
“Mas”, disse o bom homem, “que causa de reclamação
tem você, uma vez que a ninguém enganamos com essa forma
de falar? Pois em nossas escolas publicamente declaramos que
compreendemos a expressão em um sentido um tanto contrário
ao dos jesuítas”.
“Eu reclamei”, disse o meu amigo, “que você não declara
a todo o mundo que por graça suficiente quer dizer uma graça
que não é suficiente. Ao mudar o significado de termos usuais
na religião, vocês são obrigados pela consciência a declarar que,
quando admitem a graça suficiente em todos os homens, na re-
alidade pretendem expressar que eles não possuem suficiente
graça e ninguém é informado sobre sua própria e peculiar inter-

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284 MENTE EM CHAMAS

pretação. Em todo lugar é dito que eles mantêm a doutrina da


graça suficiente.”
“Devo descrever a você a situação da igreja em meio a
essas diferentes visões? Eu a imagino como um homem que,
deixando seu país de origem para viajar ao exterior, encontra
ladrões que o espancam sem piedade, deixando-o semimorto.
Ele manda chamar três médicos que moram nas imediações.
O primeiro, após examinar os ferimentos, declara que eles são
mortais e que somente Deus pode restaurá-lo. O segundo, dese-
jando animá-lo, lhe assegura que ele possui força suficiente para
voltar para casa, insultando o primeiro doutor por opor-se à sua
opinião e ameaçando arruiná-lo. Quando o infeliz paciente vê
o terceiro médico se aproximando, ele estende a sua mão para
saudá-lo como aquele que irá decidir aquele impasse.”
“Esse médico, após examinar os ferimentos e ouvir as opi-
niões já expressas, concorda com o segundo e, juntos, eles se
voltam para o primeiro com desdém. Eles agora formam o par-
tido mais forte. O paciente deduz disso que o terceiro médico
concorda com o segundo e, ao questionar-lhe, este lhe assegura,
da maneira mais positiva possível, que ele tem condições de
saúde suficientes para a jornada proposta. Porém o homem feri-
do, refletindo sobre a sua fraqueza, pergunta-lhe como o médico
chegou àquela conclusão.”
“‘Porque você ainda dispõe de pernas, e pernas são os
meios que, de acordo com a natureza das coisas, são suficientes
para o propósito de andar.’”
“O viajante replicou: ‘Pode ser, mas tenho eu todo o vigor
necessário para usá-las? Elas realmente me parecem inúteis na
condição enfraquecida em que me encontro.’”
“‘Certamente que estão’, respondeu o médico, ‘e você
nunca será capaz de andar a não ser que Deus lhe conceda algu-
ma assistência extraordinária para apoiá-lo e lhe dar direção.’”
“‘Quer dizer’, perguntou o viajante, ‘que não tenho vigor
suficiente em mim mesmo que me capacite a andar?’”

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CARTA II 285

“‘Não, longe disso.’”


“‘Então, você tem uma opinião diferente de seu amigo
com respeito à minha real condição.”’
“‘Eu tenho de admitir que sim.’”
“O que você supõe que o homem ferido diria de tudo isso?
Certamente, ele reclamaria do estranho procedimento e da
linguagem ambígua do terceiro médico. Ele o repreenderia por
concordar com o segundo, quando na verdade possui opinião
contrária, embora pareça concordar e até expulse o primeiro
médico pelo mesmo motivo. Quando o homem verifica o seu
vigor e descobre que está fraco, ele repele a ambos, chamando
o primeiro doutor, que cuida de seus ferimentos, segue os con-
selhos e pede a Deus pelo vigor que ele sabe que necessita. Suas
petições são ouvidas e, no devido tempo, ele volta para casa em
paz.”
O bom padre ficou atônito ao ouvir esta parábola e nada
respondeu. Assim, ansioso para encorajá-lo, disse da forma mais
gentil possível: “Afinal, meu bom padre, o que você acha de
aplicar o termo suficiente para uma graça que você afirma ser
uma questão de fé, mas que na realidade é insuficiente?”.
“Você desfruta da liberdade de falar o que desejar em
tais assuntos, desde que seja um indivíduo representando a si
mesmo. Mas eu sou um monge e pertenço a uma sociedade.
Não vê que há uma grande diferença? Somos subordinados
aos nossos superiores e, por sua vez, eles estão subordinados
a outros e fizeram os seus votos. O que você imagina que
aconteceria comigo?”. Pois ele lembrou que meia palavra foi
o bastante para que um de seus irmãos fosse banido em uma
ocasião similar.
Porém, eu perguntei: “Como é que a sua comunidade se
coloca acima de todos com respeito a essa graça?”.
“Bem, este é um outro assunto. Tudo que posso dizer é
que a nossa ordem é a que mais vigorosamente tem defendido a
doutrina de Tomás de Aquino quanto à graça eficaz. Com que

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286 MENTE EM CHAMAS

zelo ela se opõe à de Molina desde o instante de sua introdução!


Como tem trabalhado para estabelecer a necessidade da graça
eficaz de Jesus Cristo! Mas os jesuítas, que desde o início da pro-
pagação das heresias de Lutero e Calvino têm se aproveitado da
incapacidade das pessoas em discernir entre a verdade e a falsi-
dade da doutrina de Tomás de Aquino, difundiram os seus sen-
timentos com tamanha rapidez que logo auferiram o domínio
sobre a fé popular. Assim, nós seríamos depreciados como calvi-
nistas e tratados da mesma forma que os jansenistas são agora, se
não tivéssemos reconhecido a verdade de uma graça eficaz pela
admissão, pelo menos em aparência, da graça suficiente. Em tal
dilema, que expediente melhor poderia ser idealizado, para ao
mesmo tempo preservar a verdade e salvar o nosso crédito, do
que admitir o termo da graça suficiente, mas negar a realidade.
Portanto, esta é a situação neste caso.”
Ele declarou isso com tal tristeza em sua voz que, real-
mente, me apiedei dele, porém não o meu amigo, que pros-
seguiu: “Não se gabe a si mesmo de haver preservado a ver-
dade, pois se ela não tivesse outros protetores, teria perecido
em mãos tão débeis. Vocês têm recebido o nome do inimigo
dela na igreja, o que é tão pernicioso quanto receber o pró-
prio inimigo. Os nomes são inseparáveis das coisas. Se o ter-
mo graça suficiente é uma vez estabelecido, é inútil dizer que
vocês a compreendem como uma graça que seja insuficiente.
Jamais isso ocorrerá. A explicação será detestada. O mundo
usa de maior sinceridade nas ocasiões menos importantes. Os
jesuítas triunfarão, pois estabelecerão a graça suficiente deles,
enquanto a de vocês será apenas nominal e, portanto, vocês
estarão propagando um artigo de fé que é contrário à sua pró-
pria crença”.
“Não”, disse o padre, “deveríamos todos ser martirizados a
consentir em estabelecer a graça suficiente no sentido do termo
utilizado pelos jesuítas. Tomás de Aquino, a quem juramos se-
guir até a morte, é diametralmente contrário a isso.”

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CARTA II 287

Meu amigo, em tom mais sério que eu mesmo, replicou:


“Padre, a sua fraternidade recebeu uma missão que é miseravel-
mente administrada. Ela abandona a graça que lhe foi confiada
como nunca antes, desde os princípios do mundo. Pois esta é a
graça vitoriosa antecipada pelos patriarcas, predita pelos profetas,
introduzida por Jesus Cristo, pregada pelo apóstolo Paulo, expli-
cada por Agostinho, o maior de todos os padres, abraçada por
todos os seus seguidores, confirmada por Bernard de Clairvaux,
o último dos padres, defendida por Tomás de Aquino, o anjo das
escolas e, então, transmitida por meio dele para a sua sociedade,
sustentada por muitos de seus padres e, de forma tão gloriosa,
defendida por sua fraternidade sob o papado de Clemente e de
Paulo. Esta graça eficaz que tem sido, portanto, consignada a vo-
cês com uma confiança sagrada, para que seja protegida por meio
de uma ordem santa e indissolúvel, e uma sucessão de pregadores
a transmiti-la aos confins da terra, é, por fim, abandonada pela
mais indigna das razões. Urge o tempo de outros se armarem em
sua defesa. É hora de Deus levantar alguns defensores intrépidos
da doutrina da graça que, felizmente alheia ao pragmatismo de
sua época, devem servir a Deus pelos motivos de um amor genuí-
no. Os dominicanos talvez não sejam mais capazes de defendê-la,
mas não lhes faltam protetores, pois irá suscitar e qualificar outros
por seu próprio e maravilhoso poder”.
“A graça demanda corações santos e santificados, os quais
ela purifica e separa dos interesses mundanos tão incompatíveis
com o Evangelho. Reflita com seriedade, meu padre, e cuide-se
para que Deus não remova o candelabro de seu lugar, deixando-
o na escuridão e na desonra, como punição por sua indiferença
a uma causa de suma importância para a Sua igreja.”
Ele teria falado muito mais pelo crescente entusiasmo que
mostrava, mas eu achei apropriado interrompê-lo. Levantando-
me, disse: “De fato, padre, se eu tivesse alguma influência na
França, anunciaria isso ao som de trompetes: ‘SAIBAM TO-
DOS OS HOMENS que quando os jacobinos afirmam que a

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288 MENTE EM CHAMAS

graça suficiente é concedida a todos, eles querem dizer que todos


não possuem a graça que é realmente suficiente.’ Após o que
você pode afirmar o mesmo, mas não o contrário, tantas vezes
quanto desejar”.
Assim, nossa visita chegou ao fim.
Como podem ver, por meio desta comunicação, há uma
suficiência política não diferente de um poder adjacente. No en-
tanto, parece-me que qualquer pessoa que não seja um jacobino
pode, sem correr nenhum risco, duvidar tanto do termo poder
adjacente quando da graça suficiente.
Ao dobrar esta minha carta, ouvi que a censura foi impos-
ta. Porém, como não sei nada com respeito às condições dessa
censura e como ela não se tornará pública antes de 15 de feve-
reiro, eu não devo escrever mais até a próxima missiva.

Eu sou, et cetera.

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Carta IV

Sobre a graça real e os


pecados da ignorância

Paris, 25 de fevereiro de 1656

Senhor,

Os jesuítas são um grupo incomparável. Tenho visto ja-


cobinos, doutores e pessoas de todos os tipos, mas, no entanto,
o meu conhecimento ainda está incompleto, pois os outros são
meros copiadores deles. O rio é mais puro em sua nascente. As-
sim, procurei um de seus mais inteligentes seguidores, tendo por
companhia meu fiel amigo jansenista, que esteve comigo em
minhas visitas anteriores.
Ansioso por obter total informação com respeito à con-
trovérsia entre eles e os jansenistas sobre o que eles denominam
como graça real, perguntei ao bom padre se ele me instruiria.
Uma vez que eu nem mesmo conhecia o significado dessa ex-
pressão, pedi-lhe que me explicasse.
“Claro”, exclamou ele, “pois eu me alegro com pessoas
que estão buscando instrução. A nossa definição é a seguinte:
Graça real é inspirada por Deus, por meio da qual Ele nos ensi-
na a Sua vontade e pela qual Ele estimula em nosso interior o
desejo de cumpri-la.”

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290 MENTE EM CHAMAS

“Qual é, então, o ponto exato do argumento entre vocês


e os jansenistas?”, questionei.
Ele me respondeu: “O ponto é este; nós sustentamos que
Deus concede a graça real sobre todos em toda tentação. Caso
contrário, se eles não tivessem essa graça real a fim de evitar a
licença ao pecado, a culpa jamais poderia ser imputada a eles. Po-
rém, os jansenistas afirmam que os pecados cometidos sem a gra-
ça real devem ser imputados. Por certo, eles estão sonhando!”.
Eu compreendi o desígnio de seu argumento, porém, a fim
de ver isso mais claramente, respondi: “Meu caro padre, essa
frase graça real me deixa perplexo, pois não estou habituado a
ela. Portanto, se o senhor tiver a bondade de explicar o seu sig-
nificado, sem utilizar o termo, eu ficaria muito agradecido”.
“Ah, se é isso o que você deseja, muito bem, pois o sentido
permanecerá o mesmo. Nós insistimos, então, como um prin-
cípio inquestionável, que nenhuma ação pode ser considerada
pecaminosa se antes de sua execução Deus não comunicar o
conhecimento do que é maligno nela e, assim, não nos inspirar
a evitá-la. Você me compreende agora?”
Atônito diante da exposição dessa doutrina, que implica-
va que todos os pecados não premeditados e aqueles cometidos
devido ao esquecimento de Deus não são imputáveis sobre o
que os cometem, voltei-me ao meu amigo jansenista. Percebi
pelo seu modo de agir que ele não acreditava nessa afirmação,
porém, ele permaneceu em silêncio e, desse modo, pedi ao pa-
dre que me fornecesse alguma evidência mais concreta de seu
argumento.
“Você precisa de provas?”, ele me perguntou. “Certamen-
te fornecerei provas irrefutáveis; confie em mim.”
Ao dizer estas palavras, ele se retirou para pesquisar al-
guns livros, e eu aproveitei a oportunidade para perguntar ao
meu amigo o que ele pensava a respeito daquela opinião.
Ele me respondeu: “Se você acha que é uma novidade para
você, então tenha a mais absoluta certeza de que nem padres,

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CARTA IV 291

papas, Concílios, Escrituras ou mesmo qualquer livro devocio-


nal, antigo ou moderno, discorreu sobre este argumento antes.
Os únicos que o fazem são os casuístas e os novos estudiosos, de
quem ele produzirá uma vasta quantidade de evidências”.
“Mas eu desprezo escritores como esses se eles contradi-
zem a tradição.”
“Você está absolutamente certo”, ele afirmou. Naquele
exato instante o bom padre retornou carregado com seus li-
vros.
Oferecendo-me o primeiro do lote, disse: “Aqui está, leia
este. É um resumo dos pecados por padre Bauny, e como prova
de sua excelência, esta é a quinta edição”.
Sussurrando, o meu amigo jansenista me informou: “Este
livro foi condenado por Roma e pelos bispos da França”.
“Abra na página 906”, disse o padre.
Assim fiz e encontrei estas palavras: “Para pecar de modo
a ser considerado culpado diante de Deus, é necessário conhe-
cer que o que está sendo cometido não é bom, ou, pelo menos,
ter dúvidas disso, ou ainda supor que Deus ficará descontente
com o ato premeditado e, assim, o proíba. Portanto, se tal ato
for cometido em desafio a toda oposição, então é pecado”.
Eu ironizei: “Que começo promissor!”
“Veja”, ele disse, “o poder da inveja. Isto foi o que fez o
Sr. Hallier, antes de passar para o nosso lado, ao ridicularizar
padre Bauny dizendo a respeito dele: ‘Veja o homem que tira os
pecados do mundo!’”
Ao que respondi: “De fato, esta redenção do Sr. Bauny é
uma descrição recente!”.
Ele me perguntou se desejava uma autoridade ainda maior.
“Então, leia o que foi escrito por padre Annat, o último dos
quais ele produziu contra o Sr. Arnauld. Dê uma olhada na pá-
gina em que marquei com um lápis. Cada sílaba é ouro puro”.
As palavras que encontrei eram as seguintes: “Aquele que
não possui pensamento de Deus ou de seus pecados, ou qualquer

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292 MENTE EM CHAMAS

concepção disso ou de seu dever de exercitar atos de penitên-


cia ou de amar a Deus não possui a graça real para realizá-los.
Entretanto, é verdade que ele não peca ao omiti-los, porém, se
ele for finalmente condenado, não será como punição por sua
omissão”. Algumas linhas abaixo: “O mesmo pode ser afirmado
sobre cometer um pecado”.
“Você vê a maneira pela qual o autor fala com respeito à
omissão e à execução? Nada lhe escapa. O que você diz disto?”
“Oh, isto é tão atraente, pelos resultados esperados, que
lógica! Eu já posso discernir mistérios surpreendentes! Pois isto
significa que inúmeras pessoas são justificadas por sua ignorância
ou pelo esquecimento de Deus e não pela graça e pelos sacra-
mentos de nossa fé. Mas, por favor, padre, este é um argumento
bem alicerçado? Não há aqui alguma semelhança com aquela
suficiência que não é suficiente? Estou apreensivo quanto à sutil
distinção que já é uma armadilha. Você realmente quer dizer
isso?”
“Na verdade”, respondeu o padre com certa veemência,
“isto não é pilhéria. Este assunto, senhor, não deve ser motivo
de zombaria”.
“Na verdade, não estou zombando, mas temo que o que
parece atraente não possa provar sua veracidade”.
“Bem, então se você quer provas adicionais, olhe os es-
critos de M. le Moine, que ensinou este argumento diante do
Conselho. De fato, ele o aprendeu conosco, mas teve a habili-
dade de elucidar as suas complexidades. E como é irrefutável
a evidência que elaborou! Ele argumenta que para uma ação
ser pecaminosa, todos os pensamentos listados a seguir devem
passar pela mente. Mas, leia por si mesmo e examine com cui-
dado”.
Assim, li o texto no original, em latim, do qual transcrevo
a tradução, como segue:
1. De um lado Deus concede à alma certo amor que a
dispõe a fazer o que é ordenado. E do outro lado há uma con-

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CARTA IV 293

cupiscência rebelde que está associada aos que são desobe-


dientes.
2. Deus inspira a alma com o conhecimento de sua pró-
pria fraqueza.
3. Deus inspira a alma com o conhecimento do médico
que deve curá-la.
4. Então, Deus a inspira com o desejo de ser curada.
5. A seguir, Deus a inspira com o desejo de orar e pedir
Seu auxílio.
“Então”, adicionou o jesuíta, “se tudo isso não ocorrer ao
mesmo tempo, a ação não pode ser apropriadamente chamada
de pecaminosa e, portanto, não pode ser suplicada, como M.
le Moine afirma na passagem seguinte. Você ainda deseja ver
alguma outra autoridade? Pois aqui estão mais algumas”.
“Sim, sim”, sussurrou o jansenista, “mas todas são autori-
dades modernas”.
“Eu posso ver”, repliquei. “Mas, meu bom padre, isto seria
uma coisa excelente para alguns de meus conhecidos. Eu real-
mente tenho de apresentar isso a eles. É provável que você não
tenha visto pessoas tão inocentes. Elas nunca pensam em Deus,
pois o pecado cegou as suas mentes. Elas jamais conheceram
qualquer sinal de sua fraqueza moral, tampouco sobre o Médico
que é capaz de curá-las. Nem mesmo desejaram ter saúde de
alma e muito menos solicitaram a Deus que a concedesse a elas.
Assim, adotando a linguagem de M. le Moine, elas são tão ino-
centes quanto o eram em seu batismo como bebês, pois nunca
nutriram um único pensamento sobre amar a Deus ou peniten-
ciar-se pelos pecados. Portanto, de acordo com padre Annat,
elas jamais cometeram qualquer pecado por falta de caridade ou
de penitência. A vida delas é uma contínua busca de prazeres,
sem qualquer interrupção ou remorso. Suas vidas dissolutas me
fazem crer que a destruição deles é algo inevitável. Ainda assim,
meu bom padre, o senhor ensina que esses mesmos excessos é
que tornarão a salvação deles ainda mais certa. Que bênção é a

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sua doutrina para justificar a humanidade dessa forma! Enquan-


to outros prescrevem dolorosas austeridades para salvar a alma,
porque vêem o estado desesperador em que se encontram, vocês
dizem que tudo está bem! Que forma maravilhosa de alcançar a
felicidade tanto neste mundo quanto no vindouro!”
“Sempre supus que a nossa pecaminosidade tornava-se
pior à medida que nos afastávamos de Deus, negligenciando-O.
E agora percebo que quando alguém chega a esse ponto de to-
tal negligência, todas as coisas tornam-se lícitas e, de fato, ino-
centes. Fora, então, com esses que pecam mal e ainda mantêm
algum apreço pela virtude! Todos esses transgressores parciais
se perderão. Mas, por outro lado, não há inferno para os pe-
cadores ostensivos, ofensores contumazes, pecadores habituais,
cuja iniqüidade superabunda. Eles têm ludibriado o Diabo ao
submeterem-se totalmente à sua influência!”
O bom padre, ao perceber claramente a conexão entre
os seus princípios e a minha argumentação lógica, de maneira
inteligente apresentou suas despedidas. Sem demonstrar qual-
quer sinal de convicção, seja devido à sua própria humildade
seja talvez por uma sagaz diplomacia, simplesmente disse: “Para
compreender o nosso modo de evitar essas incongruências, você
tem de compreender que a nossa afirmação com respeito aos
transgressores que você mencionou é que eles não incorreriam
em culpa se jamais tivessem pensado em arrependimento ou
submissão a Deus. Mas, sustentamos que todos eles já nutriram
tais pensamentos e que Deus nunca entrega alguém à prática
do pecado sem, previamente, dar-lhe uma visão do pecado que
está prestes a cometer. Pois Deus lhes dá o desejo de evitá-lo, ou
pelo menos a oportunidade de pedir Seu auxílio, a fim de não
cometê-lo. Apenas os jansenistas são contrários a esta afirma-
ção”.
Ao que repliquei: “Assim, a heresia dos jansenistas con-
siste em negar que toda vez que um pecado é cometido, o ofen-
sor sente remorso em sua consciência, e que é somente em de-

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CARTA IV 295

safio a ela que ele salta todas as barreiras, como padre Bauny
argumenta? Este é um tipo curioso de heresia, por certo! Eu
costumo deduzir que um homem é condenado por ser destituí-
do de todos os bons pensamentos, mas ser condenado por não
acreditar que todos os demais os possuem, isto eu jamais havia
imaginado antes. Portanto, padre, sinto que devo em sã consci-
ência tentar abrir-lhe os olhos e insistir que há milhares que não
possuem tais desejos e que pecam sem sentir qualquer remorso.
Na verdade, eles até se gabam de seus crimes. Pode alguém es-
tar mais consciente disso que vocês mesmos? Por certo, não é
ao encontro de vocês que eles vêm para se confessarem e que
isto acontece entre pessoas da mais alta distinção? Assim, eu
o advirto, meu bom padre, das perigosas conseqüências de sua
doutrina. Você está ciente do que essa doutrina produzirá entre
os libertinos, que estão ávidos para aproveitar-se de qualquer
forma de desacreditar a religião?”.
Nesse instante, meu amigo interpôs-se para apoiar as mi-
nhas observações, dizendo: “Padre, você promoveria melhor as
suas idéias se evitasse uma afirmação tão clara como a que tem
feito sobre o significado do termo graça real. Pois, como pode
acreditar tão piamente que ‘ninguém pode cometer pecado sem
previamente ser alertado de sua maldade e pelo médico, desen-
volvendo um desejo de ser curado e pedindo a ajuda de Deus
para alcançar essa cura?’” “Realmente, você pensa que a simples
afirmação basta para convencer o mundo de que os mesquinhos,
os impuros, os que proferem blasfêmias ou toleram vinganças
homicidas, roubos e sacrilégios desejam de verdade ter castida-
de, humildade e outras virtudes cristãs? É crível acreditar que
aqueles filósofos, que eram tão otimistas quanto ao poder da na-
tureza humana, igualmente conheciam suas fraquezas e o remé-
dio para elas? Pode afirmar que os tais confiantemente afirmam
esta máxima – que ‘Deus não concede a virtude e, tampouco,
ninguém jamais solicitou isso dele’ – realmente pensaram em
pedir para si mesmos? Quem pode imaginar que os epicuristas,

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296 MENTE EM CHAMAS

que negavam a existência da Providência Divina, sentiam algum


desejo de orar a Deus? Pelo contrário, eles declaram que ‘é uma
afronta pedir Sua interferência em nossas necessidades como
se Ele pudesse descer e se preocupar com os nossos afazeres’.
Quem pode imaginar que idólatras e ateus, em meio à imensa e
incalculável diversidade de suas tentações pecaminosas, nutrem
um único desejo de buscar o verdadeiro Deus, sobre o qual são
totalmente ignorantes, com o intuito de receber virtudes reais
para as quais estão cegos?”
“Sim”, disse o bom padre, de forma firme e resoluta, “as-
sim falamos e falaremos. Ao invés de admitir que é possível
cometer pecado sem, claramente, ver sua vilania e nutrir um
desejo oposto, nós sustentaremos que todo o mundo, até mesmo
o mais ímpio e infiel ser da raça humana, tem essa iluminação
e desejos interiores no exato momento da tentação. Não há
evidências em contrário na Escritura.”
Agora, foi a minha vez de interromper e dizer: “Padre, por
que é necessário recorrer à Escritura para provar algo que é tão
óbvio? Esta não é uma questão de fé ou disputa. Isto é trivial.
Nós vemos, conhecemos e sentimos isso”.
Meu amigo jansenista, seguindo as regras, replicou: “Se
você deseja, de fato, ser guiado apenas pelas Escrituras, tem a
minha plena anuência. Pois está escrito: ‘Deus não tem reve-
lado os seus juízos aos ímpios, mas os deixou errantes em seus
próprios caminhos’. Então não diga que Deus tem iluminado
aqueles que os textos sagrados afirmam ser deixados nas trevas
e na sombra da morte. O seu erro não é claramente exposto
pelo apóstolo Paulo, quando ele descreve a si próprio como o
maior dos pecadores, por um pecado que ele declara ter cometi-
do devido à sua ignorância e descrença? O Evangelho não deixa
óbvio que aqueles que crucificaram Jesus Cristo precisavam da-
quele perdão pelo qual Ele orou em favor deles, embora não co-
nhecessem a perversidade de sua conduta e que, de acordo com
o apóstolo, eles nunca cometeriam caso estivessem conscientes

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CARTA IV 297

de seus atos? Jesus Cristo não nos adverte que perseguidores se


levantarão para tentar destruir a Sua igreja, imaginando esta-
rem servindo a Deus? Isto nos mostra que o pecado que o após-
tolo descreve como o maior de todos pode ser cometido por
aqueles que, longe de possuírem consciência da maldade de seus
atos, realmente supõem estarem pecando pela omissão em não
executá-los. Finalmente, o próprio Jesus Cristo não nos tem en-
sinado que há duas descrições de pecadores: O que peca cons-
cientemente e o que peca por ignorância. Ainda assim, ambos
sofrerão punições, embora em proporções diferentes”.
Pressionado por tantas evidências das Escrituras pelas
quais havia solicitado, o bom padre começou a recuar. Admi-
tindo que os maus não estivessem sob uma inspiração imediata
para pecar, ele nos disse: “Pelo menos, vocês não negarão que os
justos jamais pecam, exceto se Deus lhes conceder...”.
“Ah”, interrompendo-o, “você está contradizendo a sua
afirmação; está abandonando o seu princípio geral. Onde ele é
falho com respeito aos pecadores você quer ajustar, pelo menos,
no interesse dos justos. Porém, mesmo neste caso, seria tão res-
trito em sua aplicação que dificilmente seria de alguma serven-
tia e, portanto, não vale como argumento.”
Meu amigo, que parecia tão familiarizado com o assunto
como se o tivesse estudado naquela mesma manhã, replicou: “Pa-
dre, este é o último refúgio no qual os seus partidários buscam
abrigo, mas isso não adianta. O exemplo do justo não é de manei-
ra alguma mais vantajoso para a sua causa. Quem pode duvidar
de que eles com freqüência são apanhados em pecado? Eles não
nos asseguram que a concupiscência sempre espalha os seus ardis
em seus caminhos, e que é comum às pessoas dotadas de mentes
sóbrias renderem-se aos prazeres quando só tinham intenção de
se render à necessidade, como Agostinho reconhece com respei-
to a si mesmo em sua obra, Confissões? Com que freqüência ve-
mos pessoas sagazes serem frustradas em uma discussão por defen-
derem os seus próprios interesses, quando, no momento, elas ti-

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nham a plena convicção de estarem argüindo apenas no interesse


da verdade, apegando-se à mesma convicção por longo tempo!
Então, o que devemos dizer sobre aqueles que pecam de maneira
deliberada, imaginando ser muito bom, sobre os quais a história
da igreja está repleta, sendo que todos foram considerados pe-
caminosos pelos padres? Se não fosse assim, como seria possível
imputar qualquer iniqüidade secreta aos justos? Como poderia ser
verdade que apenas Deus conhece a sua extensão e número, que
ninguém realmente sabe se merece ser amado ou odiado, sendo
que até mesmo as pessoas mais elevadas vivem em eterno temor e
tremor, embora não se sintam culpadas por nenhuma ação, como
o apóstolo expressa sobre si mesmo?”
“Está claro que o justo transgride por meio da ignorância
e que, por outro lado, os santos mais eminentes raramente pe-
cam. Pois como pode ser concebível que pessoas tão santas, que
buscam com tanto cuidado e diligência evitar as mínimas coisas
que acreditam ser desagradáveis a Deus, no entanto, cometam
muitos pecados todos os dias? Como é possível ter conhecimen-
to sobre suas próprias fraquezas, a disposição e o desejo de se-
rem curadas, buscando o auxílio divino e, apesar de todas essas
inspirações piedosas, essas almas zelosas serem levadas a vencer
todos esses obstáculos e correr para o pecado?”
“A conclusão, padre, é que nem pecadores nem santos
estão em posse desse conhecimento, desses desejos e inspirações
em todo o tempo. Adotando o seu próprio fraseado, elas não
possuem graça real em toda e qualquer ocasião. Portanto, não
mais acredite em suas novas autoridades, que afirmam ser im-
possível pecar enquanto forem ignorantes sobre o que é certo.
Ao invés disso diga, em conformidade com Agostinho e os pa-
triarcas, que é impossível não pecar enquanto forem ignorantes
sobre o que é certo.”
Embora o padre percebesse que suas concepções, com res-
peito tanto ao justo, quanto ao ímpio, eram igualmente insus-
tentáveis, ele ainda não se mostrou totalmente desencorajado.

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CARTA IV 299

Após uma breve pausa, prosseguiu: “Eu agora irei convencê-lo”,


disse, abrindo a obra de padre Bauny na mesma página que ha-
via mencionado antes: “Veja a razão na qual a sua opinião está
alicerçada. Eu lhe asseguro que ela não é falha quanto às provas.
Leia esta citação de Aristóteles e, depois de tão distinta autori-
dade, você deve concordar conosco ou queimar os escritos desse
príncipe dos filósofos”.
“Receio que você irá discordar novamente”, eu disse.
“Não fique alarmado, está tudo bem. Aristóteles está do
meu lado. Ouça o padre Bauny: ‘Para que uma ação seja volun-
tária, ela deve ser a ação de um homem que vê, conhece e com-
preende bem que grau de bem e mal está agregado a ela’. A ação
voluntária, como dizemos em comum com o filósofo (Aristóteles,
você sabe)”, ele disse isso com grande complacência de si mes-
mo, apertando a minha mão, “é aquela executada por alguém que
conhece os elementos constituintes da ação. Conseqüentemen-
te, quando a vontade escolhe ou rejeita impensadamente e sem
qualquer exame, antes de compreender que é capaz de descobrir o
mal em condescender ou recusar, em realizar ou negligenciar uma
ação, isto não é bom nem mau. Pois antes dessa análise, a ação
não é voluntária. Está satisfeito agora?”
“Porque, na realidade”, repliquei, “Aristóteles é da mesma
opinião que padre Bauny, mas isso não diminui a minha surpre-
sa. Pode Aristóteles ser, realmente, acusado de ter tal concep-
ção? Eu pensei que ele fosse um homem de bom senso.”
“Eu explicarei isso em breve”, disse meu amigo jansenista.
Pedindo para examinar o livro de Aristóteles, Ethics (Ética), ele
abriu o volume no início do terceiro livro, de onde padre Bauny
havia tirado as mesmas palavras já mencionadas, dizendo: “Eu
posso perdoá-lo, meu bom padre, por acreditar no testemunho
do padre Bauny de que esta era a visão de Aristóteles. Mas teria
pensado de forma totalmente diferente se tivesse lido o filósofo
por si mesmo. Pois, de fato, ele afirma que: ‘para uma ação ser
voluntária, é necessário saber as suas peculiaridades’. No entan-

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300 MENTE EM CHAMAS

to, isto nada mais significa que as circunstâncias particulares


da ação, como parece óbvio nos exemplos que ele fornece para
justificar a sua posição”.
“É óbvio que uma descrição da ignorância de circuns-
tâncias particulares expressa ações involuntárias, que os padres
descrevem como ignorância do fato. Mas, com respeito à igno-
rância do direito, do bem e do mal em uma ação, que é o tema
de nossa consideração, vamos ver se Aristóteles e padre Bauny
realmente concordam entre si.”
“Diz o filósofo que: ‘Todos os perversos são ignorantes do que
deveriam fazer e do que deveriam evitar, e isto é o que lhes confere
a perversidade e a maldade. Por esta causa, não pode ser dito que,
pelo fato de um homem ser ignorante quanto ao que é apropriado
ser feito para cumprir seus deveres, a sua ação é, portanto, involun-
tária. Pois essa ignorância na escolha do bem e do mal não consti-
tui uma ação involuntária, mas corrupta. O mesmo pode ser dito
daquele que é ignorante quanto às regras do dever, já que tal igno-
rância é digna de censura e indesculpável. Assim, a ignorância que
constitui as ações involuntárias é perdoável apenas com respeito
ao fato, em particular, com todas as suas circunstâncias individuais.
Nós desculpamos e perdoamos a pessoa que consideramos ter agido
em contrariedade à sua própria vontade’.”
“Você agora argumentará, padre, que Aristóteles con-
corda com a sua opinião? O mais incrível é perceber que um
filósofo pagão possui mais iluminação que os seus doutores em
divindade sobre um ponto de fundamental importância para a
moralidade e para a conduta de nossas almas. Ou ainda, sobre
o conhecimento das condições que produzem ações voluntá-
rias ou involuntárias e, por conseqüência, que as perdoam ou
condenam! Você espera ter algum apoio desse príncipe dos fi-
lósofos e não mais se opor ao príncipe dos teólogos que decide
a questão com as seguintes palavras: ‘Aqueles que pecam por
ignorância cometem a ação com permissão da vontade, embora
não tivessem a intenção de cometer pecado. Assim, o pecado,

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CARTA IV 301

conforme essa descrição, não pode ser realizado sem a vontade,


mas a vontade irá induzir apenas a ação, não o pecado, o que,
entretanto, não evita de a ação ser pecaminosa, apesar de as
proibições constituírem uma condenação suficiente’?”
O jesuíta pareceu mais surpreso com a citação de Aristó-
teles do que com a de Agostinho. Ele estava divagando sobre
o que responder quando um servo entrou para dizer que certa
pessoa solicitava uma entrevista. Assim, deixando-nos abrupta-
mente, ele disse: “Eu irei falar com alguns de nossos superiores
sobre este assunto. Eles serão capazes de sugerir uma resposta.
Temos entre nós teólogos dotados de extrema habilidade que
estão plenamente conscientes desta controvérsia”.
Nós o entendemos. Então, ao ficar a sós com meu amigo,
expressei a minha surpresa quanto à total corrupção da morali-
dade que essa doutrina tendia a produzir.
Ele disse: “Eu estou totalmente surpreso com a sua per-
plexidade! Você não sabe, então, que eles são muito mais delin-
qüentes na moralidade que até mesmo em outras matérias?”.
De imediato, citou alguns exemplos claros, deixando mais
ilustrações para uma outra ocasião. Na próxima vez que tiver-
mos uma entrevista, essas nos fornecerão material para uma
conversa adicional.

Eu sou, et cetera

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Carta V

A razão dos jesuítas em


estabelecer uma nova moralidade

Paris, 20 de março de 1656

Senhor,

Em cumprimento à minha promessa, incluo os primei-


ros esboços da moralidade dos jesuítas, assim como as con-
cepções desses homens tão “proeminentes no saber e na sa-
bedoria, que estão sob a orientação da sabedoria divina, os
quais são muito mais confiáveis que toda a luz da filosofia”.
Talvez você pense que estou brincando, mas, na realida-
de, falo sério, pois esta é a própria linguagem deles em sua publi-
cação intitulada Image of the First Century (Imagem do Primeiro
Século). Eu apenas transcrevi as suas palavras, o que continuo a
fazer no seguinte tributo: “Esta é uma sociedade de homens, ou
antes, de anjos, dos quais Isaías profetizou: ‘Vão, ágeis mensa-
geiros’ (Is 18.2). A profecia não é óbvia? Eles possuem o espírito
de águias... Eles mudaram a face do cristianismo”. O que dizem
a respeito de si mesmos é o suficiente, como você verá por suas
máximas que lhe apresentarei.
Ansioso como estou para obter total informação, sinto-
me relutante em depender exclusivamente da descrição de meu

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304 MENTE EM CHAMAS

amigo; portanto, decidi conversar com eles pessoalmente. Mas


considerei correto tudo o que ele me disse. De fato, ele nunca
me iludiu. Assim, vocês terão um relato dessas conversações.
Meu amigo havia feito algumas afirmações extravagantes
de que eu dificilmente acreditaria neles. Ele indicou as próprias
publicações deles como sua fonte, e nenhuma defesa seria pos-
sível, assim, a opinião de alguns indivíduos não deveria ser im-
putada a todo o corpo. Assegurei-lhe que eu conhecia alguns
que eram tão rígidos quanto os que ele mencionara como sendo
negligentes. Isto lhe deu a oportunidade de exibir a verdadeira
natureza da Sociedade que, em geral, é desconhecida e que tal-
vez para você possa ser uma importante peça informativa. Ele
iniciou, como segue:
“Você deve supor que o texto fala a favor deles, de maneira
considerável, para mostrar que alguns de seus padres concordam
com as máximas do Evangelho, assim como com outras que as
contradizem. Portanto, você poderia deduzir que essas opiniões
ambíguas não são imputáveis a toda a Sociedade. Estou bem
consciente disso, pois se este fosse o caso, eles não tolerariam
tais contradições. Uma vez que eles têm os que defendem essa
visão tão liberal, você deve concluir que o espírito que permeia a
Sociedade não é aquele do verdadeiro cristianismo. Se fosse, eles
não teriam tolerado os que são diametralmente opostos a ele.”
Perguntei-lhe: “Então, qual é o objetivo de todo o grupo?
Sem dúvida alguma eles não têm princípios fixos, de modo que
todos desfrutam da liberdade de dizer o que bem entendem”.
“Não, não é bem assim. Uma sociedade tão grande não
poderia existir se fosse imprudente a ponto de permitir-se ficar
sem uma alma a governar e ordenar os seus interesses. Além
disso, há uma ordem específica para que nada seja impresso sem
a devida aprovação de seus superiores.”
“Mas, como os superiores permitem concepções tão an-
tagônicas?”
“Eu lhe explicarei”, ele disse.

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CARTA V 305

“O objetivo deles não é corromper a moralidade e, certa-


mente, não é este seu desígnio. Mas, tampouco é seu propósito
reformá-la. Isto seria uma péssima política. Portanto, a inten-
ção deles é esta: Possuindo a melhor impressão de si mesmos,
eles imaginam que é necessário e útil aos interesses da fé que a
reputação da qual gozam deva ser estendida a todo o mundo e
que eles deveriam obter a direção espiritual da consciência de
todos. Como as específicas injunções do Evangelho são adapta-
das para governar algumas pessoas, eles farão uso delas sempre
que a ocasião lhes for favorável. Porém, como esses escritos não
correspondem às concepções da maioria da humanidade, eles
os dispensam com o intuito de assegurar a aceitação geral. Por
conseguinte, eles se relacionam com pessoas de todos os tipos
de vida, em todos os países e climas. E, assim, é necessário fazer
uso de casuísmos, cuja gama de concepções deveria abranger
todas as diversas circunstâncias existentes. Assim, logo se per-
cebe que, caso tivessem apenas casuístas de noções negligentes,
eles destruiriam seu propósito principal, que é o de agradar a
todos, porque os verdadeiros religiosos estão desejosos de uma
liderança mais rigorosa. Porém, como não há muitos com este
perfil, eles não precisam de muitos guias do tipo severo para
direcioná-los. Uns poucos irão sofrer pelos poucos líderes deste
tipo existentes, enquanto a grande maioria, formada por casu-
ístas negligentes, oferece seus serviços aos muitos que desejam
escapar à disciplina.”
“É por meio dessa amável e agradável conduta, como o
padre Petau a denomina, que eles estendem seus braços em tor-
no do mundo todo. Se alguém os abordasse com a intenção de
restaurar o que obteve de forma fraudulenta, não imagine que
eles tentariam dissuadi-lo de seu propósito. Pelo contrário, eles
aplaudiriam e confirmariam a sua determinação. Mas se alguém
mais se apresentasse a eles visando a uma absolvição sem resti-
tuição, seria de fato estranho se eles não o suprissem com expe-
dientes e garantissem seu sucesso.”

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306 MENTE EM CHAMAS

“Desta forma, eles mantêm todos os seus amigos e se pro-


tegem de todos os seus inimigos. Se fossem reprovados por essa
extrema frouxidão, de imediato eles mostrariam ao público seus
severos diretores, juntamente com os livros que escreveram so-
bre a severidade da lei cristã. Com essas evidências, eles satisfa-
rão o superficial, que não pode investigar suas entranhas.”
“Assim, eles se conformam com todos os tipos de pessoas,
permanecendo bem preparados com uma resposta pronta para
todos os questionamentos, de modo que, em países onde um
Cristo crucificado parece tolice, eles suprimirão o escândalo da
cruz e pregarão apenas a Jesus Cristo em Sua glória, omitindo os
Seus sofrimentos. Então, na Índia e na China, onde permitem
aos cristãos a prática da idolatria, eles assim agem com o enge-
nhoso dispositivo de fazê-los conceber uma imagem de Cristo
sob o manto deles, para o qual são instruídos a direcionar men-
talmente as adorações publicamente devotadas aos seus falsos
deuses... Ainda assim, os cardeais da Sociedade foram expressa-
mente obrigados a proibir os jesuítas, sob pena de excomunhão,
de permitir o culto a ídolos sob qualquer pretexto, como tam-
bém de ocultar o mistério da cruz daqueles a quem instruírem
na fé, ordenando enfaticamente que não admitissem ninguém
ao batismo antes dessa instrução, impondo que exibissem a cruz
de Cristo em suas igrejas. Isto está fartamente detalhado em um
decreto da congregação, datado de 9 de julho de 1646, e assina-
do pelo cardeal Capponi.”
“Desta forma, eles se espalharam por todo o mundo atra-
vés de sua doutrina sobre opiniões prováveis, que é a causa e a raiz
de toda essa desordem. Você deve aprender com o próprio teste-
munho deles, pois eles não fazem nenhum esforço para esconder
isso mais do que perpetram os fatos que estou afirmando. Com
exceção de que eles dizem que encobrem sua prudência humana
e política sob o pretexto da prudência cristã e divina. Como se a
fé, apoiada pela tradição, não fosse imutável em todas as épocas
e lugares. Pelo contrário, eles quebrarão a regra para acomodar a

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CARTA V 307

pessoa que foi submetida a ela, como se não houvesse formas de


perdoar aqueles com manchas de culpa a não ser pela corrupção
da própria lei de Deus. Mas, a lei do Senhor é perfeita, conver-
tendo a alma ao conformá-la com seus salutares caminhos!”
“Então, venha e visite esses honrados padres e perceberá,
de imediato, a razão da doutrina que propagam com respeito
à graça na frouxidão de sua moralidade. Você verá as virtudes
cristãs tão disfarçadas e tão deficientes em amor, que é a alma
e a vida delas, assim como muitos crimes atenuados e inúmeras
desordens admitidas, que não mais parecerá estranho eles sus-
tentarem que ‘todos os homens, em todo o tempo, possuem gra-
ça suficiente para os guiar’ – no sentido que dão à frase – ‘a uma
vida religiosa’. Uma vez que a moralidade deles é totalmente
pagã, a natureza é suficiente para os guiar. Quando eles afirmam
a necessidade de graça eficaz, a perspectiva traz outras virtudes
à vista. Não é o bastante curar vícios com outros vícios e ape-
nas induzir os homens a se conformarem aos deveres externos
da religião. Isso é praticar uma virtude tão nobre quanto a dos
fariseus ou dos sábios do mundo pagão. A lei e a razão são sufi-
cientes para produzir esses efeitos. Mas, libertar a alma do amor
ao mundo, para removê-la de um objeto pelo qual nutrem a
mais profunda afeição, para capacitar um homem a morrer para
si mesmo e amar a Deus de maneira absoluta e inalterável, só é
possível por um poder onipotente. É irracional fingir que pos-
suímos um comando perfeito sobre tais graças, bem como negar
que aquelas virtudes que não incluem o amor a Deus e que os
jesuítas confundem com virtudes cristãs não sejam possíveis de
cumprir por nossa própria força.”
Até aqui o meu amigo falou com grande seriedade, pois
tem sido muito afetado por essas desordens. Quanto a mim,
eu me congratulei com a habilidade da política jesuíta e fui ao
encontro de um de seus melhores casuístas, com quem deseja-
va renovar o conhecimento. Assim, sabendo como proceder,
não encontrei qualquer dificuldade em introduzir e conduzir

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308 MENTE EM CHAMAS

o assunto. Demonstrando a sua afeição por mim, recebeu-me


com muitas expressões de benevolência e, após alguma discus-
são preliminar, aproveitei a oportunidade para perguntar sobre
o jejum. Mencionei-lhe como era difícil para mim colocá-lo
em prática. Ele me exortou a resistir à minha aversão. Porém,
quando persisti em minhas queixas, tornou-se compassivo e co-
meçou a se desculpar em meu favor. Muitas das desculpas que
ofereceu não tinham a minha concordância, até que, afinal, ele
me perguntou se eu não conseguiria dormir sem ter jantado.
“Não. É por isso que sou obrigado a tomar o café da ma-
nhã ao meio-dia e jantar muito tarde da noite”, respondi.
“Estou muito feliz por você ter descoberto uma forma ino-
cente de aliviar a sua ansiedade. Continue a fazer isso, pois você
não tem obrigações quanto ao jejum. Entretanto, não dependa
da minha palavra, mas acompanhe-me até a biblioteca.”
Então, ao entrarmos, ele disse, apanhando um livro: “Aqui
está a sua prova. E que esplendida ela é! Fornecida por Escobar”.
“Quem é Escobar?”
“O quê? Como pode ser ignorante quanto ao nome de Esco-
bar, membro de nossa Sociedade, que compilou esta teologia moral
de vinte e quatro de nossos padres, que em seu prefácio compara
este livro ‘àquele, mencionado em Apocalipse, que foi selado com
sete selos’, e diz que Jesus o entregou selado às quatro criaturas vi-
ventes, Suarez, Vasquez, Molina e Valentia, na presença dos quatro
e mais vinte jesuítas, que representam os 24 anciãos? Agora, veja o
que diz: ‘Aquele que não consegue dormir sem jantar está obrigado
a jejuar? De modo algum’. Está satisfeito, agora?”
O bom padre, percebendo a minha satisfação, prosseguiu,
com entusiasmo: “Veja, aqui nesta passagem de Filiutius, um dos
24 jesuítas: ’Imagine que alguém esteja exausto. Ele é obrigado a
guardar o jejum? Certamente que não. Mas, suponha que tenha
se fatigado com o propósito de ser liberado do jejum; deve ele, en-
tão, observá-lo? Não, embora fosse seu propósito, ele ainda assim
não está obrigado’. Você teria acreditado nisso?”, me perguntou.

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CARTA V 309

“Devo estar sonhando. Será que realmente estou ouvindo


correto? Diga-me, padre, você está absoluta e conscientemente
convencido de tudo isso?”
“Não, com certeza.”
“Então, por que falar em desacordo com sua própria cons-
ciência?”
“De jeito nenhum. Eu não estava falando conforme a mi-
nha consciência, mas apenas em conformidade com as autori-
dades. E vocês os seguem com segurança simplesmente porque
eles são polemistas habilidosos.”
“O quê! Pelo fato de eles terem inserido estas linhas em
seus escritos, tenho liberdade para procurar ocasiões e pretextos
visando cometer pecados? Eu pensava que apenas as Escrituras e
a tradição da igreja constituíssem a única regra de conduta, não
os seus casuístas!”.
Surpreso, ele exclamou: “Você me lembrou o discurso
dos jansenistas! Não se encontra no poder de autoridades
como padre Bauny e Basil Pontius emitir suas opiniões pro-
váveis?”.
“Mas eu não me dou por satisfeito com probabilidades,
antes estou ansioso para conhecer a certeza.”
“Bem vejo que não conhece nada sobre a doutrina das
opiniões prováveis. Se assim fosse, o seu discurso seria muito di-
ferente. Realmente, você deve ficar sob a minha instrução. Pois
posso lhe assegurar que não desperdiçou o seu tempo comigo
hoje. Sem estar familiarizado com esta doutrina, você não pode
conhecer nada, pois ela é o alicerce, o ABC de toda a nossa
moralidade”, replicou.
Intrigado com o que ele falou, pedi-lhe que me explicasse
o que queria dizer com a expressão opinião provável.
“As nossas autoridades irão lhe fornecer a melhor das
explicações”, afirmou. “Todas elas, incluindo-se os 24 anciãos,
concordam com o seguinte princípio: ‘Uma opinião é chamada
de provável quando é alicerçada sobre razões de alguma impor-

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310 MENTE EM CHAMAS

tância. Assim, por vezes, pode ocorrer uma opinião provável


emitida apenas por um teólogo de grande respeito’. Veja o argu-
mento: ‘Pois um homem que seja particularmente devotado ao
estudo não adotaria uma opinião exceto se ele tivesse uma razão
boa e suficiente para fazê-lo’.”
“Mas, assim, pode um simples doutor dizer e desdizer, fazer
e desfazer as consciências das pessoas ao seu bel prazer e sempre
estar seguro?”
“Senhor”, disse ele, “você não deve ridicularizar ou pen-
sar contra esta doutrina. Todas as vezes que os jansenistas ten-
taram fazer isso, fracassaram redondamente. Não, não, ela é fir-
memente estabelecida.”
[Aqui, o jesuíta fez referência a outras autoridades].
“Fascinante, fascinante, meu bom padre. A sua doutri-
na é, de fato, admiravelmente conveniente! Para sempre ter
uma resposta pronta, sim ou não, como desejar; que privilé-
gio inestimável, e como pode ser tão valiosa! Agora percebo
o uso que vocês têm feito das opiniões contrárias em todos os
assuntos. Há sempre uma opinião favorável, e a outra nunca
lhes é contrária. Se não alcançarem a sua causa de um jeito,
com certeza encontrarão de outro. Assim, sempre escapam
ilesos.”
“Verdadeiro, verdadeiro. Se um Deus nos colocar em apu-
ros, o outro nos defenderá.”
“Mas, o que aconteceria se eu consultasse um de seus es-
pecialistas e adotasse a opinião dele, a qual me deixasse total-
mente livre, e então me visse às voltas com um confessor que
recusasse a minha absolvição sem que houvesse uma mudança
de atitude? Já passou por tal situação, padre?”
“Certamente, eles são obrigados a eximir as penitências
que contenham algumas opiniões prováveis sob pena de comete-
rem uma ofensa mortal. Assim, eles nunca podem estar perdi-
dos. Isto é claramente determinado por nossos superiores, entre
os quais padre Bauny, que diz: ‘Quando o penitente segue uma

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CARTA V 311

opinião provável, o confessor deve absolvê-lo, embora a sua opi-


nião seja contrária à do penitente’.”
“Mas, padre, ele não afirma que seria um pecado mortal
caso não o absolvesse.”
“Como você é rápido! Ouça como ele prossegue até che-
gar a esta conclusão específica: ‘Recusar-se a absolver um peni-
tente que age em conformidade com uma opinião provável é um
pecado mortal em sua própria natureza’. A confirmar o que diz,
ele menciona três de nossos mais destacados teólogos: Suarez,
Vasquez e Sanchez.”
“Oh, meu bom padre”, exclamei eu, “como são admiráveis
todos os regulamentos que vocês têm adotado! Nenhuma desculpa
é deixada para futura compreensão, pois nenhum confessor jamais
terá a ousadia de desobedecer. Eu não fazia a menor idéia de seu po-
der em prescrever a dor da condenação, pois imaginava que eram
capazes apenas de remover os pecados, sem nunca supor que pode-
riam introduzi-los. Agora percebo que vocês podem fazer tudo.”
“Isto não está certo”, afirmou. “Não podemos introduzir
pecados, apenas indicá-los. Mais de uma vez percebi que você
não é muito bem versado em teologia escolástica.”
“Seja como for, padre, as minhas dúvidas estão cabalmen-
te esclarecidas. Entretanto, tenho uma outra questão a fazer. O
que você faz quando os pais da igreja estão em franca oposição
a qualquer um de seus casuístas?”
“Que extraordinária ignorância! Os pais do deserto foram
uma boa autoridade para a moral de sua própria época, mas eles
viveram em um tempo muito remoto para nós, de modo que
não podem mais regular as nossas vidas. Esta tarefa pertence
aos novos casuístas. Escute o que alguns deles têm para nos di-
zer, como o padre Cellot: ‘Em questões de moralidade, os novos
casuístas são preferidos aos antigos pais, embora estes tenham
vivido mais perto dos tempos apostólicos’.”
Ao que repliquei: “Que máximas fascinantes e tão cheias
de conforto!”.

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312 MENTE EM CHAMAS

Ele replicou: “Nós deixamos os pais do deserto para aque-


les que tratam de uma divindade positiva. Porém, nós, que guia-
mos as consciências dos homens, os lemos muito pouco e não
citamos obras exceto aquelas dos novos casuístas. Se você con-
sultar Diana descobrirá que, de sua lista de 296 autores, o mais
velho data de oitenta anos atrás”.
“Não foi quando a sua Sociedade foi fundada?”
“Sim, aproximadamente.”
“Isto quer dizer que tão logo vocês fizeram sua apresentação
ao mundo, Agostinho, Crisóstomo, Ambrósio, Jerônimo e outros
foram obrigados a se recolher? Mas posso pelo menos ser informa-
do dos nomes de seus sucessores? Quem são os novos autores?”
[Então, o padre mencionou nomes, não conhecidos até
esse dia].
“Oh, meu padre”, exclamei com grande apreensão, “todas
essas pessoas são realmente cristãs?”
“O que quer dizer com cristãs? Não lhe informei que por
meio desses homens, nós, no presente momento, governamos
toda a cristandade?”
Eu me senti profundamente triste, mas não consegui
expressar esse sentimento. Assim, contendi comigo mesmo e
questionei se todos esses autores eram jesuítas.
“Não”, ele respondeu. “Mas, isso não tem importância.
Contudo, todos eles escreveram coisas excelentes. A maioria
deles, é bem verdade, valeu-se de alguns de nossos próprios es-
critores ou os copiaram, mas não temos escrúpulos quanto a
isso. Além disso, eles com freqüência fazem menção e tecem
elogios aos nossos autores.”
Então, comentei: “Agora percebo que todos são aceitá-
veis, exceto os antigos pais e, assim, vocês permanecem de
plena posse do campo. Podem assumir qualquer direção que
bem desejarem, vagueando ao seu bel prazer, mas vejo que há
três ou quatro barreiras principais que irão obstruir o seu pro-
gresso”.

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CARTA V 313

“E quais são elas?”, perguntou o surpreso padre.


“As Sagradas Escrituras, os papas e os Concílios, os quais
não podem contradizer, e todos os que concordam com o Evan-
gelho.”
“Oh, isso é tudo? Você realmente me amedronta. Você
imagina que um caso tão óbvio quanto este não tenha sido
previsto e solucionado antes? Eu realmente estou surpreso
que você pense que somos contrários às Escrituras, aos papas
e aos Concílios. Você deve receber uma clara demonstração
de que não somos. Ficaria extremamente perturbado só em
imaginar que pudesse supor que somos deficientes em nos-
sos deveres. Porém, se retornar amanhã, eu me encarregarei
de lhe fornecer uma completa informação sobre este assunto
também.”
Assim terminou a nossa reunião e aqui finalizo esta carta.
Creio que você encontrará aqui o suficiente para garantir o seu
deleite até a próxima carta.

Eu sou, et cetera.

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Carta X

O fácil expediente dos jesuítas


com respeito ao sacramento da
penitência
Suas máximas com relação à confissão,
remissão, contrição e o amor de Deus


Paris, 2 de Agosto de 1656

Senhor,

Eu ainda não cheguei à investigação das políticas da So-


ciedade, mas prossegui em direção a um de seus grandes prin-
cípios. Agora, você terá a oportunidade de ver as tolerâncias
com respeito à confissão que, certamente, constitui o melhor
expediente que os jesuítas poderiam ter tramado para agradar a
todos e não ofender ninguém. Era necessário conhecer isso an-
tes de prosseguirmos adiante, razão pela qual o padre considerou
adequado me conceder as seguintes instruções:
“Você tem visto, por meio do que já descrevi, sobre como
prosperamente nossos padres têm trabalhado para mostrar, por
intermédio da sabedoria superior que possuem, que muitas coi-
sas, agora permitidas, eram proibidas anteriormente. Porém,
como alguns pecados são indefensáveis e o único remédio para
eles é a confissão, é necessário superar esta dificuldade da ma-
neira que vou relatar. Previamente lhe mostrei como certos es-

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316 MENTE EM CHAMAS

crúpulos conscientes podem ser removidos, ou seja, que o que


era considerado como pecaminoso não o é, na realidade, mas
apenas permanece para indicarmos o caminho da expiação de
pecados reais com facilidade, tornando a confissão um ato fácil,
quando anteriormente era algo tão difícil.”
“Por favor, padre, como isso pode ser realizado?”
“Por meio daquelas esplêndidas sutilezas”, ele disse, “que
são peculiares em nossa sociedade. É por intermédio delas que
crimes que são agora expiados com lágrimas podem ser expiados
com mais alegria e zelo do que quando foram cometidos. Muitas
pessoas podem remover seu sentimento de culpa tão logo isso é
perpetrado.”
“Então, padre, me ensine algumas formas úteis de realizar
isso.”
“Bem, senhor, há um considerável número delas. Há mui-
tas coisas dolorosas, presentes na confissão, que temos ameniza-
do. As principais dificuldades consistem na vergonha de confes-
sar certos pecados, os detalhes relativos a certas circunstâncias
que devem ser explicados e a maneira pela qual a penitência
deve ser executada. Mas agora eu tentarei lhe mostrar que não
há nada tão difícil em tudo isso, em virtude do extremo cuidado
que tem sido observado para remover todo o gosto amargo de
um remédio tão essencial.”
“Comecemos com a dor que a confissão de alguns tipos
de pecados produz. Sempre é importante, como sabe, preservar
a estima de seu confessor. Assim, nossos padres, entre eles Es-
cobar e Suarez, sugeriram que são necessários dois confessores,
‘um para pecados mortais e outro para pecados veniais, a fim
de manter uma boa reputação junto ao seu confessor normal,
assegurando, claro, que você não permaneça em um estado de
pecado mortal’.”
“Outro dispositivo engenhoso é este: Após confessar-se
com seu confessor normal, sem permitir que ele perceba que o
pecado já foi previamente cometido desde a sua última confis-

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CARTA X 317

são, faça uma confissão geral e inclua o seu mais recente pecado
junto aos outros. Pois o confessor, exceto em alguns casos que
raramente ocorrem, não tem o direito de inquirir se o pecado do
qual o indivíduo se culpa é habitual, tampouco pode forçá-lo a
confessar pecados, evitando a vergonha de expor suas recaídas
e quedas freqüentes.”
“Como algo assim é possível, padre? É como dizer que
um médico não tem o direito de perguntar ao seu paciente por
quanto tempo ele está sentindo febre. Os pecados não diferem
entre si de acordo com as circunstâncias? Então, um genuíno
penitente não deveria revelar ao seu confessor a condição real
de sua consciência, com a mesma sinceridade e transparência
como se estivesse falando a Jesus Cristo, cujo lugar é assumido
pelo padre? Tal pessoa não está longe de possuir uma disposição
verdadeira ao esconder suas recaídas freqüentes com o intuito
de disfarçar a seriedade de suas transgressões?”
Eu pude perceber que o bom padre ficou embaraçado. Ele
tentou evitar a pergunta ao me apressar para considerar outra
de suas regras que apenas mostrava uma nova desordem sem ao
menos lidar com a anterior.
Enfim, disse: “Admito que o hábito aumenta a seriedade
do pecado, mas isso não muda a natureza dele. Por esta causa,
o penitente não é obrigado a confessar de acordo com a lei es-
tabelecida pelos antigos Pais e mencionada por Escobar: ‘Nin-
guém está obrigado a confessar mais do que as circunstâncias
que alteraram a natureza de seu pecado, não aqueles detalhes
que conferem a ele mais ódio’.” [Aqui, ele citou mais].
“Muito conveniente. De fato, são dispositivos de devoção
adaptáveis”, comentei.
“Sim, mas tudo isso nada significaria se não tentássemos
mitigar a severidade da penitência que é oposta à confissão. Mas
agora o mais sensível não tem o que temer, uma vez que te-
mos insistido em nossas teses no College de Clermont que: ‘se
o confessor impõe uma penitência conveniente e apropriada,

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mas, ainda assim, o penitente não a aceitar, ele pode retirar e


renunciar tanto a absolvição quanto a penitência imposta’.”
“Bem, então”, comentei, “a confissão não deveria ser cha-
mada de sacramento da penitência.”
“Você está equivocado”, me disse. “Pois é necessário orde-
nar alguém, pelo menos, para o bem da forma.”
“Mas, padre, você acha que um homem merece absolvição
quando ele faz objeções ao serviço menos doloroso para expiar
as suas ofensas? Quando as pessoas possuem tal estado de men-
te, vocês não deveriam reter ao invés de remir os pecados delas?
Você tem uma visão verdadeira da natureza de seu ministério?
Tem consciência de que possui o poder de ligar e desligar? Acha
mesmo que é lícito conceder absolvição, indiferentemente aos
que pedem por isso, sem conhecer, de antemão, se Jesus Cristo
libera no Céu aqueles que vocês liberam sobre a terra?”
“Excelente discurso, de fato! Mas, você acha que somos
ignorantes que ‘o confessor deve fazer ele mesmo o julgamento
da disposição de seu penitente, porque ele tem por obrigação
não dispensar os sacramentos aos que são indignos deles, já que
Jesus Cristo ordenou-lhe ser fiel em sua tarefa, e não dar o pão
das crianças aos cães. Pois, ele deve ser um juiz e o dever de todo
o juiz é julgar com justiça, ou deveria ele absolver os que Jesus
Cristo condena?’”
“Por favor, padre, de quem são estas palavras?”
“Eu mencionei Filiutius.”
“Você me surpreende. Eu pensei que fossem as palavras de
um dos pais da igreja. Mas esta passagem deveria impressionar
os confessores de modo profundo, tornando-os deveras cautelo-
sos ao dispensar os sacramentos, buscando descobrir se a tristeza
de penitência daquele que confessa é genuína e se as suas pro-
messas de evitar futuras transgressões são realmente sinceras.”
“Não há qualquer dificuldade quanto a isso”, afirmou o
padre. “Filiutius tomou o devido cuidado para evitar qualquer
embaraço aos confessores. Assim, seguindo as palavras que men-

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CARTA X 319

cionei, ele sugere este simples dispositivo: ‘O confessor deve


assegurar-se da disposição de seu penitente. Se não descobrir
evidências suficientes de seu sofrimento, o confessor tem ape-
nas que perguntar ao penitente se ele não detesta o pecado em
seu coração. Se ele disser que sim, então o confessor é obrigado
a crer no penitente. O mesmo é verdadeiro sobre a sua futura
decisão’.”
[A seguir, o padre prosseguiu, indicando que o confessor
pode, de fato, perceber que o penitente não está arrependido].
Compreendi perfeitamente o que ele queria dizer, pois
havia me dito antes que o confessor deveria se dar por satis-
feito apenas com um arrependimento verbal. A esta altura eu
estava tão revoltado com tudo o que ouvi a ponto de pensar em
interromper a nossa conversa, mas consegui disfarçar meus sen-
timentos a fim de ir até o fim. Assim, me restringi a perguntar:
“Que acordo existe entre esta doutrina e a encontrada no Evan-
gelho, que nos exorta a arrancar nossos olhos e não satisfazer
necessidades quando são prejudiciais à nossa salvação? Como
pode imaginar que um homem que tolera tais situações de pe-
cado, genuinamente os detesta? Pelo contrário, não é óbvio que
tal homem não está consciente, como deveria, da sua atrocida-
de, e que está longe daquela verdadeira conversão de coração
que o faria amar a Deus tanto quanto amou, anteriormente, as
coisas terrenas?”
“Você argumenta de maneira surpreendente”, comentou.
“Isto seria contrição verdadeira. Parece que você não sabe que
todos os Pais ensinam, de maneira unânime, que é um erro,
quase uma heresia, apresentar a contrição como essencial e sus-
tentar que o remorso superficial pelo pecado, surgido apenas do
medo do inferno e que impede a pessoa de pecar abertamente,
não é suficiente com o sacramento.”
“Creio que esta doutrina seja peculiar aos seus Pais, pois
outros que crêem que uma mera contrição é suficiente para o
sacramento defendem que, pelo menos, isto seja envolvido com

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320 MENTE EM CHAMAS

algum amor a Deus. Quando você afirma que o arrependimento


produzido apenas pelo medo da punição, em conjunto com o
sacramento, é suficiente para a justificação de pecadores, não
significa que uma pessoa pode expiar seus próprios pecados e ser
salva sem jamais ter amado a Deus em todo o curso de sua vida?
Os seus Pais ousarão defender este princípio?”
“Por sua pergunta percebo que você deseja conhecer a
doutrina de nossos Pais com respeito ao amor de Deus. Este é o
último e mais importante ponto na moralidade deles, que você
deve ter visto pelas menções que fiz sobre a contrição. Mas, por
favor, não me interrompa enquanto forneço outros de natureza
mais precisa sobre o amor de Deus, pois as suas conseqüências
são significativas” [Aqui, ele mencionou algumas de suas auto-
ridades].
Deixei que ele continuasse com este absurdo, que era uma
surpreendente manifestação de arrogância com a qual a mente
humana pode tratar o amor de Deus. [Os absurdos prosseguiram
até que ele concluiu com o que segue].
“Portanto, os nossos Pais têm desonerado a humanidade
da dolorosa obrigação de realmente amar a Deus de todo o co-
ração. Esta doutrina é tão proveitosa que eles nos liberaram da
incômoda obrigatoriedade de amar a Deus, que é o privilégio
dos evangelistas como evidenciado na lei judaica. Certa autori-
dade diz: ‘É razoável que pela lei da graça no Novo Testamento
Deus removesse o incômodo e difícil dever, arraigado à rigorosa
lei, de exercitar uma atitude de completa contrição a fim de ser
justificado, e instituísse sacramentos para compensar os nossos
defeitos e facilitar a obediência. Caso contrário, os cristãos, que
são os filhos, não poderiam receber as boas graças do Pai mais
facilmente que os judeus, que eram escravos e, ainda assim, ob-
tiveram a misericórdia de seu Deus’.”
“Ora, padre”, eu exclamei. “Você me faz perder a paciên-
cia. Estou horrorizado com tais afirmações.”
“Eu não sou o responsável”, ele disse.

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CARTA X 321

“Eu sei muito bem que não são as suas próprias palavras”,
repliquei, “mas você as expressa sem qualquer sinal de desa-
provação. Na verdade, demonstra grande apreço por elas, ao
pronunciá-las. Você não tem consciência de que a sua apro-
vação o torna cúmplice dos crimes por eles praticados? Ignora
que o apóstolo Paulo julga digno de morte não apenas os que
originam a perversidade, mas também os que a consentem? Po-
rém, vocês têm ido muito longe, e a liberdade que adotam para
corromper as mais sagradas regras da conduta cristã abrange até
mesmo a total subversão das leis de Deus. Vocês violam os gran-
des mandamentos que contêm tanto a lei quanto os profetas,
apunhalando a piedade em seu próprio coração. Removem e
extinguem o espírito que gera a vida. Vocês afirmam que o amor
a Deus não é necessário para a salvação. Chegam até mesmo a
afirmar que ‘esta isenção de amar a Deus é um grande benefício
que Cristo trouxe ao mundo’. Tudo isso é o ápice e o cúmulo da
impiedade.”
“O quê! O preço do sangue de Cristo concede a isenção de
amá-Lo! Antes da encarnação, o homem era obrigado a amar a
Deus, mas desde que Ele amou o mundo de tal maneira que deu
o Seu único Filho, deve o mundo redimido ser desobrigado do
dever de amá-Lo? Que teologia estranha temos em nossos dias!
Vocês ousam remover o anátema que o apóstolo Paulo expressa
contra os que não amam ao Senhor Jesus Cristo. Destroem o
que foi dito pelo apóstolo João, que o que ama não permanece
na morte! Retiraram até mesmo a declaração do próprio Cristo:
‘Se me amais, guardais os meus mandamentos’. Desta forma,
vocês tornam os que jamais amaram a Deus em toda a vida dig-
nos de desfrutar de Sua presença para sempre! Certamente, este
é o mistério da iniqüidade, trazido agora ao seu mais completo
grau.
“Meu bom padre, pelo menos abra os seus olhos. Se você
ainda não estiver totalmente influenciado pelas outras doutrinas
absurdas de seus casuístas, permita que estes últimos exemplos

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322 MENTE EM CHAMAS

enfraqueçam a sua confiança pela clara extravagância delas. Eu


lhe desejo isso do mais profundo de meu coração e com todo o
amor fraternal oro a Deus para que Ele seja condescendente e
lhe mostre quão falso e perigoso é este ensino. E que ele possa
inundar com Seu amor os corações daqueles que ousam isentar
outros dessa obrigação.”
Após mais discursos nesta linha, eu me despedi do jesuíta.
É pouco provável que eu o visite novamente. Não é necessário,
entretanto, que isto lhe cause qualquer pesar, pois se fosse preci-
so explicar mais de suas máximas, eu li o suficiente de suas obras
para lhes contar quase tudo de sua moralidade e, talvez, mais de
sua política do que ele já contou.

Eu sou, et cetera.

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Oração

Blaise Pascal pede a Deus que


use a enfermidade em sua vida
de maneira apropriada

1. Ó, Senhor, cujo espírito é tão benevolente e gracioso


em todas as coisas, e que é tão misericordioso que não apenas
as prosperidades, mas até mesmo as adversidades que aconte-
cem na vida de Seus eleitos são resultantes da Tua misericórdia.
Concede-me graça para não agir como os incrédulos no estado
em que Tu me trazes por meio de Tua justiça. Pelo contrário,
como um verdadeiro cristão, ajuda-me a reconhecer-Te como
meu Pai e meu Deus em todas as circunstâncias. Tu podes me
mover, pois nenhuma alteração em minhas circunstâncias pode
alterar a Tua vontade para a minha vida. Tu nunca mudaste,
embora eu seja submetido a mudanças. Tu não és menos Deus
quando estás me afligindo e punindo do que quando estás me
consolando e mostrando compaixão por mim.

2. Concedeste-me saúde para usar em Teu serviço, mas eu


a usei mal, de um modo secular. Agora, me enviaste uma enfer-
midade para minha correção. Senhor, não permitas que eu faça
uso dela para Te provocar com a minha impaciência. Eu abusei
de minha saúde e, de modo correto, lidaste comigo. Impede-me
agora de abusar também da enfermidade. E, como a corrupção
de minha natureza deturpa os Teus favores para comigo, per-

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324 MENTE EM CHAMAS

mite, Ó meu Deus, que a Tua graça eficaz possa conferir à Tua
disciplina um caráter benéfico. Se o meu coração flertou com o
mundo quando gozava de plena saúde, destrói o meu vigor de
modo a promover a minha salvação. Quer seja pela debilida-
de do corpo quer pelo zelo de Teu amor, torna-me incapaz de
desfrutar dos ídolos deste mundo, para que o meu deleite possa
estar somente em Ti.

3. Deus, a quem devo prestar um relato exato de todas


as minhas ações ao cabo de minha vida e ao fim deste mundo,
ajuda-me a estar preparado, desde já, para esse fim. Ó Deus, que
permite que todos os eventos no mundo ocorram para o jul-
gamento de Seus eleitos e para a punição dos ímpios, preserva
essas realidades em minha alma... Auxilia-me a prevenir o dia
terrível do julgamento pela destruição, hoje, de tudo que possa
desviar meus pensamentos das coisas do porvir. Se fizeste isso
ao me conceder esta enfermidade, de modo a evitar que me de-
leitasse com os caminhos do mundo, eu posso apenas expressar
a minha gratidão por agires assim. Tu destróis os ídolos que me
afastam de Ti, por isso só posso agradecer-Te... Pois um dia serei
despojado de todas as coisas, quando estiver diante de Teu jul-
gamento, diante da Tua presença, para responder à Tua justiça
por todas as atitudes de meu coração... Permite, então, que eu
possa antever a minha morte e que possa encontrar misericór-
dia futura aos Teus olhos.

4. Permite-me, Senhor, poder adorar em silêncio toda a


ordem de Tua maravilhosa providência na disposição de minha
vida. Possa o Teu cajado me confortar, possa eu agora provar da
celestial doçura de Tua graça por meio destas aflições que per-
mitiste virem sobre mim. Porém, confesso, Ó meu Deus, que o
meu coração é deveras endurecido, repleto de idéias mundanas,
de cuidados, de ansiedades e desejos que nem a saúde ou a do-
ença, nem conversas, nem livros, nem mesmo as Santas Escritu-

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ORAÇÃO 325

ras, nem o Evangelho e tampouco os Teus mais santos mistérios


podem fazer alguma coisa para efetuar a minha conversão. Por
certo, nem filantropia, jejuns, milagres, os sacramentos, nem
todos os meus esforços, ou mesmo tudo o que o mundo possa
reunir, pode realizar isso. Somente a grandeza da Tua graça é
que tem o poder de fazer isso.
Assim, elevo os meus olhos a Ti, Ó meu Deus, que és
Todo-Poderoso, para que me concedas este presente que nem
todas as criaturas do mundo reunidas poderiam dar. Não ousaria
direcionar o meu clamor a Ti, se não fosse apenas Tu o único
capaz de ouvi-las. Ó Deus meu, a conversão de meu coração,
que Te peço, é uma obra que excede todos os poderes da natu-
reza. Portanto, só posso direcionar este meu pedido a Ti, Autor
Todo-Poderoso e Mestre da Natureza. Pois tudo o que não seja
Deus é incapaz de atender os meus desejos. Somente anelo por
Ti, que eu possa alcançar-Te. Ó Senhor, abre o meu coração,
penetra neste lugar de rebelião que os meus pecados têm sob
domínio. Entra como o homem forte da casa, mas primeiro sub-
juga o poderoso e tirano inimigo que a tem sujeitado. Toma pos-
se dos tesouros que lá se encontram, Senhor. Apropria-Te das
afeições que o mundo tem roubado de mim; remove o mundo
deste tesouro, continua a possuí-lo, pois meu coração pertence
somente a Ti. Este é um tributo que rendo a Ti, pois todas as
coisas Te pertencem e Tua própria imagem está estampada nele.
Tu a colocaste em meu coração no momento de meu batismo,
que foi o meu segundo nascimento. Mas, agora, esta estampa
está totalmente desfigurada. A imagem do mundo encontra-se
tão profundamente gravada sobre ela que a Tua própria imagem
não é mais discernível. Ainda assim, Tu mesmo criaste a minha
alma e somente Tu podes criá-la mais uma vez. Apenas Tu a
criaste com a Tua imagem, assim, tão-somente Tu podes repro-
duzi-la, reimprimindo-a sobre a imagem desfigurada. Jesus Cris-
to, meu Salvador, a expressa imagem e caráter de Tua essência,
é a imagem e semelhança que anelo.

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326 MENTE EM CHAMAS

5. Ó meu Deus, bem-aventurado é o coração que pode


amar tão maravilhoso objeto, onde o afeto é sobremodo glorio-
so e a conexão tão benéfica! Sinto que não posso amar o mundo
sem desagradar-Te ou sem ferir e desonrar a mim mesmo. Não
obstante, o mundo ainda é o objeto de meu deleite. Ó meu
Deus, bem-aventuradas são as almas cujo prazer esteja somente
em Ti, pois elas se entregam a si mesmas para amar-Te. Elas o
fazem sem escrúpulos de consciência, então, quão firme e du-
radoura é a sua felicidade! A expectativa delas jamais pode ser
frustrada, pois como Tu nunca falhaste, nem vida nem morte
podem separá-las do objeto de sua devoção. No mesmo instan-
te em que serão envolvidos os ímpios com seus ídolos na ruína
comum, os justos se unirão a Ti em glória comum... Portanto,
quão felizes são os que, com total liberdade e invencível incli-
nação da vontade, amam com perfeição e liberalidade o que
necessariamente estão obrigados a amar.

6. Perfeitos são os bons desejos que me tens concedido.


Sê o fim deles, assim como tens sido o princípio. Coroa Teus
próprios dons, pois reconheço que são Teus. Ao invés de ima-
ginar que seja por meio de minhas orações que eu os tenho,
que eu possa reconhecer que é apenas por meio de Tua graça.
Pois nada possuo em mim que possa obrigar-Te a me conceder o
que peço. Na verdade, todos os momentos de meu coração são
direcionados única e exclusivamente a coisas criadas ou a mim
mesmo, e eles provocam a Ti. Assim, sou-Te grato, Ó meu Deus,
pelos bons desejos que Tu tens inspirado em mim. Ajuda-me a
agradecer-Te por eles.

7. Toca o meu coração com arrependimento por minhas


falhas, porque, sem essa dor interior, os infortúnios exteriores
com as quais Tu tens afligido o meu corpo propiciarão uma nova
ocasião para pecar... Portanto, permite que a minha enfermida-
de seja o próprio remédio, fazendo-me considerar a partir das

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ORAÇÃO 327

dores pelas quais sou moralmente insensível, pois minha alma


está enferma e indiferente. Ó Senhor, o maior de meus males é,
de fato, esta insensibilidade ao pecado e toda a sua perversidade.
Torna-me capaz de senti-los de forma profunda e inequívoca, e
assegura que o resto de minha vida seja de contínua penitência,
a fim de lavar os pecados que tenho cometido.

8. Ó Senhor, embora a minha vida pregressa tenha sido


mantida distante de crimes hediondos, ainda assim tenho feito
coisas totalmente abomináveis aos Teus olhos, pois tenho sido,
de forma constante, negligente quanto à Tua Palavra, em de-
sobediência à sua divina inspiração. Não tenho feito bom uso
dos sagrados sacramentos, de tal sorte que a paralisia de minha
vida tem sido prejudicial em ações, pensamentos e um com-
pleto desperdício de todo o tempo que tens me concedido para
Te cultuar. Ao invés de servir em Tua obra, tenho trabalhado
apenas em meu próprio interesse, não servindo ao Teu prazer.
Eu não tenho me arrependido por minhas transgressões diárias,
de modo que a minha vida não tem sido de contrição diária
como deveria ser. Tenho falhado na prática de uma vida reta
diante de Ti.

9. Portanto, Ó Deus, tenho sempre sido um rebelde con-


tra Ti. Sim, Senhor, meus ouvidos jamais se abriram para as
Tuas inspirações. Tenho desprezado os Teus oráculos, julgado de
modo contrário aos Teus juízos, tenho contradito aquelas santas
verdades, trazidas por Ti ao mundo, vindas do seio de Teu Eter-
no Pai, de acordo com as quais julgarás o mundo... Sim, Senhor,
confesso que considerei a saúde como um bem, não por ser um
meio de servir a Ti, mas porque com ela eu poderia praticar
menos controle e autodisciplina para desfrutar as coisas desta
vida e para melhor apreciar seus prazeres fatais. Concede-me
graça para corrigir a minha razão e conformar meus sentimentos
aos Teus caminhos. Assim, que eu possa estar feliz na aflição,

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328 MENTE EM CHAMAS

de modo que, enquanto estiver incapacitado de ações externas,


Tu possas purificar os meus pensamentos para que eles não con-
tradigam mais os Teus próprios. Que eu possa descobrir-Te em
mim, embora a minha enfermidade física me incapacite de bus-
car-Te. Pois, Ó Senhor, o Teu reino encontra-se nos corações
dos fiéis. Possa eu encontrá-lo em mim mesmo, ao descobrir lá
o Teu Espírito e a Tua sabedoria.

10. Mas, o que devo fazer, Ó Senhor, para mover-Te a der-


ramar Teu espírito sobre este vaso miserável? Pois sou odioso aos
Teus olhos e nada posso encontrar em mim que seja aceitável
diante de Ti. Nada sou, Ó Senhor, a não ser por meus sofrimen-
tos, que guardam alguma semelhança com os Teus. Olha, por-
tanto, para o mal que me ameaça e contra o qual luto. Porém,
olha com os olhos da misericórdia para as feridas que a Tua mão
me impôs. Ó Deus, que se tornou carne após a queda do homem
e o fez em um corpo, a fim de sofrer todas as punições pelos nos-
sos pecados. Tu, Ó Senhor, que sofreste por nós naquele corpo,
aceita o meu corpo. Não para seu próprio bem, nem por tudo o
que ele contém, pois todas as coisas são merecedoras da Tua ira,
mas por consideração aos sofrimentos que ele enfrenta, os quais
só podem ser dignos de Teu amor. Possam os meus sofrimentos
Te convidarem a visitar-me.
Para completar a preparação para estar contigo, assegura,
Ó meu Salvador, que se este meu corpo possui isto em comum
com o Teu, que ele sofra por minhas ofensas, e que a minha
alma possa, em similaridade à Tua alma, ser infeliz por tais ofen-
sas. Portanto, que eu possa sofrer contigo e como Tu, tanto em
meu corpo como em minha alma, pelas transgressões que tenho
cometido.

11. Concede-me, Ó Senhor, graça para unir as Tuas con-


solações aos meus sofrimentos e que eu possa sofrer como um
cristão. Oro não para ser eximido da dor, pois esta é a recom-

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ORAÇÃO 329

pensa dos santos, mas para que não seja abandonado às dores da
natureza sem o conforto de Teu Espírito. Pois esta é a cura para
os que conhecem a Ti somente. Oro não para desfrutar a pleni-
tude do conforto sem o sofrimento, pois esta é a vida de glória.
Muito menos oro pela plenitude do sofrimento sem o conforto,
pois esta é a condição dos judeus. Porém, eu oro, Ó Senhor,
para que eu sinta, ao mesmo tempo, tanto as dores da natureza
pelos meus pecados, quanto as consolações do Teu Espírito, por
intermédio de Tua graça; pois esta é a verdadeira condição do
cristão. Que eu jamais sinta a dor sem o conforto! Mas que eu
possa sentir a dor e a consolação em conjunto e, mais tarde,
possa lograr sentir apenas o Teu conforto sem qualquer dor! Pois
deixaste o mundo definhar em sofrimentos naturais sem con-
solação até a vinda de Teu único Filho. Mas, agora, consolas e
amenizas os sofrimentos de Teus fiéis servos pela graça de Jesus
Cristo, e enches os Teus santos com a alegria pura na glória de
Teu Filho. Estes são maravilhosos passos pelos quais Tu tens
feito a Tua obra. Tu me levantaste do primeiro. Ó leva-me ao
segundo, de modo que possa eu alcançar o terceiro! Ó Senhor,
imploro por esta misericórdia de todo o meu coração.

12. Que eu não sofra, Ó Senhor, a ponto de distanciar-


me de Ti de modo a não refletir a Tua alma, mas tristeza, mes-
mo até a morte, e Teu corpo superar a morte por minha causa,
sem júbilo para sofrer contigo em meu próprio corpo e minha
alma. Pois o que poderia ser mais vergonhoso para cristãos
que satisfazer a carne, enquanto nosso Senhor é deixado para
sofrer em nosso lugar? Por meio do batismo nós renunciamos
ao mundo, nos tornamos Teus discípulos e nos compromete-
mos a viver e morrer por Ti... Buscar prazeres à luz destas e de
outras verdades é um ato criminoso, de fato. Assim, foi muito
justo, Ó Senhor, interromperes alegria tão errada quanto este
tipo de vida. Tal pensamento me conforta, mesmo vivendo à
sombra da morte.

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330 MENTE EM CHAMAS

13. Desse modo, Ó Senhor, tira de mim aquela autopiedade


que o amor próprio tão prontamente produz e a frustração de não
ser bem-sucedido no mundo como eu naturalmente desejaria,
pois esse sucesso não tem consideração por Tua glória. Pelo con-
trário, cria em mim uma tristeza que seja semelhante à Tua, e que
as minhas dores expressem a condição feliz de minha conversão
e salvação. Que não mais deseje saúde ou vida, mas que anseie
consumi-la e concluí-la por Ti, em Tua companhia e em Ti. Não
oro por saúde ou doença, vida ou morte, mas oro para que a Tua
vontade use a minha saúde, enfermidade, vida e morte para Tua
glória, para a minha salvação, para o benefício de Tua igreja e
dos santos, entre os quais espero estar incluído. Somente tu sabes
o que é conveniente para mim. Tu és o Soberano Senhor. Faze
o que bem Te aprouver. Quer me concedas ou retires de mim,
amolda a minha vontade à Tua, e permite que, com uma sub-
missão humilde e perfeita, em santa confiança, eu possa me doar
por inteiro a Ti. Possa eu receber o Teu providente e duradouro
cuidado e igualmente adorar o que proceder de Ti.

14. Com perfeita perseverança de mente, ajuda-me a


aceitar todos os tipos de eventos, pois não sabemos o que pedir,
e não podemos pedir um evento em detrimento de outro sem
que haja presunção. Não podemos desejar uma ação específi-
ca sem presumir ser um juiz, assumindo a responsabilidade por
algo que em Tua sabedoria possas esconder de mim. Ó Senhor,
eu apenas sei uma coisa, qual seja, que é bom seguir-Te e ruim
ofender-Te. Além disso, não sei o que é bom para mim, se saú-
de ou enfermidade, riqueza ou pobreza, ou qualquer coisa neste
mundo terreno. Este conhecimento ultrapassa a sabedoria tanto
de homens quanto de anjos. Ele jaz escondido no secreto de Tua
providência, que adoro e não ousarei antecipar.

15. Permite-me, Ó Senhor, que, sendo o que sou, eu pos-


sa conformar-me à Tua vontade. Mesmo estando tão enfermo

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ORAÇÃO 331

como me encontro agora, que eu possa glorificar-Te em meus


sofrimentos. Sem eles eu não posso alcançar a Tua glória. Pois
Tu, Ó meu Senhor e Salvador, igualmente, não Te satisfizeste
em alcançá-la, exceto por meio de sofrimentos. Foi pelas marcas
de Teus sofrimentos que foste reconhecido por Teus discípulos e
é por meio dos sofrimentos que eles afirmam que ainda Te fazes
conhecido aos Teus discípulos. Possui-me como teu discípulo
nas aflições que ainda devo suportar em meu corpo e em mi-
nha mente pelos pecados que tenho cometido. E, como nada é
aceitável a Deus a não ser que seja apresentado por Ti, unifica a
minha vontade à Tua, assim como os meus sofrimentos aos que
suportaste. Une-me a Ti, preenche-me com Tua presença e com
Teu Santo Espírito. Entra em meu coração e minha alma. Lá,
alivia as minhas aflições e preserva em mim o que permanece
de Tua paixão. Pois executaste em Teus membros até a perfeita
consumação de Teu corpo místico, de modo que, sendo preen-
chido por Ti, não seja mais eu que viva ou sofra, mas Tu, Ó meu
Salvador, que vivas e sofras em mim. Sendo, portanto, feito um
pequeno co-participante de Teus sofrimentos, que Tu possas
preencher-me completamente com aquela glória que adquiriste
por meio deles e na qual Tu vives, com o Pai e o Espírito Santo,
para todo o sempre, AMÉM.

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Apêndice

Um guia para a leitura devocional

Amas tu a Deus, como ele ama a ti?! Então digere,


Minh´alma, toda esta meditação,
Como Deus, o Espírito aguardado por anjos
No Céu, faz Seu templo em teu coração.
John Donne, Soneto Santo 15

S e alguém hoje lhe perguntasse se você é um “devocio-


nalista”, você seria perdoado por não saber o que isso
significa. Se alguém conversasse sobre ser devocionalmente-orien-
tado, você poderia erguer uma de suas sobrancelhas em sinal de
surpresa.
O século que passou é possivelmente o primeiro no qual
a ação foi mais enfatizada e valorizada que a contemplação.
Hoje nós fazemos coisas. Achamos que a contemplação é perda
de tempo, não produz coisa alguma e atrapalha de modo esta-
banado nossas agendas. A leitura devocional é uma prioridade
questionável para a maioria das pessoas bem-sucedidas na atua-
lidade.
Mas somos cristãos “de sucesso” se estamos tão ocupados or-
ganizando e promovendo a fé cristã a ponto de não conhecermos
de fato a Deus pessoal ou intimamente? A leitura devocional cristã
nos ajuda a encontrar união íntima com Deus. Qual é a sua mo-
tivação? Que amemos a Deus com todo o nosso coração, mente e
vontade.

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334 MENTE EM CHAMAS

Leitura devocional – um grande despertamento

O escritor de Eclesiastes se deu conta de que Deus colocou


a eternidade dentro de nossos corações.1 Agostinho observou que
Deus fez o homem para Si mesmo, e que nossos corações não en-
contram descanso até que descansem Nele. Esse anseio eterno for-
ma a base da devoção.
Somos criados com anseios infinitos. Podemos tentar ocul-
tá-los e escondê-los atrás de valores menores tais como a apre-
ciação pelo belo ou o desejo pela verdade e pela autenticidade.
Por outro lado, podemos nos desculpar pelos ideais adolescentes,
pelo otimismo incurável ou pelo romantismo indulgente conec-
tado aos nossos anseios. Mas uma vez tendo sido despertados para
o Céu como uma possibilidade, nada mais trará satisfação senão
conhecer mais sobre ele. Somos então como peregrinos que final-
mente descobriram onde está localizado o Santo Graal. Ou talvez
sejamos como crianças na escola. O mistério da matemática está
diante de nós ao tentarmos entender os rudimentos da álgebra e da
geometria, e temos de crer no entusiasmo do professor com o fato
de que elas possuem uma beleza intrínseca.
Mais adiante descobrimos que os desejos de Deus não são
diferentes de nossos próprios desejos mais verdadeiros e íntimos.
No entanto, a conexão entre eles às vezes parece terrivelmente
comprometida pelo egoísmo e pela vontade própria. Refletimos e
começamos a observar que a forma mais profunda de saudade – a
de ser amado, ou ser compreendido, ou de estar religado ao Infinito
para além de todo o universo – não é “ilusão neurótica”, de acordo
com C. S. Lewis. Ao contrário, ela é “o indicador mais verdadeiro
de nossa real situação”.2
Em Cristo nós também descobrimos que não é a pessoalida-
de de Deus que é vaga e intangível. São as nossas próprias persona-
lidades que são incoerentes, fragmentadas e inadequadas. Assim,
a realidade da oração em nome de Jesus é a busca por uma perso-
nalidade mais plena e rica, a personalidade que a maioria de nós
profundamente anseia ter.
À luz disso, vemos a leitura devocional não apenas como
uma opção piedosa de leitura comparada a um bom romance po-
licial ou mesmo a uma obra séria. Ela se relaciona à natureza de

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APÊNDICE 335

um despertamento, como o que o filho pródigo teve enquanto ali-


mentava porcos. Nossa existência animal não é boa o suficiente
quando descobrimos interiormente que temos um Pai que é rei e
que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus.
Os hábitos de leitura do chiqueiro não podem satisfazer a
um filho e aos porcos ao mesmo tempo. Os hábitos de leitura dos
“servos”, conduzidos pela mesmice dos livros do tipo “conselhos
práticos”, que definem a vida pela ação e que compram a aceitação
por meio da autoconquista, tampouco trarão satisfação. Pois um
filho amado, embora pródigo, responde à sua aceitação em Cristo.
É tudo o que podemos “fazer”. E isso tem mais a ver com amantes
de mãos dadas do que com homens de negócio tomando decisões
na sala de reunião.
Nós de fato percebemos que a vida consiste em um número
de despertamentos progressivos. Quando estudamos com serieda-
de pela primeira vez, ficamos entusiasmados com o despertamento
de nossa mente para a atividade de analisar e de compreender o
nosso mundo. Nós despertamos de novo na experiência de assumir
a responsabilidade de nossas vidas quando temos de decidir sobre
atitudes e opções de importância. Despertamos também quando
agimos em meio ao sofrimento. A dor é um grande despertador
para as realidades que outrora estavam adormecidas em nossas vi-
das. Mas é o despertamento para o amor de Deus que transcende
todas as outras formas de consciência humana.
Hoje, vivemos o grande perigo de politizar a nossa fé, orga-
nizá-la ao extremo e transformá-la em uma ideologia fria. Precisa-
mos mais uma vez nos aquietar e ver a Deus. E então começaremos
novamente a viver mais como um filho de Deus do que como um
empreendedor diante dos homens. Emoções profundas serão revi-
vidas. Memórias começarão a ser curadas. A imaginação será redi-
recionada. E muitas e novas possibilidades se abrirão a partir dos
becos sem saída das ruas, para nos mostrar paisagens de amor e ale-
gria que nunca imaginamos poder visualizar. A esperança sucederá
o desespero. A amizade substituirá a alienação. Acordaremos de
manhã e descobriremos que estamos verdadeiramente livres para
nos apaixonar por Deus.
Podemos então começar a compreender aquilo que João Cal-
vino quis dizer quando chamou a fé de um firme reconhecimento

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da benevolência de Deus, que está selado no coração. A afirmação


de Calvino fez lembrar o coração inflamado de muitos homens na
história: Jeremias, os discípulos no caminho de Emaús, Agostinho,
Jonathan Edwards. É assim que Deus instila a percepção de que
estamos na comunhão dos santos e simplesmente compartilhan-
do aquilo que muitos outros antes de nós já experimentaram com
grande alegria. Nós também, como eles, agora percebemos que o
Céu é o nosso horizonte afinal.

A leitura devocional muda a história

Nada pode sobrepujar a prática da oração ou da leitura de-


vocional da Escritura nas devoções diárias de uma pessoa. No en-
tanto, essas práticas necessitam ambas de reforço e de orientação
a partir do exemplo de outros, do partilhar de suas experiências.
Talvez o uso devocional da Escritura esteja desaparecendo tão ra-
pidamente que somente com a ajuda de outros livros ele possa
ser redescoberto e se tornar uma prática comum hoje. Os resulta-
dos dessas leituras são, na maioria das vezes, bem abrangentes. Na
verdade, os encontros acidentais com grandes clássicos de fé têm
desencadeado toda uma série de reações inesperadas.
Foi assim com C. S. Lewis. Ele se deparou com clássicos
como os escritos de Richard Hooker, George Herbert, Thomas
Traherne, Jeremy Taylor e John Bunyan em conseqüência de seus
estudos em Literatura Inglesa.3
Como estudante, Alexander Whyte – o pregador escocês
do final do século XIX – começou a catalogar as obras de Thomas
Goodwin, do século XVII. Mas ele ficou tão envolvido por elas
que, mais tarde, em sua vida, escreveu sua obra Spiritual Life ba-
seado nos ensinos de Goodwin. Ele confessou, “eu carregava seus
livros comigo até suas capas originais começarem a se desprender,
e até que meu encadernador as colocasse em seu melhor protetor
de capas. Não li mais nenhum outro autor tanto e com tanta fre-
qüência.”4
Quando John Bunyan se casou, seu sogro lhe deu um dote
que consistia na obra de Arthur Dent, The Plaine Man´s Path-Way
to Heaven (1601), e de Lewis Bayly, The Practice of Pietie (1613).
Bunyan mais tarde reconheceu que essas duas obras “produziram

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APÊNDICE 337

dentro de mim alguns desejos pela religião.”5 A popularidade delas


foi reiterada por muitos de seus contemporâneos.
Inácio de Loyola, um jovem e frívolo cavaleiro, foi ferido no
cerco de Pamplona, em 1521. Ali ele foi forçado a passar sua con-
valescença com apenas dois livros em mãos, Life of Jesus Christ, de
Ludolph Carthusian, e Flower of the Saints, de Jacobine Varagine.
Essas obras deixaram uma impressão sobre ele que produziu uma
mudança radical em sua vida.
Amigos cristãos apresentaram deliberadamente Agostinho à
obra Vida de Antônio, de Atanásio. Ela não impactou Agostinho de
imediato, embora seus amigos continuassem a dizer-lhe como em
Trèves, na Gália, um oficial do estado “a leu, maravilhou-se com
ela e foi incendiado por ela”. Enquanto o oficial a lia, começou a
pensar em como poderia abraçar uma vida monástica no deserto
egípcio. Ele pensou em abrir mão de seu trabalho para servir “A
Ti [Deus] somente...; e o mundo passou a não mais fazer parte de
sua mente...enquanto lia, e em seu coração, que agora batia em seu
próprio ritmo, ele por fim caiu em prantos, viu o caminho melhor
e decidiu por ele.”6
Agostinho acrescenta um comentário sobre o resultado de
ter lido um exemplo como o de Antônio. Esse homem e sua com-
panhia foram levados a edificar “uma torre espiritual ao único cus-
to que é adequado, o custo de deixar tudo e seguir a Ti”.7
A influência dos autores místicos sobre Martinho Lutero foi
fartamente documentada. Ele leu em profundidade os sermões de
Johannes Tauler (1515-1516) e editou o tratado anônimo místico
que intitulou de Teologia Alemã (1516, 1518). Quando defendeu
as noventa e cinco teses, em 1518, ele confessou que havia mais
boa teologia nos sermões de Tauler, mais “teologia pura e sólida”
do que em todas as outras obras do escolasticismo. Acerca de Teo-
logia Alemã, ele declarou que “somente a Bíblia e Agostinho o
haviam ensinado mais sobre ‘Deus, Cristo, o homem, e todas as
coisas.’”8
Às vezes, os escritos dos místicos podem prolongar as lutas
no sentido de se conhecer a Deus pessoalmente. Os leitores fica-
ram então entretidos em seus exercícios e percepções espirituais
ao invés de se encontrarem com o próprio Deus. Esse foi o caso de
John Wesley. Com sua mãe, ele aprendera sobre obras devocionais,

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especialmente quando foi para Oxford pela primeira vez como es-
tudante. Ele achou os estudos ali “uma interrupção ociosa e inútil
de estudos proveitosos, horrível e intensamente superficial.”9
Mas Wesley ficou encantado com o Discurso sobre a Simpli-
cidade, do Cardeal Fenélon; a obra deu a ele a percepção de que
a simplicidade é “aquela graça que força a alma a deixar todas as
reflexões desnecessárias e voltar-se para si mesma.”10 Em férias, sua
amiga e guia espiritual, Sally, deu a ele uma cópia do livro de Jere-
my Taylor, Regra e Exercício do Santo Viver e Morrer. Ele admite que
essa obra “selou definitivamente minha prática diária de registrar
minhas ações (que eu tenho fielmente continuado até o presente
momento), e que me levou, mais tarde, a prefaciar aquele primeiro
Diário com as regras e resoluções de Taylor. Isso me ajudou a desen-
volver um estilo de introspecção que me manteria em constante
contato com a maioria de meus sentimentos.”11 É de se questionar
o quanto teriam Fenélon e Jeremy Taylor contestado as convic-
ções de um jovem confuso.
Aproximadamente naquela mesma ocasião, Sally também
encorajou Wesley a ler a obra de Thomas à Kempis, Imitação de
Cristo. Essa obra também deixou sua marca nele, de modo a fazê-
lo decidir-se por pertencer a Deus ou perecer. Essas obras, no en-
tanto, em certo sentido, somente prolongaram por treze anos a
necessidade de John Wesley de reconhecer que deveria “nascer de
novo” e aceitar Deus como seu próprio Salvador. Elas, ao mesmo
tempo, deixaram marcas indeléveis em seu caráter e ministério.
Finalmente, pensamos em C. H. Spurgeon e na profunda
influência que os autores puritanos tiveram sobre toda a sua vida
e ministério. Ele tinha uma coleção de 12.000 livros, aproximada-
mente 7.000 deles de escritores puritanos. Spurgeon leu por vezes
incontáveis Maçãs de Ouro, de Thomas Brooks. Ele também de-
dicou muito tempo à obra de Brooks, Remédios Preciosos Contra
os Artifícios de Satanás. Ele tinha enorme prazer em todas as doces
obras devocionais de Brooks.
Mas livros de Thomas Goodwin, John Owen, Richard Char-
nock, William Gurnall, Richard Baxter, John Flavell, Thomas
Watson, e, é claro, John Bunyan, também eram companheiros
de Spurgeon.12 Ele então confessa em seu Conversa sobre Comen-
tários que a obra Comentário de Matthew Henry sobre as Escrituras

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APÊNDICE 339

é sua primeira opção de companhia constante. Ele recomenda


que todos os alunos a leiam nos primeiros doze meses após terem
terminado a faculdade.13
A influência dos livros sobre os líderes cristãos e, por sua vez,
seu impacto sobre os movimentos avivalistas da igreja são claros.
Como Richard Baxter comentou em sua obra Manual Cristão, do
século XVII, “há muitos que podem ter um bom livro a qualquer
dia ou hora da semana, e que não podem ter um bom pregador”.14
Às vezes o livro e o autor são totalmente desconhecidos na
atualidade, embora suas conseqüências sejam evidentes e perma-
nentes. Quem lê hoje O Caminho Simples do Homem para o Céu?
No entanto, O Peregrino de John Bunyan foi traduzido em 198 lín-
guas. Poucos hoje conhecem Florentino de Deventer; no entanto,
seu discípulo, Thomas à Kempis, teve seu livro Imitação de Cristo
editado mais de 2.000 vezes. Francisco de Osuna e sua obra O Ter-
ceiro Alfabeto Espiritual não significam coisa alguma para muitos
cristãos na atualidade; no entanto, eles inspiraram os escritos de
Teresa de Ávila sobre oração, escritos que ainda nos influenciam
poderosamente. O livro Combate Espiritual (1589), de Nicholas
Scupoli, foi, juntamente com a Bíblia, a leitura de cabeceira de
Francisco de Sales por mais de dezesseis anos. No entanto, é a
Introdução à vida Devotada de Sales que produziu um impacto pro-
fundo na vida de muitos.
A mensagem é, portanto, clara para todos nós. Abra as ja-
nelas de sua alma através da leitura meditativa, e o potencial da
presença de Deus em sua vida poderá ser, como Paulo ora, “infini-
tamente mais do que pedimos ou pensamos.”15

Não há leitores inocentes

Não existe algo como “apenas leitura”. A leitura é também


um instrumento de nossas emoções e do nosso espírito, de nos-
sas motivações e de nossos objetivos. A arte monástica da lectio
divina, a prática de ler meditativamente e em atitude de oração,
visando à nutrição e ao crescimento espirituais é pouco conhecida
fora das tradições católicas de espiritualidade nos dias atuais. A
perda dessa assimilação devocional das Escrituras se reflete na im-
paciência que muitos têm com as leituras espirituais dos grandes

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mestres da fé cristã. Ou possivelmente revela uma pura negligên-


cia ou ignorância com relação a essas obras.
C. S. Lewis fala da “idéia estranha difundida de que em
qualquer circunstância os livros antigos deveriam ser lidos por pro-
fissionais, e que os amadores deveriam se contentar com livros mo-
dernos... um constrangimento”, ele acrescenta, “em nenhum outro
lugar mais rompante que na teologia.”16 Mas teríamos uma grande
confusão no cristianismo se sempre nos contentássemos com a su-
perfície do que é dito sobre suas origens e nunca nos motivássemos
a beber pessoalmente da fonte.
Também somos culpados quando não distinguimos leitura
fundamental de leitura acidental, ou leitura edificante de leitura
recreativa. Pois elas são todas distintas.17 Leitura acidental é aque-
la que captura a nossa atenção para as táticas da vida, de modo a
absorvermos uma enorme gama de conhecimento prático, trivial
e significativo. Tudo que se exige desse tipo de leitura é maestria
mental. Leitura fundamental, aquela que fazemos estrategicamen-
te, como parte do treinamento em uma profissão ou disciplina,
demanda docilidade e perseverança. A mudança do primeiro para
o segundo tipo de leitura é de informação para formação, de modo
que a atitude da mente também muda.
A leitura que relaxa é também tática, ainda que por vezes
possa nos apanhar desarmados. Absorvermos as trivialidades que
rotulamos de “recreacionais” pode representar desperdício de tem-
po. Pior, pode tomar e desviar nossas mentes e espíritos dos cami-
nhos da justiça e da pureza.
Uma leitura assim pode verdadeiramente testar nossos espí-
ritos e ser evidência da falta de uma imaginação cristã em nossas
vidas. A leitura estimulante depende muito das escolhas delibera-
das que fazemos. Se quisermos ser mais carnais, nos entregaremos
mais à pornografia pictórica com a qual nossa sociedade tem sido
tão inundada ultimamente. Se quisermos respirar o ar mais limpo
da autenticidade pessoal, desfrutaremos de uma boa biografia, se-
remos tocados pelas orações e diários de grandes guerreiros da fé
ou mergulharemos nas parábolas de nosso Senhor. Ter em mãos
autores favoritos, páginas inspiradoras e temas familiares para revi-
gorar um espírito abatido torna-se um recurso extremo em tempos
de depressão.

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APÊNDICE 341

Não somos leitores inocentes, mesmo quando decidimos


não ler coisa alguma! Nós nos tornamos culpados de fundir nossos
pensamentos à cultura que tão prontamente aceitamos. O apare-
lho de TV, por exemplo, nos tenta com tendências profundamente
manipulativas, uma vez que podemos, ao toque de um botão, nos
transportar para uma dúzia de diferentes ambientes artificiais. Po-
demos literalmente escolher o ambiente onde queremos viver e
do qual depender. Não seremos então tentados a manipular nossos
anseios e necessidades espirituais? Submissão à vontade de Deus
parece mais do que nunca ser um comportamento em desuso. Essa
revolução de atitude aprofunda tanto o nosso egocentrismo que
escutar escritores espirituais torna-se uma tarefa realmente difícil,
embora a docilidade e não a maestria seja a essência da leitura
espiritual e da vida meditativa.
Nós também possuímos uma abrangência muito limitada
de atenção. Nosso estilo é desconjuntado: nossas frases são que-
bradas, nossas mensagens nem sempre têm significado. Vivemos a
fim de sermos entretidos como espectadores, ao invés de estarmos
envolvidos como participantes na vida. Nossos livros refletem o
staccato da modernidade. Mensagens são dadas de forma precisa e
em doses homeopáticas. Por semelhante modo, nossos estilos de
vida se alteram porque o homem procusteano* muda ao sabor da
moda e do entusiasmo do momento. É uma sociedade do divórcio,
onde se troca de parceiro quando o humor também se altera. O
alimento sólido da Palavra, sobre o qual fala o apóstolo, é rejeitado
não somente por leite, mas também por cola. Clássicos da fé e da
devoção não são interessantes para uma geração que vive à base de
pipoca e de goma de mascar.
Temos a tendência de viver do lado externo da vida. Tudo
gira em torno de desempenho, de como podemos impressionar
outras pessoas. Como cristãos, estamos mais preocupados com a
promoção de nossa fé do que com a sua prática privada. Atividade
é mais significativa que espiritualidade. Temos medo de ouvir a

* N. T. termo cunhado a partir do personagem da mitologia grega


Procusto, que convidava os viajantes a se hospedarem em sua casa, mas tinha
uma cama muito grande e outra cama minúscula. Durante a noite, ele procu-
rava adequar o viajante à cama escolhida, serrando os pés dos que optavam
pela cama pequena ou esticando os que escolhessem a cama grande. Seu
objetivo era colocar cada um na sua medida, ou melhor, no seu métron.

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342 MENTE EM CHAMAS

Deus porque estamos mais preocupados com o que as outras pesso-


as vão pensar. A mentalidade de rebanho e a tirania do consenso
– aquilo que Aldous Huxley certa vez chamou de “intoxicação de
rebanho” – nos faz ter medo do isolamento, de encararmos a Deus
sozinhos ou na verdade de encararmos nossos sentimentos interio-
res de culpa e de auto-traição.
A leitura devocional, no entanto, é uma questão muito ín-
tima, interior. Ela requer a coragem moral da humildade, da aber-
tura para perspectivas de mudança de vida e do respeito pelo seu
próprio ser interior. Ela significa mudança de engrenagem, a fim
de que operemos com o temor do Senhor, ao invés de estarmos
preocupados com o medo do homem.
Nós também jogamos o jogo dos números. “Todo mundo
está fazendo isso,” exclamamos. Como então eu poderia, ou deve-
ria, ser o único a destoar?
Em resposta, Kierkegaard nos pediria que deliberássemos:
“você agora vive de modo a estar consciente de si mesmo como
individuo?”18 Acima de tudo, você percebe o mais íntimo dos rela-
cionamentos, “a saber, aquele no qual você, como indivíduo, está
relacionado a si mesmo diante de Deus?”
Na natureza parece haver um enorme desperdício de luz do
sol, de plantas, de animais menores e maiores na grande cadeia
alimentar de nossos ecossistemas. Na violência do homem contra
seus companheiros, fruto de sua insensibilidade, os números pare-
cem ainda não fazer nenhuma diferença. Em nossa desobediência
à voz da consciência, nossos hábitos pessoais de leitura, nossa vida
de oração e a falta de progresso espiritual também parecem não fa-
zer diferença se observarmos o cristianismo como uma multidão.
Mas Deus não julga como julga a multidão. Ao contrário,
como Pai, Ele sabe de cada pardal que cai; cada fio de cabelo de
nossa cabeça é contado por Ele. “Na eternidade, você procurará
em vão pela multidão... Na eternidade, você também será esque-
cido pela multidão.”19 Isso é aterrorizante, a menos que nos prepa-
remos para a eternidade, nos encontrando com Deus agora, com
constância e desejo.
A leitura devocional nos ajuda, então, a termos uma cons-
ciência eterna, não uma consciência de rebanho; a consciência do
homem diante de seu Criador e minha diante de meu Salvador.

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APÊNDICE 343

“Na eternidade”, acrescenta Kierkegaard, “há câmaras suficientes


de modo que cada um possa ser colocado sozinho em uma... uma
prisão solitária, ou a câmara abençoada da salvação.”20 Estaria en-
tão minha leitura espiritual e sua reflexão ajudando-me a ver a
mim mesmo “no lugar”, na vontade e no amor de Deus? O ver-
dadeiro individualismo não está seguindo a moda, mas seguindo
a Deus.

O lugar da intimidade com Deus

Não é coincidência o fato de que o tema “seguir a Deus”


para os israelitas no Êxodo fosse uma experiência no deserto. O
nosso deserto não é normalmente o Saara ou o Gobi, ou mesmo o
grande interior australiano. Nosso deserto é o espaço para refletir-
mos sobre nossos sonhos desfeitos, a alienação que nenhum toque
pode conectar entre até mesmo pessoas que se amam, a incerteza
sem rastros acerca do amanhã e a experiência da escuridão inte-
rior. Ali, Deus nos chama para Si, não a partir de nossa utilidade,
mas a partir de nós mesmos.
Quando dizemos sim para Deus, Ele então nos leva para o
deserto. Não há direções definidas, nada sistemático, nenhuma
proposta concreta, nenhum projeto mirabolante, nenhuma opor-
tunidade promissora; há somente a promessa do não ter medo de
ser. É a entrega total. É a docilidade, qualquer que seja o custo. É a
divina companhia, a despeito das conseqüências.
Carlos Carretto reconheceu que o grande presente que o
deserto dá é a oração.21 O deserto é o lugar do silêncio diante de
Deus, onde a quietude faz com que o coração perceba a Sua pre-
sença mais próxima que a nossa própria respiração. Nesse silêncio
de concentração, escutamos a Deus falando através de Sua Pa-
lavra. O silêncio é desinteressante sem a Palavra, mas a Palavra
perde seu poder criativo sem o silêncio do deserto.
A experiência do deserto não é apenas um ambiente para
o estoicismo. Ela é o lugar da intimidade com Deus. Ela necessita
de um recolhimento silencioso – ao menos temporariamente – do
mundo dos homens para se estar a sós com Deus. Ele é um taber-
náculo reflexivo, onde é possível ver coisas à luz da eternidade
e, portanto, em suas verdadeiras proporções. Ele é a remoção da

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344 MENTE EM CHAMAS

agitação, do alvoroço e da velocidade, para que as coisas sejam


vistas na quietude. Ele é onde nós silenciamos nossas paixões e
relaxamos nossas tensões. Assim como alguém que vagueia no de-
serto, nós aprendemos a descobrir o oásis onde a busca não é mais
necessária. Ali nós descansamos, nos refrescamos e renovamos.
A vida do deserto tem um modo de reduzir as necessidades
àquilo que é realmente essencial, como água, alimento e abrigo.
No deserto, a sós com Deus, descobrimos que Ele é suficiente para
satisfazer todas as necessidades. Nossa única necessidade restante
é simplesmente a de precisarmos mais Dele. De todas as lições que
o deserto ensina, nenhuma é maior do que encontrar a intimidade
de Deus.
Não é de admirar, portanto, que algumas das literaturas de
renovação espiritual mais importantes tenham vindo dos Pais do
Deserto – Antônio, Atanásio, Orígenes, Pacomias, Evagrio, Ba-
sil, Gregório de Nissa e muitos anônimos cujos ditados nós ain-
da conservamos na memória. Aquilo que mais tarde se tornou o
“monasticismo” institucionalizado nada mais é que o reflexo da
vida no deserto a sós com Deus. Somos lembrados de que, sem
a experiência de auto-esvaziamento no deserto, de abandono da
idolatria, de entrega compromissada a Deus e de nosso desperta-
mento espiritual para Deus, a leitura devocional não tem nenhum
papel significativo a desempenhar em nossas vidas. Esses são, pois,
os motivos e desejos básicos necessários para a leitura devocional.
Espaço e tempo são exigidos para tornar real o desejo pelo
deserto. “O tempo silencioso” é um espaço em branco para a pieda-
de matinal ou é o espaço mais importante em nossas vidas diárias.
Nossa leitura de cabeceira é outro tempo para nossas devocionais.
Determinados momentos durante o dia dão veracidade à devoção
espiritual.
Emocionalmente, também, nossas experiências de deserto
não são apenas espaços que Deus deveria ser convidado a preen-
cher; elas são lembretes daquilo que Ele realmente quer ocupar
em nossas vidas. Na verdade, o nosso recolhimento é o espaço no
qual estamos conscientes de nossa necessidade Dele. A literatura
devocional nos auxiliará a ver qual espaço, de um universo sempre
em expansão, Sua presença deve preencher. A medida através da
qual observamos progresso espiritual é a nossa crescente necessi-

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dade de Deus. Não se trata de fraqueza, mas do segredo de nossa


maior força.
No entanto, uma jornada para dentro do deserto requer um
guia, no caso de nos perdermos. Precisamos de direcionamento,
a fim de não sucumbirmos diante de sua sequidão de desencora-
jamento e de derrota. Do mesmo modo, nossa jornada espiritual
necessita de um guia.
Temos o Espírito Santo como nosso Guia Supremo. Mas a
Sua presença depende também da condição de que não O entris-
teçamos nem O extingamos. Nós, portanto, temos os conselhei-
ros, exemplos inspiradores e as experiências espirituais do povo de
Deus para nos ajudar no direcionamento. A história da igreja é a
materialização da comunhão dos santos, cuja fé somos exortados
a seguir.
A superficialidade de grande parte da vida cristã contem-
porânea é a sua modernidade. Nós necessitamos de todos os vinte
séculos de vida de devoção para ajudar-nos a nos tornarmos mais
dedicados a Cristo no início do século XXI.
Aprendamos a desfrutar da comunhão dos santos, revivendo
suas vidas, repensando seus pensamentos e reexpressando o ardor
e o fervor de seus desejos por Deus. Quando ficamos desanimados,
esses exemplos do passado nos mostram que, quando ideais cris-
tãos são verdadeiramente testados, eles produzem um fruto muito
rico. Seus escritos devocionais podem revitalizar nossas formalida-
des sem vida, assim como ossos secos nos lixos dos desertos podem
ser revitalizados na visão de Ezequiel. Em outra metáfora, Paulo
fala da nuvem de testemunhas que torcem pelo atleta na corrida.
Obras devocionais fazem exatamente isso; elas nos encorajam a
seguir até a linha de chegada.

Diretrizes de leitura que transformam a vida

A despeito da avalanche de novos livros e de reedições de li-


teratura espiritual, há pouca orientação sendo oferecida acerca de
como a arte da leitura espiritual pode e deve ser cultivada. Já men-
cionamos que a arte da leitura devocional não é exegética, nem
informacional, nem literária em sua ênfase. A leitura espiritual
é essencialmente formativa da alma diante de Deus. Precisamos,

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portanto, lê-la de tal modo que ela nos ajude a estarmos inspirados
e afinados com Deus no “homem interior”. Pois é a escrita que nos
coloca em sintonia com o Céu e molda o nosso caráter em Cristo.

1. A leitura espiritual requer uma ênfase primária no uso


devocional da Escritura

Não permita que o primeiro entusiasmo gerado pelo contato


com a literatura devocional o distraia da prioridade que você ain-
da deve dar ao estudo da Bíblia e à meditação. Lembre-se de que
as Escrituras são o cânon da devoção do povo de Deus. Eles viam
unicamente as Escrituras como a revelação final dos propósitos de
Deus para o homem. Eles viam as Escrituras como guiadas pelo
Espírito Santo.
No entanto, o que é necessário ser resgatado ou significa-
tivamente revisado nos exercícios espirituais de muitos cristãos
é como usar e meditar na Bíblia devocionalmente. Pois desde a
Reforma temos tido a tendência de nivelar a interpretação da Es-
critura no processo histórico crítico; queremos vê-la como cremos
que o texto tenha sido originalmente escrito pelo autor. O mon-
ge-estudioso medieval a via, no entanto, de maneira muito mais
rica, como a seguinte rima hermenêutica resume seu quádruplo
significado:

A letra nos mostra aquilo que Deus e os nossos pais fizeram;


A alegoria nos mostra onde a fé está oculta;
O significado moral nos dá regras da vida cotidiana;
A analogia nos mostra onde encerramos nossa luta.

Embora não procuremos sistematicamente por esses quatro


níveis em cada versículo da Escritura, no entanto, o sentido literal
ou simples do texto, conforme cremos que seja, requer também
o uso do simbolismo para nos lembrar de seus mistérios. O uso
da aplicação moral para o cristão individual é também requerido,
bem como a percepção das realidades transcendentes da escato-
logia que estão ocultas no texto. Esse tipo de tratamento é mais
bem observado no Saltério, que sempre foi o mais popular livro da
Bíblia nas leituras litúrgicas da igreja.

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APÊNDICE 347

2. A arte da leitura devocional é menos uma questão de técnica


e mais uma questão de atitude do coração

Observar as pressões e obstáculos de nossa cultura que ne-


gam e esterilizam os valores da leitura devocional é como desen-
volver um “sexto sentido”. É um processo semelhante a desen-
volver discernimento e desejo espirituais. É claramente diferente
da curiosidade por mais informação ou do desafio intelectual de
dominar a compreensão racional. A atitude se altera de um desejo
por informação para uma disposição de ser reformado e um desejo
de ser transformado. O mandamento, na criação, para termos do-
mínio sobre a terra por meio da imago Dei é superado quando nos
mudamos para o mandamento, na redenção, para sermos confor-
mes à imagem de Cristo.
Isso envolve uma nova maneira de conhecer, com uma
mentalidade diferente. A leitura informacional é mais uma busca
por perguntas e respostas. A leitura devocional se concentra nas
questões básicas da vida diante de Deus. A primeira busca transpa-
rência e entendimento; a segunda diz respeito a conviver satisfato-
riamente com os mistérios, em apreciação e adoração. Novamen-
te, leitura informacional é mais dialética e comparativa; a lógica é
importante. Mas a leitura devocional é mais dócil e receptiva, ao
contrário de ser crítica e comparativa.
A leitura informacional tende a ser detalhista. Os dados são
dissecados por meio de análise, a fim de aumentar a possibilidade
do aprendizado de novas coisas em novas disposições. A leitura
devocional, por sua vez, é caracterizada pela disposição de deixar
toda a iniciativa nas mãos de Deus, recordar e refletir acerca da-
quilo que Deus já fez e estar unido com Ele de maneira viva e dinâ-
mica. É como o capitão da embarcação convidando o piloto para
assumir o comando. Por esse motivo, a leitura devocional é muito
mais pessoal e envolve auto-entrega, docilidade e uma disposição
de mudar o curso através de resoluções profundas e por meio de
disciplinas interiores. A manutenção de um diário espiritual pode
começar a sinalizar as mudanças de atitude e os desejos diante de
Deus.
Uma leitura devocional assim, que encoraje as mudanças de
caráter, pode se deparar com batalhas espirituais acirradas e lutas

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emocionais profundas. Ela exigirá mansidão de espírito para evitar


viagens de culpa, sustentar a alegria de espírito e evitar a rigidez
exacerbada consigo mesmo. Ela exigirá paciência e uma visão am-
pla do controle de Cristo sobre nossas vidas.

3. A leitura devocional tem mais o caráter de um despertamento espi-


ritual do sono cultural que o de melhora de atitudes existentes

Nós, de boa vontade, “dormimos” dentro de nossa cultura,


até viajarmos para o exterior e nos surpreendermos com o modo
diferente de viver e de se comportar de outras sociedades. O após-
tolo destaca que precisamos despertar espiritualmente de nossas
conformidades culturais, mentalidade e atitudes que compartilha-
mos com o mundo ao nosso redor; precisamos viver para Deus com
frescor e honestidade (I Tessalonicenses 5:6). Isso, na maioria das
vezes, requer um quebrantamento renovado de espírito, um novo
ou aprofundado senso de pecado ou uma profunda reavaliação de
nossas prioridades. Começamos então a descobrir dois cristãos que
podem partilhar da mesma ortodoxia doutrinária e, no entanto,
têm atitudes de espírito profundamente distintas.
Muito desgaste e confusão no seio da igreja na atualidade
demandam discernimento de atitude entre cristãos para evitar
aquilo que Bonhoeffer chamou de “graça barata” e exercitar a ver-
dadeira devoção diante de Deus. Podemos precisar então “viajar
para fora”, assim como fizeram os Pais do Deserto quando deixa-
ram as cidades dos homens. Talvez tenhamos de explorar, assim
como exploraram os místicos medievais, ou sofrer, como sofreram
os puritanos, a fim de aprendermos quão secular foi o tipo de cris-
tianismo de seu tempo, e como é o nosso hoje.
Confissão e arrependimento devem, portanto, ser as con-
seqüências da leitura devocional. Ela agita o coração de modo a
deixá-lo desconfortável e confuso com relação à leitura de entre-
tenimento. Ela é radical demais para nos manter a salvo, dentro
da esfera do nosso próprio controle de novas informações. A pato-
logia do coração se revela em seus enganos, seus ocultamentos de
pecados e na inabilidade do pecado em ser controlado.22
A confissão, portanto, implica a necessidade do reconheci-
mento (confiteri) da santidade de Deus e em fazer confissão (con-

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fessio) da culpa e do pecado.23 Somente o sacrifício pode unir o


pecador a Deus, e o único sacrifício que une o homem a Deus é o
de Jesus Cristo. O valor de todos os outros sacrifícios é derivado
deste. A confissão se torna então louvor, uma oferta de gratidão.
Assim nos exorta Bernardo de Clairvaux, “por meio da confissão
dos pecados e por meio da confissão de louvor, que toda a nossa
vida confesse a Ele!”.24 Com o louvor como veste, a confissão se
torna o ato de alguém que recuperou uma beleza interior, o aperi-
tivo da glória vindoura.
Se pensamos em alguns autores espirituais como Thomas à
Kempis em seu Imitação de Cristo como sendo muito rigoroso e se-
vero, não seria porque nossas próprias vidas não são confessionais
o suficiente? Não seria porque estão carecendo de louvor adequa-
do? O louvor flui da gratidão, e a gratidão brota da confissão do
pecado na percepção de quem Deus é. A expressão teológica con-
temporânea da fé como um sistema de crença foi sendo formada ao
longo de todo o século XX por homens como John de Fecamp, que
considerava a teologia primariamente como uma tarefa de louvor,
adoração, executada em espírito de oração e desencadeada pela
contemplação de Deus.25
É na confissão do pecado que descobrimos novas dimensões
do eu e do auto-amor com as quais precisamos lidar. Um desperta-
mento da consciência do pecado que habita o interior do cristão,
como aquela vividamente exposta por John Owen, nos dá uma
nova sensibilidade à realidade de Satanás e nos faz ficar de joelhos.
A tentação se torna uma realidade mais profunda, que requer mais
vigilância moral e mais leitura devocional.26 O arrependimento se
torna uma realidade vívida, que precisa do apoio e do conforto da
comunhão dos santos.
Assim, um desejo de mudar o curso de nossa vida depois de
um fracasso e da desonestidade para com a nossa própria alma in-
tensificará a nossa busca por aprender de outros como lidar com
essas questões. Ver a vida agora com um significado mais profundo
demanda recursos espirituais maiores do que aqueles que anterior-
mente sequer imaginávamos que precisaríamos. Uma vez na pere-
grinação e fora do status quo, estamos em uma longa jornada. Des-
pertamos de um sono profundo e apagado. Assim como o cristão de
John Bunyan, necessitaremos de muitas companhias espirituais.

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4. A leitura devocional tem seu próprio ritmo, um ritmo mais lento

Uma vez que comecemos a ver o discipulado como uma obe-


diência a longo prazo, teremos então de resistir à impaciência de
nossa “Sociedade Instantânea”. Se a nossa leitura devocional tiver
como objetivos a mudança e a formação de vida, não podemos
buscar resultados imediatos. É, portanto, fútil passar os olhos por
cima de uma obra devocional com pressa. Diferente de um roman-
ce de Agatha Christie, não podemos lê-la por completo em uma
noite.
Muita inautenticidade surge em nossa vida porque não di-
ferenciamos velocidades; fazemos as coisas muito rapidamente.
Como, de fato, eu penso mais rápido do que consigo falar, falo
mais rápido do que posso agir e ajo mais rápido do que tenho ca-
ráter para muitas ações. Eu então tenho sempre a tendência de ser
inautêntico.
Espiritualmente, precisamos diminuir a velocidade e gastar
mais tempo na reflexão e no silêncio. Necessitamos do ritmo lento
e pré-estabelecido de tempos regulares e determinados para lei-
tura, mesmo que sejam somente quinze ou trinta minutos no dia.
Absorver as poucas linhas de um autor no coração e através da cor-
rente sanguínea das atitudes é muito mais eficaz que ansiosamente
ler em alta velocidade, em nome da curiosidade. Se o problema de
muitas igrejas é como a velocidade das decisões de gabinete pode
ser comunicada em um espírito de comunidade, então, o problema
da leitura devocional é como a impaciência da mente pode ser
controlada, a fim de deter sua luxúria por mais informação.
O espaço, assim como o tempo, é necessário para a leitura
devocional. Isso pode levar literalmente ao hábito do desenvol-
vimento de um ambiente particular, uma área em determinada
sala, onde se localize um “altar” de devoção. Fisicamente, ele pode
requerer uma postura confortável, talvez uma cadeira específica,
onde seja possível relaxar de imediato e onde uma atmosfera seja
criada especificamente para esses exercícios de devoção, como a
oração e a contemplação. Talvez devêssemos primeiramente levar
a leitura espiritual a sério em um dia de feriado ou em férias; nesse
contexto, sentimos a atmosfera informal e relaxante com o espaço
de que necessitamos para exercícios e disciplinas assim. Um car-

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APÊNDICE 351

taz em tom de brincadeira em uma estrada de Los Angeles dizia:


“Com sorvete, todo dia pode ser um sundae (tipo de sorvete cuja
palavra é semelhante a Sunday, domingo em inglês).” A verdade
é que se cada dia é alimentado pela leitura espiritual, todos os dias
são domingos.

5. Escolha os clássicos de fé e de devoção a partir de uma


vasta gama de obras do povo de Deus

Temos observado que a pobreza da cristandade hoje requer


recursos de todos os vinte séculos de tradições espirituais, sejam
eles ortodoxos, católicos ou protestantes. Teríamos então necessi-
dade de sermos hesitantes quanto a receber uma enorme variedade
católica de experiências que outros santos de Deus experimenta-
ram através dos séculos e culturas da humanidade? Na verdade,
aqueles que experimentam as maiores riquezas da graça de Deus
são os que mais têm condições de serem ecléticos em suas leituras
espirituais. E isso eles podem fazer sem perder de modo algum sua
firmeza de fé e doutrina, nem serem descuidados quanto à verdade
essencial do Evangelho.
Um exemplo de como a variedade pode enriquecer um cris-
tão é o da vida e ministério do Dr. Alexander Whyte, um membro
influente da Igreja Livre da Escócia, uma igreja que não é conheci-
da por seus interesses católicos. Quando tinha cinqüenta e seis anos
de idade (1892), Alexander Whyte começou a ler as obras selecio-
nadas de William Law. Ele escreveu uma antologia sobre as obras de
Law em seu livro The Characters and Characteristics of William Law
(As Personalidades e Características de William Law). No prefácio, ele
disse acerca desse anglicano, “o estudo desse autor incomparável
tem sido um período extraordinário em minha vida.”27
Whyte então foi conduzido ao estudo de Teresa de Ávila, a
respeito de quem ele também escreveu. Ele fez tributos a Lance-
lot Andrewes, Sir Thomas Browne, Samuel Rutherford e ao padre
russo John de Cronstadt. Em um período de sete anos, Alexan-
der Whyte teve contato com um vasto cenário de espiritualidade
através de autores que nunca havia conhecido antes. Ele começou
então a perceber que a admiração e o amor dos grandes santos de
Deus é de fato um estudo de grande valor.

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“Exercitem a caridade”, Whyte costumava exortar, “que


se alegra com a verdade”, sempre que ela for encontrada e por
mais estranho que possa ser seu traje. “Os verdadeiros católi-
cos, como o próprio nome diz, são os evangélicos esclarecidos,
de mente aberta, de bom coração e espiritualmente exercitados;
pois ele pertence a todos as facções, e todas as facções pertencem
a ele.”28

6. Cultivem amizades espirituais com amigos de alma a fim de que


possam mutuamente ser beneficiados por um grupo de estudo
ou por um programa de leitura compartilhado

Um grupo assim pode se encontrar a cada duas ou quatro


semanas para ouvir e discutir livros lidos sucessivamente por mem-
bros do grupo. Em princípio, uma leitura como essa pode intensi-
ficar desafios espirituais profundos e gerar todo um novo sentido
de percepção de realidades. Trata-se de uma reação comum ques-
tionar se alguém está perdendo o equilíbrio ou mesmo ficando
louco por ter convicções e anseios como esses. Pois assim como
a recuperação de uma doença grave, a ameaça da morte ou uma
experiência de profundo quebrantamento pode abrir novas portas
de percepção, o novo desafio de ler místicos cristãos pode produzir
o mesmo. É, portanto, muito importante estar sendo encorajado e
conduzido sabiamente por aqueles que são mais experientes. Além
disso, reações divergentes podem dar um sentido de proporção ou
impressões parciais corretas. O alvo comum de crescer em Cristo,
argumenta o apóstolo Paulo, é alcançar uma maturidade corpora-
tiva (veja Ef. 4:13,14).
Um amigo espiritual, disse o autor do século XII Aelred de
Rievaulx em Spiritual Friendship (Amizade Espiritual), é aquele que
é leal e tem as motivações certas, a discrição e a paciência para
ajudar seu amigo a conhecer melhor a Deus.29 Uma vez que as
possibilidades de enganar a mim mesmo são infinitas, eu necessito
de um guia espiritual para me manter honesto. Além disso, o amor
de Deus é efetivamente desenvolvido somente quando meu amigo
me ajuda a sair de mim mesmo e me mostra como posso entrar em
um círculo mais amplo de percepções, onde posso ser mais honesto
comigo mesmo.

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APÊNDICE 353

Desse modo, revelação e honestidade podem dar forma ao


companheirismo espiritual. A vida espiritual se baseia na reve-
lação: a revelação de Cristo, que continuamente nos chama, no
poder do Espírito Santo, para um relacionamento com ele. Ela se
baseia na honestidade: honestidade com respeito àquilo que existe
para ser observado e considerado. O companheirismo espiritual
é um processo de nutrição e de confrontação, quando ambos são
auxiliados pela leitura e pela descoberta da literatura devocional
juntos.
Um verdadeiro amigo em Cristo irá me acordar, me ajudar
a crescer e aprofundar minha consciência acerca de Deus. Pois o
amor de Deus é mediado por relacionamentos humanos, por aque-
les que se importam comigo, me encorajam e desejam que minhas
afeições se tornem centradas em Deus. Na verdade, diz Aelred,
Deus é amizade, de modo que a amizade com aqueles que têm a
mente voltada para a espiritualidade me levará em direção à pie-
dade. Talvez poucos de nós hoje levemos a amizade espiritual tão
a sério.

7. Reconheça que as leituras espirituais lidam com obstáculos que o


desanimam, distraem ou dissuadem, para que você
não persista em sua leitura

Na maioria das vezes, nós não estamos discernindo o sufi-


ciente para enxergar ou questionar por que um livro pode não cap-
turar imediatamente a nossa atenção, ou por que nos parece tão
irrelevante. Isso pode ser causado pelo nosso próprio desânimo ou
pelo nosso estado espiritual, conforme já descrito anteriormente.
O desânimo pode mostrar sua carranca mesmo quando há sinais
claros de que estamos sendo abençoados. Aquilo que os Pais do
Deserto chamam de acídia, tédio, inércia ou depressão pode tam-
bém ser a nossa aflição, quando somos tentados a crer que não
estamos fazendo nenhum progresso espiritual.
Também podemos nos distrair com a leitura dos Pais porque
nunca aprendemos a viver de um livro; o livro tem representa-
do somente entretenimento. Depois de um passeio casual pelos
programas na TV, a leitura concentrada talvez seja uma disciplina
nova. Ou talvez nunca tenhamos vivenciado a experiência da sur-

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354 MENTE EM CHAMAS

presa e da admiração na presença de Deus, tal como à que algumas


leituras espirituais irão nos incitar. Essa atitude pode, portanto,
necessitar de desenvolvimento antes que possamos apreciar alguns
mestres espirituais.
Também podemos ser dissuadidos de ir a fundo nos clássicos
espirituais por causa de sua estrutura cultural e teológica limitada
pelo tempo. Por exemplo, os níveis quádruplos de exegese utili-
zados na Idade Média para interpretar a Escritura necessitam de
alguma compreensão e de afinidade antes que os sermões de Ber-
nardo de Clairvaux possam significar muito para nós hoje. Místi-
cos medievais ingleses, tais como o autor anônimo de A Nuvem
do Desconhecido, Richard Rolle, Margery Kempe, Walter Hilton
ou outros tornam-se de difícil leitura para nós quando insistem
em que coloquemos de lado todo o pensamento humano em nossa
contemplação de Deus. Eles argumentam que é o amor, e não a ra-
zão, que nos dá o verdadeiro entendimento. Eles falam em “discri-
ção”, um determinado ponto espiritual de graça, humildade, con-
trição e profunda contemplação de Deus que é verdadeiramente
requerido.
Mesmo a literatura posterior, tal como a dos puritanos, pode
nos confundir por causa de seu estilo latinizado ou sua “precisão”
em tabular títulos e subtítulos maiores e menores.30 É fácil enten-
der seu apelido de “Precisos” pelo modo como freqüentemente
categorizavam ponto após ponto. É por essa razão, relacionada a
mudança de vocabulários, loquacidade, mudanças de estilo, etc,
que assumimos reescrever em uma linguagem mais contemporâ-
nea alguns desses clássicos, uma tarefa que muitos outros editores
estão agora assumindo. Assim, restam poucas desculpas hoje, ao
leitor moderno, para classificar esse material como ininteligível
ou impreciso.
É bem verdade, no entanto, que o imaginário literário dessas
obras seja freqüentemente o de uma cultura antiga. Obras como
as de Bernardo, Teresa ou Bunyan podem parecer símbolos ultra-
passados. No entanto, elas também possuem princípios de batalha
espiritual, entrega do eu à comunhão com Deus ou da vigilância
em relação à tentação, que permanecem para além do tempo. A
mortificação será sempre um exercício vital, ou uma série de exer-
cícios, na vida cristã.

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APÊNDICE 355

8. Busque, em sua leitura, um equilíbrio entre os escritos


modernos e os antigos

Lembre-se de que o escrito moderno não é provado, carece


de qualidade e importância reconhecidas e freqüentemente reflete
as manias do mercado. C. S. Lewis disse:

Um novo livro ainda está sob julgamento, e o amador


não está em posição de julgá-lo... A única segurança é ter
um padrão de cristianismo claro, central (“cristianismo
puro e simples” como Baxter o chamou), que coloque as
controvérsias do momento em sua devida perspectiva.
Um padrão assim só pode ser obtido a partir dos livros
antigos. É uma boa regra, depois de ter lido um livro
novo, nunca começar a ler outro novo sem que tenha
lido um antigo antes. Se isso é muito para você, deveria
ler um antigo a cada três novos.31

A despeito dessa precaução, quando a revista Christianity


Today fez uma pesquisa popular dos “100 Melhores Livros Devo-
cionais” (25 de setembro de 1961), menos de um terço deles tinha
mais de cem anos. A maioria dos escolhidos eram obras contem-
porâneas. Apropriadamente excluídas estavam as obras de religio-
sidade geral, tais como os livros populares de K. Gibran, obras de
misticismo especulativo, tais como as de Mestre Eckart ou Jacob
Boheme, obras refletindo o pensamento positivo contemporâneo
ou obras de doçura e luz, todas do tipo que tem uma visão irreal do
pecado na vida humana.
Ao mesmo tempo, muitos de nós sentimos a necessidade do
ingresso em uma experiência espiritual mais profunda por meio
do uso de escritores modernos, que abrem caminho a fim de seguir
para além da mente moderna e secular e de volta às verdades eter-
nas do cristianismo. O próprio C. S. Lewis necessitou da sanidade
e do humor de G. K. Chesterton e da imaginação cristã de Geor-
ge MacDonald para alimentá-lo simbolicamente. Ele pôde então
se reportar à obra de Boécio, Sobre a Consolação da Filosofia, que
deu a Lewis uma firme consciência da solidez da eternidade, que
era mais que tempo sem medida. Mas é característica da literatura

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que molda a vida o fato de que poucos autores sejam capazes de


produzir isso em nós. Lewis nos asseguraria, portanto, assim como
tantos outros têm experimentado, que ler de tudo pode produzir
pouco efeito em profundidade, embora nos torne pessoas muito
informadas.
Para muitos, hoje, o livro de Michel Quoist, Orações da
Vida, tem revolucionado suas vidas de oração e trazido vida e
humanidade às suas devoções. Eu fui primeiramente impactado
pelo desafio de Pureza de Coração é Desejar uma Coisa Só, de
Soren Kierkegaard. Ele é demolidor no que tange ao relaciona-
mento com o Todo-Poderoso. P. T. Forsythe, em Alma em Ora-
ção, nos lembra que “o pior pecado é a falta de oração”. Oswald
Chambers, em Tudo para Ele, tem estimulado muitos à busca es-
piritual. Ao mesmo tempo, nenhum livro devocional, passado
ou presente, pode fazer qualquer coisa decisiva se não estiver-
mos já buscando uma vida espiritual mais profunda, e preparados
para recebê-la. Assim como há Salmoss para todos os estados de
humor e necessidades da vida, também deveria haver um equi-
líbrio em nossas leituras. Às vezes, tudo o de que necessitamos
é leitura teológica sólida, como as Institutas, de Calvino. Outras
vezes, a celebração de Séculos, de Thomas Traherne, ou os poe-
mas de Templo, de George Herbert, são mais apropriados. João da
Cruz combina alguns dos melhores textos da literatura espanho-
la com expressões do mais intenso sofrimento e fervor por Deus
em Noite Escura da Alma. Os hinos de John e Charles Wesley, ou
o Diário, de George Whitefield, ou as Cartas, de Fènelon, ou o
Pensamentos, de Pascal abrangem as mais variadas expressões da
alma diante de Deus. A diversidade acrescenta equilíbrio à nossa
dieta espiritual.

9. Acrescente à sua leitura espiritual a manutenção de um


diário ou de um caderno de reflexões

Os puritanos costumavam argumentar que, assim como o


capitão de uma embarcação mantinha seus registros, ou o médico
anotava seus casos, ou um negociante controlava a sua contabi-
lidade, os cristãos, do mesmo modo, devem manter registros de
Deus, diários e curtos.

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APÊNDICE 357

Na verdade, a partir dessa tradição de manter um diário, nós


temos alguns dos maiores tesouros da literatura espiritual. Pensa-
mos em John Bunyan e o seu Graça Abundante para o Maior dos
Pecadores, nas Memórias, de David Brainerd, nos diários Quaker de
homens como George Fox e John Woolman, nos diários de John
Wesley e George Whitefield. Seus exemplos ainda nos encorajam
não apenas a registrar sucessos espirituais, mas também a observar
a bondade de Deus em nossos fracassos, depressões e restaurações.
Eles também nos estimulam a considerar as pequenas coisas que
podem parecer triviais e sem importância e que, no entanto, são
também mantidas sob o cuidado atencioso de Deus. Do mesmo
modo, haverá ocasiões quando a nossa aridez de espírito poderá
sugerir que o nosso estudo e a nossa meditação devocionais são
despropositados e inúteis. Nessas horas, o registro fiel e continua-
do, preservado como um trabalho de amor, se mostrará como algo
oferecido para a honra de Deus em todas as circunstâncias.
Escrever é também um exercício útil e reflexivo. Ajuda-nos
a esclarecer os pensamentos quando nossas emoções estão con-
fusas ou inativas; ajuda-nos a manter as coisas dignas de nota e
edificantes. Os frutos de nossa meditação também são preservados
quando “pensamentos maravilhosos” poderiam muito facilmente
se evaporar de novo.
Para alguns, manter um diário parece um exercício muito
árduo e grandioso. Outros jamais irão adquirir esse hábito. No
entanto, suas autobiografias espirituais são ainda vitais para eles,
pois foram ensinados a ver cada evento que acontece desde a sua
conversão como algo significativo. Em alguns círculos, isso pode
gerar uma ênfase doentia em uma experiência definitiva que de-
termina o passado, o presente e o futuro de tal modo que nenhum
progresso espiritual é feito subseqüentemente. Tudo aconteceu de
uma vez por todas. Não, se somos peregrinos, pois a vida então
permanece em aberto diante de nós, de modo que a nossa autobio-
grafia espiritual ainda está sendo elaborada. Tentativas prematuras
de finalizar a “história”, na conversão, ou na “segunda bênção”, ou
mediante a recepção de um dom ou percepção específicos devem
ser rechaçadas.
Talvez, então, precisemos exercitar mais o senso de autobio-
grafia espiritual em nossas vidas, quer por meio da manutenção de

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um diário, pequenas anotações diárias, memórias ou apenas uma


lista constante de gratidão pelas muitas circunstâncias que Deus
tem transformado em nossas experiências. Mas precisamos evitar a
expressão muito freqüente de testemunhos públicos que podem ser
exagerados ou espiritualmente desperdiçados pela superexposição.
O herói de Dostoievsky em Notas do Subterrâneo argumenta que
“a consciência é uma doença.”32 O culto à auto-realização desta
“Geração Eu” é certamente uma praga mortal entre nós hoje. Tal-
vez o resgate da autobiografia nos ajude. Pois toda autobiografia é
uma busca por um padrão significativo para a vida, e todas essas
buscas estão fadadas à futilidade sem a referência de nosso Cria-
dor e Redentor. Pois a ausência de Deus em nossos pensamentos
e decisões, desejos e deleites, é o que torna nosso desconforto tão
freqüentemente demoníaco.
A manutenção de um diário juntamente com a nossa lei-
tura devocional nos ajudará a fazer de nossa leitura uma dieta
regular. Será também uma forma de autodirecionamento no cul-
tivo da consciência, de um conhecimento de Deus, ao invés de
um conhecimento próprio. Trata-se de uma maneira de viver que
nos prepara para o Céu. O Bispo Joseph Hall, que registrou mui-
tas de suas meditações, nos lembra que reflexões assim registra-
das são “a atividade espiritual do cristão, pois, assim como não é
possível viver sem um coração, do mesmo modo não é possível
ser dedicado a Deus sem meditação”.33 O registro das meditações
nos lembrará constantemente da longa jornada da alma diante
de Deus.

10. Escolha cuidadosamente a obra devocional que você deseja ler


pensando nos benefícios transformadores para a sua alma. Ore com
seriedade e busque alguém que o ajude em sua procura

Há tantos livros de caráter espiritual disponíveis que você


pode se sentir desencorajado a começar, tamanha a variedade.
Primeiro de tudo, portanto, faça distinção entre os clássicos “pri-
mários”, que são leitura básica, das fontes de apoio “secundárias”,
que são apenas clássicos menores em importância. Podemos então
chamar de “leitura terciária” os textos sobre a história da espiri-
tualidade, biografias e outros materiais que ajudem a reforçar o

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contexto dos clássicos primários. O “quarto” tipo de leitura é a


vasta literatura devocional contemporânea, que ainda não se tor-
nou permanente ou obteve interesse e valor perenes.
Não imite a escolha de outra pessoa por um clássico porque
suas necessidades podem ser distintas. O conselho de um amigo
espiritual pode se fazer necessário para ajudá-lo a descobrir o livro
certo, que possa permanecer como seu companheiro para o resto
da vida. Se você ainda não tem um guia espiritual, a sugestão a
seguir pode ajudar.
Se você sente que seus piores inimigos ainda estão dentro
de você – culpa, luxúria, uma vida cristã de constantes derrotas
– então Confissões de Agostinho pode ser o livro certo para você.
Muitos de nós nos identificaremos com o reconhecimento de
Agostinho de que adiou sua exploração e submissão ao cristianis-
mo porque realmente desejava que sua luxúria por sexo, beleza e
sucesso o satisfizesse, ao invés da cura. “Senhor, torna-me puro,
mas ainda não”. A honestidade e abertura de Agostinho diante
de Deus são muito alentadoras, em se tratando de toda uma vida
de acúmulo de coisas e do adiamento da catarse da alma, a qual
muitos de nós desejamos tão intensamente.
Se você busca um relacionamento genuíno com Deus e tem
sentido a ausência de um discipulado verdadeiro diante Dele, en-
tão A Imitação de Cristo de Thomas à Kempis pode ser o chamado
incisivo que está procurando. A tradição que deu origem a essa
pequena obra foi a das notas (ripiaria) ou coleção de frases das
Escrituras e dos Pais que se tornaram um foco para meditação, não
somente para Thomas à Kempis, como também para incontáveis
gerações de “comprometidos”. Por que não se juntar a esse grupo
nobre de devotos?
Se você vê a vida como uma constante luta e se sente ten-
tado a desistir por conta do desânimo e da fraqueza, então talvez
Combate Espiritual, de Lorenzo Scupoli, seja o de que você preci-
sa. Ele só perde para Imitação de Cristo em termos de influência,
particularmente no leste da Europa, desde a sua publicação, em
1589. Francisco de Sales o manteve ao lado da cama por dezesseis
anos, “o livro de ouro, querido” que lia todos os dias. Para aqueles
que necessitam ser dóceis consigo mesmos em auto-rejeição, as
meditações do próprio Francisco de Sales, Introdução à Vida De-

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votada, são um doce buquê de alívio diário para muitos espíritos


sensíveis.
Apaixonar-se por Deus parece algo temerário para muitos
cristãos. Talvez seja possível viver essa experiência lendo o clás-
sico de Jean Pierre de Caussade, Abandono à Providência Divina.
Ele foi recentemente retraduzido para o inglês por Kitty Mug-
geridge como O Sacramento de Cada Momento e tem o mesmo
tema desta obra. O livro do irmão Lawrence, A Prática da Pre-
sença de Deus, pertence à mesma tradição da devoção francesa
do século XVII.
Tudo isso pode encorajá-lo a retornar ao século XII que, a
exemplo do nosso, estava muito preocupado com a descoberta do
individual através do amor romântico. A resposta de Bernardo de
Claurvaix e de seus amigos foi ver o amor de Deus como a fon-
te da verdadeira pessoalidade. O homem sendo chamado para o
amor, e a fonte do amor é o próprio Deus. A nossa integridade e a
profunda compreensão de nós mesmos se aprofundam quando nos
apaixonamos por Deus como uma realidade permanente. Assim,
pequenas obras como Sobre o Amar a Deus, Amizade Espiritual e
meditações em Cântico dos Cânticos nos ajudam a entrar dentro
dessa realidade.34
Se você sente a necessidade de nutrir a sua vida devocio-
nal com estudo teológico sólido, as Institutas de Calvino, Parte 3,
foram escritas com esse propósito, embora sejam freqüentemente
negligenciadas. Antes de começar, talvez ache útil ler Cristianismo
Verdadeiro, de William Wilberforce, um ataque corajoso à religião
civil, feito por um líder abolicionista contra a escravidão. Se a sua
teologia é clara, mas seus sentimentos estão confusos e fracos com
relação a Deus, então o Tratado Sobre as Afeições Religiosas perma-
nece único em se tratando dessa necessidade de desejos disciplina-
dos para com Deus.35 Esse é um livro que demanda a restauração
do homem pós-moderno.
Talvez você também precise retornar aos livros da infân-
cia, tais como O Peregrino, de John Bunyan, para observar em
níveis mais profundos aquilo que não tem idade e serve a todas
as gerações. Reviver nossa infância com Deus pode ajudar-nos
a redimir o passado visando ao enriquecimento do futuro, como
C. S. Lewis fez com os contos de George MacDonald. Precon-

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ceitos da infância às vezes necessitam ser descongelados, por


meio da releitura de fontes que, no passado, bloqueavam o nos-
so progresso.
Em suas Máximas, João da Cruz resume aquilo que temos
tentado dizer. “Busque, por meio da leitura, e você encontrará
meditando; clame em oração, e a porta será aberta na contem-
plação.”36 Mas, ele admite, aqueles que são “peregrinos por di-
versão e não por devoção são muitos.” Ele então nos adverte,
“nunca permita que entre em sua alma aquilo que não seja subs-
tancialmente espiritual, pois, se você assim o permitir, perderá a
doçura da devoção e da recordação.” E ele acrescenta, “viva no
mundo como se somente Deus e a sua alma estivessem nele; e
que o seu coração não seja cativado por nada que seja terreno”.

James M. Houston

NOTAS

1. Eclesiastes 3:11.
2. C. S. Lewis, Peso de Glória (São Paulo, SP: Edições Vida
Nova, 1993).
3. C. S. Lewis, God in the Dock, Walter Hooper, ed. (Grand
Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1970), 200-207.
4. Citado em G. F. Barbour, The Life of Alexander White
(New York: George H. Doran Co., 1925), 117-118.
5. Citado em Richard L. Greeves, John Bunyan (Grand Ra-
pids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1969), 16.
6. F. J. Sheed, ed., The Confessions of St. Augustine (New
York: Sheed & Ward, 1949), 164.
7. Ibid.
8. Steven Ozment, The Age of Reform, 1250-1550 (New Ha-
ven, CT: Yale University Press, 1980), 239.
9. Robert G. Tuttle, John Wesley: His Life and Theology
(Grand Rapids, MI: Zondervan, 1978), 58.
10. Ibid., 100.
11. Ibid., 65.
12. Earnes W. Bacon, Spurgeon: Heir of the Puritans (Grand
Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1968), 108.

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13. C. H. Spurgeon, Commenting and Commentaries (Lon-


don: Banner of Truth, 1969), 2-4.
14. Richard Baxter, Practical Works, William Orme, ed.
(London: James Duncan, 1830), 4:266.
15. Efésios 3:20.
16. C. S. Lewis, God in the Dock, 200-201.
17. A. G. Sertillanges, The Intellectual Life, (Westminster,
MD: Christian Classics, 1980), 152-154.
18. Soren Kierkegaard, Purity of Heart Is to Will One Thing
(New York: Harper & Row, 1954), 184.
19. Ibid., 193.
20. Ibid.
21. Carlos Corretto, Letters from the Desert (London: Dar-
ton, Longman, Todd, 1972), 32.
22. Veja John Owen, Triumph Over Temptation, James M.
Houston, ed. (Colorado Springs: Victor Books, 2004).
23. Jean Leclerc, Contemplative Life (Kalamazoo, MI: Cister-
cian Publications, 1978), 109.
24. Citado por Leclerc, Contemplative Life, 117.
25. Ibid., 116.
26. John Owen, Triumph Over Temptation.
27. G. F. Barbour, Life of Alexander Whyte, 378.
28. Ibid., 389.
29. Bernardo de Clairvaux e seus amigos, The Love of God,
James M. Houston, ed. (Portland, OR: Mutlnomah Press, 1983),
233-251.
30. Veja por exemplo Richard Baxter, Watch Your Walk, Ja-
mes M. Houston, ed. (Colorado Springs: Victor Books, 2004).
31. C. S. Lewis, God in the Dock, 201-202.
32. Citado por Roger Pooley, Spiritual Autobiography (Cam-
bridge: Grove Books, Bramcote, Notts, 1983), 6.
33. Joseph Hall, The Works (London: M. Flesher, 1647), 114.
34. Bernardo de Clairvaux, The Love of God.
35. Jonathan Edwards, Faith Beyond Feelings, James M.
Houston, ed. (Colorado Springs, Victor Books, 2004).
36. David Lewis, ed., The Works of St. John of the Cross
(London: Thomas Baker, 1891).

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Este livro foi impresso em Abril de 2007,
pela Imprensa da Fé para a Editora Palavra.
Composto nas tipologias Goudy OldStyle e Lucida Console.
Os fotolitos da capa e do miolo foram feitos
pela Imprensa da Fé.
O papel do miolo é Chamois Fine 67g/m2
e o da capa é Cartão Supremo 250g/m2



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