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RISCOS E RABISCOS:
A CONTRIBUIÇÃO DO DESENHO INFANTIL PARA A
ALFABETIZAÇÃO
Salvador
2011
DAIANA LEÃO SIMAS
RISCOS E RABISCOS:
A CONTRIBUIÇÃO DO DESENHO INFANTIL PARA A
ALFABETIZAÇÃO
Salvador
2011
FICHA CATALOGRÁFICA : Sistema de Bibliotecas da UNEB
48f.
Contém referências.
DAIANA LEÃO SIMAS
RISCOS E RABISCOS:
A CONTRIBUIÇÃO DO DESENHO INFANTIL PARA A
ALFABETIZAÇÃO
_______________________________________________
Professora Dra. Cecília Conceição Moreira Soares – UNEB
_______________________________________________
Professor Dra. Lúcia Leiro – UNEB
_______________________________________________
Professora Msc. Vívian Antonino da Silva – UNEB
Dedico este trabalho aos meus pais, Luiz e Edelzuita, que
tanto contribuíram para a minha formação. Ao meu noivo
Silvio, por sua dedicação e carinho, em compreensão a esta
longa caminhada. E em especial, a todas as crianças, que
através do sublime ato de desenhar, nos convidam a se
apaixonar pelos seus traços, por suas cores e nos atraem
para esse mundo maravilhoso que o desenho nos
proporciona.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, obrigada Senhor por estar ao meu lado, sempre me encorajando a
caminhar e a nunca desistir.
Com carinho especial aos meus pais, minhas valiosas pérolas, Luiz e Edelzuita, que
me incentivaram a todo instante, me encorajando com palavras sábias e acolhedoras, vocês
são exemplos de força e coragem e fazem parte do meu ser.
Ao meu noivo Silvio, que esteve presente em cada capítulo desta monografia, me
apoiando com o seu saber e com as suas leituras sábias e críticas. Meu singelo obrigado, por
compreender mais uma etapa das nossas vidas, se fazendo presente em todos os momentos
alegres e também nos tristes. E a cada instante, conseguiu compreender o meu silêncio, as
minhas angústias, ausências, inquietudes, transmitindo sempre a segurança necessária para
que pudesse construir este caminho.
Aos meus irmãos Denilson e Alexandre, por compreender a minha ausência nos mais
diversos momentos, e também por ouvir atentamente as minhas leituras e compartilhar das
minhas decisões.
À minha família, em especial a minha tia Denise e a minha avó Tereza, por respeitar
este momento tão particular e pelo apoio prestado a cada instante.
À minha orientadora, a Professora Drª Cecília Soares, por seu carinho, compreensão e
companheirismo nesta grande construção.
Ao meu querido Professor Dr. Luciano Bomfim, por sua dedicação ao meu trabalho e
pelos ensinamentos ao longo da minha trajetória acadêmica. Com você pude aprender a tecer
muitos conhecimentos, obrigada pelos direcionamentos e pelo acolhimento constante a minha
pessoa.
À Professora Vívian Antonino e a Professora Lúcia Leiro, pelo empenho e
disponibilidade de analisar o meu trabalho.
Aos meus amigos, que ao longo desta trajetória construímos e compartilhamos muitos
conhecimentos, o meu muito obrigado a: Aline Rocha, Carla Vanessa, Josefa Dantas, Maria
Caldas, Mariza Mota, Neuza, Lucas Tito e Tailândia Fernandes.
Agradeço, em especial a minha amiga Vânia, que participou com carinho, sempre me
incentivando com palavras que me encorajavam ainda mais diante dos obstáculos.
À minha amiga Mônica, por se preocupar com meu bem estar, e por me ajudar nos
momentos mais decisivos.
Aos amigos Joselito e Jaqueline pelo apoio e pela disponibilidade em conseguir alguns
livros para a minha pesquisa.
À Nilda, por seu carinho e dedicação com meu trabalho.
E a todos aqueles que participaram indiretamente desta sábia caminhada.
“Os olhos, os ouvidos e a língua vêm antes da mão. Ler vem
antes de escrever e desenhar antes de traçar as letras do
alfabeto”.
(MAHATMA GANDHI)
RESUMO
Este trabalho monográfico tem como finalidade analisar a contribuição do desenho infantil
para a aquisição da língua escrita da criança na alfabetização. Assim, discutimos alguns
pontos relevantes sobre a contribuição do desenho infantil no processo de alfabetização, tais
como: as diferentes linguagens da criança neste período, o significado do desenho para a
criança e a importância do desenho infantil na alfabetização. Por isso, alguns autores foram
essenciais para embasar a nossa discussão, tais como: Philippe Ariès, Bernard Charlot,
Florence Mèredieu, Henri Luquet, Emilia Ferreiro, entre outros. Para desenvolver este estudo,
a metodologia utilizada constituiu-se da pesquisa bibliográfica e, no intuito de atingir o
intento proposto nesta investigação, estruturamos este trabalho em três capítulos. No primeiro
capítulo discutimos inicialmente a construção histórica do conceito de infância e também
apresentamos as diferentes formas de linguagem da criança na alfabetização. Já no segundo
capítulo tratamos sobre as especificidades do desenho infantil, apresentando as suas fases de
desenvolvimento. E por fim, no terceiro capítulo, dialogamos com alguns autores sobre o
processo de aquisição da língua escrita e também traçamos as etapas de desenvolvimento da
escrita na alfabetização. Para concluir a nossa pesquisa, apresentamos nas considerações
finais uma reflexão diante do tema estudado e, a partir das discussões teóricas, concluímos
que o desenho infantil enquanto linguagem gráfica e artística contribui significativamente não
só para o desenvolvimento da escrita, como também auxilia na coordenação motora da
criança na alfabetização.
This monograph aims to analyze the contribution of children's drawing for the acquisition of
written language in children's alphabetization. Thus, this discuss some relevant points about
the contribution of children's drawing in the alphabetization process, such as: the different
languages of the child during this period, the significance of drawing to the child and the
importance of drawing in children's alphabetization. Therefore, some authors have been
essential to base our discussion, such as: Philippe Aries, Bernard Charlot, Florence Mèredieu
Henri Luquet, Emilia Ferreiro and others. To develop this study, the methodology consisted
of literature research and in order to achieve the intent of this proposed research we designed
this work in three chapters. In the first chapter initially discuss the historical concept of
childhood and also present the different forms of language in children's alphabetization. In the
second chapter deal about the specifics of children's drawing showing the stages of their
development. Finally, the third chapter we dialogue with some authors on the acquisition of
written language and also traced the stages of writing development in alphabetization. To
complete our research presented in the final reflection on the topic in question and from the
theoretical discussions we conclude that while the drawing graphic and artistic language not
only contributes significantly to the development of writing, but also helps in child's motor
skills in alphabetization.
INTRODUÇÃO 10
CONSIDERAÇÕES FINAIS 46
REFERÊNCIAS 48
10
INTRODUÇÃO
Sabemos que existem crianças que possuem uma experiência com a linguagem escrita
através de participação indireta e natural no contexto no qual está inserida. Assim, podemos
destacar a observação atenta às formas como se apresentam os materiais escritos no seu
ambiente familiar, ao ver alguém escrever um bilhete, assinar o próprio nome, lista de
supermercado, rótulos de produtos utilizados no contexto familiar, etc. Dessa forma, este
contato inicial com o mundo da leitura e escrita permite que a criança perceba que a escrita
serve para se comunicar com alguém e que esta tem um sentido social.
Ao me reportar à minha infância, lembro-me que o ato de desenhar esteve presente nos
diversos momentos da minha vida. Sempre fui motivada pela minha família com os mais
11
Nesse ínterim, tive a possibilidade de observar e conviver com crianças que faziam
parte de uma turma de alfabetização na instituição escolar na qual trabalho e na época era
estagiária. Ao longo desta convivência, percebi que no processo de alfabetização as crianças
não tinham tempo para desenhar devido à quantidade de exercícios que visavam à aquisição
da leitura e escrita e, mesmo quando sobrava tempo, a educadora promovia uma atividade
extra como contação de histórias. Após a leitura, era solicitado aos alunos que realizassem
uma produção de desenhos baseado no que foi lido. O resultado era que muitas crianças não
participavam deste momento, pois diziam que não sabiam desenhar.
Mèredieu (2006), Jean Arfouilloux (1988), Edith Derdyk (1993), Ana Angélica Albano
(2009), Maria Isabel Leite (2003), Sueli Ferreira (2003), dentre outros. Assim, para que
pudéssemos compreender o processo de aquisição da língua escrita da criança na
alfabetização, utilizamos como referenciais teóricos os estudos de autores como: Emília
Ferreiro e Ana Teberosky (1999), Suely Amaral (2005), Maria Graça Azenha (1993) e
Analice Pillar (1996). Vale ressaltar que também consultamos os documentos oficiais do
Ministério de Educação sobre o Ensino Fundamental de Nove Anos.
Neste sentido, para atingir o intento proposto nesta investigação, estruturamos este
trabalho em três capítulos. No primeiro capítulo, intitulado “O desenvolvimento da linguagem
da criança na alfabetização”, discutimos inicialmente a construção histórica do conceito de
infância, a partir das concepções teóricas dos autores Philippe Ariès (2006) e Bernard Charlot
(1979). Ainda neste capítulo, discutimos sobre as diferentes formas de linguagens da criança
na alfabetização, destacamos as principais formas de expressões que fazem parte da vida da
criança e aquelas que se encontram imbuídas neste processo.
A ideia que temos sobre criança pode apresentar diferentes significados e possuir
distintas acepções para cada indivíduo, bem como está diretamente ligada aos aspectos
econômicos, culturais, políticos e ao contexto social em que ela se encontra. Em meio a tantas
ressignificações que podemos ter sobre o tempo de ser criança, surge como primeiro desafio
nesta pesquisa analisar o conceito de infância. E para compreendê-lo, precisamos refletir
sobre o que é ser criança e de que maneira a visão que temos hoje da infância foi construída
ao longo da nossa história.
Existem diferentes definições sobre o que é ser criança, segundo Damazio (1994,
p.20), criança “é um sujeito em seu processo de crescimento, com suas possibilidades
orgânicas e mentais portadora de seus próprios meios de viver e conhecer a realidade”. A
partir do ponto de vista do autor, podemos dizer que a criança é um indivíduo em contínuo
crescimento, que se desenvolve fisicamente e intelectualmente com características próprias,
identificadas pelo grupo a partir dos comportamentos e inserção na sociedade. De modo geral,
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essa é a reflexão que responde imediatamente à concepção ou à fase de vida do ser humano.
Mas, também a condição de ser criança foi relacionada às faixas etárias1.
O conceito de infância caracteriza-se como uma etapa específica do ser criança. Nesta
fase, a mesma encontra-se em constante desenvolvimento cognitivo, físico e social, além
disso, tem características singulares e necessidades peculiares, tais como: assistência da
família e proteção do adulto.
1
A infância é uma fase demarcada pelas faixas etárias estabelecidas por uma categoria social, através da
organização e estrutura de cada sociedade, como também está diretamente ligada a determinada época histórica.
Tomaremos como base para nossa discussão, a divisão proposta pelo INEP. Segundo o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais, a infância divide-se em três fases: Primeira infância: período de 0 a 3 anos,
quando se completa a dentição de leite (30 a 36 meses); segunda infância: período de 3 a 6 ou 7 anos e terceira
infância: período de 7 anos até a puberdade (12 anos para as mulheres e 14 anos para os homens).
2
O estudo Philippe Ariès reflete as novas tendências historiográficas, a partir da escola “anales” que representou
uma revolução teórica-metodológica da pesquisa histórica.
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pesquisas, o autor chegou à seguinte conclusão sobre os momentos que caracterizavam o ser
criança e a infância:
(...) a primeira idade é a infância que planta os dentes, e essa idade começa
quando a criança nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que
nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não-falante, pois nessa
idade a pessoa não pode falar, nem formar perfeitamente as suas palavras,
pois ainda não tem os seus dentes ordenados, nem firmes (...) (2006, p.6)
A palavra enfant aqui apresentada por Ariès tem a sua referência etimológica
procedente do francês, que significa criança. Já o termo infância tem a sua origem do latim
infans, que quer dizer aquele que não é capaz de falar. Segundo Ariès, a infância é um período
que se inicia com o nascimento da criança e se estende até os sete anos. Este período da
infância era caracterizado pela ausência da linguagem, isto quer dizer que a criança não
apresentava a faculdade de expressar o seu pensamento através da fala. Nesta perspectiva, a
criança é vista como um ser não dotado de “razão”, pois, na concepção dos adultos, a criança,
por não ser racional, possuía comportamentos inadequados e não aceitáveis. Ao completar
sete anos, a criança atingiria a “idade da razão”, chamada assim porque nesta idade a criança
estaria apta a conviver com os adultos e desempenhar funções, como por exemplo, aprender
um ofício.
Ainda segundo Ariès, o nascimento de dois sentimentos da infância nos séculos XVI
e XVII criou uma nova perspectiva para as crianças. Estes sentimentos revelam-se
significativos para o reconhecimento da infância, pois, como veremos mais adiante, o
sentimento de paparicação e moralização da criança caracterizam-se em duas atitudes
contraditórias dos adultos perante a criança. (ARIÈS, 2006, p.99)
Inicialmente, o sentimento da infância pode ser entendido não como afeição pela
criança, mas, na verdade, corresponde à consciência da particularidade infantil que não havia
na civilização medieval. Conforme Philippe Ariès, as crianças não eram maltratadas ou
abandonadas, o que realmente não existia era um sentimento pela infância. No período
medieval, os adultos não tinham consciência desta particularidade e, por este motivo, quando
as crianças tornavam-se independentes de suas mães ou amas de leite, misturavam-se ao
mundo dos adultos e de seus trabalhos.
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Vemos que o autor nega a existência da indiferença perante a infância, pois a família
tinha interesse pela vida da criança e demonstrava afetividade pela mesma. Gélis propõe
claramente que a existência do sentimento da infância, em tempos antigos e na Idade Média,
proporcionou uma transformação radical no pensamento da sociedade referente à preservação
da vida da criança. Para ele, a criança não era submissa ao adulto, mas parte do coletivo e
sinônimo de renovação da geração dos seus pais.
Para Moysés Kuhlman Júnior 4, com base nos autores Franco Cambi e Uliveri,
analisa que “a transformação que se observa em relação à infância não é linear e ascendente
como descreve Ariès” (1998, p.21). Kuhlman critica a concepção da infância construída por
Ariès, este argumenta que a concepção do historiador francês apresenta uma visão linear e que
generaliza o seu desenvolvimento histórico, já que fundamentou sua pesquisa em fontes
históricas sobre as famílias burguesas na França. Observa-se que a descoberta do sentimento
da infância é ascendente, partindo primeiramente da nobreza e, logo após, estende-se para as
camadas populares.
3
O autor Jacques Gélis participou da organização do livro História da Vida Privada, publicada na França, no
ano de 1980, nesta obra apresentam-se várias interpretações dos estudos de Ariès.
4
Na sua obra Infância e Educação Infantil: Uma abordagem histórica, o autor Moysés Kuhlman Júnior
analisou a trajetória histórica e social da criança nos tempos passados, e reinterpretou os estudos de Ariès.
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passado. Assim, a dificuldade de analisar a infância ocorre não pela falta de documentos
históricos no que diz respeito às crianças, mas sim pelo fato de serem ignoradas em seu
contexto social. Sabe-se que a história da infância é compreendida pela concepção dos
adultos, já que a voz e o testemunho da criança encontram-se ausentes na elaboração da
própria trajetória social e construção da sua história.
Desse modo, a infância é uma etapa essencial para o desenvolvimento integral do ser
humano. Ao procurar levar em conta essa fase da vida, retratando como etapa distinta do
mundo do adulto, e também ao pesquisar e ao escrever sobre o tempo de ser criança, não
podemos esquecer a criança que fomos e temos ainda dentro de nós. Assim, concordamos
com autora Sônia Kramer, quando diz que:
Ao contrário dos animais, o homem tem infância, não foi sempre falante, e
precisa, para falar, constituir-se em sujeito da linguagem. A linguagem é,
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A linguagem está presente nas diversas relações sociais que estabelecemos com o
meio em que vivemos, seja numa conversa, ao ouvir uma canção, através dos nossos gestos,
na leitura de um livro, ao escrever um bilhete, dentre outras experiências da vida cotidiana. É
na linguagem e por meio dela, que emitimos os nossos pensamentos, expressamos os
sentimentos, as emoções e as nossas ideias. Nos tornamos autores, atores, pintores,
dançarinos, leitores, escritores e por que não, verdadeiros artistas da vida?
si mesma através das diferentes formas de linguagens. Assim, quando uma criança “seleciona
e elege um objeto para brincar, uma música para cantar, um sapato para calçar, uma cena para
desenhar, está exercendo uma apropriação de recortes da realidade” (DERDYK, 1993, p.107).
Esta “leitura da realidade se manifesta através da representação por meio de linguagens:
gráfica, plástica, teatral, corporal, escrita e falada” (Ibidem).
Não podemos pensar a infância sem essas linguagens, já que são necessárias para
aprendizagem e construção de novos conhecimentos da criança. É pensando na importância
dessas linguagens para o desenvolvimento infantil que surgiram algumas inquietações, as
quais permeiam esta pesquisa, no que se refere, particularmente, a criança e suas diferentes
linguagens na alfabetização.
Muitas vezes, o ato de brincar é considerado pelo adulto como uma atividade para
passar o tempo, ou até mesmo, como um momento sem muita importância. Entretanto, como
comenta Bruno Bettelheim:
Conforme aponta o autor, o brincar é a linguagem secreta da criança, pois quando ela
brinca, externaliza os seus sentimentos, os seus anseios e também os desejos do seu
pensamento. É brincando que a criança constrói novos significados sociais e estabelece
algumas regras através da interação com outras crianças.
Imaginemos que enquanto brinca, a criança imita a ação dos adultos e se incorpora
em alguns papéis sociais, ou seja, utiliza a sua imaginação para fantasiar. Assim, representa
ser um professor, médico, escritor, ator, motorista, enfermeiro, cientista, dentre outras
possibilidades idealizadas e sonhadas por ela. Desta forma, aproveita os diversos materiais
presentes no seu cotidiano e atribui a eles novos valores e significados. Ela “transforma
panela em volante, cabo de vassoura em cavalo, lençol em cabana, régua em avião, areia em
estrada, inventa novos heróis, dá soluções às desigualdades e injustiças” (BENJAMIN, 1984,
p.14). A partir da reflexão do autor, consideramos que o uso de objetos e materiais que fazem
parte do cotidiano da criança, lhe proporciona diferentes maneiras de organizar as suas
relações sociais e inventar as suas próprias regras. Neste mundo do imaginário, a criança
vivencia os diversos personagens criados por ela e experimenta muitas situações do seu
contexto social.
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Como afirma o autor, o brincar pode estar incorporado no desenhar, como também o
desenhar pode estar inserido no brincar. Por exemplo, a criança pode estar desenhando um
trem e imaginar que ele esteja em movimento, este pode se transformar em avião e ela pode
usar a sua criatividade e brincar que ele esteja voando. O desenho pode ter várias
possibilidades no jogo do faz-de-conta.
Quando uma criança possui a liberdade de se expressar, atua com mais confiança no
que realiza e constrói com mais segurança o seu conhecimento. A criança, ao desenhar,
“canta, dança, conta histórias, teatraliza, imagina ou até silencia... O ato de desenhar
impulsiona outras manifestações, que acontecem juntas, numa unidade indissolúvel,
possibilitando uma grande caminhada pelo quintal do imaginário” (DERDYK, 1993, p.19).
Constatamos que as outras formas de linguagens estão associadas ao desenho, pois a criança
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quando desenha movimenta-se, imagina, cria e se sente livre para experimentar e representar
da sua forma a realidade.
O desenho como linguagem “requisita uma postura global. Desenhar não é copiar
formas, figuras, não é simplesmente proporção, escala. (...) Desenhar objetos, pessoas,
situações, animais, emoções, ideias são tentativas de aproximação com o mundo. Desenhar é
conhecer, é apropriar-se” (DERDYK, 1993, p.24). O desenho enquanto linguagem está ao
alcance de todos, qualquer criança tem a capacidade de desenhar, no entanto a partir da sua
própria criação. A ideia de apropriação surge justamente para enfatizar que o elemento
essencial deste ponto é que ao desenhar o indivíduo projeta as suas concepções de mundo.
De acordo com Paulo Sans, a criança “(...) mostra claramente em seus desenhos as
influências da cultura na qual está inserida (...)” (1994, p.29). Daí, podemos perceber o quanto
o desenho é uma linguagem subjetiva e está associada à maneira como a criança vê o mundo a
sua volta. Nesta perspectiva, o desenho assim como o brincar são formas de expressão que
permitem a criança conhecer a realidade que está inserida.
Assim, podemos perceber que nas mais diversas atividades humanas, o desenho
encontra-se presente no cotidiano de uma criança. Seja ao abrir um livro e deparar-se com
uma figura, na ilustração de uma revista ou jornal, nas obras de artes, no caderno utilizado na
escola, nas revistas em quadrinhos, no esboço de um mapa, dentre outras representações.
Desse modo, o desenho apresenta uma natureza transitória e tão versátil, utilizado em vários
momentos de nossas vidas. (DERDYK, 1993, p.10)
Desde a pré-história que os homens “(...) tinham a mesma necessidade que nós de
comunicar o que estavam pensando e sentindo. Devem ter feito isso de várias formas. Umas
delas foi desenhando e pintando” (ZATZ, 2002, p.16). Dentre as diferentes linguagens
utilizadas pelas sociedades primitivas para se comunicar, consideramos que o desenho foi o
primeiro registro produzido pelo ser humano para se expressar graficamente.
O homem pré-histórico fez uso dos desenhos registrados nas paredes das antigas
cavernas que se constituíram como meio de expressão para revelar a sua forma de viver e a
maneira com que transmitiam os seus conhecimentos e as experiências vividas naquela época.
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Com o passar do tempo e a partir das transformações sociais, esses desenhos se aperfeiçoaram
e adquiriram formas mais elaboradas.
estágios evolutivos do desenho infantil, tendo como base os aspectos sociais, culturais e
psicológicos da criança.
Georges Henri Luquet (1969) foi um dos primeiros estudiosos a se dedicar ao estudo
do desenho da criança, no que se refere a sua evolução cognitiva. Em seu estudo buscou
entender como a criança desenha, elaborando assim os estágios de desenvolvimento do
desenho infantil. São quatro os estágios propostos por ele, os quais veremos a seguir: realismo
fortuito, realismo falhado, realismo intelectual e o realismo visual.
Em sua concepção, Georges Henri Luquet acredita que o desenho da criança “não
mantém as mesmas características do princípio ao fim. Portanto, convém fazer sobressair o
caráter distintivo das suas fases sucessivas” (LUQUET, 1969, p.135). Já que do início ao fim
o desenho infantil é “essencialmente realista, cada uma dessas fases será caracterizada por
uma espécie determinada de realismo” (Ibidem). Como esclarece o autor, o termo realismo é
utilizado para justificar que o desenho infantil é realista, pois a criança, ao desenhar, tem a
intenção de representar fielmente um objeto, como ela o vê. Desta forma, a criança revela em
suas representações gráficas muitos detalhes e características minuciosas do objeto
visualizado por ela, os quais muitas vezes são imperceptíveis aos olhos de um adulto.
neste estágio, os detalhes representados em um objeto, “(...) têm por finalidade particularizar
as formas que antes eram genéricas” (PILLAR, 1996, p.50). A partir da perspectiva da autora
Pillar, observamos que o desenho infantil caracteriza-se pela sua representação visual, ou seja,
a criança passa a se preocupar em representar nitidamente os detalhes e os elementos
observados em cada objeto que irá desenhar.
Do mesmo modo que Georges Henri Luquet, os autores Viktor Lowenfeld e Brittain
(1977), também estabeleceram diferentes concepções teóricas sobre os estágios evolutivos do
desenvolvimento gráfico infantil. Para esses autores, os estágios de evolução do desenho
infantil é uma forma de entender o “(...) desenvolvimento intelectual e emocional das
crianças. Conforme as crianças se relacionam mais estreitamente com o mundo ao seu redor,
vão evoluindo os seus desenhos” (FERREIRA, 2003, p.21). Assim, baseando-se na interação
social e no desenvolvimento integral da criança, esses estudiosos desenvolveram quatro
estágios evolutivos do desenho na criança, são eles: o estágio da garatuja, o estágio pré-
esquemático, o estágio esquemático e o estágio do realismo nascente.
O primeiro estágio proposto pelos autores Viktor Lowenfeld e Brittain, o estágio das
garatujas, dura aproximadamente dos dois aos quatro anos de idade. Nesta fase, a criança
começa a construir os seus primeiros rabiscos espontâneos e os traços desordenados. Segundo
os autores, esses traços vão se transformando, aos poucos, em garatujas mais organizadas e
controladas pela coordenação motora da criança. Entendemos que neste período a criança faz
garatuja pelo prazer de elaborar os seus gestos e movimentos, pois ainda não tem a intenção
de realizar as suas representações gráficas.
importante passo no seu desenvolvimento, pois é o início da expressão que conduzirá não só
ao desenho e a pintura, mas também à palavra escrita” (LOWENFELD; BRITTAIN, 1977,
p.115). Partilhando da afirmação dos autores, podemos dizer que a criança inicia as suas
experiências gráficas através de simples riscos, rabiscos e garatujas.
Logo após o estágio das garatujas, surge o estágio pré-esquemático, que se inicia aos
quatro anos e dura até aos sete anos de idade. Diferentemente das garatujas, neste estágio, a
criança possui o intento de realizar as suas representações gráficas. Para os autores Viktor
Lowenfeld e Brittain, a criança neste estágio:
A partir das considerações dos autores, notamos que neste momento a criança
começa a representar o ambiente à sua volta, como também os objetos, as pessoas
significativas para ela, ainda que de modo desordenado no papel e com certa instabilidade no
tamanho das suas representações figurativas. Embora, quanto maior for à interação da criança
com o meio em que vive e com os objetos de conhecimento ao seu redor, mais ricas serão as
suas produções gráficas.
O próximo estágio, denominado esquemático, começa aos sete anos e estende-se até
os nove anos de idade. Durante este estágio, a criança “desenvolve o conceito definido da
forma. Seus desenhos simbolizam parte do seu meio, de um modo descritivo; habitualmente,
ela repete uma e outra vez o esquema que criou para representar um homem”
(LOWENFELD; BRITTAIN, 1977, p.55). A expressão esquema citada pelos autores refere-se
às diferentes formas utilizadas pela criança para desenhar uma figura. Segundo os autores,
neste estágio a criança elabora os seus desenhos com riquezas de detalhes. Por exemplo, a
figura humana adquire formas, como: boca, nariz, olhos, duas pernas, dois braços, cabeça
agora com cabelo.
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O último estágio proposto pelos autores, o realismo nascente, começa aos nove anos e
dura até doze anos. Os desenhos das crianças “são mais detalhados do que suas obras
anteriores, e já não coloca os objetos em filas ordenadas, em toda a largura do fundo do
papel” (LOWENFELD; BRITTAIN, 1977, p.56). Assim, a criança “(...) passa a se interessar
agora muito mais pelas minúcias e deixa de fazer os desenhos grandes e livres que eram seus
prediletos de anos anteriores” (Ibidem). Com base na explanação dos autores, podemos
observar que o desenho infantil sofreu algumas modificações. Neste último estágio, ele
apresenta mais detalhes, pois a criança agora começa a ter maior consciência do mundo à sua
volta, já que o compreende e o interpreta ao seu modo.
Diante das posições destes autores, ressaltamos que o desenho e a escrita são duas
linguagens que apesar de serem distintas, se interagem, e muitas vezes se complementam,
pois cada uma tem a sua especificidade e a sua derivação particular. Contudo, acreditamos
que o desenho é a primeira escrita da criança, pois ela se serve desta linguagem para inventar
mensagens e escrituras imaginárias e também se comunicar do seu jeito com o mundo do
adulto.
Pensar deste modo significa entender que por meio do desenho a criança terá acesso
às outras formas de linguagens expressivas presentes no seu cotidiano, assim como a escrita,
que até então, é desconhecida para ela. Desse modo, através do desenho, a criança adquire as
primeiras noções sobre o que realmente a escrita representa.
No início, ao emitir os seus traços, a criança rabisca não só o lápis no papel, mas
sente prazer no seu gesto ao deixar uma marca impressa em qualquer superfície, seja “o rastro
de uma vareta na areia da praia, o risco do caco de tijolo no muro e na calçada, a marca do giz
na lousa, os furinhos feitos com o dedo na massinha, a impressão da mão cheia de tinta no
papel, a marca da ponta do dedo no vidro embaçado” (DERDYK, 1993, p.56). É brincando e
fantasiando que ela vai deixando o seu rastro, o seu registro, a sua expressão, e
gradativamente vai contando do seu jeito a sua história.
Entre os seus riscos e rabiscos, a criança se aventura no mundo mágico dos desenhos
e através deles revela os seus desejos, suas conquistas, evoca novas descobertas, revive as
suas alegrias, seus medos, suas angústias, e acima de tudo retrata toda a beleza eterna de sua
infância. Ao experimentar o prazer de rabiscar, a criança “(...) num piscar de olhos descobre
uma “gente”, uma “semente”” (DERDYK, 1993, p.10). Semente esta que pode ser redonda,
quadrada, comprida, pequena, grande, vazia, cheia, ou carregada de um horizonte de
significados, que aos poucos impulsionam a sua vida.
32
Aos poucos, nasce o desenho da criança e com ele aparecem os ricos detalhes,
pequenas características, como também ele “é o alvo de representações. Bichos, plantas,
carros, prédios, sóis, árvores, gentes. A criança vai formando um repertório gráfico como num
grande quebra-cabeça” (DERDYK, 1993 p.100). A cada desenho novo, um encontro com as
diversas possibilidades de idealizar e criar um “mundo flutuante de sensações” (Ibidem).
Neste universo gráfico infantil “é gostoso observar a criança em ação, a maneira com
que ela se relaciona e se posiciona com o papel, o lápis na mão, coreografando gestos mais
íntimos e secretos, gestos mais comunicativos e sociais” (DERDYK, 1993, p.129).
Gradativamente, ela vai elaborando o seu desenho, construindo “uma figura que lembra uma
música, que ela associa a um ritmo; nascem pontos que lembram o céu e as estrelas, mas que
estão embaixo e se transformam em florzinhas que configuram construções quase abstratas. E
vai o azul, e vai o amarelo” (Ibidem). Desta contínua e eterna transformação brota o desenho
da criança.
Daí, quando observamos este momento mágico vivido pela criança, nos fascinamos
com o seu encanto, com o brilho dos seus olhos, com a sua felicidade e com a beleza singular
contemplada na sublime vontade de desenhar. Para nós adultos, o desenho infantil “é como
uma janela aberta para uma “terra incógnita”, um continente perdido, onde moramos há muito
tempo, e que é o domínio de seres muito enigmáticos: as crianças. De nosso lugar de adulto, o
que vemos por essa janela” (ARFOUILLOUX, 1988, p.128) pode nos parecer um tanto
desajeitado. “Não é absolutamente o mundo tal como imaginamos, tal como pensamos que ele
é realmente” (Ibidem). Mas, é um mundo que verdadeiramente, é imaginado pela criança, o
qual ela busca traduzir e representar em suas atividades gráficas.
Entretanto, para adentrarmos neste mundo imaginário do desenho da criança, que nos
parece estranho, às vezes incompreensível, e ao mesmo tempo desconhecido, “precisamos
primeiramente arranjar um passaporte. Este passaporte seria a nossa própria vivência da
linguagem: o ato de desenhar”. (DERDYK, 1993, p.49). Assim, como revela a autora Edith
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Derdyk, não dá para nos tornarmos íntimos e conhecedores de uma criança, se não
compreendermos a essência da sua linguagem gráfica, o desenho.
Quando pensamos no desenho infantil, precisamos ter em mente que, para a criança,
o desenho é um meio de expressão. Nele a criança comunica os seus gostos, desejos,
vontades, dúvidas e também apresenta sua própria maneira de compreender e interpretar o
mundo ao seu redor. Desta forma, ao desenhar, a criança revela “parte de si própria: como
pensa, como sente e como vê” (LOWENFELD; BRITTAIN, 1977, p.19) a sua realidade e a si
mesma. Como descrevem os autores, a cada experiência gráfica, a criança nos conta quem ela
é, o que está pensando e também expressa a sua subjetividade e a maneira pela qual se sente
existir.
Entre outras coisas, a criança desenha para se satisfazer, se realizar, sentir prazer e se
divertir. Desse modo, o ato de desenhar é:
(...) um jogo que não exige companheiros, onde a criança é dona de suas
próprias regras. Nesse jogo solitário, ela vai aprender a estar só, “aprender a
só ser”. O desenho é o palco de suas encenações, a construção de seu
universo particular (DERDYK, 1993, p.10)
Neste universo íntimo apontado pela autora, constatamos que o desenho infantil é
particular e muito subjetivo, pois cada criança tem o seu jeito de transpor para o papel algo
que tenha significado e relevância para ela. Por isso, neste grande palco de representações, ela
percebe que pode inventar e nomear as suas próprias regras, reinventar os seus personagens, e
mesmo sozinha, descobre que tem a capacidade de criar e se expressar à sua maneira.
Ao mesmo tempo, o desenho é uma atividade gráfica essencial para uma criança. Ele
suscita risos, provoca encantos e desencadeia sinais de alegria. Assim, o desenho infantil “é
um dom saído de suas próprias mãos e de que ela espera um cumprimento ou um julgamento,
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pois a criança desenha por seu próprio prazer e para dar prazer a alguém” (ARFOUILLOUX,
1988, p. 129). Como bem esclarece o autor, a criança espera que o seu desenho seja
valorizado por quem o aprecia. Muitas vezes, ela dedica e compartilha o seu desenho para
quem está mais próximo dela, seja um ente querido, seu amigo preferido, alguém imaginário,
enfim, a sua representação gráfica é uma forma de comunicação entre a criança e as pessoas
que estão ao seu redor.
Sabemos que o ato de desenhar faz parte da vida de qualquer criança, pois o desenho
manifesta o desejo de representar, mas também, ele é, antes de qualquer coisa, “alegria, é
curiosidade, é afirmação, é negação. Ao desenhar, a criança passa por um longo processo
vivencial e existencial” (DERDYK, 1993, p.51). A partir dessa reflexão salientamos que o
desenho revela muito daquele que o produziu e que este se modifica a cada vontade de
representar da criança. Assim, ela desenha para falar de si, dos outros, das suas brincadeiras,
dos seus gostos, de seus medos, para contar e externalizar as suas descobertas e as suas
vivências.
No entanto, para a criança, não existe somente o desenho no papel. Também faz parte
do seu desenho “a maneira como organiza as pedras e as folhas ao redor do castelo de areia ou
como organiza as panelinhas, os pratos, as colheres na brincadeira da casinha” (MOREIRA,
2009, p.16). Entendemos por desenho “o traço no papel ou em qualquer superfície, mas
também a maneira como a criança concebe o seu espaço de jogo com os materiais de que
dispõe” (Ibidem). Notamos, a partir das palavras da autora, que conhecemos o desenho de
uma criança quando observamos como ela desenha e organiza o seu espaço ao brincar.
O desenho para nós pode até ser uma atividade indecifrável, mas “(...) provavelmente
para a criança, naquele instante, qualquer gesto, qualquer rabisco, além de ser uma conduta
sensório-motora, vem carregado de conteúdos e de significações simbólicas” (DERDYK,
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Não imaginemos uma criança que não desenha, pois toda criança traz consigo a sua
marca, o seu desenho. Como diz a autora Angélica Albano “toda criança desenha” (2009,
p.15). O desenho faz parte de sua essência, decifra o que transparece no seu interior, no seu
pensamento, assumindo assim um papel importante de comunicar o que muitas vezes ela não
consegue falar e descrever com palavras momentos significativos para ela.
Qualquer pessoa que observa uma criança desenhando aprende muito sobre ela.
Assim, o desenho revela o desenvolvimento da criança e também as proezas do seu coração.
Por isso, o desenho significa, para a criança, “o seu próprio canal expressivo” (MOREIRA,
2009, p.96). Ela desenha a sua vida, “com as palavras, com a música, com as cores, com o
gesto. E também se aventura em outras linguagens, recriando o seu espaço lúdico, se
afirmando como ser humano” (Ibidem). Daí, acreditamos que o desenho da criança só tem
significado para ela, quando realmente vivencia esta linguagem, explora os seus limites, as
suas dificuldades, enfrenta os seus medos e assim redescobre no seu traço, na sua marca, a sua
infância.
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Atualmente vivemos em uma sociedade moderna e grafocêntrica, pois onde quer que
estejamos, nos deparamos com o mundo das palavras escritas, por isso nossa sociedade é
conhecida como a sociedade da cultura escrita, das palavras, em alusão aos meios de
comunicação: propagandas, as placas de sinalização, informativos e letreiros das lojas.
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Assim, a escrita tem o seu lugar no mundo urbano onde são vísiveis nas ruas das grandes
cidades os inúmeros apelos e convites visuais e escritos nos enchendo a todo instante de
informações e conhecimentos.
Muitas vezes, a criança por ser muito dinâmica e curiosa, observa no seu cotidiano
as letras, as palavras, os textos em jornais, revistas, cartazes, placas, embalagens, roupas,
brinquedos, televisão, computador e outros objetos. São milhares de informações escritas que
desde muito cedo, a criança demonstra curiosidade para aprender e procura se fazer existir.
Neste sentido, quando a criança é inserida na escola para aprender a escrever, ela já
constatou e verificou muitas coisas escritas. Mesmo não sabendo o seu significado, acredita
que a escrita quer dizer alguma coisa, ou seja, ela já possui a sua percepção sobre o mundo
escrito.
tarefas apresentadas nas escolas, muitas vezes socializadas através do treino da escrita das
letras ou do exercício das palavras e sílabas. Olhando desta forma, o ato de escrever se torna
mais mecânico, o qual propicia apenas a memorização das letras.
Sabemos que cada criança tem o seu ritmo próprio e tempos diferentes para
aprender. Tendo em mente estes aspectos, consideramos a criança um ser ativo que constrói o
seu conhecimento a partir da interação com o ambiente no qual está inserida. Levando em
conta essas considerações, ressaltamos que é fundamental, no processo de aquisição da língua
escrita, que a criança esteja realmente motivada e interessada em aprender, a fim de superar os
desafios que fazem parte desta etapa.
Emilia Ferreiro e Ana Teberosky dirigiram grande parte das suas discussões sobre o
processo de alfabetização. Seus estudos revolucionaram a área da linguagem, pois trouxeram
contribuições teóricas e novas concepções acerca do processo de alfabetização, como também
difundiram novas ideias para interpretar como a criança aprende a ler e a escrever. Desta
forma, o livro “A Psicogênese da Língua Escrita”, baseado em algumas pesquisas sobre
aprendizagem da leitura e da escrita e na concepção construtivista, propuseram quatro níveis
sobre o desenvolvimento da linguagem escrita na criança, a saber: níveis pré-silábico;
silábico, silábico-alfabético e alfabético.
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A criança que se encontra no nível pré-silábico “pensa que letras e números são a
mesma coisa, pois são sinais gráficos muito parecidos para ela” (PILLAR, 1996, p.59). Ao
comentar sobre este nível, a autora Pillar revela que a criança, no começo da sua trajetória,
confunde as letras e os números, pois os sinais gráficos são similares, mas aos poucos tenta
estabelecer uma diferença entre o seu desenho e a escrita produzida por ela.
Neste nível, segundo Ferreiro e Teberosky, a criança pensa que para ler os textos do
seu jeito precisa necessariamente das figuras e dos desenhos, já que através dos mesmos ela
pode entender as letras contidas ali. Vemos que a criança ainda utiliza muito dos desenhos
para entender essa nova aprendizagem, que é a linguagem escrita. Desse modo, “as primeiras
escritas infantis aparecem, do ponto de vista gráfico, como linhas onduladas ou quebradas
(ziguezague) contínuas ou fragmentadas, ou então como uma série de elementos discretos
repetidos (séries de linhas verticais ou bolinhas)” (FERREIRO, 2000, p.18). Ainda vemos
uma sútil semelhança com os desenhos realizados pela criança no início das suas atividades
gráficas. Essas escritas fragmentadas lembram os traços produzidos pelas crianças quando
ainda estão garatujando.
(AZENHA, 1993, p.72). A estratégia usada pela criança revela que nesta etapa ela relaciona
cada letra ou pedaços da escrita com uma sílaba mencionada por ela. No começo, ela não irá
se preocupar com a letra utilizada para corresponder à sílaba falada, pode escolher
aleatoriamente e dizer que é a sílaba que corresponde a sua fala.
Para Emília Ferreiro, nesta etapa silábica a criança “evolui até chegar uma exigência
rigorosa: uma sílaba por letra, sem omitir sílabas e sem repetir letras” (2000, p.25). Neste
momento, a criança atinge uma das fases mais importantes, pois tem uma variação das
quantidades de letras que devem ser escritas a partir das palavras mencionadas. Agora a
criança apresenta um grande avanço, pois passa a ter noção sobre os valores sonoros da sua
fala.
Ainda neste nível silábico, “as letras podem começar a adquirir valores sonoros
(silábicos) relativamente estáveis, o que leva se estabelecer correspondência com o eixo
qualitativo” (FERREIRO, 2000, p.25). Segundo Ferreiro, a criança começa estabelecer a
relação entre as partes sonoras parecidas entre as palavras e também retrata as letras
semelhantes contidas na palavra que pretende escrever. Antes, as sílabas eram representadas
por letras aleatórias, mas agora as letras escritas correspondentes às sílabas já possuem certa
semelhança com a letra que faz parte daquela sílaba. Por exemplo, ao escrever a “BOLA”, a
criança já associa à sua escrita a algumas partes sonoras de sua fala, tendo isso em mente, ela
escreveria “BOLA” desta forma “OA”.
No nível silábico – alfabético, a criança comprova que “uma grafia para cada sílaba
não é suficiente para representar as palavras, pois, escrevendo silabicamente, os outros não
conseguem ler o que foi escrito” (PILLAR, 1996, p.67). Mas, sem deixar “(...) totalmente a
hipótese silábica, a criança começa a analisar as palavras em termos de sílabas e fonemas,
descobrindo, então, que a sílaba não é mais uma unidade, mas que se compõe de partes
menores” (Ibidem). Como escreveu a autora, a criança oscila muito neste momento de escrita,
escreve uma letra para cada sílaba que corresponde à grafia do fonema.
Outra característica importante deste nível é que a criança escreve as palavras do jeito
que fala, ou seja, o valor sonoro está muito presente neste momento. Ao escrever a palavra
“COMIDA”, a criança faz o seguinte registro: “COIDA”. Aqui verificamos que o valor
sonoro faz parte desta trajetória escrita. É importante salientar que neste nível de escrita há
certa instabilidade na produção da escrita e suas características assemelham-se a etapa
anterior.
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Finalmente, a criança chega ao auge da sua escrita alfabética. Ela não pára de
“escrever por medo de cometer erros, como ocorre com a maioria das crianças que iniciam a
escolaridade. A presença de erros ortográficos desta produção é um indicador da forma pela
qual as crianças chegaram a descobrir as funções da escrita” (AZENHA, 1993, p.86). De
acordo com Azenha, a criança está disposta a escrever independentemente se considera certo
ou errado o que produziu. Ela se arrisca e escreve tal como pronuncia determinada palavra,
por exemplo, ao escrever a palavra “CASA”, a criança irá priorizar em sua escrita o som de
cada letra, assim a sua escrita seria “CAZA”. Para o sistema convencional de escrita, a criança
cometeu um erro ortográfico ao trocar o “s” pelo “z”.
Entretanto, nesta fase de aquisição da língua escrita não se costuma pontuar os erros
ortográficos embutidos na escrita de uma criança, já que ela se encontra numa fase de
aprendizagem do sistema de escrita. É claro que esses erros ortográficos não são permanentes
na linguagem escrita de uma criança, a depender de cada sistema educacional, ela começa a
vencer essas falhas na sua escrita. Salientamos que, após este nível alfabético, a criança irá
aprimorar a sua linguagem escrita, se preocupando com as regras ortográficas e também com
as separações entre as palavras.
Observamos ao longo dos níveis apresentados pelas autoras Emilia Ferreiro e Ana
Teberosky, que o processo de aquisição da língua escrita até chegar à escrita convencional e
alfabética é contínuo e com constantes evoluções. A criança perpassa por um caminho de idas
e vindas para se apropriar do sistema de escrita. Nesta longa construção, “o sistema alfabético
de escrita é uma das representações de linguagem e não uma representação gráfica dos sons
da fala” (PILLAR, 1996, p.70). Devido à complexidade apresentada neste caminho percorrido
pela criança, não podemos restringir a aprendizagem da língua escrita, já que é um processo
muito rico. Portanto, em vez de nos preocuparmos com as questões sobre o que devemos ou
não ensinar para as nossas crianças, temos que “dar as crianças ocasiões de aprender”.
(FERREIRO, 2000, p.103). Acreditamos que a língua escrita “é muito mais de que um
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Neste período, a criança traz consigo as suas marcas pessoais e suas experiências
gráficas representadas na sua primeira escrita, o desenho. Esta linguagem é encantadora para
o universo infantil, que “dotada de prestígio por ser secreta, (...) exerce uma verdadeira
fascinação sobre a criança, e isso bem antes dela própria poder traçar os verdadeiros signos”
(MÈREDIEU, 2006, p.10). Assim, como apresenta o autor Mèredieu, o desenho é essencial
na vida de qualquer criança, pois é a ponte para instigar a sua imaginação e permite que ela
conheça as regras e práticas adotadas na sociedade em que vive. Acima de tudo, revela-se
como a sua primeira representação gráfica.
Desde muito cedo, a criança utiliza o lápis e o papel ou qualquer outro material e
superfície semelhante para registrar graficamente as suas marcas, os seus rastros, seus traços,
ou até mesmo para imitar a escrita de um adulto. A imitação surge não como uma cópia, mas
revela o desejo da criança em produzir a sua própria escrita. Desta vontade de representar,
nascem os seus registros e por meio dela transmite os seus conhecimentos.
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memorização das sílabas e letras, assim sendo esta técnica acaba por não ensinar a criança a
escrever. Geralmente, o que acontece é a falta de interesse por parte do aluno em desenvolver
este conhecimento, além disso, a linguagem produzida pela criança através do desenho é
desprezada. Deste modo, por ter que aprender uma língua ensinada, que é o caso da escrita, a
criança acaba por abandonar o seu desenho.
Vale ressaltar que “a perda do desenho, aparentemente vista como uma substituição
de um código por outro, revela apenas a maneira como a criança é vista pela escola”
(MOREIRA, 2009, p. 72). Conforme a autora, a escola, em algumas situações antecipa o
processo de alfabetização justamente por causa da exigência feita pela sociedade que é inserir
as crianças cada vez mais cedo no mundo letrado. Daí, a escola preenche todo o tempo da
criança com atividades que não valorizam as diversas formas de expressão já construídas e
vivenciadas ao longo de suas experiências.
(MOREIRA, 2009, p. 98). Esta reflexão da autora nos apresenta uma questão relevante. O
professor precisa primeiramente se educar, em outras palavras, se o educador não valoriza o
seu ato de desenhar, não se acha capaz de experimentar as diversas linguagens (gesto, música,
dança...), não levará em consideração, os desenhos feitos pelas crianças e o sentido desta
construção para o desenvolvimento da sua linguagem gráfica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Desta forma, tratando em especial do desenho infantil, vimos ao longo das nossas
discussões que o desenho antecede à aprendizagem da escrita convencional e, por isso, ele é a
primeira forma de expressão gráfica utilizada pela criança para se comunicar. Assim, a partir
dos estudos apresentados e discutidos anteriormente, torna-se possível concluir que o desenho
infantil enquanto linguagem gráfica e artística contribui significativamente não só para o
desenvolvimento da escrita, como também auxilia na coordenação motora da criança na
alfabetização.
Vale lembrar que não estamos aqui hierarquizando o desenho e a escrita. O que
pretendemos abordar é que essas duas linguagens, apesar de serem distintas, se
complementam e são fundamentais para o processo de alfabetização da criança. Sendo assim,
é necessário entender que o processo de alfabetização se dá a partir da interação das diferentes
formas de expressão apresentadas ao longo deste trabalho e não apenas na aprendizagem de
um tipo de linguagem.
Assim, não dá para falar de um momento tão importante na vida de uma criança, que
é aprender a escrever, sem pontuar sobre a atuação do professor neste processo. Neste
aprendizado, o docente tem um papel fundamental de desenvolver as propostas e atividades
educativas, as quais valorizem os conhecimentos e as diferentes linguagens já vivenciadas e
construídas pela criança, como também, criar um ambiente que possa valorizar as produções
gráficas infantis e o desenho produzido por ela.
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