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CURITIBA 2018
KEILA FERNANDES BATISTA
CURITIBA 2018
DE CONSAGRADA A MERETRIZ: A CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE
“PROSTITUIÇÃO SAGRADA” NA NARRATIVA DE TAMAR.
Keila Fernandes Batista1
Resumo
Introdução .................................................................................................................. 5
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 28
the Jewish and Christian traditions, Eugene, Wip and Stock Publishers,
1998………………………………………………………………………………………….29
Introdução
2
Palavra grega que se refere a uma funcionária do templo.
3
Tradução da autora.
4
Do grego ιερός γάμο (hieros gamos): casamento sagrado.
quando, segundo Rubio, a sexualidade deixa de ser considerada sagrada e a
sociedade se torna mais “masculinizada” (RUBIO, 1999, p. 135). Assim, as
sacerdotisas envolvidas em ritos de fertilidade tornam-se uma ameaça pela sua
independência sexual e financeira que desafia o status quo de uma sociedade rígida.
A qědeša5 citada na Bíblia Hebraica é igualada, por muitas vezes, a uma
prostituta (zonah), como na história de Tamar e Judá, que veremos mais adiante.
Rubio diz que a prostituição da qědeša pode ser um exemplo de uma má
interpretação, ou uma interpretação má intencionada dos cultos populares por parte
da religião patriarcal de Jerusalém. Ou seja, a ideia de relacionar as sacerdotisas de
Inanna/Ishtar ou Shamash com prostitutas sagradas pode vir desde os tempos
bíblicos, pois os seguidores de Yahweh condenavam os cultos que envolviam práticas
sexuais e o culto a outros deuses.
Em suma, Rubio também concorda com a inexistência da “prostituição
sagrada”. Para ele o que ocorreu foi uma deturpação dos cultos sexuais por parte dos
profetas hebreus e dos documentos gregos do final do Primeiro Milênio a.C. (RUBIO,
1999, p. 135).
Assim, podemos perceber que, a partir de pesquisas mais recentes e que levam
em consideração uma gama maior de fontes, a ideia de “prostituição sagrada” como
prática ritual existente na Mesopotâmia e na terra de Canaã, vem sendo questionada
e até mesmo negada, pois as fontes não são capazes de sustentar tal ideia, visto que
trazem outras possibilidades de interpretação ao revelar mais traços das práticas
religiosas complexas destas sociedades.
O que sabemos, segundo as fontes como listas de funcionários de templos e
códigos de lei, como o código de Hammurabi e as leis assírias, é que os templos
mesopotâmicos possuíam uma equipe de funcionários que serviam aos deuses, por
meio de um sistema complexo que ia da manutenção do espaço à alimentação da
divindade, pois o templo era o seu lugar de moradia. A equipe era formada por
sacerdotisas e sacerdotes, artesãos, artistas e escravos que desempenhavam
diversos papéis de acordo com cada divindade. É possível que o sexo ritualístico
estivesse incluído nas atividades do templo, assim como apresentações de dança,
música e interpretação.
5
A sagrada, ou a consagrada, em hebraico. Qadištu em acádio.
Mulheres de família real, geralmente, eram sacerdotisas en (LERNER,1986, p.
23), - consideradas as principais de alguns templos sumérios, o que indicava o
elevado status da posição. Segundo Ciro Flamarion S. Cardoso, até meados do
Terceiro Milênio antes da era cristã, não havia separação entre o templo e os palácios
reais, e neles habitavam um tipo de funcionário chamado de en (chefe). Espécie de
sacerdote ou sacerdotisa que cuidava das tarefas administrativas, e no caso dos
sacerdotes homens, ficavam encarregados da chefia militar (CARDOSO, 1990, p. 27).
As referências a essas sacerdotisas datam do período Babilônico Antigo.
Lerner diz que elas comandavam rituais e cultos e não se casavam, sendo a
contrapartida dos sacerdotes homens (LERNER, 1986, p. 239) e não deixavam o
templo. Na Suméria, elas encarnavam a deusa Inanna no ritual do Sagrado
Casamento6, na Babilônia eram as mais importantes sacerdotisas do deus Sin (deus
da Lua) e da deusa Innana/Ishtar.
Outro tipo de funcionárias do templo eram as chamadas nin-dingir7. A autora
não se aprofunda muito nem cita o significado do termo, mas diz que existem muitas
referências a elas datadas da época de Hammurabi (1792-1750 a.C.). Elas poderiam
viver fora do templo, mas sua reputação era cuidadosamente guardada. Sobre esta
classe de sacerdotisas, a pesquisadora Johanna Stuckey as aponta como principais
sacerdotisas de uma cidade, e a que representava Inanna no ritual do Sagrado
Casamento (STUCKEY, 2005, p. 06).
Outra classe citada nas listas de funcionários são as sumérias nu.gig (qadishtu
em acádio e qedesha em hebraico). O termo significa “a consagrada” ou “aquela que
é tabu”. Segundo Westenholz, as nu.gig tinham papéis diversos de acordo com o
período e região. É certo que estão ligadas ao serviço de alguma divindade (Inanna,
Shamash, Sin, Nininsa) e poderiam estar ligadas ao parto, rituais de purificação,
exorcismo, bruxaria e rituais de fertilidade e sexo (WESTENHOLZ, 1989 p. 254).
Na Babilônia, ainda havia as sacerdotisas chamadas naditum, termo que
significa literalmente “deixada em pousio”, relação entre o estado da terra que é
deixada inculta com o estado da sacerdotisa que não pode ter filhos. As naditum
6
Ritual hierogâmico no qual o rei, representando Dumuzi, deus pastor ligado à vida animal e à
vegetação, se casa com a deusa Inanna, deusa da fertilidade, do amor sexual e da guerra, uma das
figuras divinas mais importantes na Suméria. Nesse caso, Inanna provavelmente era representada por
uma sacerdotisa en. (K. F. BATISTA, A Legitimação do poder real por meio da religião na antiga
Mesopotâmia: uma análise do sagrado casamento sumério. Universidade Estadual de Londrina, 2013,
p. 13)
7
Literalmente, em sumério: “Aquela que é a deusa”.
vinham de famílias importantes, e segundo algumas evidências (o significado da
palavra é uma delas) eram proibidas de ter filhos. Traziam grandes dotes para o
templo, e podiam deixar o isolamento para cuidar de seus negócios (comprar e vender
terras e escravos), podiam adotar crianças e deixar suas posses para uma herdeira
do sexo feminino, que provavelmente também era ou seria sacerdotisa.
O que se percebe é que nenhuma das fontes indica a existência de rituais
envolvendo a prática sexual (com ou sem pagamento), exceto pelo Sagrado
Casamento, que se tratava de um ritual sumério, realizado anualmente, no qual o rei
casava-se com Inanna, encarnada na figura da sacerdotisa, reencenando o
casamento da deusa com seu consorte Dummuzi. Tal ritual era celebrado com
grandes festejos e tinham grande importância para a legitimação do poder do rei 8.
Assim, a figura feminina no meio religioso era algo comum, porém, de acordo
com pesquisadores como Gerda Lerner e Gonzalo Rubio, a militarização das
sociedades mesopotâmicas acabou por minar o poder das mulheres na religião,
colocando-as em uma posição secundária, fazendo com que a tradição das
sacerdotisas fosse se transformando, acabando por colocá-las no mesmo patamar
das prostitutas.
Uma conclusão interessante para a ideia de que a “prostituição sagrada” não
existiu de fato é da historiadora Joan Goodnick Westenholz, que diz que a prostituição
está fora do controle cultural da sexualidade, já o sexo sagrado é controlado, logo,
não é considerado prostituição. (WESTENHOLZ, 1989, p. 262).
8
As principais referências ao Sagrado casamento estão em hinos e poemas que fazem referência à
união de Inanna e Dumuzi e que, frequentemente, associam o rei a Dumuzi, além de imagens em
baixo relevo (como o vaso ritual de Uruk) e imagens de amantes em terracota.
2. A Bíblia Hebraica
9
Conjuntos dos 5 primeiros textos do Antigo Testamento. Torá judaica.
reino de Samaria, mas com a invasão dos assírios, os textos foram levados para Judá,
e se fundiram com a tradição J, dando origem à tradição JE.
Durante o período do exílio na Babilônia surge a tradição sacerdotal (código P).
Acredita-se que sacerdotes hebreus compilaram textos para elevar a moral do povo,
desanimado com a destruição de sua monarquia e seu exílio longe de suas terra. É
dessa tradição que vem os relatos da criação do mundo, do dilúvio e outras narrativas
do Gênesis, que tiveram influência da mitologia babilônica.
Por fim, em 621 a.C. o livro de leis composto sob a direção do sumo-sacerdote
Hilquias dá origem à tradição Deuteronômica, cujo objetivo seria reforçar e centralizar
os cultos à Jaweh em Jerusalém e eliminar os locais de sacrifício espalhados por
outros locais com o objetivo de consolidar a unidade do povo hebreu. Como se trata
de uma coletânea sobre leis, tal tradição também é considerada uma escola.
O que se percebe, no geral, é que nos textos do Antigo Testamento há
preocupação com a justiça divina e com as leis, logo, há a preocupação com o que é
certo e o que não é. As narrativas foram compostas observando o comportamento e
cultura dos povos que estavam em volta dos hebreus e, como seu foco estava na as
leis e na manutenção da unidade, é possível compreender que os hebreus
consideravam que eles estavam corretos, de acordo com as leis divinas, e os povos
vizinhos estavam errados, pois não observavam nem obedeciam tais leis.
Apesar disso, é possível encontrar proximidades entre os hebreus e povos
estrangeiros, como os canaanitas e moabitas. Tais proximidades se dão por conta dos
casamentos e do sincretismo religioso que pode ser observado em alguns momentos
e que será discutido posteriormente.
É importante ressaltar que a produção dos textos do Antigo Testamento teve
por base diversas tradições orais que incluíam mitos, novelas e sagas de diferentes
épocas e que sofreram influências culturais externas. De qualquer forma a tradição
oral, que se tornou escrita posteriormente, foi de grande importância para a
manutenção da história dos hebreus, pois poucas pessoas tinham domínio da leitura
e da escrita e, assim, a oralidade permitiu que tais narrativas sobrevivessem ao tempo.
2.1 As Mulheres na Bíblia
Esse trecho refere-se ao relato no qual Tamar, que havia se casado com o filho
mais velho de Judá, ficou viúva de dois de seus filhos antes de engravidar. Judá então
promete a Tamar que a dará como esposa a seu filho mais novo assim que este tiver
idade para casar. Porém Judá não cumpre a promessa. Então Tamar se disfarça de
“prostituta cultual” para atrair o sogro e assim gerar um filho.
Aqui é importante ressaltar que, segundo a Bíblia de Estudos Harper Collins–
Nova Versão Padrão Revisada, a expressão hebraica utilizada para prostituta cultual
é qědeša (ou kedesha) que significa “consagrada”, porém em algumas partes do relato
é traduzida como meretriz, e no final como prostituta cultual.
Para historiador Gonzalo Rubio essas mulheres são por muitas vezes
relacionadas à prostituição pelos relatos bíblicos por conta de sua independência
sexual (RUBIO, 1999, p. 133), já que estamos falando de um texto inserido em um
contexto no qual os hebreus estavam em contato com as práticas religiosas da região
de Canaã, onde as mulheres tinham papel ativo em rituais de fertilidade.
Outrossim, os textos que compõe o Antigo Testamento formam uma coleção
de escritos elaborada por uma comunidade que tinha por objetivo promover e
conservar sua fé. Esses textos, ao fazerem referência à religião dos povos que estão
à sua volta, trazem a visão de uma sociedade monoteísta e patriarcal sobre práticas
de comunidades que habitavam a região de Canaã, os assim chamados cananeus ou
canaanitas, e alguns povos mesopotâmicos, como os babilônios.
O relato de Tamar e Judá é bastante interessante e rico para a discussão sobre
a ideia de prostituição sagrada pois ele além de trazer a visão dos hebreus sobre os
povos de Canaã, também traz o peso e a intencionalidade das traduções dos textos
bíblicos. Se sabemos que a palavra usada para Tamar é qědeša e não zonah10,
porque há a insistência no termo equivocado? E se Tamar estava disfarçada como
uma “prostituta sagrada”, Judá, ao relacionar-se com ela estaria fazendo parte de um
ritual canaanita que era malvisto pelo seu povo e sua religião?
Sobre a questão da tradução, segundo Luiz José Dietrich, as traduções
carregam intencionalidades e são influenciadas pelo contexto no qual são criadas
(DIETRICH, 2016, p. 109). Para Antoine Berman
O autor ainda discorre sobre a Vulgata, pois São Jerônimo defendia que a
tradução seria o ato de traduzir não a palavra, mas o sentido (BERMAN, 1985, p. 31).
Assim sendo, era necessário que o texto traduzido fizesse sentido para os seus
leitores, mesmo que para isso as palavras tivessem de ser adaptadas, mudadas ou
até mesmo suprimidas, pois é necessário que a tradução não seja "sentida" pelo leitor
final. É nesse sentido que Berman fala sobre a tradução etnocêntrica.
10
Termo hebraico para prostituta.
Quanto a isso, Braga argumenta que é possível que alguns editores dos textos
bíblicos tenham trabalhado com traduções ou termos equivocados na tentativa de
suavizar algumas coisas e cristianizar tradições hebraicas (BRAGA, 2007, p. 113).
Um exemplo é o próprio contexto no qual Judá busca os serviços de uma
prostituta cultual. Na convivência com os povos de Canaã, prevalecem os costumes
locais, e não as leis de Moisés (BRAGA, 2007, p. 63). Isso explica o motivo pelo qual
Judá buscou uma qědeša para realizar o ritual: no relato é dito que Judá levava as
ovelhas para a tosquia, tal período era importante comercialmente para os pastores,
então é provável que eles buscassem formas para que os deuses favorecessem suas
atividades.
Judá, apesar de de hebreu, vivia em contato com a cultura canaanita, assim,
não é estranho que, estando ele inserido em tal contexto, acabasse por incorporar
alguns costumes dessa região. Isso abre a discussão sobre as trocas culturais
(inclusive na esfera religiosa) entre hebreus e canaanitas.
Além disso, segundo o autor, é possível que a tradição de Judá e Tamar tenha
se originado no folclore canaanita e foi apropriada pelo editores bíblicos com a
intenção de justificar a entrada de clãs estrangeiros nas tribos israelitas (BRAGA, 2007
p. 71), já que a união entre homens israelitas e mulheres de outros povos eram mal
vistas por ameaçar a pureza do sangue a unidade religiosa.
Nesse sentido, Tamar poderia realmente ter sido uma sacerdotisa de Astarte
ou Moloch, que posteriormente foi designada como “prostituta sagrada”.
Por outro lado, Tamar, apesar de ter se disfarçado como uma qědeša, só o fez
para gerar um filho e garantir seus direitos e integridade. Ou seja, ela, provavelmente,
não era uma qědeša, que possui, na sociedade canaanita, maior importância que uma
esposa possui na sociedade israelita.
2.3 A Questão da Tradução
O idioma não é só uma forma de comunicação, ele também faz parte da cultura.
Ao traduzir algo entramos em contato com a forma de se comunicar, expressar e
pensar do outro, na qual sua cultura é determinante (DIETRICH, 2016 p. 108). Nesse
sentido tradução é um processo de trocas e negociação no qual se estabelecem as
relações de poder. Rosvitha Blume e Patrícia Peterle afirmam que a linguagem
Outro exemplo pode ser tirado da forma como as traduções lidam com
os termos Qedeshah (Gn 38,21.22; Dt 23,18) e Qadesh (Dt 23,18; 2Rs
23,7), adjetivos femininos e masculinos da mesma raiz da palavra
traduzida como “santo”, “consagrado”, que aparece por exemplo, em
Lv 19,2, em que Javé diz: “sede santos [Qedoshim] porque eu Javé,
sou santo [Qadosh]”. Então Qedeshah e Qadesh deveriam ser
traduzidos como “santa”, ou “mulher consagrada”, “santo” ou “homem
consagrado”. E, provavelmente, eram assim considerados, pois eram
sacerdotisa e sacerdote de culto às divindades da fertilidade, muito
comuns e certamente muito concorridos, até as reformas do rei Josias.
Mas as traduções modernas geralmente traduzem essas palavras
como “prostitutas” ou “rameiras”, para o feminino e “prostituto” ou
“sodomita” para o masculino. Essas traduções também provavelmente
superam o estranhamento causado por pessoas caracterizadas desta
forma dentro de Israel, seguindo a LXX, que tem πόρνη, pórnê,
prostituta; e πορνεύων, pornéuôn, prostituto; (o grego adiciona ao
versículo a condenação ainda de τελεσφόρος, telesfóros e
τελισκόμενος, teliskómenos, provavelmente mulheres e homens
iniciados em cultos relacionados à fertilidade), ou seguem a Vulgata,
que traz meretrix, e scortator, meretriz, prostituto. (DIETRICH, 2016,
p. 121 - 122)
Como disse Michel de Certeau: “uma leitura do passado, por mais controlada
que seja pela análise dos documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente”
(CERTEAU, 1975, p. 34). Os historiadores não podem se desvencilhar de seu
contexto quando escrevem acerca do passado, pois sua escrita é guiada por sua
interpretação do passado que é construída no presente. Assim, mesmo com diversas
pesquisas que buscam desconstruir ideias equivocadas sobre a existência da
“prostituição sagrada”, os estudos sobre o assunto ainda sofrem influência dos textos
bíblicos, em boa parte responsáveis (ao lado dos relatos de Heródoto) pela
manutenção dessa ideia durante séculos.
Isso se dá pela grande influência que o pensamento grego e o cristianismo
possuem em nossa forma de pensar e produzir conhecimento, especialmente quando
pensamos em papéis de gênero e o lugar das mulheres na história. Segundo Joan
Scott, a história é responsável pela produção das diferenças sexuais, pois uma
narrativa nunca é neutra, e o gênero, que é construção cultural das diferenças sexuais,
pode ser utilizado para analisar a construção e a consolidação de um poder (SCOTT,
1990, p. 10).
É claro que, ao estarmos a par de tais influências, é possível problematizar a
forma como enxergamos determinados assuntos e sob que perspectiva pensamos
sobre eles. Por isso é importante apontar a existências dessas incongruências dentro
da pesquisa histórica e buscar apoio nos estudos de gênero, por exemplo.
Em outros trechos da bíblia existem menções às qědešas e seus
correspondentes masculinos, os qědeš11. Os textos traduzidos continuam traduzindo
tais termos como prostitutas e prostitutos (ou cão, no caso masculino). Mesmo em
versões como a Bíblia de Estudos Harper Collins–Nova Versão Padrão Revisada, que
possuem as explicações sobre o significado dos termos e sua etimologia, no corpo do
texto, os termos prostituta e prostituto permanecem.
Joan Goodnick Westenholz, após a análise dos trechos que citam as
“prostitutas cultuais” em comparação com fontes de origens sumérias, assírias e
babilônicas, diz que a transformação das mulheres sagradas em prostitutas começa
11
Menções as qědeša e os qědeš são encontradas em: Baruc 6:42-44; Deuteronômio 23:17-18; Oseias
4:14; 1 Reis 14:24; 1 Reis 15:12; 1 Reis 22:46 e 2 Reis 23:7.
com a tradução equivocada dos termos, que pode ter sido opcional para atender a
determinadas intenções dos editores bíblicos. Segundo ela:
A respeito do ato de traduzir, Antoine Berman diz ser necessário que a tradução
não seja "sentida" pelo leitor final. Qualquer estranhamento deve ser suavizado
(BERMAN, 1985, p. 33). No caso das traduções dos termos a respeito das “prostitutas
cultuais”, o que pode ter ocorrido é a tentativa de encaixar essas mulheres em um
papel mais compreensível para os leitores finais por conta da cristianização das
tradições hebraicas (BRAGA, 2007, p. 113). Assim as traduções dos textos podem ter
contribuído para esse movimento, ao passo que o ato de traduzir possui uma
intencionalidade ligada ao objetivo final do texto.
Porém, é necessário ter certa cautela, pois os costumes previstos nas leis
assírias sobre as diferentes classes de mulheres, incluindo as sacerdotisas dos cultos
de fertilidade, podem não se assemelhar à realidade canaanita da qual Tamar fazia
parte. O que devemos questionar é, se mesmo com as pesquisas questionando a ideia
de “prostituição sagrada” e esclarecendo o papel das mulheres dentro das religiões
do Antigo Oriente Próximo, por que a tradução bíblica que chama sacerdotisas de
prostitutas ainda possui uma influência tão presente no imaginário? Por que mesmo
em pesquisas historiográficas ainda se baseiam nessa ideia para falar das mulheres
envolvidas em cultos de fertilidade fora do contexto bíblico?
Como dito anteriormente, nossa cultura ocidental sofre uma grande influência
do pensamento grego e do cristianismo, e isso acabou por ser refletido também na
produção acadêmica. John Setters, inclusive, aponta as proximidades entre os textos
do Antigo Testamento e das produções de Heródoto no que diz respeito à construção
narrativa e à ideia de unidade. Tanto no Antigo Testamento quanto nos relatos de
Heródoto, a lei aparece como elemento fundamental para a compreensão das atitudes
dos homens. Além disso, ambos se baseiam em grande variedade de fontes, tanto
orais como escritas (SETERS, 2008, p. 58-59).
No entanto, para além destas similaridades, é possível perceber a influência do
pensamento grego na interpretação que alguns pensadores judeus, rabinos
conservadores, judeus helenistas e principais pensadores do período patrístico o que,
segundo Eliézer Serra Braga, determina a forma como tais pensadores pensam o
papel da mulher nos textos bíblicos (BRAGA, 2007 p. 33).
O autor John R. Huddlestun, faz uma análise bastante interessante sobre o uso
do véu como elemento identificador de Tamar como prostituta. Para ele, compreende-
se que as prostitutas, no texto bíblico, se adornavam de forma diferente das outras
mulheres, porém, o véu não fazia parte das vestimentas, assim como podemos ver
nos textos assírios que o véu era proibido para prostitutas, escravas e outras mulheres
consideradas “públicas” (HUDDLESTUN, 2001 p. 3-4). Dessa forma, é possível
considerar que o véu de Tamar pudesse ter sido usado para que ela cobrisse sua face
afim de que Judá não a reconhecesse.
O autor faz diversas outras considerações a respeito do véu. Pode ser que
Tamar tivesse o hábito de se velar na casa de Judá, e quando ele a viu na estrada,
sem o véu, não a reconheceu, pois nunca havia visto sua face (HUDDLESTUN, 2001
p. 4).
Mas mesmo não estando trajada como prostituta, Judá a confundiu com uma,
pois lhe ofereceu pagamento em troca de serviços sexuais. Isso faz sentido, uma vez
que que para os hebreus, as mulheres pertencem ao âmbito doméstico, e como Tamar
estava à beira da estrada, só poderia se tratar de uma prostituta. Assim, não é o véu
que a identifica como prostituta para Judá, mas sim o fato ser mulher e estar na
entrada da cidade, fora do ambiente doméstico.
O autor ainda traz a visão de pensadores cristãos sobre tal narrativa. Segundo
ele, Lutero não associa o véu à prostituição, antes explica que Tamar deixou as vestes
de sua viuvez e assumiu “vestes festivas” por conta da época do ano 12, ou seja, além
do véu, se enfeitou com jóias para seduzir Judá. O fato de ele não a ter reconhecido
pode ter sido uma intervenção de Deus, para que Perez nascesse e desse origem à
linhagem de David, a qual pertence Jesus (HUDDLESTUN, 2001, p. 7).
Já Calvino, compara Tamar com as prostitutas de seu tempo que, para ele, não
se importavam em esconder sua identidade. Ele diz que Tamar ao menos usou véu
12
Nota da autora: Judá vai à Timna no período da tosquia de ovelhas, o que indica que Tamar poderia
estar envolvida em rituais de fertilidade, ou apenas ter se disfarçado como sacerdotisa de um desses
cultos.
para esconder seu pecado (fornicação) e sua vergonha. Ele também afirma que Tamar
entendia que a fornicação era algo imundo, condenado até mesmo por aqueles que a
praticavam. Quanto ao fato de Judá não a reconhecer, ele atribui a interferência de
Deus (HUDDLESTUN, 2001 p. 8).
Tanto em Lutero quanto em Calvino é possível compreender como a
interpretação cristã desse relato pode se adaptar à intenção do discurso de cada um.
Em nenhum momento eles assumem a possibilidade de Tamar ser uma “prostituta
cultual” como o texto bíblico traduzido diz, mas também não sabemos como eles
interpretaram e traduziram o termo qědeša.
Vale nos atentarmos para que tais interpretações podem ser analisadas sob a
perspectiva de gênero, pois a prostituição e a fornicação eram coisas condenáveis
para os hebreus, porém, em nenhum momento se questiona a postura de Judá,
sobrando apenas para Tamar o estigma de meretriz, mesmo quando a palavra para
designá-la no texto original seja completamente diferente.
Assim, o que percebemos é um esforço para justificar as ações de Judá, que
além de não cumprir com a promessa e a tradição de entregar Tamar como esposa
para seu filho, ainda se envolveu em um ato de fornicação. Restando para Tamar a
responsabilidade de elaborar um plano para poder gerar um herdeiro e garantir seus
direitos dentro da comunidade hebraica, na qual ela havia entrado ao se casar com o
filho mais velho de Judá. Ao tornar-se viúva e ver que o sogro não lhe entregaria o
outro filho, ela se vê obrigada a tomar tal atitude, do contrário, ficaria desamparada
pela família de seu falecido marido.
Assim vemos que tais interpretações se dão sob valores que se enraizaram de
tal forma em nossa cultura que a imagem da cidade de Babilônia e da terra de Canaã
ficaram cristalizadas como antros de promiscuidade e blasfêmia. Mesmo que nos
textos originais haja certa admiração dos hebreus pela cultura e sabedoria babilônia
e das trocas culturais com os canaanitas, a imagem construída posteriormente pelo
cristianismo e pela falta de acesso popular aos textos originais da bíblia, perdurou (e
ainda perdura) na mente de muitos.
Devemos considerar também que, como no caso de Calvino, alguns autores
(tradutores e/ou editores) acabam por usar a imagem de prostituição de seu tempo,
além de sua própria ideia de qual é o lugar da mulher na sociedade, para pensar a
prática de Tamar acabando, por vezes, em um anacronismo que reflete seu
pensamento em uma narrativa antiga.
Considerações Finais
Fontes:
MEEKS, Wayne A. (gen. ed.) The HarperCollins study Bible: new revised Standard
version, with the apocraphal/ deuterocanonical books. San Francisco: Harper San
Francisco, 1993.
Referências:
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Stories in the Hebrew Bible. Louisville: Westminster John Knox Press, 1997.
________, WOLKSTEIN, Diane. Inanna, queen of heaven and earth: her stories and
hymns from Sumer. New York: Harper and Row Publishers, 1983.
________, The Sacred Marriage Texts. In: PRITCHARD, James B. Ancient Near
Eastern texts relating to the Old Testament. Princeton University Press, 1969.
SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil para a análise histórica. Recife: SOS:
Corpo e Cidadania, 1990.