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NAPOLEÃO BONAPARTE
IMPERADOR DOS FRANCESES
DUZENTOS ANOS 1804 - 2004
Napoleão repete, na sua gesta, o caráter superlativo das realidades e das idéias
políticas na Europa continental, fato que levou a que a sua influência fosse mais decisiva
sobre as nações latino-americanas do que a temperada experiência inglesa de monarquia
constitucional. A propósito dessa força das novidades históricas no mundo germano-
românico, escreveu Guizot: “Nos Estados do Continente, cada sistema, cada princípio,
tendo desfrutado do seu momento e dominado da maneira mais completa, mais exclusiva, o
seu desenvolvimento produziu-se em muita maior escala, com mais grandeza e brilho. A
realeza e a aristocracia feudal, por exemplo, comportaram-se na cena continental com mais
audácia, amplitude e liberdade. Todos os experimentos políticos, chamemo-los assim,
foram mais exteriores e mais acabados. Daí resultou que as idéias políticas – falo das idéias
gerais e não do bom senso aplicado à direção dos negócios – elevaram-se a maior altura e
desenvolveram-se com maior vigor racional. Cada sistema, pelo fato de ter-se apresentado,
de certa forma, sozinho e de ter permanecido durante muito tempo em cena, pôde ser
considerado no seu conjunto, pôde-se remontar aos princípios, descer até as últimas
conseqüências e estabelecer plenamente a sua teoria” [Guizot, 1864: 383-384].
Revolução francesa; sem ela não conceberíamos nem Beethoven nem Napoleão”
[Nietzsche, 1967: 571-573].
Duas guerras mundiais e a formação, no final do século XX, dos grandes Blocos
econômicos e estratégicos, certamente fazem-nos pensar na atualidade de um estadista que
imaginou a política como alargamento revolucionário de fronteiras e que entendia o seu
Império como uma única realidade na Europa por ele unificada. Não é por acaso que a
bibliografia hoje existente sobre Napoleão ultrapasse de cem mil o número de livros e
ensaios escritos ao seu respeito, tornando praticamente impossível compulsar sequer uma
mínima parte do que se escreveu.
É meu propósito, neste artigo, apresentar a vida e a obra do primeiro Imperador dos
Franceses sob três ângulos, sem a menor pretensão de abarcar de forma exaustiva o que se
poderia estudar sobre ele. Os três aspectos propostos são os seguintes: o Homem, o General
e o Imperador. Destacarei, a seguir, três abordagens críticas do pensamento político de
Napoleão, as ensejadas, nas primeiras décadas do século XIX, pela obra de Jacques Necker,
da sua filha Madame de Staël e de Benjamin Constant, que constituem, hoje, junto com os
escritos de Guizot, “o mais valioso que houve na política do Continente” nesse século, nas
palavras de Ortega y Gasset [apud Díez, 1984: 19].
I – O HOMEM
Destacarei, de entrada, quatro itens que me parecem fundamentais para ilustrar a
personalidade de Napoleão: as suas relações familiares, a sua posição em face da religião, a
sua atitude crítica em relação à society parisiense e o seu sentido da honra. Tratarei em
quinto lugar, de forma muito resumida, acerca das etapas da sua formação intelectual.
1) Relações familiares
Napoleão devotava grande dedicação à vida familiar. Nela sobressai, antes de tudo,
a paixão por uma viúva fidalga, Josefina viscondessa de Beauharnais, o seu grande amor,
de quem faria a primeira Imperatriz da França e de quem, por razões de Estado (não teve
filhos com ela), divorciou-se em 1810 para casar com a arquiduquesa Maria Luísa da
Áustria, que seria mãe do filho de Imperador, o chamado Rei de Roma. Eis o trecho de uma
carta endereçada pelo futuro Imperador à sua namorada, quando ele ainda era um jovem
general comandante das forças do Diretório em Paris: “Acordo-me inundado de ti. Teu
retrato e a embriagadora noite de ontem não deram descanso aos meus sentidos: doce e
incomparável Josefina, que influência estranha exerces sobre meu coração! Se te aborreces,
se te vejo triste e inquieta, minha alma parte-se de dor, e não há sossego para o teu amigo; e
eu, por acaso, poderia tê-lo quando, entregando-me ao sentimento profundo que me
domina, sorvo de teus lábios, de teu coração a chama que me queima? Ah, foi nesta noite
que notei que o teu retrato não é tu mesma. Partes ao meio-dia, ver-te-ei dentro de três
horas. Esperando-te, mio dolce amor, um milhão de beijos, mas não m’os dês, pois eles
queimam meu sangue” [Lévy, 1943: 55].
A sedutora Josefina, quatro anos mais velha que Bonaparte, com aquele seu
preguiçoso e insinuante sotaque antilhano, tinha-se aproximado dele quando a estrela do
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jovem oficial começou a brilhar. O general corso não era, certamente, o tipo de latin lover
que seduziria as damas nos elegantes salões parisienses. Retraído, magricelo, era chamado
de “gato com botas” pelas meninas vizinhas da guarnição de la Fère (onde iniciou os seus
trabalhos como segundo-tenente de artilharia). O jovem Bonaparte, em contrapartida, não
tinha grandes projetos românticos, a julgar por estas palavras escritas no seu Diálogo sobre
o amor: “Acho o amor nocivo à sociedade, à felicidade individual dos homens. Enfim,
creio que o amor faz mais mal do que bem” [apud Lévy, 1943: 18]. Palavras proféticas que
irão marcar a triste senda de amores conjugais não correspondidos do futuro Imperador.
Josefina, nascida na Ilha Martinica, lia as cartas e era, no dizer de um dos seus
biógrafos, “apaixonada devota do sortilégio” [Belloc, 1958: 97-98]. A sedutora morena
previu o sucesso do desajeitado oficial, mas queria dele não propriamente a exclusividade
da paixão, mas um lugar seguro na instável sociedade da época, a fim de poder continuar a
desfrutar o luxo dos salões parisienses. O general Bonaparte, ao contrário, invejava, já a
esta altura da sua vida, a sorte de quem achava a meia-laranja para formar uma família e
caiu perdido de amores por Josefina, com quem casou em março de 1796. Essa
discrepância de expectativas trouxe-lhe muitos aborrecimentos, na medida em que,
comandante dos exércitos republicanos na Itália, e posteriormente Imperador à testa da
Grande Armée na Europa Central, teve de se ausentar por longo tempo e começou a
perceber primeiro a falta de dedicação da sua esposa e depois as suas infidelidades.
com grande amabilidade pela saúde da minha imperatriz. Todos os dias, ele e o rei da
Prússia jantam comigo (...). A rainha da Prússia jantou ontem comigo. Tive que lutar
bravamente, pois ela queria obrigar-me a fazer novas concessões ao marido; portei-me com
grande elegância, mas defendi minha política. Ela é muito amável. Quando você ler esta
carta, já estará assinada a paz com a Prússia e a Rússia”. Em outra missiva do mesmo
período, Napoleão escreve: “Minha amiga, cheguei ontem às cinco horas da tarde em
Dresde, sentindo-me muito bem, embora tivesse viajado cem horas sem sair da carruagem.
Estou aqui, hospedado pelo rei de Saxe, com quem me sinto imensamente contente. Assim
sendo, acho-me metade do caminho mais próximo de você. Talvez aconteça que numa
destas belas noites eu irrompa aí em Saint-Cloud, como um ciumento; estou prevenindo-
a...”. Algum tempo depois, em outubro de 1808, o Imperador escrevia: “Minha amiga,
escrevo-lhe pouco porque estou muito ocupado. Tenho conferências durante todo o dia, não
consigo melhorar-me do defluxo. Entretanto, tudo vai bem. Estou satisfeito com Alexandre,
e ele o deve estar comigo: se ele fosse mulher creio que o tornaria meu amante... Dentro em
pouco, achar-me-ei aí em sua casa. Continue cuidando da saúde, de modo que eu a encontre
forte e jovem [apud Lévy, 1943: 92-93].
A retribuição que recebeu deles foi, no entanto, problemática. Com exceção da mãe
(que conservou os seus costumes ancestrais de uma vida austera e que nunca chegou a falar
corretamente o francês, para desespero da Corte Imperial), os irmãos de Napoleão
constituíram o que chamaríamos literalmente hoje de uma família do barulho.
Orçamentívoros, irresponsáveis, indolentes, ingratos. Nenhum deles esteve à altura das
responsabilidades que o Imperador lhes confiara e no final, quando foi banido do poder e
ficou preso na Ilha de Elba e depois deportado em Santa Helena após as jornadas dos Cem
Dias e de Waterloo, todos o abandonaram. A única exceção dessa fraternal traição foi
Paulina, que o visitou, junto com a mãe, na Ilha de Elba. A respeito, escreve Artur Lévy:
“A infelicidade dos irmãos e irmãs de Napoleão vem de uma fonte que lhes era comum:
todos eles se acreditavam reis por direito divino, e todas elas se julgavam rainhas de sangue
azul. O estado de espírito de todos é bem sintetizado numa frase do próprio Napoleão, dita
a Burrienne, quando o imperador se queixava das recriminações dos seus: Quem der
ouvidos a eles, acreditará que abocanhei a herança deixada por nosso pai. E essas
recriminações não eram passageiras. Eram constantes, intoleravelmente persistentes,
submetendo assim à prova mais irritante uma generosidade fraternal que levara um
contemporâneo a dizer: Napoleão tinha mais dificuldade em governar sua família do que o
império. Na verdade, era-lhe extremamente difícil contentar todo mundo: Luciano
reclamava do exílio que nada podia ser; José queixava-se de ser seu rei; Luís fazia-se de
rei-mártir, destronado de direitos dos quais voluntariamente abdicara, e Jerônimo
declarava-se infeliz por dispor de um orçamento muito limitado para seus gastos
alucinados. Se Elisa considerava seu ducado bem mesquinho para sua natureza orgulhosa,
Carolina aspirava a coisa mais alta que seu reino de Nápoles, e enfim Paulina sofria por não
poder dar vazão aos seus caprichos de toda espécie, enquanto a própria mãe do imperador
se lamentava de não poder fazer tanta economia quanto desejava” [Lévy, 1943:141].
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Bonaparte e Josefina
trata-se de uma religião galicana, quer dizer, submetida ao domínio absoluto do Poder
Imperial. Essa é a interpretação que Napoleão tem da Concordata assinada com Roma. “É
necessário que o clero seja, como a magistratura, um instrumento do reino”, frisava o
Imperador [apud Larousse, 2002: 113].
Passados os anos, quando se aproximava já o fim dos seus dias em Santa Helena,
Napoleão apresentará uma concepção mais aberta do fenômeno religioso (numa espécie de
meio-caminho entre o otimismo leibniziano, o imanentismo espinosano e o pietismo
kantiano), como testemunha Thiers na sua obra Histoire du Consulat et de l’Empire: “Na
medida em que o tédio e a inação destruíam a sua saúde, ele via a morte se aproximar e se
ocupava mais freqüentemente de filosofia e de religião. Deus, dizia, é visível em todas as
partes do Universo e são bem cegos ou bem fracos os olhos que não percebem isso. Do meu
ponto de vista, eu o descubro na natureza inteira, sinto-me sob a sua mão todo-poderosa e
não busco duvidar da sua existência, pois eu não tenho medo d’Ele. Creio que Ele é tão
indulgente quanto grande e estou convencido de que, tendo regressado ao seu vasto seio,
encontraremos aí confirmados todos os pressentimentos da consciência humana e que aí
será bom ou ruim o que os espíritos verdadeiramente esclarecidos tiverem considerado bom
ou ruim na terra. Deixo de lado os erros dos povos, que se caracterizam pelo fato de que o
erro de um não é o erro de outro; mas aquilo que os grandes espíritos de todas as nações
tiverem declarado bom ou mau, ficará como tal no seio de Deus. Não duvido disso e, apesar
dos meus erros, aproximo-me tranqüilamente da soberana justiça. Passo a ficar menos
seguro quando entro no domínio das religiões positivas. Aí eu encontro, a cada passo, a
mão do homem e amiúdo ela me ofusca e me choca... Mas é preciso não ceder a este
sentimento, no qual entra muito de orgulho humano. Se deixarmos de lado as tradições
nacionais com as quais todos os povos têm complicado a religião, encontramos neles a
noção de Deus, a noção de bem e de mal firmemente professados, e isso é o essencial.
Quanto a mim, tenho estado nas mesquitas, tenho visto ali homens ajoelhados diante do
poder eterno e apesar de que meus hábitos nacionais fossem às vezes melindrados, no
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bibliotecas. Nos gabinetes dos sábios, vêm-se belas criaturas. Entre todos os lugares da
terra é somente aqui que elas merecem ter o governo; também os homens daqui são uns
loucos, não pensam senão nelas e não vivem senão para e por elas. (...) Tudo está
tranqüilo... Este grande povo entrega-se ao prazer: as danças, os espetáculos e as mulheres
que aqui são as mais belas do mundo tornam-se a grande preocupação. A abastança, o luxo,
o bom tom, tudo voltou; não se recorda mais o terror senão como um sonho. Apresentaram
hoje uma peça nova chamada Fabins, que mandarei a você assim que for publicada. Vive-
se aqui muito bem, com muita preocupação de alegria; dir-se-ia que cada um procura
descontar o tempo de sofrimento e que a incerteza do futuro leva a nada poupar dos
prazeres do presente. (...) Quanto a mim, estou satisfeito; não me falta senão poder entrar
nalgum combate; é preciso que o guerreiro conquiste os louros ou morra no campo da
glória. Esta cidade é sempre a mesma: tudo para o prazer, para as mulheres, os espetáculos,
os bailes, os passeios, os ateliês dos artistas” [Lévy, 1943: 35].
4) Sentido da honra
Dame, para assistir à cerimônia, a fim de que o reles tabelião pudesse ver com os próprios
olhos o lugar onde o generalzinho sem futuro tinha colocado a sua antiga consulente.
Napoleão – o homem
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As obras escritas por Napoleão são mais numerosas do que se imagina. Escreveu
muito, antes de assumir o poder, escreveu muito também estando nele, e ditou muito
quando saiu da atividade política. Os seus escritos cobrem uma variadíssima gama de
assuntos, indo desde a história, passando pelas ciências naturais, a política, a crítica teatral,
a teoria do Estado e do direito público, a crônica, a agricultura, as relações internacionais, a
historiografia militar, a educação, as matemáticas, a religião, o romance e o conto, e
chegando até os estudos estratégicos e de táctica guerreira que são, evidentemente, os que
mais se destacam. O estilo do Imperador era claro, simples, mas pouco elaborado em
decorrência, provavelmente, das circunstâncias agitadas por ele vividas, sendo o lugar de
trabalho não propriamente o elegante despacho imperial em Paris, mas a improvisada tenda
no front.
(Auxonne, 1788), Dissertação sobre a autoridade real (Auxonne, 1788), Memória sobre a
Córsega (1788), História da Córsega (1788), Carta acerca do juramento constitucional
dos sacerdotes (1790), Manifesto do corpo municipal de Ajaccio (1790), Cartas sobre a
Córsega dirigidas ao Abade Raynal (1790), Dissertação sobre o amor (Valence, 1791),
Discurso sobre esta questão proposta em 1791 pela Academia de Lyon: “Determinar as
verdades e os sentimentos que é necessário inculcar mais nos homens para a sua
felicidade” (Lyon, 1791), Plano de organização das Milícias corsas (1792), Informe
acerca da necessidade de conquistar as ilhas da Madalena (1792), Projeto para a defesa
do golfo de Ajaccio, para a defesa de Mortella, etc. (1792-1793), Memória ao ministro da
guerra acerca do plano de ataque de Toulon (Ollioules, 1793), Souper de Beaucaire
(Avignon, 1793), Petição à Convenção Nacional (1793), Planos para a segunda operação
preparatória para o início da campanha do Piemonte (Nice, 1794), Compilação de
matérias históricas e militares do exército da Itália, ou Memória das operações deste
exército (Colmar, 1794), Compilação sobre a história (1794-1796), Memória e itens
diversos relativos à colocação em estado de defesa das costas do Mediterrâneo (Marselha,
1794), Disposições da força armada para o seu serviço em Paris (1795), Memória sobre o
aperfeiçoamento da artilharia turca (1795), Nota sobre os meios de aumentar o poder da
Turquia contra a invasão das monarquias européias (1795), Projeto para fechar com
uma muralha dentada os fortes que dominam Marselha (1795), Entrevista de Bonaparte
com muitos muftis e imãs no interior da grande pirâmide chamada de Queóps (1798),
Comunicado da municipalidade de Ajaccio a Paoli (1799), Boletins da campanha de
Marengo (1800), Allocuzione fatta dal primo console, dirigida aos sacerdotes de Milão
(1800), Coleção geral e completa das cartas, proclamas, etc., de Napoleão o Grande,
publicadas no Moniteur (Leipzig, 1808-1813, 2 volumes), Ordens-do-dia do exército da
Alemanha (1809), Compilação de manifestos, proclamas, etc., extraídos do Moniteur
(Londres, 1810), Boletins da Grande Armée aparecidos no Moniteur (Paris, 1812-1814),
Cartas escritas em Longwood, ou Cartas do Cabo da Boa Esperança (1817), Confissões
do imperador Napoleão (Londres, 1818), Correspondência inédita, oficial e confidencial
de Napoleão Bonaparte com as cortes estrangeiras (organizada pelo general Beauvais,
Paris, 1819-1821 7 volumes), Correspondência de Bernardotte com Napoleão, de 1810
até 1814 (Paris, 1819), Correspondência inédita de Carnot com Napoleão durante os Cem
Dias (Paris, 1819), Conselhos do Imperador ao seu filho (1821), Compêndio de peças
autênticas acerca do cativo de Santa Helena, de memórias e documentos escritos ou
ditados pelo imperador Napoleão (Paris, 1821-1825, 12 volumes), Testamento de
Napoleão (1822), Napoleão no exílio ou O Eco de Santa Helena (traduzido do inglês por
Mme. Collet, Paris, 1822), Memórias para servir à história da França sob Napoleão,
escritas em Santa Helena pelos generais que compartilharam do seu cativeiro e
publicadas de acordo aos manuscritos corrigidos pela mão de Napoleão (Paris, 1823, 8
volumes), Os Bourbons em 1815; Manuscrito da Ilha de Elba ditado por Napoleão e
publicado pelo general-conde Bertrand (Bruxelas, 1825), Discursos de Napoleão
Bonaparte, oficial de artilharia, escritos em 1791 (Paris, 1826), Acerca da importância
das praças fortes (1826), Máximas de guerra de Napoleão (Paris, 1830), Opiniões de
Napoleão sobre diversos assuntos de política e de administração (obra organizada por
Pelet de la Lozère, Paris, 1833), Napoleão, compilação em ordem cronológica de suas
cartas, proclamas, etc. (organizada por Kermoysan, Paris, 1833-1853, 3 volumes),
Compêndio das guerras de César (Estrasburgo, 1836), Correspondência e relatórios de J.
Fiévée com Bonaparte (Paris, 1836, 3 volumes), Napoleão, as suas opiniões e
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II – O GENERAL
Bonaparte foi, antes de tudo, um convicto defensor da Revolução Francesa.
Considerava que a grande gesta tinha marcado o início para a libertação definitiva da sua
pequena pátria, a Córsega, do jugo dos Bourbons. A sua fé nos princípios inspiradores da
Revolução era inamovível. Essa atitude o acompanhou já desde a sua formação na Escola
Militar de Paris. Como frisa um de seus biógrafos, “Era grande o ardor de Napoleão pela
Revolução. Bonaparte também secretariava o clube da Sociedade dos Amigos da
Constituição, cujos membros conservavam durante muito tempo a recordação de seus
calorosos e vibrantes discursos. Suas opiniões avançadas o tornavam mal visto pelos chefes
e camaradas que continuavam fiéis ao antigo estado de coisas” [Lévy, 1943: 19].
Desenvolverei três itens: Horror ao desgoverno e ao populismo, Lineamentos gerais da
estratégia de Bonaparte e As fontes da estratégia napoleônica.
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Bonaparte General
Foi mais ou menos o que o até então desconhecido general fez na noite de 13 para
14 vindimiário (5 a 6 de outubro de 1795): chamado pelo acuado Barras para defender a
Convenção contra mais um levante popular patrocinado pelos monarquistas, na qualidade
de vice-comandante do exército, Napoleão responde: “Aceito, mas previno-o que,
desembainhada a minha espada, eu só a guardarei depois de restabelecer a ordem”. O
jovem oficial de artilharia desestruturou o movimento revolucionário, posicionando
estrategicamente os canhões nas principais vias de acesso à sede do governo. Após a
primeira descarga, os revoltosos fugiram em disparada, sabendo que havia um comandante
decidido. No dia seguinte, o jovem de 26 anos, agraciado com a patente de general de
divisão, assim contava ao seu irmão José a ação da noite anterior: “Enfim, tudo terminou; o
meu primeiro gesto é pensar em lhe dar minhas notícias. A convenção ordenou o
desarmamento da seção Lepeletier, e esta repeliu as tropas (...). A Convenção nomeou
Barrras para comandar a força armada; os Comitês me nomearam para o sub-comando.
Nossas tropas tomaram posição, e os inimigos vieram atacar-nos nas Tulherias (...).
Desarmamos as seções e tudo está calmo. Como de costume, não recebi nenhum ferimento”
[apud Lévy, 1943: 48].
A Guerra dos Sete Anos (1756-1763) fez com que se modernizasse de maneira
visível a estratégia e a organização do Exército Francês. A principal mudança técnica
ocorreu por força da melhora significativa da capacidade de fogo da artilharia. Outras
reformas viriam na trilha desse avanço técnico, como a referente à quebra da uniformidade
de ordem dos batalhões no campo de batalha. Se os infantes podiam contar com uma mais
eficaz e ágil proteção da artilharia, não era necessário manter a ordem unida e em certa
medida estática apregoada pelas doutrinas antigas. Era possível imprimir aos corpos de
tropa mais agilidade de movimentos, mais agressividade e maior ousadia. Nas campanhas
que se efetivaram ao ensejo da Revolução Francesa e, ulteriormente com o advento do
Império, esses avanços foram aperfeiçoados e neles Napoleão teve um papel importante.
Os autores que inspiraram a estratégia de Napoleão foram o barão du Teil (sob cujo
comando o jovem oficial estagiou em Auxonne), Guibert e Bourcet. Deles o General tirou o
conceito fundamental de concentração de esforços da sua estratégia, como frisa com
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III – O IMPERADOR
Napoleão, como Júlio de Castilhos ou Getúlio Vargas, não foi um teórico da
política. Foi mais um político pragmático. Como frisa Touchard [1972: 366], “o Império é
uma época de ação, não de doutrina. Napoleão detesta os ideólogos, e atribui à ideologia a
responsabilidade por todas as desgraças sofridas pela França”. O Imperador considerava a
ideologia “como essa tenebrosa metafísica que, ao procurar com sutileza as causas
primeiras, quer fundar sobre essas bases a legislação dos povos, em lugar de adequar as leis
ao conhecimento do coração humano e às lições da História” [apud Touchard, 1972: 366-
367]. Daí por que, diante da necessidade de caracterizar a política napoleônica, devemos
prestar atenção aos mecanismos mediante os quais ele pretendeu consolidar, de forma
prática, a sua obra. Se bem é certo que o Imperador dos Franceses rejeitava a teoria
abstrata, dava grande valor, no entanto, ao sustentáculo cultural que, do ângulo da
imaginação popular, dava alicerce à política real.
Romantismo, irão fazer uma crítica radical aos excessos dos philosophes do século XVIII
como Madame de Staël, Royer-Collard, Constant de Rebecque, Guizot, etc.
1) O Conselho de Estado
Valha a pena salientar, aqui, que Napoleão tinha lido os escritos de Jacques Necker
(1732-1804), que foi o último ministro de Finanças de Luís XVI. O jovem oficial tinha se
dirigido ao ministro para que levasse em consideração as peculiares condições da Córsega,
na formulação da política econômica do Reino, poucos anos antes de eclodirem os
acontecimentos de 1789. Necker, aliás, tinha apresentado ao Soberano, na véspera da
Revolução, um plano de salvação da França, alicerçado na iniciativa que o Monarca deveria
decididamente assumir para garantir o abastecimento de gêneros de primeira necessidade
ao povo (impedindo a especulação que grassou no final do Ancien Regime, fazendo
explodir as tensões sociais) e instaurar a Monarquia Representativa, sem contudo ceder às
chantagens dos mais exaltados. O projeto de Monarquia Moderada de Necker talvez tenha
servido de ponto de meditação para Bonaparte. O jovem general terminou concluindo que
somente uma Monarquia salvaria a França. O rousseauismo de Bonaparte levou-o a pensar,
contudo, como vimos, numa Monarquia absoluta. De qualquer forma, os escritos do ex-
ministro de Luís XVI eram conhecidos pelo jovem general. Seis obras sintetizavam o
pensamento de Necker: Traité de l’Administration des Finances de France (1784), De
l’Administration de Monsieur Necker par lui-même (1791), Du pouvoir exécutif dans les
grands États (1792), Réflexions offertes à la Nation française (1789), Cours de moral
religieuse (1800) e Dernières vues de politique et de finances (1802).
É curioso notar que Napoleão entendia o seu Sistema num contexto teodiceico que
funcionava mais ou menos assim: de forma semelhante a como Deus está presente no
cosmo newtoniano através do espaço absoluto, que era definido pelo físico inglês como
sensorium Dei, da mesma forma, no universo político, tudo gira ao redor do Imperador.
Napoleão ficou muito chateado com o seu mestre Laplace, porque este não reconhecia a
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O papel legislativo do Conselho era assim descrito pelo auditor Luís Comenin, em
1810: “imensa fábrica de pareceres, de interpretações, de decretos e de leis disfarçadas sob
a forma de decretos e de regulamentos da administração pública”. Comenin refere-se à
prática corriqueira no Império de regulamentar por decreto as matérias que, pela sua
natureza, deveriam ter sido objeto de legislação. A atividade legislativa do Conselho
abarcava não só a preparação dos cinco Códigos e das grandes leis sobre a organização
administrativa, financeira e judiciária, mas também lhe concernia a elaboração de alguns
senatus consultus, de numerosas leis de interesse local, de regulamentos, de decretos, etc. A
única matéria do Conselho de Estado que não estava sob sua jurisdição era a elaboração de
tratados com outras Nações. Alguns membros do Conselho eram encarregados de
apresentar os projetos de lei aos Corpos Legislativos e ao Tribunado que, sem deliberar,
deveriam votar a favor ou contra. Convenhamos que pela forma vertical em que se dava a
provisão de vagas nos Corpos Legislativos e no Tribunado, praticamente em poder do
Imperador, o Soberano terminava vendo aprovados os projetos que lhe interessassem. A
essência da crítica de Necker ao modelo napoleônico será, como veremos, essa.
2) A representação política
4) A Universidade
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Como destaca Guy Neave, “O modelo napoleônico é um dos exemplos mais antigos
de utilização, por parte do Estado, da Universidade como instrumento de modernização da
sociedade, através de um estreito controle financeiro da instituição e, também, mediante as
nomeações e uma legislação que garantia a distribuição eqüitativa de recursos nacionais no
conjunto do território. Sob a sua forma clássica, a Universidade napoleônica é o
instrumento de afirmação de uma identidade nacional própria, fundada nos princípios do
mérito e de uma igualdade formal, princípios mantidos por uma poderosa administração
nacional” [Neave, 1998: 1]. Esse modelo, casado com o herdado das reformas pombalinas,
passou a inspirar o funcionamento do ensino no Brasil, bem como em outros países como
Espanha, Itália, Argentina e os pertencentes à África francôfona.
coroado Imperador dos Franceses, Napoleão quis se tornar o Soberano da Europa. Era isso
que ele pretendia com o Bloco Continental e com o tratado de Tilsit. Foi isso que levou a
que se mudassem as fronteiras de toda Europa, na fase mais agressiva do imperialismo
napoleônico, entre 1808 e 1814. Foi isso que condicionou a união dos monarcas europeus
ao redor da empresa de derrubar o novo Imperador.
Quanto ao Poder Legislativo instaurado pela Carta do Ano VIII, Necker considerava
que se tratava de uma instância vazia, pois a iniciativa de propor as leis corresponderia
exclusivamente ao Governo, sendo que as duas Assembléias Políticas (Tribunado e Corpo
Legislativo), somente poderiam votar os projetos de lei sem discussão alguma. A propósito,
escrevia: "Este Poder é atribuído, pela Constituição, a duas assembléias políticas, uma
designada com o nome de Tribunado e a outra com o de Corpo Legislativo. A primeira é
integrada por cem pessoas, com idade mínima de vinte e cinco anos; a segunda por 300
pessoas com idade mínima de trinta anos. O Governo deve propor todas as leis, o
Tribunado as examina, as aceita ou as rejeita. O Corpo Legislativo se pronuncia unicamente
por escrutínios, sem nenhuma discussão pública, nem secreta, sem jamais pedir um
esclarecimento, sem pronunciar palavra. Uma interdição tão especial e da qual não há um
modelo existente, manterá o desejo contínuo de se ver atado por um vergonhoso laço. E a
Nação, que ama ouvir falar dos seus negócios e que tem direito a isso numa República,
apoiaria o voto dos Legisladores desde que as circunstâncias o permitissem. O seu silêncio,
o seu absoluto silêncio, mesmo que ordenado pela Constituição, prenuncia, mais do que
qualquer outro indício, a presença de um dono do poder" [Necker, 1802: I, 50-51].
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Inoperante a representação política, a Nação ficou sem instrumentos para exigir dos
membros do Governo a mínima responsabilidade. Os Cônsules e os seus Ministros viraram
espécies de semideuses, irresponsáveis perante a sociedade e inatingíveis. A França
caminhava na contramão da história dos países onde houve um amadurecimento da
representação, como a Inglaterra. A respeito, Necker escrevia: "A responsabilidade dos
Ministros na Inglaterra é algo real e bem concreto. Mas tudo é diferente na França. Hoje,
tudo caminha em sentido contrário. Nada de Câmara dos Pares, que se imponha pelo seu
caráter hereditário. Nada de assembléia política representativa da Nação. Nada de
Parlamento, enfim, enraizado no espírito e no coração do povo. E além do mais, nenhuma
liberdade para escrever, para opinar sem pautas e sem tutores. Como, com uma tal
distribuição política, com uma desproporção tão marcante entre a autoridade Executiva e
todas as outras autoridades, ousaria alguém acusar um Ministro! Essa seria uma empresa
tão vã quanto perigosa" [Necker, 1802: I, 84].
No meio dessa falta de controles sobre o poder, a burocracia miúda tornou-se todo-
poderosa, à sombra do Primeiro Cônsul e dos seus Ministros. A respeito frisava Necker
[1802: I, 92]: "A autoridade no seu imenso círculo de influência pode ter agentes ordinários
e agentes extraordinários. A carta de um Ministro, de um Prefeito de um Subtenente da
Polícia é suficiente para transformar alguém em agente. E se no exercício de suas funções
estão todos fora do alcance da Justiça, a menos que haja uma especial permissão do
Príncipe, o Governo terá na sua mão homens que tal privilégio tornará suficientemente
audaciosos como para não temer a desonra, graças à sua proteção pela autoridade suprema.
Que instrumentos para optar pela tirania!".
bonapartismo. Povo deveria ser entendido como conjunto de Cidadãos que se distinguem
da minoria que exerce o poder.
Eis a forma em que o nosso autor entendia essas noções, bem como o espírito de
uma Constituição autenticamente republicana: "Apuremos de entrada o sentido da palavra
povo, com a qual se faz o que se quer na língua francesa. Esse termo converte-se em algo
terrível quando o utilizamos para designar as últimas classes da sociedade, os homens
despidos de educação e entregues, sem limitações, à impetuosidade do seu caráter. A
palavra retoma a sua dignidade quando, sinônimo do termo Nação, serve para lembrar a
universalidade dos Cidadãos, e algumas vezes para distingui-los do pequeno número de
homens que compõem o Governo. O espírito de uma Constituição republicana é
indubitavelmente o de atribuir ao povo, assim definido, todos os direitos políticos que pode
exercer ordeiramente. E se for verdade que este não existe dessa forma, se for verdade que
na França a extensão do país ou o caráter dos habitantes se opusessem a isso, a boa fé
exigiria que se chegasse a um acordo sobre o particular, exigiria que deixássemos de dar o
nome de República a uma forma de governo na qual o povo não seria nada, nada mais do
que uma ficção. Esse povo pode ser feliz sob o abrigo exclusivo das leis civis. Pode sê-lo
sem direito político. Pode sê-lo, ainda, segundo os seus mestres, sob um Monarca absoluto,
sob um Ditador, sob uma aristocracia hereditária, sob uma aristocracia burguesa mais ou
menos dissimulada. Mas as honras do nome republicano não mais lhe pertenceriam"
[Necker, 1802: I, 8-9].
Constant, junto com Madame de Staël, foi o precursor dos liberais doutrinários na
França. A sua meditação trilhou o caminho de moderação e de construção das instituições
do governo representativo, que caracterizaria aos demais liberais franceses ao longo do
século XIX. Mas o ponto central da reflexão e da pregação política do nosso autor foi a sua
decisiva defesa da liberdade, num meio, como o da França pós-revolucionária, que custava
a fazer uma opção por esse ideal. Acerca da marca deixada por ele no seio da cultura
política francesa, eis o que, em 1872, escrevia Édouard Laboulaye no prólogo à segunda
edição do Cours de Politique Constitutionnelle de Constant [Laboulaye, 1872: vol I, I-II]:
"Em 1872, como em 1861, sob a República provisória como sob o Império, a
França busca as condições da verdadeira liberdade. Ela quer fundar um governo que
garanta a paz pública, dando uma sólida garantia a todos os interesses, a todos os direitos.
Acerca de todos esses pontos encontrar-se-ão em Benjamin Constant soluções decisivas e
confirmadas por uma experiência de cinqüenta anos. Inimigo do arbítrio e da violência sob
todos os regimes, Benjamin Constant converteu-se no mestre da ciência política para os
amigos da liberdade. O seu Curso de Política Constitucional é o manual mais completo, o
guia mais seguro para o estudante, o publicista, o legislador. Na escola de Benjamin
Constant sempre se aprende. Ninguém pode se afastar impunemente dela. O tempo
consagrou o equilíbrio das suas idéias. Ele cresceu e crescerá ainda mais na estima dos
homens, porque sempre defendeu a justiça, a moderação, a verdade. Nestes tempos
sentimos grande necessidade das suas lições e ouso dizer que jamais a publicação dos seus
escritos chegou em melhor momento. Tomara que possamos aproveitar os seus conselhos e
atingir enfim essa terra prometida que sempre nos escapa!".
Constant, como Madame de Staël, encarnou um outro aspecto que seria caraterístico
dos doutrinários: ser testemunha da razão contra a opressão. O nosso autor apregoava a
utilização, na defesa da liberdade e das luzes, de todos os meios de que a civilização
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poderia fazer uso para multiplicar o alcance da sua voz. No caso concreto dos intelectuais
do século XIX, tratava-se de utilizar sobretudo a imprensa. Eis o que Constant escrevia
acerca da missão esclarecedora que tinham os intelectuais (chamados por ele de
missionários), na defesa da liberdade contra a opressão, na obra De l'esprit de conquête et
de l'usurpation (escrita contra o militarismo bonapartista): "Por mais ativa que seja a
inquisição, quaisquer que sejam as suas precauções, os homens esclarecidos conservam
sempre mil meios para se fazerem entender. O despotismo somente vinga quando a razão se
estiola na sua infância; então ele pode frear o progresso da espécie humana e mantê-la
refém de uma duradoura imbecilidade. Mas, quando a razão é posta em marcha, ela se torna
invencível. Somente há um momento para proscreve-la com sucesso; passado esse
momento, todos os esforços são vãos. Uma vez iniciada a luta intelectual, a opinião se
separa do poder e a verdade clareia em todos os espíritos. Missionários dessa verdade
eterna, se o caminho for interceptado, renovai os esforços, redobrai o zelo. Que a luz
apareça em todas partes! Apagada, que ela brilhe de novo! Afastada, que ela volte! Que ela
se reproduza, se multiplique, se transforme! Que ela seja tão infatigável quanto a
perseguição! Que uns marchem com coragem! Que outros se introduzam com habilidade!
Que a verdade se expanda, tanto apregoada em alto e bom som, quanto repetida em voz
baixa! Que todas as razões se coadunem, que todas as esperanças se reanimem, que todos
trabalhem, que todos sirvam, que todos vigiem. Não há prescrição para as idéias úteis, diz
um homem ilustre (Necker); não há, pois, prescrição para a liberdade" [Constant, 1986:
230-231].
Mas essa missão de ilustrar que os intelectuais têm, deveria estar vinculada,
segundo Constant, à inserção corajosa e real deles na vida pública. O doutrinário não
poderia ser jamais um homem de gabinete, um philosophe trancafiado na sua torre de
marfim. O intelectual que iria transformar as instituições deveria se inserir na corrente do
poder para, a partir dela, civilizá-la. Emerge aqui um aspecto importante, que será retomado
pela tradição doutrinária e que chegará até os nossos dias na meditação de Aron: o ideal de
intelectual engajado. Eis a forma em que Todorov ilustra esse importante aspecto da
meditação constantiniana: "Constant, e aí reside uma das suas grandes originalidades, não
quer renunciar a nenhuma dessas duas vias (a teórica, inspirada em Rousseau e a histórica,
tributária de Montesquieu). A sua reflexão não é deduzida a partir de postulados abstratos;
melhor, tendo ele mesmo participado da vida política, busca teorizar o real vivido. Não
haverá pois lugar nele para essas ficções que Rousseau considerava úteis, o estado de
natureza ou o contrato social. A história é aqui objeto de pensamento, não repertório de
exemplos. Mas não se trata, no entanto, de renunciar aqui aos princípios: só num certo nível
de abstração, pensa Constant, o debate será fecundo; e o seu livro (Principes de Politique)
não é um programa de ação política, mas uma meditação que permite compreender e julgar
o mundo. Não a teoria de um lado e a prática de outro; mas uma prática teorizada, uma
teoria submetida constantemente ao teste do real. Constant não é daqueles que se deixam
inebriar pelas palavras. A história e os princípios intemporais devem pois permanecer
presentes, ambos, o que nem sempre é fácil. Mas algumas das idéias mais fecundas de
Constant, como aquela do seu célebre confronto entre a liberdade dos Antigos e a dos
Modernos, levam consigo esse confronto" [Todorov, 1997b: 6].
Todorov [1997a: 16-17]: "A teoria constantiniana da limitação do poder representa a última
etapa antes do anarquismo. O salário estatal se converte no mínimo possível antes da sua
extinção. Os únicos domínios que o autor reconhece à autoridade pública são a segurança
(exército), a ordem (polícia) e os recursos necessários para pagar essas duas funções vitais
(impostos). O exército e a polícia devem, por sua vez, serem reduzidos, para evitar que se
possam converter no instrumento do abuso estatizante. Constant enxerga no Estado uma
espécie de hidra cujas cabeças, tão logo são cortadas, ressurgem com mais força ainda; o
poder segue por uma pendente natural em direção ao seu alargamento infinito e prejudicial.
A metáfora da torrente é recorrente, contra a qual os diques e os tapumes nunca serão
resistentes o bastante, segundo o autor. Que barreiras suficientemente sólidas podem ser
previstas contra o agigantamento da onda estatizante? Constant responde: a opinião e as
garantias constitucionais. Quanto mais limitada for a parte do poder, mais fácil é o seu
controle, mais eficaz também o peso da opinião. Isso pode parecer ridículo, mas Constant
tem, por assim dizê-lo, fé na força das idéias e, conseqüentemente, do escritor como
eminência parda do poder".
Secretário do "Clube de Salm", o nosso autor converteu-se logo num dos mais
importantes expoentes dessa associação. Constant de Rebecque e os seus amigos aprovaram
o golpe de estado do 18 Fructidor, que deitou por terra a instituição monárquica.
Naturalizou-se francês em virtude da lei de 15 de dezembro de 1790, que reconhecia os
direitos civis aos protestantes expulsos da França por motivos religiosos. Após algumas
tentativas mal sucedidas, o nosso autor elegeu-se para o Corpo Legislativo, tendo
ingressado nele depois do golpe de estado de 18 Brumário, que guindou Bonaparte ao
poder como primeiro Cônsul. Indisposto com este em decorrência da oposição que
Constant lhe fazia dentro do governo, foi demitido em 1802 do cargo de tribuno (ao qual
tinha ascendido recentemente, em virtude da influência de Madame de Staël sobre o novo
regime). O "Clube de Salm" converteu-se, a partir desse momento, no refúgio para os
opositores ao militarismo bonapartista em ascensão. Ali encontraram acolhida atores
35
O "Clube de Salm" terminou sendo fechado por ordem de Napoleão e Constant foi
banido junto com Madame de Staël. O nosso autor tinha publicado recentemente o ensaio
intitulado Suites de la contre-révolution de 1660 en Anglaterre. Constant de Rebecque
partiu com a sua amiga para a Alemanha e fixou residência na corte de Weimar, onde teve
tempo e tranqüilidade suficientes para se ocupar da tradução do Wallenstein de Schiller,
bem como da escrita da obra que o nosso pensador acalentava há anos, De la réligion
considérée dans sa source, ses formes et ses développements. A relação amorosa de
Constant com Madame de Staël terminou quando ela decidiu voltar ao castelo de Coppet,
na Suíça. Em 1808 o nosso autor casou com uma parente do príncipe de Hardenberg,
Charlotte, com a qual viveu tranqüilamente em Gottingen. Do período do seu exílio, que se
estende até 1814 (quando regressou à França em companhia de Bernardotte, de quem tinha
se tornado amigo), datam as seguintes obras: o seu romance Adolphe, duas autobiografias
intituladas Journal Intime e Ma Vie (denominada esta última de Le Cahier rouge), a sátira
que levou o título de Florestan ou le sage des soissons e o ensaio intitulado De l'esprit de
conquête et de l'usurpation dans leurs rapports avec la civilisation européenne, de 1813,
que constitui sem dúvida a sua mais importante obra do período e que conheceu sucesso
imediato ao mostrar, de forma clara, o perigo de aplicar o regime militar para solucionar
questões civis, bem como a impossibilidade de dar alicerces sólidos a um governo fundado
na conquista. Tratava-se, sem dúvida, de uma crítica radical ao bonapartismo, que tinha
semeado a insegurança pela Europa afora, tendo mudado as fronteiras políticas de
praticamente todos os países por onde passaram as tropas napoleônicas.
Pouco antes da sua morte, o nosso autor pronunciou o que talvez tenha sido o seu
último discurso na Câmara, em 13 de setembro desse ano. O tema, a liberdade de imprensa,
resumia os seus ideais liberais, acalentados ao longo da vida. Eis as suas palavras:
"Senhores, seria inútil destacar, perante homens tão esclarecidos quanto vós, a influência
salutar da imprensa. Ela tem sido, ao longo dos últimos dezesseis anos, a nossa única
garantia contra um governo opressor (quando podia sê-lo), ou hipócrita (quando não ousava
ser opressor). Quando numa Câmara, triste produto de eleições fraudulentas, uma minoria
insignificante defendia os direitos da nação, a imprensa, deixada livre por não sei que
fatuidade inconseqüente de um ministro presunçoso, foi a nossa única salvaguarda. Ela
transmitiu as sãs doutrinas até o momento em que a França soube aproveitar uma
imprudência inexplicável para quebrar os grilhões por meio de eleições novas. Enfim,
depois do ultraje de 8 de agosto, a imprensa foi a única que livrou o combate à morte contra
um poder armado de fraude e maquinador do assassinato. E quando os dias de perigo
passaram, foi ainda a imprensa que nos precedeu no campo de batalha, atraindo sobre ela,
antes que sobre nós, a proscrição e a morte. Ao seu apelo, o povo tem-se armado. Seguindo
o povo nós viemos, e a imprensa, o povo e nós temos, em virtude de um triunfo miraculoso,
derrotado a tirania. Se nos dermos conta do que é a imprensa, encontraremos este simples
caminho: ela é a palavra alargada, é o meio de comunicação no seio do grande número,
assim como a palavra é o meio de comunicação entre alguns. Ora, a palavra é o veículo da
inteligência e a inteligência é a soberana do mundo material. Tais vantagens colocam-na
por cima de quaisquer desvantagens. É necessário, sem dúvida, diminuir os possíveis
inconvenientes por meio de boas leis. Mas não se deve jamais sacrificar a imprensa, sem a
qual uma nação não é mais do que um agregado de escravos. Com a imprensa, há desordem
às vezes. Sem a imprensa, sempre há escravidão. E nessa servidão também há desordem,
pois o poder ilimitado vira louco" [apud Larousse, 1865: 1017].
A delimitação da soberania, pensava Constant, não podia ficar nas mãos dos que
exercem o poder, pois a tendência de todo governo constituído é a sua auto-preservação. A
soberania, portanto, deve ser limitada desde fora do poder pela própria sociedade. Ora, a
soberania jamais pode ser entendida como ilimitada. Esse era, para o nosso pensador, o
grande defeito dos que a criticavam no Ancien Régime, identificando-a com o absolutismo
monárquico. Foram atacados os reis, mas não a fonte do despotismo, que radicava na
concepção inadequada de soberania, como algo sem limites. Assim, o absolutismo de um
ou de poucos foi substituído pelo de muitos, sem que mudasse a forma de se entender a
soberania. O nosso autor deixou clara a forma limitada em que entendia a soberania, com as
seguintes palavras: "Numa sociedade fundada na soberania do povo, é evidente que
nenhum indivíduo, classe nenhuma, tem o direito a submeter o resto à sua vontade
particular; mas é falso que a sociedade, no seu conjunto, possua sobre os membros uma
soberania sem limites" [Constant, 1970: 9].
A soberania deve ser limitada em si mesma. Ela abarca parcialmente o ser dos
cidadãos, ficando do lado de fora da mesma o que diga relação à independência e à
existência do indivíduo. Ultrapassar esse limite torna a soberania ilegítima. Nem interessa
se esse abuso é cometido por uma pessoa, um grupo, ou a maioria dos homens na
sociedade. Será sempre algo ilegítimo. A respeito, frisava Constant: "O assentimento da
maioria não basta em todos os casos para legitimar os seus atos; há atos que é impossível
sancionar. Quando uma autoridade pratica atos semelhantes, não importa a fonte da que
pretenda provir, não importa que se chame indivíduo ou nação. Faltar-lhe-ia legitimidade,
mesmo se tratando de toda a nação e havendo um único cidadão oprimido" [Constant,
1970: 10].
se deter nas fronteiras do indivíduo que será, no seu foro íntimo, o único soberano. Uma
parte da sua existência submeter-se-á ao poder público; uma outra permanecerá livre. Não
se pode pois regulamentar a vida em sociedade em nome de um princípio único; o bem-
estar da coletividade não coincide forçosamente com o do indivíduo. O melhor regime não
se satisfaz somente nem com a democracia, nem com o princípio liberal que exige a
proteção do indivíduo. Ele deve reunir essas duas condições: essa é pois a democracia
liberal. O equilíbrio é difícil, e é por isso que o pensamento de Constant permanece sempre
atual: o Estado moderno mesmo é constantemente tentado a usurpar a liberdade dos
indivíduos" [Todorov, 1997b: 7].
Ora, seguindo a lição do seu mestre Necker, Constant considerava que essa função
de caráter moderador deveria corresponder ao monarca. "A monarquia constitucional tem
esse poder neutral na pessoa do chefe do Estado. O verdadeiro interesse de tal chefia não
consiste, de maneira nenhuma, em que um dos poderes destrua o outro, mas em que todos
se apóiem, se entendam e ajam de acordo" [Constant, 1970: 20]. Levando em consideração
a prática da monarquia constitucional na Inglaterra, Constant achava que a função real era,
nesse contexto, eminentemente moderadora. A respeito, escrevia: "Na Inglaterra, não pode
se fazer lei nenhuma sem o concurso da câmara hereditária e da câmara eletiva. Não pode
ser executado ato nenhum sem a assinatura de um ministro, nem ser proferida sentença
nenhuma sem o concurso exclusivo de tribunais independentes. Mas uma vez que se tomou
a precaução de que falo, vejamos de que forma a Constituição inglesa faz uso do poder real
para pôr fim a toda luta perigosa e restabelecer a harmonia entre os demais poderes. Se a
ação do poder executivo resultar perigosa, o rei destitui os ministros. Se a da câmara
hereditária resultar funesta, o rei imprime-lhe uma nova tendência mediante a instituição de
novos pares. Se a da câmara eletiva se apresentar ameaçadora, o rei faz uso de seu veto, ou
dissolve essa câmara. Enfim, se a própria atividade do poder judiciário se mostrar acintosa,
pelo fato de aplicar a atos individuais penas gerais demasiadamente duras, o rei a modera
mediante o exercício de seu direito de graça" [Constant, 1970: 20].
notícia uma impressão de dor que me faria crer nesse instinto do futuro, nessa segunda via
de que falam os Escoceses, e que não pode ser mais do que a luz do sentimento,
independente daquela do raciocínio" [Staël, 1996: 67].
Esse sentimento, que crescia com o passar do tempo, era o de uma tirania à espreita,
que se aproximava passo a passo, galgando progressivamente o poder e ameaçando a
liberdade e a dignidade moral. A respeito, escrevia a nossa autora: "Como jamais consegui
pensar em nenhum interesse político desvinculado do amor à liberdade, cada dia eu estava
mais aflita com a revolução de 18 Brumário, cada dia eu apreendia mais um traço de
arrogância ou de astúcia naquele que se apossava gradualmente do poder. Pensava comigo
mesma para tentar combater, na medida do possível, o sentimento que me dominava, mas
ele renascia sempre, apesar de mim. Eu via se aproximar a tirania ora a passos de lobo, ora
com a cabeça erguida, mas parecia-me que de uma hora para outra estaríamos mais
oprimidos e que bem cedo toda a vida moral estaria encadeada" [Staël, 1996: 75].
o povo. Cada indivíduo goza ao se considerar parte do embuste que é feito a todos” [Staël,
1996: 80].
C - Variável política.- O terror policial foi a grande arma de que Bonaparte fez uso
para quebrar os laços de solidariedade na França e assim governar absolutamente, sem
nenhuma oposição. A nobreza recebeu um recado quando o Imperador mandou fuzilar, sem
prévio aviso, o duque de Enghien, um dos mais tradicionais representantes da aristocracia.
O longo exílio a que foi submetida nossa autora foi, de outro lado, uma advertência aos
intelectuais provenientes da burguesia. Se a filha de um ministro que foi adorado pelo povo
podia ser banida, ninguém no meio intelectual estaria seguro! A respeito do despotismo
sem limites que se abateu sobre os franceses no período napoleônico, escreveu Madame de
Staël: “Os mais pobres como os mais ricos, os mais desconhecidos como os mais célebres,
as mulheres, as crianças, os velhos, os sacerdotes, os conscritos tinham alguma coisa a
pedir ao novo governo e essa alguma coisa era a vida, pois não se tratava de dizer: Eu
renunciarei em favor de um déspota. Mas era necessário se resolver a jamais rever a pátria,
a não achar a menor parte das suas posses, se alguém caísse na desgraça do governo, que
tinha se reservado o direito de traçar a sorte de cada um, ou de quase todos os habitantes da
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França. Essa situação escusa muito a nação, parece-me, mas ela coloca a nu o torpe
comportamento desses magistrados que, para conservar o seu cargo, entregaram o destino
de todos os seus concidadãos ao Primeiro Cônsul” [Staël, 1996: 81].
homens e dinheiro à França, não sentem quase o inconveniente de serem reunidos ao redor
dela. Eles se dão mal, no entanto, pois nada há pior do que perder o nome de nação e, como
os males da Europa são causados por um só homem, é necessário conservar com cuidado
aquilo que pode renascer quando ele já não mais exista” [Staël, 1996: 236]. A nossa autora
era consciente do preço que os seus concidadãos tiveram de pagar para erguer o
monumento ao despotismo napoleônico. A propósito, contava a seguinte anedota: “Alguém
me falou certa vez: Eis tudo restabelecido como antes da Revolução. – Sim, respondi-lhe,
tudo exceto dois milhões de homens que morreram pela liberdade. Essas palavras
impressionaram um general que as repetiu como se fossem dele. O Primeiro Cônsul me
reconheceu nessa expressão e em algumas outras que foram repetidas pelo mesmo general,
que conversava freqüentemente comigo. Deixando escapar expressões as mais violentas,
ele disse com a sua delicadeza ordinária para com as mulheres, que ele me faria cortar os
cabelos e me trancaria num convento” [Staël, 1996: 335-336].
BIBLIOGRAFIA
DÍEZ del Corral, Luis. El Liberalismo doctrinario. 4ª. Edição. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1984.
LÉVY, Artur. A vida íntima de Napoleão. (Tradução de Emil Farhat). São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1943.
NAPOLEÃO 1o ., Imperador dos Franceses. “Lettre au Pape Pie VII, adresée, depuis
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http://www.napoleonica.org [Site consultado em 11/09/2004].
NEAVE, Guy. “Les quatre modèles”. In: Correio da Unesco (Edição eletrônica). In:
http://www.unesco.org/courier/1998_09/fr/dossier/txt12.htm. [Site consultado em
08/09/2004].
STAËL HOLSTEIN, Germaine Necker Madame de. Dix années d’exil. (Edição
crítica preparada por Simone Balayé e Mariella Viannello Bonifácio). Paris: Fayard, 1996.