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(Des)colonização na literatura portuguesa contemporânea

Santos, Boaventura de Sousa:


Entre Próspero e Caliban. Colonialismo,
Pós-colonialismo e interidentidade.
O ensaio oferece uma reflexão profunda e original sobre a colonização portuguesa,
concentrando-se nas questões da relação Eu-Outro, interidentidade, racismo e sexismo.

A especificidade do colonialismo português

Formular a caracterização do colonialismo português como “especificidade” exprime


as relações de hierarquia entre os diversos colonialismos europeus. Se a especificidade
é a afirmação de um desvio em relação a uma norma geral, nesse caso a norma é dada
pelo colonialismo britânico: é em relação a ele que se define o perfil — subalterno
— do colonialismo português. Tal subalternidade é dupla, porque se manifesta tanto
no domínio das práticas como no dos discursos coloniais. No domínio das práticas,
a subalternidade está no fato de que Portugal, como país semiperiférico, foi ele próprio,
durante longo período, um país dependente — em certos momentos quase uma
“colônia informal” — da Inglaterra. Tal como ocorreu com o colonialismo espanhol,
a conjunção do colonialismo português com o capitalismo foi muito menos direta do
que a que caracterizou o colonialismo britânico. Em muitos casos essa conjunção se
deu por delegação, ou seja, sob o impacto da pressão inglesa por meio de mecanismos
como condições de crédito e tratados internacionais desiguais. Assim, enquanto
o Império Britânico assentou num equilíbrio dinâmico entre colonialismo e capitalismo,
o Português assentou num desequilíbrio, igualmente dinâmico, entre um excesso de
colonialismo e um déficit de capitalismo.
No domínio dos discursos coloniais, a subalternidade do colonialismo português
reside no fato de que desde o século XVII a história do colonialismo foi escrita em
inglês, e não em português. Isso significa que o colonizador português tem um problema
de auto-representação algo semelhante ao do colonizado pelo colonialismo britânico.
A necessidade de definir o colonialismo português em sua especificidade quanto ao
colonialismo hegemônico significa a impossibilidade ou dificuldade de defini-lo em
termos que não reflitam essa subalternidade. Por um lado, o colonizado português tem
um duplo problema de auto-representação: em relação ao colonizador que o colonizou
e em relação ao colonizador que, não o tendo colonizado, escreveu no entanto a história
de sua sujeição colonial. Por outro, o problema de auto-representação do colonizador

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português cria uma disjunção caótica entre o sujeito e o objeto de representação colonial,
gerando um campo aparentemente vazio de representações (mas, de fato, cheio de
representações subcodificadas) que, do ponto de vista do colonizado, constitui um espaço
de manobra adicional para tentar sua auto-representação para além da representação de
sua subalternidade.
A especificidade do colonialismo português assenta basicamente em razões de
economia política — a sua condição semiperiférica5 —, o que não significa que esta tenha
se manifestado apenas no plano econômico. Ao contrário, manifestou-se igualmente nos
planos social, político, jurídico, cultural, no plano das práticas cotidianas de convivência
e sobrevivência, de opressão e resistência, de proximidade e distância, no plano dos
discursos e narrativas, do senso comum e dos outros saberes, das emoções e afetos, dos
sentimentos e ideologias. A grande assimetria entre o colonialismo inglês e o português
foi o fato de que o primeiro não teve de romper com um passado descoincidente de
seu presente: foi desde sempre o colonialismo-norma porque protagonizado pelo
país que impunha a normatividade do sistema mundial. No caso português, uma vez
criada a possibilidade de um colonialismo retroativo, como discurso de dessincronia
e ruptura, este pôde ser manipulado ao sabor das exigências e conjunturas políticas.
Tanto se ofereceu a leituras inquietantes — e.g.: o subdesenvolvimento do colonizador
produziu o subdesenvolvimento do colonizado, uma dupla condição que só poderia
ser superada por uma política colonialista desenvolvida — como reconfortantes — e.g.:
o lusotropicalismo, “Portugal, do Minho a Timor”, colonialismo cordial —, mas quase
todas as leituras tiveram elementos inquietantes e reconfortantes. A negatividade do
colonialismo português foi sempre o subtexto de sua positividade e vice-versa.

O pós-colonialismo

O pós-colonialismo deve ser entendido em duas acepções principais. A primeira


é a de um período histórico, aquele que se sucede à independência das colônias,
e a segunda é a de um conjunto de práticas e discursos que desconstroem a narrativa
colonial escrita pelo colonizador e procuram substituí-la por narrativas escritas do
ponto de vista do colonizado. Na primeira acepção o pós-colonialismo traduz-se num
conjunto de análises econômicas, sociológicas e políticas sobre a construção dos novos
Estados, sua base social, sua institucionalidade e sua inserção no sistema mundial, as
rupturas e continuidades com o sistema colonial, as relações com a expotência colonial
e a questão do neocolonialismo, as alianças regionais etc. Na segunda acepção, insere-se
nos estudos culturais, lingüísticos e literários e usa privilegiadamente a exegese textual

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e as práticas performativas para analisar os sistemas de representação e os processos


identitários. Nessa acepção o pós-colonialismo contém uma crítica, implícita ou explícita,
aos silêncios das análises pós-coloniais na primeira acepção. Por me centrar neste texto
nos sistemas de representação e processos identitários, reporto-me ao pós-colonialismo
na segunda acepção, ainda que as análises próprias à primeira sejam recorrentemente
trazidas a cotejo.
Minha hipótese de trabalho é que as diferenças do colonialismo português devem
repercutir nas diferenças do pós-colonialismo no espaço da língua oficial portuguesa,
nomeadamente em relação ao pós-colonialismo anglo-saxão. A primeira diferença é que
a experiência da ambivalência e da hibridez entre colonizador e colonizado, longe de
ser uma reivindicação pós-colonial, foi a experiência do colonialismo português por
longos períodos. O pós-colonialismo anglo-saxão parte de uma relação colonial assente
na polarização extrema entre colonizador e colonizado, entre Próspero e Caliban, uma
polarização que é tanto uma prática de representação como a representação de uma
prática, e é contra ela que a subversão da crítica pós-colonial se dirige e faz sentido.
Mas onde ancorar a subversão quando essa polarização está, pelo menos durante largos
períodos, fortemente atenuada ou matizada? O pós-colonialismo em língua portuguesa
tem de centrar-se bem mais na crítica da ambivalência do que na reivindicação desta,
e a crítica consistirá em distinguir as formas de ambivalência e hibridação que
efetivamente dão voz ao subalterno (as hibridações emancipatórias) daquelas que usam
a voz do subalterno para silenciá-lo (hibridações reacionárias).
A segunda diferença reside na questão racial sob a forma da cor da pele. Para os
críticos pós-coloniais anglo-saxões a cor da pele é um limite incontornável às práticas
de imitação e assimilação porque, consoante os casos, ou nega por fora da enunciação
o que a enunciação afirma ou então afirma o que ela nega. No caso do pós-colonialismo
de língua oficial portuguesa há que contar com a ambivalência e a hibridação na
própria cor da pele, ou seja, o espaço-entre, a zona intelectual que o crítico pós-colonial
reivindica para si, encarna no mulato e na mulata como corpo e zona corporal. O desejo
do outro em que Bhabha funda a ambivalência da representação do colonizador6 não
é um artefato psicanalítico nem é duplicado pela linguagem: é físico, criador, multiplica-
se em criaturas. A miscigenação não é a conseqüência da ausência de racismo, como
pretende a razão lusocolonialista ou lusotropicalista, mas certamente é a causa de um
racismo de tipo diferente. Por isso, também a existência da ambivalência ou hibridação
é trivial no contexto do pós-colonialismo português. Importante será elucidar as regras
sexistas da sexualidade que quase sempre deitam na cama o homem branco e a mulher
negra, e não a mulher branca e o homem negro. Ou seja, o pós-colonialismo português
exige uma articulação densa com a questão da discriminação sexual e o feminismo.

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A terceira diferença reside numa dimensão de ambivalência e hibridação insuspeitável


no caso anglo-saxão. Para o pós-colonialismo de língua portuguesa a ambivalência das
representações não decorre apenas de não haver uma distinção clara entre a identidade
do colonizador e a do colonizado, mas também de essa distinção estar inscrita na própria
identidade do colonizador português, a qual não se limita a conter em si a identidade do
outro, o colonizado por ele, pois contém ela própria a identidade do colonizador enquanto
colonizado por outrem. O Próspero português não é apenas um Próspero calibanizado:
é um Caliban quando visto da perspectiva dos Super-Prósperos europeus. A identidade
do colonizador português é, assim, duplamente dupla, constituída pela conjunção de
dois outros: o outro que é o colonizado e o outro que é o próprio colonizador enquanto
colonizado. Foi essa aguda duplicidade que permitiu ao português ser emigrante, mais
do que colono, nas “suas” próprias colônias.
Pode-se pois concluir que a “disjunção da diferença”7 é bem mais complexa no
caso do pós-colonialismo português — uma complexidade que paradoxalmente
pode redundar em conjunções ou cumplicidades insuspeitas entre o colonizador
e o colonizado. O “outro” colonizado pelo colonizador não é totalmente outro em
relação ao “outro” colonizado do colonizador. Ao contrário do pós-colonialismo anglo-
saxão, não há um outro: há dois que nem se juntam nem se separam, apenas interferem
no impacto de cada um deles na identidade do colonizador e do colonizado. O outro-
outro (o colonizado) e o outro-próprio (o colonizador ele próprio colonizado) disputam
na identidade do colonizador a demarcação das margens de alteridade, mas nesse caso
a alteridade está, por assim dizer, dos dois lados da margem. É por isso também que ali
o estereótipo do colonizado jamais teve o fechamento que lhe foi atribuído no Império
Britânico, ou, pelo menos, o seu fechamento foi sempre mais inconseqüente e transitório.
A penetração sexual convertida em penetração territorial e interpenetração racial deu
origem a significantes flutuantes que sufragaram, com o mesmo grau de cristalização,
estereótipos contrários consoante a origem e a intenção da enunciação. Sufragaram
o racismo sem raça, ou um racismo mais “puro” do que a sua base racial. Sufragaram
também o sexismo sob o pretexto do anti-racismo. Por essa razão, a cama sexista e inter-
racial pôde ser a unidade de base da administração imperial e a democracia racial pôde
ser exibida como um troféu anti-racista sustentado pelas mãos brancas, pardas e negras
do racismo e do sexismo.
O fato de o colonizador ter a vivência de ser colonizado não significa que se identifique
mais ou melhor com o seu colonizado. Tampouco significa que o colonizado por um
colonizador-colonizado seja menos colonizado que o colonizado por um colonizador-
colonizador. Significa apenas que a ambivalência e a hibridação detectadas pelo

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pós-colonialismo anglo-saxônico estão, no caso português, muito além das representações,


dos olhares, discursos e práticas de enunciação. São corpos e encarnações, vivências
e sobrevivências cotidianas ao longo de séculos, sustentadas por formas de reciprocidade
entre o colonizador e o colonizado insuspeitáveis no espaço do Império Britânico.
Para explicar essa diferença é necessário introduzir uma outra, sobre os jogos de
autoridade. Nos estudos pós-coloniais o colonizador surge sempre como um sujeito
soberano, a encarnação metafórica do império. Ora, no colonialismo português tal
não se pode pressupor sem mais. Só durante um curto período — a partir do final do
século XIX, na África — é que o colonizador encarna o império, e mesmo assim em
circunstâncias muito seletivas. Fora disso, apenas se representa a si próprio. É um auto-
império, e como tal, tão livre para o máximo excesso como para o máximo defeito da
colonização. Mas precisamente porque essa identidade imperial não lhe é outorgada
por ninguém além dele, ele é de fato um sujeito tão desprovido de soberania quanto
o colonizado. Por isso, a autoridade não existe para além da força ou da negociação
possíveis de mobilizar na zona de encontro.
Essa dupla ambivalência das representações afeta não apenas a identidade do
colonizador, mas também a do colonizado. É possível que o excesso de alteridade que
identifiquei no colonizador português seja igualmente identificável no seu colonizado.
Sobretudo no Brasil é possível imaginar que a identidade do colonizado foi construída,
em alguns períodos pelo menos, a partir de um duplo outro: o do colonizador direto
português e o do colonizador indireto britânico. Essa duplicidade converteu-se mesmo
em elemento constitutivo do mito das origens e das possibilidades de desenvolvimento
do Brasil (como veremos adiante) e instaurou uma fratura que até hoje é tema de um
debate que divide os brasileiros entre os que se sentem vergados pelo excesso de passado
e os que se sentem vergados pelo excesso de futuro.
O colonialismo português carrega consigo o estigma de uma indecidibilidade que
deve ser objeto primordial do pós-colonialismo português. A colonização por parte
de um Próspero incompetente, relutante, originariamente híbrido, redundou em
subcolonização ou em hipercolonização? Uma colonização particularmente capacitante
ou incapacitante para o colonizado? Um Próspero caótico e absenteísta não terá aberto
espaço para a emergência de Prósperos substitutos no seio dos Calibans? Não será por
isso que no contexto do pós-colonialismo português a questão do neocolonialismo
é menos importante que a do colonialismo interno? O déficit de colonialismo e de
neocolonialismo ajuda a explicar a especificidade das formas políticas que emergiram
com a independência das grandes colônias. Em sentidos opostos, essas formas
divergiram da norma de descolonização estabelecida pelo colonialismo hegemônico. No

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caso do Brasil, tratou-se de uma das independências mais conservadoras e oligárquicas


da América Latina e a única sob a forma de monarquia, com o que se criaram as
condições para que o colonialismo externo sucedesse o colonialismo interno, para que
o poder colonial sucedesse a colonialidade do poder. Já no caso de Angola e Moçambique
o desvio da norma foi no sentido de os novos países independentes adotarem regimes
revolucionários que, no contexto da Guerra Fria, os colocaram do lado oposto àquele
em que Portugal os tinha mantido enquanto colônias. As vicissitudes por que passaram
esses países nos últimos 25 anos (fim da Guerra Fria, guerra civil) não nos permitem
avaliar em que medida o colonialismo interno irá caracterizá-los.
A indecidibilidade do colonialismo português constitui uma mina de investigação
para um pós-colonialismo situado, que não se deixe armadilhar pelo jogo de semelhanças
e diferenças do colonialismo português em relação ao colonialismo hegemônico. Caso
contrário, uns apenas verão semelhanças e outros diferenças, e entre uns e outros
a indecidibilidade escapar-se-á como um derradeiro objeto incomensurável, invisível
para si próprio como o olhar. No atual contexto, um pós-colonialismo situado pressupõe
cuidadosas análises históricas e comparadas dos colonialismos e do que se lhes seguiu.
É crucial responder à pergunta sobre quem descoloniza o que e como. Só assim o discurso
pós-colonial pode fazer jus à disseminação que Bhabha propõe: um discurso que se mova
entre diferentes formações culturais e processos sociais sem uma causa lógica central8.
Sem tal especificação histórica e comparativa o pós-colonialismo será mais uma forma
de imperialismo cultural, e uma forma particularmente insidiosa porque credivelmente
antiimperalista.

Notas:
5. Sobre a inserção de Portugal no ciclo colônial africano, cf. Fortuna, Carlos. O fio da meada: o algodão
de Moçambique, Portugal e a economia-mundo (1860-1960). Porto: Afrontamento, 1993, pp. 31-41.
6. Bhabha. Homi K. The location of culture. Londres: Routledge. 1994, p. 50
7. Ibidem.
8. Idem. „Dissemination: time, narrative, and the margins of the modem nation“. In: idem (org.). Nation
and narration, Londres/Nova York: Routledge, 1990, p. 293.

(SANTOS, Boaventura de Sousa. “Entre Próspero e Caliban. Colonialismo, Pós-colonialismo


e interidentitidade”. Novos Estudos CEBRAP, nº 66, Julho 2003, p. 24-29. Acessível em http://novosestudos.
uol.com.br/v1/files/uploads/contents/100/20080627_entre_prospero_e_caliban.pdf [Cit. 4/10/2013])

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Atividades:
1. Esclareça qual é, segundo o autor do ensaio, a posição de Portugal, enquanto
potência colonial, relativamente a outros poderes imperiais.
2. Faça uma reflexão sobre a especificidade da colonização portuguesa.
3. Comente a política sexual na colonização portuguesa, discutindo o princípio de
miscigenação.

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