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Otacílio Amaral Filho

Organizador

FESTAS E ESPETÁCULOS CULTURAIS NA AMAZÔNIA:


COMUNICAÇÃO E RESISTÊNCIA
Copyright © 2022 by Otacílio Amaral Filho

Grafia atualizada conforme o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa
Fábio Augusto da Silva Bastos

Diagramação
Pedro Henrique Lobato

Revisão
Nair Santos Lima

Laboratório de Pesquisa em Mídia, Cultura e Povos da Amazônia


Nair Santos Lima
Lúcio Dias das Neves
Rodrigo Araújo Ribeiro
Herivelto Martins e Silva
Maria Mirley Farias dos Santos
Fábio Bastos
Pedro Refkalesky Loureiro
Natália Cristina Santos Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F418 Festas e espetáculos culturais na Amazônia :


comunicação e resistência / Otacílio
Amaral Filho organizador – Belém:
UFPA, 2022.

326 p. il.

ISBN: 978-65-5404-096-9

1. Cultura - Amazônia. 2. Cultura popular


- Amazônia. 3. Festas populares – Amazônia.
4. Festas populares - Comunicação. I. Amaral
Filho, Otacílio (org.).

CDD: Ed. 23 – 306

Semias Araújo - Bibliotecário - CRB-2/1225

[2022]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora folheando
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Alda Cristina Silva da Costa

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Netília Silva dos Anjos Seixas

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Rosaly de Seixas Brito


Vânia Maria Torres Costa

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Luiz Cezar Silva dos Santos (LZ)

Manuela do Corral Vieira

Marina Ramos Neves de Castro

Netília Silva dos Anjos Seixas

Otacílio Amaral Filho

Regina Lúcia Alves de Lima

Rosaly de Seixas Brito

Rosane Maria Albino Steibrenner (Nanani)

Vânia Maria Torres Costa


SUMÁRIO

Apresentação...............................................................................................11

FESTAS E FESTIVAIS...............................................................................................13

festas populares amazônicas: traços de colonialidade nas tramas da pós-


-modernidade ................................................................................................................................................................... 15

sairé de alter do chão, cadê a festa de curumins e cunhantãs?.............33

do brega ao tecnobrega: rádio, música e festa na amazônia paraense...47

estudo folkcomunicacional sobre festas populares: produção de uma


grande reportagem em àudio acerca da ciranda de manacapuru...........61

mosaicos, resistências e identidades: notas sobre os temas do festival


folclórico de caracaraí – rr.....................................................................76

manifestações culturais amazônicas – da formação à midiatização do sairé.110

a escola de samba bole-bole em belém/pa: história, comunidade e identidade.124

o poder da cultura como comunicação..................................................144


o marketing da floresta: a promessa publicitária para as populações
indígenas, populações tradicionais e novas populações do mundo global
na amazônia................................................................................................145

a arquitetura vernacular e as paisagens amazônidas: aspectos construtivos


e culturais e o habitar como poesia........................................................167

comunicação, cultura, resistência quilombola e tecnologia social no


desenvolvimento local da amazônia negra maruanense.......................182

ESPETÁCULO E RELIGIOSIDADE.................................................................................199

publicidade do círio de nazaré: o natal dos paraenses..........................200

a festa da chiquita: espaço de comunicação e resistência....................217

SONORIDADES AMAZÔNICAS....................................................................................228

bioinstrumentos: a criação dos ritmos amazônicos a partir dos sons da


floresta......................................................................................................229

a patrimonialização do carimbó e o movimento dual de ressignificação


cultural dentro das práticas de produção e discursivas da manifestação
dentro da região metropolitana de belém.............................................246

nosso palco é a rua: reflexões sobre carimbó urbano e a prática do mangueio


como recurso de sociabilidade para a afirmação do direito a cidade......261

a etnografia multi-situada como percurso de imersão e observação de


práticas produtivas e discursivas que envolvem a produção do carimbó
na região metropolitana de belém/pará..................................................277

PODER E COMUNICAÇÃO.........................................................................................294

expressão psicossocial do poder nacional: midiatização e a identidade


do negro da amazônia-amapaense no contexto da democracia brasileira
para o seu desenvolvimento.....................................................................295

uma mulher indígena: notas sobre a participação de sônia guajajara nas


eleições presidenciais de 2018.................................................................307
Apresentação

Ainda pensamos a Amazônia como um lugar a conquistar e para mostrar,


tanto no sentido do diálogo da pesquisa com os seus interlocutores, como na
perspectiva da vida nas telas que acionam outros tempos e outras velocidades para
trazer e apresentar em tempo real esta ordem do conhecimento e dos saberes, na
busca de um entendimento mais próximo da nossa realidade. Nada mais atual do
que a resistência em todas as suas formas, por isso, se busca não mais localizar os
fenômenos como categorias entendidas por processos epistemológicos eurocên-
tricos e hegemônicos, mas como evidências de uma lógica fenomenológica local
que os mantém ativos e vivos além deste universo de controle da ciência divulgada
a partir dos grandes centros de produção de conhecimento e olhar os trabalhos
que saem aqui das nossas casas de farinha, para dar visibilidade ao pensamento
não-hegemônico trazidos por outros saberes.
O pensamento local enfrenta estas dificuldades de visibilidadade neste universo
da informação em velocidade do tempo real, produzindo pesquisa e principalmente
divulgando o que é feito por seus grupos. Este e-book que organizamos sob os
auspícios do Laboratório de Pesquisa em Mídia, Cultura e Povos da Amazônia
(LAPAM-UFPA-CNPQ), do qual sou coordenador, traz o resultado de preparação
para trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado
da Faculdade de Comunicação (FACOM) e do Programa de Pós-graduação em
Comunicação, Cultura e Amazônia(PPGCOM) não apenas pelo sentido utilita-
rista do trabalho de pesquisar, mas como processos de formação acadêmica que se
ordenam na pedagogia da autonomia e da liberdade freirianas, neste percurso que

11
dá sustentação aos movimentos de resistência na educação buscando as formas de
entender a cultura e suas manifestações pelas festas e espetáculos.
É um trabalho que se desenvolveu nos últimos três anos, atravessando as
dificuldades trazidas pela pandemia e que ainda assim, resultou na produção de
artigos científicos povoados por este universo da cultura amazônica midiatizada
e como um desafio epistemológico para conhecer e reconhecer a Amazônia e não
em reinventá-la ou dicotomizá-la em defesa e ataque a floresta e suas populações,
como guardiães de proteção ou devastadores da floresta, ignorando a urbanização
e reificando estas oposições antigas, próprias do discurso centro e perifeira, mas
mostrar como ela existe afirmativamente em suas experiêcias e vivências reais e
imaginárias.
Este e-book coloca no círculo de divulgação as festas e os espetáculos como cul-
tura buscados e estudados por muitos pesquisadores em função da sua importância,
por perspectivas diferentes, mas que se encontram em suas evidências e discussões
por estes olhares próprios da comunicação e da resistência, daí o título, “Festas e
Espetáculos culturais na Amazônia: Comunicação e resistência”. Na primeira parte
apresentam-se artigos que discutem festas e festivais, na segunda parte o poder da
cultura como comunicação, na terceira parte espetáculo e religiosidade, na quarta
parte sonoridades amazônicas e na quinta parte o poder da comunicação, tudo
isto, mostrado no circuito da cultura amazônica que abriga todos estes fenômenos
por suas experiências e por suas manifestações. Um percurso que enfatiza o diálogo
com autores como João de Jesus Paes Loureiro, Wilson Nogueira, Neide Gondim,
Márcio Souza, Violeta Loureiro, Fábio Castro, Antonio Mauricio Costa, Edna
Castro e os nossos pesquisadores e autores do programa de pós-graduação e de
outros programas da região, do Brasil e da América Latina. E como não poderia
deixar de ser, esperamos que seja uma boa leitura.

12
FESTAS E FESTIVAIS
festas populares amazônicas: traços de colonialidade
nas tramas da pós-modernidade 1

Nair Santos Lima2


Otacílio Amaral Filho3

A Amazônia e suas festas

A Amazônia não foi descoberta, sequer foi construída; na


realidade, a invenção da Amazônia se dá a partir da constru-
ção da Índia, fabricada pela historiografia greco-romana, pelo
relato dos peregrinos, missionários, viajantes e comerciantes
(GONDIM, 1994, p. 9).

As festas populares amazônicas remontam os tempos do subjugo colonial na


região, mas que ainda hoje se mantém, embora ressignificada. Concebem-se as festas
como constituídas das relações sociais da comunidade, as quais Simmel (1983)
denomina de sociabilidades. Este ensaio pretende identificar traços de colonialidade
nos cantos-enredos dos povos Muirapinima e Munduruku, de Juruti e dos Bois
Garantido e Caprichoso, de Parintins, no ano de 2019. De abordagem qualitativa
e de objetivo exploratório, a pesquisa tem por base o audiovisual, portanto, de
delineamento documental.
Propõe-se, portanto, um olhar descolonial, a partir da experiência da colonia-
lidade, observadas no cotidiano dessas populações nas festas, na pós-modernidade.
Antes mesmo da chegada dos viajantes europeus, a região era habitada por uma
1 Artigo elaborado como trabalho final da disciplina obrigatória Estudos Avançados em Comuni-
cação e Amazônia, ministrada pelos professores Alda Cristina Costa e Otacílio Amaral Filho, no primeiro
semestre de 2019.
2 Doutoranda do PPGCom/UFPA. E-mail: nslima1405@gmail.com
3 Professor Doutor da Faculdade de Comunicação e Programa de Pós-graduação em Comunica-
ção, Cultura e Amazônia da Universidade federal do Pará. E-mail: otacilio@ufpa.br

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sociedade complexa4 - de grande atividade econômica e cultural - originária dos
primeiros grupos nômades que atravessaram a floresta por volta de 15.000 anos
atrás dando origem colonização da Amazônia. Por volta de 8000 e 4000 a.C.,
grupos de caçadores e coletores constituíram uma comunidade de alta sofisticação5.
Mais tarde, em um período de 4000 a 2000 a. C., esses povos compunham uma
sociedade de subsistência, ou seja, viviam da pesca, da caça e da agricultura, além
da habilidade no cultivo de plantas e na criação de animais.
A existência de artefatos encontrados pertencentes a outros povos, prova o
comércio e o transporte que eles realizavam em longas viagens. Daí, infere-se a
presença de povos coletores nos muitos sambaquis encontrados próximo à foz do
rio Amazonas, na costa do Suriname e em algumas áreas do baixo Amazonas, por
volta de 3000 a.C. Nesses depósitos, as camadas mais recentes compunham-se de
restos de cerâmicas decoradas com figuras de animais.
Em “Breve História da Amazônia”, Márcio Souza (2001) questiona que, além
das teorias sobre a natureza e a adaptação desses povos aos trópicos é muito provável
que essas sociedades tivessem como base econômica a plantação de raízes como
a mandioca, praticada há pelo menos 5000 a.C., entretanto, com a chegada dos
europeus a vida desses povos indígenas retrocedeu para um estágio anterior ao
surgimento dessas economias intensivas.
Diante desse olhar, Souza (2001, p.23) conclui que “a Amazônia não era um
vazio demográfico”, pois já no século XVI havia um conjunto de sociedades hie-
rarquizadas com alta densidade demográfica (povoações em escala urbana), um
sistema intensivo de agricultura diversificada, produção de ferramentas, de cerâmica
e “uma cultura de rituais e ideologia vinculadas a um sistema político centralizado.

Durante os milênios que antecederam a chegada dos europeus,


os povos da Amazônia desenvolveram o padrão cultural de-
nominado de Cultura da Selva Tropical (...) é um exemplo do
sucesso adaptativo das populações amazônicas, assim como o
são os padrões andino e caribenho de cultura em seus respec-
tivos nichos ambientais (SOUZA 2001, p. 23).

4 Nas últimas décadas, uma série de estudos tem contrastado com as posições que se estabeleceram
sobre a ocupação do solo amazônico. Por meio de novas pesquisas, como a da arqueóloga Anna Roosevelt (sobre
as culturas da ilha de Marajó e da calha amazônica), constata-se que a Amazônia contemplava em tempo pré-
-histórico um cenário rico e de diversas sociedades humanas.
5 A utilização de ferramentas para cavar petróglifos nas cavernas e “Outros artefatos de pedra encontra-
dos nos altiplanos venezuelanos e na Guiana, bem como nas barrancas do rio Tapajós” (SOUZA, 2001, p. 20).

16
Essas “sociedades complexas e politicamente surpreendentes”, como descreve
Souza (2001, p. 23) é também observado em Tesouro descoberto no máximo rio
Amazonas (2004) sobre um modo de vida particular dessas populações da Ama-
zônia. Nessa obra, o autor relata que os indígenas eram muito amigos de festas,
danças e bailes e, nesses eventos, entregavam-se a memoráveis “beberronias” e que
a música se aliava a um intuito utilitário. Servia tanto para o trabalho quanto para
a recreação, festas e folguedos. Haviam cânticos para ocasiões especiais: guerreiros,
núpcias, fúnebres e até mesmo báquico e erótico, assim como danças específicas
para cada atividade.
Esses registros constam das produções da época e das atividades desenvolvidas
pelas ordens religiosas, que em momentos diferentes e na disputa acirrada pelo
direito na administração do indígena, aqui aportaram. A música era utilizada para
influenciar os indígenas, que se aproximavam dos conventos seduzidos, segundo
Daniel (2004), por meio do tom alegre dos sinos, dos cânticos da missa, das dan-
ças e da própria cerimônia religiosa. Antes, essas atividades eram compartilhadas
apenas como um ato comum de movimento social.
Nessa prática,

[...] muito foram os frutos materiais que os missionários lo-


graram colher, através da música, e o povo se identificou de
tal modo com certos ritos da igreja, que acabou transferindo
para suas digressões e crenças os vultos mais conhecidos do
hagiológico católico, criando um folclore que, em grande par-
te, é produto das festas de igrejas. Os próprios missionários
não viam nisso sacrilégio, nem desrespeito, mas tão-somente
sinceridade. (DANIEL, 2004, p. 29).

Nos estudo sobre a festa, objeto das reflexões e comentários de Émile Durkheim
na obra Les formes elementaire le vie religieuse (1912), o autor trata da relação entre
ritual e festas e aponta para os limites “flutuantes” entre os ritos representativos e as
recreações coletivas. Para o autor, o elemento recreativo e estético é a característica
presente em toda religião, além disso, “toda festa, mesmo quando puramente laica
em suas origens, tem certas características de cerimônia religiosa” (DURKHEIM,
1968 apud AMARAL, 1998, p. 1).
As festas aqui tratadas referem-se às manifestações culturais que, de modo

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particular em cada região brasileira celebra seus costumes, tradições, modos de vida
etc., ressaltando que, desde o período colonial esses modos de festejar se faziam
presentes entre os povos e,

[...] longe de ser um fenômeno de distanciamento da realidade,


fuga psicológica etc., cujo resultado seria negar ou reiterar ao
modo pelo qual a sociedade se encontra organizada, nossas
festas são capazes de estabelecer a mediação entre a utopia e a
ação transformadora, pois através da vontade de realização da
festa muitos grupos se organizam, em nível local, chegando
até mesmo a crescer política e economicamente, mesmo que
em modo local” (AMARAL, 1998, p.11).

No contexto amazônico em que as festas se inserem, encontram-se uma di-


versidade de modos e fundamentos diferentes que culminam com a realização de
muitos eventos, como o festival de Parintins, a Ciranda de Manacapuru, o Sairé,
o Festival das Tribos, em Juruti, além de outras cujos objetivos primordiais são a
promoção da lavoura, como exemplo, pode-se considerar a Festa do Guaraná, em
Maués, o festival do abacaxi, em Presidente Figueiredo e, sobretudo, o Festival da
Tapioca, em Boa Esperança, no município de Santarém.
Pode-se considerar que a Festa da Farinha da Tapioca6 difere das demais re-
ferenciadas por vários objetivos, dentre eles congregar as famílias gaúchas nessa
comunidade que dista 43 km (Rodovia PA-370). Outra característica é o aprimo-
ramento da culinária, a partir da lavoura da macaxeira (aipim), cujo cardápio de
doces e salgados compõe a bibliografia da festa, além do incentivo à implementação
de técnicas agrícolas, cujo aprimoramento fortalece a cadeia produtiva e o vínculo
social dos indivíduos na percepção solidária, tanto da preservação da cultura gaúcha
quanto no atendimento das necessidades básicas da comunidade.
Entretanto, em todas elas, a promoção da economia se dá na produção e in-
serção de seus produtos no mercado local e regional, e isso se deve a uma espécie
de insight por essas comunidades. De outro modo, observa-se que mesmo as festas

6 Essa localidade foi fundada nos anos 1960 e concentra uma população de su-
listas que cultivam, além da tapioca, o milho, a soja e o arroz. Cerca de 70% das famílias
nessa localidade produzem a tapioca. Essa festa também é chamada de Festa da Integração
gaúcha.

18
que alcançaram maior projeção midiática, quer seja pelo turismo direcionado (di-
mensão cultural) ou por um modo de ação comunitária, trazem entretecidas em
seus enredos, alegorias e adereços histórias de um passado de subjugo ou subsunção
de colonialidade.

Traços de colonialidade tecidos nas produções da cultura paraense

Uma breve análise histórica do período colonial no Brasil se faz necessária


para que se compreenda os traços de colonialidade7 deixados e (ainda utilizados)
transpassados pelas tramas das festas amazônicas. O termo colonialidade, cunhado
por Quijano (1997), relaciona-se com “algo que transcende as particularidades do
colonialismo histórico e que não desaparece com a independência ou descoloni-
zação” (ASSIS, 2014, p.614). Desse modo, concebe-se a colonialidade instituída
com a assinatura do Tratado de Tordesilhas, em 1494.
Com o objetivo inicial de exploração das terras conquistadas, três períodos se
configuram na história da colonização do Brasil: o período Pré-colonial (1500-
1549) caracterizado pela extração do pau-brasil; o Colonial (1549 - final do século
XVIII) com os ciclos do açúcar e do ouro e, o período compreendido entre o final
do século XVIII a 1822 denominado de Crise do Sistema Colonial, entretanto, foi
no segundo período que houve maior lucratividade para os portugueses8.
Com as reformas Pombalinas que ocorreram a partir de 1750, sobretudo, a
importância do mercantilismo diminuiu. Movimentos de rebeldia contra a ad-
ministração surgiram e dentre eles, o da Inconfidência Mineira. Esse, portanto,
configurou-se como o período de Crise do Sistema Colonial. Com efeito, nesse
período, a Família Real chega ao Brasil (1808) alterando paulatinamente, mas de
modo permanente a relação entre Metrópole e Colônia, resultando na Indepen-
dência do Brasil, em 1822.
7 Inicialmente, formula-se a noção de colonialidade na apropriação da natureza,
entendida como resultado da construção, no interior da modernidade, de formas econô-
mico-instrumentais de se pensar e explorar o meio ambiente (ASSIS, 2014, p. 613).
8 No período colonial, com o crescimento da mão-de-obra escrava (destinada ao
ciclo do ouro e cana-de-açúcar) as fronteiras foram sendo alargada, alcançando o sertão
brasileiro, a Amazônia e regiões ao sul da colônia, na exploração das especiarias (drogas do
sertão e algodão).

19
Ressalta-se, porém, que “(...) a extinção do colonialismo histórico-político nas
Américas, com a construção de nações independentes no século XIX, (...) não foi
condição necessária e suficiente para a emancipação político-econômica e cultural
dos países periféricos” (ASSIS, 2014, p. 613). Nesse sentido, para que se compreenda
a ideia de colonialidade permeada nas produções da cultura, convém esclarecer que
os traços de colonialidade, aqui proposto, está contemplado no próprio conceito
que, de forma transversal, emerge em diferentes campos de conhecimento, a fim
de discutir tendências e aspectos culturais diversos que resultaram em processos
de colonialismo9.
A Colonialidade pressupõe poder de dominação de uma cultura noutra; atua
nos modos de agir dos indivíduos e grupos sociais, nos comportamentos, valores,
conhecimentos e saberes. “Para mim, a pauta oculta (e o lado mais escuro) da
modernidade era a colonialidade (...) A colonialidade, em outras palavras, é cons-
titutiva da modernidade - não há modernidade sem colonialidade” (MIGNOLO,
2017, pp.1-2).
Sob outra perspectiva,

Colonialismo precede a colonialidade, a colonialidade sobre-


vive ao colonialismo. A mesma permanece viva nos manuais
de aprendizagem, no critério do bem acadêmico, na cultura,
no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações
dos sujeitos e em tantos outros aspectos de nossa experiência
moderna. Em certo sentido, respiramos a colonialidade na
modernidade todos os dias (MALDONATO-TORRES, 2007,
p. 131, tradução nossa).

Em relação às produções culturais, Paes Loureiro, em linguagem poética, re-


força essa ideia ao afirmar que “nada está totalmente organizado em compêndios
na cultura amazônica”. E acrescenta: “É preciso errar pelos rios, tatear no escuro das
noites da floresta, procurar os vestígios e os sinais perdidos pela várzea, vagar pelas ruas
das cidades ribeirinhas” (LOUREIRO, 2001, p.25).
Outros poetas, escritores e estudiosos da cultura registraram suas memórias em
livros ou apenas nos jornais da época. Entretanto, outras informações não registradas

9 Nesse sentido, refere-se à dominação de ordem política e econômica de uma nação ou de um povo
sobre outro, numa relação (explícita) de poder, soberania e hegemonia.

20
ainda podem ser captadas por meio de investigação, a partir da perspectiva dos
descendentes e associadas a outros tipos de documentos.
É o que sugere LEAL (2017) ao citar as produções de autores paraenses, tais
como, Bruno de Menezes e Dalcídio Jurandir, nas quais as mães “são citadas
como pessoas de grande importância para a inserção desses escritores no mundo
da cultura negra paraense”. Afirma Leal (2017, p.87) que, “Todos os assuntos
listados por Bruno, em sua dedicatória, estiveram relacionados com a sua vida e
produção intelectual antes e após o movimento de 1938, pela liberdade de culto
no Pará, ou seja, “O despertar do engajamento intelectual negro, em 1937, por
ocasião das políticas de repressão aos terreiros afro religiosos, acarretou em debates
e atitudes que integraram diferentes pensadores e artistas da Amazônia” (LEAL,
2017, p.87, grifo nosso).
Em Chove nos Campos de Cachoeira, Dalcídio assim descreve a mãe do persona-
gem Alfredo: “D. Amélia era uma pretinha de Muaná, neta de escrava, dançadeira
de coco” (1991, p. 78).

Quando o major Alberto, já viúvo, se interessa por ela, apre-


senta-lhe o convite para que fosse morar com ele em seu chalé
em Cachoeira. O convite era para que ela fosse cozinhar para
ele. Quando souberam, suas filhas ficaram escandalizadas com
a escolha do pai. A reação indignada expressava toda a violência
do racismo presente naquela pequena vila marajoara contra a
escolha de uma mulher negra para companheira de um homem
branco de razoável prestígio (...).
Em uma conversa entre dois personagens, Dejanira, uma se-
nhora que vivia a fase da decadência de seus prestígios, lamenta
os supostos privilégios de Amélia:
‘Pensa que lá na casa de siá Amélia, pensa que aquela preta não
come maçã? Pensa que ela não come uva? Come maçã, come uva.
Quando chega semana santa come bacalhau! A preta. Bacalhau.
Olha, que eu, uma criatura acostumada com todas essas coisas
boas, sou obrigada a comer jiju! A comer este naco de carne velha
e magra todo dia’ (LEAL, 2017, p. 91).

Na história da música paraense, da primeira metade do século XX, a estreia


da ópera Bug Jargal (melodrama de fins dos anos 1890) apresentou uma história
ocorrida em 1790, em Santo Domingo - colônia francesa antilhana - vivido por

21
um escravo congolês (Jargal) que se apaixonou pela patroa branca (COSTA, 2016).
A ópera que abria a temporada lírica em Belém e pioneira no regime republicano
foi regida sob a batuta do paraense José Cândido da Gama Malcher (1853-1921).
O espetáculo, inserido no contexto da abolição da escravatura brasileira ressal-
tava um elemento inusitado: a dança do “autêntico carimbó” que foi introduzido
em lugar das danças do Caribe,

Com figurantes portando instrumentos típicos como o curim-


bó e o gambá. (...) os críticos locais da ópera, que publicaram
suas resenhas em jornais locais na época, elogiaram o interesse
do maestro por incluir “melodias de danças folclóricas da Ama-
zônia” em sua obra. Mas alguns críticos tomaram essa iniciativa
inusitada como atestado de selvageria dos músicos locais.

Logo após a apresentação do musical, o escritor, jornalista e crítico de arte


Antônio Marques de Carvalho, de A Província do Pará, publicou que “não teria
tolerado a presença de tambores de carimbó na ópera, ‘Imaginem os leitores um
Espírito gentil, com aquele acompanhamento de carimbó!!! Mas qual! Somos nós
que não passamos de selvagens, e não entendemos da coisa’” (SALLES, 2005b apud
COSTA, 2016, pp. 87-88). De acordo com esta visão, “a ‘selvageria’ das músicas
locais poderia se manifestar tanto com instrumentos percussivos como com violas
e violões. Sobre estes últimos, por sinal, naqueles idos de 1890, ainda pairava a
marca da ‘vadiação dos negros’” (COSTA, 2016, p. 88).
Os traços de colonialidade tecidos culturalmente nas produções pós-colonial
brasileira perduram e ainda persistem na atualidade, muito embora ressignificados
ou assimilados como parte dos espetáculos culturais, especialmente, como produtos
da indústria cultural. Em No fundo das aparências (2005), Maffesoli percebe que as
ações que, na atualidade, integram a sociedade têm por base a futilidade, a aparência
e a banalidade e que esses atributos dão razão e sentido à vida social cotidiana.
Ao dialogar, nessa obra, com o pensamento clássico de Durkheim, Maffeso-
li faz comparações com os aspectos da vida social pós-moderna10 e, sobretudo,
10 O conceito de pós-modernidade diverge as discussões nas Ciências Sociais. Muitos estudio-
sos definem-a como ruptura das verdades absolutas da modernidade. É o caso do filósofo Jean-François
Lyotard. Por sua vez, o sociólogo Anthony Giddens sugere o conceito de alta-modernidade, diante das
consequências radicais da modernidade, enquanto o sociólogo francês, Michel Maffesoli, que vê na pós-
-modernidade um novo paradigma, direciona o olhar no sentido de uma reorganização de visões de mundo,
valores, ideias, entre outros, oriundos da modernidade.

22
voltados ao mundo da arte, literatura, música, escultura etc. Segundo o autor,
as festividades não devem ser apercebidas como algo sem valor, isto por que os
acontecimentos da cultura são produzidos por um conjunto de emoções coletivas
reunidas em desejos que exprimem alegria, satisfação, querência do viver, uma
espécie de ‘familiarismo’ que caracterizam “muitas relações sociais contemporâneas”
(MAFFESOLI, 1999, p.96).
Embora esse olhar contemple as relações que se estabelecem-na complexidade
da festa, ressalta-se que há questões mais profundas, subjetivas que permeiam esse
ambiente e a consciência dos indivíduos. Diante disso,

O panorama que acabo de esboçar não é uma descrição do


colonialismo, mas da colonialidade, da construção do mundo
moderno no exercício da colonialidade do poder. Mas também
das respostas da diferença colonial à coerção programada ou
exercida pela colonialidade do poder. O imaginário do mundo
moderno/colonial surgiu da complexa articulação de forças,
de vozes escutadas ou apagadas, de memórias compactas ou
fraturadas, de histórias contadas de um só lado, que supri-
miram outras memórias, e de histórias que se contaram e se
contam levando-se em conta a duplicidade de consciência
que a consciência colonial gera (MIGNOLO, 2005, p. 40).

Sugere o autor que se faz necessário descolonizar o pensamento, “para quem


não tem uma verdadeira autoconsciência” e que “essa consciência tem de formar-se
e definir-se em relação ao ‘outro mundo’. Isto é, consciência vivida na diferença
colonial é dupla porque é subalterna. A subalternidade colonial gera a diversidade
de consciências duplas”.

As festas e sua inserção na pós-modernidade

Na cultura brasileira as festas refletem momentos de congraçamento de um


conjunto de indivíduos ou comunidade, expressos em seus objetivos, finalidades
ou, ainda, na tradição de cada povo. Evidenciam-se por seus múltiplos sentidos,

23
como linguagem simbólica e ocorre de modo particular, dependendo do espaço
geográfico e/ou regional. Há uma diversidade de festas e que a elas são referidas
“festivais”, “espetáculos”, “festas indígenas”, a saber: o festival dos Bois de Parintins,
Cirandas de Manacapuru; Sairé, em Santarém; Tribos de Juruti; Círio de Nazaré;
Arraial do Pavulagem, em Belém; Marujada em Bragança e Marabaixo, em Macapá.
Entretanto, não se pode desconsiderar, também, o modus vivendi dessas popu-
lações próprias dessa região, visto que a relação desses indivíduos com a natureza
se dá em um complexo ambiente de cultura povoado de mitos e símbolos, de
emoção e de poesia. Essa é a realidade do homem amazônico, aquele que vive
todas as possibilidades em seu próprio mundo, não somente, mas além do real,
um mundo tão denso e vasto, dentro e fora da floresta, um mundo imaginário
(LOUREIRO, 1985, p. 09-16), e que esse ambiente se constitui de um cenário
subjetivo que se reatualiza a cada ano e simbolicamente, visto que a cada novo ano
o círculo que se fechou recomeça. Portanto, de maneira global, a festa se elabora
das interações entre as pessoas.
Para Amaral (1998, pp. 7-8), as festas decorrem de,

Um fator constitutivo de relações e modos de ação e compor-


tamento, ela é uma das linguagens favoritas do povo brasileiro
(...) Ela é capaz de, conforme o contexto, diluir, cristalizar,
celebrar, ironizar, ritualizar ou sacralizar a experiência social
particular dos grupos que a realizam.

Ressalta ainda Amaral (1998) que a festa medeia estruturas econômicas, sim-
bólicas e míticas ajudando nos conflitos e nas contradições da vida social, ou seja,
entre a utopia e a ação transformadora. Que na vontade de realizá-la os grupos
tendem a organizar-se e, com isso, a atingir finalidades específicas, além de que,

[...] toda festa, mesmo quando puramente laica em suas ori-


gens, tem certas características de cerimônia religiosa, pois,
em todos os casos ela tem por efeito aproximar os indivíduos,
colocar em movimento as massas e suscitar assim um estado
de efervescência, às vezes mesmo de delírio, que não é des-
provido de parentesco com o estado religioso (DURKHEIM,
1968, p. 547).

24
Desse modo, nas festas de cunho sagrado, os indivíduos que formam a co-
letividade são os que vivenciam a mesma religião e “sentem-se ligados uns aos
outros pelo simples fato de terem uma fé comum (DURKHEIM, 2008, p. 28).
Independente do grupo, o homem religioso sente necessidade de ocupar “seu”
espaço sagrado, por meio do qual se orienta no universo. Essa necessidade não é
arbitrária e se apresenta tal qual em nossa existência diária, na qual consolidamos
o nosso mundo particular pelos espaços mais significativos vivenciados em nossa
trajetória de vida, como, “a paisagem natal ou os sítios dos primeiros amores, ou
certos lugares na primeira cidade estrangeira visitada na juventude” (ELIADE,
1992, p. 18).
Para o indivíduo não-religioso esses lugares também são especiais, pois guardam
qualidades únicas como lugares sagrados do seu universo privado, e isso ocorre no
quotidiano entre amigos em que, por mais simples que seja o objetivo, há sempre
um motivo para festejar, configurando-se atualmente como um novo cenário social.
Novos paradigmas têm surgido com ênfase na cultura, na política e na eco-
nomia imbricados à ideia de pós-modernidade e com eles as discussões sobre a
complexidade de expressões artístico-estéticas, por exemplo, imersas em expressões
da cultura popular. Estas, por sua vez, adaptam-se a um modelo que possibilita
manter as características básicas de produção e consumo em seu próprio meio social.
Todavia, não se concebe a ideia de pós-modernidade sem relacioná-la a de
modernidade. Desse modo, afirma Coelho (1997, p.310), que um traço distintivo
entre elas seria o modo como os indivíduos se relacionam com a ideia de tempo,
pois na pós-modernidade o individualismo cede lugar a pessoa plural; a crença no
presente e o racionalismo sucumbem em detrimento da valorização do presente e
do sentimento; outra característica da modernidade residia em relação às diferenças:
a redução de tudo em um.
Hoje, o “espírito coletivo” da pós-modernidade inclui a diversidade, em todos
os aspectos: cultural, religiosa etc. e, a partir dessa nova configuração, percebe-se,
de modo holístico, que a imagem projetada de um mosaico preserva a harmonia
entre as partes, apesar de suas diferenças, (Maffesoli, 2005).
Outro olhar na pós-modernidade enfatiza as vibrações espirituais e artísticas
que são acentuadas dando lugar à sintonia e a empatia com os outros humanos.
Trata-se de uma construção social, de base sólida, da “ética da estética” (das emoções
e do compartilhamento dos afetos), perceptível nas diversas manifestações artísticas,
esportivas, entre outras, na interdependência do coletivo na ordem pós-moderna.

25
Propõe Sodré (2017) diante da sociedade que começa a se dissipar que “o outro
não é o espelho da gente”.
Na contramão da filosofia cartesiana, Sodré (2017) apresenta modos ou formas
diferentes de ver e pensar o mundo, sobretudo, o outro, ao que ele denomina de
filosofia nagô. Nesse modo, faz-se o passeio pela crença do outro sem a dimensão
do preconceito, visto que a verdade é consensual, é relativa. Ao pensar os mitos
das festas amazônicas, Sodré afirma que os mitos são constitutivos, o mito nos cria,
nos institui e sustenta a cultura. Maffesoli (2005) vê esse novo momento como
“crise”, que não é apenas econômica, mas social – uma atmosfera mental diferente,
específica dessa época. Segundo o autor,

O que salta de tudo isso é uma inegável mudança no modo


de viver as relações sociais. Todos os pontos fortes, a partir
dos quais a modernidade as concebera, indivíduo, identidade,
organizações contratuais, atitude projetiva, dão lugar a uma
outra realidade muito mais confusa, sensível, emocional, de
contornos pouco definidos e do ambiente evanescente. (MA-
FFESOLI, 2005, p. 348).

Nesse ambiente pós-moderno a Amazônia se projeta, quer seja pela condição


geográfica ou espacial, pela biodiversidade ou pelas interações sociais nas quais
muito de sua realidade é apresentada, especialmente pela mídia. Como represen-
tação simbólica, a Amazônia reflete um ecossistema rico e diverso, em contraponto
a uma pobreza social e conflitos sobre a terra que invadem o contemporâneo com
a dominação forte da colonialidade. De modo positivo, a projeção motivou e via-
bilizou o acesso aos bens de consumo da medicina caseira, dos artefatos indígenas,
dentre outros, para eclodir como produtos da “marca”.
Nesse processo, passou à produção de inúmeros artigos, tanto do artesanato,
quanto da indústria da beleza e farmacêutica, além do turismo em todas as suas
vertentes agregando valor econômico e mercadológico a esses produtos. Para Amaral
Filho (2008, p. 16), a transformação da natureza em produto produziu uma marca
global “institucionalizada por parâmetros socioeconômicos e culturais publicizados
em escala mundial pelo campo da comunicação”.

26
Para o objetivo proposto nesse artigo, buscou-se fazer a leitura das músicas
dos Bois, de Parintins e das Tribos, de Juruti – no ano de 2019 -, a fim de iden-
tificar traços de colonialidade nessas composições. Vale lembrar que mesmo na
contemporaneidade as festas indígenas ainda “guardam lembranças de um passado
que se perdeu na voragem da conquista” (SOUZA, 1993, p.26), e assim “celebrar
festivamente as origens não é pois um simples retorno lembrador ao passado en-
quanto passado, mas a memória participativa de um passado matricial que envolve,
incorpora e identifica o presente de quem celebra” (TEIXEIRA, 2010, p. 31).
A Festa das Tribos (2019) ou o 25º Festribal, cujo tema é “Resistência Indígena
no Coração do Brasil” busca valorizar a cultura, o legado e trata da resistência in-
dígena configurada em todo o processo histórico de violência e opressão na região
desde a chegada do colonizador. As duas tribos de Juruti, autodefinem-se como:
Tribo Munduruku – a composição homenageia as Amazonas, mulheres guer-
reiras denominadas pelo espanhol Francisco Orellana, e que Frei Gaspar de Carvajal
as chamou de índias Icamiabas, essas lendárias mulheres habitavam a região do rio
Nhamundá, entre os estados do Amazonas e Pará. Sob as cores amarelo e vermelho
e o título ‘Brasil, não silenciarás o nosso canto ancestral’, a tribo Munduruku faz
lembrar que os povos indígenas continuam sendo explorados desde a chegada do
estrangeiro, e canta do tribódromo em forma de vocativo que diz:

Raça Munduruku sinta a emoção do verdadeiro amor/ Can-


te com emoção Mundurukus eu sou/ Nada me separa dessa
tribo/ Meu sentimento é verdadeiro e guerrido/ Aqui é forte
a emoção, Eu sou dono desse chão[...] vibra, me contagia,
você é a energia da raça/ Sinta o banzeiro, faz um banzeiro
[...] Mundurukus é minha paixão, é sangue / é raça.

Tribo Muirapinima – Em cores azul e vermelho a tribo trouxe o canto “Legado


Indígena” e ressaltou a importância dos povos indígenas impresso nos costumes e
tradições, lendas, indumentárias e o modo de vida, destacando o amor pela mãe-
-terra e a necessidade de proteção e preservação do meio ambiente.

O canto é denominado “espirito” e expressa emoção:

27
Oh, oh, oh, oh/ Deixa fluir a emoção azul-vermelha/ e vem
cantar com a nação Muirá. [...] Muirapinima é amor...é garra e
calor. Vem pro delírio da galera azul e vermelha/ que comanda
a alegria dessa festa/ quando toca o regional [...] Muirá é magia,
a luz que nos guia e faz cantar minha nação [...].

Em Parintins a disputa ocorre entre a nação vermelha e a azul e branco. São


elas, respectivamente:

Boi Garantido – O canto “Sonhos de Liberdade” é um chamamento de (re)


conhecimento do povo amazônico relacionado à terra. Por meio de “O Boi da
Liberdade do Povo”, enfatizou o folclore e como resistência “pelo fim da violência, do
machismo e da homofobia” e liberdade.
“Sonhos de Liberdade”

Vem, vem, Brasil [...] nossa arte é guerreira/ é pulsante altanei-


ra/ é o espelho do povo/ é cultura popular [...] Na estrada do
tempo, sonhar, avançar, conquistar/ é, é, é a cara de Parintins/
é, é, é identidade que vem da raiz. [...] a toada é guerreira ver-
melha, revolucionária do meu boi-bumbá/ liberdade, cultura
e arte, bandeiras de sonho a tremular/ o jeito, a fé, o gingado,
o calor/ mulheres e homens de ferro e flor, um povo festeiro/
orgulhosos e bravio, e nessa mistura meu nome é Brasil.

Boi Caprichoso – “Mátria Brasilis: do Caos à Utopia” foi a narrativa do es-


petáculo sobre o nascimento do universo. Das lutas travadas e liberta pela utopia,
da intolerância às questões sociais em evidência. A mátria une a nação e ilumina.
“Um Canto de Esperança Para Mátria Brasilis”
É o Brasil, mãe negada/Mátria viva explorada/Terra forte açoitada/Pietá
destronada/É o Brasil misturado
Pindorama loteado/Cativeiro mascarado/De contraste camuflado/É o Brasil,
cancioneiro que se faz de luzeiro/Bradando a arte do povo/Que ecoa em canto
novo/O Brasil que a gente quer reinventar/Vem brincar boi-bumbá/No touro
brasileiro/Vem revolucionar/Vem meu povo festeiro/Caprichoso convida o País/
Pra brincar no boi de Parintins.

28
A sociabilidade como suporte das festas amazônicas

Antes de se tornar produto de exportação, as festas amazônicas possuíam as


mesmas características encontradas nos diversos tipos de festas: a aproximação entre
os indivíduos; a produção de uma condição de “efervescência coletiva” (desenca-
deada por músicas, gritos e danças variadas) e, transgressão das normas do grupo,
além de mediar diferenças culturais e sociais entre os indivíduos (Durkheim, 1968),
portanto, são evidenciadas as sociabilidades entre os indivíduos, as interações sociais
como prática no quotidiano da comunidade.
Nesse contexto, Simmel (1983) concebe como interações sociais as trocas
simbólicas que permeiam o ambiente da festa. Como processo social básico é o
que constitui a sociedade, ou seja, a pluralidade e as várias formas de interação
forma o substrato social. Nesse movimento de consenso e conflito, competição,
fazer, desfazer, refazer, um permanente vir-a-ser promove o ambiente da festa por
meio dessas múltiplas interações.
Para Simmel (1983, p. 168)
[...] “sociedade” propriamente dita é o estar com um outro, para um outro,
contra um outro que através do veículo dos impulsos ou dos propósitos, forma
e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais. As formas nas
quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberadas de todos os laços
com os conteúdos; existem por si mesmas e pelo fascínio que difundem pela
própria liberação destes laços. É isto precisamente o fenômeno que chamamos de
sociabilidade (grifo nosso).
Essa categoria sociológica é definida por Simmel (1983, p.169) como “a forma
lúdica da sociação” (inúmeras formas de realização de seus interesses), que não se
fixa às necessidades e interesses específicos, mas que “se desenvolvem conjuntamente
em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se realizam” (SIMMEL,
2006, p.60). Considera-se, portanto, que as formas de sociação vivenciadas na
comunidade ou no grupo de indivíduos são acompanhadas de uma satisfação de
estar junto, pelo valor da formação da sociedade enquanto tal.
Na contemporaneidade, a festa - como ambiente de sociabilidades – engendra
novas possibilidades de ampliação evidenciadas pela comunidade e impulsionada
pela propaganda e se transforma em “rituais de consumo”, da festa da tradição
para o espetáculo.

29
Amaral e Alves (2018, p.39) afirmam que:
A evolução das manifestações tradicionais para os espetáculos contemporâneos
atinge a memória e a linguagem destes eventos pelo enquadramento midiático,
portanto, pela publicização, mas antes de tudo por um formato que denominamos
de rituais de consumo.
Dessa forma, as festas amazônicas têm alimentado o ciberespaço com o apoio
dos meios de comunicação, especialmente do jornalismo, que estrategicamente
pauta “cenários” transformados em espetáculos. Da origem das festas amazônicas
para o espaço destinado a elas houve a ressignificação dos mitos e das lendas, os
quais têm que ser reatualizadas a cada novo evento, a fim de se encaixar no formato
midiático da pós-modernidade.

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32
SAIRÉ DE ALTER DO CHÃO, CADÊ A FESTA DE
CURUMINS E CUNHANTÃS?11
Manuel Dutra12

“Uerá, Uerá, Yandé çairé


Ocara uaçú rupi
Yané Iara renondé
Yané Iara renondé
Yané Iara Tupana çupé”.
(Com Deus Nosso Senhor adiante; e por Deus, Nosso Senhor, vamos com
nosso Sairé brilhante pela rua).

Às três e meia da tarde acontecia a grande procissão da festa, que terminava


com uma comprida ladainha na igreja. E tudo se repetia: buscava-se o juiz e a
juíza, o padre. E o cortejo percorria as ruas, tendo à frente o Sairé e, logo a seguir,
o andor de Nossa Senhora da Saúde. À noitinha, após a ladainha, era a “cecuiara”,
ou seja, o banquete da festa. 
Nessa ocasião os juízes da festa ofereciam um prato de comida aos juízes esco-
lhidos para o ano seguinte, igualmente acontecendo com os mordomos. Na sala
do Sairé, apesar do clima de festa, era proibida a entrada de pessoas de chapéu à
cabeça ou portando cigarros. Quem assim o fizesse, poderia ser preso e acorrentado.
A liberdade só seria conseguida ao preço de uma garrafa de pinga ou de qualquer
bebida da preferência do juiz. E, depois que o padre se retirava, dançava-se no
barracão, ao som de músicas de ritmo repetitivo e cuja letra é, via de regra, uma
miscelânea de português e língua geral. Na casa dos festeiros podia haver dança
até o amanhecer, ao ritmo do lundu, da rasteira, do xote ou mesmo da mazurca. 
11 Este artigo foi composto por duas reportagens publicadas pelo autor. Lembranças do Grande Car-
naval Amazônico, no Jornal O Liberal, em 2010 e postado no Blog do Manuel Dutra em 06/02/2016, e Sairé
de Alter do Chão, cadê a festa de curumins e cunhantãs, no jornal O Liberal em 03 de julho de 1977 e postado
no Blog do Manuel Dutra em 11/09/2012.
12 Professor Doutor da Faculdade de Comunicação e do Programa de Comunicação, Cultura e Ama-
zônia, da Universidade Federal do Pará – UFPA.

33
No último dia era a varrição. No barracão do Sairé festeiros, empregados e o
povo comiam e bebiam a valer. Havia ainda a cerimônia de derrubação do mas-
tro, cuja forma parece ter variado de época. Mais recentemente havia o mastro
do juiz e o da juíza. Um indivíduo com capacidade de fazer palhaçadas subia no
pau e jogava nas pessoas embaixo as frutas amarradas desde o pé até o topo, onde
ficava uma garrafa de pinga, a ser avidamente disputada pelo povo. Uma bandeira
branca, com a figura do “Divino”, em vermelho, é finalmente lançada do alto do
mastro e aquele que a pegar ou aquele em quem ela bater ao cair, será o juiz ou a
juíza da próxima festa. 
Houve épocas em que foi incluído o que eles chamam de marabaixo no ritual
de encerramento, que consistia na formação de blocos animados que percorriam a
Vila. Cantando “marabaixo”, eles entravam de casa em casa, dançando, comendo e
bebendo o que encontrassem nas cozinhas e armários, sem que os donos pudessem
reclamar. É comumente aceito que a festa do Sairé sempre terminava com a dança
do macucauá, no barracão, da qual todos participavam. Era uma homenagem ao
pássaro do mesmo nome, considerado, por eles como o “relógio” da Vila, pois ao
seu canto, no final da tarde, todos deviam largar o trabalho e voltar para casa. E a
dança era uma espécie de despedida. Terminada a festa da padroeira, todo o ritual
era recomeçado para a de São João.
Com essa reza o povo Borari, de Alter do Chão, e dezenas, talvez centenas
de outros povos, davam início ao grande carnaval amazônico, quando o Sairé e
muitas outras formas de festas duravam uma lua, isto é um mês, ao longo do Rio
Amazonas e seus afluentes.
O Sairé passa por mudanças sem relação com as raízes culturais da região.
O que seria então o Sairé? Basicamente trata-se de um escudo, em forma de se-
micírculo, confeccionado de cipó, a que primitivamente chamava-se também de
“Turyua”. Sua composição e decoração multicolorida variam de lugar para lugar,
porém a forma básica é encontrada em todos os locais onde foi introduzida a
dança característica: claramente uma mistura dos valores culturais indígenas com
as exigências do colonizador luso, cristão. O Sairé era usado preferencialmente na
festa da padroeira do lugar, Nossa Senhora da Saúde e na de São José.
Naquela época, o padre responsável pela freguesia não morava em Alter do
Chão. Os dois santos eram festejados em dias seguidos, três dias para cada um.
Na véspera da chegada do padre, a população arrumava tudo para a festa, prepa-
rava a igreja, que tinha um “tesoureiro” (que inclusive orientava ao padre) e, com

34
especial esmero preparava e ornamentava o barracão do Sairé, onde deveria sempre
haver um local para lautas refeições e beberronias e uma “Sala do Sairé”, espécie de
santuário tão respeitado quanto o sacrário dentro da igreja da padroeira. Havia o
“capitão”, que se encarregava da coordenação geral da festa e era quem motivava a
população para o acontecimento. Depois de desembarcar do batelão que o trazia
de Santarém, o padre dirigia-se para a casa paroquial, onde aguardava as “ordens”
dos organizadores da festa.
A seguir, texto de reportagem que publiquei em 1977 no jornal O Liberal,
de Belém. Primitivamente uma festa protagonizada por curumins e cunhantãs, a
procissão do Sairé é uma das mais antigas tradições do interior da Amazônia, que
pode revelar interessantes aspectos da ação dos jesuítas, nos primórdios da coloni-
zação. A ela referem-se dezenas de autores, alguns com pontos de vista divergentes,
porém, no contexto, todos os registros de viajantes e outros observadores coincidem.
Hoje em dia extinta como ritual religioso, a festa do Sairé está sendo revivida como
folclore na vila de Alter do Chão, município de Santarém, seguramente um dos
locais onde a manifestação foi mais pujante.

O dia da festa

O dia principal de comemorações à padroeira começava com alvorada, que


consistia em toques do sino da igreja, ritmados e coordenados com o toque de
uma flauta e um tambor. Por volta das oito horas da manhã, os doze mordomos e
os empregados da festa (todas as pessoas envolvidas na organização) já haviam se
deslocado até as casas do juiz e da juíza para buscá-los solenemente e já formavam
uma procissão em frente ao barracão do Sairé. Com escudo à frente, levado por
uma velha, de preferência coxa ou que assim se fazia, eles iam ao som da flauta,
tamborins e outros instrumentos rústicos até a casa do padre, buscá-lo para dar
início às solenidades.
Depois de receber a saudação do Sairé, o padre integrava-se ao grupo que o
conduzia ao barracão, entoando cantigas em língua geral, numa espécie de mo-
nótono cantochão. O velho Umbelino ainda recorda um desses refrões: “aneuiara
tupana recuirá”, que ele diz significar “padre que representa Deus”. Ao chegar à sala

35
do Sairé, o padre benzia as varinhas enfeitadas e as entregava aos doze mordomos
(seis homens e seis mulheres), que serviam, respectivamente, ao juiz e à igreja.
A partir daí formava-se a grande procissão: um casal de juízes, um casal de
procuradores, um capitão, um sargento, dois alferes, os rufadores de caixa, um
gaiteiro, os mordomos, todos tendo à frente a “saraipora”, a mulher que levava
o Sairé, com gestos rítmicos. Depois de percorrer as ruas do Vilarejo, o cortejo
chegava à igreja da santa, onde todos entravam com seus trajes e instrumentos,
à exceção da saraipora, que deixava o Sairé encostado à parede, do lado de fora
do templo como se fora um ato sacrílego aproximá-lo do altar onde logo mais se
celebraria a grande missa solene.
Durante o ato litúrgico os juízes tinham lugar destacado em frente ao altar-mor,
rodeados de seus mordomos. Ali não havia reza na língua indígena, pois quem
presidia o ato era o padre e as orações eram em latim. Finda a cerimônia, todos
voltavam solenemente ao barracão, onde o padre recebia as varas dos mordomos
e as depositava ao lado do Sairé, já instalado em sua sala adornada. Uma primeira
refeição era servida aos juízes e ao padre, e este se retirava para sua casa.
Na lembrança dos mais antigos de Alter do Chão, um dos aspectos que mais
chamava a atenção na celebração da padroeira era a participação quase unânime dos
habitantes do lugar. Um clima de festa contagiava a todos, tanto aos “empregados”
como ao povo de modo geral, com as pessoas bebendo café a valer até o meio-dia,
bastando chegar ao barracão onde a bebida era servida.

Índios e caboclos

“É difícil explicar isso tintim por tintim”, desiste o velho Umbelino. Na ver-
dade, para os mais antigos, muitos dos quais ainda chegaram a dançar o Sairé “no
tempo em que isso era coisa séria”, só resta a recordação. “Isso era uma festa alegre,
mas só pra caboclo. Depois que a ‘civilidade’ chegou, mudou tudo”, desabafa ele.
Com certa razão ele critica os mais jovens que agora tentam reviver a tradição, pois
“eles não levam a sério”. Naquele tempo não havia “pavulagem” e “até os padres
gostavam” e se não gostavam, vários deles a toleraram. 
Este ano, inclusive, na festa que a comunidade de Alter do Chão tenta reviver
desde 1973, entre 23 e 26 de junho, muitos dos velhos nem chegaram a participar.
Um deles foi o velho “Café”, figura ainda popular e grande animador do Sairé

36
em épocas passadas. Ele acha que os principais detalhes do acontecimento estão
desvirtuados. Outros, como a “vovó” Anacleta, negra descendente de escravos e
cuja idade é estimada em 117 anos, acham que “o que mais se parece com a anti-
guidade é a dança do macucauá”, este ano revivida com rara beleza. Da festa como
um todo, pouco ela se lembra. Na observação de outros, como Manoel Sardinha
Vasconcelos, 71 anos, Anacleta tem razão de não se lembrar muito, de vez que “ela
é mulata e essa era uma festa que passou dos índios para os caboclos”. 
No relato de observadores mais atentos, como “Neco” Sardinha, o Sairé teria
sobrevivido como culto religioso até por volta da década de 1920. Como ele,
ninguém sabe precisar quando nem porque a manifestação desapareceu. Além das
causas que sabidamente motivaram o desaparecimento desse tipo de manifestação
inocente da cultura popular, há indicadores mais ou menos seguros das causas
imediatas no fim do Sairé de Alter do Chão. Na vila, algumas pessoas possivel-
mente influenciadas por observadores recentes e apressados, afirmaram que a festa
foi abolida com a chegada dos missionários norte-americanos. E provam que um
deles chegou mesmo a mandar queimar um antigo escudo do Sairé. 
Os missionários, na verdade, não chegaram a proibir a mistura profano-religio-
sa, revelam antigos juízes e mordomos. Foi, antes, a tentativa de “recristianizar” o
culto que acabou por levá-lo ao desestímulo. No princípio deste século, o primeiro
prelado de Santarém, Dom Frederico Costa, nascido na vila de Boim, rio Tapajós,
proibiu as esmolações, caravanas que saíam em viagens de até um mês de duração,
pedindo donativos para a festa de Nossa Senhora da Saúde, possibilitando assim
o sucesso material da comemoração. Isso levou a uma situação hoje criticada pelo
velho Manoel Sardinha Vasconcelos: “Antigamente, a gente mesmo fazia tudo e
escolhia os mais velhos para organizar. Agora, inventaram um tal presidente da festa
que tem de ser um comerciante e a gente não sabe mais da prestação de contas”, 
Com a chegada dos franciscanos alemães à Prelazia de Santarém, em 1907,
o Sairé continuou e ainda é lembrada a figura de frei Ambrósio Philipsenburg,
grande incentivador da música na região. E foi esse incentivo que levou o povo
de Alter do Chão a apreciar a música de banda, “mais civilizada”, em detrimento
da tradicional pau-e-corda. Com a introdução da festa de arraial tal como hoje se
conhece, por volta de 1922 o barracão do Sairé passou a ter um forte concorrente
na pracinha da igreja. Além disso, em 1928 morreu o flauteiro Estácio, indivíduo
pantomimeiro que soprava a flauta, tamborilava e fazia gracejos ao mesmo tempo, e
seu desaparecimento foi um golpe de morte na festa do povo de Alter do Chão, cujos

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melhores representantes da “sairezada” transferiram-se para Belterra e Fordlândia,
com a instalação da Companhia Ford Industrial do Brasil na região do Tapajós. 
Pouco a pouco o Sairé foi sendo desestimulado, até que um dia houve um
atrito entre o padre e os habitantes. Ele queria mudar o costume segundo o qual
os juízes ocupavam “tronos” diante do altar, na hora da missa, acompanhados dos
mordomos portando suas varas. Mesmo com a explicação de que as varas eram
bentas, o padre não concordou. Quando os missionários norte-americanos chega-
ram, praticamente a tradição estava extinta e o que restava era uma leve menção ao
Sairé por ocasião da festa da padroeira. Nessa altura, a deterioração havia chegado
a tal ponto que já existia, na Vila, até mesmo um Sairé de ferro. 

Processo inverso 

Teria, então, se verificado um processo inverso desde a introdução do Sairé na


liturgia católica. Tudo indica que, com o passar do tempo, a população indígena
assimilou integralmente a imposição jesuítica, transformando-a numa manifes-
tação sua. A evolução levou à “paganização” da “piedosa invenção” dos padres,
no dizer de Câmara Cascudo, levando os missionários a perder seu controle. Os
“curumins” e as “cunhantãs” cederam lugar às velhas coxas, e o hábito de aliar a
bebida à festa e a introdução de detalhes pouco “cristãos” teriam motivado mais
uma lenta, mas segura intervenção dos religiosos nos valores do povo recalcitrante.
Teria, assim, falhado a regra introduzida por Anchieta, de “pegar” as almas adultas
através das crianças. 
De acordo com Nunes Pereira, presidente do Instituto de Etnografia e So-
ciologia do Amazonas por volta de 1950, e um dos observadores da fase final do
Sairé de Alter do Chão, aquela prática foi comum em muitos lugares no Estado
do Pará, Amazonas e Amapá. Porém foi no município de Santarém onde a dança
teve vida mais longa, tendo existido também nas comunidades às margens dos
lagos Curumu e Paracari, no município de Alenquer. 
A descrição de Nery Walter Bates, quando de sua passagem por Serpa (hoje no
município de Itacoatiara, AM), em muito coincide com a de dezenas de viajantes,
à exceção de alguns detalhes:

De manhã todas as mulheres e moças vestindo camisas de

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alvíssima gaze e saias estampadas, foram em procissão à igre-
ja, primeiro dando uma volta pela cidade para recolher os
diferentes “mordomos” ou serventes cuja ocupação é assistir
o juiz da festa. Esses serventes carregam, cada um, uma longa
vara branca, enfeitada de fitas coloridas; diversos meninos
também os acompanham grotescamente, vestidos com es-
palhafato. Três velhas seguem à frente, carregando o Sairé,
um grande estandarte semicircular, envolto em algodão (em
rama) e enfeitado com adornos, pedaços de espelho e outras
coisas mais. Elas dançam acima e abaixo, cantando o tempo
todo um monótono e plangente hino em língua tupi e em
frequentes intervalos volteiam para encarar os acompanhantes
que, então, param todos, por alguns momentos (BATES apud
PEREIRA, 1989, p. 29). 

Prossegue Bates (1989, p. 29), revelando que “informaram-me que o Sairé foi
um ardil adotado pelos jesuítas para atrair os selvagens à Igreja, porque esses, por
toda parte, seguem os espelhos, nos quais veem, como se estivessem magicamente
refletidas, as suas próprias pessoas”. 

Rito católico-tupi

Em Monte Alegre também se verificou alguma penetração do Sairé, a que


José Veríssimo, em “Scenas da Vida Amazônica”, refere-se como uma “ordem de
crenças católico-tupis”, sendo que ali se festejava Nossa Senhora de Nazaré, como
dezenas de outros Oragos eram venerados noutros lugares, pois o Sairé não tinha
ligação mística específica com um só santo da Igreja. 
Veríssimo relaciona as providências para o acontecimento e descreve a pitoresca
arrumação do lugar da cerimônia, de “aspecto delicioso”. Menciona o sistema de
iluminação utilizado pelos silvícolas, considerado por ele como “original”:

Rachada a extremidade de uma vara em quatro partes, em cruz,


introduziam nessas fendas dois pequenos paus que, abrindo-se,
formavam com elas um suporte onde assentam a metade de
uma laranja-da-terra - sem o miolo - a qual cheia de azeite

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de andiroba, por eles mesmos fabricado e com um ou dois
pavios acesos, constitui essa lanterna primitiva (VERÍSSIMO,
1883, p. 07).

E, apesar do lugar comum de que os índios eram beberrões inveterados, os


autores mencionam o tarubá, de preferência azedo, capaz de embebedar, e outras
bebidas, porém, o excesso parece ter ocorrido mais recentemente entre os caboclos
que entre os índios. 
A ênfase da festa do Sairé era a dança e o canto. Para Veríssimo, trata-se de:

[...] uma cerimônia religiosa e profana, entram nela a reza e a


dança. Esta consiste em passos certos, como o marcar passos
dos soldados, com um movimento em que a velha do centro
serve de eixo sobre o qual gira o Sairé, nos arcos do círculo que
com elas fazem as outras velhas: uma para frente, outra para
trás e vice-versa. O canto é uma melopeia triste, monótona e
rouca (VERÍSSIMO, 1883, p. 08)

Mas, qual o sentido e qual a origem do termo Sairé? Esta pergunta não a res-
pondem nem os caboclos de Alter do Chão nem os registros mais antigos que se
conhecem. Escrito, ao longo do tempo, de diversas formas - Çairé, Sahyré, Sairée,
Sahiré e Sairé, há inclusive os que afirmam ser o termo uma corruptela de soirée,
do francês. Nem mesmo se sabe o significado da forma semicircular do objeto
venerado. Seria uma imitação dos escudos dos soldados portugueses? Ou uma
referência à lua? Idêntico objeto já existiria antes do colonizador? É possível que
sim e os jesuítas o teriam apenas aperfeiçoado para a catequese. 
É possível que o nome tenha também sido obra da imaginação dos missionários,
pois referências mais antigas indicam para o círculo de cipó o nome de “turyua”,
que significa alegria. Alguns mencionam a formação de “açaí” mais “eré”, que
seria “salve, tu o dizes”. E Sairé, tanto o nome como o objeto, seria uma forma
requintada de saudação, suposição mais ou menos aceitável, se observado o ritual
como um todo.

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Lembranças do grande carnaval amazônico

Os imensos festivais indígenas configuravam algo que se poderia chamar de um


Grande Carnaval Amazônico, embora com a manifestação realizando-se em épocas
diferentes em cada aldeia, sendo festivais que envolviam a comunidade inteira. O
assassinato em massa de muitos povos que habitaram a Amazônia pré-conquista
coincide com o assassinato de sua alegria e de suas imensas festas tribais. Associa-
do, como folclore, à vila de Alter do Chão, no Tapajós, bem perto de Santarém,
muitos imaginamos que o Sairé seja uma coisa dos nossos dias apenas, uma festa
engendrada por “caboclos”, palavra esta com que todos nós, caboclos ou não, nos
depreciamos uns aos outros.
Em 1972, fiz uma reportagem para O Liberal, tentando mostrar que a festa
não era assim só coisa de hoje. Aliás, hoje guarda cada vez menos elementos do
passado, agora já inclusive mixado a uma briga de dois botos, coisa que nada tem
a ver com a originalidade do Sairé. Não faz mal que inventem brigas de boto, de
bois e do que mais seja, pois a vida cultural é dinâmica, como a sociedade, mas não
se pode misturar impunemente as coisas, sobretudo quando se trata de aspectos
de uma manifestação cultural tão antiga.

Tradições

No Primeiro Congresso Brasileiro de Folclore, há mais de 50 anos, o ama-


zonense Nunes Pereira (1989) mostrou como o Sairé era uma festa que envolvia
toda ou inúmeras partes da Amazônia, e de sua exposição saiu o livro “O sairé e
o marabaixo: tradições da Amazônia”. Em localidades do Pará, do Amapá e do
Estado do Amazonas, e com destaque para a região do Tapajós, por quase toda
parte se praticava a dança em certas épocas do ano. E esses registros estão em
diversos autores.
Diz Nunes Pereira que as tradições do Sairé e do Marabaixo chegaram até
nossos dias (já apreciadas como folclore), provindas de “três fontes de emoção
e de religiosidade: do conquistador luso, do escravo negro e do índio animista
e curioso”13. A ordem dessas “três fontes” de Nunes Pereira pode ser invertida, e
13 Id,1989, p. 12

41
mesmo retirado o negro, ao menos se quisermos entender a origem e a prática
de algo parecido com o Sairé nos primórdios da colonização, já que de antes da
conquista não há registros. Tudo indica que era uma festa dos grupos nativos a
quem o europeu chamou de índios que, em certas épocas do ano faziam imensos
festivais, aliás em nada diferentes de todos os povos.
De fato, como se verificava entre as classes populares europeias da Idade Média,
ocorriam grandes festivais entre os grupos indígenas já missionados dos primeiros
momentos da colonização. Na Amazônia, embora ainda merecendo estudos subs-
tanciais, o Sairé é concebido por alguns autores como resultado de uma imposição
cultural do missionário no sentido de “cristianizar” aquilo que o colonizador po-
derá ter associado à carnavalização medieval, em que massas populares tomavam
os espaços públicos, ora com permissão, ora sob repressão da hierarquia da igreja
e do estado.

O sairé e o círio

O escritor paraense José Veríssimo, referindo-se à manifestação a que assistira


em Monte Alegre em 1876, classifica o sincretismo do Sairé como pertencente a
uma “ordem de crenças a que pudéramos chamar de católico-tupis” (VERRISSI-
MO, 1883, p. 7). Tais resquícios, já no final do século 19, seriam reminiscências
de uma forma de negociação entre conquistador e conquistado, tornando possível
a permanência de elementos das festas tribais originárias. Segundo Veríssimo, uma
das características das cantigas era a monotonia e a tristeza, a que ele chama de
“melopeia triste, monótona e rouca”14.
Nada simpático a tais manifestações de grupos inferiorizados, Veríssimo co-
loca-se na posição dos detentores da cultura oficial, dominante, ao deplorar “o
caráter pouco religioso” dessa “tão popular festividade amazônica”, a cuja extinção
gostaria de assistir, igualmente como “a pomposa e célebre solenidade paraense de
Nossa Senhora de Nazaré – cuja extinção ardentemente desejo, para honra da nossa
civilização”, afirma, referindo-se à festividade do Círio. Portanto, há mais de cem
anos o Sairé foi, de certo modo, comparado ao Círio (VERISSIMO, 1886, p. 73)
No início da década de 1970, quando a festa foi restaurada, como folclore,
em Alter do Chão, tanto pela manifestação em si como pelos relatos de moradores
14 Id, 1883, p. 8

42
idosos do lugar, percebia-se uma nítida relação entre o profano e o religioso, embora
se tratasse, já naquele momento, de simples memória do que teria sido a festa em
seu sentido primeiro, uma lembrança possivelmente muito distante do que foram
as festas tribais de períodos anteriores à chegada do europeu.

Festivais

O Padre João Daniel, que viveu no Pará, em seu livro escrito numa cadeia
portuguesa, intitulado “Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas (1776)
informa que, no meado do século 18, algumas missões ainda toleravam os festivais,
já permeados de elementos culturais do conquistador, como “devotas cantigas” aos
santos. Outras missões já o proibiram em virtude do que o autor classifica como
exageros, entre eles as bebedeiras e posteriores desavenças.
Característico da negociação é a presença, no Sairé sincrético, de um personagem
chamado de “juiz”, que vai atrás do cortejo, com ar “grave” e rodeado de mordomos
solenes. O sentido desse juiz diz bem do universo cultural do colonizador. Significa
aquele a quem cabe julgar, manter a ordem, condenar. Evidente aviso aos grupos
submissos: não se excedam, caso contrário... pode cessar a permissão.
Houve missionários que, por “zelo”, nas vésperas do início dos festivais, iam
acompanhados por alguns oficiais em todas as casas das povoações quebrando
potes e outros e objetos utilizados na festa. Daniel revela que tais atitudes tinham,
como efeito, agoar-lhes as festas, porque [os índios] se melancolizam e vão me-
ter-se nos sítios. Outros escondem as talhas [com as bebidas] no mato, com que
sempre solenizaram a festa. Tamanha agressão cultural chegava, em alguns casos,
a levar os índios a ameaçarem os missionários, reações tópicas e ineficazes diante
da dominação totalitária a que foram submetidos.
Referindo-se ao processo sociorreligioso da colonização, Gilberto Freyre, em
Casa Grande & Senzala, opina que, sob a influência jesuítica, “a colonização
tomou rumo puritano”, porém, sufocando “muito da espontaneidade nativa: os
cantos indígenas, de um tão agreste sabor, substituíram-nos os jesuítas por outros,
compostos por eles, secos e mecânicos; cantos devotos, sem falar em amor, apenas
em Nossa Senhora e nos santos (FREYRE, 2003, p. 89).

43
Cantar triste

De fato, ao passar por Serpa, hoje Itacoatiara, em 1849, Henry Bates descreve
o Sairé como uma festa permeada por um hino monótono e plangente na língua
tupi. Já não podia ser de outra forma, o cantar triste nada mais era do que o resul-
tado já bissecular da brutalidade com que os índios tiveram devastados os valores
simbólicos e materiais de sua cultura. “Fui informado – diz Bates – de que o Sairé
seria um engodo de que se tinham servido os jesuítas para levarem os selvagens
até a igreja” (BATES, 1979, p. 123), porém o que informaram a Bates não foi o
engodo histórico que determinou a relação branco-índio. Aqui se tratava, segundo
o autor, da utilização de espelhos que adornavam o semicírculo chamado Sairé.
Atraídos pelos espelhos, os índios viam neles poderes mágicos, associando-os ao
missionário e a sua pregação.
Seguramente uma festa inteira triste por ter-se tornado insuportável ao co-
lonizador, por revelar a liberdade de um povo que não singularizava o próprio
corpo, parte do mundo exterior, do ambiente, do cosmo. No contato colonial,
isso chocava profundamente o racionalismo europeu que, como na Idade Média
e no Renascimento, desprezava os festivais populares nos quais o corpo, na cultu-
ra popular, tinha significado totalmente distinto do que representava na cultura
patrocinada pela Igreja e pelo Estado. Preconceituoso com os índios, acrescenta
Freyre: “Entre os caboclos ao alcance de sua catequese [os missionários] acabaram
com as danças e os festivais mais impregnados dos instintos, dos interesses e da
energia animal da raça conquistada, só conservando uma ou outra dança, apenas
graciosa, de curumins” (FREYRE, 2003, p. 89).
Na região amazônica, de fato, os missionários suportaram até determinado mo-
mento os festivais adultos até fazê-los refluírem, substituídos por festas de crianças,
forma encontrada pelo colonizador para fazer desaparecer o riso do índio, um riso
que fazia o missionário chorar, como descreve o Padre João Daniel.
Na Europa medieval e renascentista, de onde provinha a cultura do colonizador,
também o riso popular dos festivais espontâneos chocava a séria cultura oficial,
por simbolizar a liberdade de grupos que não separavam o riso do cotidiano que
costumavam transformar em festa e riso.
Há muitas informações esparsas sobre o Sairé, incluindo as controvérsias sobre
a origem do nome da festa, nome que, ao que tudo indica, designava o semicír-
culo que era levado nas “procissões”. É quase certo, no entanto, que esse nome é

44
posterior à chegada do conquistador. Mesmo após esse período, os imensos festivais
indígenas ainda configuravam algo que se poderia chamar de um grande carnaval
amazônico, embora com a manifestação realizando-se em épocas diferentes em
cada aldeia, sendo festivais que envolviam a comunidade inteira.
Sobre as festas “indígenas” há referências em muitos autores, de Bettendorf, que
em 1661 fundou a missão jesuítica do Tapajós (futura Santarém), a João Daniel
(1776). Este detalha, inclusive, como era o hábito paraense de tomar tacacá há
mais de 200 anos. Há diversificadas fontes que podem ser pesquisadas, em Galvão
(Museu Goeldi), há alguma coisa em teses na UFPA. Câmara Cascudo também
aborda o tema.
Embora sem uma obra de referência básica, o Sairé é encontrado aos nacos
em muitos autores. Seja com que nome for, as festas dos primeiros habitantes da
Amazônia podem ser pesquisadas por quem se interessa em ter uma ideia de como
era a vida dos povos antigos da região, com certeza muito mais felizes antes de
terem suas vidas e sua cultura destroçadas pelo mercantilismo predador do invasor
europeu. O assassinato em massa de muitos povos que habitaram a Amazônia, pré-
-conquista, coincide com o assassinato de sua alegria e de suas imensas festas tribais.

Referências

BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia,


São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1979.
DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. V.1. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2004.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o
regime da economia patriarcal / Gilberto Freyre; apresentação de Fernando Henri-
que Cardoso. — 481 ed. rev. — São Paulo: Global, 2003. Disponível em: https://
edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/229314/mod_resource/content/1/Gilberto%20
Freyre%20-%20Casa-Grande%20e%20Senzala.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.
PEREIRA, Nunes. O sahiré e o marabaixo. Recife: FUNDAJ, Editora Massan-
gana, 1989.
VERÍSSIMO, José. Revista Amazônica, Ano I, Tomo I, edição de setembro
de 1883. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bi-
b=817139&pagfis=152. Acesso em 24 de out de 2022.

45
_______________. Scenas da vida amazônica – com um estudo sobre As Po-
pulações Indígenas e Mestiças da Amazônia. Lisboa: Livraria Editora de Tavares
Cardoso & Irmão, Largo do Camões, 6, 1886.

46
DO BREGA AO TECNOBREGA: RÁDIO, MÚSICA E
FESTA NA AMAZÔNIA PARAENSE

Mauro Celso Feitosa Maia

Abertura

A relação dos meios de comunicação com a criação, produção, difusão e co-


mercialização da música, especialmente a partir da segunda metade do século XX
em diante, no estado do Pará, incide de forma decisiva sobre a história e a cultura
festiva da região, o que a torna indispensável para a compreensão da comunica-
ção e das manifestações sonoras. Algumas características dessa formação podem
ser observadas, cuja influência implicará o rádio, a festa e a indústria da cultura
da música brega15 na Amazônia. A presença de meios de comunicação na região
amazônica, marcante sobretudo nas quatro últimas décadas do século passado,
permite observar um de seus aspectos mais importantes, que sobressai da relação
constituída entre comunicação e música. No final dos anos 1970, destacamos,
em específico, que o estado do Pará contava com uma moderna estrutura de serviços
e prédios públicos presentes na composição da paisagem urbana de suas principais
cidades, nela incorporada uma ordem de transformações típicas da comunicação
mediatizada. Isto, imprimiu destaque à história e à cultura da sociedade local. A
expansão das redes de comunicação neste lugar da Amazônia através de jornal,
cinema, telefone, rádio e televisão, até a internet, mais recentemente, produziu
impactos de diversas ordens. O caso do desenvolvimento expressivo da música
15 Hoje convivem os termos brega e tecnobrega; utiliza-se o termo tecnobrega como uma das
formas atualizadas do gênero musical paraense, como trataremos a seguir.

47
brega paraense nesse contexto é exemplar, ao compor com a tecnologia do rádio,
a indústria de gravação sonora da música e as festas locais.

Transições mediáticas

Por volta de 1960 o movimento de música brega passa a se constituir como


importante produto cultural na região da cidade de Belém, capital do Estado
paraense. Ele acontece como resultado dessa aproximação entre a produção cul-
tural e os novos espaços mediáticos, numa época de “transições mediáticas”, assim
definida por Fábio Fonseca de Castro (2006):

O brega amazônico é um movimento musical surgido nos anos


1960, através do trabalho de Ari Lobo e Osvaldo Oliveira (sob
o nome artístico de Vavá da Matinha), como uma contempo-
rização belenense do movimento da Jovem Guarda, centrado
na cidade São Paulo. O estilo belenense acrescentava à Jovem
Guarda o ritmo calipso caribenho, bastante disseminado na
cidade e um vocabulário local. Momento de síntese, os anos 60
engendrarão um importante produto do encontro entre essa
capacidade de aglutinação que representa a indústria mediática
e o vitalismo do momento (CASTRO, 2006).

Em 30 de setembro de 1961 é inaugurada em Belém a TV Marajoara, primeira


estação de televisão da cidade. Junto com a Rádio Marajoara e o jornal A Província
do Pará, ela passa a fazer parte dos Diários Associados, grupo empresarial de meios
de comunicação no Brasil, pertencente a Assis Chateaubriand16. Esse fato marca
a renovação da ideia de progresso e modernidade para a cidade, já possuidora de
vários jornais e três emissoras de rádios, e passa a favorecer a geração de produtos
culturais, como o da música brega paraense.
Faz parte dessa história a implantação de estúdios de gravação de discos na
própria cidade de Belém. Entre seus principais propósitos, figurava a ideia de
atender a demanda de artistas locais – de Belém e do interior do estado –, tam-
bém chamados de “artistas da terra”. Notadamente, foi a gravação de músicas de
16 Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968), magnata das comunicações no
Brasil, também conhecido como Chatô; foi um jornalista, escritor, advogado, professor de direito, empresário,
mecenas e político brasileiro.

48
compositores e cantores do gênero música popular da região que mais prosperou,
especialmente o segmento associado ao que passou a ser reconhecido como o de
música brega. Antes, os artistas paraenses somente gravavam seus discos nos estú-
dios instalados nas regiões sudeste e sul do Brasil, principalmente os das cidades
do Rio de Janeiro e São Paulo.
Este fato marca a vontade de estruturar organizadamente em Belém todas as
fases envolvidas no processo de criação, produção e comercialização da música
paraense, obedecendo aos critérios de negócios valorizados no mercado, no desejo
de firmar uma experiência nos moldes da grande indústria cultural. Mesmo diante
de alguns fracassos, e bem ao contrário do que ocorrera aos segmentos denomina-
dos de música erudita e de outras vertentes do popular17, o movimento da música
brega paraense, considerado em suas variações18, não insistiu em depender do
incentivo do poder público, ou de algum produtor de uma grande gravadora do
eixo Rio-São Paulo, para conseguir editar e divulgar seu trabalho. O êxito alcançado
por esse gênero nos anos 1980, auge da primeira “explosão do brega” confirma
esse fato, projetado pela gravação em disco fonográfico de vinil de LP (em inglês
long play record – gravação de longa duração) de seus artistas em estúdios locais
e sua consequente repercussão nas rádios de Belém. Em sequência, há o registro
de sucessos cantados por Roberto Villar, em 1997, seguidos por Banda Calypso
(sinônimo de popularidade, venda e audiência nos meios de comunicação em
geral; o grupo musical era liderado então pelo casal Chimbinha e Joelma), Banda
Tecnoshow (liderada por Gaby Amaranto), as aparelhagens de som e uma gama
diversa de produtores e artistas do chamado movimento do brega19 e expressões
decorrentes mais atuais, desenvolvidas no rastro daqueles episódios do que poderia
vir a se confirmar como indústria cultural da música no Pará. A extensão destes
últimos acontecimentos se fez repercutir nos meios de comunicação em geral, com
a presença massiva do tecnobrega, do “melody” e do calipso, principalmente, nas
programações de televisões e rádios de Belém, do Brasil e em outros países.

17 Referimo-nos aqui às outras expressões do gênero como não consideradas pertencentes ao brega.
Por exemplo, a praticada por artistas paraenses que mantinham elo de identificação com a chamada MPB, con-
siderada a mais “legítima e moderna” música contemporânea brasileira, oriunda de compositores de classe
média, universitários e de características urbana, difundida principalmente a partir dos estados do sudeste e
sul brasileiros.
18 Para um glossário das variações e influências do brega, sugerimos a consulta em COSTA,
2007, p. 64-65 e ao site www.bregapop.com.
19 Adotamos a definição levantada por Maurício Costa: “tecnobrega constitui uma fusão entre o
bregapadrão (se é que ele existe!) e elementos eletrônicos do teclado e da mesa de som” (Ibid.: 66).

49
Portanto, a história da música brega paraense desdobra-se, grosso modo, nesse
acontecimento de ascensão do tecnobrega nos meios de comunicação e na cultura
musical brasileira. Certos aspectos dessa história, principalmente os das três últimas
décadas do século XX, repercutem e passam a confundir-se com o momento da
constituição definitiva de uma indústria da música no Pará, acrescida da novida-
de de ser um acontecimento em princípio não atrelado diretamente ao circuito
da grande produção comercial e dos grandes meios de comunicação, e também
sem depender dos incentivos oficiais. O fato passou a ser tratado como uma das
principais evidências do fenômeno das indústrias da cultura musical recentes, de
caráter informal e independente, que desenvolvem um trabalho de criação, pro-
dução e difusão de produtos relacionados à música, a ser executada em festas
de aparelhagem e em veículos de comunicação da cidade de Belém e arredores,
reconhecido na generalidade da expressão tecnobrega, termo aglutinador de toda
variação de ritmos que o gênero brega paraense tem comportado.
Trata-se de um movimento de produção e comercialização da música feita
em regiões periféricas do capitalismo avançado, global, que se consolida dentro
do quadro das novas indústrias culturais locais. Um movimento denominado
de “indústria das ruas”; nos meios acadêmicos é considerado parte de um grupo
de indústrias – o cinema é uma outra – com perfil de economia informal,
cujo modelo de negócio não se sustenta de forma dependente da geração de
receitas por direitos autorais e de propriedade intelectual (SANCHES, 2007). No
Pará ele é popularmente conhecido como tecnobrega. Em nosso entendimento,
essa experiência equivale, designadamente, à expressão de música mediática20, um
produto musical de consumo massivo com sua constituição e natureza originaria-
mente atreladas aos dispositivos mediáticos de informação e comunicação, deles
dependente para existir.

No brasil e no mundo

Na segunda metade do século XIX, já se delineiam características de um tipo


de música que viria se conformar e repercutir diretamente na produção musical
20 Nessa categoria poderão estar incluídos alguns elementos de expressão da música ligeira, música
leve, de entretenimento, informática, eletroacústica, de consumo, tecno e massiva, não havendo consenso nem
uniformidade na utilização do termo. Por certas aproximações de seus respectivos significados, estamos assim
considerando contidas no gênero música mediática.

50
contemporânea. A música produzida e destinada para uma cultura de massa er-
gueu-se sob a influência de muitos dos aspectos da forma e experiência musical
modernas, e se fez notar no quadro amplo e geral do sistema da música popular
ocidental como um produto do século XX. Um breve esboço sobre o tema é
apresentado em “História & Música”, por Marcos Napolitano (NAPOLITANO,
2002: 11-20). Nessa história percebe-se como o elemento do registro fonográfico
em um suporte físico e sua difusão e comércio são fatores centrais na dimensão
de uma indústria cultural da música. A Tin Pan Alley, em Nova York e a Denmark
Street, em Londres foram pioneiras na estruturação de um sistema de editoria
musical centralizada. Ao mesmo tempo, ocorre o desenvolvimento das indústrias
de gramofones (Victor-EUA e Gramophone Co., UK). Estimulava-se a criação
de editores musicais, promotores de concertos e espetáculos públicos populares
e eruditos, e após a 2ª Guerra mundial surgem as formas de música popular do
rock’n roll e da cultura pop.
Na ordem dessa história, o produto da música popular será aquele que se
adaptará às necessidades burguesas de um mercado urbano, sendo que uma de suas
faces mais reconhecidas nesse mercado será a de sua ligação com a dança, portanto,
como música para dançar. Por outro lado, o universo da música popular, enten-
dido e analisado dentro campo musical como um todo, reunirá elementos que
incluem desde tipos próprios da forma reconhecida como música erudita (o lied,
canto coral etc.), assim como da música folclórica (danças camponesas, narrativas
orais, cantos de trabalho etc.) e da música de protesto (engajamento, resistência).
Além do mais, a forma de música popular que se consolidou foi a de uma
peça instrumental ou cantada, disseminada por suportes escritos (a partitura) e de
gravação (o fonograma), ou como parte de espetáculos populares, como a opereta
e o music hall (café- concerto) e suas variações, como as formas circense, cômica e
dançante. Sobre esta última, sua função social básica seria estimular a participação
em reuniões coletivas, voltadas para a finalidade da dança.
Por sua vez, a influência da cultura urbana no produto da música popular
ocorrerá em razão do processo de adensamento populacional das cidades, inten-
sificado ao final do século XIX e início do século XX pela nova expansão indus-
trial, e, em consequência, viu surgir classes populares e médias nesse espaço. Esta
nova estrutura socioeconômica, produto do capitalismo monopolista, despertou
o interesse pela produção de uma música ligada à vida cultural e ao lazer urbanos.
Então, o desenvolvimento histórico de uma música popular de massaé marcado

51
pelas profundas mudanças ocorridas nas formas e experiências da cultura musical
popular, em que tais categorias vieram se alterando significativamente.
A história de uma música popular, que desenvolveu em torno de si aspectos de
face mercantil e uma experiência preocupada em atender os vários tipos de audiên-
cia, consolidará um campo musical-popular ligado a diversos fatores tecnológicos
e comerciais, fundamentais a esse processo, sobretudo as inovações ocorridas no
processo de registro fonográfico e a expansão do rádio comercial ao longo das
primeiras três décadas do século passado.
Ao observar a repercussão dessa história frente à realidade do continente da
América, nota-se que obedeceu a um processo que não apenas buscou aplicar o
modelo da experiência musical popular europeia. Ao incorporar formas e técnicas
musicais europeias, associaram-se os valores musicais criados a partir de outras
tradições, como as indígenas e negras, expressos em gêneros influentes, como o
samba brasileiro, o bolero mexicano, a rumba cubana, o tango argentino, o jazz
norte-americano etc. O campo musical popular desenvolvido no continente ame-
ricano se consolidou por um outro processo de síntese cultural, coincidente em
muito com a expressão de especificidadesnacionais e regionais. Assim,

dos modelos da música ligeira europeia do século XIX para os


novos padrões da música popular americana do século XX,
muitas mudanças podem ser percebidas. (...). O mundo da
música popular, tal como ele se apresentava aos olhos de um
observador mais atento dos anos 20 e 30, era um mundo
complexo, de ampla penetração sociológica e cultural, mas
ao mesmo tempo cada vez mais ligado ao grande negócio
industrial que estava se formando a partir da música, com
todo seu aparato tecnológico (NAPOLITANO, 2002: 20).

Quando nos aproximamos dos acontecimentos relacionados às transformações


na musicalidade brasileira, é possível observar também os movimentos musicais
urbanos e suas formas de produção centralmente associadas aos meios de comu-
nicação. Colocado sob o plano das formas e produtos da cultura mediática, o
brega paraense é recorrentemente citado como um dos modelos mais importantes
em termos de êxitos econômicos e culturais deste tipo de produção. Deste acon-
tecimento advém a necessidade de identificar alguns de seus postulados a partir

52
da própria formulação histórica do que se convencionou reconhecer por música
brega no Brasil.
Nesse país, foram adotadas diversas denominações para qualquer tipo de arte
que não se enquadrava em um determinado e questionável padrão de qualidade.
“Mau gosto”, kitsch, “cafona” e “brega”. E a música popular não escapou a esses
rótulos. De um modo geral, foram assim considerados os gêneros e ritmos de países
ditos “subdesenvolvidos”, entre eles o Brasil; por exemplo, o country americano
jamais fora chamado de “brega”. De “mau gosto”21 seriam identificados o bolero
(Cuba, México), a rumba (Cuba), a guarânia (Paraguai), o merengue (países do
Caribe), entre tantos outros.
É dentro desse complicado processo cultural que determinados compositores e
artistas brasileiros identificados com esses gêneros – responsáveis por uma música
que, se não soam inteiramente como bolero ou merengue, guarda afinidades diretas
com eles – foram e são considerados membros do mundo do brega.
Entre uma enorme lista de compositores, cantores e grupos musicais consi-
derados bregas figuraram Odair José,Evaldo Braga, Diana, Peninha, Agnaldo Ti-
móteo, Nélson Ned, Waldick Soriano, em nível nacional; e Francis Dalva, Carlos
Santos, Alípio Martins, Mauro Cota, Ted Max, Juca Medalha, Os Panteras, Luiz
Guilherme, em nívelregional.
A própria trajetória histórica da chamada MPB (Música Popular Brasileira),
segundo Santusa Naves (2006), incorporou diversas acepções, sendo que sua
renovação em muitos casos se processou com a introdução de meios eletrônicos
– instrumentos e acessórios de gravação e exibição pública –, entre tantas outras
transformações pelas quais ela passou e continua a passar. Nessa história de mu-
danças e rupturas, sempre surgiu o questionamento de quem faria parte do catá-
logo colocado no escaninho dessa denominação. Desde 1960 (data provável do
surgimento “oficial” da sigla) até os tempos atuais, seu leque de novas sonoridades
e ritmos cresceu bastante, passando assim a considerá-la em uma definiçãomenos
restrita da que vigorou por muito tempo. Sua abrangência se estende do samba ao
baião, do pop ao sertanejo, da bossa nova ao axé, do rap ao funk. Compõem um
“caldeirão” caracterizado como MPB, e explicam, em certa medida, a renovação
ou a inserção da música brasileira na contemporaneidade.
Na década de 80 percebe-se que as produções da MPB “clássica” passaram a

21 As idéias de uma hierarquia do “gosto” na música popular estão em Tárik de Souza et al. Brasil
Musical. Rio de Janeiro:Art Bureau Representações e Edições de Arte, 1988, p. 194.

53
conviver com a ascensão de outros gêneros e ritmos do Brasil, ignorados ou pouco
reconhecidos que eram pelos meios de comunicação de massa, o que veio provocar
diversos surtos no mercado da música brasileira. Da geração do rock dos anos
1970 e, principalmente, de 1980, seguida das ondas do sertanejo, pagode e do axé,
todos receberam os incentivos da indústria do disco e chegaram à grande indústria
musical adjunta dos meios de comunicação. Muito dessa riqueza e diversidade que
passou a compreender o que compõem a música popular no Brasil resulta, nos
tempos atuais, do diálogo e encontro dessa música comas renovadas tendências
do pop planetário, na intenção de garantir seu nicho no disputado e globalizado
mercado mundial da cultura.
No Brasil, o rádio é sempre lembrado, quando se trata de comentar aspectos
relacionados à sua música popular, e a força desse meio de comunicação no país
ocorre especialmente por volta dos anos 1940 e 1950, o que gerou a possibilidade
de praticamente o país inteiro cantar seus astros e estrelas do microfone, e, mais
que isso, fazer deles seusídolos. Assim, mais do que o disco, o cinema e o teatro
juntos, o rádio influiu decisivamente nos gostos e tendências do público em relação
à música popular. Uma tendência talvez somente superada pela televisão, tempos
depois, e pela internet. A força do rádio seria, portanto, a responsável primeira
pela chegada de “todos os sons” à nação brasileira (SOUZA, 1988).

A festa, o rádio e a cidade

A história da música brega paraense22 haveria de registrar fatos associadosa essas


mudanças, cujas características dão a conhecer seus traços essenciais, aparecendo
em sua forma dominante a vontade de registrar a produção dos “cantores da terra”,
a necessidade de se estabelecer no mercado local, e, por consequência dessas
iniciativas, projetar-se nameios de comunicação local e nacional, o que significaria
ultrapassar suas próprias fronteiras geográficas territoriais, econômicas e culturais.
No período que é considerado o marco das origens da música brega paraense,
na década de 1950, há a presença de um dos principais personagens e provavel-
mente um dos pioneiros do gênero (ao lado de Ari Lobo), o cantor e compositor
Osvaldo Oliveira, o Vavá da Matinha, projetando-se, primeiramente, em programas
22 As referências dessa história são baseadas no trabalho de Maurício Costa (COSTA, 2007) e na série
de reportagens, publicadas no jornal O Liberal, período de 12 a 15 de março de 2006, assinada pelo jornalista
Edson Coelho de Oliveira, Belém.

54
de rádio de Belém, e, posteriormente, em 1959, nas rádios do Rio de Janeiro,
cantando forrós, merengues e boleros. Seu sucesso, ao lado de artistas oriundos
principalmente da região nordeste, provocou investimentos das grandesgravadoras
de música do Brasil em artistas que viriam a se tornar exemplares do gênero brega,
como o pernambucano Reginaldo Rossi. Porém, o caso de Vavá da Matinha não
fora suficiente para confirmar uma tendência de que músicos e artistas da região
Norte do Brasil se firmariam no cenário da indústria fonográfica do país. Regis-
tra-se que é no mesmo período que surge em Belém um modo característico de
promover eventos e festas sociais, animadas por sistemas de som eletromecânicos,
as aparelhagens sonoras.
Os tempos iniciais do brega no Pará já apresenta um conjunto de ritos que
vieram formatar esta música como um gênero, através de sua versão em um supor-
te de música gravada e prensada em disco em vinil, a emissão sonora pelo rádio,
mais a presença no circuito social onde essa experiência musical passou a adquirir
sentido, as festas de aparelhagem de som. São lembranças de uma memória que
se fixou através do sentido da percepção radiofônica do movimento do brega, que
marcaria uma determinada relação de artistas e ouvintes socializados pelo rádio.
Essa relação é, portanto, parte constituinte do sentido adquirido pelas músicas de
brega (a festa) e da forma e expressão (a tecnologia e a experiência radiofônica)
pela qual elas se tornaram parte do imaginário de uma época.
É assim, então, que surgem diversos elementos peculiares que passariam a
fazer parte da construção do sentido social e histórico do brega e suas composições
musicais: a forma cênica baseada no exagero da performance gestual e a utilização
do disco, do rádioe das festas como meios de divulgação, capazes de constituir sua
audiência, seus ouvintes e frequentadores dos bailes dançantes.
Um dos maiores momentos de repercussão do brega nos meios de comunicação
local – principalmente nas rádios da cidade de Belém – acontece na década de 1980,
com a consagração de muitos artistas (COSTA, 2007: 28). Ele significou um dos
marcos mais importantes derealização e de sucesso de uma indústria cultural local,
que assumia uma espécie de “autoria”e carimbo “regional”, todavia, incluindo, ao
lado das gravadoras locais, a participação ainda decisiva das gravadoras nacionais23.
Dez anos depois, a participação do brega paraense na meios de comunicação local
perderia espaço, principalmente para o axé music baiano, permanecendo, na prática,
23 Acontece também nessa fase de prestígio do brega o lançamento do elepê “Adocica” (1988),
do cantor e compositorparaense Beto Barbosa, e o disco torna-se um dos maiores sucessos do gênero lambada
em Belém e no Brasil.

55
ancorado nas festas populares, animadas pelas aparelhagens sonoras, que passaram
a desempenhar a articulação entre a produção musical e o público apreciador do
brega, isto é, fazer o trabalho de divulgação.
Conforme ressalta Maurício Costa (2007), foi contraditoriamente este declínio
da divulgação do ritmo nas rádios de Belém que serviu de incentivo à consolidação
do modelo de festa de brega na cidade, ao promover a aproximação entre música
brega, aparelhagens de som, casas de festa e público apreciador. Esse fato definirá
o ritmo como “marca” do circuito festivo da cidade, integrando o universo do
brega desde o início dos anos 1980 em Belém.
Em 1995, o brega volta a se reerguer como ritmo musical, agora chamado de
brega pop, com o LP “A Nuvem”, gravado no estúdio Studio M Produções, de
Belém, e em 1997 com o CD “Ator principal”, gravado no estúdio Digitape, tam-
bém de Belém, todos sucessos do cantore compositor Roberto Villar, um destaque
nessa nova fase, quando obtém a vendagem mais expressiva do ritmo até o advento
da banda Calypso. Assim, o ressurgimento do gênero nesse “2º Movimento do
Brega” é marcado pela presença de novos produtores, músicos e cantores e novas
gravadoras. Ao final da década de 1990, o brega pop já se encontrava na progra-
mação de quase todas rádios locais e em alguns programas das tevês da cidade de
Belém. (Em 2002, a denominação brega pop perdeu sua força de representação,
substituída, principalmente, pelo nome de uma das novas versões de brega, o
tecnobrega; as outras versões de prestígio são o brega calypso e o brega melody).
O processo histórico de uma indústria cultural local, voltada ao segmento
do brega, consolida-se, desenvolvido através da presença de produtores, cantores,
compositores, músicos, estúdios/gravadoras, empresas e emissoras de comunica-
ção, posicionados ao redor do circuito das festas de brega em cidades do estado
paraense e seu entorno. Trata-se de um processo cuja dinâmica coloca em relação os
componentes implicados na criação de uma produção cultural local e o segmento
de empreendimento musical a ela associado.
Como indústria da música, portanto, o brega caracterizou-se como um tipo
empreendimento de maior preocupação com o trabalho de circulação dos produtos
do que com a produção de si mesmo, empenhado na distribuição dos produtos
(CD, DVD, MP3, mídias digitais etc.) e comercialização informal, bem como
na ampliação do público consumidor. Poroutro lado, definiu-se por sua condição
local, que justamente veio sugerir uma forma diferente de apropriação que o mo-
vimento realiza, aquela oriunda da experiência cultural das festas de aparelhagem

56
– ou, do “circuito bregueiro” – que lhe empresta significado e orienta suas ações.
“É nesse sentido que é pensada (...) a apropriação que o público de Belém faz da
música brega como produto de uma indústria cultural local” (Ibid.: 56).
Existe a ação de uma indústria cultural, baseada marcadamente em Belém, de
produção e difusão da música brega para a região e o país, envolvida necessariamente
nocontexto das festas de brega da cidade e seu entorno. É essa condição que leva
Maurício Costa compreenderque se trata de uma articulação que evoca uma relação
entre o estilo musical e uma suposta “identidade regional”: “Assim, a música brega,
tal como ela é produzida e consumida em Belém, constitui um típico exemplo da
cultura popular de massa, na medida em que articula ‘representações simbólicas
coletivas’ às relações sociais que organizam a indústria cultural local” (Ibid.: 58).
Na consolidação desse processo, o desenvolvimento dos estúdios de gravação
e a produção fonográfica em Belém é um de seus elementos mais destacados. Uma
história que começa com o trabalho do grupo privado de comunicação Rauland
Belém Som Ltda., depois RJ Produções, de pôr em prática o projeto de instalação
de uma rádio e de um estúdio de gravação, em 1975. Dedicava-se ao trabalho de
produzir artistas locais e distribuir o material gravado em LP (long play), ainda que
naqueles anos a reprodução dos fonogramas na prensagem em série necessariamente
fosse feita fora do estado.
No início da década de 1980, é criada em Belém a Gravasom, do empresário,
cantor e compositor Carlos Santos. É, provavelmente, o maior selo de produção,
gravação e prensagem de disco já instalado na cidade. Foi a maior veiculadora do
gênero do “primeiro movimento do brega”, que formou profissionais dedicados
às atividades de produção e gravação musical, muitos deles tendo passado ao
trabalho com as aparelhagens de som e festa. Porém, a Gravasom paralisa suas
atividades no princípio dos anos 90, deixando em funcionamento apenas seu
estúdio de gravação, em Belém.
Novos produtores fonográficos e estúdios de gravação voltam a surgir a partir
da segunda metade da década de 1990. Os principais, além da RJ Produções, foram
M Produções, MC Produções, AR Music. Como empresas de gravação destacam-se
a própria Gravasom, mais a Digi Record, Gravo Disco, Digi Tape, Transa Tape e
Digital Brasil. São criados ainda, no início do ano 2000, os estúdios familiares,
“caseiros”, dedicados à produção e gravação de CDs e DVDs de tecnobrega, que
incluem também os trabalhos de produzir e gravar programas rádio e televisão,
como fazem o Studio AVD, do DJ Beto Metralha, e o Estúdio Digital, de Tonny
Brasil, em Belém.

57
Na prática, tudo isso são atualizações tecnológicas, com capacidade de mais
uma vez imprimir um significado novo na forma de produzir e gravar música em
Belém. É ao nível do espaço doméstico do lar que passa-se realizar, na prática,
todo o serviço da cadeia de produção musical de um CD ou um DVD: da pro-
dução musical à performance artística, das letras das composições aos arranjos,
da logomarca à arte final da capa e do encarte, e, principalmente, a divulgação
(publicidade) dos produtos nos programas das grandes rádios e televisões, nas
festas, nas aparelhagens de som, na publicidade de rua de carros, motocicletas e
bicicleta, nas rádios comunitárias e de “poste” das feiras e mercados, nas bancas
dos camelôs e no comércio em geral. Esse acontecimento gerou a compreensão de
que o desenvolvimento do que se conhecia por indústria cultural utiliza atualmente
canais diferentesde comunicação, uma vez que ele não passa necessariamente pelo
circuito dos grandes conglomerados dos meios de comunicação para existir como tal.

Consideração final

No contexto da história de uma indústria cultural, no Pará, voltada para brega,


ou melhor, para o tecnobrega, como um gênero local, existem as preocupações
de seus produtores com a divulgação e circulação do material musical nos meios
de comunicação estabelecidos e consolidados. A percepção que se tem, lendo esta
história, é de que desde seu início o brega visou a um trabalho em conjunto com
as rádios, principalmente; sucedeu-se para o espaço das televisões locais e as mídias
sociais deste século XXI.
Por outro lado, a aproximação entre o brega e os veículos de comunicação não
aconteceu sem dificuldades, especialmente com relação às rádios em FM (frequên-
cia modulada), ao enfrentar a concorrência com outros gêneros já assimilados nas
programações, a limitação de espaços para a divulgação, e o baixo investimento dos
meios de comunicação de Belém no segmento. Se desde o princípio da formação
do gênero musical brega, em Belém, as rádios em AM (amplitude modulada) já
o incluíam em suas programações, a participação nas rádios em FM foi somente
no início da década de 1980, do século passado, quando uma rádio local tocou
brega, a Rauland, seguida da Marajoara FM. Atualmente, a maior parte das rá-
dios de Belém reserva horários e programas específicos voltados para o brega. Nas
estações de televisão, a participação da música de brega também enfrentou muita

58
indiferença e rejeição. Hoje, a TV Grão-Pará (repetidora da programação nacio-
nal da TV Gazeta, de São Paulo), a TV RBA (afiliada da TV Bandeirante, de São
Paulo), a TV Cultura do Pará, e a TV Liberal (afiliada da Rede Globo, do Rio de
Janeiro), veiculam programas dedicados ao brega.
Como forma de superar essas limitações à divulgação, o brega investiu mais no
trabalho em parceria com as festas de brega da periferia da cidade, e contou com o
apoio da audiência do público ouvinte das rádios, que passou a exigir a presença
do ritmo nas programações dos veículos. Outras estratégias foram adicionadas a
esse caminho alternativo utilizado para a divulgação do brega, como a aquisição
de espaços nas programações, através deinvestimentos dos próprios produtores
e artistas, ou a cessão de fonogramas às emissoraspelos produtores fonográficos,
e sua entrada nos bairros mais centrais da capital do estado paraense.
A presença da música brega do Pará no rádio se deu em grande parte em função
das alianças situacionais de produtores musicais e artistas de brega e os programa-
dores das emissoras. Ora o interesse partiu do próprio veículo de comunicação, ao
dedicar programas para o gênero, oraforam os artistas e proprietários das aparelha-
gens que procuraram as rádios como meio de divulgar o seu material, veiculado
nas festas. São essas situações que podem explicar o fato do movimento do brega
não desenvolver de modo imediato o aspecto da produção se comparado com
o da divulgação, o que o levou a diferenciar sua estratégia da forma mais
reconhecida de promoção na indústria cultural “clássica”, que sempre buscou
ligar produtoras e gravadoras de fonogramas musicais, artistas, rádios, televisões,
empresários e público.

Referências

CASTRO, Fábio Fonseca de. Identificações amazônicas. Belém : Papers do La-


boratório de Sociomorfologia, UFPa. Série, nº 2. 2006.
COSTA, Antonio Maurício Dias da. Festa na Cidade: o circuito bregueiro de Belém
do Pará. Belém: [s.n.]. 2007.
NAPOLITANO, Marcos. História & Música. Belo Horizonte : Autêntica. 2002.
NAVES, Santuza Cambraia. Rumos da MPB. Revista Cult. São Paulo : Bregantini,
agosto/2006.
OLIVEIRA, Edson Coelho de. O Liberal. Belém: de 12 a 15 de março de 2006.

59
SANCHES, Pedro Alexandre. A indústria das ruas. São Paulo : Carta Capital,
abril de 2007.
SOUZA, Tárik de et. al. Brasil Musical. Rio de Janeiro : Art Bureau Represen-
tações e Edições de Arte. 1988.

60
ESTUDO FOLKCOMUNICACIONAL SOBRE FESTAS
POPULARES: PRODUÇÃO DE UMA GRANDE
REPORTAGEM EM ÀUDIO ACERCA DA CIRANDA
DE MANACAPURU
Rodrigo de Araújo Ribeiro24

Ma. Leila Ronize Moraes de Souza25

Introdução

A Ciranda de Manacapuru é uma tradicional festa popular do interior do estado


do Amazonas. Desde o seu surgimento até os dias atuais, a festa sofreu mudanças
e deixou de ser uma disputa entre escolas públicas para se tornar um produto da
indústria cultural. Neste sentido, o trabalho é a produção de uma grande reportagem
para rádio como forma de contribuição para o resgate da identidade cultural da
Ciranda de Manacapuru. Fez-se necessário conhecer aspectos históricos, entender
como o Festival movimenta a economia e identificar a inserção da festa na mídia. O
método de abordagem foi o dedutivo com pesquisas bibliográficas e experimental,
utilizando a entrevista na coleta de informações. Assim, disseminou-se a Ciranda
enquanto elemento cultural e tradicional do município, antes de se tornar um
produto da indústria cultural amazonense.
A Ciranda de Manacapuru foi introduzida pelos imigrantes nordestinos que
vieram em busca de riquezas no período áureo da borracha, na metade do século
XIX e na primeira década do século XX. Nogueira (2008, p. 120) afirma que “no
interior do Amazonas essa folia criou raiz inicialmente na cidade de Tefé (a 600
quilômetros de Manaus e a 200 quilômetros de Manacapuru) onde se proliferou
nas escolas públicas.” A festa passou ainda pelas escolas da capital Manaus e se
24 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, pela Universi-
dade Federal do Pará. e-mail: professorrodrigoribeiro26@gmail.com
25 Professora Mestra do Curso de Jornalismo da Faculdade Metropolitana de Manaus.
Email: leila.ronize@gmail.com

61
firmou em Manacapuru, onde se tornou uma festa popular tradicional do estado
do Amazonas.
Desde o seu surgimento até os dias atuais, a tradicional festa de Manacapuru
sofreu mudanças e deixou de ser uma simples disputa entre escolas públicas para
se tornar um produto da indústria cultural, o Festival de Cirandas de Manacapuru,
com a disputa dos Grêmios Recreativos Flor Matizada, Guerreiros Mura e Tradi-
cional. Neste contexto, de que forma uma grande reportagem para rádio poderá
contribuir para resgatar a identidade cultural da ciranda de Manacapuru em tempos
de midiatização das festas populares?
Para tanto, fez-se necessário entrevistar moradores antigos, para conhecer
aspectos históricos da Ciranda no estado do Amazonas, conhecer como o festival
movimenta a economia local, mostrar o formato, os itens e o local das apresenta-
ções, conversar com integrantes das agremiações que produzem figurinos, adereços
e alegorias, identificar o processo de inserção da Ciranda na mídia.
Em 1967, Luiz Beltrão formulou sua tese de doutorado onde unia a comu-
nicação e o folclore dos marginalizados, denominada como “Folkcomunicação” e
conceituada por José Marques de Melo (2008) com uma disciplina que se dedica
ao estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e ideias. Melo
(2008) ainda classifica a folkcomunicação em gêneros e formatos, o corpus desta
pesquisa, a Ciranda de Manacapuru, está inserida no gênero cinética e no formato
dança que, neste caso, é o principal atrativo da indústria cultural.
Neste sentido, utilizamos uma grande reportagem em rádio como ferramenta
comunicacional de massa a fim de divulgar a Ciranda como festa popular, resgatando
sua identidade cultural, antes da exposição midiática, ou seja, a história da festa,
em seus primórdios, será essencial para entendermos a popularização e midiatização
da Ciranda. Mostraremos neste trabalho a identificação cultural da Ciranda de
Manacapuru, em seu aspecto folkcomunicacional, onde a comunicação, através
da festa popular, é feita do povo para o povo, tornando-se um processo prazeroso
e não como produto de industrialização cultural.
A pesquisa apresenta um caráter qualitativo, o que não poderia ser diferente,
visto que o objetivo das ciências sociais humanas, área em que se insere a comuni-
cação, é naturalmente qualitativo. Utilizaremos o método de abordagem dedutivo
pois, segundo Carla Cruz e Uirá Ribeiro (2003) trata-se de um método lógico
que pressupõe a existência de verdades gerais já afirmadas que servem de premissa
para se chegar, por meio dele, a novos conhecimentos. Para este trabalho serão

62
utilizadas as formas de pesquisas bibliográficas, experimental e ação. Utilizaremos
a entrevista como técnica de coleta de informações por trata-se de uma interação
entre pesquisador e pesquisado.
Portanto, o referido trabalho é a produção de uma grande reportagem para
rádio como forma de contribuição para o resgate da identidade cultural da Ci-
randa de Manacapuru, em tempos de midiatização das festas populares, visto que
o rádio é uma ferramenta comunicacional de massa para divulgação da Ciranda
como festa popular.

O rádio como difusor da cultura popular

Rádio: da prestação de serviço à era comercial

Ao trabalharmos o corpus em estudo é relevante compreender os mecanismos


do rádio enquanto divulgador da cultura popular no Amazonas, para isso faz-se
necessário conhecer o processo do rádio como fonte de serviço e de comércio em
sua essência, ou seja, a história deste meio de comunicação e sua importância como
difusor da cultura de modo geral.
A história do rádio no Brasil inicia na região Nordeste, Rachel Neuberger
(2012) situa o surgimento das transmissões radiofônicas em Recife, no final da
década de 1910, mais precisamente em 1919.

Pioneira no Brasil, a Rádio Clube de Pernambuco, hoje, Rá-


dio Clube AM, deu início às transmissões radiofônicas antes
mesmo da primeira irradiação pública e oficial no Brasil, em 7
de setembro de 1922, por ocasião da Exposição Internacional
do Rio de Janeiro, que comemorava o I Centenário da Inde-
pendência do país.” (NEUBERGER, 2012, p.56).

Milton Jung (2004) conta que em 7 de setembro de 1922 aconteceu a primeira


transmissão de rádio no Brasil, a partir do alto do Corcovado, no estado do Rio de
Janeiro, em comemoração ao centenário da Independência no país. Esta difusão
ocorreu em função do discurso do então Presidente da República, Epitácio Pessoa.
Nesta época o rádio ainda era feito de forma amadora, não tinha programação
estabelecida, apenas com leituras de notícias do jornal impresso.

63
Após a criação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro outras rádios surgiram
no país com a intenção de atingir a massa. Nos anos seguinte, surgem no Rio as
rádios Clube do Brasil (1924), Educadora do Brasil (1926) e Mayrink Veiga (1934)
e aos poucos o novo veículo estendeu seu alcance, tanto na distância quanto na
diversificação de público, com uma programação voltada para o campo popular.
Chegam as transmissões de futebol e os programas musicais que abrem espaço para
as modinhas, o choro e o samba.
O estado do Amazonas viveu paralelamente todas as fases do rádio no Brasil e
até os dias atuais tem esse veículo como seu principal meio de comunicação pela
distância de seus municípios. Mesmo com o crescimento da internet e das possi-
bilidades de divulgação, o rádio ainda é o veículo mais eficaz no estado, quando
se trata de comunicação de massa, pois atua como importante meio para integrar
os habitantes de determinada região. Assim, Sandra Garcia (2012) reafirma a
transposição de informações nos municípios mais distantes da capital Manaus.

Na região Norte, lugar fronteiriço, o rádio sempre foi o meio de


comunicação de maior alcance e mais popular, daí a intenção
do governo em se estabelecer e se fazer na região, por meio da
comunicação radiofônica. Ao invés da população sintonizar
emissoras de fora do país, que falavam abertamente da situ-
ação política dos países da ditadura, era melhor sintonizar as
nacionais. (GARCIA, 2012, p.44).

Quando o rádio surgiu no Amazonas, em 1927, Manaus era a maior potência


econômica da região amazônica - ciclo da borracha – tornando-se uma das cidades
mais desenvolvidas e moderna da época. Luiz Nogueira (1999) fala que com todo
esse crescimento econômico no século XX, os representantes europeus e norte-a-
mericanos criaram uma sociedade com líderes da Amazônia, objetivando coletar
a extração do látex na região, tendo a produção gomífera como uns dos principais
produtos de exportação.
Com o surgimento do rádio no Brasil o então atual governador do Amazonas
da época Ephigênio Salles, criou uma estação telegráfica com 16 estações para o
estado, no palácio Rio Negro. Com o seu encantamento pelo advento tecnológico
de comunicação, Ephigênio Salles, viu uma motivação para expandir o sistema

64
de radiotelegráfica, que seria a esperada primeira estação de rádio na cidade a Voz
de Manaós.
Nogueira (1999) enfatiza que a rádio tinha como objetivo levar informações
para os municípios mais distantes da cidade, passando dados sobre a cotação da
moeda, das chegadas e saídas de embarcações, e principalmente pelas realizações
governamentais. As transmissões eram feitas todas às segundas, quartas e sextas-
-feiras, entre nove e dez da noite.
Em 1992, a comunicação com os municípios do interior do Amazonas ain-
da era deficiente. Como relata a pesquisadora Ierecê Monteiro (1996) mesmo a
Telamazon, antiga empresa de telecomunicações do Amazonas26, atingindo 44
localidades a comunicação, não era efetiva.

A dificuldade de comunicação entre a capital e as sedes muni-


cipais ainda é grande devido a problemas técnicos e ao elevado
custo para usuários. (...) Outro fato que contribui para agra-
var o problema da comunicação é a distribuição demográfica
da população interiorana. A grande maioria vive longe dos
centros urbanos. Às vezes é preciso horas de motor de popa
para se falar com o vizinho mais próximo. Em tais condições,
o rádio desempenha papel fundamental nas comunicações
com o hinterland amazônico.27 (MONTEIRO, 1996, p.03).

Até os dias atuais, mesmo com o avanço tecnológico é difícil atingir os mais
longínquos municípios do Amazonas, onde o rádio torna-se a principal fonte de
comunicação, seja com avisos advindos de Manaus, ou avisos comerciais que são
divulgados pelas regiões próximas. É uma realidade mostrada em 1993 por Ierecê
Monteiro, mas até hoje é factual.
O rádio utilizado para o serviço e comércio é uma atividade muito comum no
interior do estado do Amazonas, principalmente para o uso dos avisos que se tor-
nou uma tradição cultural nestes lugares. Geralmente, estes avisos são manuscritos
pelos populares, com sua própria linguagem e lidos pelos locutores nos horários
determinados para este fim.
26 Hoje, quem comprou os direitos da Telamazon foi a OI telecomunicações.
27 Hinterland é uma palavra de origem alemã e diz respeito à parte menos desenvolvida de um país -
menos dotada de infraestrutura e menos densamente povoada, sendo também sinônimo de sertão ou interior,
neste caso refere-se aos lugares mais longínquos da região amazônica.

65
Monteiro (1996) relata que a prática de prestação de serviço das rádios no
Amazonas, ou seja, de usar as rádios como fonte de comunicação efetiva, princi-
palmente nos municípios do interior do estado, está ligada a dois tipos de avisos:
os comuns e os comerciais.

Os avisos comuns são aqueles em que os usuários são breves,


diretos e objetivos. Falam que chegaram bem de viagem, estão
bem de saúde, etc. Os avisos comerciais fazem, geralmen-
te, propaganda de casas comerciais no interior, informam os
preços das mercadorias e qual o melhor ponto (porto, anco-
radouro) para embarque e desembarque. Os de lazer incluem
os convites para as festividades promovidas por clubes e asso-
ciações comunitárias. (MONTEIRO, 1996, p.05).

Estes avisos, geralmente, são cobrados e variam de acordo com as Rádios, o


tamanho e a especificação do aviso. No serviço temos os avisos de saídas de barcos,
falecimento de populares tradicionais da cidade, festejos locais e etc, no comércio
é comum ser divulgados preços de produtos, chegada de mercadorias e merchan-
dising28 de grandes empresários da cidade.
Neste contexto aparece um dos objetos deste trabalho que é a folkcomunicação,
a comunicação que vem da cultura popular e atualmente é utilizada pela indústria
cultural e consequentemente, pela cultura de massa.

A indústria cultural e o processo de folkcomunicação

Para tratarmos da relação entre a indústria cultural e a folkcomunicação é


necessário conceituarmos estes dois campos de estudo da comunicação social. A
indústria cultural está diretamente ligada ao folclore e a cultura popular, onde cada
vez mais as festas populares, os costumes, o artesanato de um povo está midiatiza-
do em busca lucros econômicos, ou seja, o trabalho humano determina este tipo
particular de indústria.
Para tanto, Teixeira Coelho (1987) define indústria cultural como:

28 Conjunto de atividades e técnicas mercadológicas que dizem respeito à colocação de um produto


no mercado em condições competitivas, adequadas e atraentes para o consumidor.

66
Funções do fenômeno da industrialização. É esta, através das
alterações que produz no modo de produção e na forma do
trabalho humano, que determina um tipo particular de in-
dústria (a cultural) e de cultura (a de massa), implantando
numa e noutra os mesmos princípios em vigor na produção
econômica em geral: o uso crescente da máquina e a submissão
do ritmo humano de trabalho ao ritmo da máquina; a explo-
ração do trabalhador; a divisão do trabalho. Estes são alguns
dos traços marcantes da sociedade capitalista liberal, onde é
nítida a oposição de classes e em cujo interior começa a surgir
a cultura de massa. (COELHO, 1987, p. 2).

Em 1967, Luiz Beltrão formulou sua tese de doutorado onde unia a comu-
nicação e o folclore dos marginalizados, denominada como “Folkcomunicação” e
conceituada por José Marques de Melo (2008) com uma disciplina que se dedica
ao estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e ideias. Foi
com Luiz Beltrão (1980) que este termo surgiu pela primeira vez. A teoria consiste
em mostrar a voz dos marginalizados, ou seja, daqueles esquecidos pela sociedade.
Estes têm assim meios próprios de expressão e somente através deles é que podem
entender e fazer-se entender.

A expressão “marginal” surge, na literatura científica, pela


primeira vez em 1928, em artigo de Robert Park sobre as mi-
grações humanas publicado no American Journal of Sociology.
O migrante é ali definido como “hibrido cultural”, um “margi-
nal”, que, embora compartilhe da vida e das tradições culturais
de dois povos distintos, jamais se decide a romper, mesmo
que lhe fosse permitido, com seu passado e suas tradições, e
nunca (é) aceito completamente, por causa do preconceito
racial, na nova sociedade em que procura encontrar um lugar
(BELTRÃO, 1980, p.38).

Com os dois conceitos contextualizados podemos perceber que a indústria


cultural está ligada à cultura de massa, e é neste processo que temos a folkcomu-
nicação. Neste contexto temos as festas populares que são conectoras de relações

67
humanas, produzindo comunhão grupal ou comunitária em torno da expressão
popular, e ao mesmo tempo mobilizadora das relações entre grupos distintos.
Atualmente, numa sociedade midiatizada, as culturas populares são atrativas
para uma exibição na TV, onde quase tudo do dia a dia pode transformar-se em
espetáculos para a mídia, como por exemplo, um acidente trágico, mesmo sem
envolver pessoas conhecidas, a um casamento, funeral de celebridades ou até
mesmo as festas populares, ou seja, a sociedade humana é inserida nos processos
midiáticos. “São momentos de grandes celebrações desde as campanhas eleitorais,
competições desportivas, concentrações religiosas, ritos de passagem ou aconteci-
mentos que estão fora do ordinário da vida cotidiana e entre esses acontecimentos
estão as festas profanas e religiosas.” (TRIGUEIRO, 2005).
Nogueira (2008) aponta que no Norte as principais festas populares também
são alvo da mídia cultural, mesmo com a forte inserção nos meios de comunica-
ção – rádio e TV – não necessariamente que essas festas fiquem mais distantes de
sua comunidade ou estão fadas a perder-se na era da informação. “O Boi-Bumbá
de Parintins, o Sairé de Alter do Chão e a Ciranda de Manacapuru estão hoje
inseridos no mercado. Tornaram-se alvos potenciais da mídia que caça turistas e
patrocinadores interessados em intermediar, com o mercado, produtos simbólicos
e/ou matérias.” (NOGUEIRA, 2008, p.54).
Festas populares são conectoras de relações humanas, produzindo comunhão
grupal ou comunitária em torno da expressão popular, e ao mesmo tempo mobi-
lizadora das relações entre grupos distintos, levando não só aquela manifestação
cultural para aquela região mais como também transborda conteúdo para aquela
nação.

Enquanto espaço festivo, reunido centenas de pessoas, essa


manifestação mantém um carácter aglutinador entre os di-
versos grupos sociais […] assim estas manifestações rítmicas
permitem a liberdade de expressão, retomada e atualização de
códigos e se firmam como patrimônio imaterial de um grupo
social em processo de comunicação (SIGRIST, 2007, p.105).

Nossa proposta versa sobre a produção de uma grande reportagem para rádio
que contribua para resgatar a identidade cultural da ciranda de Manacapuru em
tempos de midiatização das festas populares. Por isso, faz-se necessário conhecer

68
os gêneros radiofônicos que é o instrumento que o rádio possui para atualizar
seu público por meio da divulgação, do acompanhamento e de análise dos fatos.
Este trabalho exporá suscintamente todos os gêneros radiofônicos, dando ênfase
aos gêneros jornalísticos que trata da grande reportagem, formato específico do
presente trabalho.

Gêneros Radiofônicos e a produção de grande reportagem para rádio

Para Barbosa Filho (2009) os gêneros radiofônicos correspondem a uma classi-


ficação mais ampla e geral, visando atender às expectativas dos ouvintes, enquanto
os formatos radiofônicos apresentam um caráter mais restrito da mensagem produ-
zida pelo rádio e se constituem como modelos que podem incorporar programas
desenvolvidos no interior dos vários tipos de gêneros radiofônicos.
A partir daí pode-se classificar os gêneros radiofônicos e os formatos jorna-
lísticos para se chegar ao produto deste trabalho, a grande reportagem em áudio.
Segundo Barbosa filho (2009) os gêneros radiofônicos dividem-se em sete: gênero
educativo-cultural, de entretenimento, publicitários, propagandístico, de serviço,
especiais e jornalísticos. Nosso principal foco é o gênero jornalístico que aborda
a reportagem, este gênero é opinativo e é utilizado pelos grandes meios de comu-
nicação, abordando temas da sociedade em geral. Nilson Lage (2008) apresenta a
importância da reportagem.

A reportagem visa atender a necessidade de ampliar os fatos


para uma dimensão contextual e colocar para o receptor uma
compreensão de maior alcance, objetivo melhor atingido na
prática da grande-reportagem, que possibilita um mergulho
de fôlego nos fatos e em seu contexto e oferece ao seu autor
uma dose ponderável de liberdade para superar os padrões e
fórmulas convencionais do tratamento da notícia. (LAGE,
2008, p. 31).

A reportagem é um gênero diferente da notícia, ela trabalha na abordagem de
assuntos mais complexos, ou seja, precisam ser bem apurados e com isso exige mais
tempo em sua elaboração e divulgação. Pode ser expositiva, informativa, descritiva,
narrativa ou opinativa. É um texto que se pode ousar, não sendo necessariamente

69
utilizar a “fórmula” da pirâmide invertida. Para uma reportagem bem apurada e
bem escrita exige muita dedicação, investimento e paciência.
A grande Reportagem constitui uma pesquisa muito mais aprofundada, com
discussão e reflexão, exigindo muito mais planejamento do que outros tipos de
coberturas que são executadas no cotidiano, sendo discutida a partir de três de seus
eixos: a teoria, a técnica e a prática. Milton Jung (2004) nos diz que “É na repor-
tagem que o Jornalismo se diferencia, levanta a notícia, investiga fatos, encontra
novidades, gera polêmica e esclarece o ouvinte. Fora dela sobra pouco do ponto
de vista da criação, quase tudo se resume à cópia” (Id, 2004, p.114)
A produção é feita pelo profissional direcionado exclusivamente para isto,
o pauteiro. O profissional é encarregado de definir assuntos para que seja feita
a cobertura, usando a ferramenta como caminho da futura matéria, contendo o
máximo de informações possíveis. A pauta deve conter sempre assuntos relevantes,
com isso Ferraretto (2014), nos sugere diversos assuntos que rendem uma boa
pauta, desde datas comemorativas, a decisões políticas importantes.
A reportagem se reveste de uma importância fundamental, sendo o mais im-
portante gênero do jornalismo, dentro de uma convergência digital, essa atividade
precisa cada vez mais se renovar, passando por uma espécie de readequação a frente
aos novos meios. A linguagem coloquial e fatores como o imediatismo e a mobi-
lidade são outros elementos que distinguem a narrativa radiofônica das existentes
nos outros veículos. Isto se isolarmos, neste primeiro momento, a linguagem digital,
que provoca novas reflexões sobre o significado de rádio.
Marcelo Parada (2000), autor do manual ‘Rádio: 24 horas de Jornalismo’, nos
orienta que todos os funcionários são repórteres, pois todos mantem relação à função
noticiosa e produção. A apuração é um instrumento essencial para o repórter, pois
ele como interlocutor procura responder todas as questões básicas aos ouvintes.
Para Ferraretto (2014), a estrutura básica para a reportagem se resume em
cabeça, ilustração ou sonora, encerramento e assinatura, ambas devem ter ligação
atraente na mensagem para o ouvinte. É necessário que o rádio tenha clareza e
com uma forma sedutora nas informações, facilitando cada vez mais no que é
repassado ao ouvinte.

Em noticiários, esse tipo de material noticioso pode ser anun-


ciado por uma manchete no início do informativo. Normal-
mente, uma chamada na voz do apresentador ou locutor

70
precede a veiculação da reportagem. A manchete, a chamada,
a abertura de um jornal do boletim e o trecho em áudio com
entrevista devem ser convergentes ou complementares. (Id,,
2014, p. 162).

O entrevistador precisa ter ciência de todas as versões do assunto que foi dado
na pauta, é necessário saber lhe dar com todos os tipos de opiniões diferentes e saber
levar a entrevista. Os seus interesses pessoais (o entusiasmo em relação ao assunto
ou ao entrevistado pode cobrir aspectos negativos passíveis de ser noticiados); A
bagagem cultural do indivíduo (tanto a sua quanto a do entrevistado); Entre outros
exemplos não devem atrapalhar a entrevista.
Após todos esses processos é feita a Pós-Produção, como o próprio nome remete,
é algo que virá depois, sendo por sua vez um trabalho de acabamento, incluindo a
decupagem, e toda a edição do conteúdo antes de ir ao ar, esse processo é utilizado
tanto para a rádio, quanto para outros meios.

Metodologia do produto

A modalidade do produto jornalístico a ser trabalhada será uma grande repor-


tagem em áudio para rádio, utilizando técnicas de produção e linguagem próprias
do jornalismo impresso e eletrônico. O trabalho contém uma série com 3 repor-
tagens de 3 minutos cada gravadas e editadas. A série de reportagens buscou levar
uma reflexão à sociedade amazonanense, em especial manacapuruense, para que
se possa identificar traços tradicionais da cultura popular local, em suas raízes,
sem a presença da espetacularização da festa, contribuindo assim para o resgate da
identidade cultural da ciranda de Manacapuru.
As técnicas de produção da grande reportagem em áudio para rádio, sobre
o festival de Cirandas de Manacapuru, serão de acordo com as referências de
Ferrareto (2014) e Robert Macleish (2001). A abordagem será da seguinte forma:
aspectos históricos das cirandas, o movimento da economia no período do festival,
as confecções das fantasias e a tradição da festa.
A grande reportagem se dá a partir da elaboração da pauta, que segundo Fer-
rareto (2014) é um indicativo por onde se começa o trabalho jornalístico, uma
espécie de guia para o repórter. As entrevistas serão capturadas utilizando um

71
celular com gravador de voz, para assim serem geradas as sonoras que irão compor
as reportagens. Assim diz Mcleish “o objetivo de uma entrevista é fornecer, nas
próprias palavras do entrevistado, fatos, razões ou opiniões sobre um determinado
assunto, de modo que o ouvinte possa tirar uma conclusão no que diz respeito à
validade do que está sendo dito.” (MCLEISH, 2001, p. 43).
Uma etapa importante é a decupagem das sonoras para transmitir exatamente
o intuito dos entrevistados, dando nexo à montagem do trabalho. A criação do
roteiro, segundo Ferrareto “que é o guia básico para organizar, planejar e produzir
um conteúdo sonoro gravado” (FERRARETO, 2014, p. 198) entrará após a coleta
das informações sobre a ciranda de Manacapuru. Ele será composto por BG’s, que
remetem a músicas do festival das cirandas, criando um cenário do real para repor-
tagem; Criação de textos para off’s, fazendo ligação as cirandas de Manacapuru e
fornecendo dados concretos e defendendo ideias e opiniões.
A realização da grande reportagem só acontece após a conclusão de todas
essas etapas. A organização da produção é essencial para o resultado final de uma
gravação, sendo que o produtor tem que providenciar tudo o que for necessário
para a execução do roteiro. Mas, a produção não acaba no momento da gravação,
ela só se completa com a efetiva realização da grande reportagem, ou seja, quando
a reportagem vai ao ar.

Links para acesso ao produto final

1ª reportagem (Aspectos Históricos da Ciranda de Manacapuru), Disponível


em: https://soundcloud.com/rodrigo-ribeiro-829426457/audio-reportagem-01-as-
pectos-historicos. Acesso em 04 nov. 2022.
2ª reportagem (Como a festa das Cirandas movimenta a economia local),
Disponível em: https://soundcloud.com/rodrigo-ribeiro-829426457/audio-re-
portagem-02-economia. Acesso em: 04. Nov. 2022.
3ª reportagem (A tradição e o futuro das Cirandas), ver em: https://sound-
cloud.com/rodrigo-ribeiro-829426457/audio-reportagem-03-tradicao.Acesso em
04 nov. 2022.

72
Conclusão

Este trabalho procurou promover uma reflexão sobre o resgate da identidade


cultural do Festival de Cirandas de Manacapuru. Visitando o município e tendo
contato com a população local, é notório, com o passar o tempo, o desconhecimento
de alguns dos adolescentes de suas raízes culturais, somente aqueles adultos que
viveram o auge Ciranda transmitem a tradição da dança. Isso deve-se à midiatização
da festa, que passou a ter visibilidade, em âmbito estadual, após o apoio do Go-
verno do Estado do Amazonas e devido às exigências para atender a mídia, alguns
aspectos tradicionais se perderam no tempo. O principal objetivo do produto foi
informar, através de uma grande reportagem para rádio, um pouco dos elementos
culturais e tradicionais à determinada parcela da população de Manacapuru que
não se identifica culturalmente com as Cirandas.
O rádio por ser um grande veículo de comunicação de massa e possuir uma
comunicação fácil, linguagem coloquial, foi o ponto chave para que pudéssemos
atingir à população de Manacapuru e contribuir para o resgate da identidade cul-
tural do Festival de Cirandas, esquecida com a midiatização desta festa popular.
Mostrar à parcela do povo manacapuruense que desconhece as raízes da festa das
Cirandas foi o principal objetivo deste trabalho, ou seja, apresentar a identidade
cultural do Festival, através de suas origens, economia local e o futuro da tradição
da festa, através de reportagens para rádio. Pela grande reportagem buscou-se
salientar a identificação cultural da Ciranda de Manacapuru, em seu aspecto folk-
comunicacional, onde a comunicação, através da festa popular, é feita do povo
para o povo, tornando-se um prazer para quem faz, e apenas em segundo plano
se tornar produto de industrialização cultural.
As três reportagens deste trabalho foram baseadas em temas que interessam à
população e à manifestação da cultura popular. A primeira reportagem mostrou os
aspectos históricos e trouxeram o início da disputa entre os Grêmios Recreativos,
Flor Matizada, Guerreiros Mura e Tradicional, onde pode-se observar o amor cul-
tuado à festa. A segunda reportagem trouxe a economia do município no período
do Festival, o que realmente interessa à população local, a movimentação monetária.
A terceira reportagem relatou os projetos das agremiações para a manutenção da
tradição da festa, bem como a sua relação com a mídia.
A série é uma pequena contribuição para o resgate das tradições culturais
em Manacapuru, diante da gigantesca massa que habita o município. Levou-se à

73
população do município o que o povo de Manacapuru faz para ele mesmo, apre-
sentando suas tradições, a arte da sua população e as origens da festa. Portanto,
percebe-se a contribuição deste trabalho como resgate da identidade cultural da
Ciranda de Manacapuru como festa folclórica popular, através de uma grande
reportagem para rádio, disseminando a Ciranda enquanto elemento cultural e
tradicional do município, antes de se tornar um produto da indústria cultural
amazonense.
Assim, espera-se que o Festival de Cirandas de Manacapuru cresça cada vez
mais, pois apresenta um potencial turístico e econômico muito grande, da mesma
forma que outras festas populares do Amazonas.

Referências

BARBOSA FILHO, André. Gêneros Radiofônicos: os formatos e os programas


em áudio. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2009.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São
Paulo: Cortez, 1980.
COELHO, José Teixeira. O que é indústria cultural. 9.ed. São Paulo: Brasiliense,
1987.
FERRARETTO, Luiz Artur. Rádio: teoria e prática. São Paulo: Summus, 2014.
GARCIA, Sandra. Visagem: espanto no rádio paraense. Belém: Imprensa Oficial
do Estado, 2012.
LAGE, Nilson. A reportagem: Teoria e Técnica de entrevista e Pesquisa Jornalística.
7 Ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
JUNG, Milton. Jornalismo de rádio. São Paulo: Contexto, 2004.
MACLEISH, Robert. Produção de Rádio: Um guia abrangente de produção
radiofônica. São Paulo: Summus, 2001.
MELO, José Marques de. Mídia e cultura popular: história, taxionomia e meto-
dologia da folkcomunicação. São Paulo: Paulus, 2008.
MONTEIRO, Ierecê Barbosa. Favor transmitir ao destinatário (Uma análise
semiológica dos avisos de rádio no Amazonas). Manaus: EDUA, 1996.
NEUBERGER, Rachel. O rádio na era da convergência das mídias. Cruz das
Almas: UFRB, 2012.

74
NOGUEIRA, Luiz Eugênio. O rádio no país das Amazonas. Manaus: Valer
Editora, 1999.
NOGUEIRA, Wilson. Festas Amazônicas. Manaus: Valer Editora, 2008.
PARADA, Marcelo. Rádio: 24 horas de jornalismo. São Paulo: Panda Books,
2000.
SIGRIST, Marlei. “Danças Folclóricas”. In: Noções Básicas de Folkcomunicação:
Uma introdução aos principais termos, conceitos e expressões. Org. Sérgio Luiz
Gadini; Karina Jans Woitowicz. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2007, pp. 103-106.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. “Festas Populares”. In: Noções Básicas de Folk-
comunicação: Uma introdução aos principais termos, conceitos e expressões.
Org. Sérgio Luiz Gadini; Karina Jans Woitowicz. Ponta Grossa: Editora UEPG,
2007, pp. 107-112.

75
MOSAICOS, RESISTÊNCIAS E IDENTIDADES:
NOTAS SOBRE OS TEMAS DO FESTIVAL
FOLCLÓRICO DE CARACARAÍ — RR29
Gabriel Augusto Nogueira dos Santos30

Introdução

A construção das identidades na Amazônia é um processo de busca constante,


atrelados ao resgate histórico e social, mas podendo ser vinculado a influências
externas e econômicas. Nota-se que nos últimos anos, as manifestações culturais
na região acabaram por ganhar novos traços atrelados a esses interesses, vinculados
a necessidade de um capital que possa trazer uma seguridade, mas necessários aos
fluxos e fixos relacionados ao fenômeno.
O Festival Folclórico de Caracaraí, apesar de uma manifestação recente, car-
rega inspirações dos já consagrados festivais, mas ainda se mantém a partir de
uma construção inicial pautada em uma necessidade de valorização e resistência,
perpetuada como uma atividade educacional e de resgate social. A partir da análise
do processo de criação, temáticas e relações interculturais, nota-se que a cultura
popular de Caracaraí está em um processo de consolidação da identidade regional
do estado, além de uma busca incessante pela resistência e diálogo com as demais
esferas, sobretudo a educação e o lazer como políticas públicas.
No século XX, especialmente a partir dos anos 1980, a cultura popular ama-
zônica ganhou novos sentidos de identidades e pertencimentos. Essa percepção é
oriunda das inserções mercantilistas do capital, mas também atrelados ao resgate das
29 Artigo apresentado no 3° Seminário Internacional America Latina - SIALAT 2020, GT Comunica-
ção, Relações de poder e conflitos socioambientais.
30 Doutorando em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido - PPGDSTU/NAEA/UFPA.
E-mail: nogueira.gabriel01@gmail.com

76
identidades regionais e aos novos fluxos e fixos que surgiram com o fortalecimento
político e social dos movimentos culturais existentes na região
Acompanhando o processo evolutivo das manifestações culturais, as novas
relações baseadas em maior integração espacial e vinculada a uma globalização e
midiatização do espetáculo. Com isso, a construção das identidades amazônicas
ainda contém traços relacionados às grandes manifestações já consolidadas, con-
forme analisa Trindade (2017). Como exemplo, destaca-se o Festival de Parintins,
cuja consolidação é relacionada ao marketing difundido e aos novos discursos que
a festa carrega em suas apresentações, conforme analisa Nogueira (2008, 2013).
O artigo em questão irá discutir sobre o Festival Folclórico de Caracaraí, evento
criado a partir do ano 2006. O projeto inicial estava alusivo às seguintes premissas:
atividades educacionais, inserção econômica e cultural, conforme destaca Rapozo
(2019). Ao longo da curta história, as influências culturais de Caracaraí estavam
entre a migração nordestina e o Festival de Parintins, tomando como principal
característica, a história oral das lendas da Cobra Mariana e o Gavião Caracará,
que trazem símbolos e contextos alocados na cultura roraimense.
A pesquisa é de cunho bibliográfico e documental, além de aspectos vinculados
a entrevistas informais com brincantes e dirigentes das agremiações, onde procu-
rou entender a construção do Festival Folclórico e as relações de integração com
as demais manifestações locais e regionais. O objetivo é analisar a vinculação do
resgate cultural e as mensagens veiculadas pelo Festival Folclórico, tomando como
base a questão educacional e também a midiatização do espetáculo, a partir das
influências de outras manifestações e até mesmo, relacionadas a contextos políticos.

Manifestações culturais e redes geográficas na Amazônia

O pensamento que envolve a Amazônia pauta pela curiosidade vinculada a


vastidão territorial e geográfica que circunda essas terras. Ao analisar a sua conjun-
tura histórica e territorial é importante analisar suas diferentes particularidades e
anseios acerca da sua inserção perante o mundo, aspectos diferenciados ao longo
da história, em um processo que se foi desde os primeiros contatos, ao fixo do
capital internacional e a resistência das populações tradicionais.
Nesse contexto, é destacado a presença do índio, do negro e do caboclo em
relação às geografias e historiográficas locais, atrelados ao apresentar as características

77
econômicas e suas relações sociais e de vida. Nesse sentido, Tocantins (2000) e
Nogueira (2008) destacam a transformação desses folguedos, oriundos das brin-
cadeiras de bumba-meu-boi e outras manifestações advindas do Nordeste, mas
que ganharam significados e tradições amazônicas, influenciados principalmente
pela cultura indígena.
No âmbito dessas influências, Tocantins (2000), Braga (2002) e Nogueira
(2008, 2013) exemplificam a influência religiosa e suas relações com o profano.
Neste caso, o Çairé de Alter do Chão e a construção da dramatização acerca do
Festival Folclórico de Parintins, sendo essas as principais manifestações culturais
da região, a partir da sua consolidação e posterior aprimoramento junto a moder-
nidade tecnológica e, até mesmo, midiática.
É importante compreender esses novos significados a partir das transformações
dos folguedos tradicionais e seus novos contextos, enfatizados em uma crítica
social ou até mesmo, aos resgates das memórias e histórias dos povos tradicionais.
Braga (2002) e Nogueira (2008) exemplificam esse processo de significados aos
seguintes conceitos: interesses locais de incentivos econômicos e também, as novas
redes culturais que se formam a partir das atividades econômicas, trazendo um
significado também mercadológico nas festas populares na Amazônia, a partir do
que se entende como cultura de massa.
Com o sentido mercadológico e midiático, há a presença do sentido político
das manifestações, relacionados aos incentivos econômicos e as mudanças no seu
formato. Para isso, existe uma necessidade de conceber as imagens do espetáculo
para uma promoção a partir da exposição de mídia, além de movimentos par-
tidários existentes nas localidades. Machado (2011), Santos e Monteiro (2020)
contextualizam esse sentido com a questão do novo “coronelismo” na Amazônia
e a condenação a instabilidades de realização e perpetuação das manifestações
culturais existentes na região.
Em relação às instabilidades políticas, a necessidade de uma profissionalização
das práticas culturais, desde o aspecto vinculado à organização cultural como um
bem social, mas também atrelado a competência dos agentes envolvidos. Ressalta-se a
importância desse amadurecimento a partir da criação das associações culturais como
organizações sociais e os maiores requisitos dos participantes, onde Nogueira (2013),
Santos e Monteiro (2020) analisam como características importantes nesse processo.
Lopes e Barbosa (2017) e Holanda (2019) destacam nesse papel, a figura dos
artistas, considerados andarilhos e agentes de deslocamentos temporais, onde destaca

78
a migração sazonal desses personagens. A partir dessa percepção, é importante
analisar os fluxos de artistas nas manifestações como fatores positivos de trocas de
experiências e a consagração dos trabalhos desenvolvidos.
A conjuntura de redes e fluxos é destacado por Costa Júnior (2011) com os
seguintes formatos: direto, vinculados às atividades do festival, desde o ir e vir de
turistas e artistas, e o indireto, vinculados aos bens e serviços que chegam para o
complementar das manifestações culturais em aspectos sazonais ou permanentes,
atrelados a um ciclo, como destaca Holanda (2019). Entretanto, os artistas podem
ser considerados como anônimos na construção do espetáculo, o que pelo contrá-
rio, são os principais elos da interlocução entre as diversas manifestações culturais
existentes, em que se analisa o ressurgimento e os novos traços com os diálogos
relacionados à cultura local.

As inspirações, os itens e o surgimento do festival folclórico de Caracaraí

A construção do Festival Folclórico de Caracaraí vem de um contexto atrelado


a importância dos grandes festivais do Amazonas, neste caso o Festival de Parintins,
as Cirandas de Manacapuru e o Peixe Ornamental de Barcelos. Isso é percebido
a partir dos novos significados e uma mídia pautada em relação às artes locais,
sobretudo entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Nesse sentido, o
olhar sobre a região Amazônica se vinculava às apresentações como uma “ópera
popular”, abordada por Braga (2002) e as mensagens de resgates históricos e sociais
dessas manifestações.
A iniciativa ganhou os primeiros traços no ano de 2006, a partir das ideias dos
professores Domingos Sávio Rapozo Pinheiro (Guty Rapozo), Beto Lima e Vadilson
Gonçalves na parte musical, enfatizados em uma perspectiva de valorização das
identidades e musicalidades da região, conforme destacam Rapozo (2019) e Silva
(2019). Nesse sentido, a materialização em definitivo e a aprovação por parte da
então prefeita, Maria Elivânia de Andrade (Vaninha) e a parceria com a Secretaria
Municipal de Promoção Social, que aprovou o formato e a primeira edição para
ocorrer no mesmo ano.
Portanto, tornou-se necessário a criação de agremiações que dariam voz ao que
seria esse projeto audacioso pelos seus fundadores, tendo como principal objetivo,
a valorização da identidade do município de Caracaraí e a questão ambiental.

79
Além disso, Rapozo (2019) destaca outros aspectos em relação à criação do festi-
val: forma de ocupação da juventude local, em função da questão da ociosidade
e a promoção futura da economia local advinda da festividade, mesmo que em
forma sazonal, ampliando cenários para o fortalecimento do Ecoturismo e outras
atividades econômicas
A primeira agremiação a surgir foi denominada Cobra Mariana, sob a respon-
sabilidade do professor Beto Lima e tem como suas cores, o azul e branco (figura
1). Em relação à lenda, são diversos significados que a mesma remete, o primeiro é
contado a partir da vista de uma serpente que arrastou um cavalo de um morador
local para as profundezas do Rio Branco, conforme destaca Silva (2019).

Figura 1 - Logotipo da Agremiação Cobra Mariana

Créditos: Acervo da Agremiação (Facebook)

Já Trindade (2017) e Rapozo (2019) trazem outras versões da lenda. A pri-


meira, aponta uma moça que desapareceu após mergulhar nas águas do rio e se
transformou em uma cobra. A segunda versão, é de uma jovem que se apaixonou
por um tuxaua sendo lançada pelo seu pai no rio, acabou por desaparecer, mas que
um feitiço de seu amado a transformava em uma jovem moça enquanto estivesse
no meio terrestre, mas no meio aquático matinha sua forma de Cobra e tem sua
morada debaixo da cidade, especificamente em uma caverna localizada embaixo
de uma escola do município.
A segunda agremiação em questão, é o Gavião Caracará, das cores verde e
branco (figura 2), tem seu nome relacionado com o nome da cidade de Caracaraí,
que em língua tupi, simboliza “pássaro pequeno” e teve como responsabilidade, o
Prof. Domingos Sávio. Conforme descreve Trindade (2017), a ave mede entre 50

80
a 60 centímetros e a ligação dela com o município está atrelada a dois significa-
dos: o primeiro, vinculado a presença do mesmo em áreas de caça e queimadas e
campinaranas, sendo uma categoria de vegetação sazonal e de pequeno porte ou
até mesmo, acompanhando o gado transportado na região.

Figura 2 - Logotipo da Agremiação Gavião Caracará

Créditos: Acervo da Agremiação (Facebook)

O reconhecimento político veio a partir de 2007, com o estabelecimento


das disputas e dos requisitos a serem cumpridos pelas agremiações. Em primeiro
momento, é destacado a participação mínima de 100 pessoas por agremiação
durante a sua apresentação e a avaliação de 20 itens, posteriormente realocados e
permanecendo 19 itens para avaliação em um tempo de 1h30 a 2h de apresenta-
ção, com notas de 7 a 10 pontos. Abaixo, o quadro de itens exigidos no festival.

Quadro 1 – Itens obrigatórios e avaliados no Festival Folclórico de Caracaraí


ITEM 2007 2019 CARACTERÍSTICAS
1 Animador Apresentador Interação e narração da apresentação.
Item que envolve a paixão pelo grupo
2 Torcida
folclórico a partir das cores e música.
3 Intérprete Interpretação das canções e sintonia.
4 Letra e Música Suporte literário e musical da apresentação.
5 Musa da Canção Valorização da mulher Caracariense.
Coreografias sincronizadas com a temática
6 Ala Temática
da agremiação.
7 Coreografia Expressão corporal durante a melodia.

81
Estrutura de carros alegóricos, tripés, pai-
8 Alegorias néis, envolvendo a criatividade do artista
envolvendo o tema.
Roupas e detalhes que exaltam a cultura
9 Fantasias e Adereços
regional.
O principal personagem da apresentação –
10 Símbolo
Cobra Mariana ou Gavião Caracará.
Defende o tema abordado pela agremiação
11 Porta-Estandarte
a partir da bandeira (Estandarte).
Crianças que representam a fauna e flora da
12 Ala das Riquezas Naturais
região, com faixas etárias de 04 a 10 anos.
Beleza e Majestade da mulher roraimense e
13 Rainha
do folclore

Pescadores Destaque a importância para


economia, o extrativismo e o folclore da
Vaqueiros Ala das Figuras Típicas
14 região Amazônica. Surgiu a partir da junção
Regionais
das alas de Pescadores, Vaqueiros e Agri-
Agricultores cultores.

Mulher guardiã e ênfase na beleza da mu-


15 Cabocla Macuxi
lher roraimense.
16 Lenda Regional Lenda Amazônica Ilustração da cultura Amazônica.
17 - Pajé Curandeiro e feiticeiro da tribo.

Representação dos grupos étnicos da Ama-


18 Ala Indígena Tribos Indígenas
zônia.

Personagem lendário do folclore rorai-


19 Índio Macunaíma
mense.

Fonte: Lei Municipal nº447/2007, Trindade (2017), Rapozo (2019), Silva (2019) e Santos (2020)

Organizado por: Santos (2021)

O significado de cada item está ressaltado ao papel da valorização e da com-


preensão da identidade local, desde a construção histórica, quanto aos aspectos
econômicos do estado. Trindade (2017) e Santos (2020) afirmam nesse contexto, o
entendimento do orgulho cultural e a necessidade de inserção desses elementos para
conhecer as particularidades que a festa foi criada, com um tom de originalidade,
mas sem perder a essência pertencente a uma identidade em ascensão.

82
A PRIMEIRA FASE DO FESTIVAL – PROJETO PILOTO
E AS PRIMEIRAS MENSAGENS (2006 – 2013)

Da História de Caracaraí às Primeiras Disputas (2006 – 2008)

Para o primeiro ano do Festival, considerado também o pontapé inicial para


a criação das agremiações, ficou definido que não haveria competição entre os
grupos folclóricos. Entretanto, a comissão organizadora do evento piloto definiu
que ambas as agremiações fariam um resgate histórico do surgimento do município
de Caracaraí e seria realizado nos dias 26 a 28 de maio de 2006. Essa edição serviu
no conhecimento da comunidade sobre as agremiações e apresentou o significado
posterior do que seria o Festival, conforme visto abaixo.

Figura 3 - Apresentação das alas e a torcida ao fundo

Créditos: Acervo de Vadilson Gonçalves

Apesar de ser um ano apenas de apresentação inicial e identificação dos brin-


cantes com as agremiações, já houve uma preparação e uma produção maciça para
o festival daquele ano. Ambas as agremiações realizaram investimentos de gravação
de CDs (figura 3) para que a cidade pudesse conhecer o que seria o festival, além da
produção alegórica desenvolvida por artistas da cidade de Caracaraí e de municípios

83
próximos. Percebe-se de início, uma forte influência do corpo de fundadores dos
festivais com a identidade com o Festival do Peixe Ornamental de Barcelos.

Figura 4 - Primeiro CD do Festival Folclórico de Caracaraí

Créditos: Acervo de Vadilson Gonçalves

Já no primeiro ano, destaca a participação de cerca de 4 mil pessoas na Arqui-


bancada Municipal, estrutura criada para a realização de eventos no município,
localizada na Avenida Doutor Zany (figura 4). Diante desse impacto inicial, o
evento foi citado na tribuna da Câmara dos Deputados (2006) a partir do discurso
do deputado Francisco “Chico” Rodrigues enfatizando a importância do evento
para a juventude e um possível sucesso posterior sobre o festival.

Figura 5 - Alegorias adentrando a Avenida Doutor Zany

Créditos: Acervo de Domingos Rapozo e Vadilson Gonçalves

84
Outro aspecto no ano inicial, foi a participação de artistas já consagrados de
festivais como o de Parintins. Como um dos apresentadores, é destacado a figura
de Klinger Araújo representando a cultura amazonense no estado de Roraima, para
divulgação e um posterior marketing, já que o artista é reconhecido dentro e fora
da Amazônia pela sua aptidão musical e instrumental, conforme a figura abaixo.

Figura 6 - Klinger Araújo conduzindo o espetáculo em 2006

Créditos: Acervo de Vadilson Gonçalves

Em 2007, com o reconhecimento oficial da prefeitura do município, a criação


do regulamento que trazia as diretrizes do Festival e sua importância social e cultural,
houve a primeira criação temática das agremiações. A Cobra Mariana, desenvolveu
o tema “Amazônia Cabocla de Alma Indígena”, em que procurou analisar todas
as relações entre homem, natureza e suas populações tradicionais. É importante
lembrar que como foi o primeiro ano de disputas, deveria haver como presença
obrigatória, algumas alas, como pescadores, vaqueiros e agricultores, esses conside-
rados principais elementos da economia e da subsistência do estado de Roraima.
Durante a pesquisa, percebe-se o sinônimo do tema da Mariana com o de-
senvolvido pelo Boi Caprichoso em Parintins no ano de 2002. Apesar disso, as
concepções foram totalmente distintas, onde Parintins focou nos contextos da
região do Alto Rio Negro e do Baixo Amazonas, enfatizando lendas e festividades

85
como o Çairé e o próprio Festival do Peixe Ornamental, enquanto a Cobra Mariana
trouxe as relações com as populações indígenas de Roraima e os fios condutores
da economia local.
Já o Gavião Caracará, trouxe como fio condutor da sua apresentação, o se-
guinte tema: “Nas asas do Gavião uma Cultura de Preservação”, em que se sagrou
o primeiro campeão da disputa. A concepção do tema em questão, se pautou no
debate da preservação da fauna e flora, a partir de um olhar vinculado a questão
milenar das populações tradicionais e dos ecossistemas locais, percebido inclusive
nas indumentárias dos itens femininos, uma característica a parte, envolvidas as
agremiações no simbolismo da mulher caracariense, conforme visto abaixo.

Figura 7 - Itens e Indumentárias Femininas no ano de 2007

Créditos: Acervo de Caracaraí - Cidade Porto

Para 2008, houve as primeiras divulgações jornalísticas em âmbito estadual e


começou a ultrapassar rumo ao nacional. Destacam as matérias do Folha de Boa
Vista, Roraima em Foco e do G1 Roraima nos períodos de 12 a 26 de dezembro do
corrente ano, já que o Festival foi realizado nas proximidades das festas natalinas,
devido à falta de verbas e as eleições municipais do corrente ano, ocasionando o
atraso da realização do evento.

86
Destaca-se no Folha de Boa Vista (2008), o sucesso do segundo ano de festival,
cuja estimativa foi de 20 mil turistas nos dias de festa na cidade de Caracaraí (figura
7), já destacando os problemas da pequena rede hoteleira do município, devido a
pouca disponibilidade. Entretanto, a matéria do G1 Roraima (2008), trata o Festival
como um “mini-boi associado à Parintins”, além do envolvimento de artistas da
capital nacional do folclore. A partir disso, a reflexão sobre as questões das redes
do folclore, que podem contribuir ou descaracterizar parte do espetáculo, pauta
discutida desde sempre pelos organizadores e fundadores do Festival de Caracaraí.

Figura 8 - Público do Festival de Caracaraí em 2008

Créditos: G1 Roraima

Nesse ano, o festival foi vencido pela Cobra Mariana com o seguinte tema:
“Amazônia Mãe, a Dama do Universo”, cuja concepção apresentada, segundo
destaca um dos fundadores do festival, está relacionada à homenagem de lendas e
rituais indígenas da Amazônia. Essa construção é percebida, sobretudo, no enfa-
tizar dos troncos linguísticos e povos que habitam a região, além de um enfoque
voltado a uma alusão da preservação ambiental, tal como destacado no projeto
inicial de criação do festival.
Um aspecto a destacar, está no número de povos indígenas, onde o Instituto
Socioambiental (ISA), mostra a existência de 305 povos indígenas (isolados e
não-isolados), representando um total de quase 900 mil indivíduos. Somente na
Amazônia Legal, existem cerca de 200 povos e uma população estimada em cerca

87
de 435 mil indivíduos, sendo alguns desses grupos existentes em mais de um estado,
sobretudo, no caso do Amazonas, Pará, Mato Grosso, Rondônia e Roraima, até
mesmo nos países limítrofes como Venezuela, Guiana e Colômbia, o que demandou
essa discussão sobre os mitos e lendas da região.
O Gavião trouxe neste ano uma relação do Monte Roraima com o desconhe-
cido. Intitulado “Galrásia: o mundo Perdido”, esse tema foi uma relação direta
com a formação do relevo roraimense com o desconhecido universo dos Macuxis.
Silva (2019) traz em relação ao registro daquele ano, que a partir dos fósseis pré-
-históricos encontrados na região naquele período, havia um universo repleto de
magias e encantos em relação ao sagrado que o Monte é referenciado.

As Interrupções e o Recomeço (2009 – 2013)

Entre os anos de 2009 a 2012 não houve disputa e nem festival. Os motivos
relacionados estão atrelados a falta de repasse por parte da Prefeitura e Governo
do Estado, além da problemática em relação a Patrocínios e prestação de contas.
Apesar de uma realização bem recente, os anos posteriores de falta de incentivos
ocasionaram a sensação de falta e pertencimento por parte da população, que
cobravam iniciativas de retorno da festividade.
Em 2013, com o apoio do Serviço Social do Comércio (SESC), Federação
do Comércio de Roraima (FECOMÉRCIO – RR), o Festival voltou a ocorrer,
ainda com traços iniciais, mas com um novo direcionamento em relação à questão
política. Com esse apoio por parte do capital privado, o Festival passa a ganhar um
novo aliado, neste caso, os interessados no mercado e do turismo na cidade-porto.
Abaixo, a propaganda do apoio do SESC na realização do festival naquele ano.

Figura 9 - Propaganda do SESC Roraima em alusão ao Festival de Caracaraí

Créditos: Acervo do Festival Folclórico de Caracaraí

88
O tema da Cobra Mariana no ano em questão foi “Água, Sangue da Terra”. A
concepção do tema está relacionada com a importância da água perante a sociedade
e a sua função essencial de manutenção da vida no planeta. Nesse sentido, há uma
percepção de um dos objetivos do Festival, vinculado a aspectos de educação e
questões ambientais, devido a uma concepção educacional do projeto da criação
deste festival, conforme abaixo.

Figura 10 - Ala Temática da Cobra Mariana em 2013

Créditos: acervo de Guty Rapozo (Redes Sociais)

Por sua vez, o Gavião Caracará trouxe o tema “Mitos, Lendas e Tradições”,
onde procurou explorar o universo do folclore brasileiro. Nesse sentido, a apre-
sentação veio em busca de retratar os personagens de todas as regiões, claro que
em primeiro lugar, o enfatizar seria nos contextos amazônicos. Nesse sentido, é
importante destacar toda a construção temática baseada no resgate de diversas ge-
rações a partir do que é a essência do folclore, tal como a outra agremiação trouxe,
uma perspectiva educacional.
Em ambas as temáticas, durante o aprofundamento deste artigo, trouxe a se-
guinte indagação: as temáticas podem ser ampliadas para fins educacionais em sala
de aula? Durante a organização bibliográfica do artigo, a leitura de Santos (2012)
traz em seu texto, a contribuição do Festival de Parintins na educação local pode

89
ser entendida como a relação da formação integral do indivíduo com a inserção
do mesmo na manifestação cultural.
O papel da Educação Ambiental nesse sentido, se inclui como um fator de
resgate da cultura local, mas também como uma forma de aliar a questão dos temas
transversais existentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) com a prática
de ensino. A partir disso, as temáticas e canções podem se tornar elementos na
visão crítica vinculada ao meio ambiente, não só no caso específico de 2013, mas
também outros temas vinculados a áreas como Geografia, História e até mesmo,
a Língua Portuguesa.
Apesar do empate posterior neste ano, o Festival se consolidou a partir desse
aspecto como uma voz e essência da região central de Roraima, consolidando um
papel de artistas e todos os itens envolvidos. Nesse sentido, os próximos passos se
atrelam a uma mensagem educativa voltada ao conhecimento e com um diálogo
sobre os diversos contextos da região Amazônica.
Até o ano de 2013, o ritmo musical predominante tinha como inspiração, o
executado no Festival de Barcelos, tendo uma influência do baião e também de
ritmos caribenhos, em que o uso do teclado é constante. Além disso, a participa-
ção de artistas de outros festivais como Júnior Paulain e Klinger Araújo, ambos
de Parintins, davam um tom de profissionalização da festa. Silva (2019) e Santos
(2020) analisam essa construção com outras influências, desde o axé ao forró, cuja
característica começaria a ganhar novos sentidos, sobretudo em relação ao tribal
a partir de 2014.

Mudança Rítmica e a Consolidação do Festival Folclórico de Caracaraí (2014


– Atual)

As Polêmicas em Volta dos Ritmos e a Consolidação (2014 – 2016)

O ano de 2014 tem início com as polêmicas mudanças de ritmo, e contando


com artistas de outros festivais, a decisão de mudança de ritmos trouxe uma divisão
na concepção do festival. Nota-se, um afastamento de alguns integrantes fundadores
do Festival, devido às discordâncias referentes a mudança rítmica, passado da par-
ticularidade existente no município, para as toadas, ritmo executado em Parintins.
Apesar de toda a discussão novamente traz como contexto, uma vinculação
mais específica ao estado de Roraima. Com 300 brincantes, a Cobra Mariana

90
trouxe o tema “Roraima Indígena - Santuário da Vida”, composta por 09 toadas,
cuja interpretação seria de Sebastião Júnior (figura 10), então levantador de toadas
do Boi Garantido de Parintins.

Figura 11 - Sebastião Júnior como intérprete da Cobra Mariana em 2014

Créditos: acervo de Guty Rapozo (Redes Sociais)

A apresentação e as toadas analisaram os modos de vida dos povos de língua


Karib, além de uma exaltação folclórica da cidade em questão. Nesse sentido, é
valorizada a construção identitária, relacionada a chegada do homem branco e as
relações com os povos indígenas. Outro momento percebido em relação à temáti-
ca, é a presença maciça de contextos vinculados aos índios Wapichana e Macuxi,
sendo este último representado no Festival Folclórico como item primordial,
representando a força indígena e o lendário roraimense.

91
Figura 12 - A chegada do homem branco e a interpretação de Sebastião Jr.

Créditos: acervo de Guty Rapozo (Redes Sociais)

Enquanto o azul e branco se destacavam com a introdução do ritmo das


toadas, o Gavião Caracará, campeão no ano, ainda continuou no ano em questão
com o ritmo original do festival. Nota-se que as críticas referentes a sua rival estão
pautadas na perda de identidade e uma similaridade excessiva com os bumbás de
Parintins, cuja preocupação ainda rondam as agremiações atualmente, sobretudo
na perspectiva de inovação e uma descaracterização do que é o projeto desenvol-
vido em 2014.
Em relação à temática, foram botados em pauta os seguintes temas: “Exaltação
Indígena” e “Roraima de Alma Migrante Nordestina”, tendo o segundo considerado
vencedor. A composição temática era baseada na migração histórica do Nordeste
para o estado e suas posteriores influências. Destaca-se na abordagem temática, a
presença de movimentos como cangaço e a forte ligação religiosa, notados princi-
palmente nas indumentárias, conforme visto abaixo.

92
Figura 13 - Apresentador Klinger Araújo e o intérprete Ericson Mendonça em 2014

Créditos: acervo de Guty Rapozo (Redes Sociais)

Uma novidade no Festival foi a presença feminina nos itens de interpretação de


letra e música foi trazida pela agremiação. A participação da cantora Vanessa Alfaia,
importante nome no cenário dos bumbás de Parintins, fez parte da apresentação,
enfatizando a exaltação religiosa de Nossa Senhora do Livramento, padroeira do
município, conforme visto abaixo.

93
Figura 14 - Vanessa Alfaia representando Nossa Senhora do Livramento

Créditos: acervo de Guty Rapozo (Redes Sociais)

Ainda com as polêmicas referentes às mudanças de título, houve o consenso


de mudança total do ritmo do festival, deixando a toada como ritmo principal do
festival. O título veio para a Cobra Mariana, cujo tema apresentado foi “Roraima:
Encantarias indígenas”. Para este ano, o tema em questão aprofundou a formação
territorial e a contribuição dos povos indígenas na construção do estado de Roraima,
desde a lenda das Icamiabas, até as populações habitantes. Além disso, a construção
geográfica de Roraima, onde se incluiu a fauna e a flora do estado, trazendo uma
valorização dos encantados e dos diversos segmentos sociais das populações.
O Gavião Caracará, novamente utilizou o sistema de votações dos brincantes e
diretoria, com os seguintes temas: “A Morada de encantos do Caboclo Roraimense”,
“Amazônia: A voz imaginária do caboclo Macuxi”, “Amazônia: Reino das águas”
e “Fé: sentimento que move o povo Roraimense”. Esse processo de votação foi
definido com votações presenciais e pelas redes sociais, o que culminou na escolha
do último tema citado.
Em primeiro momento, a polêmica instalada foi vinculada à questão da reli-
giosidade, relacionada a letra do tema e o desenho do abadá, conforme descreve
Silva (2019), mas que logo foi resolvida, com a modificação do que seria o desenho.
É importante destacar, que apesar de muitas festividades terem encontrado apoio

94
na religiosidade local, destacam-se polêmicas com símbolos ou algumas letras que
envolvem elementos do sincretismo que possam causar algum desconforto, como
já aconteceu em Parintins ou outras cidades nos últimos anos.
Já em relação ao que foi apresentado, frisa-se a participação de Vanessa Alfaia,
como intérprete efetiva no ano de 2015 pela agremiação e sagrando-se campeã
no seu item. A primeira parte sobre a apresentação é baseada nas cronologias
das missões religiosas em Roraima, em que se destaca a atuação das carmelitas,
salesianos e missionários da Consolata no estado de Roraima e a polêmica relação
entre o catolicismo e a população indígena, principalmente abordando os conflitos
com os Waimiri-Atroari, a partir da expedição do Padre João Calleri em 1968,
conforme visto abaixo.
Figura 15 - Cenário com a homenagem ao Padre Calleri

Créditos: acervo de Paulo Fonseca (Redes Sociais)

Já a segunda parte da apresentação envolveu dois cenários que hoje são elemen-
tos primordiais na religiosidade de Caracaraí: o milagre do vaqueiro Bernardino
por parte de Nossa Senhora do Livramento, padroeira do município, as romarias
fluviais de São Pedro, presente na região e a encenação da Paixão de Cristo em
Mucajaí, sendo perceptíveis principalmente na indumentária do apresentador
Fabiano Neves. Nota-se, que a agremiação contextualizou cada contexto religioso,
conforme visto abaixo.

95
Figura 16 - Representação da Paixão de Cristo e o apresentador Fabiano Neves

Creditos: acervo de Paulo Fonseca (Redes Sociais)

Em 2016, veio o bicampeonato da agremiação Cobra Mariana em 2016, com


a apresentação do “Rio Branco – Águas da minha História”. A construção do tema
contou com a participação de 250 integrantes, em que abordava a relação da ci-
dade de Caracaraí, denominada Cidade-Porto com o Rio Branco. Nisso, destaca
a essência do papel do rio como principal forma de conexão do município com o
mundo, visto que o meio fluvial foi predominante na região por vários anos antes
da criação da BR-174, onde o município se localiza.

Figura 17 - Porta Estandarte representando o tema da Cobra Mariana

Créditos: Folha de Boa Vista

96
Nesse sentido, o entendimento acerca do Rio Branco é apresentado como
elemento primordial do estado de Roraima. Desde a morada da Cobra Mariana
a necessidade de proteção da morada e da fonte de vida do povo roraimense, a
construção do tema se baseou em uma cronologia geo-histórica na importância
do Rio como elemento essencial ao desenvolvimento. É importante ressaltar a
construção desse tema a partir da seguinte frase: “o rio comanda a vida”, título do
livro de Leandro Tocantins (2000), além da relação do povo caracariense com o
pertencimento do espaço em questão, conforme visto abaixo.

Figura 18 - Póster dos temas apresentados em 2016

Créditos: acervo de Guty Rapozo (Redes Sociais)

O Gavião Caracará trouxe neste ano, mais um tema vinculado ao encantado


do Monte Roraima, tal como em 2008. Intitulado “Manoa Parimé – O Eldorado
Roraimense”, o tema veio com o destaque em relação ao relevo da Serra de Pacarai-
ma, onde cerca de 400 a 800 anos atrás, existia um Lago chamado Parimé (figura
07), onde segundo relatos de Reis et al. (2009) e Maziero (2018), era localizado
no que seria hoje o Rio Parimé e continha cerca de 400 km de diâmetro e cerca
de 80 mil km² e teve sua drenagem natural até meados do século XIX.

97
Figura 19 - Mapa da então localização do Lago Parime

Extraído de: Reis et al (2009)

Esse local, era onde possivelmente se localizava o tão famoso “El Dorado”,
neste caso, a cidade de Manoa, onde se escondiam tesouros de ouro e pedras pre-
ciosas em que os Incas levaram ao se refugiar das invasões espanholas na região.
Nesse sentido, Maziero (2018) destaca os principais expedicionários que tentaram
encontrar vestígios como Thomas Roe em 1611, Padre Samuel Fritz em 1689 e
Alexander von Humboldt, entre os anos de 1799 a 1803 considerados como os
principais expedicionários.
Esse destaque está relacionado principalmente a duas teorias sobre a existência:
a formação de pequenas lagunas em épocas sazonais. Stevenson (1994) e Reis et
al. (2009) descrevem a localização dessa cidade em uma região ocidental do que
seria esse lago, já próximo do que seria a foz do Rio Uraricoera, mas por falta de
vestígios geológicos, ainda há controvérsias, trazendo um misto de relatos orais de
uma mitologia local ou relações científicas.

98
A Falta de Repasse de Verbas, Retorno e o bi-Campeonato do Gavião
Caracará (2017 – 2019)

Depois de festivais com sucesso, disputas emocionantes, a desilusão acabou


por estar presente no festival. Com a crise econômico-política em ascensão, o
ano de 2017 foi considerado atípico na cidade-porto. Devido à problemática de
recebimento de verbas, onde apenas uma das agremiações foram aptas, no caso,
a Cobra Mariana e a desistência posterior do Gavião, a edição acabou associada
ao II Festival Makunaima, evento criado para resgatar a identidade do estado de
Roraima, contava com a apresentação de grupos oriundos de Boa Vista, Caracaraí,
Mucajaí e Rorainópolis, foi realizado em apenas uma única noite.
Para se apresentar, a Cobra Mariana desenvolveu o tema “Terra de Makunaima:
a grande aldeia”. A viagem temática nesse ano explorou o universo dos grupos
habitantes no estado de Roraima, Wapichana, Macuxis, Yanomamis e os Waimi-
ri-Atroaris. Com cerca de 650 brincantes, a apresentação do grupo se baseou em
mostrar as relações com a natureza e a religiosidade dos povos em questão. Apesar
de não haver competição, é destacado uma rivalidade sobre um possível título, nesse
sentido enfatizado pelas rivalidades entre as torcidas e até mesmo, pelo incentivo
das verbas destinadas a apenas uma das agremiações.

Figura 20 - Apresentação da Cobra Mariana em 2017

Créditos: Jornal O Painel

99
Em relação a não disputa, o Gavião Caracará anunciou que não iria se apre-
sentar, mas posteriormente com apoio privado decidiu participar do evento. Com
cerca de 90 brincantes, o tema foi “Uma noite em Parintins”, onde homenageou
os grandes sucessos de Parintins e como uma forma de não deixar vazio o con-
texto da agremiação naquele ano. Nesse sentido, a construção temática se baseou
principalmente na inspiração que o boi-bumbá trouxe no resgate da identidade
em Caracaraí, a partir das ideias iniciais que deram origem ao festival em 2006,
onde os brincantes se apresentaram de abadá, devido ao recurso advindo de bingos
e pequenos patrocinadores.

Figura 21 - Abadás e indumentárias do Gavião Caracará em 2017

Créditos: Jornal O Painel

Para 2018, “Roraima: um mosaico cultural” foi a peça chave para a Cobra
Mariana. Valorizando a diversidade populacional do estado, desde a migração nor-
destina, quanto as recentes em relação aos fenômenos econômicos recentes. Além
desse aspecto, é apresentado um panorama das diversas manifestações culturais
do estado, como a Vaquejada, Cirandas e o tradicional “Boa Vista Junina”, este
último considerado a maior festa popular do Extremo Norte. Nesse sentido, as
alas temáticas e figuras regionais se basearam em uma apresentação de representa-
tividade cultural nas cidades.

100
Figura 22 - Ala Temática representando as quadrilhas juninas

Créditos: G1 Roraima

Ao longo da apresentação, o mosaico cultural de Roraima se construiu também


a partir da religiosidade, na figura de Nossa Senhora do Livramento e o milagre
reconhecido a partir das histórias de vaqueiros contadas na região desde o início do
século XX, além da história do pássaro Jacamim, já apresentadas em anos anteriores.
Com isso, foi evidenciado a relação entre o sagrado e o profano existente no cato-
licismo local, sobretudo enraizado nas memórias e crenças locais, impulsionando
o imaginário e também a valorização da ancestralidade local.
O título veio com o Gavião Caracará, que trouxe novamente uma releitura do
tema de 2017, agora intitulado “Caracará na cultura dos Bumbás de Parintins”. A
agremiação trouxe as emoções do que é o significado das inspirações a partir dos
bumbás para a cultura amazônica, desde a religiosidade e a relação do sagrado com
o profano. O interessante na constatação das letras e músicas apresentadas neste
ano, é uma forte mensagem ou um “grito” de preservação e da valorização dos
traços da cultura local, apesar de todos os processos de mutação e mercantilização
do espetáculo, conforme visto abaixo.

101
Figura 23 - Representação da Rainha do Gavião com as cores de Parintins

Créditos: G1 Roraima

Um aspecto interessante na construção do tema, está relacionado a encenação


do Ritual Tsantsa. Esse ritual, é uma prática recorrente de algumas tribos da região
do Equador e Peru, onde os Shuar, também denominados Jivaros, encolhiam as
cabeças decepadas dos seus inimigos a partir de um ritual composto por técnicas
específicas e locais. Segundo Descola (1993), esse ritual é caracterizado a partir
das guerras intertribais e em relação ao apoderamento do espírito vencido, este
destacado por Plitt (2017). Uma percepção diferenciada, já abordada anterior-
mente em Parintins a partir dos Muras e Mundurucus, estes influenciados até no
linguajar local em relação aos trabalhadores do festival, neste caso, os “Paikicés” e
os “Kaçauerés”, traz a importância da discussão histórica e a influência dos com-
portamentos na sociedade.
O ano de 2019 foi diferenciado para ambas as agremiações, apesar de um
discurso voltado a resistência cultural. A Cobra Mariana, trouxe a temática “Ín-
dios: a resistência de um povo”, foi oriunda dos recentes contextos relacionados
as populações indígenas, sobretudo no que tange a nova política ambiental e
social vigente. A apresentação trouxe relação do índio com o homem, desde a
colonização, tratando também do resgate dos legados deixados e resistentes dessas
populações, enquanto valorizar a estética e os significados da cultura indígena,
conforme percebido abaixo.

102
Figura 24 - O conflito entre o colonizador e os índios

Créditos: Governo de Roraima

Em um estilo mais eclético, o campeão desse ano foi o Gavião Caracará. O


mesmo trouxe o tema “Amor: antropofagia do Movimento Orgulho Roraimeira”,
em uma relação voltada a literatura e o exaltar da identidade de Roraima. A ho-
menagem é relacionada ao Movimento Roraimeira, criado em 1984 por Eliakin
Rufino, Zeca Preto e Neuber Uchôa (figura 21), escritores e poetas que trazem
nas suas obras a exaltação à paisagem do estado de Roraima e a necessidade da
construção de uma identidade local. O movimento em questão, conforme destaca
Silva e Santos (2016), contém traços do Movimento Tropicalista e do Modernismo,
onde ressalta a importância da valorização da estética nacional.

Figura 25 - Marilia Tavares interpretando a música Roraimeira

Créditos: Governo de Roraima

103
Feitosa (2014) analisa o Movimento Roraimeira como uma forma de criação
das novas bases vinculadas ao entendimento da afirmação de uma identidade lo-
cal, tanto vinculado a aspectos de manifestar os problemas da região. Entretanto,
o movimento que, ao mesmo tempo, é conhecido por levar o estado ao externo,
ainda não se destaca como representação no próprio estado, sobretudo no am-
biente escolar, o que traz uma necessidade de a temática ser mais abordada tanto
em aspectos transversais, como vinculações em áreas específicas das linguagens.
Nesse sentido, o segundo período relacionado a consolidação do Festival, a es-
sência da contextualização da História de Roraima se tornou cada vez mais evidente,
apesar das mudanças rítmicas, o processo de construção da identidade roraimense
se tornou cada vez mais evidente. Nota-se que o aprimoramento na elaboração
dos temas se tornou cada vez mais presente, desde o explorar de um movimento
literário a questão geológica, trazendo um papel interdisciplinar nas apresentações
e destacando uma relação que pode ser debatida também em sala de aula.

A pandemia de covid-19 e o novo recomeço em Caracaraí


(2020 – atual)

A partir de 2020, a história mais uma vez muda na cidade-porto. Devido à


pandemia mundial de Covid-19, a suspensão de todos os eventos folclóricos na
Amazônia, muitos métodos foram pensados para a sobrevivência dos espetáculos,
mesmo longe do grande público. Destaca-se a realização de lives dos próprios
artistas ou das agremiações, tal como ocorreu em Parintins, Manacapuru, Novo
Airão, Caapiranga e em Santarém nos anos de 2020 e 2021, financiadas pela Lei
Aldir Blanc nesses anos, para que a “chama” da cultura pudesse se manter viva.
Já em Caracaraí, o ano de 2020 já havia um planejamento inicial para a rea-
lização do festival, mas devido ao cenário já destacado, houveram as necessidades
de uma adaptação para tornar-se próximo do público. Em junho de 2020, foi
realizada uma transmissão da Cobra Mariana, cuja característica foi de lembrança
dos grandes sucessos e contando com a participação de Edmundo Oran como
intérprete e dos itens como pedidos de música.
Apesar de todo o cenário atípico, entende a realização desses eventos para
a perseverança e sobrevivência da cultura popular. Enfatizando que o Festival

104
Folclórico de Caracaraí é um evento com menos de 20 anos de existência, pode
perceber que o empenho da comunidade caracariense ainda se faz presente, mes-
mo com as midiatizações de espetáculo e as transformações que deixaram muitas
características iniciais do projeto-piloto de lado.
Posteriormente, houve uma descontinuidade temporária devido à pandemia
de Covid-19 foi ocasionada principalmente pela falta de apoio institucional e de
patrocínios. Percebe-se um hiato de mais de 01 (um ano) e alguns meses, até o
convite referente ao Natal Cultural de Caracaraí, onde marcou o reencontro de
ambas as agremiações em uma apresentação simbólica, conforme visto abaixo.

Figura 26 - Reencontro das agremiações no Natal Cultural de Caracaraí em 2021

Créditos: Prefeitura de Caracaraí/Acervo de Diane Coelho

Para esse retorno, foi orquestrado o apoio cultural da Lei Aldir Blanc e da
Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto de Caracaraí (SEMECD),
onde ambas as agremiações contaram com o tempo de 40 minutos para a sua apre-
sentação. Percebe-se em conversas com os brincantes na realização dessa pesquisa,
a rivalidade se acendeu com esse evento, mesmo que não fosse uma disputa social,
a velha brincadeira sobre quem é o melhor e os pontos fortes de cada agremiação.
Com isso, ressalta uma perspectiva de um recomeço pós-pandemia, com novas
transformações e saberes na realização de um festival, tanto em bastidores, quanto
na arena propriamente dita, onde o sentimento e o pensamento se transformam
no que seria uma “ópera popular”.

105
Considerações finais

Os resultados obtidos, vinculam uma diversidade temática relacionada desde


aos contextos históricos, relacionados à formação do estado de Roraima e também,
as questões da cosmologia e cosmogonia dos povos indígenas. Dentro desse pro-
cesso de criação, dramatização e planejamento das temáticas, seus propósitos estão
interligados ao conhecimento de uma forma acessível acerca da cultura amazônica,
a partir das cênicas e letras.
Nesse sentido, toda a contextualização se vincula às mensagens de preservação
e conservação do meio ambiente, além da necessidade da valorização e resistência
cultural, mesmo diante dos cenários de midiatização e do espetáculo ser considerado
como uma mercadoria. Com esse sentido de mercantilização, as trocas culturais a
partir das temáticas e dos diferentes agentes das manifestações culturais vigentes
na região são de suma temática a continuidade e melhorias do festival ao longo
dos anos, vinculados aos fluxos e fixos de artistas e também, de pensamentos de
integração e formação de um mosaico cultural próprio no estado de Roraima e
na Amazônia.
É importante destacar o Festival Folclórico de Caracaraí não somente em
um contexto midiático e mercantilista, mas relacioná-lo com toda a construção
identitária do estado de Roraima. Desde o mosaico ao Movimento Roraimeira, o
Festival se consolida como um espetáculo de memórias e de mensagens em relação
a Amazônia, como toda a essência das demais manifestações, mas colocando como
principal premissa, a valorização da cultura de Roraima em sua totalidade.
Com isso, é perceptível que os objetivos iniciais ao longo da criação do evento
se desvencilham a partir de interesses de marketing, mas a contribuição educacional
e social no âmbito do município é crescente, atrelados a uma necessidade de uma
política pública permanente de incentivos a manifestação cultural, sem depender
de conchavos políticos, mas atrelados a uma necessidade de consolidação contí-
nua e de amplitude relacionada aos novos conceitos econômicos e geográficos de
interação e integração.
Agradecimentos aos membros da diretoria da Associação Folclórica Cobra
Mariana, na figura da Sra. Eidênia Soares, aos fundadores do festival, o Prof. Do-
mingos “Guty” Rapozo pelas informações da agremiação Gavião Caracará e sobre o
Festival, ao compositor Vadilson Gonçalves pela disponibilidade do acervo de fotos

106
e músicas do festival. Além disso, destacar o apoio incondicional dos brincantes
Sérgio Lima e Orleilson Lopes durante a realização dessa pesquisa.

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109
MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AMAZÔNICAS
– DA FORMAÇÃO À MIDIATIZAÇÃO DO SAIRÉ

Lúcio Dias das Neves31


Nair Santos Lima32
Rodrigo de Araújo Ribeiro33

Introdução

As manifestações culturais da/na Amazônia são descritas inicialmente nos re-


gistros históricos sobre as incursões europeias do início do século XVII. O acesso
dos navegadores neste período ocorria pela Capitania da Costa do Cabo Norte,
região do atual estado do Amapá. Apesar do crescente interesse entre holandeses
e ingleses, coube a Portugal, por meio do Tratado de Utrecht (1713), o domínio
da área tornando, sob esse aspecto, essa região pacificada fixando os limites do
Amapá e suas fronteiras entre o Brasil e a Guiana.
Antes da chegada dos navegadores, essa parte da Amazônia era habitada por
diversos grupos indígenas, que se agrupavam em três grandes troncos: tupi-guarani,
aruaque e caribe, consequentemente, muitas e variadas línguas34 eram faladas. A
teoria mais aceita para a existência dessa população é a de que grupos nômades de
origem asiática35 atravessaram a floresta por volta de 15.000 anos atrás, a qual
embasa os estudos que vêm sendo desenvolvidos sobre a região.
31 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, Universidade
Federal do Pará (PPGCom/UFPA), e-mail: luciodias10@gmail.com
32 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, Universidade
Federal do Pará (PPGCom/UFPA), e-mail: nslima1405@gmail.com.
33 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, Universidade
Federal do Pará (PPGCom/UFPA), e-mail: rodrigoaraujo_1989@hotmail.com.
34 Segundo IBGE, 274 línguas indígenas são faladas no Brasil. (Censo 2010). Disponível em: < http://
noticias.terra.com.br/brasil/segundo-ibge-274-linguas-indigenas-sao-faladas-no-brasil,24cfdc840f0da310Vgn-
CLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em 26 out. 2022.
35 Segundo Souza (2001) a teoria mais aceita é a de que o homem surgiu primeiro na Ásia, (...) o con-
tinente americano já se encontrava em sua forma atual quando a humanidade apareceu possibilitando a travessia

110
Dos vários estudos sobre a região, as pesquisas de Gondim (1994),
sugerem que “A Amazônia não foi descoberta, sequer foi construída; na
realidade, a invenção da Amazônia se dá a partir da construção da Índia,
(...) pelo relato dos peregrinos, missionários, viajantes e comerciantes
(GONDIM, 1994, p. 09). Essas narrativas construídas sobre a Amazônia ain-
da repercutem, em tempos atuais dentro e fora da região e prevalece pela falta de
investimento e dos parcos recursos destinados às pesquisas sobre o tema, além de
carecerem de um saber que permita conhecer as causas do pensamento arraigado
nessas populações da Amazônia desde o início do século XVII.

Do colonizador ao colonizado – fantasia e realidade

Esse pensamento que impôs um novo padrão de controle sobre as relações


sociais e que persiste ao longo do tempo, configura-se como uma estrutura dinâ-
mica denominado de Colonialidade36. Consolidado como empreendimento de
poder, a colonialidade ocorre no confronto dessas duas matrizes de pensa-
mento, a do colonizador e a do colonizado, a serviço da própria dominação
e exploração. Sobre esse esboço histórico, concebe-se que,

A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de


um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por
isso, como a primeira id-entidade da modernidade. (...) Dois
processos históricos convergiram e se associaram na produção
do referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois
eixos fundamentais do novo padrão de poder. Por um lado, a
codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados
na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura
biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade
em relação a outros. [...] Por outro lado, a articulação de todas
as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e
de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial
(QUIJANO, 2000, p. 37).

do Estreito de Behring, há 24.000 anos.


36 Conceito introduzido pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, no final dos anos 1980 e no início dos anos 1990.

111
Sobre a noção de modernidade37, Mignolo (2017) declara que a partir da lei-
tura de Cosmopolis: the hidden agenda of modernity (Stephen Tulmin, 1990), uma
questão levantada por Tulmin (1990) passou a incomodá-lo: o que seria a pauta
oculta da modernidade? Mais tarde ele percebeu e declara: “Para mim, a pauta
oculta (e o lado mais escuro) da modernidade era a colonialidade”. A partir da
construção de dois cenários – um do século XVI, e o outro do final do século XX
e primeira década do século XXI – Mignolo (2017) se pergunta: “O que aconteceu
entre esses dois cenários”?
Nos estudos da historiadora Karen Armstrong há dois pontos cruciais: a
economia e a epistemologia. É o que apresenta Mignolo (2017):

No âmbito da economia, a autora aponta: “a nova sociedade


da Europa e suas colônias americanas tinham uma base eco-
nômica diferente”, que consistia em reinvestir o superávit para
aumentar a produção. A primeira transformação, segundo Ar-
mstrong foi consequentemente a mudança radical no domínio
da economia, o que permitia que o Ocidente ‘reproduzisse
os seus recursos indefinidamente’ e geralmente associada ao
colonialismo (2002, p. 142). A segunda transformação, epis-
temológica, e geralmente associada ao Renascimento europeu.
O epistemológico aqui será ampliado para abranger tanto a
ciência enquanto conhecimento como a arte enquanto sig-
nificado (ARMSTRONG, 2002, p. 142 apud MIGNOLO,
2017, p. 4).

Metodologia

Nesse olhar macro sobre a Amazônia, buscou-se compreender a região na


perspectiva de uma dualidade, ou seja, da relação de diferença entre o colonizado
e o colonizador, este como ser superior e concessor de advertências e lições, e

37 Segundo Mignolo (2017), ‘modernidade’ “é uma narrativa complexa, cujo ponto de origem foi a Euro-
pa, uma narrativa que constrói a civilização ocidental ao celebrar as suas conquistas enquanto esconde, ao mesmo
tempo, o seu lado mais escuro, a ‘colonialidade’”. Em outras palavras, ‘colonialidade é constitutiva da modernidade
– não há modernidade sem colonialidade.

112
aquele - o Outro -, um ser reduzido à ignorância, tanto de sua alma, como de sua
individualidade.
Essa condição, proveniente da rejeição histórica sofrida ao longo desse processo
pelo ameríndio, cuja presença constituía um obstáculo à expansão colonial, além
do desprezo e da desvalorização - armas destinadas a favorecer sua submissão -,
cuja diferença fundamental induziu a uma lógica de eliminação (Thierion, 2014).
De modo geral, desses ambientes inóspitos se produziu o que Du Bois denomina
de “dupla consciência” 38. A ideia de identidade dividida, entre a consciência do
colonizador e do colonizado, possibilitou o duplo processo de ocidentalização, o
pensamento mestiço, racionalidade subversiva que desafia as concepções daquilo
que Anibal Quijano cunhou como a colonialidade do poder.
Esse sistema forjou a organização colonial do mundo, culturalmente, uma
vez que não ocorreu apenas no âmbito geográfico e, com isso, possibilitou certa
delimitação hierárquica dos povos, presente no chamado “etnicismo” (Agier, 1991).
O termo etnicidade traz em sua concepção a ideia de classificação (hierarquia) da
espécie humana, por critérios etnocêntricos e evolucionistas europeus, como a
branquitude, por exemplo.
Esses parâmetros servem de referência humana e ocupam o ápice da cadeia
hierárquica, permitem destacar o “eu” dos “outros”, e implica a necessidade de se
identificar para excluir o que não faz parte do “nós”. Porém, na contramão dessa
regra urge a necessidade de ações que subvertam a dupla consciência por meio da
criação de uma nova lógica para as questões sociais de agora.
Nesse contexto desponta uma proposta que vem alcançando relevância - a
mestiçagem crítica -, que atua como força e espaço alternativo à realidade discricio-
nária própria à colonialidade do poder, isto por que a condição dupla da existência
colonial só é superada quando se concretiza a descolonização.
De maneira geral, a “dupla consciência” é um lugar de discussão sobre mes-
tiçagem, processo que é histórico, político, de difícil apreensão e continuamente
invizibilizado. Para Du Bois, a dupla consciência é o resultado de deslocamento e
reterritorialização dessas populações e das experiências, cujo movimento determina
novamente o sentimento de pertença (Gilroy, 2001).

38 Termo que ficou conhecido a partir da obra The Souls of Black Folk (1903) na qual o autor, sociólo-
go, analisava o indivíduo afro-americano vivendo na condição de sua identidade fragmentária: de um lado ele
convivia na condição de colonizado e hierárquico, e de outro na esperança de alcançar e viver numa sociedade
igualitária, apesar de suas diferenças.

113
A ideia de movimento insere-se à de cultura enquanto mestiçagem heterogênea,
e é desse lugar de cultura, das manifestações populares da região que se buscou
apreender essa dinâmica, porém, é recorrente os termos que designam as populações
da Amazônia, quer sejam a elas referidos como caboclos, índios, amazônidas ou
povos da floresta, entretanto, a noção de povo é questionada, visto que estão pre-
sentes em sua constituição as “diferentes camadas históricas”, como explica Dussel:

O povo, como o conjunto orgânico das classes, etnias e outros


grupos oprimidos, como “bloco social”, é o sujeito histórico
da cultura mais autêntica, a cultura popular latino-americana.
Ela vem de longe, da época em que os primeiros asiáticos atra-
vessaram o estreito de Bering, e continuará adiante. Em todas
as mudanças, em todos os processos de libertação, esse povo se
expressa de alguma maneira, mas hoje, mais do que nunca no
passado, esse povo cresce e se afirma (DUSSEL, 1997, p. 190).

Ao ampliar a perspectiva de Dussel (1997), percebem-se os mesmos ressentimentos


constituintes da colonialidade do poder impregnados na cultura regional amazônica,
uma parte de sua história na tradição, outra na modernidade, as trensões do cotidiano
pela falta do sentimento de pertença deixa à mercê muitas populações. O que propõe
o autor para a América Latina é que haja uma “subversão na dupla consciência latino-
-americana”, a fim de que a noção de povo surja de uma nova concepção.
Segundo Dussel (1997), sob o olhar da colonialidade do poder, o termo “povo”
indica ausência de saberes e de densidade histórica, visto que é constituído por seres
inferiorizados em um contexto hierárquico racial, entretanto, o autor esclarece que
a cultura popular possui esse conjunto de saberes compostos por diversas memórias
históricas que se organizam de múltiplas formas.
Esse ambiente é o lugar ocupado pelo pobre, o invisibilizado, aquele que
carregando as agruras da visa potencializa a transformação da sociedade. É desse
lugar do povo, no sentido dusseliano, que se propõe a participação popular nas
manifestações da cultura amazônica, e que os sujeitos cônscios de suas histórias
se reconheçam nas suas diversas esferas históricas inscritas durante os dolorosos
períodos de violência e submissão. Esse movimento da cultura permite volver os
pensamentos pendurados no passado e dar visibilidade aos que a razão eurocêntrica
invisibilizou, ou seja, os saberes (alguns considerados tabus) não mais praticados.

114
O que se pretende, portanto, é validar o conjunto de saberes e dar garantias a
esse processo de ressignificação por meio dos movimentos da cultura local. Desse
modo, suscitar um diálogo horizontal entre as diversas culturas, uma comunicação
que reuna ampla representatividade regional, a fim de fortalecer as Epistemologias
do Sul39, ou seja, uma gama de saberes concebidos como inferiores sob o ponto de
vista da colonialidade do poder.
Nesse sentido, o termo colonialismo de poder trata, também, de privatização
dos lugares, visto que se varre o conhecimento quando se varre o lugar. Segundo
Santos (2010) há muitos “suis” epistemológicos, com isso existe a necessidade de
se “quebrar hierarquias” como forma de descolonizar o saber, quer seja por meio
da oralização ou mesmo do conhecimento escrito e do diálogo. “(...), a história
do homem na Amazônia é marcada por silêncios e ausências que acentuam a sua
relativa invisibilidade e velam os traços configurativos da sua identidade” (FRAXE;
WITKOSKI; MIGUEZ, 2009, p. 30).
Acrescenta Santos (2010) que existe uma linha abissal que separa as formas
de sociabilidades, ou ainda, exclui o outro. Essa linha se instituiu na consolidação
do território pelos portugueses, daí, deu-se “o início do processo de caboquização
dos índios, quando esses nativos foram retirados das mais diferentes culturas e
modos de produção e reunidos em vilas e aldeias espalhadas de maneira estratégica”
(SOUZA, 2001, p. 53).
Desse modo, a cultura indígena fragmentou-se brotando suas manifestações em
lugares distantes de suas origens primeiras. Entretanto, na contramão dessa radica-
lidade, faz-se necessário pensar uma ecologia de saberes como forma de valorizar
a experiência de grupos sociais invisibilizados pelas formas, as mais diversas, que
ainda hoje permeiam a vida social, de algum modo. Assim, em meio aos “silêncios
e ausências” desses povos surgem motivos – os mais variados – para as festas indí-
genas que ocorrem ao longo do território amazônico, como Sairé, por exemplo.

A localização da festa - alter do chão

Alter do Chão é uma antiga vila de pescadores localizada no oeste do Pará,


circunscrita no município de Santarém, como distrito administrativo. Até os anos
1970, a comunidade vivia da caça e pesca, e a cultura da mandioca era apenas de

39 Termo cunhado pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos (2009) em contraponto à expressão
epistemologias do norte ou saber eurocêntrico.

115
subsistência, entretanto, com a abertura da estrada Santarém-Alter do Chão trouxe
um novo ciclo: o turismo. Do centro de Santarém até a vila o itinerário se faz pela
rodovia (PA-457), sendo este o acesso mais rápido e mais utilizado. Há linha de
ônibus que atende aos moradores e visitantes/banhistas. Lanchas e barcos também
fazem o percurso pelo rio Tapajós, geralmente em passeios turísticos, privilegiando
a paisagem ribeirinha que culmina com a geografia do lugar.

Dos registros e da grafia

A história do Sairé40 se confunde com a própria colonização da Amazônia e há


uma vasta literatura sobre o evento. Desde o primeiro registro atribuído a D. João
de São José de Queirós da Silveira (1762), quarto bispo do Pará, cuja descrição se
refere a uma “dança de índias”, composta de reza e dança, o Padre João Daniel, na
obra Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas (2004), também descreve
sobre essa festa indígena.
Ainda segundo o autor, os índios eram “muito amigos de festas, danças e bai-
les” e nesses eventos eles se entregavam a memoráveis “beberronias” (DANIEL,
2004, p. 31). A música servia tanto para o trabalho quanto para a recreação, festas
e folguedos. Havia cânticos para ocasiões especiais: guerreiros, nupciais, fúnebres
e até mesmo báquico e erótico, assim como cantos e danças específicos para cada
atividade.
Ainda, com relação à música, não se pode negar que os índios se aproximavam
dos conventos seduzidos “pelo tom alegre dos sinos, dos cânticos, das danças e da
própria cerimônia da missa, que seu espírito bárbaro nunca penetrou religiosa-
mente, senão como um ato comum de movimento social” (MORAES, 1937, p.
153 apud DANIEL, 2004).
Quanto a essa descrição, conclui-se que “Em consequência, muito foram os
frutos materiais que os missionários lograram colher, através da música, e o povo
se identificou (...) criando um folclore que, em grande parte, é produto das festas
de igrejas” (DANIEL, 2004, p. 29)
A oralidade foi a única maneira de dar continuidade a essa história, pois pos-
sibilitou e assegurou a permanência desse rito, com isso, por meio das narrativas
ou relatos orais foi possível transmitir por várias gerações a história do Sairé e sua
40 A opção da grafia com “S”, fundamenta-se na Gramática Normativa da Língua Portuguesa.

116
trajetória. Supõe-se que, “em função dos parcos registros sobre o Sairé, à época,
não há certa unanimidade quanto à definição do termo, sua origem e composição”
(LIMA, N. S e FREITAS, I. C., 2013).
Com base nos registros, dos mais remotos aos atuais sobre a origem do ter-
mo, buscou-se conhecer a grafia da palavra Sairé. Nunes Pereira reuniu histórias
(inventadas e contadas) dos índios do Amazonas e em “O Sahiré e o Marabaixo”
registrou as observações e relatos sobre esse fenômeno indígena.
Francisco Gomes de Amorim, o termo Sahiré aparece pela primeira vez, em
1856, na literatura dramática de Portugal, no contexto da coletividade amazônica.
Além dos autores citados, Henry Bates e Barbosa Rodrigues não conseguiram
esclarecer a etimologia. Concernente ao assunto, Barbosa Rodrigues esclarece:
“por mais que tenha procurado a origem ou etimologia da palavra çairé ainda não
pude descobrir”. “Não será o vocábulo çairé uma corruptela de soirrée? Pergunta
ele.” (PEREIRA, 1989, p.18).
Outro registro que foi encontrado na obra Poranduba Amazonense, assim
consta: “A palavra çairé deriva-se de çai e iré (salve! Tu o dizes) ou saudação e turyua,
que significa alegria.” (1887, p. 279). Mais tarde, no “Vocábulário Indígena”, à
página 20, justifica:

Tendo os portugueses substituído, não por antithese, mas por


não poderem dar a aspiração que o índio e os castelhanos dão,
o h para ç, que lhes pareceu soar melhor e podiam pronunciar,
perpetuou-se essa ortographia, substituindo até o s antes de a e
o o, que pelo uso consagrado e uniforme foi adoptado também
antes de todas as vogais para não ter de dobrar o s quando
entre vogais. A adopção do ç em vez do s, a não ser em casos
de aspiração, tem sua razão porque nunca o índio dá o sibiliar
do s; mas no que não tiveram razão, e serviu para corromper a
língua, foi fazerem desaparecer a aspiração, e assim em vez de
haku dizem çaku, çarib, por hariz, ceçá por heçá, cée por heê.
(RODRIGUES 1890 apud PEREIRA, 1989, p. 18).

Quanto ao termo, buscou-se conhecer essa manifestação desde a concepção


do termo (grafado de duas maneiras), até a divergência estabelecida na gestão de
dois administradores municipais de Santarém, nos últimos tempos, alterando a
publicidade do evento naqueles períodos. Em 1997, o gestor municipal se dispôs

117
a investir no festival Sairé e a mudança começou pela grafia do termo, trocando-a
de Sairé para Çairé41.
A ideia satisfez os remanescentes boraris que, de certo modo, privilegiou a iden-
tidade indígena amazônica daquele povo, como uma “marca” cultural da própria
vila; entretanto, em 2005, com a posse do novo gestor, o termo volta a ser grafado
com “S”. Segundo CUNHA (1978), o vocábulo Sairé tem origem no tupi *sai´re e
significa dança indígena. O (*) indica forma hipotética e o (´), que a sílaba seguinte
é tônica. Consoante norma gramatical não se inicia com Ç nenhuma palavra da
língua portuguesa, bem como, sob os princípios da ortografia vigentes no Brasil e
em Portugal, a palavra Çairé passou, então, a ser grafada com “S”, em referência ao
que preceitua a gramática normativa. O termo tem origem em ÇAIRÊ, de “ÇAI”
(salve) + “ERÉ” (tu o dizes ou saudação) e turyua, que significa alegria, ou, ainda,
ÇA-IERÊ que significa “corda em giro”, espécie de dança praticada apenas pelos
homens da tribo. (PEREIRA, 1989, p.32).
A partir dos escudos dos portugueses, em uma espécie de imitação, os índios
criaram o seu próprio “ÇAIRÉ”, objeto que é conduzido nas procissões e que se
assemelha à proa de uma embarcação, provavelmente, as portuguesas. Nele, as cruzes
representam o mistério da Santíssima Trindade e atribui caráter religioso ao símbolo.
De outro modo, Pereira (1989), concluiu que o Sairé e o Marabaixo, perdu-
raram até os dias atuais, embora folclorizados, porque três fontes (de emoção e de
religiosidade) contribuíram para isso: do conquistador português, do escravo negro
e do índio (animista e curioso). A mudança do “S” para “Ç”, em 1997, valorizou
o termo em Tupi, justificado por Barbosa Rodrigues em Poranduba Amazonense,
edição de 1889, pagina 279 (PEREIRA, 1989, p.18).
Dessa forma, as duas formas estão corretas, a depender do uso, se com “Ç” (na
língua tupi) deve ser, portanto, sublinhada, aspeada, grifada ou posta em negrito, se
com “S” está respaldado pela forma em língua portuguesa ou mesmo em nheengatu.

A festa, o festival, o símbolo do Sairé

A festa do Sairé não difere das demais festas espontâneas, visto que, com o passar
do tempo, “[...] podem cair no gosto popular e serem folclorizadas integralmente

41 De acordo com Câmara Cascudo (1889) existem dois sairés, um com “S” e outro com “Ç”. O Sairé
com “S” é ciranda; o com “Ç” é manifestação religiosa (Helcio Amaral, memorialista paraense).

118
ou - como no caso de algumas festas religiosas - manter dois momentos distintos,
ditos sagrado e profano [...] (BENJAMIN, 2001, p.19).
Composta por elementos religiosos e profanos, o Sairé é uma manifestação
cultural que ocorre há cerca de 350 anos no oeste paraense, resultado da misci-
genação cultural entre índios e colonizadores europeus. Entretanto, a fim de que
houvesse aceitação por parte do indígena ou um modo de comunicação entre ambos,
estabeleceu-se como estratégia o acesso aos rituais festivos, com batuques, danças,
comidas e bebidas, pois esses rituais eram comuns em qualquer civilização indígena.
Com essa aproximação os jesuítas idealizaram um instrumento que marcaria,
a priori, as festas indígenas: um semicírculo de cipó enfeitado de fitas a que os
índios nomearam de Sairé. A imagem abaixo retrata o momento que antecede à
procissão do Sairé.
Fotografia 1: Símbolo do Sairé

Fonte: TV Brasil.

Como manifestação popular restrita à Alter do Chão (PA), o festival Sairé atrai,
a cada ano, um número expressivo de pessoas, turistas, em especial, à vila balneária.
Muitos são os motivos: descanso, lazer, interesses empresariais, imobiliários etc.
Como consequência da visibilidade crescente. À nível regional, nacional e inter-
nacional, no final da década de 1990. Atualmente, o festival Sairé está associado
ao turismo ou à beleza natural do lugar.
Há uma intensa movimentação nos dias que antecedem ao evento. Empresários,
vendedores, além da população da vila, são atraídos pela festa. Mas, o que é o Sairé?
Pode-se pensar o Sairé como festa primitiva de agradecimento pela fartura entre
os integrantes da tribo, como festa dos descendentes boraris em homenagem a um

119
santo qualquer, como momento de alegria, da recepção que se fazia ao estrangeiro
europeu e, mais recentemente, relacionado à lenda do boto.
No final da década de 1990, com base no turismo, a comissão organizadora do
festival Sairé acrescentou à programação o “festival dos botos”, com características
de outro grande evento amazônico, o Boi-Bumbá, de Parintins. O festival dos botos
se estabeleceu com base na lenda do boto, estruturado em duas agremiações da Vila,
a do Boto Tucuxi e do Boto Cor de Rosa42. O auge da festa (profano) é marcado
pela disputa das agremiações dos botos, conforme figura abaixo:

Fotografia 2: Botos cor-de-rosa e Tucuxi

Fonte: EBC- TV Brasil.

Dutra (2010), em artigo intitulado “Sairé: lembrança do Grande Carnaval


Amazônico” corrobora com a descrição histórica abordada sobre o tema e reatualiza
o evento a partir da inserção da Lenda do Boto. Segundo o autor, os imensos festi-
vais que se realizavam no passado e duravam uma lua (um mês) envolvendo toda
a comunidade indígena configuravam-se como um grande Carnaval Amazônico.
Os períodos eram diferenciados entre as aldeias, ao longo do Rio Amazonas e seus
afluentes, e todos os comunitários participavam.

[...] hoje guarda cada vez menos elementos do passado, ago-


ra já inclusive mixado a uma briga de dois botos, coisa que
nada tem a ver com a originalidade do Sairé. Não faz mal
que inventem brigas de boto, de bois e do que mais seja. A
vida cultural é dinâmica, como a sociedade. Mas não se pode
42 Referem-se às espécies de mamíferos aquáticos da bacia amazônica, cujos nomes aludem à coloração,
em especial a da região ventral.

120
misturar impunemente as coisas, sobretudo quando se trata de
aspectos de uma manifestação cultural tão antiga. (DUTRA,
2010, p.1).

Sobre as transformações ocorridas no Sairé, nos últimos anos, Dutra entende


que a sociedade humana evolui, muda e que, portanto, “não há manifestação cul-
tural onde não há gente”. Questiona o fato do mercado e da grande mídia ter-se
apropriado desse evento secundarizando-o, em detrimento de espetáculos que não
pertencem a essa manifestação tão antiga e, ao mesmo tempo, atual. Acrescenta,
ainda que, “[...] a disputa dos botos é mera clonagem da disputa dos bois de Pa-
rintins, cujos introdutores foram buscar influências culturais maranhenses, onde
o boi-bumbá tem o seu templo por excelência”.
No artigo “Sairé, botos e bandas: a coexistência possível”, Dutra defende a
ideia de separar o que comumente se denomina de sagrado e profano. (DUTRA,
2010). Os moradores mais antigos do lugar costumam dizer que a festa do Sairé,
enquanto ritual religioso foi extinta na década de 1920 e Dutra complementa: mas
revivida como folclore na vila de Alter do Chão, seguramente um dos locais onde
a manifestação foi mais pujante.

Considerações finais

As festas populares indígenas ocorrem na região amazônica muito antes da


chegada do colonizador e, na atualidade ainda se constituem das memórias de
seus primeiros habitantes. Embora ressignificadas, configuram-se como forma de
resistência e lutas perpassada por todo o processo histórico de violência e opressão,
marcas do período colonial.
Nesse cenário e diante das pautas amazônicas, sugere-se a preservação dos espa-
ços de saberes tradicionais e o acesso dessas - e à essas – culturas, como também, da
possibilidade de discussão e validação desses conhecimentos. A proposta é de um
olhar descolonial sobre as práticas culturais que envolvem as festas, na atualidade.
Ressalta-se, porém, que as festas se evidenciam por seus múltiplos sentidos, por
meio de linguagem simbólica e de modo particular a depender do espaço geográfico
e/ou regional. Portanto, na Amazônia há uma diversidade de festas, quer sejam
definidas como “festivais”, “espetáculos”, e/ou “festas indígenas”. Com efeito, as

121
festas indígenas, apesar de trazerem lembranças de um passado, são realizadas por
um conjunto de emoções coletivas e expressam alegria, satisfação e modos de viver
intrínsecos das vinculações sociais na atualidade.

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123
A ESCOLA DE SAMBA BOLE-BOLE EM BELÉM/PA:
HISTÓRIA, COMUNIDADE E IDENTIDADE

Margarida do Espírito Santo Cunha Gordo43


Herivelto Martins e Silva44

Introdução

Este artigo tem como objetivo, fazer um sobrevoo sobre a história do carna-
val de escola de samba de Belém do Pará a partir da Escola de Samba Bole-Bole,
ressaltando a importância desta escola de samba para a economia e fortalecimento
identitário de sua comunidade com o bairro a que pertence. Teve como base para sua
construção a tese de doutorado de Gordo (2015).
A vivência no mundo carnavalesco na cidade de Belém há alguns anos, a carência
de pesquisas e de material sobre este tema e a necessidade de trazer à luz as relações
estabelecidas em uma escola de samba com o bairro a que pertence, foram o fio con-
dutor para a realização deste estudo sobre o carnaval nessa cidade, dando ênfase ao
movimento pelo qual passa uma escola de samba até que esteja pronta para o grande
dia, que neste caso é o desfile oficial de carnaval promovido pela Fundação Cultural
do Município de Belém (FUMBEL).
A Associação Carnavalesca Bole-Bole enraizada no populoso bairro do Guamá há
38 anos (fundada em 02.02.1984), mais especificamente na passagem Pedreirinha, será
o objeto deste estudo. Apesar da pouca idade no que concerne às Escolas de Samba mais
antigas e tradicionais de Belém, a história da Bole-Bole se confundecom a história atual
43 Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Federal do Oeste do
Pará (UFOPA). Doutora em Educação pela UNICAMP. Professora da Escola de Aplicação da UFPA. Membro dos
Grupos de Pesquisa: LABORARTE/UNICAMP, GPRAPE/UFPA. E-mail: margarida.gordo@ifpa.edu.br
44 Doutorando em Comunicação, Cultura e Amazônia do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
UFPA. Mestre em Comunicação, linguagem e cultura pela UNAMA. Professor do IFPA. É pesquisador de carnaval e
cultura popular, músico, compositor e escritor. E-mail: heriveltosilva01@yahoo.com.br

124
do carnaval paraense e já apresenta uma forte identidade e relação de pertencimento
com sua comunidade, principalmente por possuir uma sede que serve de retaguarda,
proporcionar atividades de emprego e renda e, por seu envolvimento com a cultura
regional e popular paraense (DIAS JÚNIOR, 2009; FERREIRA, 2012).
A Bole-Bole, mesmo sem essa pretensão, substituiu a escola Arco-Íris em seu bairro.
Iniciou desfilando em 1984 como bloco de carnaval, conquistandopor mérito mudar
de categoria para bloco de empolgação, ascendendo para bloco do grupo B e depois
A. Em 1995 ascendeu para escola de samba do grupo B e em 1997 para o grupo
especial. É a única escola de samba de Belém que passou por todas as categorias, desde
bloco. Em seu histórico como escola de samba acumula quatro títulos de campeã
(GORDO, 2015), inclusive o de Campeã do Carnaval dos 400 anos de Belém em
2016 e vários títulos de vice-campeã.
Quis o destino que a Bole-Bole fosse estabelecida na passagem Pedreirinhano bairro
do Guamá. Esta pequena rua tem pouco mais de 500 metros de extensão e conta com
uma grande diversidade de manifestações de cultura popular: boi- bumbá, bloco
carnavalesco, terreiro centenário de umbanda, festa tradicional de São João, grupo de
carimbó e outras. Por conta disso, essa escola de samba conta com a experiência desse
povo em reunir-se para os festejos que acontecem o ano inteiro nessa rua e nesse
bairro (FERREIRA, 2012).
O texto foi estruturado com dois tópicos, Carnaval e escola de samba: que traça
um breve histórico do carnaval no Brasil, fazendo um contraponto entre o carnaval de
escola de samba do Rio de Janeiro com o de Belém do Pará. Afinal no que diz respeito
à escola de samba, o Rio de Janeiro serve como inspiração e modelo para o país inteiro,
apesar de no Brasil existirem muitos carnavais. Destaca também a cadeia produtiva que
se desenvolve em torno do carnaval, bem como o mercado carnavalesco em Belém,
trazendo demonstrativos financeiros da escola de samba Bole-Bole no ano de 2014.
Escola de samba: comunidade e identidade é o segundo tópico, que traz à luz o movi-
mento da Escola de Samba Bole-Bole, abordando a importância de suacomunidade
e a identidade que se estabelece nas vivências cotidianas, que são reforçadas pelos
enredos e sambas-enredo cantados em cada carnaval.

125
Carnaval e escola de samba

Segundo Oliveira (2006), o carnaval no Pará, mais especificamente na capital


Belém, teve seu início com o entrudo, manifestação festiva trazida pelos colonizadores
portugueses para o Brasil no final do século XVII (1695), se estendendo até meados
do século XIX (1844), ano marcado pela realização do primeiro baile de máscaras
no Teatro Providência e a chegada de outras práticas carnavalescas no estado, como Zé
Pereira, corso, clubes carnavalescos, carnaval de rua com sujos e mascarados, cordões
etc., fase chamada de pós-entrudo. Aliás, este autor classifica o carnaval paraense em
três fases: 1. Entrudo (1695-1844); 2. Pós-Entrudo (1844-1934) e 3. Carnaval da
Era do Samba (a partir de 1934),subdividida pelo autor em duas fases: 1. Carnaval das
batalhas de confete que vaiaté 1957 e 2. Carnaval oficial de avenida, a partir de 1957.
Essas demarcações em fases não significam que houve uma nítida fronteiraentre essas
diversas manifestações carnavalescas, ou seja, não foi extinta uma fase para dar início a
outra, segundo Gonçalves (2006) ao retratar esse movimento no Rio de Janeiro, essas
manifestações atravessaram décadas, se inter-relacionando umas com as outras, até a
total extinção de algumas dessas práticas.
Gonçalves (2006) apresenta uma classificação para essas manifestações carnavalescas
que aconteciam no Rio de Janeiro no início do século XX: 1. Cordões – caracte-
rizados por uma manifestação sem nenhuma organização, livre e muito barulhenta,
constituída pela população pobre; 2. Grandes sociedades – eram constituídas pela
elite que se reunia nas associações e clubes, tinha comocaracterística a organização e a
pouca participação popular; 3. Ranchos – eramformados por grupos mais populares,
em relação às grandes sociedades, sendo mais acessíveis, visto que

posicionaram-se, como intermediários, entre os grupos “de


elite” e os grupos “destituídos de educação e civilidade”, produ-
zindo um carnavalmediado por uma rede de relações sociais com
lugar para os cronistas, os comerciantes, a polícia, os músicos, os
artesãos, as tias baianas, além das camadas populares dos bairros
e subúrbios (GONÇALVES, 2006, p. 74).

E mais
Os ranchos carnavalescos foram os primeiros grupos a se
apresentar no carnaval com músicas próprias. Foram eles os

126
primeiros a incluir o enredo, o cortejo linear e a formalizar
uma estrutura de ensaios e desfiles que serviria, segundo alguns
autores, de modelo para as escolas de samba (GONÇALVES,
2006, p. 76).

A ênfase dada aos ranchos deve-se a dois motivos, o primeiro é porquea forma
de organização e de elementos que adquiriram, deu origem à escola de samba, foco
deste estudo e, o segundo é pela forte influência que exerceram na origem de uma das
mais antigas escolas de samba do Brasil e a primeira do estado do Pará, em um bairro
da periferia de Belém, no Jurunas, o Rancho Não Posso Me Amofiná, que deu início ao
movimento carnavalesco de escola de samba – apesarde muito incipiente em seus pri-
meiros anos – evoluindo com o passar do tempo e adquirindo algumas características
próprias, mas mantendo suas raízes ligadas ao carnaval carioca.
O carnaval carioca, na forma de desfile de escola de samba, foi oficializadopela Pre-
feitura do Rio de Janeiro em 1935, devido à repercussão positiva dosanos anteriores,
em que eram promovidos pelos jornais. Tanto no Rio de Janeiro quanto em Belém,
os jornais e as emissoras de rádio foram os grandes mediadores da institucionalização
das escolas de samba e os promotores do carnaval de rua, das batalhas de confete, dos
concursos de samba, do concurso de passistas – umapeculiaridade do carnaval de Belém
(GALVÃO, 2009; OLIVEIRA, 2006).
A oficialização do desfile pela Prefeitura do Rio culminou em uma regulamen-
tação, que suscitou certa organização, porém, tomou formas que foram “sufocando e
desvirtuando a pureza da manifestação popular” (GALVÃO, 2009,
p. 43). Sendo que o cumprimento às regras impostas pela prefeitura resultaria
em ajuda financeira às escolas, do contrário deixaria as escolas sem esse auxílio. Assim,
nenhuma dessas agremiações poderia se dar ao luxo de contrariar tal regulamentação.
A institucionalização e a oficialização do carnaval vão de encontro ao entendimento
de alguns autores

os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez


que ocarnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo.
Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a
do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem
nenhuma fronteira espacial. Durante a realização da festa só se
pode viver de acordo com as suas leis, isto é,as leis da liberdade.
O carnaval possui um caráter universal, é um estado peculiar
do mundo: o seu renascimento e a sua renovação, dos quais

127
participa cada indivíduo. Essa é a própria essência do carna-
val, e os que participam dos festejos sentem-no intensamente
(BAKHTIN, 1987, p. 6).

Turner (apud DAWSEY, 2005, p. 22) revela que “os carnavais surgem como
momentos extraordinários, ou interrupções do cotidiano. No mundo docapitalismo
industrial, eles surgem como interrupções do trabalho. São como momentos de
“loucura” que se contrapõem ao cotidiano”. Da Matta (1981) concebe o carnaval
como uma festividade que estilhaça a realidade social, inventando uma ordem in-
vertida, sem a existência de um centro de gravidade.Turner (2005), Bakhtin (1987) e
Da Matta (1981) referem-se ao carnaval como uma quebra do cotidiano em busca de
liberdade, mesmo que momentânea, do indivíduo, da pessoa e do ser humano. Com
a institucionalização do carnaval e a implementação de regulamentos essa liberdade
passou a sofrer ameaças.
É importante ressaltar que a oficialização do carnaval no Brasil se deu em plena
ditadura varguista e, um dos itens do regulamento que precisava ser cumprido era
o tema nacionalista. Este não partiu diretamente do governo, mas sim da União das
Escolas de Samba que vislumbravam com isso a aceitação do governo, que usava
os enredos nacionalistas das escolas como uma forma de propaganda positiva
(GALVÃO, 2009).
É a partir da oficialização, que uma grande teia foi-se tecendo em prol do carnaval
carioca. O espetáculo, que hoje deslumbra, também teve seus momentosde dificuldade.
Porém, quando governo estadual e municipal, empresários e mídiaperceberam o filão
que seria investir no carnaval carioca, este deslanchou. Emtorno do carnaval carioca
há uma cadeia econômica muito bem constituída e articulada com os comandantes
das escolas de samba e destes com a comunidade,que também envolve a contravenção
do jogo do bicho.
No que concerne ao desfile de carnaval em Belém, segundo Oliveira (2006)
e Palheta e Rodrigues (2010) este viveu seu apogeu na década de 1980, sendo con-
siderado o terceiro maior e melhor carnaval do Brasil. Esse auge vivido pelo carnaval
paraense se deu, principalmente por conta da fundação em 1983da Escola de Sam-
ba Arco-Íris no bairro do Guamá, que apoiada pela mídia e por empresários locais,
reproduziu o Carnaval do Rio de Janeiro na Doca de SouzaFranco – antiga passarela
do samba de Belém – ao trazerem como carnavalescos, os famosos Joãosinho Trinta e
Laíla, comandantes artísticos da escola cariocaBeija-Flor de Nilópolis, para liderarem
a equipe de artistas que a referida Arco- Íris estava construindo.

128
Pelo que foi capturado em pesquisas nos jornais da época, como “O Estado
do Pará”, que tinha um caderno especial sobre carnaval e em Oliveira (2006), em
relação às escolas de samba, esse apogeu do carnaval foi muito pontual, pois a
maioria das escolas, como exemplo a Quem São Eles, do bairro do Umarizal, vivia
uma grande crise financeira, haja vista que seu presidente no ano de 1983 teve que
vender alguns bens pessoais para pagamento de dívidas da escola e, encontrou como
saída o arrendamento da sede por um empresário numa tentativa de que sua escola
desfilasse no carnaval de 1983. Isso não aconteceu, sua escola não foi para a avenida.
Fato este que se repetiu no Rancho Não Posso me Amofiná. A escola de samba
do bairro do Jurunas estava se reerguendo com a ajuda do empresário do jogo do bicho
e político João Bosco Moisés – responsável pela construção de sua atual sede – e
também sempre contou com o apoio da imprensa e da classe política e empresarial,
devido principalmente à apelação de ser a primeira escola de samba de Belém e uma
das mais antigas do Brasil, nesse ano de 1983 também não desfilou.
Já a escola de samba Embaixada do Império Pedreirense, também vivia uma
série de dificuldades financeiras e estruturais, mesmo assim desfilou no carnaval
de 1983 e acabou conquistando o terceiro lugar (OLIVEIRA, 2006). Outra escola
de samba que entrou nesse cenário no início da década de 1980 e que era apoiada
por um bicheiro, o sr. Waldir Fiock, foi a escola Acadêmicos da Pedreira, que teve
alguns momentos de glória até a saída desse seu principal apoiador na década de 2000,
ocasião em que esta foi enfraquecendo, passando a não mais desfilar, e atualmente,
vem tentando retornar ao cenário carnavalesco, enfrentando algumas resistências por
conta do regulamento em vigor. Naquele carnaval de 1983 a Acadêmicos da Pedreira
foi a vice- campeã (OLIVEIRA, 2006).
A escola Arco-Íris do bairro do Guamá, também apoiada por um bicheiro, ex-
-senador da República Mário Couto Filho, recém-fundada em 1982, estava com
todo fôlego, inclusive financeiro, levando para a avenida do samba da época, a Doca
de Souza Franco, os melhores sambistas de Belém e nomes consagrados do carnaval
carioca (OLIVEIRA, 2006). Nesse ano o samba-enredo Um grande Coração Chamado
Brasil de autoria do compositor Herivelto Martins e Silva “Vetinho”, um dos fundadores
da Arco-Íris, se tornou o samba mais tocado e o que mais vendeu exemplares em
toda a história do carnaval paraense com 54 mil cópias de discos (compacto vinil)
vendidas, segundo foi divulgado pela imprensa na época.
O luxo e a grandiosidade, que foram a grande marca da escola Arco-Íris, aque-
ceram o mercado carnavalesco em Belém na década de 1980. É interessante observar

129
que em 1983, ano de nascimento dessa escola e já se sagrando campeã, os sambistas
cariocas, devido às dificuldades financeiras que enfrentavam, pediamajuda aos governos
municipal e estadual para que pudessem colocar suas escolas na rua para desfilar.
Em 1984 foi inaugurado o sambódromo do Rio de Janeiro na Marquês de
Sapucaí, e foi criada a Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA) que
passou a administrar o espetáculo como um negócio. Assim, com a venda de in-
gressos, dos discos com os sambas-enredo das escolas, a negociação dos direitos
de transmissão do desfile, foi-se formatando, com o passar dos anos, um modelo de
carnaval autossustentável que teve como resultado um crescimento indescritível
(MARQUEIRO, 2011).
Belém não acompanhou esse crescimento do carnaval carioca. A partir da década
de 1990, com o fim da escola Arco-Íris, o carnaval paraense começou a perder força.
Poderia ter aproveitado a explosão que foi a Arco Íris e todo o contexto empresarial
e midiático que se desenvolveu na década de 1980, mas isso não aconteceu. Mesmo
com muitas dificuldades, as escolas de samba resistem com o apoio de sua comunidade
e conseguem se aprontar para o dia do desfile oficial.
Esse aprontar está intimamente relacionado com o capital de giro de uma escola de
samba, que tem como principal fonte o incentivo financeiro proveniente da Prefeitura e
do Governo do Estado, que além de ser insuficiente, quase sempre é disponibilizado às
vésperas do desfile e às vezes até após o desfile. As escolas arrecadam muito pouco em
suas quadras durante o ano. No que concerne ao carnaval, a indústria fonográfica
é inexistente. A mídia descrente. Poder público e privado quase ausentes. As escolas
longe de se tornarem uma unidade para lutarem com mais eficiência por melhorias
para o carnaval, buscam isoladamenteapoio financeiro para suprirem suas demandas.
A característica marcante dessa atividade cultural realizada em quase todo o país, é
que, além de ser uma grande festa, o carnaval abre muitas possibilidades de geração de
renda, pois, nesse período as agremiações contratam diversos serviços, como exemplo,
o dos sapateiros, que no caso de Belém, confeccionam entre mil a duas mil sapati-
lhas para cada agremiação (são oito só no grupo especial), além de escolas e blocos de
outras categorias. Outros serviços como das costureiras e bordadeiras na confecção de
fantasias, dos artesãos na preparação das alegorias, dos serralheiros na construção das
estruturas dessas alegorias, dos carpinteiros, dos pintores, entre outros profissionais
que criam uma cadeia produtiva que se entrelaça, pois

Na Economia do Carnaval, o produto carnavalesco por

130
excelência – o desfile das escolas de samba, principalmente as
do Grupo Especial – possui um grande potencial de deman-
da sobre a indústria fornecedora de materiais típicos para a
construção de carros alegóricos, tais como plástico, ferragens,
isopor, tecidos, tintas etc., e para a confecção de fantasias e
adereços, assim como é importante gerador de oportunidades de
empregos, contratando serviços de diferentes especialidades, tais
como modeladores, costureiras, marceneiros, coreógrafos, entre
outros, para sua produção (PRESTES FILHO et al., 2011,
p. 8-9).

A realidade do carnaval paraense não foge a essa demanda de materiais e de mão-


-de-obra especializados. As escolas de samba de Belém, ao se prepararem para o desfile,
necessitam alugar um barracão ou galpão para a construção de suas alegorias, pois
aqui, diferentemente do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Macapá, de Manaus, entre
outras capitais, não possui um sambódromo com uma estrutura de cidade do samba
(barracões de alegorias). Alguns serviços são imprescindíveis para que essa alegoria
fique pronta para o dia do desfile. A base do carro alegórico é o chassi de caminhão,
ônibus etc.
Os chassis passam por avaliação mecânica geral, revisão de pneus, para então
irem para as mãos do serralheiro, que dará forma física aos traços do carnavalesco.
Com a ferragem pronta, o serviço de marcenaria começa a ser executado para
assoalhar o carro. Algumas partes do carro são fechadas com madeira, outras com
papelão. Concomitante a isso as esculturas que comporão o cenário que será represen-
tado pelas alegorias, também estão sendo construídas.Algumas delas são articuladas e
possuem movimentos. Os materiais usados para as esculturas são o isopor, a fibra de
vidro, a papietagem, entre outros materiais. Com o carro alegórico fechado inicia-se
a decoração, a parte mais bonita, mais glamorosa, em que tecidos e os mais diversos
materiais brilhantes, brilhosos e coloridos de várias texturas se misturam a espelhos,
cristais, acrílico etc., para atenderem a criatividade e a inventividade do carnavalesco
e de sua equipe. Para que esses materiais, depois de juntados, colados e pregados
cada um no seu devido lugar obtenham um realce ainda maior, chega a vez da ilu-
minação,e da escolha minuciosa dos destaques que subirão nessas alegorias, tudo
isso é pensado e planejado junto com a criação da alegoria.
Outro ponto importante para desenvolver o enredo de uma escola de samba
são as fantasias das alas e de outros quesitos como comissão de frente, mestre sala e

131
porta-bandeira, porta-estandarte (uma peculiaridade do carnaval de Belém), inte-
grantes da bateria, ala das baianas etc.
Uma fantasia é composta por chapéu (item obrigatório), que podeter sua base de
papelão, EVA, arames, acetato, entre outros e de ser devárias formas; de resplendor
(uma armação de ferro decorada que vai nas costas do brincante) é opcional, depende
do que o carnavalesco pensou para aquela fantasia, bem como, da situação financeira
da escola; a roupa propriamente dita, onde há uma mistura de tecidos com diversos
materiais, como plumas, fitas, e outros artigos decorativos. Os pés deverão estar
calçados, são sapatilhas, sapatos, botas etc. É importante registrar que cada ala deverá
usar o mesmo tipo de fantasia, incluindo o sapato, com o intuito de manter a estética
e a uniformidade, que será julgada sob a denominação de conjunto.
As fantasias dos quesitos como comissão de frente, mestre-sala e porta-bandeira
e porta-estandarte, por serem únicas, são confeccionadas com materiais mais sofisti-
cados e caros do que as alas.
O ensaio é primordial para que a escola afine seus instrumentos juntamente com
a voz dos cantores, para que ambos desfilem em uma harmoniosa cadência, levando
todos os brincantes a se envolverem na magia do carnaval. A comissão de frente, o
mestre-sala e a porta-bandeira, o porta-estandarte, as baianas, a bateria e demais
componentes da escola também ensaiam durante o período que antecede o carnaval.
É importante salientar que a quadra da escola deverá estar equipada com som;
deverá contratar os serviços de carro som, para os ensaios de rua, que propor-
cionarão aos componentes da escola, que ensaiem em locomoção com o intuito
de simularem um desfile, organizando sua evolução, harmonia, conjunto etc. Há
também, a confecção de camisas padronizadas para integrantes da “harmonia, chefes
de ala e amigos” das escolas, além da alimentação dos trabalhadores do barracão.
A cadeia produtiva do carnaval envolve muita gente, profissionais de várias
áreas e sua comunidade. Segundo Prestes Filho et al. (2009, p. 28), “a era romântica
ficou para trás. Os barracões das escolas de samba funcionam hoje como linha de
produção de uma moderna fábrica”, por isso a necessidade de profissionais espe-
cializados. “Não há mais espaço para amadorismo e improviso” (PRESTES FILHO
et al., 2009, p. 28).
Abaixo nos Quadros de 1 a 5 há um demonstrativo – baseado na Escola de
Samba Bole-Bole – das despesas necessárias para que as escolas participemdo desfile
oficial, tendo a seguinte sequência: alegorias, alas e quesitos, ensaios de quadra e de

132
rua, pagamento de pessoal, entre outras. Não serão informados valores em reais, e
sim em forma de percentual, que cada item representa no valor total que a escola
arrecada.
Quadro 1 – Descrição e percentual de despesa com a construção e decoração das alegorias
Item %
Serviços de serralheria
Serviços de mecânica dos carros
Serviços de borracharia
Serviços de marcenaria
Varas de ferro diversas
Madeiras diversas
Pregos diversos
Papelão
Tecidos (TNT, esponjado, cetim, lurex etc.)
20
Placas de acetato
Aluguel de barracão

Fonte: Dados de Relatório Financeiro da Escola de Samba Bole-Bole (2014)

Quadro 2 – Descrição e percentual de despesa com a confecção de alas e quesitos


Item %
Tecidos (TNT, esponjado, cetim, lurex, tule, malha, rendas bordadas, tecido paetê
etc.)
Materiais de aviamento (linhas, elásticos, velcro, paetês, fitas, gregas, etc.)
Materiais de decoração (paetês, fitas, gregas etc.)
Papelão
Placas de acetato
Plumas
Sapatilhas e sapatos
Maquiagem 30
Transporte
Aluguel de barracão para chapelaria

Fonte: Dados de Relatório Financeiro da Escola de Samba Bole-Bole (2014)

133
Quadro 3 – Descrição e percentual de despesas com ensaios de quadra e de rua
Item %
Som
Carro Som
5
Banner e Panfletos com a letra do samba

Fonte: Dados de Relatório Financeiro da Escola de Samba Bole-Bole (2014)

Quadro 4 – Descrição de despesa e percentual de pagamento de pessoal


Item %
Carnavalesco
Cantores
Músicos
Serralheiros
Artesãos 40
Costureiras
Sapateiros
Empurradores
Seguranças

Fonte: Dados de Relatório Financeiro da Escola de Samba Bole-Bole (2014)

Quadro 5 – Descrição de despesas diversas com seu respectivo percentual


Item %
Camisas (diretoria, harmonia, chefes de ala, empurradores e segurança)
Alimentação do pessoal dos barracões
Despesas diversas
5

Fonte: Dados de Relatório Financeiro da Escola de Samba Bole-Bole (2014)

Em Belém o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeco-


nômicos (DIEESE) não contabiliza a cadeia produtiva que se encerra em torno do
carnaval. Tal atitude acaba por encobrir uma realidade muito presentenas escolas de
samba, pois, mesmo por um período curto, há um aquecimento no comércio local,
bem como costureiras, sapateiros, artesãos etc., conseguem um trabalho em troca de
pagamento pelos serviços prestados.
“Eficiência e eficácia, rentabilidade e adequação, receita e custos, controle e
qualidade são os atributos do desfile que agora devem prevalecer, para atender ao

134
deslumbramento frequente de turistas” (PRESTES FILHO et al., 2009, p. 28- 29), bem
como para atender aos interesses públicos dos órgãos arrecadadores de impostos, dos
empresários que lucram com a prestação de serviços nessa épocave da própria escola
que precisa manter-se entre os primeiros lugares, a fim de resguardar seu espaço.
Como demonstrado até aqui, é possível visualizar a imensa complexidade para
que uma escola de samba consiga chegar pronta e completa na avenida. Para isso
ela passa por vários processos, os quais iniciam com a ideia e com o nascimento
do enredo; depois vem samba; muito ensaio (comissão de frente, mestre-sala e
porta-bandeira, porta-estandarte, bateria, baianas etc.); muito papel riscado até que os
desenhos das fantasias e das alegorias estejam prontos; aí vem os protótipos; ferragens,
tecidos diversos e outros materiais, para que então uma escola desfile na avenida do
samba. Por trás de tudo isso, tem uma grande equipetrabalhando, contratação de som
de quadra e de rua, materiais de reposição dos instrumentos da bateria, enfim uma
cadeia humana e mercadológica sendo fomentada a todo momento.

Escola de samba: comunidade e identidade

No Brasil, quando se pensa em carnaval, pensa-se imediatamente no longo


período de feriado, em muitos bailes, desfiles oficiais, micaretas, mulheresbonitas com
o mínimo de vestimenta, homens não menos atraentes e desnudos, ou seja, uma
festa com todos os ingredientes de ócio e paganismo (MOTTA, 2003). Talvez, por
isso, o carnaval seja considerado apenas uma festa, e uma festa mal vista por muita
gente. Mas o que tem de errado em ser uma festa?
O carnaval vai além de seu ingrediente festivo, principalmente quando se trata de
escola de samba – objeto deste estudo – a qual para desfilar no carnaval, como assinala
Tramonte (2007), desenvolve no decorrer de um ano, um trabalho que congrega a
comunidade em seu entorno, abrindo espaço para geração de emprego e renda,
oficinas de arte, principalmente nas áreas da dança, música e artes plásticas, entre
outras ações que se traduzem em benefício para aquela comunidade.
O sentido de comunidade neste texto extrapola os definidos pelos dicionários,
como em Ferreira (2008, p. 252) que a define como “o corpo social; a sociedade”.
O sentido aqui impresso é de um super organismo, como assinala Manzini (2012),

135
no qual a comunidade se sente dona daquele universo, protegendo e protegida por ele.
Ainda segundo essa autora, uma das características da comunidade ou desse superor-
ganismo, é resistir ao que vem de fora dela, ao que lhe é estranho.
Carneiro (2011), em pesquisa realizada na Escola de Samba da Mangueira, des-
taca a delimitada fronteira entre a comunidade e a sociedade, entre o nós e o eles, ou
seja, entre as pessoas da comunidade com as de fora, denominadas de sociedade.
Ressalta ainda a autora que para não perder força, a comunidade não se isenta em se
autoafirmar como patrimônio cultural, demarcando seu lugar e sua importância
para a perpetuação de sua escola de samba.
Desta forma, a relação entre comunidade e sociedade, mediada pela escolade sam-
ba, mais especificamente pelo mundo do samba, como assinala Tramonte (2007), se
estabelece por meio de alguns fenômenos, os quais só poderão ser compreendidos
se houver o entendimento de que sua ocorrência não se dá isoladamente ou des-
conectada, há uma inter-relação formando uma redecontraditória, a qual imbrica-se
mutuamente. Tramonte (2007, s.p.) ressalta que a“configuração do Mundo do Samba,
bem como o papel mediador nos processos pedagógicos cumpridos pela escola de
samba, delineará suas características conforme o momento histórico e o contexto
social em que se inserem”.
Para Tramonte (2007), há um aspecto pedagógico bem delineado que busca
estabelecer essa convivência e consolidar a base comunitária como garantia da manu-
tenção das raízes e perpetuação da agremiação. Aprender a tocar uminstrumento,
dançar, representar, cantar, compor, desenhar, cortar, costurar, colar, transformar,
criar, sonhar, se relacionar, se entregar para viver e aprender, são processos vivos na
escola de samba e que congregam as pessoas fortalecendoos laços identitários delas com
a escola de samba a que pertencem. E isso tudo é muito vivo na Bole-Bole.
Ao ler e analisar os enredos e sambas-enredo da Bole-Bole, verifica-se uma
preocupação desta escola em construir uma identidade com o seu bairro. O Guamá
com sua diversidade, suas peculiaridades, seus problemas, suas inúmeras possibilidades
e movimentos de cultura popular etc., é frequentemente cantado no carnaval da
escola, ou seja, suas características viram enredo e samba-enredo (GORDO, 2015).
Abaixo segue o samba-enredo de 1999 composto por Dio, Magé e Ademir do
Cavaco – foi a única vez que houve concurso de samba na Bole-Bole, pois esta escola
possui seu compositor, Vetinho (também compositor dos três primeiros sambas da
escola Arco-Íris), que desde sua fundação compôs todos os sambas da escola, com
exceção deste. Algumas vezes estabelecendo parcerias – enredo idealizado por Vetinho A

136
Fantasia de um Guamá Feliz e interpretado por Ademar Carneiro, que ilustra o objetivo
desta escola em seus sambas-enredo

Um sonho bonito vivi, na fantasia desse carnaval. Onde o


Barão de Igarapé-Miri, num Guamá em decadência, reúne os
gênios num conselho especial, pra satisfação geral. E assim na
foz do Tucunduba se fez o nosso enredo genial. Saúde e educação
com a conservação da cultura regional. Trabalho e lazer, criança
na escola. Morada pra todos, transporte na hora. Sem SPC, sem
delegacia, o nosso Guamá feliz existia. E sempre amanhecia com
alegria. No fim da tarde a poesia. No pôr do sol, a namorada.
Vem a noite, a boemia. Ao luar, trovadores nas calçadas. No
barracão o Bole-Bole se prepara, e o sonho vira alegoria. Salve
o Barão do Rio Guamá, e mãe Amelinha, o terreiro secular.
Sonhar é viver, e no Guamá isso é normal! Na quarta-feira vem
a realidade, aí eu penso em outro carnaval.

Esse enredo tinha como ponto de partida o sonho dos guamaenses. Nesse sonho,
o Barão de Igarapé-Miri – nome de uma das principais avenidas existentesno bairro do
Guamá – reúne as mentes mais geniais, que estão se desenvolvendo na Universidade
Federal do Pará (UFPA), para desenvolver pesquisas em prolde mudanças propositi-
vas na área da educação, saúde, transporte, moradia, urbanização, trabalho, lazer, mas
sem se apartar do romantismo vivido em épocaspassadas, e sem esquecer de pedir as
bênçãos no terreiro de umbanda secular localizado na mesma rua que a Bole-Bole.
É também recorrente o apelo para que a UFPA, localizada neste bairro, às margens
do rio Guamá, volte sua atenção por meio de ações, nas mais diversificadasáreas, para mi-
nimizar problemas relacionados à educação, saúde, meio ambiente,urbanização entre
outros, por meio de suas tecnologias. A exposição dos problemas e das virtudes do
bairro é uma tentativa de atrair a atenção da classepolítica e empresarial. Os proble-
mas, para tentarem ser resolvidos e as virtudes, para que consigam incentivo, fomento
e políticas públicas para se expandirem.
Como no desfile de 2001, com o enredo O Sol nasce no Guamá, numa homenagem
ao radiante astro que rebenta todas as manhãs, despontando seusprimeiros raios no
Guamá, por ser o bairro que se situa mais a sul/leste na cidade de Belém, com samba
de Vetinho e interpretado por Ademar Carneiro

137
Na beira do rio, do rio Guamá. É a morada do sol nascente! É o
ninho do saber, é o oriente. Que Bole-Bole o coração de nossa
gente! É hora de realizar um sonho tão antigo: vencer os velhos
inimigos, miséria, poluição a degradar. Ciências, tecnologias sem
burocracia. É o anseio da comunidade. Ver a Universidade em
projetos de ação, em busca de uma solução. Fazer o Tucunduba
desaguar feliz, e resgatando a cultura da raiz. Ainda queremos ver:
o fim da guerra urbana, dessa luta desumana e o lixo reciclar. A
arte-consciência, a vida, pode transformar! E o samba em nova
cadência: no sirimbangu-ê, no carimboi-bumbá. O sol já vai
nascer, vem bolebolear! É pai d’égua o pop brega no Guamá.

Nesse enredo, crítico e apelativo, a Bole-Bole volta a evocar a UFPA para cui-
dar do bairro do Guamá – desburocratizando suas ações; tornando sua tecnologia
a serviço dos guamaenses, como a recuperação do rio Tucunduba que passa por
dentro da universidade e está com alto índice de poluição etc. –contribuindo para
que seus moradores tenham acesso à educação, aliando a arte a essas ações.
Mas o objetivo principal desses sambas é a construção de uma identidade com o
bairro, levar informação e aguçar a criticidade dos moradores do Guamá. Esse des-
pertar proposto pela Bole-Bole, tanto da universidade quanto da classe política e da
comunidade é mediado pelo samba, acompanhado pela bateria ecantado com vigor
por sua comunidade, pois reconhecer-se em determinado lugar está diretamente
ligado com sua identidade.
Outra função dos sambas-enredo da Bole-Bole (frutos de pesquisas de carnava-
lescos e compositores) tem sido de informar aos moradores mais jovense de lembrar
aos mais antigos, que o Guamá é o bairro da cidade de Belém comuma das maiores
diversidades de manifestações de cultura popular paraense: boi-bumbá, pássaro junino,
quadrilhas roceiras, grupos musicais de vários gêneros, procissões e festas religiosas,
terreiros de umbanda, entre outros.
Isto pode ser comprovado neste samba composto por Vetinho em 2002 que
homenageou o grupo musical Arraial do Pavulagem com o enredo A pavulagem do
meu povo, promovendo uma mistura rítmica, entre o batuque do boi com o samba
e outros ritmos regionais. O samba interpretado por Ademar Carneiro era assim,

O Arraial do Pavulagem reuniu, nosso folclore num banzeiro


cultural. Mostrando a festa cabocla pra todo o Brasil! Fez

138
nosso jeito de brincar o carnaval. Bole-Bole num tambor de
couro! Xequerê num maracá de cuia! Reco-reco de bambú, uru-
cum na cara. Ficou pai d’égua esse banzeiro Paraoara! Será que é
retumbão, ou é bangu-ê, carimboi na rua, ou siriáa, ou siriáa!
Que esse samba de cacete tem magia. No arraial que é do sol,
no arraial que é da lua! Diz a tacacazeira: menino, é lindo meu
Guamá nessa folia! Veja o Arraial chegou e me arrastou! Venha,
esse banzeiro é um Paraoá de amor! Dança Boi Tinga, bicho
folharal. Axé? axi, meu cheiro é peixe regional! Meu rio é Rui,
é Tiritó, Lucindo, Baldez, Waldemar-açu!Tem boto no Sairé, no
Mexilhão do Icatu! Quem é jarana vai morar no sul.Hei, bole-boi,
bole-boi, bole-boi, bole-boi, bole-boi.

O Arraial do Pavulagem é mais que um grupo musical, ele agrega valores da


cultura paraense, além de ter iniciado sua trajetória musical e de oficinas nasede do
bloco Bole-Bole na década de 1990, junto à comunidade da Pedreirinha, mediada por
Vetinho e Nazareno Silva, como assinala Vieira (2014, p. 2 e 3)

A força criada a partir da mobilização da comunidade do


Guamá foi o elemento fundamental para o nascimento e o
desenvolvimento de outras iniciativas culturais no Bole-Bole e
no bairro do Guamá. Assim apareceu o Arraial do Pavulagem
no terreiro do Bole-Bole e seu Malhadinho, que veio somar
esforços aos empreendimentos de Vetinho e Nazo Silva e ou-
tros colaboradores. A sua presença no Bole Bole levou a uma
maiorvisibilidade do que se fazia nesta agremiação. Acho que até
influenciou na forma do Pavulagem se apresentar, com crianças.
Fortaleceu o elo entre o Boi Pavulagem e o Malhadinho, recém
resgatado. Era lindo ver a relação de um boi maduro com um
boi criança!

Fica nítido nas palavras de Vieira (2014) o compromisso da Bole-Bole com


a cultura popular e com práticas educativas envolvendo a juventude e a comuni-
dade guamaense. Esse envolvimento sensibiliza e atrai artistas, intelectuais, acadêmicos
e pesquisadores que transitam, mesmo que temporariamente, trocando saberes,
experiências e conhecimentos com os guamaenses.

139
A Bole-Bole tem uma sede que é um dos raros espaços existentes no bairro,
onde comporta reunião de entidades, instituições, partidos políticos etc.; comando
médico; vacinação (de gente e de animais); festas religiosas, profanas eescolares, dentre
tantas outras atividades promovidas pela própria escola ou que seja de interesse de
sua comunidade.
Assinala Poubel (2012, p. 12) que “os moradores de uma mesma localidade têm na
escola de samba uma referência para a construção de identidades sociais, estabelecendo
discursos e práticas em comum”. Revela ainda Poubel (2012, p. 12) que “o fato de
pertencer a uma escola de samba de determinado bairro cria relações entre as pessoas,
atuando na construção de identidades e representações sociais que orientam as práticas
dos moradores dessas localidades”. Essa identidade e esse vínculo estabelecido com
a escola de samba cria uma relação de pertencimento.

Conclusão

Quando esforços foram unidos para compor este artigo, a missão foi fazer um
registro sobre o mercado carnavalesco em Belém tendo como referência os dados
financeiros da Escola de Samba Bole-Bole. Porém, não dá para reduzir essa escola às
questões financeiras, principalmente pela forte identidade e elo criados com sua co-
munidade, com o bairro do Guamá, com a passagem Pedreirinha, enfim, com todo
seu entorno. Por isso, economia, comunidade e identidade passaram a dialogar na
construção deste artigo.
Acredita-se que não cabe mais imitar o espetáculo promovido pelas escolas do Rio
de Janeiro, não tem recursos para isso, há que se repensar esse modelo e retomar
o compromisso por parte de todos os envolvidos com o carnaval deBelém – poder
público em todas as esferas, empresas, mídia e gestores das escolas de samba – em prol
de seu soerguimento para que as agremiações carnavalescas venham se fortalecer, se
tornarem autossustentáveis e continuarem gerando mais empregos e renda, dentro
da cadeia produtiva do carnaval.
Somado a isso tudo, as escolas necessitam contar com a viabilidade depolíticas
públicas por meio de projetos sociais que tragam mais recursos paraque consigam

140
se manter o ano inteiro interagindo com suas comunidades, melhorando a qualidade
de vida dessa população, além de se aprontarem para o desfile oficial de carnaval.
É importante ressaltar que uma escola de samba não se resume ao dia do desfile
oficial no carnaval, a avenida é palco para a evolução de ideias colocadas em prática
por pesquisadores, carnavalescos, ferreiros, carpinteiros, costureiros, coreógrafos, rit-
mistas, compositores etc., que desenvolvem tudo isso de forma artística, ordenada,
metódica e didática durante o ano todo.

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143
O PODER DA CULTURA COMO COMUNICAÇÃO
O MARKETING DA FLORESTA: A PROMESSA
PUBLICITÁRIA PARA AS POPULAÇÕES INDÍGENAS,
POPULAÇÕES TRADICIONAIS E NOVAS POPULAÇÕES
DO MUNDO GLOBAL NA AMAZÔNIA
Otacílio Amaral Filho45

Introdução

O valor da Amazônia como marca tem diferentes formas de realização tanto na


perspectiva mercadológica quanto nas sociabilidades formadas na relação mercado e
comunidades tradicionais, no mundo da vida, nas últimas décadas, demarcado pelo
desenvolvimento sustentável e a responsabilidade social como sustentação destas
práticas sociais. Queremos afirmar, antes de tudo, que o principal objeto deste
modelo é a floresta, ou dizendo melhor, a mudança na valoração da floresta. Este
paradigma constitui-se na dicotomia perversa entre a devastação efetiva e a riqueza
da floresta em pé e as práticas sociais daí resultantes. O modelo se completa nos
processos de midiatização da cultura das populações tradicioanis da Amazônia e
de seus produtos em escala global como uma promessa publicitária, que conceituei
em outro momento como marca Amazônia (AMARAL, 2016).46
45 Otacílio Amaral Filho é professor Associado da Universidade Federal do Pará. É vinculado à Facul-
dade de Comunicação e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Cultura e Amazônia – PPGCOM.
Coordena o Grupo de Pesquisa Laboratório de Pesquisa em Mídia, Cultura e Povos da Amazônia – LAPAM.
E-mail: otacilio@ufpa.br. Artigo apresentado e publicado nos Anais do 29° Encontro da Compós 2020.

46 A ideia inicial é mostrar o objeto anunciado, a Amazônia, sua nomeação e o seu uso como iden-
tificação e pista principal para o consumo. E de forma complementar analisar a Amazônia como se fosse uma
marca, isto é, como um ativo das empresas, fazendo a distinção no jogo da concorrência dos produtos e serviços
como um elemento importante do sistema de capital na constituição do seu principal lugar de ação no mundo
global que é o mercado. Trabalha com pesquisa e orientação em comunicação e de forma mais específica em
publicidade, mídia, cultura e espetáculo. Publicou o livro, “Marca Amazônia: o marketing da floresta” (2016) e
organizou o livro “Espetáculos Culturais na Amazônia” (2018). Essa Marca é também uma promessa publicitária
que agrega um valor mercadológico a um grande número de produtos e serviços, cuja essência está na relação
entre a Amazônia real e uma Amazônia simbólica produzida com o objetivo de fidelizar consumidores globais
na contemporaneidade. A promessa publicitária se constitui na oferta de um imaginário povoado pelo natural,

145
Analisamos a promessa publicitária oferecida pela cultura do consumo, evi-
denciando o processo de midiatização das populações indígenas por meio do
documentário “Os guerreiros da floresta”, que mostra a experiência sustentável dos
Huni-Kuin no Acre, dos Paeter-Suruí em Rondônia, e dos Yanomami em Roraima
como forma de resistência na luta contra a invasão de suas terras. Evidencia-se o
processo de comunicação com base na visualidade e visibilidade que possibilita a
apresentação da cultura destas populações de forma espetacularizada, conduzida
pelo discurso da sustentabilidade que orienta, em boa medida, o ativismo ambiental
e as novas sociabilidades nos espaços midiatizados.
De forma objetiva dois discursos se sobressaem nesta disputa, no caso da
devastação da floresta, o discurso do aquecimento global que estende sua ampli-
tude para a discussão da ciência entre os analistas dos problemas do clima global
relacionados a floresta e os céticos que entendem que o aquecimento global não
é afetado pela devastação da floresta. O segundo discurso é um discurso voltado
para a ocupação da Amazônia como um lugar ideal para se viver e como lugar
obrigatório da panaceia do desenvolvimento sustentável, na promessa publicitária
que tem origem do marketing de negócios que impulsiona o mercado de produtos
da cultura e do turismo.Podemos dividir o debate discursivo entre o conhecimento
produzido pela ciência e os saberes nas práticas das populações tradicionais, nos
mais diferentes cantos da Amazônia, movendo os interesses do mercado financeiro
na exploração da cultura amazônica e dos seus produtos.
Neste artigo vamos discutir a panaceia do desenvolvimento sustentável como
categoria empírica que constitui o conceito de floresta e da luta das populações
indígenas pela sua manutenção, e de forma mais específica a experiência susten-
tável dos Huni-Kuin no Acre, dos Paeter-Suruí em Rondônia e dos Yanomami
em Roraima como uma promessa publicitária. O objeto central desta resistência dos
povos indígenas, é o lugar, na perspectiva de pertencimento aliado a lógica indentitária e
da imaginação, que constituem, de forma articulada, a economia social e a cultura destas
populações. Entende-se que a interseção dos modelos da natureza baseados no lugar e na
economia, permite um entendimento sobre as racionalidades produtivas que possibilitem
um contexto de referência mais amplo para situarmos o debate sobre sustentabilidade
cultural e ecológica como propõe Escobar (2005, p. 161).
a plenitude da natureza, ligada, portanto, à pureza e ao original, ordenada pelo desenvolvimento sustentável e pela
responsabilidade social como requisitos da racionalidade econômica do sistema de capital que é repassada aos
produtos como conteúdo e forma e se dirige para influenciar o comportamento do consumidor como indutor
para a conduta de compra (AMARAL FILHO, Otacílio, 2016). E-mail: otacilioamaralfilho@gmail.com.

146
Do lado da comunicação na sua forma operativa, na mediação como diálogo,
conflito e interpretação, constata-se a consolidação do vídeo-ativismo que possibilita
uma modificação importante no uso da linguagem audiovisual por um processo
de produção que trabalha com o jornalismo e a publicidade entre a linguagem
espetacular e a narração do fato entrelaçado com o modelo do anúncio publicitário
pela proposição da promessa publicitária. A promessa do mundo publicitário se
ordena pela lógica da verdade criada, ou que se pode criar como forma de persua-
são, pelo testemunhal, buscando o sentido arquetípico da imagem conceitual para
consolidar esta narrativa. Desta forma aproxima-se do jornalismo, para além do
acontecimento, pela narração do fato, e, pela perspectiva da vontade da verdade.
A hipsterização de Alter do Chão, é um bom exemplo da promessa publicitária
como lugar turístico, do “Caribe brasileiro”, ou de “paraíso amazônico”, da forma
que tratam o jornalismo e a publicidade pela nomeação do lugar e a sua oferta
para o consumo.
Esta discussão é potencializada e disseminada a partir da marca Amazônia, isto
é, a agregação do conceito da floresta a produtos e serviços para atrair os consu-
midores globais aproximando a produção capitalista ao conceito de natural pela
lógica do desenvolvimento sustentável e da responsabilidade social, estendendo
este conceito para a Amazônia como um valor simbólico não apenas para os pro-
dutos e serviços, mas ainda mais, para formas de vida sustentáveis e estilos de vida
globalizados incorporadas pelo ativismo ambiental e pela ordem mercadológica.

A espetacularização como análise de comunicação

A espetacularização midiática como linguagem opera em três níveis: a visua-


lidade, a visibilidade e a viralização. Pode-se dizer que a informação é tratada pela
mídia na sua forma mais ampliada como visualidade e visibilidade condições sine
qua non das plataformas digitais para uso aleatório de divulgação, orientada pelas
possibilidades de viralização, que ordenam os interesses das grandes corporações
que controlam e regulam a comunicação espetacularizada no mundo global.
O conceito de visibilidade se ampliou a partir das perspectivas tirânicas esta-
belecida pelos instrumentos de produção de informação, por um outro cogito não
cartesiano, “vejo, sou visto, logo existo (BIRMAN, 2013, p. 49) e o conceito de

147
viralização como forma estético-política de controle das mídias digitais e sociais.
O predomínio da imagem, ao colocar o mundo nas telas, nos dá a dimensão da
quebra da invisibilidade de tal sorte que o imaginário e realidade se fundem no
virtual criando este ambiente-simulacro pela imagem. “É preciso ser visto para existir
e contar. [...] O invisível é o que é ocultado da vista, mistério e tabu.
Ao contrário da visibilidade há a opacidade, o oculto, o censurado, o proibido”
(BARUS-MICHEL, 2013, p.33-45). A viralização por outro lado tem dimensões
outras, mas que terminam convergindo para velhas questões da política de imagem
e da estetização dos discursos como forma de poder e controle, da informação e
da comunicação. A informação “passou a ser ouro puro” (Baitello, 2019, p. 66),
transforma-se em bem de consumo, político por excelência, mas vinculado a for-
mação de novas riquezass no mundo totalizante do capitalismo financeiro.
A crítica ao público alienado da televisão, principalmente, se reconstitui no
abraço circunferente da visualidade e da visibilidade, mais precisamente das tiranias
da visibilidade da sociedade das telas, na “ânsia de ver tudo”, ver tudo mesmo o que
não existe, o que existiu, o que poderia existir, “um mundo em que a realidade é
igual ao imaginário e constitui uma multiplicação extraordinária de poderes, uma
forma de onipotência enquanto aquele que está diante da tela imóvel” (BARUS-
-MICHEL, 2013, p.34-35).
O gesto com os dedos que se faz para mostrar ou apagar o mundo que se quer
ver. Explico, a primazia da imagem, não mais platônica como foi apresentada no
mito da caverna com a alegoria do mundo sensível, nem falsa como queria a reli-
gião, mas espetacular como nos pedem a visualidade e a visibilidade características
da contemporaneidade – a imagem na essência benjaminiana da reprodutibilidade
técnica. A captura da imagem pelo olho das câmeras e a disponibilização que a
tecnologia da composição criou se amplia também pelo lugar que é levado junto
e o valor de exposição; a tela e a apresentação.
O valor de exposição se amplia pela ação de um indivíduo espectador que pro-
duz, escolhe e compartilha a imagem, como forma de participação e engajamento
obrigatório no mundo da visibilidade. Uma espécie de performance que traz o
indivíduo e sua vida cotidiana para as telas. Nesse sentido o principal elemento
da teoria da visualidade e visibilidade é a viralização. O clicar deixa de ser uma
ação automática para se constituir como ação de concordância, discordância ou
distribuição quantitativa do acontecimento pelo processo de comunicação que
aciona a viralização da imagem, caracterizada por um ação aleatória nos ambientes

148
virtuais que muito mais que uma ação individual quantificada, passa a ser um modo
categórico do fato ou como conhecimento da cultura, no sentido classificatório do
que é reconhecido como valor. O sentido quantitativo é estatístico na origem, mas
transforma-se no centro da avaliação escondendo o sentido qualitativo e denotando
a perspectiva de afirmação valorativa do acontecimento, seja fato, foto, vídeo, Doc.,
clip, Stories. Como consequência, servirá como parâmetro de mercado que regula
do ponto de vista também financeiro, as redes sociais.
Na perspectiva da formação de imagens conceituais e mentais sobre determinados
temas, a viralização age como um gatilho para a definição destes conceitos e afetos e
emoções que passam a acompanhar a imagem para além da sua natureza intrínseca,
sua visualidade, para a sua natureza conotada. A relação entre falso e verdadeiro tem
como resultado uma escolha emocional afastando-se da vontade da verdade, ou mais,
instituindo-se como verdade. Acrescente-se a isso, o valor da distinção. Conquistar
um seguidor, um usuário, um colaborador, um apoiador passa a ter uma função
determinante na construção do discurso e na formação da imagem pública e política
de seus personagens. Assim a viralização tem de forma intrínseca o risco da imagem
falsa, da visibilidade negativa, mas afirma-se nesta possibilidade, de outra verdade
que se cria entre o acontecimento e a forma de apresentação.
Mas a viralização se forma em fluxo intrincado de possibilidades do aconte-
cimento que só pode ser entendido pela perspectiva do acaso como gatilho do
acontecimento por uma série de repetições e cópias que a reprodutibilidade técnica
permite e que em determinado momento algo é selecionado e viraliza. Por isso
mesmo, é possível influenciar a viralização criando fluxos de interesses de assuntos
e temas dos conteúdos pelas hashtags ou um algoritmo indicador de possibilidades
em que a realidade é conquistada.
O trabalho estratégico de publicização, em busca da visibilidade, assemelha-se
ao marketing tradicional, mas amplia-se pela precisão indicada por pesquisas ou
tendências do mercado. De forma direta, o uso dos algoritmos na constituição da
informação como dado, origina um conhecimento encadeado de possibilidades
sobre determinado fato, acontecimento ou do uso da informação por um processo
de controle direto de empresas e corporações e por uma outra dimensão produtiva
que explora o marketing e merchandising sociais.
O jogo das repercussões, táticas e de fluxos coincidentes na ordem de conteúdos
com potencial de viralização, se aperfeiçoam no marketing digital que hiper-realiza
as questões objetivas da imagem das instituições para poder se conectar com as

149
perspectivas subjetivas da visibilidade que poderão influenciar o consumidor naquele
momento. Uma linha-do-tempo se forma, dando ao acontecimento, como um fluxo,
a probabilidade de tornar-se verdade por este recurso de conquista da realidade.
Na dimensão do público, no sentido político do seguidor ou apoiador ou do
consumidor ou do ativista, volta-se ao processo de alienação não pela maneira
passiva do comportamento massivo, mas pela concordância automática que exige
a tirania da visibilidade, sem o aval, vamos dizer assim, de certificação de quem
de direito no controle do discurso e da formação da imagem, uma vez que, as
corporações e o Estado cooptado pelo capitalismo financeiro controla os regras e
cria os algoritmos norteadores para o fortalecimento das teses e leis do mercado,
que no conjunto da obra reafirmam a violência sistêmica das exclusões próprias
do patriarcalismo e do colonialismo como formas atualizadas de exploração. Do
público massificado da televisão para o público idiotizado das redes sociais.
Umberto Eco, no discurso em que recebeu o título de doutor honoris causa na
Universidade de Turim, na Itália (2015), afirmou que as redes sociais dão o direito
à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois
de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. “O drama da internet é
que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”, acrescentou. Em que
pese o discurso reducionista sobre a internet, é importante nos voltarmos para o
valor da comunicação no sentido pós-disciplinar e relacional tanto na sua forma
de constituição da verdade quanto da sua negação. Provavelmente, aqui resida o
incômodo que as tiranias da visibilidade provocam por um processo dicotômico
paradoxal entre a verdade e sua forma de constituição que se está chamando hoje
de pós-verdade.
Mas queremos contrariar este princípio, da “legião de imbecis” pela oposição
dialética do engajamento, tanto social, quanto político no sentido da argumentação,
ou seja, a internet como um lugar do debate e da deliberação, ainda que preso ao
requisito fundador da visibilidade e seus ditames do indivíduo digital que vive
ligado no sentido do ambiente conectado. A perspectiva do jornalismo como ato
de socialidade deve apontar, pela apuração, o lugar e a natureza do fato na sua
essencialidade, para usar como exemplo. E a promessa publicitária se faz na criação
do mundo publicitário que termina por oferecer opções de engajamento social e
ambiental embutidos na linguagem dos anúncios, uma língua própria que oferece
parâmetros de diferenciação pelo comum, pelo conhecimento comum, estereotí-
pico, que constitui o seu discurso e que se torna útil na formação das socialidades

150
contemporâneas como forma, inclusive de enfrentamento aos modelos dominantes
do capitalismo financeiro.
Uma questão que aqui se impõe e que se reafirma, quando se trata das questões
das populações da amazônia, é a referência ao lugar, o lugar de pertencimento ao
considerarmos a identidade e o lugar de identificação se olharmos os vínculos que
se estabelecem na sociedade moderna, especialmente no confronto entre a visão
totalizante globalizada de desenraizamento e as questões de identidade, territoria-
lidade, autonomia política e visão de desenvolvimento das economias locais das
populações tradicionais e as novas populações.
Volto a argumentação de Escobar (2005, p. 133-168), sobre a defesa do lugar
a partir de uma ecologia política destas populações que se voltam para a relação
entre lugar, cultura e natureza. Na análise que fazemos se evidencia pelas lideranças
indígenas, Huni-Kuin, Paeter-Suruí e Yanonami, apresentadas no documentário, a
força do lugar como centro desta ecologia da vida, considerando a cultura própria
e a relação com o outro, por um posicionamento político claro que parte da visão
de sociedade e da natureza.

A promessa publicitária

A publicidade parece resumir de forma paradigmática esta lógica do lugar e da


cultura e por isto mais categorizada, na criação do discurso do mundo publicitário
que amplia estas formas de socialização de modo particular, quando atrai outro
consumo, que não aquele que as grandes marcas e as corporações almejam. Parece
ser uma publicidade social que se forma na lógica da promessa publicitária, como
persuasão para o consumo sustentável. Parte do estereótipo para entrar nos proces-
sos de socialização pela verossimilhança e por conceitos de imagens arquetípicas, a
perspectiva da formação de estilos de vida, e para isto, usa os elementos da cultura
de consumo já na lógica da sustentabilidade, de forma paradoxal, pois parece
contrariar o capitalismo financeiro como argumento formador destas socialidades,
afirmando os mesmos princípios do discurso do desenvolvimento sustentável. Uma
ecologia política que trouxe as populações tradicionais, os movimentos sociais, os
quilombolas, os indígenas para a cena.

151
O caso da mudança social da Vila de Alter do Chão, em Santarém, como ci-
tamos antes – de aldeia Borari e de uma vila ocupada por populações tradicionais
– para uma população que reune ativistas ambientais, ativistas naturais, turistas que
se alternam entre a população aumentada e a população flutuante que converge
para a Vila em datas específicas, como no período do espetáculo cultural do Sairé.
Há uma confluência de formas de vida, conduzidas por esta ecologia, como a hip-
sterização da vila de Alter do Chão ou da culinária amazônica invadindo o mundo
dos chefes e das disputas nos reality shows, e os espetáculos culturais da Amazônia
como o Boi de Parintins, o Sairé em Santarém, as Cirandas de Manacapuru, as
Tribos de Juruti, são paradigmáticos.
E no outro ambiente, que é o lugar da tradição, as novas economias indígenas
dos Paeter-Suruí, Yanomâmi e Huni-Kuni na Amazônia, enquadradas pelo desen-
volvimento sustentável e de forma mais específica no agronegócio e no comércio
de produtos pela internet, constitui a empiria que faremos uso para identificar
esta mudança que compõem a visualidade e visibilidades exploradas na promessa
publicitária pela linguagem espetacular. A promessa publicitária que discutimos
aqui, usa a espetacularização para mostrar a preservação da floresta amazônica,
de forma integrada, pelos atores sociais das populações indígenas e tradicionais e
as novas populações consumistas e de ativistas globais que formam esta ecologia
política do lugar e de suas novas identidades e identificações.

Vídeo ativismo: a experiência Huni-Kuin, Paeter-Suruí e Yanomami

A análise empírica que se apresenta, tem como base a perspectiva comunicacio-


nal na forma como discute Muniz Sodré, em Ciência do Comum (2014), ou seja,
entende a comunicação na sua relação com o capitalismo financeiro e midiático
como forma primordial de caracterização da chamada sociedade avançada. E de
forma mais direta o bios midiático ou bios virtual caracterizando uma forma de vida,
cuja realidade é “imaginarizada”, isto é formada por “fluxos de imagens e dígitos, que
reinterpretam continuamente com novos suportes tecnológicos de representações,
a realidade” (SODRÉ, 2014, p. 252).

152
Esta empiria pode ser caracterizada pelo tipo de sociologia das emergências
como “zonas libertadas, como comunidades consensuais baseadas na participação
de todos os seus membros. Possuem uma natureza performativa, prefigurativa e
educativa” (SANTOS, 2019, p. 57) e tem sustentação numa ecologia dos saberes
que constituem este lugar, Amazônia. O que parece uma empiria extensa, na ver-
dade, é repetitiva na ordem da reprodutibilidade técnica e mostra a experiência
de publicização destes povos a partir da midiatização. A publicização nos leva a
promessa publicitária e a linguagem espetacular nos ambientes conectados. Não
funciona como a comprovação de um problema do ponto de vista metódico, mas
a formulação de um exemplo de comunicação como metodologia.
Partindo da informação que compõem os lugares da comunicação, podemos
ver que estes grupos são hostilizados de forma permanente pelos garimpeiros,
projetos de hidrelétricas e demarcação das terras, inclusive com ameaças de morte
as suas lideranças. O principal agressor a partir de 2019 é o governo de extrema
direita, que conduz as instituições ligadas ao meio ambiente e aos governos federal
e estaduais. O discurso oficial do governo federal é de agressão permanente às terras
indígenas, suas populações e sua cultura e à floresta.
Retomamos a questão fundamental, que está na tese da sustentabilidade para
estas comunidades, em contraponto ou em consonância com o desenvolvimento
sustentável pleiteado pelo capitalismo financeiro e pela promessa publicitária. A
manutenção de suas culturas está diretamente ligado a terra na concepção filosófica
que dá corpo ao mundo da vida destas populações, como um lugar de preservação,
acepção que conflita de forma direta com o capitalismo financeiro e a cultura
de consumo. A resultante desta relação paradoxal é o estado de violência que se
impõe, inclusive nas formas de adaptação destas culturas aos modos de produção
capitalista como forma de resistência e pós-resistência, como ocorre nos exemplos
aqui mostrados.
A ideia inicial é da volta ao saber. O saber, construído a partir da sua lógica
de formação e de sua potência coletiva que encontramos na cultura manifestada
como ação e como resposta no sentido da resistência na constituição fundamental
da emancipação. Aqui se forma a narrativa que constitui a cultura resultante de
ação e comportamento como “insurreição dos saberes dominados”, a que se refere
Foucault sobre o poder, requisitado pelo caráter local da crítica e que entendemos
como uma lógica que formou o ente na reação à violência sistêmica no processo
criativo da cultura, tanto do ponto de vida da existência, quanto da experiência

153
cotidiana. Para os povos indígenas “as costas desse céu que caiu no primeiro tempo
tornaram-se a floresta em que vivemos, o chão no qual pisamos. Por este motivo
chamamos a floresta wãro patarima masi, o velho céu...” (KOPENAWA, 2015,
p.195). É mais do que uma visão filosófica da terra. É o lugar da vida. É a realização
da promessa para estas populações.
O amálgama da cultura que se constrói na Amazônia e que queremos conceituar
como cultura amazônica nasce da resistência a violência instituída pela escravidão,
e que se constitui especialmente sobre o uso da floresta e de suas formas degrada-
das pela visão civilizatória do velho mundo. A forma-escravidão irá potencializar
e definir as instituições que a originaram e que se organizam de forma atualizada
no colonialismo, patriarcalismo e no capitalismo modernos. Do ponto de vista
metodológico, somos pressionados por um fio condutor que precisa partir da
empiria constituidora e formadora, como narrativa primordial na construção de
um pensamento que enfrente de forma crítica o modelo de conhecimento estabe-
lecido pela formas coloniais e pós-coloniais, para que de forma propositiva se possa
construir o conceito de cultura amazônica.
A cultura amazônica é ainda, um manguezal cultural de si mesma e do mundo.
“É uma cultura que tem produzido amplos e originais processos de conhecimento
no campo da medicina natural, de formas alternativas do trabalho, do amor, do
sonho, da camaradagem, da solidariedade, da compreensão do homem e da vida”
(PAES LOUREIRO, 2019, p. 110). As populações tradicionais se posicionaram
e se posicionam nas formas de aparente concordância por terem guardado estes
saberes ao longo do tempo. Paes Loureiro complementa ao afirmar que [...] ainda
se espera, por “reconhecimento e respeito como forma de saber e sentimento, não
apenas como matéria a ser consumida ou riqueza expropriada”.
São desafios de enfrentamento ao processo globalizador e mercadológico que
avança pelo mundo, o que faz com que tudo na Amazônica esteja em risco de desapa-
recer, “não mais destruído por mãos bárbaras de guerreiros conquistadores, mas como
consequência da racionalíssima decisão de ampliação mercadológica globalizadora,
acionada pelo grande capital e pela comunicação, [...] e pela “crônica ausência de
projetos políticos que sustentem sua diversidade”47. Mais uma vez o paradoxo da
floresta se evidencia, o consumo da floresta que a promessa publicitária oferece na
hipostasia de suas imagens. A floresta útil na sua diversidade e por seus produtos
e a floresta como imagem para ser consumida por todos, a floresta visível para o
consumo global.
47 Ibid., 2019, p. 111.

154
O material utilizado é o documentário disponibilizado no Youtube e no canal
Futura, “Guerreiros da Floresta”, realizado pela Santa Rita Filmes, com o relato
dos caciques Ninawa Inu Bakê, dos Huni-Kuin; Almir, dos Paeter-Suruí e David
Kopemawa, dos Yanomami. Versalo (2019) mostra que “o Brasil possui 8.467
produtoras independentes cadastradas na Ancine24, isto é, aptas à captação de
recursos – por meio de fomento direto ou indireto do Estado – para a realização
de produções audiovisuais.” O que nos leva a um universo disperso de produções,
diferente dos modelos dos meios regulados pela mensuração da audiência, para um
lugar difuso da cultura do audiovisual e de forma mais específica do merchandising
social impulsionado pelo ativismo ambiental e formas de vidas impulsionadas pela
promessa publicitária.
Na pesquisa OBITEL BRASIL 201948, dirigida por Maria Immacolata Vassallo
de Lopes, constatou-se que “o acesso dos brasileiros à internet segue em ascensão,
como temos apontado nos últimos anuários. De acordo com o IBGE2149, a conexão
via celular é a preferida de 94,6% dos usuários, e a pesquisa ainda aponta que 76,4%
desses acessos foram realizados para assistir a vídeos, programas, séries e filmes. O
país está em quarto lugar no ranking mundial de usuários de internet, atrás apenas
de EUA, Índia e China, respectivamente” (LOPES, 2019, p. 82).
A relação entre quantidade e qualidade assume um lugar de importância nesta
discussão, pois se vai encontrar um mega volume de dados disponíveis para a mine-
ração para filtros de qualidade, em detrimento da grande quantidade de arquivos
acionados não apenas por mecanismos de seleção mas, pela natureza direta da repro-
dutibilidade técnica no processo de viralização. Ao mesmo tempo que a visibilidade
permite a disponibilização, permite também a formação de um subterrâneo de
contrainformações, in-comunicações, sofismas, contrariando princípios científicos,
sociais e culturais e possibilitando a manipulação e repercussão de acontecimentos
outros, como se fossem verdadeiros e pelas notícias falsas.
No documentário Guerreiros da Floresta50, encontramos a forma direta do
discurso de resistência pela preservação da floresta e da cultura indígena pelo ca-
cique Ninawa Inu Huni- Kuin e Davi Kopenawa dos Yanomami e uma narrativa
48 Documento disponível em: https://icabrasil.org/2016/index.php/mediateca-reader/obitel-
-2019-modelos-de-distribuicao-da-televisao-por-internet-atores-tecnologias-estrategias.html. Acesso em 28
out. 2022.
49 Para mais informações, ver: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/pt/agencia-home.html. Acesso em
28 out. 2022.
50 Cf. <https://canaisglobo.globo.com/assistir/futura/guerreiros-da-floresta/v/7487407/> Acesso em
28 out. 2022.

155
de resistência pelo enfrentamento na forma da economia local trazida pelo cacique
Almir dos Paeter-Suruí. O documentário sintetiza uma proposição midiática em
textos curtos no início do vídeo: “Esta série conta a luta de três líderes indígenas,
reconhecidos pela ONU, mas perseguidos por fazendeiros e mineradores, eles são
ameaçados de morte por lutarem contra a invasão de seus territórios na Amazônia”.
E na sequência: “Seus povos têm a mesma luta, a preservação da cultura indígena,
somada à sustentabilidade da Amazônia”51.
A promessa publicitária está definida aqui. O lugar de reconhecimento destas
populações pelos fórum globais, no caso a ONU e o discurso da sustentabilidade
como estratégia dos mercados globais. Em que pese o discurso da sustentabilidade
buscado pelo ativismo ambiental e social o documentário parte do lugar de fala de
quem de direito, de quem pode dar crédito a promessa de um mundo, como um
gênero, cujo grau de existência condiciona-se a experiência, participação ou adesão
do receptor. Ao mesmo tempo, em que o vídeo, faz parte deste discurso ativista,
apresenta-se também como uma narrativa de resistência, na forma de realização,
pressupondo a livre fala dos atores sociais e como uma peça que fala por si só,
como metalinguagem.
O documentário divido em três histórias narra na perspectivas dos atores
indígenas como narradores da vida nas suas comunidades. O percurso linear da
narrativa permite chegarmos a cada uma das terras indígenas usando os rios e as
estradas, passando pelas cidades, construindo-se um percurso de entendimento
objetivo de cada história. A imagem central segue a narrativa mostrando os ambien-
tes da floresta passando por planos gerais dos lugares e detalhes das pessoas e dos
narradores. Não se tem outras falas senão a dos narradores guerreiros. A perspectiva
do guerreiro é quebrada pelo discurso de conciliação proposto por cada um deles,
pela preservação utópica da floresta.

A midiatização da cultura amazônica

Podemos pensar numa ação midiática que envolve os efeitos que a mídia
busca na ordem do acontecimento, o jornalismo e as mídias sociais e o mundo
publicitário oferecido pelas estratégias do marketing da floresta que amplia a ideia
51 Ibid., 2019.

156
de sustentabilidade na divulgação das economias locais e do consumo categorizado.
Por uma narrativa ampliada pela imagem realidade e imaginário e ficção se fundem
numa linguagem ágil da promessa publicitária. A fala das lideranças indígenas é
o fio condutor do documentário, dividido em três histórias, cada um contando a
história do seu povo na linguagem documental do vídeo acompanhando as imagens
auxiliares da narrativa. Recortamos as falas dos atores indígenas que representam
estas discusõe teóricas propostas até aqui. A trilha sonora busca a música tradicional,
no mesmo modelo estereotípico que a publicidade oferece sempre. Sons de sopro
e leve batuque buscando a identificação com os sons da floresta.
O primeiro guerreiro da floresta que o documentário traz, é o cacique Ninawa
Inu Baquê Huni-Kuin. Ele fala incialmente do nome de batismo do seringalista
que escravizou o seu povo, para afirmar o seu nome dado por seu avô e que ele
precisou de dois anos para tê-lo reconhecido, como nome social. Ninawa defende
a sustentabilidade de forma direta pela proteção da floresta e do seu povo, reconhe-
cendo ao mesmo tempo as populações caboclas que vivem no entorno e dependem
dos recursos florestais.

Fig. 1 - Imagem que abre a Narrativa do Cacique Ninawa Inu Baquê Huni-Kuin

Fonte:Documentário “Guerreiros da Floresta” (2019)

Meu nome é Ninawa, nome que foi dado pelo meu avô
hoje tem 102 anos de existência e ele me deu esse nome em

157
homenagem ao avô dele que é de uma família de que vem
de líder e esse nominal ao nome que representa o homem da
floresta, né pode ser traduzido também como o pai da mata,
o chefe da floresta.

Eu sou da região do alto Envira que é o rio maior né naquele


estado do Acre é o berço da origem do povo Huni-Kuin tam-
bém e na década de 60 70 quando começou a ser explorado
em gás então muito de muitos líderes meu povo eles migraram
para outros Rios né e aqui o Rio Purus que é exatamente esse
rio ele é um dos rios que habitaram pelo meu povo né geral
São 44 aldeias e divide em três povos Huni-Kuin, Madrija e
Jaminawa, que é o povo Huni-Kuin, o povo mata, nós temos
aqui 22 aldeias Huni- Kuin.

A relação principal que se observa é a afirmação do lugar, de onde nós so-


mos, dos rios e da floresta, o povo da mata, que se estende para a relação com as
populações tradicionais, quando ele fala da BR-364. O lugar político requisitado
pelos indigenas é o lugar de preservação de suas terras. E na sequência o projeto
de educação que ele destaca como forma de enfrentamento dos problemas de
convivência com as populações das cidades.

como ser humano todo mundo precisa estar vivendo bem


precisa ficar defendendo o seu direito precisam criar sua sus-
tentabilidade junto. Quem tá em Brasília no congresso nacional
não sabe o problema que acontece aqui não tem uma colimento
não existe uma política pública dentro do município nem do
governo do Estado nem do governo federal uma política de
assistência mesmo social para essas pessoas que quando ela
sair da sua comunidade para a cidade elas tem uma alma e
obrigam a sair da comunidade ou é uma doença ou resolver
um problema do seu documento né e acaba quando ele chega
aqui na cidade o dinheiro que ele veio gastou de lá para cá
ele acaba comendo aqui e acaba não dando para comprar o
combustível para retornar então ele fica acampar daqui dois
três meses esperando juntar o dinheiro para comprar a gasolina
e voltar pra terra.
Estamos na BR-364 aqui no estado do Acre né sai daí da cidade

158
de Rio Branco vem pela município de Bujari Sena Madureira
Manoel Urbano Feijó Tarauacá chega até Cruzeiro do Sul e logo
que ela foi aberta indiretamente no estudo sobre a rima que
foi o primeiro estudo que foi feito de impacto socioambiental
dentro dos territórios indígenas ela afetou a terra indígena do
ralinho que atende namorando maquiar a terra indígena kaxi-
nawá a terra do campina a terra indígena colônia 27.

Desde o começo foi a questão da bebida alcoólica né as pró-


prias pessoas que trabalhavam levar bebida alcoólica para as
comunidade ouvir até a própria a intenção da prostituição das
mulheres e muitas pessoas migraram para essa região abriram
fazenda redor dos territórios indígenas elas acabam que tentan-
do sobreviver também sobrevive dos territórios tipo faz a caçada
dentro dos escritórios da retiros madeira dentro dos territórios
no local que tem esses caminhões que passam o veado a anta
já não existe mais nesse espaço porque já fugiram daqui.

Todos os projetos eles tem os seus lados positivos e o seu lado


negativo o bom é que você pode fazer essa viagem é porque isso
fazia de avião né aí hoje se faz pela estrada esse é o lado que é
o lado bom porque as pessoas podem um produto pequeno
produtor tem oportunidade disse que a sua produção mas se
você levar isso numa auto-análise mesmo o impacto é muito
maior do que o benefício para comunidade.

No início dos anos 90 o preconceito era muito grande para os


povos indígenas né porque as pessoas eram os caboclos você
não sentava no restaurante para comer porque o proprietário
não tenho tia a gente sente estrangeiro dentro de nossa pró-
pria casa né e aí foi um certo trabalho dentro da educação
das escolas das comunidades se cria um projeto político pe-
dagógico é criado pelos próprios professores e uma das ações
eram fortalecimento da Cultura a identidade cultural e isso
através da escola se expandiu em toda a comunidade e aí vou
ver o vários outros atores da comunidade o próximo cacique
da comunidade próprio líder espiritual da comunidade e as
mulheres e a juventude de hoje a gente tem orgulho de viver
como o único.

159
O documentário mostra na sequência a sua transfiguração espetacular de ho-
mem comum que iniciou a narrativa sobre o seu povo, para o líder Huni-Kuin,
trocando a roupa que vestia no início do vídeo, falando da mundaça do nome e dos
sobrenomes dados pelos seringueiros, José Carvalho Alberto Nunes, para o seu nome
social, Ninawa Inu Baquê Huni-Kuin, o primeiro indígena a conseguir no Brasil
este reconhecimento. Imagens feitas de cima mostram a floresta com detalhes para
as árvores, animais e a vida na aldeia Huni-Kuin. O proscesso de caracterização do
ator social se dá pela visualidade como forma espetacular da visibilidade. Não se dá
somente pela troca das vestes indígenas, mas pela transformação do protagonista,
a pintura, o cocá e a expressão. Um close do seu rosto, e a sua enunciação: Eu sou
Ninawa Huni- Kuin, eu sou um guerreiro da floresta.
O segundo guerreiro é Almir Surui que fala do projeto de 50 anos do seu povo,
mudando a orientação inicial que tinham de povo madereiro para o uso da tec-
nologia como ferramentas
de educação para a proteção da terra e para as agroflorestas. Ele começa afir-
mando: “o território Sete de Setembro do povo Suruí é uma das terras indígenas
mais que desmatou né imagina que eles que não lutam que não tem plano de
desenvolvimento para impedir isso.”

Fig. 2 Imagem que abre a narrativa do cacique Almir Suruí

Fonte: Documentário “Guerreiros da Floresta” (2019)

160
Terra sete de setembro é um das terras indígenas mais que des-
matou. Imagina que aqueles que não luta que não tem plano
de desenvolvimento para impedir todos nós somos responsáveis
pelos nossos trabalhos todos nós acreditamos que o nosso traba-
lho é importante para o mais moço todas nós acreditamos que
a gente pode contribuir para o bem comum de todos através
da nossa luta e através da nossa trabalho que acreditar no que
floresta tem papel importante para isso acontecer.

Você tem aqui que área do apoio a produção de agricultura e


cacau nossa aldeia aqui onde se planta o café castanha e cacau
aqui então onde a gente armazenamos produto é esse que é
máquina de café pão de nós buscamos café e vendendo café
descascado e hoje nós estamos de plano de negócio é vender
para para Suíça.

Então esse aqui é viveiro onde nós produzimos mudas e para


ser implantado aqui na terra indígena sete de setembro são
todas nativas e reflorestamento aonde a floresta foi degradado
e também trabalhamos com água floresta e estamos esse mês
começar a produzir as mudas para ser plantado agora final
do ano e esse ano é ano passado e próximos anos a gente está
plantando mais de 15 e 20 mil e antes eram poucos né então
a gente criar estratégia esse plano que a gente possa plantar.

Almir estudou biologia e fala do uso da sua experiência aprendida na univer-


sidade com o saber que herdou do seu povo. Fala com sotaque, mas expressa-se de
forma clara sobre a mudança social do seu povo pelo o uso da tecnologia, como
forma de proteção á floresta e a cultura.

Bom, essa aldeia Lapetanha, dos clãs Paeter-Suruípara nós claro


do povo Paiter-Surui nossa aldeia aqui que nós vivemos e
quando 95/96 eu propôs que que nós criasse o plano de 50
anos que nós tivesse um diagnóstico profunda problemas e
de potenciais no território para que a gente possa então criar
e respeitar os critérios como deveriam fazer a gestão do nosso
território de médio e longo prazo como eu tinha eu tive que
buscar parceiros da sociedade civil do governo distâncias que

161
poderiam acreditar e ajudar e avançar na construção desse
plano 50 anos nossa missão é condenado e decidido pelo o
tempo eu espírito das florestas pelo espírito da natureza eu
tenho aprendido muito com isso que eu tento transformar
esse crítica sobre minha liderança sobre o ano que eu criei se
realmente tenta lidar com responsabilidade social ambiental e
econômico e tecnológico todo ferramentas que podem mover
o mundo que pode mover uma sociedade justo eu me sinto
cada vez mais responsável de fazer isso quando eu vejo terri-
tório isso está sendo destruído sendo entregue para as pessoas
que têm interesse de explorar o território meio ambiente de
maneira errada.

Almir Suruí também se prepara com a pintura e as vestimentas do seu povo,


mas diferente do líder Huni-Kuin, ele fala para um entrevistador, sempre em-
punhando o celular, acompanhado das imagens de cima, da floresta e da vida na
aldeia. Termina falando direto para o espectador: Eu sou Almir Suruí, eu sou um
guerreiro da floresta.
O terceiro guerreio é Davi Kopenawa, líder dos Yanomami. Fala da sua terra,
sua casa, sua gente, como o melhor lugar, como o lugar que tem que ser cuidado
e preservado para o seu povo viver.

Fig. 3 - Imagem que abre a narrativa de Davi Copenawa cacique Yanomami

Fonte: Documentário “Guerreiros da floesta” (2019)

162
Hoje o povo indígena está preparado. Não é como antigamente
os antepassados meus liderança não tava preparado não sabia
nem falar reclamar nós homens das florestas florestas nós es-
tamos de olho mas não estamos esperando quem vai proteger
a nossa pulmão do mundo, somos nós.

Estamos saindo aqui cidade de Boa Vista na direção terra Ya-


nomami, Watori. A Serra do Vento a minha casa que eu moro
lá. Família, parentes, os pajés. Muita gente da cidade não
conhece, não conhece a realidade dos indígenas do Brasil,
eles só conhecem o nome, mas nas aldeias. Olhando de perto
onde esse povo mora, isso ele não conhece.
Por isso escolhi esse lugar para a comunidade ficar protegida.
Não tem garimpo.

Tô com saudade minha casa muito mesmo quando você vir


aqui na minha casa eu fico muito feliz por tá vivo. Eu vou sair
da cidade para vender para defender a direito a terra inteira
nossa a mais 500 anos atrás era um lugar dos povos indígenas
do Brasil mas é muito bonito perfeito para o Terra plantada
floresta e o povo indígena vive. Nós somos guerreiros da flo-
resta mesmo.

Davi fala do aprendizado que o povo Yanomomi sofreu com a violência ao


longo do tempo e diz que agora eles estão preparados, tem a consciência que quem
vai proteger a floresta são eles. Volta a falar da sua casa, o lugar ideal, Watori, aqui
a promessa publicitária se torna real, o lugar de viver, o lugar onde a comunidade
está protegida.

Considerações finais

A promessa publicitária como forma de comunicação, configura-se como se


pode ver, no discurso da sustentabilidade como possibilidade de manutenção e
para a proteção das terras indígenas, pela emancipação de suas populações e de

163
populações tradicionais que vivem no entorno, a partir do uso dos recursos da
floreta, associado a projetos agroflorestais, como é o caso do projeto de 50 anos
dos Paeter- Suruí. Formas de vida identitárias, processos de identificação, trafegam
na oferta da cultura de consumo conduzidos pela espetacularização como lingua-
gem, na sua natureza expressiva, processos de negociação e de sociabilidade nos
ambientes midiáticos, o bios virtual que Muniz Sodré apresenta, também como
lugar de mercado. A Amazônia da promessa publicitária, é uma Amazônia ideal, o
lugar do natural, de uma cultura da floresta e suas populações.
A cultura amazônica assimila a perspectiva de identidade no sentido da for-
mação clássica entre a violência colonial e pós-colonial e o patriarcalismo para se
oferecer na promessa publicitária, como cultura do consumo, introduzida pelo
capitalismo financeiro pela sustentabilidade e uma espécie de forma alternativa de
vida em consonância com a natureza e de forma mais direta com a floresta. Esta
identidade busca suas formas de identificação, requisitando as questões de lugar
como nos mostra Paes Loureiro no sentido de uma identidade amazônica, ao
mesmo tempo em que propõe uma identidade denegada, do caboclo e assimilada
das novas populações globais engajadas, como propõe Castro (2013), entre as
formas presumidas pelo imaginário como matriz da cultura da floresta, das águas
dos rios, e do seu povo.
Os guerreiros da floresta protagonizam via linguagem espetacular, como enun-
ciadores reais, a destruição da floresta, por uma perspectiva paradoxal mostrando
que a saída possível estar na sua preservação pelas mãos do mercado global, como
bem representa a fala do cacique Almir Suruí quando fala da plantação do café
para vender na Suíça. Por esta perspectivas transformam-se em ativistas ambientais
enfrentando madeireiros, garimpeiros, grileiros, autorizados pelo governo de extre-
ma direita que se instalou no Brasil em 2019, em um processo constante de defesa
de suas terras sofrendo constantes ameaças de morte, muitas efetivadas ao longo
do tempo, como é caso do cacique Paulinho Guajajara assassinado recentemente.
A posição dos líderes indígenas em defesa e proteção da florestas e dos seus
lugares, cultura, e identidades está na contramão do avanço das atividades preda-
doras como a mineração, a construção de hidrelétricas, estradas e do agronegócio
comprometendo a floresta e suas populações. Uma forma de entendimento que ao
mesmo tempo que se aproxima do ativismo ambiental global, como aparece na fala
de Ninawa Huni-Kuin e de Davi Kopenwa em defesa da terra, busca adequar-se
ao modelo do mercado capitalista da agrofloresta, na fala de Almir Suruí.

164
A forma comunicação aparece no audiovisual quando busca mostrar a vida
destas comunidades identificando as diferenças que se impõem pela cultura em
contraponto a sua midiatização, ao mesmo tempo que se aproxima de um discurso
descolonizado, pela via espetacular, como uma forma de diálogo possível, pela
informação como uma espécie de produto final, nestes espaços interconectados.

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166
A ARQUITETURA VERNACULAR E AS PAISAGENS
AMAZÔNIDAS: ASPECTOS CONSTRUTIVOS E
CULTURAIS E O HABITAR COMO POESIA
Vivian Soares52
Valdecir Júnior53

Introdução

Este artigo busca por meio de revisão bibliográfica compreender a relação


que existe entre o ser com o espaço e com a arquitetura nos aspectos culturais
e construtivos e a poiesis do habitar. A partir desta relação, há a necessidade de
se observar as formas primitivas de proteção, especialmente na convivência com
uma paisagem que evidencia uma correlação de habitar e viver em sintonia com a
natureza, voltada para a poética do habitar no mundo. Na Amazônia esta relação
se evidencia entre a arquitetura colonial e a arquitetura das populações tracionais
por uma predominância quase que obrigatória do ambiente, em especial o am-
biente da águas e da floresta como evidentes referências ao imaginário amazônico.
É intitulada arquitetura vernacular o típico modelo de construção no qual são
empregadas técnicas e recursos regionais, projetados e executados de uma maneira
em que a sua concepção resulte em uma edificação adaptada a identidade do local
onde foi construída, atendendo a todas as necessidades humanas e a demanda
estabelecida pelo clima local, construído pelos próprios nativos da região, uma
obra sem arquiteto.
A questão motivadora para a construção dos primeiros abrigos ao redor do
mundo foi a autopreservação, bem como, a necessidade humana de se abrigar
contra as intempéries, com isso, as soluções para a necessidade de autopreservação
52 Discente em graduação em Arquitetura e Urbanismo na Faculdade Ideal (FACI), Belém, Pará.
53 Discente no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia. (PPGCOM/
UFPA)

167
evoluíram com o tempo, transformando-se em exemplos de arquitetura vernácula,
conhecida também como popular ou tradicional. Essas estruturas são adequadas
às limitações econômicas de cada região por serem simples, acessíveis e autôno-
mas, em sua maioria realizada pela pessoa que viverá nela, além da utilização de
materiais extraídos da natureza, portanto, com menos degradação, muito esforço
e habilidade. Uma arquitetura cheia de histórias, culturas e poesias de identidade
de um povo no seu habitar.
Pensar a arquitetura como processo social e cultural é uma maneira de com-
preender os entrelaços estabelecidos na construção vernacular, por isso, entender as
interfaces culturais é entender as relações organizacionais com o ambiente no qual
se está inserido. A partir de uma leitura histórica, busca-se neste artigo identificar as
relações sociais nos ambientes amazônicos (urbano e rural) e entender a poética do
habitar e compreender os processos sociais desenvolvidos a partir desse imaginário.

A arquitetura colonial na Amazônia

Em diversas cidades brasileiras são encontrados edifícios coloniais com traços


arquitetônicos ocidentais, e ainda hoje alguns são usados como museus, restaurantes
e comércios. No Brasil, a arquitetura colonial é definida como a arquitetura realizada
durante os anos de 1500 a 1822 e durante o período colonial as correntes estilís-
ticas e culturais foram importadas da Europa e adaptadas às condições materiais
e socioeconômicas locais, entretanto, não ao clima. Nos dois primeiros séculos é
visível o protagonismo econômico do Nordeste na manutenção das relações políticas
e econômicas com a Metrópole, devido à atividade da cana-de-açúcar. Essa ordem
social serviu de base para o processo de transculturação que resultou do embate de
matrizes culturais múltiplas, que são as culturas indígenas já existente na região, a
cultura portuguesa, trazida da Europa pelos colonizadores, e a cultura dos povos
africanos trazidos como escravos.
Ao longo dos séculos, a transição entre os demais estilos e suas épocas se
realizou de maneira progressiva culminando em um “desencontro de culturas”,
como é entendido por muitos pesquisadores, entre eles, o escritor indígena Kaká
Werá, o qual - em uma entrevista à revista Isto É (1999) disse que “a semente desse

168
desencontro está numa sociedade que tem na sua estrutura de cultura a questão
do ter e encontrou uma cultura aqui voltada para o ser”, na qual resultou numa
sobreposição cultural dos europeus aos nativos da região, que representou uma
quebra na essência cultural.
A história indígena é um capítulo que foi negligenciado pela história social
da Amazônia, isto porque, embora houvesse uma resistência indígena aguerrida e
do conhecimento reunido da região, pouco se valorizou, mesmo com fauna, flora,
navegações, clima, agricultura e saberes alimentares transmitido por gerações. Ao
longo dos séculos de colonização os povos indígenas foram vistos, na perspectiva
dos colonizadores, como passivos, inferiores, pagãos, submissos e incultos criando
uma narrativa que visava a categorização, nomeação e classificação de culturas, ten-
do como base a cultura ocidental, na qual é entendida, supostamente, como uma
civilização culturalmente superior. Nesse contexto, ressalta-se que os procedimentos
de colonização portuguesa proporcionaram a formação de domínios coloniais, que
pela lógica mercantilista e também religiosa, acabaram determinando a subordi-
nação sociocultural, econômica e política do “Novo Mundo”, e pela natureza dos
processos de transformações intensos vividos pelos indígenas, os quais produziram
descontinuidades culturais e desterritorialização, dentre outros estorvos que foram
e depois de séculos continuam existindo na sociedade contemporânea
A repercussão desses fatos contribuíram para a transformação do espaço físico e
cultural das terras então colonizadas pelos portugueses, que embasaram sua cultura
ocidental numa cultura indígena existente na região, resultando em um processo
de hibridação que abrange diversas mesclas interculturais entre as etnias envolvidas
(negra, branca e indígena), apresentando uma prevalência cultural portuguesa,
devido à herança ideológica posta ao longo de cinco séculos de imposição cultural
(CANCLINI, 2000).
Países europeus, como França, Inglaterra, Holanda e Portugal, usaram de suas
arquiteturas para influenciar as construções de paisagens antrópicas nas cidades
amazônicas, muitas obras foram planejadas para as cidades europeias e reprodu-
zidas no norte do Brasil, até então colónia de Portugal. Tudo era pensado para
o colonizador europeu, assim como, vestimentas - inadequadas para o clima da
região -, habitações, plantações e planejamentos urbanos.
Nessa época, a arquitetura vernacular, como hoje é conhecida, dominava o local,
com respeito e sensibilidade às condições locais geográficas, como clima e vegetação,
e construções com elementos ofertados pela natureza e técnicas - diferentes em cada

169
região - passadas por gerações a gerações, e um expressionismo sentimental e de
aspectos identitário e culturais, ou seja, se cada região possui suas singularidades é
indubitável entender que questões tecnológicas, econômicas, históricas e ambien-
tais refletem essa arquitetura. Então, cabe-nos ressaltar que uma interpretação da
Amazônia realista diverge de uma percepção não homogênea e monótona a que
é associada, mas sim em suas diversas paisagens e posicionamento do homem em
meio ao espaço que ele ocupa nesta região voltada para a várzea, terra firme e os rios.
Ailton Krenak (2019) aborda em seu livro, “Ideias para adiar o fim do mun-
do” com certa ironia a forma que os brancos adotam para viver, abrindo mão da
liberdade de estar em contato e em harmonia com a natureza, respeitando-a como
mãe. “A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas
e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram
arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador
chamado humanidade” (KRENAK, 2019. p. 14).
Nesse trecho, o autor fala dos vínculos profundos que os indígenas têm com a
memória ancestrais e com as referências de identidade, diz que os povos indígenas
não se veem separados da natureza, mas a veem como sagrada, e isso dá sentido à
vida e prazer de viver. Por esse motivo, as montanhas, os rios e as árvores são tratadas
com todo respeito, como sendo divindades. Nessa troca de afeto com a natureza,
eles recebem e dão presentes entre si. Ainda mais, o autor diz que os antepassados
indígenas usaram a criatividade e a poesia para resistir à barbaridade da civilização,
à integração para entrar no “clube da humanidade”. Com isso, conseguiram adiar
o fim do mundo e preservar sua cultura.

A amazônia enquanto poética do saber e do imaginário popular

A compreensão contemporânea da Amazônia surge a partir de esforços de


autores naturais desses estados de se defenderem de estereótipos construídos sobre
a região, principalmente sobre a falta de fatores até então tidos como civilizatórios,
como: cultura, saberes acadêmicos e infraestrutura social, econômica e política.
Desde a chegada dos exploradores portugueses a região amazônica passa por um
processo de apagamento histórico social, político e simbólico, porém mais do que

170
isso, o desenvolvimento do exótico foi construído de forma avassaladora e que
até hoje sofremos consequências socioeconômicas dessa exotização, isso porque,

Desde as épocas remotas dos grandes exploradores, dos cro-


nistas viajantes, dos naturalistas que percorreram até os dias
de hoje, enfim, para o viajante que vem de fora, contemplar
a Amazônia exige deles um verdadeiro ritual: desejo intenso,
ideias, planejamento, recurso financeiro, tempo, motivação, ato
de presença para contemplá-la e vivê-la. (PAES LOUREIRO.
1995. p. 61).

Segundo João de Jesus de Paes Loureiro (1995) a relação entre o olhar do natural
e o olhar do viajante para a Amazônia é processado de maneiras distintas, enquanto
o primeiro já constrói suas relações baseadas na preservação do espaço e da natureza,
e na interação de coexistência dos sujeitos com o meio, o segundo passa por um
processo de apreciação da imensidão da Amazônia, dos rios volumosos e cheios
de curvas em meio às planícies, às abundantes variedades de fauna e de flora que
misturam o verde e o azul a perder de vista na linha do horizonte.
Há diferenças na forma com que as vivências experienciadas na Amazônia
urbana e na Amazônia rural se apresentam socialmente, porém, há também uma
mutualidade na qual essas duas faces culturais amazônidas se interligam e se ex-
pressam. Culturalmente diversa, a Amazônia não se caracteriza por um espaço
homogêneo, seja por seu porte físico ou por suas características culturais. A diver-
sidade reinava e ainda reina na região, não somos um povo, somos diversos povos
que unidos formamos uma região culturalmente diversa.

Apesar da aparente homogeneidade geográfica, caracterizada


pela presença de rios caudalosos e de uma floresta sempre verde
(...) toda essa terra imensa, além de ter pouca gente, possui
diversidades étnicas e cultural, embora a economia não divirja
muito cada Amazônia tem, entretanto, as suas características
próprias. (BATISTA, 1976, p. 32).

Embora Djalma Batista cite uma Amazônia homogênea geograficamente, a


Amazônia é, sobretudo conhecida pelo seu conjunto de ecossistemas que envolvem

171
a bacia hidrográfica do rio amazonas e sua floresta, como uma das maiores regiões
de biodiversidade do planeta e de maior bioma Brasileiro. Ademais, a Amazônia é
o lugar de diversidade tanto na fauna e na flora, como também de povos étnicos
existentes nesta região.
Os rios amazônicos possuem aspectos labirínticos e voluptuosos e que assu-
mem uma relevância fisiográfica, como também forte influência na vida cotidiana
dos naturais da região. Leandro Tocantins (2000, p. 78) sintetiza o controle das
águas sobre o modo de vida na Amazônia, quando afirma, “(...) onde a vida che-
ga a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos
destinos humanos”. Os rios fazem parte da paisagem, e também, de quem mora
a sua margens, cultivando a vida ali existente, de forma que o rio, apesar de ser
uma parcela da paisagem, ele é de grande importância, logo, sem ele haveria uma
lacuna existencial.

Dependendo do rio e da floresta para quase tudo, o caboclo


usufrui desses bens, mas também os transfigura. Essa mesma
dimensão transfiguradora preside às trocas e traduções simbóli-
cas da cultura, sob a estimulação de um imaginário impregnado
pela viscosidade espermática e fecunda da dimensão estética.
(...) Essa transfiguração do real pela viscosidade ou impreg-
nação do imaginário poético, acentua uma passagem entre
cotidiano e sua estetização na cultura, através da valorização
das formas autoexpressavas da aparência, nas quais o interesse
de que observa está concentrado. (PAES LOUREIRO. 1995.
p. 59).

Para Paes Loureiro, essa correlação entre os povos amazônidas e a natureza


se dá por meio das atividades rotineiras cotidianas nesses espaços rurais, com a
pesca, a agricultura e colheita de frutos, mas não somente, há também a relação
do imaginário e sua poética-estetizante. Um olhar incorporado ao meio, cujo
entendimento somente os naturais percebem sobre a região, e que ocorre ao se
perceber enormes distâncias, não no modo contemplativo, mas ao se deixar fazer
parte dessa paisagem, como uma parte de um todo e que ao final compreende-se
e se iguala a natureza noprocesso de coabitação.

É graças a esta forma peculiar do olhar do homem da região

172
(que a Amazônia, que sempre se constituiu para os viajantes
e estudiosos um espaço delimitado de geografia e cultura),
tornou-se também uma extensão ilimitada às instigações do
imaginário. Por essa via prazerosa, o homem da Amazônia
percorre pacientemente as inúmeras curvas dos rios, ultra-
passando a solidão de suas várzeas pouco povoadas e plenas
de incontáveis tonalidades de verdes, da linha do horizonte
que parece confinar com o eterno, da grandeza que envolve o
espírito numa sensação de estar diante de algo sublime. (PAES
LOUREIRO, 1995, p. 59).

Esse olhar construído pelo sujeito amazônida representa o imaginário local,


e é posto de diferentes formas em como esses indivíduos se relacionam com a
natureza, mas principalmente com o estético. A observação do ambiente descrita
por Paes Loureiro (1995) o devaneio do natural é o que proporciona para esses
indivíduos a sua conexão com a natureza, além da utilização dos recursos naturais
para sua existência.
O olhar do estrangeiro-viajante e estudiosos sobre a Amazônia perpassa um
maravilhamento, um olhar perplexo diante da imensidão sob seus olhos: rios cau-
dalosos e floresta que se perdem em direção ao horizonte no qual se exige recursos
e tempo para investigar. O natural se mistura nessa paisagem e se percebe nela,
poeticamente conectado com sua realidade e a sua imensidão.

Percebe-se nas relações estetizantes com o real da Amazônia,


que há um maravilhamento do homem, o que é próprio de
quem está diante de algo que é imenso e diante do qual a
pequenez do homem o evidencia. Pequenez que é superada
pelo homem natural através do imaginário que a transforma
e permite a articulação com a natureza, dentro de uma relação
em que estão presentes as categorias perto-longe, convivência
e estranhamento. (PAES LOUREIRO. 1995. p. 61).

A cultura ribeirinha predomina em relação às formas de habitação. Sua trans-


missão oralizada e difundida de geração em geração em suas regiões, em forma de
poesia, é “uma essência de linguagem produzida pela imaginação, vindo sempre
acompanhada de prazer, mesmo no sofrimento.” (PAES LOUREIRO, 1995. p.

173
0). Para o poeta, o natural expõe o imaginário que compõe o social, que constrói
relações entre os indivíduos, e desses indivíduos se estabelece os rituais sociais,
“revelando a beleza escondida do mundo, a poesia alarga o círculo da imaginação,
linguagem e repercussão na cultura, ela torna, inclusive, uma época mais memorável
do que outra” (PAES LOUREIRO, 1995. p. 50).
DARDEL (2001) apud (HOLZER (2010) refere-se à paisagem como “a reação
das interações dos espaços telúricos, aéreos, aquáticos e o conrstruído.” Nesse senti-
do, compreende-se como paisagem todos os elementos geográficos que circundam
o ser humano, e apesar de apresentar a totalidade estética, apresenta também a
sentimental acessível aos sentidos humanos, possibilita a coexistência do indivíduo
e sua ligação com a terra produzindo uma paisagem com afetividade.
A cultura está presente na formação social de uma região, cuja poética está
presente no processo de continuidade cultural. A comunicação na Amazônia é
marcada por sua oralidade, transmitida entre gerações. Segundo Paes Loureiro
(1995) existem dois grandes espaços sociais na região, o urbano e o rural, marcados
por suas características próprias e independentes, mas que possuem na região arti-
culação mútua tendo assim reverberações culturais que os interligam e os mantêm
conectados.

A cultura do mundo rural de predominância ribeirinha consti-


tui-se na expressão aceita como a mais representativa da cultura
amazônica, seja quanto aos seus traços de originalidade, seja
como produto da acumulação de experiências sociais e da cria-
tividade dos seus habitantes. Aquela onde pode ser percebida,
mais fortemente, as raízes indígenas e caboclas tipificadoras de
suas originalidade, florescente ainda em nossos dias. Contu-
do, é preciso entender que a cultura do mundo ribeirinho se
espraia pelo mundo urbano, assim como aquela é receptora
das contribuições da cultura urbana. (PAES LOUREIRO.
1995. p. 55).

A Amazônia é marcada por seu imaginário ribeirinho que ecoa para os espaços
urbanos, trazendo lendas e encantos, mitologias e histórias para dentro dos centros
urbanos, explicitando Belém e Manaus como as duas maiores metrópoles da região
norte. Para Paes Loureiro, essa poética “reflete predominantemente a relação do
homem com a natureza e se apresenta imersa numa atmosfera em que o imaginário

174
privilegia o sentido estético dessa realidade cultural.” (1995. p. 55). As relações
que nós, amazônidas, estabelecemos com o espaço urbano e com o espaço rural
possuem traços da cultura ribeirinha, pois a poética do espaço urbano se apresenta
na materialidade dos processos culturais cotidianos, como alimentação, transporte
e a relação com o ambiente e o que ele tem a oferecer. Essa materialidade também
aparece na forma estrutural das construções das quais abordaremos no próximo
tópico.

Arquitetura ribeirinha e sua relação sociocultural e ambiental

No viés analítico da arquitetura indígena, seu contexto histórico serve para


compreendermos a adaptação do ser no ambiente amazônico, e mesmo que a ar-
quitetura ribeirinha se distancie em alguns aspectos, entre eles o espacial, podemos
observar uma total integração entre a arquitetura indígena e as relações sociocultu-
rais de cada etnia, além de uma estrutura de ocupação socioespacial que incorpora
suas crenças religiosas e de seus familiares, assim como, de seu povo, o que nos
faz compreender a relação do ser com a floresta e o rio, e o que eles oferecem,
atendendo as soluções de questões que vão além da primordialidade de abrigo.
Na arquitetura ribeirinha é notório perceber a conexão com a arquitetura
indígena em uma esfera fundamental, referindo a adaptação dos materiais cons-
trutivos, os quais são retirados da floresta, de forma menos agressiva, entretanto, a
composição espacial da habitação é bem distinta das habitações indígenas. Em suma,
os povos indígenas apresentam uma relação espacial não apenas com a casa, mas
também, com a aldeia em si e com a natureza, revelando os hábitos de cada etnia
e suas simbologias relativas à cultura. É fundamental entendermos a arquitetura
indígena para compreender o processo de formação da arquitetura ribeirinha e de
seus aspectos socioculturais e ambientais.

O homem da Amazônia, o caboclo, vivendo fora do contexto


das grandes cidades - Belém e Manaus especialmente - não
se encontra completamente integrado à moderna sociedade
de consumo, suprindo parte de suas necessidades cotidianas

175
pela abundância dos rios e da floresta. (PAES LOUREIRO,
1995. p. 57).

Para Paes Loureiro, as vivências amazônidas suprem as necessidades do ser, onde


os rios e a floresta oferecem a habitação, a agricultura e o saber, em que a natureza
e o indivíduo se identificam e se respeitam, demonstrando uma sustentabilidade
ambiental. Nesse contexto, é possível entender que a relação cultural com o meio
ambiente podem resultar no cuidado, nessa sustentabilidade, enquanto identidade
do lugar, transmitida de gerações a gerações, como uma forma de ecologia cultural,
ocasionando uma ligação do seres humanos com a ecologia, sociedade e cultura.

Em estudo onde analisa o significado da poesia, defénse de la


poésie (defesa da poesia) Percy Bysshe Shelley afirma que os
materiais da poesia são: a linguagem, a cor, a forma, os hábitos
civis e religiosos. Além disso, considera o poema, no sentido
mais restrito, uma combinação da linguagem métrica, a qual
reconhece a faculdade soberana, assentada no coração da na-
tureza invisível do homem (PAES LOUREIRO. 1995. p. 50).

Paes Loureiro cita a relação entre o indivíduo e a sua cultura, suas caracterís-
ticas, suas práticas sociais e as representações dessas práticas, como uma forma de
ligação do habitar na Amazônia com a arte, num viés poético de viver em sintonia
com o meio inserido numa cultura mergulhada na oralidade, a qual reflete pre-
dominante essa relação com a natureza e se apresenta imersa numa atmosfera em
que o imaginário prevalece em questão da estética.
Dessa forma, revela a beleza que se esconde nesse mundo, que alimenta o
pensamento de construir um lar no mundo, um microcosmo, em que os hábitos
dos ribeirinhos, sejam os culturais ou religiosos, invocam essa poesia no viver, a
paisagem cultural se torna um poema, intermediada pelo prazer em saudar a na-
tureza com esplendor, como uma forma de aperfeiçoar o ser, pois

Em diversas formas de recortar e expressar a realidade, sin-


tetizam, em seu âmbito, o complexo universo da existência
humana, onde as mais diversas formas de vida são postas na

176
prática, dentro da reciprocidade dinâmica constitutiva da di-
mensão social da cultura. É como entender a cultura como
sendo um processo de aperfeiçoamento [...]. A cultura vem
sendo considerada, desde a antiguidade clássica, como algo
que engloba diferentes ângulos de uma totalidade voltada
para preservação de bens materiais-imateriais, passando pelo
cultivar, pelo habitar e pelo cuidar. E o homem, através dessas
formas de relação com a realidade, se torna um doador de
sentido às coisas (PAES LOUREIRO. 1995. p 53).

A cultura construtiva dos ribeirinhos, assim como, dos indígenas expressa em


formas intelectuais, morais e artísticas essa ligação com a natureza, em uma relação
de respeito e harmonia, no qual, esse conjunto de expressões resultam numa linha
de pensamento, padrões de gostos, ética de procedimentos que decorrem de uma
existência social e objetiva no meio habitado. A paisagem cultural formada pelo
indivíduo se apresenta como habitat desse povo, assim como, a história de seus
antepassados e a luta pelo seu espaço.
Por isso, é importante salientar a valorização dessa arquitetura de resistência, o
regionalismo, com o uso de elementos vernaculares, materiais orgânicos retirados do
meio ambiente, de forma menos agressiva, laços afetivos de correlação da natureza
como o indivíduo que dão essência ao lugar que retratam a identidade coletiva de
um povo. Para Dardel (2011), a geografia traz em sua etimologia grega o sentido
originário de uma ontologia hermenêutica, ou seja, um ato fundante de descrição,
decifração e esclarecimento sobre as formas, desenhos e recortes das paisagens da
terra. Seria a terra, portanto, uma espécie de texto composto por signos que incita
e se apresenta à interpretação do geógrafo.
Entender a relação do homem com o seu habitat pelo método ontológico, isto
é, da ciência do ser, ou do ser enquanto ser, é uma forma de autoconhecimento
(Heidegger, 2001), em uma analogia de se autoconhecer com o habitat, de modo
que a captação da efetividade concreta e envolvente no meio ambiente ofereça
uma sensibilidade humana maior para absorver o mundo, ou seja, uma experiên-
cia existencial. Buscando compreender assim, a relação essencial que caracteriza a
co-pertença entre ser, homem e mundo manifestando uma relação entre as quatro
instâncias - céu, terra, imortal e mortal - que realçam o ser e a totalidade do mun-
do e como se juntam em uma casa e se expressam na materialidade, assim como,
Heidegger (2001) objetivava com seu pensamento tardio.

177
Nessa visão, a totalidade dessa caracterização da pertença ao mundo ocorre
pelo auto reconhecimento do ser habitar e pelo sentimento de pertencimento e de
gratidão de um povo a essa região e suas experiências. E de como a natureza atua e
determina a vida dessas pessoas, e de onde tiram seu alimento e seu sustento para
viver. Outrossim, as culturas nacionais, em um discurso que moldam sentidos de
influência e organização das nossas ações, são compostos de símbolos e represen-
tações, além de ser instituições culturais, constroem uma essência de “nação”, no
qual, podemos nos identificar, e construir nossas identidades, a partir de nossas
origens e conhecimentos que nos agregam a um espaço. Como Stuart Hall afirma
em A identidade Cultural na Pós Modernidade (1992):

(...) há ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e


na intemporalidade. A identidade nacional é representada
como primordial - “está lá, na verdadeira natureza das coisas”,
algumas vezes adormecida, mas sempre pronta para ser “acor-
dada” de sua” longa, persistente e misteriosa sonolência”, para
reassumir sua inquebrantável existência. (GELLNER, 1983,
p. 48 apud HALL, 1992. p.53)54

A geograficidade, isto é, a existência na sua expressão espacial (Moreira, 2004)


nos leva a pensar numa construção que se conecte ao meio ambiente, que não
machuque a natureza, que é própria da realidade humana, assim como nos afirma
a narrativa geográfica de Dardel (2011), o caminho do despertar e do desdobrar
de uma consciência geográfica, estimulada pela relação direta do homem com a
expressividade fisionômica da terra, sua realidade circundante e cotidiana. Para
Moreira “a hominização do homem pelo homem através do trabalho - em formas
espaciais concretas de existência, algo que difere nos diferentes recortes de terri-
tório da superfície terrestre” (MOREIRA, 2004 p. 34). É o ser em sua totalidade
geográfica concreta. A paisagem, não só como essência do lugar, mas também, a
interação do homem com o meio, do que ele faz nela, constrói seu habitat, tira o
seu alimento e o seu sustento, tudo isso forma a paisagem, como também, o ser
humano, e o que essa relação representa no seu identitário cultural.
Tal trajetória, apresentada por Dardel, é, portanto, a história da própria geo-
graficidade local. O caminho temporal de um modo de ser (existencial) pautado
54 GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Oxford: Blackwell, 1983.

178
na interpretação, que transita entre homem e terra, que por sua vez estabelece
como horizonte, base e esclarecimento para a fundação de diferentes concepções
geográficas de mundo.
A essência do lugar está nas pessoas que ali habitam, suas histórias, formação
de uma cultura rica como muito a nos ensinar. As construções sustentáveis e efi-
cientes nos mostram que é possível construir sem destruir a natureza, construir
com consciência e ainda captar sentimentalismo, uma arquitetura sem arquitetos,
baseadas apenas em ensinamentos de pais para filhos, são gerações de técnicas e
conhecimentos e manuseio de materiais naturais e sustentáveis.

Considerações finais

Como percebemos, a arquitetura vernacular nos possibilita construir com mais


cautela que é essa arquitetura sem arquiteto, e nos faz pensar na construção que vai
além de apenas um lugar para se viver, mas como um lugar de habitar com poesia
e harmonia com o meio inserido, uma habitação sustentável que aborda a nossa
identidade cultural amazônica.
Entender a relação da habitação indígena com a habitação ribeirinha e suas
culturas, crenças e técnicas construtivas, transmitidas de maneira oralizadas de
gerações em gerações, com a forma de coabitar com a natureza, em detrimento
de uma ecologia cultural que aperfeiçoa o ser humano. Essa definição pode ser
articulada com o conceito de sustentabilidade arquitetônica e com o conceito de
“Identidades Nacionais” discutido por Hall (2006), proporcionando identificar as
características culturais construtivas das edificações e compreender como o processo
de construção vernacular está relacionado ao meio ambiente natural.
Na Amazônia, o lugar de morar é o lugar de viver pela herança das popu-
lações tradicionais, indígenas e quilombolas, como forma permanente e como
forma de resistência em relação a violência colonial e pós-colonial. Este habitar
poético forma as cidades, em especial as periferias que são ignoradas pela cultura
hegemônica como se estivessem fora da cidade. A perspectiva do presente e do
futuro é do reconhecimento dos lugares que a cidade criou como forma de habitar

179
e conviver com o ambiente de forma criativa e ao mesmo tempo comprometida
com a forma de viver.
Nesse artigo iniciarmos uma discussão sobre os aspectos construtivos e culturais
da arquitetura vernacular amazônida, visto que, buscaremos desenvolver em outros
artigos uma continuidade sobre os mesmos, apresentar demais panoramas e outras
proposições teóricas e conceituais e novas avaliações, interpretações e proposições
sobre esta questão.

Referências

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vimento. 2 ed. Manaus: Editora Valer, EDUA e INPA, 1976.
BOURDIEU, Pierre. A Identidade e a Representação – Elementos para uma
reflexão crítica sobre a ideia de região. In: O poder simbólico. Trad. Fernando
Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da
modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo:
EDUSP, 2000.
DARDEL, E. O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. (Trad.
Werther Holzer) São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.
HOLZER, Werther. A geografia fenomenológica de Éric Dardel. In: DAR-
DEL, E. O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: ed.
Perspectiva, 2010.
_________. A geografia humanista: uma revisão. Espaço e Cultura. Rio de
Janeiro, edição comemorativa, 2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade/ Stauat Hall;
tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guarareira Lopes Louro – 11. ed. – Rio de
janeiro: DP&A, 2006
HEIDEGGER, M. Seminário de Zollikon. São Paulo: Educ; Petrópolis: Vozes,
2001.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1º Ed. Companhia das
Letras. São Paulo. 2019.

180
MOREIRA, Ruy. Marxismo e geografia: a geograficidade e o diálogo das onto-
logias. GEOgrafia - Ano. 6 - NQ II – 2004.
PAES LOUREIRO, João de Jesus. Cultura amazônica: uma poética do imaginário.
Belém: Cejup/UFPA, 1995.
TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia,
edição 9, Editora Vale Editora 2000.
WERÁ, Kaká. A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por
um índio, publicado pela editora Petrópolis, 1998.

181
COMUNICAÇÃO, CULTURA, RESISTÊNCIA
QUILOMBOLA E TECNOLOGIA SOCIAL NO
DESENVOLVIMENTO LOCAL DA AMAZÔNIA
NEGRA MARUANENSE55
Lúcio Dias das Neves 56
Otacílio Amaral Filho57

Introdução

Esta pesquisa teve início em 2018 e finalizou-se em 2020 como proposta da


dissertação do mestrado em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia
para Inovação – PROFNIT/UNIFAP - ressignificada enquanto parte da tese do
doutorado PPGCOM/UFPA58 - que identificou a região do Maruanum como uma
área que possui potencial para entrar com o pedido de Indicação Geográfica (IG),
devido a notoriedade e distinguibilidade das louças produzidas nesta comunidade,
de acordo com a Lei de Inovação n. 13.243/2016.
Utilizou-se como método de investigação para notoriedade e distinguibilidade
das louças/cerâmicas a pesquisa observatória e o levantamento bibliográfico a partir
de publicações na mídia e nos bancos de dissertações e teses, além de visitas in
loco (antes da pandemia do COVID 19), tendo, portanto, como proposta final o
primeiro pedido de IG do estado do Amapá, em parceria com o governo estadual
e da prefeitura de Macapá.
Com a chegada do programa de mestrado profissional do PROFNIT/UNIFAP
55 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cidadania do XXX Encontro Anual da
Compós, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP, 27 a 30 de julho de 2021
56 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da Univer-
sidade Federal do Pará; professor do Instituto Federal do Amapá e líder do grupo de pesquisa em Gestão,
Comunicação e Inovação Tecnológica, com ênfase em comunidades tradicionais GesComIT/Amazônia/IFAP
- luciodias10@gmail.com.
57 Professor Associado da Universidade Federal do Pará e líder do grupo de pesquisa em Laboratório
de Mídia – LABMÍDIA/UFPA - otacilioamaralfilho@gmail.com.
58 Que tem como proposta inicial o olhar sobre as manifestações culturais, produtos e desenvolvimen-
to socioeconômico dos povos da floresta.

182
(2018.1), ao mesmo tempo em que atendeu o anseio dos pesquisadores que já
atuam nesta área ou em áreas correlacionada, por conseguinte, também despertou
um novo olhar em relação às diversas possibilidades no que diz respeito ao pedido
de proteção de patentes, de transferência de tecnologia e de propriedade intelectual,
como ativo de inovação tecnológica. Principalmente com a promulgação da Lei
Federal de Inovação: nº 13.243/2016; e a Lei Estadual de Inovação Tecnológica.
n.º 2333/2018, que também estimula o desenvolvimento de inovação tecnológica
no âmbito do território do Amapá.
Neste sentido, dentre as diversas possibilidades para atuação e estímulo ao
desenvolvimento científico à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica, e
à inovação, pensou-se como efetivamente as nossas pesquisas podem impactar
as demandas da sociedade amazônica, principalmente no que diz respeito as co-
munidades tradicionais amapaenses59 – que se encaixa na Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT),
partindo do pressuposto de que a inovação tornou-se uma necessidade para atender
a demanda globalizada, como um processo coletivo local, onde todos os envolvidos
estejam implicados com a causa.
Inicialmente sugeriu-se que a pesquisa analisaria apenas o ecossistema de ino-
vação amapaense, propriamente a Indicação Geográfica (IG), visto que o Amapá
pertence a um dos maiores biomas naturais e mais ricos do mundo, o bioma da
Amazônia. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio
(2017), destaca que:

Compostos por fauna e flora singulares, características físicas,


climáticas, geográficas e litológicas (das rochas) importantes
para o ecossistema, os seis biomas brasileiros – Amazônia,
Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal – ren-
deram ao Brasil o título de país com a maior biodiversidade
do planeta [...] detentora de 49,29% do território brasileiro, a
Amazônia é hoje o maior bioma do mundo, que abrange nove
países (Brasil, Paraguai, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia,
Venezuela, Guiana Francesa e Suriname)60.

Como consequência o lócus da pesquisa escolhido foi o Ddistrito quilombola


59 Grupos Culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias
de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e trans-
mitidos pela tradição (BRASIL, 2021).
60 Disponível em: https://www.gov.br/icmbio/pt-br/assuntos/noticias/ultimas-noticias/a-pluralida-
de-dos-biomas-preservados-pelo-icmbio. Acesso em: 31 out. 2022.

183
de Santa Luzia do Maruanum, em Macapá, que é composto pelas comunidades
de Conceição, Torrão, Simião, São Raimundo, São José, Auto Pirativa, São Tomé,
Santa Maria, Fátima e Santa Luzia, essas comunidades mantêm profundas relações
histórico-culturais entre si. De acordo com o Portal G1 (2020), o estado do Amapá
possui uma população que ultrapassa 861,7 mil habitantes, sendo que aproximada-
mente 65% desta população se autodeclarou como preto/pardo (CENSO, 2010).
A comunidade é definida como uma identidade caboclo-ribeirinha organizada
em torno do Rio Maruanum, que é “um afluente do rio Matapi, o qual verte suas
águas no Amazonas, perto da foz, portanto, os dois rios Matapi e Maruanum estão
sujeitos às marés as quais influenciam todas as atividades” (COIROLO, 1991, p. 73).
Segundo o Portal do Governo do Amapá (2016), existem aproximadamente
200 comunidades quilombolas identificadas, sendo que 47 já foram certificadas
pela Fundação Palmares, outras quatro tituladas pelo Instituto Nacional de Colo-
nização e Reforma Agrária (INCRA) e outras 11 comunidades seguem no processo
de reconhecimento. Contudo, o estado do Amapá com toda a sua riqueza natural,
cultural, patrimonial e humana, não possui nenhum pedido de registro para IG
sobre os produtos/serviços produzidos em seu território. Sobre a relevância da IG,
entende-se que:

É um processo de construção coletiva que visa beneficiar a


um território, seja diretamente aos produtores envolvidos na
IG, seja pelo benefício indireto ao comércio local [...] a IG
gera encadeamentos para frente e para trás, impactando no
desenvolvimento territorial [...] tem-se o turismo, este capaz
de gerar um novo desencadeamento. Poderia ainda se dizer que
os produtos com IG, conforme propõe a teoria dos polos de
crescimento, seriam a indústria motriz, capaz de desenvolver
outras atividades em seu entorno (MAIORKI e DALLABRI-
DA, p. 23, 2015).

A Indicação Geográfica (IG) é um ativo de propriedade industrial usado para


identificar a origem de um determinado produto ou serviço, quando o local tenha
se tornado conhecido, ou quando certa característica ou qualidade desse produto
ou serviço se deva a sua origem geográfica (INIPI, 2018).
A instrução normativa 095/2018, orienta que existem duas categorias de IG:
Denominação de Origem (DE) reconhece o nome de um país, cidade ou região
cujo produto ou serviço tem certas características específicas graças a seu meio
geográfico, incluídos fatores naturais e humanos; e a Indicação de Procedência

184
(IP) que se refere ao nome de um país, cidade ou região conhecido como centro
de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de
determinado serviço.
O quilombo do Maruanum é formado por pequenos agricultores e por mu-
lheres que produzem louças e cerâmicas para complementar a renda familiar. A
economia da Comunidade Santa Luzia do Maruanum é baseada na agricultura
com o cultivo de mandioca, abacaxi, banana e batata, além da criação de bovinos
e da produção artesanal de panelas, fogões, fogareiros, tigelas e bonequinhos de
barro. Também está presente no cotidiano desta comunidade as ladainhas, cânti-
cos, batuque e as rodas de marabaixo61, como forma de expressão e sociabilidade
da cultura afrobrasileira nos quilombolos do amapaenses, e que são apresentados
durante os eventos políticos, sociais e culturais e que estão associados aos santos e
calendários da igreja católica (louvores a Santíssima Trindade e ao Divino Espírito
Santo), conforme a figura abaixo que apresenta o Ciclo do Marabaixo62 e o Corte
do Mastro63.

Figura 1 – Ciclo do Marabaixo/festejos a Santíssima Trindade

Fonte: Márcia do Carmo (2017)

61 A mais autentica manifestação da cultura afro-brasileira do Amapá.


62 No Sábado do Mastro (Sábado de Aleluia) as famílias e grupos de marabaixo (os marabaixeiros)
se reúnem para participar da retirada dos mastros na mata do Quilombo do Curiaú para a realização do corte
das árvores. Posteriormente, os troncos são levados para casas de famílias tradicionais da comunidade. Após o
ritual, há uma festividade que se estende até o Domingo do Mastro. Posteriormente, os marabaixeiros pegam
os troncos da casas onde são deixados e os levam para outros barracões onde inicia o Marabaixo do Mastro, que
segue até a meia-noite.
63 Pela tradição o Ciclo do Marabaixo tem início no Sábado de Aleluia e as suas comemorações seguem
até o Domingo do Senhor – primeiro domingo após a celebração de Corpus Christi.

185
Amaral Filho e Alves (p. 36, 2018) entendem essas manifestações culturais
como:

[...] produtos simbólicos com origem nas manifestações da


cultura popular, frutos da experiencia tradicional de transmis-
são oral, representada na ação social de uma comunidade ou
grupos sociais e embora remonte a diferentes origens podem-se
destacar as comemorações religiosas, o teatro, e a música po-
pulares, as festas agrícolas e agropecuárias e o carnaval.

Em consequência, foi realizado um levantamento através do relatório técnico


com diagnostico propositivo64 sobre a possibilidade do reconhecimento de IP da
região de Santa
Luzia do Maruanum, como produtora das louças/cerâmicas, através da As-
sociação de Louceiras do Maruanum – ALOMA, conforme pode-se visualizar a
notoriedade dessa atividade ceramista, conforme (Tab. 1), abaixo.

Tabela 1 – Trabalhos científicos publicados sobre a notoriedade das louças produzidas


no Quilombo do Maruanum

N. Autor Titulo Editora/Revista Cidade Ano

As Louceiras do
Maruanum e o Defesa de Dis-
Balneário
1 SILVA, E. C. G. turismo Cultural sertação - UNI- 2019
Camboriú
da Região Ama- VALI
zônica
Indicação de Pro- I Semana Ama-
cedência das Lou- paense de Ino-
NEVES, L. D.; SOA-
2 ças produzidas vação Tecno- Macapá 2019
RES, A. A. C.
no Quilombo do lógica (SAIT)
Maruanum/AP - Resumo

64 Este relatório técnico foi apresentado como trabalho de conclusão de curso do mestrado profissio-
nal em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação - PROFNIT/UNIFAP, no qual
considerou em seu diagnóstico propositivo que o processo e as técnicas tradicionais para a produção das louças
do Maruanum apresentavam características de IP, por desenvolver uma tecnologia tradicional única/singular na
região amazônica, e que (re)existe todo um ritual ancestral afrobrasileiro para retirada dessa matéria-prima na
natureza, do respeito ao solo, assim como, o respeito as divindades existentes na fauna e na flora, no processo de
seleção inicial sobre quem/quais louceiras estão aptas para este momento de coleta, à mística com a natureza, e
até mesmo a profundidade e localidade de onde essa argila é retirada, herdados das religiões de Matriz Africana
(NEVES, 2020).

186
N. Autor Titulo Editora/Revista Cidade Ano

BRITO, A. U.; COS- Indicação de Pro-


TA, R. A. T.; GON- cedência das Lou-
Caderno de
3 ÇALVES, L. A. S.; ças produzidas Brasília 2019
Prospecção
NEVES, L. D.; SOA- no Quilombo do
RES, A. A. C. Maruanum/AP
I Mostra Cientí-
MACHADO, R. B.; Produção das fica/ III Semana
4 NEVES, L. D.; SAN- Louças do Ma- de Gestão e Ne- Santana 2019
TO, D. M. E. ruanum gócios/ SNCT
2019
Comunicação e
Inovação Tecno-
lógicas em Co-
IV Jornada de
munidades Tradi-
NEVES, L. D.; SAN- Iniciação Cien-
5 cionais do Amapá Macapá 2019
TO, D. M. E. tifica do IFAP
– produção Visual
- Resumo
das louceiras do
Quilombo Ma-
ruanum
ETNODESEN-
VOLVIMENTO: Anais do Con-
AMORAS, B. C.; as louceiras do gresso nacional
6 LIMA, M. R. P.; Maruanum e o de Pesquisado- Rio de Janeiro 2019
TEODORO, M. F. protagonismo fe- res em Políticas
minino na econo- Públicas
mia local
Religião, Cultura
e Políticas Públi-
cas no Amapá:
Revista Ele-
COSTA, C. S.; CUS- religiosidade, ce-
7 trônica Corre- São Paulo 2017
TÓDIO, E. S. râmica e encan-
latio
taria na tradição
das Louceiras do
Maruanum
“Desde que me
entendi”. Tecendo
saberes e fazeres
relativos à louça Dissertação do
da Comunidade Mestrado em
8 FERREIRA, C. F. Belém 2016
Quilombola do A n t ro p o l o g i a
Maruanum, Ama- (UFPA)
pá/AP.

187
N. Autor Titulo Editora/Revista Cidade Ano

Associação de
Mulheres Loucei-
ras do Maruanum
(ALOMA): tra- Revista Gestão
9 SANTOS, K. P. Fortaleza 2016
dição e economia em Análise
solidária no Ama-
pá-Amazônia-
-Brasil.

Cerâmica do Ma- B i b l i o t e c a
10 TYMEREMY, G. K. São Paulo 2015
ruanum SCRIBD

O Valor da Cul-
tura: estudo de
caso sobre a in-
serção da louça D i s s e r t a ç ã o
11 SILVANI, J. M. do Maruanum/ ( M e s t r a d o Rio de Janeiro 2012
AP no mercado e IPHAN)
a sua relação com
a preservação pa-
trimonial
Atividades e Tra-
dições dos Grupos R e p o s i t ó r i o
12. COIROLO, A. D. Belém 1991
Ceramistas do Museu Goeldi
Maruanum (AP)

Fonte: Neves et al (2021).

Outro ponto que impacta diretamente na Difusão do Conhecimento é a


morte das nossas “Pretas velhas”, pois junto com elas estão sendo enterrados anos
de história, de sabedorias, de tecnologias tradicionais, de socialidades étnicas que
fazem parte da história de da pluralidade da Amazônia Negra do Amapá, sem ao
menos termos pesquisas ou registros audiovisuais para o registro desta riqueza. Pois
as “Pretas-velhas” resguardam o conhecimento ancestral de gerações passadas e/ou
de nossos antepassados e são responsáveis pela sua perpetuação.

188
Tecnologia social das louceiras do Maruanum e o PPGCOM/UFPA

A partir do primeiro contato com a líder da Associação das Louceira do Ma-


ruanum através da ALOMA – na pessoa de Tia Marciana65 (conforme Fig. 2),
iniciou-se os primeiros passos para a realização da pesquisa sobre as louças do
Maruanum, que se desenvolveu na dissertação de mestrado, a publicação de artigos
em revistas cientificas e de artigos em livro coletânea, e parte do objeto de pesquisa
da tese de doutorado intitulada “(Afro)Marketing dos produtos e manifestações
populares da Amazônia Negra Amapaense66”.

FIGURA 2 – Pesquisadores e Tia Marciana

Fonte – Arquivo dos autores, 2020.

Por conseguinte, a originalidade da proposta em questão versa sobre um novo


campo de conhecimento que surge com a “Quarta Revolução” ou a “Era da In-
formação”, que são as tecnologias sociais como ativo de propriedade intelectual.
Porém, existe o paradoxo de que o Amapá faz parte da Amazônia; que desenvol-
ve diversas atividades, produtos e serviços nas comunidades tradicionais para o

65 Conforme ela gosta de ser chamada carinhosamente, para além dos laços familiares
66 Tese que se desenvolve a partir da linha 1 - Comunicação, Cultura e Socialidades na Amazônia, do
Programa de Pós- Graduação em Comunicação Cultura e Amazônia – PPGCOM/UFPA.

189
desenvolvimento local e regional, mas não possui sequer um pedido de indicação
geográfica registrado junto ao INPI.
A tecnologia social produzida pelas louceiras do Maruanum (Fig. 3) obedece
à função socioambiental da propriedade, pois a atividade cerâmica da produção
de louças de argila é baseada no cooperativismo, pois a área de onde é retirada a
aluvião beneficia todas as louceiras, que produzindo as peças garantem a geração
de renda que complementa o orçamento familiar – é importante destacar que a
retirada do barro ocorre em único momento a cada ano e geralmente se associa as
socialidades comunitárias , as rodas de marabaixo e a devoção religiosa da Santíssima
Trindade e o Divino Espírito Santo, como retratado nas pesquisas de Monteiro e
Amaral Filho (2018).

Figura 3 - Tecnologia Social

Fonte: Arquivo dos autores, 2020.

O Relatório final67 com diagnóstico propositivo será entregue para a ALOMA


com cópia para a Prefeitura Municipal de Macapá - Através do Instituto Municipal
de política e Promoção da Igualdade Racial (IMPROIR) e ao Governo do Estado

67 Dentre os produtos finais apresentados como conclusão do mestrado profissional em PROFNIT/


UNIFAP.

190
do Amapá - a partir da Secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia (SETEC/
AP)68. As secretarias são agências estratégicas governamentais para o fomento da
inovação tecnológica e da tecnologia social dentro das comunidades quilombolas
do estado do Amapá e dos quilombos urbanos e bairros pretos da capital Macapá,
e podem contribuir diretamente com as louceiras do Maruanum para a forma-
lização do primeiro pedido de IG junto ao INPI, pois existem algumas taxas e a
necessidade de consultoria, de assessoria técnica, uma vez que o pedido de IG só
pode ser realizado por associações, cooperativas e entidades representativas, e existe
um rito burocrático e especifico para cumprimento deste protocolo.
Conclui-se que a proposta era original por ser um tema inovador e que as
pesquisas sobre as tecnologias sociais na Amazônia amapaense ainda são recentes
e apresentam poucas produções, sendo que no estado do Amapá, ainda não existe
nenhum pedido de IG junto ao INPI.
Esta pesquisa teve como objetivo geral identificar de tecnologia social desen-
volvida através das louças/cerâmicas confecionadas pelas mulheres quilombolas
associadas e a possibilidade da ALOMA formalizar o pedido para o reconhecimento
da IP do artesanato produzido no Maruanum junto ao INPI. Destacaram-se dentre
os objetivos específicos:

• Levantar o histórico e sociocultural da comunidade do Maruanum;


• Prospeção das publicações na mídia e nos bancos de dissertações e teses para
notoriedade das loucas do Maruanum;
• Registro do processo de fabricação/confecção das pecas - distinguibilidade;
• Propor a prestação de consultoria e assessoria sobre o pedido de IG junto ao
INPI em parcerias com os órgãos públicos locais.

Para este estudo prospectivo utilizou-se inicialmente o site do Orbit69, porém


como o tema sobre conhecimento e pedidos de Indicação Geográfica encontra-se
numa escala crescente (principalmente na Região Norte que recentemente teve
seus primeiros pedidos aprovados), do eixo Sul e Sudeste, para o Centro-Oeste,
Nordeste e Norte, em relação aos pedidos junto ao INPI, haverá a necessidade

68 Ainda não houve a formalização devido a Pandemia do Corona Vírus surgida no início de 2020.
69 O Questel Orbit é um sistema de busca e análise de informações contidas em patentes que provê
acesso a informações de publicações de patentes em mais de 90 países, com recursos avançados de visualização,
exportação e análises de grandes conjuntos de informações.

191
de estender a busca prospectiva para outras fontes, como o próprio site do INPI,
Periódicos da CAPES, SCOPUS, Google Acadêmico, Repositório da UFPA, da
UNIFAP, dentre outros.
A busca prospectiva sobre patentes que envolve louças se desenhou da seguin-
te forma: inicialmente com a palavra-chave “Barro” e após com a palavra-chave
“Cerâmica””, em ambas as pesquisas os dados encontrados não se aproximavam
do objeto de investigação. Visto que os resultados encontrados se aproximavam da
cerâmica da Construção Civil (azulejos, lajotas, métodos de combinação, dentre
outros). Mudou-se a palavra-chave para “Porcelanas” e ainda assim prospectou-se
derivados da pesquisa anterior. Neste sentido, acrescentou mais uma palavra na
busca e iniciou-se a pesquisa com “Porcelana de barro”, “Porcelanatos de barro” e
“Louças de barro”, Artesanato de barro”, onde o resultado ainda era apresentado
insuficiente ou com os mesmos resultados.
A prospeção sobre louças de barro no site do Orbit Questel resultou em ape-
nas um único pedido de patente destacado acima, neste sentido, se utilizou da
plataforma do INPI para que fosse possível prospectarmos novas possibilidades de
pedidos de IG, ao menos no Brasil.
Também serão analisadas as leis federal e estadual que dispõem sobre o Marco
Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, para identificação de como estas podem
amparar legalmente a possibilidade do reconhecimento e notoriedade através dos
saberes e tecnologias tradicionais existentes ou não na Comunidade Quilombola de
Santa Luzia do Maruanum, além da proposta do desenvolvimento da história-oral
para registro dos mais diversos processos comunicacionais e culturais, e sobre o
relacionamento da comunidade para preservação da biodiversidade amazônica local.
Foram utilizados os autores e pesquisadores da região norte para fundamentar
as manifestações culturais, a devoção à bandeira da Santíssima Trindade e a ban-
deira do Divino Espírito Santo, principalmente os autores e pesquisadores locais
que narram a história e a imersão sociocultural presente nas rodas de marabaixo, a
exemplo da pesquisadora Piedade (2013) e suas contribuições na obra “Batuques,
Folias e Ladainhas”, que versa sobre a cultura do quilombo do Cria-ú70 na Educação
(Lei 10.639/03)71 e o professor e historiador Alci Jackson (2014) que dedica suas

70 Nome de referência usado costumeiramente pelos primeiros moradores para a comunidade quilom-
bola do Curiaú devido as condições alagadas durante nove meses ao ano, que significava “Lugar bom para criar
o Ú” – o búfalo.
71 Que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas,
públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.

192
pesquisas sobre a cultura negra no Amapá, dentre outros. Além das contribuições
de Lilia (1992/1993) que versam sobre as teorias raciais no Brasil e o espetáculo
das raças; e do Vicente Salles que trás uma discussão sobre a negociação e conflitos,
a resistência negra no Brasil e que regionaliza a discussão sobre o negro no Pará.
A realização do levantamento histórico e sociocultural da comunidade do
Maruanum, bem como, da pesquisa bibliográfica e pesquisa de observação, foi
a opção metodológica inicial para investigação e análise dos dados obtidos, visto
que esta pesquisa não encerrou com a produção do relatório descritivo e analítico
demonstrado no mestrado profissional, uma vez que estes dados iniciais contribuí-
ram para a mudança, a melhora na prática da pesquisa, também gerou um novo
aprendizado no decorrer do processo, tanto a respeito da prática quanto a respeito
da investigação. Isto posto, torna-se necessário a realização de uma pesquisa-ação
que, por consequência, pode gerar diversas outras pesquisas, justamente por ser
classificada como informal e dialética (BRANDÃO, 1999).
Secundariamente (já no âmbito da tesse de doutoramento), utilizaremos a
pesquisa qualis-quanti e semiestruturadas, uma vez que o método qualitativo pode
sofrer influência do pesquisador, a exemplo da idade, sexo, etnia, renda familiar,
estado civil etc., além de que no método quantitativo se pode obter como resul-
tado índices numéricos que apontam as preferências comportamentos e diversas
outras ações dos indivíduos pertencentes ao grupo social do Maruanum (esse
pesquisa no lócus será realizada após a vacinação contra o COVID-19 e seguirá as
recomendações da Agencia de Vigilância Sanitária – prevista a partir de 2021.2).
Como o Marabaixo se manifesta através de diversas formas no cotidiano das
comunidades tradicionais do Amapá, utilizaremos o Ciclo do Marabaixo e a festa
de Santa Luzia, as quais se realizam na comunidade quilombola onde ocorre o
ritual da coleta do barro, ação comunitária realizada em um único dia do ano,
cuja comunidade (maruanum) é responsável pela produção das louças no decor-
rer do ano. Assim sendo, buscou-se registrar com fotos, áudios e audiovisual o
evento por ser o momento mais festivo e de interações sociais para a realização da
pesquisa etnográfica, além de possibilitar a análise da relação comunitária com a
biodiversidade amazônica. Acrescentam-se ainda a mística, os saberes e as exper-
tises ancestrais que são consideradas sagradas e que devem ser preservadas pelos
sacerdotes da comunidade (desafio da pesquisa para coleta e registro dos dados).
Devido o método da pesquisa ser informal e dialética do início ao final, os au-
diovisuais servirão também para catalogarmos e registrarmos através dos relatos de

193
experiência (oralidade) das pretas e dos pretos velhos da comunidade do Maruanum.
Nesse sentido, Amaral Filho afirma que esta é uma das funções da universidade:

[...] uma alternativa para superar esse tipo de problema se-


ria que as universidades passassem a oferecer aos municípios
amazônicos de forma geral, pessoal qualificado, extensão e
assessoria capaz de atender a projetos de desenvolvimento “a
partir das condições especificas de cada região amazônica”.
Silva (2002, p. 67), para que a sociedade regional possa buscar
incentivar e cobrar dos gestores responsáveis pela direção das
universidades uma conceção e implementação de estratégias
que funcionem de fato, como apoio ao desenvolvimento re-
gional e local dos territórios em que atuam. (SILVA, 2002 p.
67 apud AMARAL FILHO, 2016, p. 200)

Nesta premissa, a pesquisa inicial realizada para a construção do Relatório


Técnico com Diagnóstico Propositivo foi finalizada com a propositura de entrega
do relatório técnico com regras de sigilo para a ALOMA, para o IMPROIR e para
o SETEC, e subsidiou a pesquisa registrada no Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Amapá (IFAP) e a criação do grupo de pesquisa em Co-
municação, Gestão, e Inovação Tecnológica, com ênfase em comunidades tradicio-
nais da Amazônia (GesComIT/Amazônia72), pois teve como objetivo comunicar
a comunidade e as autoridades locais sobre a necessidade de criar ou aperfeiçoar
políticas públicas que incentivem, apoiem e estabeleçam parceria com as entidades
não governamentais (associação, cooperativas, dentre outros) sobre a importância
e a necessidade do registro de IG junto ao INPI, como fator de valorização do
produto, serviço, o saber-fazer das comunidades tradicionais do Amapá, e como
ferramenta para o desenvolvimento local e regional da Amazônia, principalmente
no cenário político atual que estamos vivenciando na região norte.
Neste sentido, a partir do método investigativo e coleta dos dados, utilizaremos
os resultados obtidos, que podem ou não, evidenciar, ressignificar, ou legitimar
a pesquisa realizada no mestrado, para a realização de consultoria e assessoria
do primeiro pedido de IG junto ao INPI, do Amapá. Todavia, vislumbra-se a
parceria de órgãos público, em quaisquer esfera, a fim de possibilitar a realização

72 Grupo de pesquisa cadastrado pela Pró-Reitoria de Pesquisa (ProPesq) do IFAP junto ao Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

194
e aprofundamento desta pesquisa, visto que a geopolítica do estado do Amapá é
extensa, possui diversas vias e estradas federais e estaduais em condições precárias,
assim, como o acesso limitado da internet, além de regiões remotas e extremas,
para visita, o que pressupõe investimentos financeiros.
Em consequência, a pesquisa terá uma abordagem qualitativa (MINAYO,
2001), pois se pretende trabalhar com o universo de significados, motivos, aspira-
ções, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacio-
nalização de variáveis. A pesquisa também será de natureza aplicada, pois objetiva
gerar conhecimentos para aplicação prática, dirigidos à solução de problemas
específicos, no que tange a obtenção da certificação de IG, amparada pelos Marco
Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação (nacional e estadual).
Quanto aos objetivos, serão exploratórios e descritivos. Segundo Gil (2007),
uma pesquisa exploratória proporciona maior familiaridade com o problema,
com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses. Associada a pesquisa
descritiva, pois exigirá do investigador uma série de informações sobre o que de-
sejará pesquisar. Esse tipo de estudo pretende descrever os fatos e fenômenos de
determinada realidade (TRIVIÑOS, 1987).
Quanto à técnica de levantamento de dados, a pesquisa trabalhará com as se-
guintes fontes de dados e informações: pesquisa bibliográfica, pesquisa documental,
pesquisa de campo e o estudo de caso (FONSECA, 2002, p. 32).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta proposta de pesquisa está em andamento, pois, devido a pandemia do
Coronavírus eclodida no início de 2020.1, as atividades de campo foram adiadas
para 2021, após o controle da curva de infectados/mortes, pois há a necessidade da
pesquisa de campo e pesquisa exploratória dentro das comunidades tradicionais/
povos da floresta, e com isso, preservar a vida e o ecossistema durante a coleta das
amostras.
Inicialmente foi pensado que a pesquisa aprovada na seleção do doutorado
intitulada “Das Louças as Rodas de Marabaixo: os processos comunicacionais no coti-
diano histórico e sociocultural da comunidade quilombola do Maruanum – Amapá”
permaneceria apenas na Comunidade do Maruanum. Mas, de acordo com as
orientações realizadas durante a disciplina Laboratório de Pesquisa73 (ministra-
73 A disciplina Laboratório de Pesquisa está associado ao grupo de pesquisa Laboratório de Mídia (LA-
BMÍDIA), sob a liderança do prof. Dr. Otacílio Amaral. Doutor em Desenvolvimento Sustentável do Trópico
Úmido (NAEA/UFPA) e Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo PósCom da Universidade

195
da pelo Prof. Orientador Dr. Otacílio Amaral), além dos autores e bibliografias
apresentados durante as disciplinas remotas em 2020.2, a pesquisa foi ampliada
e o novo lócus de pesquisa passou a ser o “(AFRO)Marketing dos produtos e festas
populares da Amazônia Negra Amapaense”. Por se entender que há necessidade de
ampliarmos o objeto de pesquisa para todo o estado do Amapá.
Deste modo, a pesquisa realizada no Maruanum irá compor um dos capítulos
da tese de doutoramento, pois a proposta para o reconhecimento da confecção das
louças/cerâmicas como tecnologia tradicional junto ao INPI ainda não foi realizado,
uma vez que a ALOMA necessita do apoio das secretarias dos governos estadual
e municipal, a saber: Secretaria de Tecnologia do Estado do Amapá – SETEC/AP
(apoiado na Lei Estadual nº. 2333/2018 que dispõe sobre a indução e incentivos ao
desenvolvimento do Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação) e o Instituto Munici-
pal de Promoção da Igualdade Racial – IMPROIR, para ao menos oferecer apoio,
assessoria e consultoria à associação, além de ajuda para pagamento das custas e
protocolos junto ao INPI (NEVES, 2020).

Referências

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Disponível em:< https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=359570>. Acesso
em 31 out. 2022.
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no AP. Portal do Governo do Amapá. 21 de marco de 2016 – 17h20. Disponível
em: < https://www.portal.ap.gov.br/noticia/1705/mais-seis-comunidades-sao-re-
conhecidas-como-remanescentes-de-quilombo-no-ap>. Acesso em 31 out. 2022.
AMAPÁ. Secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia. Disponível em: < http://
www.setec.ap.gov.br>. Acesso em 31 out. 2022.
AMARAL FILHO, Otacílio; ALVES, Regina de Fátima Mendonça. Espetáculos
Culturais na Amazônia. Editora CRV. Curitiba/PR, 2018.

Federal da Bahia. Professor do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Faculdade de


Comunicação (PPGCOM/Facom/UFPA). Líder do Laboratório de Pesquisa Midiática na Amazônia e diretor
do Instituto de Letras e Comunicação da UFPA.

196
AMARAL FILHO, Otacílio. Marca Amazônia: o marketing da floresta. Editora
CRV, 1. ed. – Curitiba/PR, 2016.
BRANDÃO, C. R. (Org.). Pesquisa participante. 18. ed. São Paulo: Brasiliense,
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BRASIL. Lei 10.639/03. Que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
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198
ESPETÁCULO
E
RELIGIOSIDADE

199
PubliCIDADE DO CÍRIO DE NAZARÉ:
O NATAL DOS PARAENSES74
Luiz LZ Cezar Silva dos Santos75

PubliCIDADE das duas festividades

O artigo tem por premissa relacionar a representação imagética e comercial do


Natal com a festividade do Círio de Nazaré, por ser o Círio considerado simboli-
camente como o Natal dos paraenses. No desenvolvimento do artigo, utilizaremos
peças publicitárias que enfoquem o Natal de modo geral e as festividades do Círio
de Nazaré, incluindo a representação publicitária das personagens de Nossa Senhora
de Nazaré, a “Nazica”, e do “Bom Velhinho”, o Papai Noel, como mascotes do Círio
e do Natal, na publiCIDADE de Belém do Pará. Tanto o Natal quanto o Círio
de Nazaré têm como narrativas de origem suas histórias lendárias ou mitológicas
e suas personagens principais.
No caso do Natal, são diversas as fábulas, as histórias e os mitos contados e
recontados sobre a origem do Papai Noel; a primeira delas é a de São Nicolau,
considerado um dos santos mais conhecidos da cristandade. Ele era um bispo que
se tornou célebre por sua caridade e afinidade com as crianças e que em virtude
da sua imensa generosidade e dos milagres a ele atribuídos, transformou-se num
símbolo ligado diretamente ao nascimento do Menino Jesus.

O santo entrava pela janela (mesmo quando ela estava fechada


com tranca) ou descia pela chaminé; às vezes vinha sozinho,
74 Artigo ampliado do trabalho apresentado no X Pró-Pesq PP – Encontro Nacional dos Pesquisadores
em Publicidade e Propaganda. ECA/USP/SP - 2019.
75 Professor do Curso de Comunicação/PP – Facom/ILC e do PPGCom/UFPA. E-mail: lzcezar@ufpa.br.

200
mas às vezes tinha companheiros; deixava presentes nas meias
e nos sapatos, ao lado da lareira, da janela, da cama; vinha
caminhando, voando ou no lombo de um burro. (BOWLER,
2007, p. 28).

São diversos os nomes atribuídos a São Nicolau: no Brasil, Papai Noel; em


Portugal, Pai Natal; na França, Père Noêl e, nos países de língua inglesa, é conhe-
cido como Saint Claus, Father Christmas ou St. Nicholas. Mas uma característica
lhes é comum, a imagem de um velhinho corado de barba branca, trazendo nas
costas um saco cheio de presentes.

Figura 1 – Representações de São Nicolau e Papai Noel.

Fonte: Google

Papai Noel, o “Bom Velhinho”, com o passar dos tempos se transformou na


mascote símbolo do Natal. O termo “mascote” é atribuído a uma pessoa, a um
animal ou a um objeto e todas as mascotes são consideradas capazes de proporcio-
nar sorte, felicidade, fortuna a quem as possuir. Para Perez (2011, p. 41), “É uma
criatura liminar, que oscila entre o mundo material e a dimensão sobrenatural,
entre o tangível e o etéreo, entre o real e o imaginário. Representa um ponto de
intersecção entre o humano e o divino”. E mais ainda, por trás de uma provável
aparência nonsense, “com sua ambiguidade constitutiva, como toda liminaridade,
é performática, cênica e perturbadora” (PEREZ, 2011, p. 42) Pode ser, também,
sacra e profana, real e irreal, constituindo-se numa profusão de pluralidade e

201
significados, sendo, portanto, essencialmente ambígua. A firma ainda que as
mascotes “tinham o papel inequívoco de aproximar produto/marca dos consumi-
dores, sendo, em muitos casos, portadoras de didatismo necessário aos pioneiros
em novos mercados”. No mundo moderno, a imagem da mascote Papai Noel ganha
uma presença e um realce maior no mundo dos negócios (empresas) e das marcas
(produtos e serviços).

Figura 2 – Ilustração – Guia de Compras Natal.

Fonte: Jornal O Liberal, publicado em dezembro de 1989.

Com o passar do tempo, o “Papai Noel”, mais que uma mascote natalina, se
transforma em um vendedor eficiente, pois, historicamente, a imagem vendedora
de Papai Noel sempre foi atraente para o comércio, principalmente, relacionada
ao consumismo. Historicamente, sua aparência continua a mesma: um velhinho
rechonchudo, de gorro na cabeça, barba branca e que carrega um saco cheio de
presentes. O Papai Noel ideal, segundo Bowler (2017, p. 134), “para as grutas ou
oficinas das lojas de departamentos é o descrito como um sujeito de meia-idade,
gordo, de cara vermelha e barbudo, que seja capaz de encantar as crianças e com
ficha limpa na polícia.”
Para Baudrillard, é a velha história do Papai Noel:

As crianças não mais se interrogam sobre a sua existência e


jamais a relacionam com os brinquedos que recebem como
causa e efeito – a crença no Papai Noel é uma fabulação raciona-
lizante que permite preservar na segunda infância a miraculosa

202
relação de gratificação pelos pais (mais precisamente pela mãe)
que caracterizara as relações da primeira infância. Esta relação
miraculosa, completada pelos fatos, interioriza-se em uma
crença que é o seu prolongamento ideal. (BAUDRILLARD,
1973, p. 176).

De modo geral, tanto a indústria quanto o comércio sempre utilizaram Papai


Noel como uma personalidade, uma mascote, um “garoto-propaganda” para di-
vulgação das mais diversas mensagens publicitárias. Um dos melhores exemplos
dessa técnica de transformar o presenteador num consumidor de produtos foram
as famosas pinturas do Papai Noel feitas por Haddon Sundblom para a Coca-Cola
Company (Figura 3). “Acredita-se muito frequentemente que o trabalho de Sun-
dblom para a Coca-Cola criou o conhecido Papai Noel da era moderna, vestido
de vermelho e branco.” (BOWLER, 2007, p. 116). Ou seja, publicitariamente,
depois dos anúncios do refrigerante mais conhecido do mundo, “Papai Noel seria
sempre um homem enorme, gordo, incansavelmente feliz, com um largo cinto
preto e grandes botas pretas – e só usaria o vermelho da Coca-Cola.” (PENDER-
GRAST, 1993, p. 170).

Figura 3 – Anúncio – Coca-Cola.

Fonte: The Coca-Cola Company

203
Essa força ideológica da Coca-Cola, conseguida por meio de uma constante
massificação publicitária, modelou também, de maneira direta, na mente das pes-
soas, o modo de o mundo ver Papai Noel como a imagem do “Bom Velhinho”.
Um exemplo perfeito da combinação magistral de uma imagem encantadora e ao
mesmo tempo mercenária, pois, nos anúncios, Papai Noel nunca forçava ninguém
a beber Coca-Cola, ainda que sua finalidade fosse sempre vendê-la.

O notável nos anúncios de Sundblom era que Papai Noel nunca


tentava forçar ninguém a beber Coca-Cola, crianças ou pais.
Papai Noel simplesmente gostava de beber o refrigerante en-
quanto fabricava brinquedos em sua oficina ou descia pelas
chaminés para entregá-los. (ALLEN, 1995, p. 172).

A partir desse momento histórico, a imagem do bom velhinho se tornaria uma


imagem universal através do modelo divulgado pela Coca-Cola. Essa dominação
cultural do Papai Noel da Coca-Cola é, via de regra, imposta principalmente pela
influência externa exercida pelos Estados Unidos em nível mundial, e publicita-
riamente, a Coca- Cola engarrafou o Natal e a imagem de Papai Noel é o camelô
moderno representativo do capitalismo, pois o “bom velhinho” vende de tudo,
de sabão a cigarro, de carros a armas de fogo, de pneus a imóveis, de whisky a
cerveja, de refrigerante a Coca-Cola. Desse modo, de São Nicolau a Papai Noel,
as narrativas natalinas têm início no cerne do imaginário religioso, perpassam
pelo social, pela cultura e pelo artístico, até se tornarem matrizes econômicas das
narrativas comerciais publicitárias.
Com relação ao Círio de Nazaré, o seu mito fundador diz que no ano de 1700,
um caboclo chamado Plácido José de Souza encontrou uma imagem da Virgem
de Nazaré às margens do Igarapé Murutucu em Belém do Pará. Plácido levou a
imagem para sua cabana, porém, no dia seguinte, ela havia desaparecida. Ao voltar
para o lugar da aparição, ele a encontrou novamente. A história se repetiu por
várias vezes até que a imagem foi trancafiada no Palácio do Governo, mas sumiu
e no dia seguinte foi encontrada no lugar da sua primeira aparição. Em virtude
disso, o governador da época mandou erguer uma ermida no local do achado,
onde atualmente está localizada a Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré.
Historicamente, o “achado” da imagem da santa é contado, recontado e ilustrado
em diversos anúncios comemorativos do Círio de Nazaré (Figura 4).

204
Figura 4 – Anúncio Círio – Vivenda

Fonte: Jornal O Liberal76

Com relação a comunicação publicitária, no mercado paraense, temos a cria-


ção e veiculação de peças e materiais relacionados à festa, como o cartaz do Círio
(Figura 5), que é lançado todos os anos para homenagear e divulgar Nossa Senhora
de Nazaré. Concomitantemente temos a transmissão ao vivo do Círio pelas rádios
e emissoras de televisão, e nos tempos atuais também com a cobertura intensiva das
festividades do Círio pelas redes sociais além da tradicional cobertura da mídia
impressa (jornais e revistas).

76 Publicado em 1979 (BIBLIOTECA PÚBLICA ARTHUR VIANNA, 2017).

205
Figura 5: Cartazes do Círio de Nazaré

Fonte: Montagem do Autor.

Toda essa movimentação ciriana também é fator de movimentação das verbas


publicitárias dos patrocinadores da festa ou, melhor dizendo, dos “patrocinadores
da fé”. Portanto, em virtude de sua força econômica, o Círio também é denomi-
nado de o “Natal dos paraenses”, pois nesse período do ano, é responsável por
movimentar a economia do estado inteiro, tanto na cadeia da produção industrial,
com a criação de produtos com a marca “Círio”, quanto na produção artesanal,
com os brinquedos de miriti e as joias; na produção de alimentos típicos da festa,
como pato no tucupi e a maniçoba. A isso se soma a movimentação ligada ao trade
turístico com relação aos milhares de visitantes (romeiros, turistas, empresários,
artistas) que visitam/chegam à cidade durante a quadra nazarena.

206
Figura 6 – Anúncio do Círio da Y. Yamada

Fonte: Jornal Diário do Pará, Domingo, 09-10-2011.

Não é à toa que o Círio de Nazaré é considerado uma das maiores festas reli-
giosas do mundo pois reúne em média cerca de dois milhões de pessoas durante
as festividades que tem como ápice a procissão realizada anualmente no segundo
domingo de outubro. O Círio é também, desde 2004, considerado como Patrimô-
nio Cultural Imaterial Brasileiro, por ação do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN). É também, desde 2013, Patrimônio Cultural Imaterial
da Humanidade, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO).

207
PubliCIDADE natalina e ciriana

Tanto o Natal quanto o Círio de Nazaré possuem suas diversas representativi-


dades simbólicas, como no caso do Natal que historicamente é a representação do
fato bíblico do nascimento de Jesus. A “Natividade” que é o dia do nascimento de
alguém, e que a partir deste momento especial, passa a ser geralmente relacionada à
data (ou período) em que se comemora o aniversário do nascimento de Jesus Cristo,
filho de Maria e José. Esta história bíblica dará início, séculos depois, à criação do
Presépio, uma pequena construção feita de madeira, barro, louça ou outros mate-
riais, para representar o momento da Natividade de Jesus.
Segundo historiadores, a origem dos presépios se deu em 1223, por meio de
uma pregação feita por São Francisco de Assis, para a qual este criou uma forma
teatral para mostrar às pessoas como teria se dado este acontecimento. Toda esta
movimentação religiosa também irá originar a liturgia do Advento (do verbo latino
advenire), um dos tempos do Ano Litúrgico Católico e que pertence ao ciclo do
Natal, tempo que se caracteriza como período de preparação, de espera da chegada
daquele que há de vir: o menino Jesus.
Nas páginas da Bíblia Sagrada encontramos a menção à anunciação da gravidez
de Maria e o nascimento de Jesus, passagem bíblica na qual o anjo do Senhor diz
à futura mãe:

Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis


que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome
de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo,
e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará
eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim. (Lucas,
V.1. 30-33, p. 1702).

No Natal temos a representação do treno do Papai Noel; no Círio temos a Ber-


linda da Santa; os presentes de Natal e as promessas do Círio; Na noite de Natal a
Missa é do galo e na manhã/tarde do Círio a missa é do Pato. No caso do Círio são
realizadas duas missas, uma pela manhã cedo na Catedral de Belém para anunciar
a saída da procissão do Círio e outra para anunciar a chegada da Berlinda com a
Santa no CAN – Complexo Arquitetônico de Nazaré, localizado em frente a Basí-
lica. Por fim, na noite de Natal temos a Ceia, com os doces e frutas e o tradicional

208
Panetone (Figura 7) e na tarde do Círio temos o almoço com as comidas típicas da
região amazônica e o tradicional Pato no Tucupi.

Figura 7 – Anúncio Bauducco.

Fonte: site do Clube Online, publicado em dezembro de 2011.

Segundo as autoras Mark e Pearson (2003), nas nossas tradições religiosas, os


alimentos frequentemente ganham significação numinosa. O significado do termo
remete-nos a um estado de vivência que possuímos acerca de questões sobrenaturais,
geralmente sagradas, transcendentais ou de divindade. Questões que influenciam
nossos comportamentos cotidianos. Um exemplo de alimento numinoso é o “pão
e vinho” da comunhão cristã. Para as autoras, “de maneira laica, mais cotidiana,
os alimentos acumulam significados culturais simbólicos”. (MARK; PEARSOM.
2003, p. 34).
Um alimento relacionado ao Círio de Nazaré é o pato no tucupi. O pato não
é uma ave com uma simbologia muito representativa como outras aves e pássaros
como: a águia, o falcão, o beija-flor, o corvo e até o singelo cisne, até mesmo nas
histórias infantis o pato aparece como coadjuvante basta lembrarmos da história
do patinho feio, que na verdade é um cisne. Tem também a história do ovo da pata
com relação ao ovo da galinha. Ou seja, a pata não faz barulho nenhum e coloca
um ovo enorme, mas a galinha canta a quatro cantos que colocou o ovo, mesmo
ele sendo pequenino.

209
Já as galinhas antes, durante e depois de botar os ovos fazem o maior estarda-
lhaço, gritam enlouquecidamente ao botar os ovos, tornando-se impossível não
saber o que está acontecendo. Por fim, os ovos da pata são maiores e mais nutri-
tivos que os das galinhas, mas, os ovos das galinhas fazem o maior sucesso afinal
a propaganda é a alma do negócio. Dentro das festividades do Círio de Nazaré, o
pato, historicamente, enquanto iguaria alimentar é a principal refeição do almoço,
ganha um significado como o “pato do Círio” (Figura 8), ave típica do almoço do
Natal dos paraenses.

Figura 8: Anúncio – YO Comidas & Doces.

Fonte: Jornal O Liberal, 07-10-1989.

210
Vale ressaltar que com o passar dos anos e a escassez de patos e os alto preços
cobrados na sua comercialização ao aproximar-se o Círio de Nazaré, outras duas
aves como produto alimentício começaram aos poucos a assumir o lugar do pato no
almoço do Círio (Figura 9), mesmo as pessoas continuem se referindo no almoço
ao o “pato no tucupi do Círio”.

Figura 9: Anúncio – Perdigão Círio 2014.

Fonte77 - Rede social


77 Disponível em: <https://www.behance.net/gallery/26748081/Cirio-de-Nazar-Perdigao>. Acesso
em 31 out. 2022.

211
Outra relação simbólica entre o Natal e o Círio que é usualmente utilizada pelo
comércio como forma de vender os produtos relacionados a cada festividade está
relacionado com a árvore e a estrela de Natal (Figura 10) e a vela do Círio de Nazaré.
Figura 10: Anúncio – CDL

Fonte: Jornal Diário do Pará, 08-12-1984.

Toda publicidade natalina remete-nos para a compra de lembranças, na verdade,


presentes, isto é, produtos (marcas) como forma de demonstrar nossa afetividade
contemporânea por alguém, mesmo que seja um amigo oculto, na noite de Natal.
Para Baudrillard (1973, p. 176), “Todavia, sem “crer” neste produto, creio na
publicidade que quer me fazer crer nele.” E o anúncio da Bauducco (Figura 7)
demonstra esta afirmativa publicitária-natalina. Ainda segundo Baudrillard (1973,
p. 176), “Esse romanesco não é artificial pois se funda no interesse recíproco que as
duas partes têm em preservar essa relação”, logo, “O Papai Noel em tudo isso não
tem importância e a criança só acredita nele porque no fundo não tem importân-
cia.” Sendo assim, para o autor, tudo não passa de um jogo de consumo: “O que

212
ela consome através desta imagem, desta ficção, deste álibi – e em que acreditará
mesmo quando deixar de crer – é o jogo da miraculosa solicitude dos pais e as
cautelas que tomam para serem cúmplices da fábula.” (BAUDRILLARD, 1973,
p. 176). Portanto, segundo a lógica comercial do Natal e sua principal mascote-
-vendedora, o Papai Noel, não podem ser negadas, como nos afirma Baudrilard:

Os que negam o poder de condicionamento da publicidade


(dos mass media em geral) não apreenderam a lógica particular
da sua eficácia. Não mais se trata de uma lógica do enunciado
e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Não
acreditamos nela e todavia a mantemos. (BAUDRILLARD,
1973, p. 175-176).

Considerações finais

Como o exemplo dessa questão, no Brasil de uns tempos para cá, surgiu uma
crítica que é feita sobre a imagem americanizada do “bom velhinho”, na qual Pa-
pai Noel aparece sempre com elementos típicos da cultura e do clima de inverno
americano, até mesmo quando é para vender o “Natal” em pleno calor amazônico.
Contudo, mesmo com o passar dos anos, as mensagens publicitárias referentes ao
Natal permanecem as mesmas no mercado paraense, a única diferença é que nos
rios da Amazônia, Papai Noel troca o trenó pelo barco, como podemos observar
pela imagem do Papai Noel que se utiliza de uma embarcação para distribuir pre-
sentes aos ribeirinhos do entorno da cidade de Belém/PA (Figura 11). O sugestivo
nome da embarcação apresenta a simbologia da marca de fórmula 1 dos carros da
McLaren aliada ao nome da Ilha do Combú, localizada em frente da cidade de
Belém, apenas 5 minutos de travessia, local de lazer dos belemenses e de turistas,
com diversos restaurantes sobre palafitas.

213
Figura 11: Papai Noel Ribeirinho78.

Fonte: Jornal da Record, veiculado 15/12/2018.

Com relação ao Círio de Nazaré, festa religiosa que acontece na cidade de Belém
do Pará há mais de três séculos, ela traz consigo traços característicos de muitas
outras festas religiosas que acontecem de norte a sul do Brasil. Contudo, à medida
que a festividade, as procissões e o culto à Santa começaram a ganhar notoriedade,
os rituais do Círio trataram de incorporar, na sua realização, características locais
(paraenses) e regionais (amazônicas). Assim, a festividade do Círio de Nazaré nos
proporciona também descortinar um pouco a cidade de Belém como um lugar de
publicização religiosa e suas interações midiáticas durante as festividades do pe-
ríodo e que nos remete para a representação imagética (publicitariamente falando)
de Nossa Senhora de Nazaré como a “mascote”, como a principal personagem de
toda a festividade nazarena, por ser a marca simbólica mais forte de todo o Círio
de Nazaré.
Como podemos observar mais do que a coincidência de N-A-T-A-L e do C-Í-
-R-I-O serem duas palavras formadas por cinco letras, são também duas festividades
religiosas ligadas ao catolicismo mesmo sofrendo as intervenções sociais, culturais
e políticas e econômicas dos tempos. Sendo assim, tanto a atividade publicitária

78 Disponível em: <https://recordtv.r7.com/jornal-da-record/videos/conheca-o-papai-noel-que-traba-


lha-de-barco-nas-areas-ribeirinhas-de-belem-pa-15122018>. Acesso em 31 out. 2022.

214
como a da propaganda, uma das características que lhes são marcantes é a utilização,
na comunicação comercial, de seres imaginários, mitológicos e maravilhosos na
criação de marcas e mascotes. Estes seres são (re)utilizados como representações
“novas” de personagens mitológicos “antigos”, utilizados indiscriminadamente
para anunciar publicitariamente e vender mercadologicamente os mais diversos
produtos e serviços. Mitologicamente a publicidade se utiliza das centenas de
seres frutos das criações e das invenções humana, dos lendários, dos mitológicos,
dos extraterrestres, das lendas urbanas, dos seres tecnológicos e, por fim, de um
personagem conhecido mundialmente: Papai Noel.

Os mitos são muitas vezes manifestações por meio de relatos


fantásticos de tradição oral geralmente protagonizados por seres
que encarnam, de forma simbólica, as forças da natureza e os
aspectos gerais da condição humana e, por isso, são fortemente
associados às lendas e às fábulas. (PEREZ: 2011, p. 55).

O uso do conceito de publiCIDADE como forma de tornar pública a imagem


de uma cidade, de uma região, de um país, de um lugar, bem como a de publicizar
os espaços, sejam urbanos ou rurais; remete-nos a como as festas natalinas também
têm sua representatividade nas publiCIDADES mundo afora, por meio das ruas
e avenidas enfeitadas, das vitrines das lojas e dos grandes magazines, das praças e
shopping centers, das enormes árvores de Natal como monumentos midiáticos e os
símbolos natalinos. Já na cidade de Belém do Pará o mundo é o da celebração da
fé na Rainha e Padroeira da Amazônia com suas diversas procissões que culminam
na grande procissão do dia do Círio, nas casas, ruas, avenidas e barcos enfeitados
como vitrines para homenagear Nossa Senhora.

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216
A FESTA DA CHIQUITA:
ESPAÇO DE COMUNICAÇÃO E RESISTÊNCIA

Jennifer Tainá Nauar Pantoja79


Lucas Lucas Muribeca Figueiredo80
Ronaldo Palheta da Silva81
Victória Ribeiro de Oliveira 82

Introdução

O presente artigo busca compreender o significado simbólico e representativo


da famosa “Festa da Chiquita”, evento cultural que ocorre anualmente na Praça da
República, em Belém, sempre à véspera do Círio de Nazaré, festividade religiosa
que acontece no segundo domingo de outubro na capital paraense. Iniciando
sempre logo após a passagem da imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré
na procissão da Trasladação (que ocorre no sábado, véspera do Círio), a festa tem
um público majoritariamente formado pela comunidade LGBTQIA+. Assim
sendo, este estudo tem como objetivo apresentar a configuração histórica da Festa
da Chiquita, que ao longo dos anos e da sua tradição tornou-se um verdadeiro
espaço de resistência, não apenas para a comunidade LGBTQIA+, mas também
para uma parcela da população que é desfavorecida por sua condição econômica
ou identidade de gênero.
A pesquisa apresenta, ainda, a comunicação de resistência presente na festa,
com o seu público ganhando espaço para expor suas ideologias, valores e sensações,

79 Mestranda do programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Aamazônia – PPGCOM/


UFPA. Produção da disciplina Estudos de Temas Amazônicos II. E.mail: jennifernauar@hotmail.com
80 Graduado em Jornalismo. Produção da disciplina Estudos de Temas Amazônicos II. E.mail: lucas-
muribecaf@gmail.com
81 Aluno da Graduaçao em Jornalismo. Produção da disciplina Estudos de Temas Amazônicos II.
E.mail: ronaldojrpalheta@gmail.com
82 Aluno da Graduaçao em Jornalismo. Produção da disciplina Estudos de Temas Amazônicos II.
E.mail: vicro201095@gmail.com

217
bem como partilhá-los coletivamente e de formas diversas. A Festa da Chiquita
foi idealizada e criada pelo sociólogo carioca, Luís Bandeira, na década de 70, e a
partir de 1990, a festa passou a ser coordenada pelo artista Elói Iglesias, que propôs
uma mudança na dinâmica do movimento, tornando-o uma festividade voltada
para o público LGBT e “simpatizante”.
De acordo com o historiador Antônio Costa, a

Festa da Chiquita”, ocorrida na véspera da procissão principal


e num trecho do seu percurso (Rua da Paz, em frente ao Teatro
da Paz, à margem da Avenida Presidente Vargas), na noite de
sábado para domingo, é um evento voltado principalmente
ao público homossexual, em que ocorrem apresentações de
cantores regionais, de grupos folclóricos, shows de travestis,
entrega de prêmios artísticos, dentre outros (COSTA, 2009,
p. 180, nota de rodapé 124).

Inicialmente, a Festa da Chiquita era chamada de “Filhas da Chiquita” ou


“Festa da Maria Chiquita”. O nome deu-se a partir da famosa personagem das
marchinhas de carnaval, Chiquita Bacana, “mulher existencialista que só faz o que
manda o coração”.

Iniciada entre os anos de 1975 e 1976, como o nome de “Festa


da Maria Chiquita”, ela reunia um grupo de boêmios, intelec-
tuais, acadêmicos, artistas, jornalistas, fotógrafos, curiosos, etc.
No entanto, era apenas um bloco carnavalesco. Porém, a partir
de 1978, ano em que a festa foi transferida para o sábado da
Trasladação, e devido às mudanças na estrutura e organização,
a Chiquita transformou-se num dos eventos não-religiosos
que fazem parte do calendário de comemorações religiosas do
Círio de Nazaré. (FILHO, 2014, p. 10).

Assim sendo, a Festa da Chiquita configura-se como espaço de articulação e


acolhimento de pessoas consideradas “à margem da sociedade”, seja por sua con-
dição econômica, de orientação sexual ou identidade de gênero. Esse momento
de convivência mostra-se, ainda que promovido pelo Movimento LGBTQIA+ da

218
região, como fator de inclusão e, nos últimos anos, tem atraído artistas, intelectuais
e a população em geral que assiste as apresentações realizadas na festa.

Festa da chiquita: o sagrado e o profano

Buscando se articular como um espaço de cidadania e tendo como pano de


fundo âmbitos tão importantes e cruciais da existência humana, como a sexuali-
dade, política, arte e religiosidade, a Festa da Chiquita se afirma como um lugar
de debate que levanta bandeiras e resiste contra as imposições de dogmas sociais
representados nas instituições que norteiam o comportamento em sociedade.
Esse espaço de manifestação das diversas sexualidades envoltas por caracteres
artísticos, enfrentou ao longo dos anos diversas barreiras, tanto de setores da or-
ganização do Círio de Nazaré e alas mais conservadoras da igreja, quanto embates
com o próprio poder público. Esse aspecto se reforça no fato de que a organização
não reconhece a festa como parte do calendário das comemorações nazarenas.
O pesquisador Milton Ribeiro do Programa de Pós-Graduação em Ciência
Sociais da Universidade Federal do Pará corrobora que, apesar dos avanços no que
diz respeito ao fortalecimento dos direitos da população LGBTQIA+, ainda há
uma “homofobia institucional”.

Apesar da visibilidade das pessoas LGBT na Festa da Chiquita,


da frequência cada vez mais “tolerada e permitida” em boates,
bares, saunas, cinemas, clubes e festas e do fortalecimento dos
contatos e das redes sociais (online ou off-line) existe uma
intensa manifestação no sentido contrário, externalizada em
atos do que podemos chamar de homofobia institucional,
como os descritos acima, operados por indivíduos e insti-
tuições contrárias às manifestações homoeróticas, isto é, a
quaisquer divergências em relação às combinações impostas
como “naturalmente determinadas” colocando os sujeitos que
a expressam em lugar de desvantagem social; num período do
ano, particularmente interessante em Belém, pois é o momento
de maior sensibilidade religiosa…(RIBEIRO, 2014, p. 200).

219
Tendo em vista que o espaço transita entre a linha tênue do proibido e do
permitido, as dinâmicas presentes na festa permitem atentar para alguns pontos
interessantes de análise. Ainda segundo Milton Ribeiro, essa “festa dentro da festa”
pode ser compreendida como resultado da afirmação política e das reivindicações
dos sujeitos homoeróticos que tomam a Praça da República após a passagem da
Trasladação na noite de sábado que antecede o Círio. De acordo com Ribeiro,

[...] tudo isso envolto numa atmosfera onde a noite representa


um papel importante por: permitir que as travestis, drag-que-
ens, transexuais, lésbicas, gays, bissexuais e outros “carnavali-
zem” suas performances em plena noite de sábado, antes do
domingo do Círio, no mês de outubro, no centro de Belém;
contestar o “anonimato relativo” das sexualidades dissidentes,
visto que, atualmente, o exagero faz parte da festa; e estabelecer
um caminho de respeito e dignidade ao promover durante a
festa os prêmios “Veado de Ouro”, “Botina de Prata”, “Amigo
da Chiquita” e “A Rainha do Círio83.

Comunicação e resistência

Por outro lado, um aspecto importante a ser analisado sobre a Festa da Chi-
quita, é buscar compreendê-la sob a perspectiva da comunicação e, sobretudo, da
comunicação de resistência. Nesse momento em que ideologias, valores e sensações
são partilhadas em coletivo e expressas sob diversas formas, nota-se na composição
da festa seu caráter de autoafirmação.
Maria Nazareth Ferreira, professora da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, no artigo “Comunicação, Resistência e Cidadania: As
festas populares” discorre sobre as festas populares como sistema de comunicação
das classes subalternas e fortalecimento da memória histórica e da resistência cul-
tural dessas classes. Segundo a autora,

83 Ibid, p. 209

220
As festas podem ser examinadas do ponto de vista da atividade lúdica, mas
também como um acontecimento aglutinador da realidade das comunidades
envolvidas, no sentido de avaliar seu potencial como formadora da cidadania, da
conscientização e da participação social, porque um dos elementos mais signifi-
cativos no processo de realização da festa é a transformação do indivíduo comum
em protagonista daquele evento. (FERREIRA, 2006, p. 111-112).

Sendo assim, é imprescindível destacar como esse espaço em que se manifesta


esse fenômeno claramente identificado como um objeto passível de estudos da
comunicação, torna-se um vetor de resistência em que práticas e manifestações
que fogem ao padrão social confluem para a sua realização em um espaço aberto
e democrático, no sentido de, dentro de sua conjuntura, poder proporcionar aos
participantes maior liberdade de expressão.

É necessário salientar que a festa estabelece uma relação com-


plexa com a realidade; não é uma simples reprodução ou inver-
são de sentido; a festa recolhe experiências que normalmente
são vivenciadas em separado, e acrescenta sentido àquilo que no
cotidiano é percebido como descontinuidade. Neste sentido, a
festa estabelece uma relação com o seu contexto, ao menos, de
dois modos: como inversão, na medida em que o tempo mítico
inverte a realidade cotidiana, e como reprodução do mundo
cotidiano; através da performance; a reprodução permite um
acréscimo de sentido que pode ser o valor da reconstrução da
identidade ameaçada e um aumento da percepção das relações
sociais (a importância do sentimento de pertencer a determi-
nada comunidade, cujas raízes são comuns, como nas festas
populares), onde o processo comunicativo-cultural é dado
através da performance, capaz de atrair a atenção de indivíduos
estranhos à festa, como é o caso dos turistas.84.

Portanto, partindo de tal perspectiva, a Festa da Chiquita encarna uma es-


pécie de rompimento com a ordem estabelecida, configurando-se como uma voz
que ecoa as experiências e vivências dos que encontram-se a margem em diversos

84 Ibid, p. 115

221
aspectos já mencionados e que não são contemplados pela celebração oficial do
Círio de Nazaré.

A chiquita dentro do círio de Nazaré

A festa da Chiquita acontece em Belém do Pará no intervalo entre as duas


maiores procissões da festividade de Nossa Senhora de Nazaré: a trasladação que
ocorre no sábado a noite, e que sai da basílica santuário e vai até a catedral metropo-
litana de Belém, e o famoso Círio, que faz o sentido inverso da procissão noturna.
O Círio de Nazaré é considerado a maior procissão religiosa do Brasil, e uma
das maiores do mundo. Cerca de dois milhões de pessoas se reúnem anualmente
como forma de devoção à imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré. O
público é predominantemente católico, porém existem pessoas de outras religiões
que também fazem parte da romaria.

A cada ano se realiza um Círio de Nazaré de Belém: um mo-


mento do processo histórico da construção social de um es-
paço-tempo simbólico estruturado por legítimas razões de fé,
com o concurso oportunista da alegria, da cultura, da política
e do mercado. Trata-se, ao mesmo tempo, de oportunidade de
validação da dimensão sagrada da vida e uma sua consagração
profana (COSTA, DINIZ, FARIAS et al, 2006. P. 4).

A participação de diversas religiões acontece, principalmente, porque o Círio


de Nazaré não é uma festa católica fechada. Muitas pessoas viajam até Belém para
poder assistir a este evento que movimenta vários aspectos do estado do Pará,
como a cultura e a economia. Por isso, é possível dizer que o Círio de Nazaré não
é algo exclusivo da religião católica, mas um movimento cultural que atravessa
grande parte da população paraense, onde a classe social ou política em que cada
indivíduo está inserido ganha pouca visibilidade, permitindo que a festa do Círio
de Nazaré consiga alcançar diversas camadas populares.

222
No Círio de Nazaré há um clima que dilui as barreiras e fron-
teiras entre o sagrado e o profano, entre o rico e o pobre,
entre o católico e os membros de outras denominações. E,
sobretudo, em ambas as dimensões se privilegiam o coletivo
e a convivialidade em oposição ao individualismo engendrado
pelas características urbanas. (FRUGOLI, R e BUENO, M.
S, 2014. p. 153).

Espíritas, protestantes e seguidores de outras religiões acompanham o Círio


de Nazaré. A partir de tal movimento, pode-se compreender que a festa ultrapassa
o religioso, tornando-se um marco cultural que influencia fortemente o turismo
e a economia. Como explica Maria de Nazareth Ferreira (2006), “É em defesa de
outra forma de turismo — o turismo cultural - que uma proposição para o estudo
científico das atividades festivas das classes subalternas tem sentido”. A quadra
Nazarena é composta fortemente pela matriz religiosa que envolve toda a festa do
Círio de Nazaré. São 12 romarias que acontecem durante os 15 dias de evento.
Porém, um ponto importante a ser abordado neste artigo é a relação que o
profano tem com o religioso durante o Círio de Nazaré. Como forma de dar voz
a outras pessoas que vivem na margem da sociedade, mas que de alguma forma
possuem um vínculo com a festividade do Círio, como gays, lésbicas, travestis
e transexuais, é que se realiza a Festa da Chiquita, organizada e planejada pela
comunidade LGBTQIA+ de Belém.
A festa da Chiquita começa logo após a imagem peregrina de Nossa Senhora
de Nazaré passar pela Praça da República, localizada na Avenida Presidente Vargas,
na procissão da Trasladação que ocorre na noite de sábado que antecede a procissão
principal. A “Chiquita”, como é popularmente conhecida a festa, ainda que não
faça parte do calendário oficial da festividade do Círio, é tombada pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), além de ser
reconhecida como patrimônio imaterial e cultural do Pará. No entanto, mesmo
com todo esse reconhecimento, a igreja católica se opõe fortemente contra esta
manifestação cultural.

Os festejos do Círio oscilam entre o polo religioso no qual


a população comunga sua fé e celebra sua devoção e o polo
profano que oferece a possibilidade de uma participação ativa

223
na qual se criam momentos para a convivialidade e o com-
partilhamento festivo de seus valores. Se o sagrado propicia o
conforto espiritual ou psicológico da proteção e do auxílio da
Santa, o profano, através das manifestações festivas, promove
a participação coletiva que une e integra a comunidade. Tudo
vai permitir falar mais vigorosamente sobre as tradições e re-
-dinamizar as relações sociais e os valores comuns (FRUGOLI,
R e BUENO, M. S, 2014.p. 153).

A festa possui diversos elementos cenográficos e coreográficos, que a colocam


em um estilo carnavalizado. Além de envolver músicas e performances, o evento
também envolve muitas fantasias, diversão e o seu sentido festivo. A estudiosa
Claudiana Soerense, utiliza os conceitos de Bakhtin para explicar de que forma
os elementos da carnavalização se unem para formar o sentido completo da festa.

O carnaval constituía um conjunto de manifestações da cultura


popular medieval e do Renascimento e um princípio, organi-
zado e coerente, de compreensão de mundo. A organização e
coerência vêm do riso, do caráter festivo que as diversas formas
de manifestações carnavalescas (as festas públicas carnavalescas,
os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes,
anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias,
a literatura paródica, vasta e 328 multiforme, entre outros)
possuem. A unidade de estilo e a relação com o riso constituem
elementos agregadores da cultura carnavalesca (SOERENSEN,
2011, p. 327).

Durante a festa da Chiquita, que costuma ocorrer até horas antes do Círio
de Nazaré, muitas premiações e disputas são feitas. Como os tradicionais prêmios
“Veado de Ouro”, “Botina de Ouro” e “Rainha do Círio”. Já o estilo musical varia
desde tecnobrega, ritmo de grande influência paraense, até o pop internacional, e
o público costuma lotar a Praça da República para ver toda a programação.

Por outro lado, a festa possui uma dupla e contraditória po-


tencialização entre conservação e criatividade cultural. De um

224
lado, empurra o indivíduo à figa, à evasão da realidade banal,
do cotidiano, para mergulhá-lo no momento mágico da festa,
que é também o momento do sagrado e do caos primordial.
Essa evasão é provocada pelas técnicas que constituem a parte
essencial da instituição festiva: o riso, o jogo, a dança, a música,
a alegria, o descontrole orgiástico, o dramático etc. De outro
lado, o clima festivo abre uma possibilidade psicológica e for-
nece uma carga de energia psíquica que permite ao indivíduo
enfrentar com vigor e independência criativa as batalhas do
cotidiano. (FERREIRA, 2006, p. 114).

A população LGBTQIA+ de Belém tem a festa como um espaço de visibili-


dade. Sendo que esse é o ponto principal que leva à reflexão da festa: a questão
dos direitos coletivos que tal parte da população reivindica. Mesmo antes das tra-
dicionais “paradas gays”, a festa da Chiquita já existia para dar voz à comunidade
gay, que assim como em várias partes do Brasil, também sofre muito preconceito
em Belém. Logo, ter espaços de diálogo e visibilidade torna-se imprescindível para
estabelecer relações sociais e tratar diversas questões que ainda são tabus para parte
da população, como a transexualidade.

Tanto no aspecto religioso quanto na dimensão profana, a


festa do Círio supõe uma expansividade coletiva cuja função
primordial é estabelecer relações sociais. Se por um lado o
espaço das procissões e eventos religiosos sacralizam os espaços
da cidade, por outro as relações sociais através da participação
em eventos como o almoço do Círio, por exemplo, ganham
o caráter solene de pertencimento coletivo. (FRUGOLI, R e
BUENO, M. S, 2014, p. 153).

Esse é o principal diferencial da Chiquita que, além de ser um espaço de diver-


são, também é um lugar de questionamento para a quebra de paradigmas em meio
a maior procissão religiosa do Brasil, organizada por uma instituição conservadora
como a igreja católica.

225
Considerações finais

A Festa da Chiquita afirma-se cada vez mais como um espaço de comunicação


e resistência, fruto de reivindicação e afirmação política dos diversos sujeitos que
tomam a Praça da República, fazendo dela uma atmosfera que permite, desde o
exagero, à práticas simples que são tidas como profanas, sobretudo dentro de uma
festividade maior, que é o Círio de Nazaré. Através de um apanhado histórico,
fazendo a leitura da evolução da Chiquita desde a década de 70, quando se deu
início à manifestação, é possível verificar a consolidação da festa como um lugar de
contestação que ganha seu espaço, sobretudo com o reconhecimento do IPHAN
como patrimônio histórico.

Referências

COSTA, Antônio Maurício Dias da. Festa na Cidade: o circuito bregueiro de


Belém do Pará. Belém: EDUEPA, 2009.
COSTA, Francisco de Assis et al. O Círio de Nazaré: Economia e Fé. pág. 04, 2006.
FERREIRA, Maria Nazareth. Comunicação, Resistência e Cidadania: As Festas
Populares. Comunicação e Informação, V 9, n° 1: pág 111 - 117 - jan/jun. 2006.
_____________. Comunicação, Resistência e Cidadania: As Festas Populares.
Comunicação e Informação, V 9, n° 1: p. 114, 2006.
FILHO, Milton Ribeiro da Silva. A Filha da Chiquita Bacana: uma etnografia
da Festa da Chiquita em Belém do Pará. Disponível em: <http://www.anpocs.org/
portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=8229&Itemid=76>.
Acesso em: 31 out. 2022.
RUGOLI, Ricardo e BUENO, Marielys Siqueira. O Círio de Nazaré (Pará, Brasil):
Relações entre o Sagrado e o Profano, 2014.
GEMA-UFPE. Pela permanência da Festa da Chiquita na Praça da República:
Para além do seu caráter sagrado ou profano ou simplesmente porque ela deve
ficar onde mais incomoda. Disponível em: <http://gema-ufpe.blogspot.com.

226
br/2014/08/pela-permanencia-da-festa-da-chiquita.html>. Acesso em: 31
out. 2022.
RIBEIRO, Milton. “Eu Sou a Filha da Chiquita Bacana...”. Notas antropológicas
sobre a Festa da Chiquita em Belém do Pará. Gênero na Amazônia, Belém, n.
6, jul./dez., 2014.
SOERENSEN, Claudina. A carnavalização e o riso segundo Mikhail Bakhtin.
Revista Travessias, edição XI, pp. 318-321, 2011. Disponível em: https://e-revista.
unioeste.br/index.php/travessias/article/view/4370 . Acesso em 05 nov. 2022.

227
SONORIDADES
AMAZÔNICAS
BIOINSTRUMENTOS: A CRIAÇÃO DOS RITMOS
AMAZÔNICOS A PARTIR DOS SONS DA FLORESTA
Nair Santos Lima85

Introdução

O artigo é parte da pesquisa de doutorado que trata dos espetáculos culturais


amazônicos. Observando a inserção dos bioinstrumentos nos espaços de educação,
como salas de aula e oficinas de arte, e a partir das apresentações do Grupo musical
amazonense Gaponga, infere-se que as experiências cotidianas dos artesãos amazô-
nicos conferem legitimidade na confecção dos instrumentos musicais resultantes
do processo de transformação da matéria-prima da floresta, bem como gera impor-
tância desses eventos nos espaços de cultura. Nesse percurso, busca-se conhecer a
origem sonora e substitutiva dos bioinstrumentos e da relação do homem com suas
experiências vivenciadas com a floresta, por meio da noção de cultura amazônica
inaugurada na obra de Paes Loureiro, enquanto poesia do imaginário regional, e
do poeta Celdo Braga, idealizador e responsável pelo projeto.
A experiência sonora vivenciada em um espetáculo cultural é singular e afeta de
modo diferente cada espectador, independente de padrão social, de conhecimento
musical ou do espaço de apresentação. Essa sinergia fica mais evidente quando
envolve experiências vivenciadas no cotidiano daquele que assiste e de sua relação
com o lugar demarcado como práticas comunicacionais, culturais e subjetivas. Este
artigo sugere uma reflexão sobre a experiência produzida a partir da utilização dos

85 Doutoranda do programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia. Integrante do


Grupo de pesquisa LAPAM/UFPA. E-mail: nslima1405@gmail.com

229
bioinstrumentos86 na música e da similaridade e sonoridade com os sons da floresta,
como o canto das aves, o rastejar dos répteis e o som dos igarapés apreendidos por
meio da sensibilidade e criatividade musical de seu idealizador87, a partir de suas
memórias no ambiente amazônico.
A noção de cultura amazônica presente nas obras de Paes Loureiro conforma
a experiência comunicativa e subjetiva na vida cotidiana do ser amazônico, e nos
permite conhecer o modo como essa cultura se evidencia no ambiente escolar e na
concepção artística do espectador, quando das apresentações da música regional.
Esse olhar contempla as práticas artístico-musical das experiências vivenciadas, “da
livre expansão do imaginário” (PAES LOUREIRO, 2015, p. 122). Essa percep-
ção esquadrinha o movimento, as nuances e os ritmos da poesia do imaginário88
amazônico, no qual os povos desse território fazem seus percursos, suas histórias,
seus lares, (re)criam seus ambientes e suas festas.
A ênfase do termo ‘cultura amazônica’ recai na cultura local, do lugar, “nascida
em tal contexto” amazônico. Esse ambiente irradia uma aura próxima do que con-
vencionou-se chamar de “culturas míticas ou das origens”. E é desse lugar “imaginal”
que o autor experiencia essa cultura e pontua sua estética. Na confluência desses
saberes originários, ressalta-se que há benefício dessa qualidade cultural amazônica
na produção artística por comportar “qualidades expressivas originais e significati-
vas, componentes de sua estrutura de conteúdo e expressão’’ (PAES LOUREIRO,
2015, p. 15). Os bioinstrumentos são objetos vindo da floresta (sementes, cuias,
ouriços etc.) e que foram introduzidos na música regional amazônica, a partir da
semelhança com os sons da natureza, como o cantar dos pássaros ou o som das
águas de um igarapé.

86 Objetos construídos, sobretudo, a partir do descarte da floresta e empregados como instrumentos


musicais, tanto nos cursos de música do Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro (Amazonas), quanto nas
apresentações artísticas do grupo musical Gaponga, cujo líder é também o idealizador do projeto.
87 Celdo Braga é natural de Benjamin Constant (AM). É poeta, professor e músico. Criou o grupo
musical Raízes Caboclas, o Imbaúba e, atualmente, o Gaponga, para o qual idealizou o projeto de confecção dos
bioinstrumentos, com parceria do governo do Estado para a inserção nos cursos de percussão do Liceu Claudio
Santoro, do Amazonas.
88 O imaginário foi foco, ao longo do século XX, de estudiosos, como: Gaston Bachelard, Sigmund
Freud, Gilbert Durand, Michel Maffesoli, Jacques Lacan, Cornelius Castoriadis, Paul Ricoeur e Henri Corbin,
dentre outros. Com significações e dimensões diversa, definiram-no como o conjunto das atitudes imaginativas
que resultam na produção e reprodução de símbolos, imagens, mitos e arquétipos pelo ser humano (Durand) ou
como o patrimônio de um grupo (Maffesoli), por exemplo.

230
Metodologia

Este artigo seguiu uma perspectiva metodológica “pendular” para compreender


a importância da inserção dos bioinstrumentos na educação musical de jovens,
dos cursos ofertados pelo Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro, nos muni-
cípios amazonenses atendidos. Por meio da observação participante, procurou-se
compreender como as vivências compartilhadas na e com a floresta pode inferir
na produção de objetos sonoros, em um ambiente coletivamente experienciado
por espectadores e alunos, e que contribuem para o florescimento ou valoração
de uma sensibilidade estética amazônica entre os diferentes públicos presentes no
espaço do show e na sala de aula, tanto nas apresentações do grupo Gaponga89 – no
Teatro Amazonas – quanto nas apresentações do grupo na Plataforma YouTube,
de modo virtual.
Os bioinstrumentos passaram a ser utilizados na formação do primeiro gru-
po musical criado pelo poeta Celdo Braga – Raízes Caboclas (1983-2008). Em
2008, migrou-se para o Grupo Imbaúba conservando-se a concepção de “cantar
a Amazônia” e acrescentando o aspecto ambiental na formação do grupo. No Ga-
ponga, projeto criado em 2018 – motivo pelo qual os bioinstrumentos recebem
esse nome – a proposta inicial permanece, a de cantar a Amazônia e seus valores,
além de manter a referência dos traços culturais amazônicos com a prevalência da
música autoral e a criação do ritmo amazônico com os sons que vêm da floresta,
dos pássaros, sapos etc.
O grupo Raízes Caboclas utilizava, além do violão o atabaque, que é um
instrumento musical de percussão de formato cilíndrico, o chocalho indígena ou
maracá90 e a taboca, uma espécie de pífano ou flauta rústica. Com o Imbaúba,
introduziu-se os tambores produzidos com tronco de tucumanzeiro e, mais tarde,
com o Gaponga houve um interesse maior pela fabricação dos bioinstrumentos,
das cuias, sementes, folhas etc., “extraindo” sons variados, como do artefato “chuva
circular” que é uma meia cuia com contas ou miçangas em seu interior e que agitadas
emitem o som com rajadas de chuva. Logo, as peças passaram a ser confeccionadas
pelo próprio Gaponga com características de objetos artísticos.

89 Diz-se do som dos frutos e sementes ao cair dentro d’água. Significa pescar com som. (Braga, s/d).
90 Chocalho feito de cabaça, coco, bastante usado pelos índios. Está presente em diversos rituais e no
folguedo do bumba-meu-boi do Maranhão.

231
No Raízes Caboclas, Celdo Braga passou a inserir sons da floresta em suas
composições musicais e a criar seus próprios instrumentos do recurso da floresta:
folhas, sementes, cuias etc., portanto, com conhecimento ancestral e musicalidade
orgânica. Nesse espaço-tempo a diversidade de peças aumentou e o acervo do poeta
já soma mais de 100 (cem) peças catalogadas91, de sua autoria e em parceria com
o percussionista do grupo musical Gaponga.
O trabalho catalogado conta ainda com uma caneta digital92 que faz a leitura
de cada imagem/peça e da sonoridade orgânica, como o som da água retirada da
canoa, do pisar nas folhas ao caminhar na mata ou o ruflar das asas de um pássaro
... um misto de sons numa poética imaginária amazônica.
Figura 1 – Catálogo de bioinstrumentos Gaponga/música orgânica

Fonte: Arquivo pessoal do poeta e músico Celdo Braga

No fragmento do poema Devoção pode-se compreender a complexidade da


experiência ribeirinha e da nascente da cultura cabocla da região amazônica:

(...) cada palmo deste chão / tem dimensão do sagrado em


momentos de oração / beleza, graça, doçura da mais sublime
91 Na conversa com Celdo Braga, em 31 de março de 2022, o acervo já dispunha de 100 peças.
92 Para mais informações: https://www.youtube.com/watch?v=fFeknSjBpQY. Acesso em: 04 nov.
2022.

232
canção (...) O tempo daqui é manso, selvagem só no seu jeito,
rios negros, rios brancos, ora largos, ora estreitos / Quem na-
vega bem conhece a fundura dos seus leitos / e o rio de todas
as águas tem nascente no meu peito / Trago na mão calejada
lembrança do que plantei / no som de cada remada, os rios
que naveguei (...) (BRAGA, s/d).

Nesse ambiente cultural o ser amazônico vive um momento de reorganização


e reconhecimento de seu espaço e entende que do chão ainda não dessacralizado
pode-se viver uma relação de harmonia, valorização, e que por seus saberes se pode
produzir com criatividade alicerçada por sua cultura,

Onde o coração vive ardoroso do espírito e onde brota ainda


aquele leite e mel das sagradas origens. Em que os mistérios
da vida se expõe com naturalidade, o numinoso acompanha as
experiências do cotidiano e os homens são eles ainda – e ainda
não os outros de si mesmos” (PAES LOUREIRO, 2015, p. 35).

Da numerosa população indígena e trajetória histórica, como também dos


rastros deixados na região, observa-se que dos resíduos culturais a Amazônia confi-
gura-se, ainda, por dois aspectos relevantes – identidade e isolamento. Esses fatores
decorrem, sobretudo, de dois aspectos: em primeiro plano, antes da migração
nordestina para a extração do látex, cuja realidade incidia sobre o predomínio
do índio sobre o negro e o branco, e do caboclo – descendente do índio com o
branco. Entretanto, diferentemente do êxodo nordestino, a migração do negro
como escravo objetivava suprir a mão de obra voltada para a construção de fortes,
plantação de cana-de-açúcar ou da lavoura do algodão, na região bragantina. Essa
população ocupou áreas próximas a capital paraense, mas também as proximidades
do estado do Maranhão.
Em segundo plano, ressalta-se que pela própria natureza do território, das
condições geográficas, políticas e sociais, a Amazônia se manteve isolada do res-
tante do País até a abertura da rodovia Belém-Brasília, no início dos anos 1960.
Outras rodovias surgiram nas décadas de 1970 e 1980, o que facilitou um novo
ciclo migratório para a região na década seguinte, principalmente de agricultores

233
vindos do sul do País, mas também daqueles que se aventuravam nos garimpos
de ouro da região.
Embora no período colonial e ainda no século XVIII a economia se sustentasse
da floresta93 e, posteriormente, no século XIX com a extração da borracha para
exportação, concebe-se que a Amazônia vive de seus ciclos, necessitando de tempo
para renovação de seu solo, revitalização da flora, reorganização de seus espaços e
reconhecimento de sua cultura em todas as suas fases, por que “nada está totalmente
organizado em compêndios na cultura amazônica” (LOUREIRO, 2001, p. 25).
Na perspectiva em que se configuram outras amazônias, dos territórios dos
povos indígenas e de seus saberes, suas crenças, da íntima relação com a natureza
e embora de uma cultura invisibilizada, mas resistente na travessia do tempo, o
poeta Celdo Braga produz sua arte: sons e poesia, música e artesanato, assim se
constroem os bioinstrumentos Gaponga – a sonoridade amazônica reproduzida
no papagaio moleira, na revoada de periquitos, tucano, pererecas, no sapo kambô
e muitos outros sons da floresta e dos rios, como a arraia estilizada em um instru-
mento de quatro cordas.
Dentre as composições musicais do grupo, os sons são em sua totalidade pro-
duzidos das sementes, cascas de árvores, cuias, resíduos de madeira e de material
descartado. São experiências imemoráveis de quem vive a região. Nesse acervo so-
noro encontram-se, por exemplo, duas metades de cuias ou semi cuias no formato
de seios femininos e que reproduz o som de chocalhos, um coco com um parafuso
e que com movimentos próprios imita o coaxar de um sapo “cururu”, também
de uma cuia com um balão em um dos lados se “extrai” o som de buzina de uma
embarcação cruzando os rios da Amazônia.
Corrobora com essa especificidade cabocla a filósofa Neiza Teixeira (apud Paes
Loureiro, 2015, p. 17): “Os povos aqui instalados possuem maneira diferenciada
de compreender o mundo. Os caboclos, mesclados até o âmago da cultura indí-
gena, criaram um olhar próprio” e, por meio desse olhar, Celdo Braga compôs
“Água Doce”, cuja sonoridade foi extraída da proteção do cacho da palmeira Inajá
transformada em tambor d’água, metáfora da poluição dos mananciais de água
doce – “um apelo pela revitalização dos igarapés” e da concepção ambiental do
projeto, segundo o compositor.

93 Os produtos de exportação nesse período se concentravam sob a denominação de “drogas do sertão”,


que eram plantas destinadas à preparação de alimentos, como a canela, pimenta, cravo, cacau, raízes aromáticas
e outras relacionadas à produção de fármacos, como a salsaparrilha utilizada no combate à sífilis.

234
Do predomínio da população indígena e cabocla da região, da experiência
com a economia de subsistência, de seus lugares de vivência do estar-junto e dos
saberes acumulados por séculos constituíram-se dos fatores que permitiram que
a cultura cabocla94 resistisse e conferisse singularidade ímpar dentre as demais
culturas nacional. Embora no contexto político o termo caboclo(a) pareça por-
menorizar o amazônida, no cotidiano desses povos as limitações étnicas parece
indicar pertencimento.
Na literatura regional da Amazônia brasileira, vários são os autores que abordam
a cultura cabocla como cultura amazônica, e essa tendência ocorre tanto na música
quanto nas artes plásticas. Com efeito, o termo “caboclo” é bastante instável, visto
que, em determinadas circunstâncias se adequa, e em outras situações parece in-
comodar. De todo modo, na contemporaneidade, no contexto regional da cultura
amazônica, a palavra assume o significado “amigo” ou ainda, de “muito próximo”.
Loureiro (2015) sugere ampliar o conceito de cultura cabocla, a fim de ultrapassar
essas limitações, visto que o termo alude à identidade cabocla que não pode ser configu-
rada a um lugar preciso, uma vez que todo ponto humanizado no espaço amazônico é
seu” (GRENAND, 1990, p. 33 apud LOUREIRO, 2015, p. 49). E, portanto, desse
espaço amazônico de vivências compartilhadas, questiona Krenac (2019, p. 16):

No Equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos


Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam
casais. Tem mãe, pai, filhos, tem uma família de montanhas
que troca afeto, faz trocas. (...) Por que essas narrativas não nos
entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas
em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer
contar a mesma história para a gente.

94 Cultura do caboclo. De origem indígena, homem que vem do mato, da floresta.


Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro (1962) afirma que até fins do
século XVIII a palavra “caboclo” era sinônimo oficial de indígena. Ainda segundo Cascu-
do, nos dias atuais serve para indicar “o mestiço e mesmo o popular, um caboclo da terra,
ou ainda, “indivíduo nascido de índia e branco (ou vice-versa), fisicamente caracterizado
por ter pele morena ou acobreada e cabelos negros e lisos” (HOUAISS, 2001). Todavia,
do ponto de vista cultural, a percepção que se tem é a de que eles mantêm meios próprios
de se relacionar com a natureza, com a religião e com a comunidade mais ampla da qual
participam.

235
Desse contexto, presume-se que a cultura amazônica floresce numa nova am-
biência, um novo ciclo consubstanciada pelo coletivo, pela comunidade, numa
nova forma de brotação de saberes, de consciência e “(...) onde ainda se constata
uma incessante produção de narrativas fabulosas na oralidade que caracteriza a
sociedade regional amazônica (PAES LOUREIRO, 2019, p. 1).

Dos bioinstrumentos na prática

No sentido de contribuir com a cultura regional amazonense, o grupo mu-


sical Gaponga, por meio de seu representante – o poeta Celdo Braga, selou no
ano de 2019 uma parceria com a Secretaria de Cultura do Estado, a qual passaria
a ministrar aulas de percussão amazônica nas dependências do Liceu de Artes e
Ofícios Cláudio Santoro. Esse projeto incluía oficinas de criação de bioinstrumen-
tos – que atenderiam alguns municípios do Amazonas – nas quais os participantes
passariam a confeccionar seus próprios artefatos de percussão, e nesse sentido, o
projeto passou a ser executado.
O grupo musical Gaponga se consolidou em um projeto que, além das com-
posições da música regional amazônica, potencializa a confecção de instrumentos
musicais – da natureza à arte – e se estende para outros espaços de socialidades. Os
instrumentos depois de coletados e (re)criados passam a ser ressignificados como
bioinstrumentos e que compõem os elementos percussivos do Grupo.
As atividades vinculadas à escola de música teve início quando da criação de
uma turma infantil experimental e independente do curso de percussão regular
da instituição. A turma tinha em média cinco anos de idade e as crianças iam
acompanhadas por seus pais, e nesse ambiente, enquanto o professor apresentava
os instrumentos trabalhando a rítmica da Amazônia, diametralmente, o aluno
trabalhava a coordenação motora – como marcação de tempo no instrumento ou
de repetição de célula em um processo de imitação – relacionando as músicas do
Gaponga para que o aluno entendesse o ritmo e a sonoridade de cada instrumento
dentro da música.
A inserção dos bioinstrumentos na sala de aula começa pela apresentação da
caixa que acondiciona os acessórios – os bioinstrumentos – uma espécie de kit

236
contendo pequenas peças desenvolvidas para o público infantil daquela instituição,
como: sapinhos, chocalhos, maracas e xeques, além de peças mais delicadas que as
crianças aprendem a guardá-las depois do uso. Tambores, como o de vara também
fazem parte do material produzido. Ressalta-se, porém, que nem todos os alunos
têm a mesma desenvoltura, mas o professor consegue perceber, por exemplo, no
próprio tempo de aprendizado que vai além da sala de aula, como nos treinos em
casa, em que o aluno acompanha a música selecionada “substituindo” o percus-
sionista. E essa dinâmica é percebida e registrada em vídeos que os pais fazem e
apresentam ao professor.
A suspensão das aulas pela pandemia desestimulou essa turma de alunos, os
quais não tiveram o resultado esperado, e, apesar do retorno das aulas presenciais,
a classe ficou reduzida. Entretanto, aqueles que continuaram a frequentar as aulas
concluíram a primeira etapa, a fim de galgar o nível seguinte, que é a aprendizagem
de um outro instrumento. Ao final desse período, o curso passou a ser disciplina
no currículo de Percussão do Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro, do estado
do Amazonas.
O projeto que envolve os bioinstrumentos abrange ainda as oficinas que ocor-
rem em alguns municípios amazonenses, nas quais os alunos aprendem a criar seus
próprios instrumentos, numa dimensão que aborda a concepção, a confecção e
a percepção da sonoridade de cada elemento. Entre teoria e prática, o município
de Silves (AM) formou o grupo “Sapopema” o qual reuniu no ano de 2021 um
número expressivo de espectadores em sua primeira apresentação no Teatro Ama-
zonas, em Manaus.

Amazônia – identidade inautêntica

A cultura amazônica, a priori, é uma construção com base na realidade geo-


gráfica regional, resultante, em sua gênese, do isolamento com as demais regiões
do País e da cultura do caboclo, esta moldada pela convivência entre indígenas e
outros povos que se instalaram nos diversos ambientes da região em épocas passadas,
como: seringueiros, garimpeiros, vaqueiros, os coletores de castanhas, de pele de
animais, fazendeiros, comerciantes, os artesãos e todos os demais trabalhadores do

237
extrativismo florestal e em função do rio. Entretanto, muitos desses trabalhadores
tiveram que se adaptar à cultura do lugar onde foram inseridos e em um modo
de vida singular e de desafios causado principalmente pela dificuldade de retorno
às suas origens.
A percepção sobre aqueles que migraram para a Amazônia em épocas passa-
das pode ser compreendida pelo que Heidegger trata como ser–no–mundo95, a
partir da questão que norteia seu pensamento: como é Ser humano? (e não, o que
é Ser humano?) O mundo de que trata o filósofo é o não-cosmológico, mas o de
natureza dialética – política, econômica, sociológica etc., em que o ser é “lançado
no mundo” e, portanto, em uma vida inautêntica e angustiada, incompleta, que é
viver a vida em uma perspectiva ilusória, distanciado de suas potencialidades, das
experiências vitais, da existência humana.
A questão da inautenticidade referida não significa que a vida fosse menos,
de valor, tanto moral quanto ontologicamente, por exemplo, ou que haja uma
existência melhor. São antes, modos de existir e concebe-se como possibilidades
do ser-aí, de estar-no-mundo, uma vez que o Dasein na inautenticidade jamais se
encontra perdido. Nesse sentido, a Amazônia permeou a identidade desses migran-
tes e ela mesma torna-se inautêntica por sua incompletude de ciclos, renovável,
de uma “complexidade complexa”, tanto pela interrupção dos fluxos quanto pelas
interações (LUHMAN, 2010, p. 185).
Em meio a complexidade amazônica, busca-se conhecer o termo fundamentado
no pensamento de Morin, no qual sugere que o conhecimento pertinente deve
enfrentar a complexidade.

Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há com-


plexidade quando elementos diferentes são inseparáveis consti-
tutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico,
o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido inter-
dependente, interativo e retroativo entre o objeto de conhe-
cimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes,
as partes entre si. Por isso a complexidade é a união entre a
unidade e a multiplicidade. (MORIN, 2001b, p. 38-39).
95 Sobre o termo, Martin Heidegger, pensador alemão contemporâneo, trata como “ser lançado no
mundo” ou o ser-aí, visto que não se escolhe em que contexto viver, mas que, uma vez nessa condição, passamos
a ser-com-outros ou ser-comum, ente. Em Ser e Tempo (2006), Heidegger trata do Dasein /Ser-aí/, como o ser
pode ser compreendido, possuidor de natureza própria, que não se explica porque se expande, uma vez que está
em constante expansão e retração, em potencialidade. O ser é existente. Ele é, qualquer tentativa de explica-lo,
torna-se ente (coisificado).

238
Desse convívio em outro ambiente, construiu-se uma densa relação com a
natureza: seus mistérios, o respeito pelo tempo e suas estações, do plantio à ceifa e
apreendeu-se uma dimensão estética que circunda seu imaginário “(...) buscando
desvendar os segredos de seu mundo, recorrendo dominantemente aos mitos e à
estetização” (PAES LOUREIRO, 2015, p. 48).
Na contemporaneidade, a Amazônia é também simbolismo e produto, referên-
cia sígnica e marca que se impôs na densa diversidade cultural, dentre as quais, na
música, na diversidade da artesania regional, nas festas, como também na criação
de bioinstrumentos, isto porque,

Passamos de sociedades dispersas em milhares de comuni-


dades rurais com culturas tradicionais, locais e homogêneas,
em algumas regiões com fortes raízes indígenas, com pouca
comunicação com o resto de cada nação, a uma trama majori-
tariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta simbólica
heterogênea, renovada por uma constante interação do local
com redes nacionais e transnacionais de comunicação (CAN-
CLINI, 2003, p. 285).

E então se percebe que as comunidades amazônicas estão em um novo ciclo,


engajadas no trabalho coletivo com sustentabilidade, com foco na economia que se
origina da cultura do lugar, mas também com autonomia de produzir valorizando
sua cultura. Simmel (2006, p. 60) assegura que nesse estar-junto o caráter lúdico
da sociação se define pelo relacionamento social, de grupo. Portanto,

[...] tudo o que existe nos indivíduos e nos lugares concretos


de toda realidade histórica (...) tudo o que está presente nele
de modo a engendrar ou mediatizar os efeitos sobre os outros,
ou a receber esses efeitos dos outros.

A inautenticidade atrelada à identidade amazônica se configura pela forma de


compreensão e interpretação necessárias para a discussão de sua complexidade,
aspectos que se apresentam como fronteiras porosas diante dos fatores regionais,
socioeconômicos, cultural e político de suas populações, uma complexidade

239
panamazônica percebida desde a chegada dos pioneiros da navegação além-mar
nesse território. Visões embaçadas e teorias divergentes foram construídas sobre
“a grande esfinge do nosso tempo”96.
Com efeito, a diversidade cultural amazônica é atualmente representada por
sua “marca”, produto com base em seu imaginário e dimensão estética, por seu
dinamismo cultural, porquanto é cíclica e diversificada. O amazônida, Djalma
Batista afirma que “A natureza amazônica não está suficientemente conhecida e
estudada. Considero, por isso, em primeira prioridade, a necessidade de incentivar
pesquisas científicas e tecnológicas, que venham a servir de orientação indispen-
sável” (BATISTA, p. 36, 2007)

A marca Amazônia na música

Com a confecção dos bioinstrumentos Gaponga e como conteúdo curricular


no curso do Liceu Cláudio Santoro, mais uma face da cultura amazônica se apre-
senta: o uso dos bioinstrumentos nos eventos culturais, cujas datas significativas
têm grande repercussão local. Esse dinamismo da cultura amazônica se constitui
de “uma diversidade diversa” e ocorre em um “espaço da vida” que é o lugar onde
essas manifestações se instituem e se consolidam – na vida comunitária (LOU-
REIRO, 2005, p. 5).
Como representação simbólica, a Amazônia reflete um ecossistema rico e di-
verso, em contraponto a uma pobreza social e conflitos sobre a terra, que invadem
o contemporâneo com a dominação forte da colonialidade. De modo positivo, a
projeção da cultura amazônica motivou e viabilizou o acesso aos bens de consumo
da medicina caseira, dos artefatos indígenas, e os instrumentos musicais ou os
bioinstrumentos Gaponga como produtos, cuja marca é “Amazônia”.
Essa marca rotula o artesanato, a indústria da beleza e farmacêutica, e uma
variedade de produtos originários da floresta, além do turismo em todas as suas
vertentes agregando valor econômico e mercadológico a esses produtos. A trans-
formação da natureza em produto gerou uma marca global “institucionalizada

96 Segundo Telles (2007, Orelha do livro); axioma no qual o acadêmico e professor Tenório Telles se
refere a Amazônia, em BATISTA, Djalma. O Complexo da Amazônia (2007).

240
por parâmetros socioeconômicos, e culturais publicizados em escala mundial pelo
campo da comunicação” (AMARAL FILHO, 2008, p. 16). Nesse contexto, os
bioinstrumentos “atravessam a experiência tradicional para se consolidarem ‘além’
– um pós-tradicional” (AMARAL; ALVES, 2018, p. 37).
Em processo de comercialização, os bioinstrumentos passaram a ser abriga-
dos, segundo Celdo Braga, em uma biblioteca internacional97 na perspectiva da
comercialização, aqui denominados de “rituais de consumo”, tal como uma ampla
variedade de produtos da cultura amazônica, como: objetos, peças de vestuário,
artesanato regional e local, souvenir, hospedagens, comida regional e outros. Os
rituais de consumo constituem-se de potenciais criativos e de possibilidades de
reinvenção, visto que no aspecto econômico essa maneira de produzir “(...) está
diretamente ligada ao trabalho da comunidade que o concebeu como manifestação
da cultura” (AMARAL FILHO, 2018, p. 235, grifo nosso).
Esse processo evoca à economia de mercado, cujos rituais de consumo são
dispostos para atender a uma complexa rede de produtos e serviços, mas também
como possibilidade que permite a comunidade reavaliar seus símbolos e significados
culturais estabelecidos entre si, e nessa ritualização, os bioinstrumentos se inserem
tanto pela memória sonora regional quanto por ressignificar a vida e a tradição de
dada localidade, além do que, potencializam a habilidade de Luthier, adequando
as relações sociais no âmbito da comunidade e do mercado.
MARCA AMAZÔNIA NO RITMO
Paes Loureiro (2010) sintetiza que a cultura amazônica é um manguezal cultural
de si mesma e do mundo. A cultura é criativa, complexa, rica de significados e nesse
terreno a arte se ramifica para todas as direções. São brotações recentes para as quais
os sentidos se aprimoram: olhar, tocar, sentir, pela estética dos bioinstrumentos.
Essa é também a proposta do poeta Celdo Braga – criar um ritmo amazônico,
que, segundo o poeta,

Se prestarmos atenção, o canto dos animais tem ritmo. Come-


çamos estudando o kambô, o próximo será o uirapuru, depois
o capitão do mato, também conhecido como seringueiro ou
fri-frió. Seus cantos virarão músicas e estes serão o nosso ritmo
musical amazônico (CELDO BRAGA, S/d.).

97 Disponível em: https://www.theamazonic.com/. Acesso em 30 out. 2022.

241
O lançamento da primeira música ao ritmo do Kambô98 ocorreu no dia 06 de
outubro de 2021, no palco do teatro Amazonas, acompanhado pela Orquestra de
Câmara do Amazonas - OCA, entretanto, esse repertório sonoro já influenciava
o erudito das canções de Cláudio Santoro conferindo uma identidade outra dessa
proposta musical. O poeta explica que o grupo costuma estudar os sons e ritmos
da floresta amazônica e que a composição Sapopema99 reúne esse nível de sons e
compasso.
Ressalta, Celdo Braga que um dos objetivos de cantar a Amazônia é que o
mundo conheça a potencialidade musical dos amazônidas, e que eles mesmos
aprendam a utilizar cada vez mais essa potencialidade. Entretanto, o que ele observa
é que “nós os amazônidas não gostamos do que é nosso”, falta pertencimento com
o lugar e o reconhecimento e valoração dessa cultura.
Krenac (2019, p. 14) parece corroborar com o poeta: “Se as pessoas não tive-
rem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão
sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compar-
tilhamos”. Afirma ainda que “(...) Nosso tempo é especialista em criar ausências
... do próprio sentido da experiência da vida (...)” e sugere que precisamos “contar
mais histórias. Se pudermos fazer isto, estaremos adiando o fim100” (KRENAC,
2019, p. 20)
Da contemporaneidade o passado não mais existe, evoca-se o tempo sob a forma
de memória, e dependendo de como as informações foram adquiridas, com carga
emocional ou afetiva, são mais bem lembradas que as memórias de fatos menos
expressivos. É o que o Gaponga sugere para impulsionar a cultura cabocla, abdicada
por tantos em algum lugar. Izquierdo (1989) afirma que não existe tempo sem um
conceito de memória, assim, as imagens (reminiscência) antes armazenadas por
meio de informação, resultam das experiências individual e coletiva, especialmente
familiar, nesse ambiente, o da floresta.
98 kambô é uma espécie de rã esverdeada brilhante, muito comum no noroeste da Amazônia e territó-
rios de países amazônicos limítrofes, mas também medicamento da cultura indígena. O termo refere-se ainda à
secreção expelida pelo batráquio para se proteger de seus predadores, portanto, um tipo de veneno que auxilia
na imunidade e que quando aplicado provoca um certo transe no usuário. O ritmo foi transcrito manualmente,
a partir do som do animal. Depois passado para o editor de partituras, para finalmente adaptá-lo aos bioins-
trumentos. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral/2016/05/160509_sapo_amazonia_reme-
dio_mv. Acesso em 01. abr. 2022.
99 Do tupi, o termo significa “raiz chata” e faz referência à árvore Samaúma ou Sumaúma. Disponível
em: https://www.hypeness.com.br/2020/10/samauma-a-arvore-rainha-da-amazonia-que-guarda-e-distribui-
-agua-para-outras-especies/. Acesso em: 03 abr. 2022.
100 Frases do livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, do líder da etnia indígena Krenac, filósofo e
escritor brasileiro.

242
Em diferentes lugares do mundo, nos afastamos de uma ma-
neira tão radical dos lugares de origem que o trânsito dos
povos já nem é mais percebido. (...) Se é certo que o desen-
volvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um
lugar para outro que as nossas comodidades tornaram fácil a
nossa movimentação pelo planeta também é certo que essas
facilidades são acompanhadas de uma perda de sentidos dos
nossos deslocamentos (KRENAC, 2019, p. 32-33).

Considerações finais

O lento processo de desenvolvimento cultural amazônico sempre esteve à


mercê de decisões tomadas à revelia do habitante, protagonistas que são de suas
histórias, experiências e vivência regional. Essa imagem reflete uma identidade
inautêntica, forjada sob a perspectiva colonial, mas um lugar de pertencimento
real e simbólico e de intensa diversidade cultural de que fala Paes Loureiro, cuja
percepção atravessa toda a sua produção literária e apresenta possibilidades de
discussão, a fim de se repensar a região amazônica de várias perspectivas, tal como
a criação dos bioinstrumentos.
O ambiente retratado pelo autor é a Amazônia, em toda a sua complexidade,
por isso de intensa riqueza e que se expressa no seu imaginário. Rios e florestas
compõem a dimensão estética do encantamento, inseridos na música, na poesia,
na gastronomia, na perfumaria e medicamentos, e em diversos outros produtos
que carregam a marca Amazônia, para além de suas fronteiras.
As possibilidades que a região amazônica tem despertado em diversos segmentos
da sociedade vem sendo mostradas com mais dinamismo e responsabilidade por
meio de sua arte, tanto na música quanto na dança, isto porque pesquisadores
e estudantes de diversas áreas do conhecimento têm fomentado e subsidiado as
pesquisas que contemplam a Amazônia. Essa mudança de perspectiva tem alterado,
de certo modo, a vida comunitária em função do (re)conhecimento de seus saberes
local, de suas culturas. E essa é a visão privilegiada daqueles que “constroem pontes”
sobre a linha abissal, aquela que separa e estigmatiza a cultura cabocla ou amazônica.
Desse ambiente encharcado de culturas, busca-se ainda reconhecer o solo para

243
caminhar nas trilhas do saber e semear sonhos de amanhãs para colhê-los no alvo-
recer do encantamento na arte e da vida. Afirma Paes Loureiro que a cultura é um
campo de significação da arte, onde “[...] O real nos coloca diante da objetividade
prática de viver. O imaginário nos garante as aventuras de sonhar. (PAES LOU-
REIRO, 2007, p. 17), portanto, os bioinstrumentos são modulados pela criação
dos artistas que extraem da floresta sua matéria-prima, sem danos ou prejuízo.
Esses artefatos sonoros remetem ao ambiente simbólico descritos nos poemas
de Homero (Grécia Antiga), segundo o qual, quando Orfeu declamava encantava
não apenas os humanos, mas também os animais, as árvores e as pedras, e quando
“a poesia começava a caminhar na infância de si mesma, já estava ela entranhada
na alma das palavras e trazia o imaginário na essência da linguagem significante.
(PAES LOUREIRO, 2015, p. 51). A matéria-prima dos bioinstrumentos parece
trazer consigo a memória do espaço-tempo de vivência na floresta, tal como neste
fragmento de poema de Celdo Braga: “Em silencio a planta sabe, desde o tempo
de semente, buscar água na vertente da dura entranha do chão (...) Sabe o grande
desafio de crescer frutificar, repartir sua existência com quem dela precisar”.
Ressalta-se, porém, que a criação dos bioinstrumentos dá sentido, a priori, à
existência de seus artesãos, e desenvolve a habilidade e pereniza a memória dos
envolvidos com o projeto, sejam eles espectadores ou alunos das oficinas. Com
efeito, “A diversidade dinâmica real e simbólica de suas relações com a realidade
exige uma compreensão também dinâmica e diversa dessas relações. (PAES LOU-
REIRO, 2007, p. 11) para as quais essas ações concernentes aos aspectos sociais
e culturais precisam ser estimuladas, experienciadas e compartilhadas, a fim de
serem preservadas.

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fidelização de consumidores globais. Tese de doutorado do Programa de Pósgra-
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SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da Sociologia: indivíduo e Sociedade.
Tradução de Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006.

245
A PATRIMONIALIZAÇÃODO CARIMBÓ E O
MOVIMENTO DUAL DE RESSIGNIFICAÇÃO
CULTURAL DENTRO DAS PRÁTICAS DE PRODUÇÃO
E DISCURSIVAS DA MANIFESTAÇÃO DENTRO DA
REGIÃO METROPOLITANA DE BELÉM
Daniel da Rocha Leite Junior101

Introdução

Este artigo tem a proposta de analisar como o carimbó se ressignificou depois


de ser declarado no ano de 2014, Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) durante o período
da profunda reconstrução da política nacional de cultura durante os governos
petistas do início do séc. XXI que estimularam novos modos de fazer cultura no
país, portanto, a intenção é compreender de que forma acontece o movimento
dual, no âmbito discursivo e de práticas de produção do carimbó desenvolvido na
região metropolitana de Belém após o processo de patrimonialização.
As alterações na cultura popular são estimuladas por mudanças nosmodos de
fazer de uma manifestação cultural, assim como, também, a partir das políticas
públicas de fomento. Nesse sentido, o presente artigo tem como proposta investigar
o processo de patrimonialização que o carimbó passou e quais fatores foram estimu-
lados, no âmbito discursivo e de práticas de produção, dentro da manifestação do
carimbó produzido em espaços urbanos dentro da região metropolitana de Belém.
Inicialmente, é necessário pontuar o contexto da Amazônia como um lugar a
margem dos grandes centros culturais do Brasil, segundo aponta Paes Loureiro
(2001) ao avaliar o reconhecimento da resistência cultural que o imaginário da
identidade amazônico paraense ocupa no quadro da cultura nacional. “O isolamento

101 Mestre pelo Programa de Pesquisa em de Pós-graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia


(PPGCom) da Universidade Federal do Estado do Pará (UFPA).

246
que recobria a Amazônia com o manto do mistério, distância a intemporalidade,
que a impedia de intercambiar seus bens culturais,contribuiu para que se acentuasse
sobre ela uma visão folclorizante e primitivista. (PAES LOUREIRO, 2001, p. 55).
Assinalo, também, outro apontamento sobre a folclorização da cultura ama-
zônica paraense no séc. XX com relação à ao enrijecimento das referências da
identidade cultural, a partir de uma matriz icônica e vinculada a noção do conceito
de caboclo que agrega a fetichização e exotização do ambiente amazônico dentro
do imaginário brasileiro. “Esse discurso é carregado por matrizes icônicas, ou seja,
por referenciais de fácil e superficial identificação, normalmente associados a uma
fetichização do espaço amazônico. (CASTRO, 2013, p. 451).
Hall (2003) reflete sobre as identidades culturais como pontos de identificação
móveis e que oferecem não uma ideia de essência, mas sim de posicionamento
mutável, portanto, uma interpretação diaspórica da cultura pode ser compreendida
através de um olhar crítico sobre os processos de alteração dos modelos culturais
tradicionais, no caso específico deste artigo, por meio das transformações dos
paradigmas existentes nos modos de fazer da produção cultural do carimbó no
meio urbano.
É necessário pontuar que o processo de patrimonialização do carimbó acon-
teceu durante a produção de uma nova política nacional de cultura promovida
pelo Ministério da Cultura (MinC), no caso específico no período de 2003 até
2007 na gestão de Gilberto Gil, no mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva e durante essa gestão foi desenvolvidouma política nacional construída
por meio do reconhecimento do caráter participativo da cultura.
Desta forma, foi estimulada uma intensa circulação de representantes de ma-
nifestações culturais por todo território nacional, promovendo ambiente propício
para o intercâmbio cultural, a partir de conferências, audiências públicas, reuniões,
encontros, conselhos e outrasformas de organização sociocultural que resultou em
uma acentuada reconfiguração do contexto de militância cultural no Brasil no
âmbito das manifestações da cultura popular.
Após o exposto anteriormente, é perceptível o enquadramento do carimbó do
Estado do Pará nesse contexto quando pensamos pela ótica do processo de patri-
monialização que a manifestação atravessou no ano de 2014,a partir da pesquisa
para construção do Dossiê Iphan Carimbó (2013), encontramos transformações
estéticas, sociais e culturais dentro de outros contextos de produção do carimbó nos
últimos, principalmente, em espaços urbanos da região metropolitana de Belém.

247
É importante ressaltar, segundo Alves (2011) que o Brasil neste período, em
concordância com as diretrizes discursivas desenvolvidas para a cultura popular na
esfera internacional e adaptadas para o contexto brasileiro possibilitaram que as
manifestações culturais do país se distanciassem da característica de folclore para
assumir a categoria de diversidade e posteriormente alcançassem o domínio de
patrimônio imaterial por meio dos instrumentos de salvaguarda dessa nova política
nacional que se instalava no território brasileiro.
A pesquisa pede um olhar sobre a questão dos processos identitários, a partir
do contexto da patrimonialização do carimbó nos últimos anos, pois é possível
encontrar formatos de pertencimento da manifestação cultural que expandem o
conceito do fazer da expressão cultural quando pensamos a dissociação acarretada
no intercâmbio entre lugar e cultural, conforme interpretação no que foi postulado
na pesquisa do Dossiê Iphan Carimbó (2013), o carimbó tradicional ou pau e corda
pode ser denominado, também, de carimbó patrimonializado. Sendo assim, ao
olhar para o carimbó produzido na região metropolitana de Belém, denominado,
também de carimbó urbano e desenvolvido a partir de pautas das urbanidades,
ou seja, estimuladas por outras formas de sociabilidades, pelas políticas nacionais
de cultura do governo, além do mercado da arte e da cultura, encontra-se um
modo de fazer com características ao mesmo tempo convergentes e divergentes
do carimbó patrimonializado.
Nesse contexto, a noção de pertencimento sobre as manifestações culturais
segundo Agier (2001) passa pela criação de novas retóricas identitários a partir do
entrelaçamento entre a cultura e o lugar que ela acontece, sendo assim a pesquisa
irá emergir no fluxo do movimento dual que, atualmente acontece com o carimbó
urbano para elucidar questões referentes ao âmbito discursivo, pois é evidente que
se afastou da simbologia folclórica e, também, dentro do ponto de vista das práticas
de produção, encontra-se modos distintos de fazer carimbó, ou seja, um ligado a
tradição carimbozeira e outro relacionado à militância política, cultural e social.
É nítida a necessidade da expansão de pesquisas sobre a produção de carimbó na
região metropolitana de Belém para, dessa maneira, podermos ampliar os estudos
culturais referentes aos fenômenos de socialidadepresentes na manifestação cultural
do carimbó, a partir de seus desdobramentos estéticos dentro do espaço urbano
da capital paraense, pois éurgente a percepção de que os elementos mobilizados
pelo carimbó urbano demonstram diferenças pontuais do carimbó pau e corda
ou tradicional, também denominado carimbó patrimonializado que precisam ser
compreendidas.

248
Comentários sobre a historiografia do carimbó

Um dos gêneros musicais tradicionais mais conhecidos do Estadodo Pará


é o carimbó, registros apontam que é uma manifestação cultural que acontece
em grande parte do território há mais de dois séculos e é tido como um símbolo
fundamental da identidade cultural paraense. A partir do Dossiê Iphan Carimbó
(2013) e de pesquisas de autores como Gabbay (2012) e Salles e Salles (1969),
podemos afirmar que a etimologia da palavra carimbó é originária da língua Tupi
Korimbó – união de curi (pau oco) e m’bó (escavado) resultando na expressão “pau
que produz som” – que dá o nome ao tambor, o curimbó, usado para tocar e que
é uma característica fundamental do carimbó.
Segundo o Dossiê Iphan Carimbó (2013), há registros que assinalam o sur-
gimento do carimbó na cidade de Marapanim, localizada no litoral do Pará a
partir do povo indígena Tupinambá, assim como, também, há documentosque
apontam o carimbó como uma invenção de negros escravos que ocupavam o ter-
ritório amazônico paraense no século XVII. Portanto, pesquisadores como Gabbay
(2012) e Salles e Salles (1969) afirmam que o carimbó é um resultado da união
de influências culturais por meio da interação entre índios, negros e portugueses,
pois estão presentes elementos de ambasas etnias dentro da manifestação cultural.

De modo geral, o batuque africano foi, provavelmente, a ori-


gem do carimbó e suas variações de estilos. Influências indí-
genas também podem ser percebidas em traços da coreografia
(passos imitativos de figuras de animais nativos, como peru,
bagre, galo e gambá, todos dão nome a coreografias de carim-
bó), versos (em nominações e dizeres típicos e ambientações da
natureza) e música (com melodia às vezes mais horizontalizada
e ritmo mais marcado e uníssono), além da marcante herança
ibérica no bailado e em parte do instrumental, como o banjo
e no “castanholar” do lundum (GABBAY, 2012, p. 58).

Conceituar um ponto de partida para o surgimento de uma manifestação


cultural como o carimbó dentro do contexto amazônico do Estadodo Pará abre
espaço para discussões sobre os elementos de miscigenação mobilizados na Ama-
zônia paraense, haja vista os processos de hibridização da identidade cultural desse

249
espaço, sendo assim, é necessário pontuar, como afirma Salles (1980) que dentro
da Amazônia nada é essencialmente, indígena,africano ou europeu.
Apresentado como resultado da união das influências culturais de índios, negros
e europeus (portugueses), o carimbó é comumente divulgado como uma das mais
significativas formas de expressão da identidade paraense e brasileira, já que estas
referências estariam presentes de forma integrada no canto, na música, na dança e
na formação instrumental. Nesta figuração, passou a ser comum a associação do
carimbó aos emblemas e ícones identitários de promoção cultural emanados dis-
cursivamente por seus defensores e praticantes. (DOSSIÊ IPHAN, 2013, pg. 14).
Segundo Salles e Salles (1969) o carimbó pau e corda ou tradicional é uma
expressão cultural marcada pela oralidade de comunidades tradicionais da Amazônia
paraense, reproduzindo, dessa forma, elementos culturais pertencentes às comuni-
dades em diversas regiões do Estado do Pará, podendo ser divididas em: primeiro o
carimbó pastoril, presente na Ilha do Marajó102, segundo o carimbó rural, referente
ao produzido na região do Baixo Amazonas103 e por terceiro o carimbó praieiro,
fazendo alusão ao feito na faixa litorânea da Zona do Salgado104, principalmente,
no município de Marapanim e na ilha de Maiandeua, ambos fazendo referência
ao que é considerado carimbo tradicional ou carimbó pau e corda.
Além dessas variações do carimbó citados antes, é necessário falar sobre a
inclusão do carimbó moderno como um dos desdobramentos estéticos da ma-
nifestação cultural dentro da lógica elétrica, ou seja, o carimbó estilizado com a
inserção de instrumentos como a guitarra, a bateria e o baixo elétrico e que foi
popularizado pelo Pinduca105 por meio da distribuição do ritmo na década de 70
dentro indústria cultural.
Segundo Gabbay (2012) e Amaral (2004) sobre as estéticas distintasdo carimbó
pau e corda ou tradicional e do carimbó moderno ou estilizado, é possível pontuar
que ambas foram correntes carimbozeiras consolidadas no imaginário popular, a
partir da trajetória da produção musical durante a carreira de Mestre Verequete106
e Pinduca.
102 A Ilha de Marajó é uma ilha costeira do tipo fluviomarítima situada na Área de Proteção Ambiental
do arquipélago do Marajó, no estado do Pará.
103 A Mesorregião do Baixo Amazonas é composta por municípios que fomentam a economia do
Estado do Pará. São 13 cidades que compõem o território do Baixo Amazonas: Alenquer, Almeirim, Belterra,
Curuá, Mojuí dos Campos, Faro, Juruti, Monte Alegre, Óbidos, Oriximiná, Prainha, Santarém e Terra Santa.
104 A Zona do Salgado Paraense compreende as Reservas Extrativistas de Mãe Grande de Curuçá, São
João da Ponta, Caeté-Taperaçu, Tracuateua, Araí Peroba, Gurupi-Piriá, Chocoaré-Mato Grosso e Soure no
Estado do Pará.
105 Aurino Quirino Gonçalves, conhecido como Pinduca, tem 32 anos de carreira como cantor e com-
positorde carimbó com 25 discos gravados e que ajudou na popularização do carimbó no Brasil.
106 Augusto Gomes Rodrigues, também conhecido como Mestre Verequete, foi compositor e canto de
carimbó pau e corda junto do grupo “O Uirapuru”, além de ter sido um dos primeiros a gravar a manifestação
cultural no estilo long play (LP).

250
O carimbó de Marapanim, como matriz musical e coreográfica
para o carimbó de Belém, teria se organizado em dois tipos
distintos, já nesta última localidade: 1º) um carimbó tradi-
cional e 2º) um carimbó moderno. O primeiro, representado
pelo cantador Verequete, manteria a estrutura musical do
referencial marapaniense de “originalidade”; o segundo, repre-
sentado por Pinduca, teria alterado essa estrutura, no sentido
de atribuir-lhe uma feição de modernidade. Essa diferenciação
construiu a ideia da existência de duas correntes carimbóticas
em Belém, confirmando uma histórica rivalidade entre defen-
sores da tradição e da modernidade. (AMARAL, 2004, p. 03).

Segundo Amaral (2004) sobre o questionamento dos tipos de carimbó que


existem dentro do Estado do Pará, é necessário analisar o contraponto entre carimbó
pau e corda ou tradicional e o carimbó estilizado ou moderno que se apresentam
sobre a manifestação cultural para dessa forma imergir na produção do carimbó em
espaços urbanos da região metropolitana de Belém, pois como explicitado anterior-
mente, há pelo menos a existência de duas correntes distintas de observação: uma
que analisa a existência do carimbó pau e corda ou tradicional e outra que avalia
a experiência do carimbó estilizado ou moderno, porém nesse artigo proponho
a inclusão de uma terceiracorrente que observa a produção do carimbó urbano.

A questão da construção de um carimbó patrimonializado

Acredita-se que as tensões entre modernidade e tradição estão impregnadas em


todas as distintas e diversas modalidades de expressão cultural, social e comunica-
cional da humanidade. Segundo Debord (1997), no âmbito de suas reflexões sobre
a caracterização da sociabilidade contemporânea, é nítida a presença de complexos
e multifacetados estímulos que iluminam oposições e convergências na construção,
desenvolvimento e manutenção de manifestações culturais da cultura popular
na sociedade contemporânea que orientam e guiam as diretrizes da construção
simbólica das identidades culturais.
No ano de 2014 o carimbó foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial

251
do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e
inscrito no Livro de Registro de Formas de Expressão, a partir do processo de regis-
tro da pesquisa referente ao Levantamento Preliminar e Identificação do Carimbó
nas Mesorregiões Nordeste Paraense, Metropolitana de Belém e Marajó ocorrida
durante os anos de 2008 e 2013 que gerou o Dossiê Iphan Carimbó e desta pesquisa
realizada é importante ressaltar que o movimento de patrimonialização do carimbó
foi feito a partir de visitas em 45 municípios entre a capital e o interior do Estado
do Pará, em mais de 150 lugares e 415 entrevistas realizadas com carimbozeiros.
O contexto de negociação cultural que o carimbó foi submetido por meio dos
instrumentos de salvaguarda utilizados pelo movimento de patrimonialização do
carimbó mobiliza processos de ressignificação que são estimulados pelos disposi-
tivos de legitimação, assim como também, segundo Mignolo (2005) a partir de
instrumentos de resistência da cultura popular dentrodos contextos de sociabilidade
e das práticas de produção de uma manifestação cultural.
Esse momento da pesquisa, faz-se necessário relembrar que nas décadas de 40
e 50 havia uma política nacional de cultura associada ao Movimento Folclórico
Brasileiro e tinha a intenção de fazer uma associação entre cultura popular, auten-
ticidade e pureza com o objetivo de instrumentalizaras manifestações culturais para
amparar a construção de uma unidade nacional da identidade cultural brasileira,
porém no final do séc. XX e início do séc. XXI, segundo Alves (2011) entrou em
circulação um pensamento de desconstrução desta práxis dentro do imaginário
da população brasileira, a partir da valorização do caráter participativo da cultura
popular, porém ainda atua como nomenclatura de classificação das manifestações
culturais brasileiras que passam por processos de patrimonialização dentro dos
órgãos regulamentadores como o Iphan.

A cultura para o PNC/MinC deve ser pensada na sua dimensão


simbólica, econômica e cidadã. Essas três dimensões apare-
cem de maneira combinada, tanto nas justificativas teóricas,
quantos nos programas e ações desenvolvidos. [...] A dimensão
simbólica decorre do imperativo que o MinC tem de valori-
zar e, por conseguinte, consolidar a identidade nacional. Por
outro lado, a dimensão simbólica repousa no imperativo de
criar as condições de fruição e experimentação cultural [...]A
dimensão econômica traça interfaces estreitas com a dimensão
simbólica, pode ser sintetizada a partir do entendimento de

252
que a riqueza simbólica também deve ser acompanhada da
possibilidade de criação de riqueza material para oscriadores e
realizadores culturais, através da geração de trabalho, emprego
e [...]A dimensão cidadã trata da necessidade imperativa, se-
gundo os gestores do sistema MinC, notadamente no âmbito
da Secretaria de Cidadania Cultural, de acionar e cristalizar os
direitos culturais no Brasil, estabelecidos desde a constituição
de 1988. (ALVES, 2011, p. 07).

O processo de patrimonialização do carimbó colocou o carimbó paue corda


ou tradicional como aquele que sustenta o discurso político entranhadono con-
ceito de Patrimônio Imaterial, criando dessa forma uma categoria de carimbó
patrimonializado que se opõem a outros formatos ressignificados a partir de uma
relação de saber/fazer carimbó pelo Pará, seja na capital ou no interior do Estado.
Apesar de o carimbó patrimonializado carregar um discurso de defesa da
tradição da sua expressão cultural como elemento fundamental no processo de
negociação cultural da manifestação dentro da evolução temporal da sociedade
nos âmbitos sociais, políticos e culturais, entretanto a prática discursiva dos carim-
bozeiros assume um afastamento das caracterizações folclorizantes sobre o saber/
fazer do carimbó por meio de atuações que valorizam o caráter participativo da
cultura popular em contraponto ao caráter turístico consolidado no início e meio
do séc. XX.
A partir do contexto, apresentado anteriormente, fica perceptível que ao longo
do processo da pesquisa para a patrimonialização do carimbó que uma nova for-
ma de atuação política dos fazedores de cultura ligada ao novo plano de políticas
nacionais dos carimbozeiros na área da cultura a partir do projeto da Campanha
do Carimbó Patrimônio Cultural Brasileiro que possibilitou intercâmbios propor-
cionados entre as diversas regiões em que o carimbó se faz presente como manifes-
tação cultural, portanto uma forma de militância participativa se fez presente na
construção do carimbópatrimonializado, diferentemente do carimbó folclorizado
que foi reproduzido dentro da indústria cultural nacional e imposto pela sua re-
produtibilidade midiática no rádio e na TV, além de produtos culturais como o LP.
Uma questão que precisa ser pontuada é a implícita relação dos produtores
de carimbó e carimbozeiros com as políticas públicas a partir de diálogos com as
instituições governamentais por meio de editais, encontros, fóruns, audiências
públicas, construção de eventos ou programas de atuação sociocultural, além de

253
outros recursos e instrumentos de salvaguarda como foi visto no período de de-
senvolvimento do levantamento para o Dossiê Iphan do Carimbó, caracterizando
um posicionamento de resistência sociocultural através da militância e ocupação
dos ambientes da esfera política brasileira no âmbito regional e nacional pelos
carimbozeiros.
Segundo Agier (2001) a questão dos distúrbios identitários expostos unido
a pesquisa sobre o lugar das culturas, em Amaral (2011), é possível dizer que a
patrimonialização do carimbó possibilitou a manifestação de uma série de novas
práticas de produção e significados integrados discursivamente ao caráter participa-
tivo desta manifestação popular além da relação entre localidades onde o carimbó
é produzido com outros agentes e instituições culturais, assim como, também,
um afastamento das características folclorizantes para assumir um sentido de
pertencimento que ultrapasse as barreiras da instrumentalização e adente o
âmbito das sociabilidades daidentidade cultura amazônico paraense107.

Nesse contexto, em que várias escalas se misturam a própria


criação cultural é tomada por uma tensão do mesmo tipo: ela
consiste em colocar em relação, por um lado, imaginários locais
que devem sempre acomodar a densidade dos lugares, de suas
sociabilidades, de suas memórias, e, por outro, as técnicas, os
conjuntos de imagens e os discursos da rede global que, por
sua vez, circulam praticamente sem obstáculo, despojados de
todo enraizamento histórico. (AGIER, 2001, p. 19).

É importante refletir sobre as estratégias de construção das identidades culturais


por meio das políticas públicas de fomento a cultura, além das suas práticas de
produção e sociabilidades, haja vista que a interferência das mesmas estimula a
preservação ou a ressignificação de signos, discursose práticas de produção, como
por exemplo, os instrumentos de salvaguarda mobilizados durante o processo de
patrimonialização de uma manifestação cultural tal como aconteceu com carimbó
paraense e com outras expressões culturais no território nacional no início do século
XXI, portanto, a partir de atravessamentos estimulados pela globalização, pelos
espaços urbanos e pelas políticas nacionais de cultural, faz-se necessário analisar

107 Espaço que abarca o território em que habita, predominantemente, a floresta amazônica dentro
do estado do Pará.

254
os resultados que esses processos oferecem dentro do carimbó produzido na região
metropolitana de Belém.

O movimento dual do carimbó produzido


na região metropolitana de Belém

A dicotomia entre tradicional e moderno dentro do carimbó oferece um olhar


entre conceitos da cultura popular e da indústria cultural, entretanto após vivências
empíricas dentro de eventos de batucadas, rodas de carimbó, contato com mestres,
carimbozeiros e ensaios de conjuntos de carimbó é possível perceber entrelaçamentos
entre o carimbó pau e corda ou tradicional que foi patrimonializado com o carimbó
estilizado ou moderno, dentro das práticas de produção do carimbó dentro da
região metropolitana de Belém, além de transformações em alguns signos do fazer
da manifestação nos espaços urbanos da capital paraense.
A reflexão sobre o processo de hibridização da cultura popular e as formas de
expressão na América Latina se faz necessário para estimular o debate entre a glo-
balização do capital e as relações históricas de negociação com a cultura popular.
Canclini (2003) questiona as matrizes conceituais mobilizados nesse diálogo, visto
que, se faz necessário uma análise sobre o carimbó produzido em espaços urba-
nos da região metropolitana de Belém, abarcando o contexto da sua massificação
por meio da assimilação do carimbó pela cadeia produtiva da indústria cultural
a partir dos anos 70, com variações de estéticas no final do séc. XX, e a partir da
mobilização de políticas públicas, através do processo de patrimonialização que
aconteceu no início do séc. XXI com a consolidação do carimbó como Patrimônio
Cultural Imaterial do Brasil e que, consequentemente, estimou novas transforma-
ções que emergiram no âmbito discursivo, como visto anteriormente, assim como,
por meio das práticas de produção da manifestação cultural em espaços urbanos
como observaremos.
O carimbó produzido dentro de espaços de urbanidade evidencia que há novas
sociabilidades que configuram novos processos culturais que iluminam percepções
sobre os elementos da manifestação patrimonializada, pau e corda ou tradicional
do carimbó em convergência com práticas de produção integradas ao ativismo

255
sociopolítico, mesmo que sejam tidos como fazeres diferentes, objetivam a mesma
ideia de manutenção da manifestação cultural do carimbó como identidade cul-
tural paraense que implica saberes e modos de fazer específicos e organizados em
estilo de vida, cadeia produtiva independente e vinculada ao caráter participativo
da cultura popular.
Para exemplificar o ponto abordado no parágrafo anterior, usarei como exemplo
o grupo de carimbó Cobra Venenosa que surgiu em 2016 no distrito de Icoaraci e
é um dos expoentes do movimento do carimbó produzido na região metropolitana
de Belém e luta pela valorização do carimbó pau e corda ou tradicional, entretanto
com outros processos de produção social do espaço, pois geram sociabilidades e
produções que constroem desdobramentos estéticos e socioculturais a partir da
intervenção nos espaços urbanos.
No ano de 2019 o grupo de carimbó Cobra Venenosa lançou seu primeiro tra-
balho musical, um disco intitulado “Cobra Venenosa” que reúne oito faixas autorais
e inéditas no cenário fonográfico do carimbó, além, de cinco canções extras, por
meio de gravações realizadas ao vivo no ano de 2017. Nesse sentido, a partir de uma
análise do conteúdo das músicas, distribuição do disco, vivência em shows e rodas
de carimbó na região metropolitana de Belém, em que o grupo participou com
espetáculos, podemos tecer alguns comentários sobre a instrumentação do grupo
de carimbó Cobra Venenosa. Observou-se que as composições musicais tratam
de temáticas que envolvem a esfera urbana a partir de questões sociopolíticas que
atravessam o mundo contemporâneo, além de usarem variações de material na
construção dos instrumentos musicais como curimbóe banjo que são construídos
por meio de processo de reciclagem de materiais próprios do ambiente urbano
como, por exemplo: o curimbó criado a partir da reutilização de tubo de PVC em
oposição ao uso de troncos de árvore ou no banjo feito de capacete de moto ou
fundo de panela de pressão ao invés de madeira ou metal.
Dessa forma, é possível afirmar sobre o grupo de carimbó Cobra Venenosa
que a matriz do carimbó patrimonializado, pau e corda ou tradicional sofreu uma
alteração dos seus elementos através das canções e da instrumentação com a inten-
ção dialogar com os elementos contemporâneos inseridos nos espaços urbanos em
que o grupo está inserido ao produzircarimbó associado ao ativismo sociopolítico
influenciado pelo contato com os processos das sociabilidades urbanas da região
metropolitana de Belém, ao mesmo tempo, que defende a manutenção do carimbó
como manifestação cultural tradicional.

256
O nosso grupo faz referência ao carimbó pau e corda, um
grupo jovem que surge formado por jovens das periferias [...]
envolvidos em atividades de rua e dos processos vividos em
Belém que a ver com uma conjuntura nacional [...] a gente
tinha essa visão que era necessário valorizar o carimbó pau e
corda, não achávamos ele demodê, não achávamos que pro som
ser contemporâneo entre aspas moderno, precisa de equipa-
mentos eletrônicos [...] diferenciadodo carimbó raiz, porém no
instrumental se mantendo tradicional, com curimbó, banjos,
maracas e efeitos orgânicos, sem o uso de bateria, baixo ou
guitarra [...] (entrevista da Priscila Duque, compositora
do Cobra Venenosa, no Programa Sem Censura Pará no dia
27.06.2019).

A autonomia sociopolítica do carimbó levanta questões relacionadas às ne-


gociações socioculturais que uma manifestação cultural atravessa e é atravessada
no processo de patrimonialização que ocorreu no início do séc. XXI a partir dos
instrumentos de salvaguarda que estimularam o caráter participativo da cultura
popular, construindo desta forma um ambiente favorável para novos modos de
fazer e de viver o carimbó tanto no âmbito do significantequanto no do significa-
do dentro do envolve as práticas de produção quanto do contexto discursivo do
carimbó produzido na região metropolitana de Belém.

Considerações finais - sobre a discussão referente à negociação


cultural estimulada pelo processo de patrimonialização face às
práticas de produção do carimbó em espaços urbanos

Depois de reunir os apontamentos anteriores sobre a existência do carimbó


urbano, ou seja, produzido em espaços urbanos da região metropolitana de Belém,
conseguimos afirmar segundo o Dossie Iphan Carimbó (2013) que a patrimonia-
lização exerceu o papel de registro das diversas produções de carimbó, além de
possibilitar a integração entre os carimbozeiros, produtores culturais, mestres de
carimbó e fazedores de cultura uma aproximação dos instrumentos de salvaguarda
através das políticas públicas desenvolvidas a partir do carimbó patrimonializado.

257
A construção do carimbó patrimonializado a partir dos elementos presentes no
carimbó pau e corda ou tradicional oferece segundo Agier (2001) o entendimento
da convergência entre lugar, cultura e identidade, pois o Levantamento Preliminar e
Identificação do Carimbó nas MesorregiõesNordeste Paraense, Metropolitana de
Belém e Marajó realizado durante osanos de 2008 e 2013 que gerou o Dossiê
Iphan Carimbó foi construído a partir da participação dos agentes culturais envolvi-
dos na produção e manutenção damanifestação cultural dentro do Estado do Pará.

O exemplo precedente introduz uma crítica mais sistemática da


identidade cultural. Antes de proceder a essa crítica, e após ter
tentado mostrar o caráter profundamente construído, proces-
sual e situacional da identidade, aprofundarei primeiramente
a questão da criação cultural. Em um mundo inteiramente
globalizado, no qual as identidades tendem a perder suas
referências locais, devemos nos perguntar a respeito do lugar
onde toma forma a criatividade cultural. Trata-se, em suma,
de pensar conjuntamente as três relações duais eproblemáticas
entre identidade e lugar, cultura e lugar, identidade e cultura.
(AGIER, 2001, p 17).

É possível afirmar, também, que o processo de patrimonialização do carimbó


consolidou no âmbito discursivo o caráter participativo da manifestação cultural
por meio do afastamento das características folclorizante que aconteciam com as
práticas de produção na cadeia produtiva do carimbó no final do séc. XX dentro
das mídias e da indústria cultural.
Com relação às práticas de produção do carimbó urbano ou produzido na
região metropolitana de Belém os elementos são ressignificados, como no caso
do uso de instrumentos de forma diferenciada tanto na instrumentação quanto
na confecção dos mesmos por meio de outros materiaisnão convencionais. Assim
como, também, a diferença na composição dasletras, a partir de pautas sociais e
culturais ao fazerem uso de temáticascosmopolitas e contemporâneas que residem
nos grandes centros urbanos do Brasil e do Mundo, resultado numa atuação de
ativismo político por meio da manifestação cultural.
Dessa forma, podemos afirmar que o pertencimento sobre o carimbóidentidade
cultural do Estado do Pará se expandiu a partir dos instrumentos de salvaguarda do

258
processo de patrimonialização, entretanto, ainda é necessário olhar para a manifes-
tação a partir de suas características específicas a partir das práticas produtivas que
envolvem a produção do carimbó em contato com os lugares e as sociabilidades
em que estão inseridos.

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SALLES, Vicente e SALLES, Marena. Carimbó: trabalho e lazer do caboclo.
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260
NOSSO PALCO É A RUA: REFLEXÕES SOBRE
CARIMBÓ URBANO E A PRÁTICA DO MANGUEIO
COMO RECURSO DE SOCIABILIDADE PARA A
AFIRMAÇÃO DO DIREITO A CIDADE108
Daniel da Rocha Leite Junior109

Introdução

Este trabalho tem a proposta de analisar a prática do mangueio, ato de trocar


dinheiro por algum objeto ou performance, como um fenômeno de sociabilidade
impresso dentro da manifestação cultural do carimbó produzido em espaços da
região metropolitana de Belém, como afirmação do direito à cidade fazendo uso da
rua como palco e mídia para a divulgação dos trabalhos de conjuntos de carimbó.
A partir de depoimentos coletados de carimbozeiros urbanos com o objetivo de
investigar o cotidiano daqueles que produzem e vivenciam o carimbó por meio da
apropriação dos espaços de urbanidade frente aos processos de espetacularização
da indústria cultural, e de apropriação dos espaços urbanos comuns da cidade
pelo capital.
Investigar as manifestações da cultura popular, como o carimbó do Estado do
Pará, é imergir num processo de dinamismo, aonde encontramos diversos agentes
em intercâmbio, transitando entre conceitos de oposição, agregação e inclusão
dentro de um âmbito que articula interesses e sentidos por meio de fenômenos
de sociabilidade que atualizam ou fazem a manutenção de uma experiência de
tradição cultural e que promovem conflitos que se inter-relacionam com estruturas
de produção na sociedade.
108 Trabalho apresentado no GT 03 – Música, Estado e Mercado do VIII Musicom.
109 Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCom) da
Universidade Federal do Estado do Pará (UFPA). E-mail:danielleitejunior@gmail.com..

261
Segundo conceitos de Canclini (2003) iremos compreender quais elementos
foram mobilizados no processo de hibridização do carimbó dentro de espaços ur-
banos da região metropolitana de Belém e assim poder visualizar como acontecem
as dinâmicas dos modos de fazer, da cadeia produtiva à expressão artística, assim
como, dos modos de viver, como manifestação cultural e movimento social,
impressos no que chamamos de carimbó urbano. Nesse sentido, iremos observar
quais elementos são mobilizados no processo de produção do carimbó, dentro dos
ambientes de urbanidade, e nos fixaremos na prática do mangueio pelos carim-
bozeiros urbanos nas ruas, feiras e praças da região metropolitana de Belém, para
analisar como este recurso de resistência cultural se configura face os processos do
capital, por meio da indústria cultural, e da ausência de espaços privados ou políticas
públicas de fomento, não focadas, nos moldes da patrimonialização do carimbó.
Nessa acepção, se faz relevante entender como funciona a realidade dos con-
textos urbanos dentro da Amazônia paraense para a melhor compreensão das
contradições espaciais presentes no cotidiano da região metropolitana de Belém
a partir dos conceitos de Lefebvre (2006) sobre a produção social dos espaços de
urbanidade e como as manifestações culturais, no caso em questão o carimbó
urbano, transitam e sobrevivem não somente no sentido material, mas, também,
nas relações de poder projetadas na disputa pelo território simbólico.
É nítida a necessidade da expansão de pesquisas sobre a produção de carimbó na
região metropolitana de Belém para, dessa maneira, podermos ampliar os estudos
culturais referentes aos fenômenos de socialidade presentes na manifestação cultural
do carimbó, a partir de seus desdobramentos estéticos dentro do espaço urbano
da capital paraense, pois é urgente a percepção de que os elementos mobilizados
pelo carimbó urbano demonstram diferenciações que precisam ser compreendidas
frente a visão da patrimonialização do carimbó.

Considerações sobre o carimbó

O gênero musical tradicional mais conhecido do Estado do Pará é o carimbó,


registros apontam que é uma manifestação que acontece em grande parte do
território há mais de dois séculos e é tido como um símbolo fundamental
da identidade cultural paraense. A palavra carimbó é originária da língua Tupi

262
Korimbó – união de curi (pau oco) e m’bó (escavado) resultando na expressão “pau
que produz som” – que dá o nome ao tambor, o curimbó, usado para tocar e que
é uma característica fundamental do carimbó.
No ano de 2014 o carimbó foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial
do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a
partir do processo de registro da pesquisa referente ao Levantamento Preliminar
e Identificação do Carimbó nas Mesorregiões Nordeste Paraense, Metropolitana
de Belém e Marajó ocorrida durante os anos de 2008 e 2013 que gerou o Dossiê
Iphan Carimbó e é importante ressaltar que o movimento de patrimonialização do
carimbó foi feito a partir de visitaram 45 municípios entre a capital e o interior do
Estado do Pará, em mais de 150 lugares e fizeram 415 entrevistas com carimbozeiros.
O contexto de negociação cultural que o carimbó foi submetido por meio dos
instrumentos de salvaguarda utilizados pelo movimento de patrimonialização do
carimbó mobiliza processos de significação e ressignificação da cultura popular
dentro de contextos que envolvem os dispositivos de legitimação e os instrumen-
tos de resistência da cultura popular como observado segundos os conceitos de
Mignolo (2005).
Segundo o Dossiê Iphan Carimbó (2013) há registros que assinalam o sur-
gimento do carimbó na cidade de Marapanim, localizada no litoral do Pará a
partir do povo indígena Tupinambá, assim como, também, há documentos que
apontam o carimbó como uma invenção de negros escravos que ocupavam o ter-
ritório amazônico paraense no século XVII. Portanto, pesquisadores como Gabbay
(2012) e Salles e Salles (1969) afirmam que o carimbó é um resultado da união
de influências culturais por meio da interação entre índios, negros e portugueses,
pois estão presentes elementos de ambas as etnias dentro da manifestação cultural.

De modo geral, o batuque africano foi, provavelmente, a ori-


gem do carimbó e suas variações de estilos. Influências indí-
genas também podem ser percebidas em traços da coreografia
(passos imitativos de figuras de animais nativos, como peru,
bagre, galo e gambá, todos dão nome a coreografias de carim-
bó), versos (em nominações e dizeres típicos e ambientações da
natureza) e música (com melodia às vezes mais horizontalizada
e ritmo mais marcado e uníssono), além da marcante herança
ibérica no bailado e em parte do instrumental, como o banjo
e no “castanholar” do lundum (GABBAY, 2012, p.58).

263
Conceituar um ponto de partida para o surgimento de uma manifestação
cultural como o carimbó dentro do contexto amazônico do Estado do Pará abre
espaço para discussões sobre os elementos de miscigenação mobilizados na Ama-
zônia paraense, haja vista os processos de hibridização da identidade cultural desse
espaço, sendo assim, é necessário pontuar, como afirma Salles (1980, p. 27) que
dentro da Amazônia nada é essencialmente, indígena, africano ou europeu.

Apresentado como resultado da união das influências cultu-


rais de índios, negros e europeus (portugueses), o carimbó
é comumente divulgado como uma das mais significativas
formas de expressão da identidade paraense e brasileira, já
que estas referências estariam presentes de forma integrada no
canto, na música, na dança e na formação instrumental. Nesta
figuração, passou a ser comum a associação do carimbó aos
emblemas e ícones identitários de promoção cultural emanados
discursivamente por seus defensores e praticantes. (DOSSIÊ
IPHAN, 2013, p. 14).

Segundo Salles e Salles (1969) o carimbó é uma expressão cultural marcada


pela oralidade de comunidades tradicionais da Amazônia paraense, reproduzindo,
dessa forma, elementos culturais pertencentes às comunidades em diversas regiões
do Estado do Pará, podendo ser divididas em: primeiro o carimbó pastoril, presen-
te na Ilha do Marajó, segundo o carimbó rural, referente ao produzido na região
do Baixo Amazonas e por terceiro o carimbó praieiro, fazendo alusão ao feito na
faixa litorânea da Zona do Salgado, principalmente, no município de Marapanim
e na ilha de Maiandeua, ambos fazendo referência ao que é considerado carimbó
tradicional ou carimbó pau e corda.
Além dessas variações do carimbó citados antes, é necessário falar sobre a inclu-
são do carimbó moderno como um dos desdobramentos estéticos da manifestação
cultural dentro da lógica dos espaços de urbanidade, ou seja, o carimbó estilizado
com a inserção de instrumentos como a guitarra, a bateria e o baixo elétrico e que
foi popularizado pelo Pinduca110 por meio da distribuição do ritmo na década de
70 pela indústria fonográfica no mercado brasileiro.
110 Aurino Quirino Gonçalves, conhecido como Pinduca. Tem 32 anos de carreira como cantor e
compositor de carimbó com 25 discos gravados e que ajudou na popularização do carimbó no Brasil. Esses fe-
nômenos são produzidos por meio do conceito de ocupação dos espaços públicos, além de podermos identificar

264
Segundo Amaral (2004) sobre o questionamento dos tipos de carimbó que
existem dentro do Estado do Pará, é necessário analisar contraponto entre carimbó
tradicional e o carimbó moderno que se apresentam sobre a manifestação cultural
do carimbó na região metropolitana de Belém, após o explicitado anteriormente,
entre a existência de duas correntes distintas de observação: uma que analisa a exis-
tência do carimbó tradicional e outra que avalia a experiência do carimbó moderno.

O carimbó de Marapanim, como matriz musical e coreográfica


para o carimbó de Belém, teria se organizado em dois tipos dis-
tintos, já nesta última localidade: 1º) um carimbó tradicional
e 2º) um carimbó moderno. O primeiro, representado pelo
cantador Verequete, manteria a estrutura musical do referencial
marapaniense de “originalidade”; o segundo, representado por
Pinduca, teria alterado essa estrutura, no sentido de atribuir-lhe
uma feição de modernidade. Essa diferenciação construiu a
ideia da existência de duas correntes carimbóticas em Belém,
confirmando uma histórica rivalidade entre defensores da tra-
dição e da modernidade. (AMARAL, 2004, p. 03).

Acredita-se que as tensões entre modernidade e tradição estão impregnadas


em todas as distintas e diversas modalidades de expressão cultural, social e comu-
nicacional da humanidade. Segundo Debord (1997), no âmbito de suas reflexões
sobre a caracterização da sociabilidade contemporânea, é nítida a presença de
complexos e multifacetados estímulos que iluminam oposições e convergências
na construção e manutenção de manifestações culturais na sociedade capitalista
contemporânea que orientam e guiam as diretrizes da construção simbólica das
identidades culturais.
Canclini (2003) propõe uma reflexão sobre a espetacularização da cultura
popular e suas várias formas de expressão na América Latina para estimular o de-
bate entre a globalização do capital e as relações históricas com a cultura popular
para entender como se formam as matrizes conceituais desse diálogo, portanto,
desdobramentos estéticos na composição das letras que abordam temáticas referentes a questões que envolvem
sociabilidades urbanas não somente locais, mas, também, de contextos cosmopolitas como a questão da violên-
cia ou da diversidade, além das modificações dos instrumentos que compõem a instrumentação como o caso dos
curimbós de PVC ou dos banjos com revestimento de capacete de moto. Portanto, alguns dos elementos citados
acima compõem o quadro de transformações apontadas pela cadeia produtivado carimbó dentro dos espaços
urbanos da região metropolitana de Belém no Estado do Pará.

265
é possível encontrar a manifestação do carimbó em espaços urbanos da região
metropolitana de Belém dentro desse contexto após a massificação da sua estética
musical por meio da assimilação do carimbó pela cadeia produtiva da indústria
cultural a partir dos anos 70 com variações de repercussão nas décadas de 90 e,
recentemente, após uma nova valorização do carimbó depois da consolidação da
manifestação cultural como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil no início dos
anos 10 do século XXI.
A dicotomia entre tradicional e moderno dentro do carimbó oferece um olhar
entre conceitos da cultura popular e da indústria cultural, entretanto após vivên-
cias empíricas dentro de eventos de batucadas, rodas de carimbó, contato com
mestres, carimbozeiros e ensaios de conjuntos de carimbó é possível perceber
entrelaçamentos entre o carimbó tradicional, pau e corda, e o carimbó moderno,
que pode ser denominado carimbó urbano e vem sendo produzido dentro da
região metropolitana de Belém.
O carimbó urbano possui variações dentro do seu contexto de produção como,
por exemplo, os eventos de e carimbó como a Batucada da Praça da República o
no Mercado de São Brás ou intervenções como a prática do mangueio, o ato da
relação de troca do artista com o público na rua através do intercâmbio de um
objeto ou performance artística por dinheiro, configurando, dessa forma, como
recursos de sobrevivência da cadeia produtiva dos carimbozeiros dentro do espaço
urbano da região metropolitana de Belém.

O que significa manguear? Por que ocupar os espaços públicos?

O acasalamento entre o carimbó tradicional e o carimbó moderno resultou


no surgimento do carimbó urbano a partir de desdobramentos que envolvem a
produção da manifestação cultural dentro de espaços de urbanidade, portanto, é
necessário investigar quais elementos estimularam novos modos de produção do
carimbó na região metropolitana de Belém para reconhecermos outros formatos
de sociabilidades que são mobilizados no processo de ressignificação urbana do
carimbo. Sendo assim, a proposta é analisar o mangueio praticado pelos carim-
bozeiros de forma itinerante pelas ruas ou dentro dos eventos de ocupação em
praças ou mercados que são denominadas batucadas como formas de ocupação da

266
cidade característica das manifestações da cultura popular em função da ausência
de fomento, acontecem de forma orgânica entre os carimbozeiros que se reúnem
em pontos da região metropolitana de Belém para se apresentarem para o público
transeunte.
O mangueio, segundo o dicionário, pode ser caracterizado como o ato de pedir
dinheiro na rua, entretanto, pode pressupor ou não o intercâmbio de dinheiro em
troca de objetos artísticos, haja vista que a prática de manguear é algo que advém
da contracultura e de mecanismos de sociabilidade e resistência do movimento
hippie como observado, também, na pesquisa de Da Silva Neto (2017).

[...] condição de exposição na ocupação de determinado es-


paço urbano: o chão de um praça, calçada ou qualquer lugar
público. Nesse contexto, o “mangueio” é o oferecer, chamar a
atenção para o objeto artístico que é colocado em negociação,
bem como a possibilidade de convencimento – a potência da
linguagem em favor da própria representação cultural. (DA
SILVA NETO, 2017, p. 8).

O ato de manguear é um fenômeno urbano ligado ao grupo de artistas de rua


que produzem artesanatos e literatura marginal, assim como, também, aqueles
que realizam intervenções ligadas à estética cênica e circense. Portanto, o
mangueio é tido como um mecanismo de fonte de renda por meio do intercâmbio
de produtos artístico ou culturais sejam materiais, como por exemplo, zines, colares
e brincos, ou imateriais, tal como performances e peças teatrais.
Após o afirmado anteriormente, vou pontuar a questão de demarcar a diferen-
ciação entre carimbozeiros e hippies, haja vista a necessidade de mostrar que ambos
não participam do mesmo grupo social, ou seja, não compartilham do mesmo estilo
de vida, signos e elementos culturais, porém há convergências no fenômeno de
sociabilidade da apropriação dos espaços públicos como o exemplo do mangueio
que é uma prática usada por ambos os sujeitos com o mesmo objetivo econômi-
co, entretanto, as intenções comunicacionais no fazer do carimbozeiro urbano ao
praticar o mangueio que pressupõe o fazer cultural e, consequentemente, no caso
específico, o artístico também.
A ocupação de espaço públicos por meio de uma manifestação cultural implica
em alterações na cadeia produtiva do mercado como abordaremos posteriormente,

267
quando reunirmos os conceitos e interpretações de Harvey (2014) sobre os estímulos
e intervenções na socialidade dos ambientes urbanos pelas coletividades, tal como
no contexto do carimbó produzido em espaços urbanos da região metropolitana de
Belém que carregam no seu fazer a intenção de reinventar a cidade para consolidar
a sobrevivência do estilo de vida dos carimbozeiros urbanos e, consequentemente,
a resistência da manifestação cultural.

Esse direito, afirmava ele, era ao mesmo tempo uma queixa e


uma exigência. A queixa era uma resposta à dor existencial de
uma crise devastadora da vida cotidiana na cidade. A exigência
era, na verdade, urna ordem para encarar a crise nos olhos e
criar uma vida urbana alternativa que fosse menos alienada,
mais significativa e divertida, porém, como sempre em Lefeb-
vre, conflitante e dialética, aberta ao futuro, aos embates (tanto
temíveis como prazerosos), e à eterna busca de uma novidade
incognoscível. (HARVEY, 2014, p. 11).

Segundo Paes Loureiro (2001) na sua pesquisa sobre cultura amazônica e


o Dossiê Iphan (2013) o carimbó é uma manifestação cultural ligada a uma
identidade regional, portanto não foi absorvida, completamente, pela globaliza-
ção, sendo assim não faz parte do grupo dominante de manifestações culturais
cosmopolitas da indústria cultural.

O isolamento que recobria a Amazônia com o manto do misté-


rio, distância a intemporalidade, que a impedia de intercambiar
seus bens culturais, contribuiu para que se acentuasse sobre
ela uma visão folclorizante e primitivista. Sendo assim con-
tra essa corrente de pensamento, ao tratar-se de uma cultura
amazônica do caboclo, ela será entendida como expressão da
sociedade que constitui a Amazônia contemporânea à história
dessa sociedade e contemporânea à da ocidental. Uma cultura
dinâmica, original e criativa, que revela, interpreta e cria sua
realidade. (PAES LOUREIRO, 2001, p. 55).

A noção de mangueio para capitalização de recursos financeiros para os ca-


rimbozeiros aplicado ao exercício musical, no contexto do carimbó produzido em

268
espaços urbanos da região metropolitana de Belém é feito de forma analógica pelas
ruas, salvo em momentos de ocupação com os eventos de batucada, onde ocorre
o uso de equipamentos de som, configurando desta forma duas formas distantes
de produção do mangueio, uma em movimento entre locais e outra estática em
uma localidade.
A partir dos conceitos de Lefebvre (2008) sobre a produção social dos espaços
de urbanidade e Harvey (2014) referente às intervenções da sociabilidade da cultura
popular dentro do ambiente urbano é possível compreender quais elementos são
mobilizados pelo carimbó urbano nos processos de apropriação dos espaços públicos,
como ruas e praças, da região metropolitana de Belém a partir da prática do man-
gueio por meio de performances e produtos musicais dos carimbozeiros urbanos.

As batucadas e o mangueio como fenômenos de sociabilidades


do carimbó produzido em espaços públicos
na região metropolitana de Belém

Após uma análise dos conceitos sobre a produção social do espaço e, também,
sobre às intervenções da sociabilidade da cultura popular dentro do ambiente
urbano, conjuntamente, com uma análise de entrevistas realizadas durante
a pesquisa com carimbozeiros urbanos sobre a questão do mangueio é possível
tecer observações. Encontramos a existência de dinâmicas sociais que incorporam
atravessamentos na manifestação cultural do carimbó na região metropolitana de
Belém, haja vista a necessidade de mecanismos que possibilitem aos carimbozeiros
urbanos encontrarem sua subsistência nos espaços urbanos por meio da produção
do carimbó.
É necessário perceber que o carimbó urbano movimenta outras estruturas de
socialidade para o exercício do direito aos espaços públicos da cidade, como por
exemplo, a experiência do mangueio como recurso de sociabilidade por meio de
apresentações itinerantes na rua, assim como, também, espaço midiático de divulga-
ção e distribuição de seus trabalhos autorais, além de mecanismo de resistência so-
ciocultural e capitalização econômica a partir das doações financeiras de indivíduos
que entram em contato com o show autoral realizando, segundo Harvey (2014),
que as intervenções das sociabilidades do carimbó urbano estimulam alterações

269
nas dinâmicas da rua e possibilitam, como observado nos conceitos de Lefebvre
(2008), novas configurações na produção social do espaço por meio da ocupação
do espaço público pelos carimbozeiros urbanos com o intuito de desenvolverem
mobilizações de resistência com a cultura popular através do mangueio.
É importante ressaltar que entre o século XIX e XX havia nos municípios de
Vigia, no interior do Estado do Pará, e na capital Belém, segundo Salles e Salles
(1960), uma lei municipal de No1.028 da data de 5 de maio de 1880, do Código
de Posturas, que marginalizava a prática do carimbó com penalizações e prisão,
gerando dessa forma uma postura proibitiva sobre a manifestação cultural. “É
proibido, sob pena de 30.000 reis de multa [...] Fazer bulhas, vozerias e dar autos
gritos [...] Fazer batuques ou samba [...] Tocar tambor, carimbó, ou qualquer outro
instrumento que perturbe o sossego durante a noite” (CÓDIGO DE POSTURAS
DE BELÉM apud Salles e Salles, 1969)
Como visto anteriormente, segundo intervenções dos conceitos de Lefebvre
(2008), podemos afirmar que a emersão do carimbó urbano promoveu novas
condições de exposição e de produção da manifestação cultural e uma delas foi o
debate sobre a apropriação dos espaços públicos pelos produtores de carimbó dentro
do contexto urbano e esse fato demonstra a emancipação do indivíduo a partir da
construção de espaços de interação social por meio de elementos impressos pelo
carimbó atravessado pela urbanidade.

[...] a atividade criadora, a arte e o conhecimento são manifes-


tações particulares e momentos, que superam mais ou menos a
divisão parcelar dos trabalhos. Enfim a necessidade da cidade
e da vida urbana só se exprime livremente nas perspectivas
que tentam aqui se isolar e abrir os horizonte. As necessidades
urbanas específicas não seriam necessidades de lugares qualifi-
cados, lugares de simultaneidade e encontros, lugares onde a
troca não seria tomada pelo valor de troca, pelo comércio e pelo
lucro? Não seria também a necessidade de um tempo desses
encontros, dessas trocas? (LEFEBVRE, 2008, pg. 105-106).

A criação, portanto, de eventos culturais como, por exemplo, batucadas pela


região metropolitana de Belém, tendo como expoentes desse movimento, os batu-
ques da Praça da República e do Mercado de São Brás funcionaram como espaços

270
de fomento e de divulgação de trabalhos autorais por conjuntos, mestres e carimbo-
zeiros do meio do espaço urbano do Estado do Pará que conferem novas condições
sobre a dialética espacial a partir de elementos que possibilitam a manutenção
sociocultural da produção do carimbó urbano, entretanto é necessário reconhe-
cer que a cidade possui zonas onde à segurança pública impede a livre circulação
e expressão dos indivíduos que não estiverem enquadrados em aspectos morais
ligados a cultura do bairro.

O carimbó urbano é uma das manifestações artísticas que


deve reivindicar o seu direito à rua, assim como qualquer
outra manifestação. Vejo que esse direito é concedido em lu-
gares específicos, por exemplo, o mesmo carimbó que toquei
no Ver-o- Peso com toda a aceitabilidade e interação com o
público, porém na praça Batista Campos é considerado “ba-
rulho” e perturbação (PARTE DA ENTREVISTA COM
O CARIMBOZEIRO URBANO MARCOS SARRAZIN).

Esses eventos mobilizavam grupos de Icoaraci, Guamá, Terra Firme, Ana-


nindeua, Cidade Velha e outros bairros de Belém com o objetivo de oferecer um
espaço livre da cadeia produtiva do capital e aberto a diálogos e modos de fazer
da manifestação cultural do carimbó em espaços urbanos da região metropolitana
de Belém como praças, feiras, mercados e ruas, além de movimentar centenas de
pessoas em torno das rodas de carimbó montadas como palcos horizontais entre
o carimbozeiro urbano e a comunidade. Transformando, dessa forma, a produção
social do espaço público por meio de atuações democráticas, onde não existe a
obrigatoriedade de pagar ingresso, porém há a prática do mangueio, como alter-
nativa a questão da manutenção financeira para os carimbozeiros urbanos aqueles
participantes que tiverem o interesse de doar.

O mangueio, na verdade, subverte a ideia de palco, o próprio


movimento que tá acontecendo de carimbó de rua, de batuque,
indo na contramão do conceito de mainstream, ou do fato de
haver um ponto elemental que vai fazer toda essa dinâmica
aconteça. E tocar na rua permite que a pessoa que tá assistindo
cante junto contigo e se souber tocar um instrumento e tiver

271
um sobrando ela vai tocar, então a gente destrói a ideia de
um palco e transforma uma relação mais humana com todos.
(PARTE DA ENTREVISTA COM O CARIMBOZEIRO
URBANO JOÃO PINHEIRO).

Segundo Lefebvre (2008) a apropriação do espaço público pelos cidadãos


confronta a lógica da dominação ou da marginalização na produção social do es-
paço, sendo assim, o mangueio se configura como um mecanismo de exercício do
direito a circulação e ocupação dos espaços públicos por meio da realização de sua
prática cultural que é produzida como um elemento de pertencimento urbano da
coletividade paraense como expressão da identidade cultural. “O direito à cidade
não pode ser concebido como um simples direito de visita ou retorno às cidades
tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transtornada,
renovada”. (LEFEBVRE, 2008, p. 117)
Para entendermos melhor a relação do mangueio com o carimbó urbano decide
caracterizar o carimbó urbano a partir da observação dos elementos encontrados
nas entrevistas realizadas com carimbozeiros urbanos de alguns conjuntos da região
metropolitana de Belém para escutar como essa prática se modela aos modos de
fazer do carimbó em espaços urbanos, portanto, foram escolhidos oito entrevistados,
sendo que deste total, sete conversas foram registradas e uma foi realizada em off.
“Manguear é levar nosso som, nossa cultura e amor pelo o que fazemos pra aquele
determinado ambiente e, em consequência disso, utilizar a passada de chapéu,
que seria a retribuição, assim ajudando e auxiliando financeiramente. (PARTE
DA ENTREVISTA COM A CARIMBOZEIRA URBANA RAÍRA MACIEL).
Um dos fatores que contribuí para a prática da apropriação dos espaços pú-
blicos pela prática do mangueio no contexto do carimbo urbano é a ausência de
espaços privados de fomento da manifestação cultural do carimbó produzido em
espaços urbanos da região metropolitana de Belém, como por exemplo, o fato de
haver somente duas casas de show especializadas na manutenção e produção do
carimbó, que são o “Coisa de Negro” em Icoaraci e o “Espaço Cultural Apoena”
que abrem as portas para conjuntos e carimbozeiros urbanos em início de carreira
que ainda não possuem público ou trabalhos com trajetórias já consolidadas no
cenário da música produzida no Estado do Pará.

Manguear no, contexto do carimbó, manguear significa levar

272
a nossa própria cultura para as ruas, bares e calçadas pra onde
der no sol quente ou numa lua cheia e fazer muito carimbó. É
um ato político, uma resistência, porque agente não tem tantos
espaços pra mandar nosso carimbó, pra escutar, pra vivenciar
isso da nossa terra, então a gente cria esses espaços como uma
forma de nos sustentar. (PARTE DA ENTREVISTA COM
O CARIMBOZEIRO URBANO MATEUS LEÃO).

No contexto do carimbó urbano produzido na região metropolitana de Belém,


o ato de manguear para o carimbozeiro urbano é criar a possibilidade de visualizar
a rua como palco, onde o público pode se emancipar por meio da escolha de doar
algum dinheiro ao chapéu, que normalmente é passado de mão em mão durante
o mangueio ao ritmo do da roda de carimbó. Nesse momento, a rua é vista, tam-
bém, como uma mídia, afinal os repertórios dessas apresentações itinerantes, em
grande parte das vezes, serem compostos por canções de carimbó já pertencentes
ao domínio público, assim como, também, com inserções de músicas autorais dos
carimbozeiros urbanos, fazendo dessa forma a divulgação e distribuição de seus
trabalhos autorais. “Há inúmeros mestres e mestras e grupos que mantém vivo
esse patrimônio sem nenhuma assistência ou incentivo, portanto, a maioria dos
mestres, mestras, tocadores e tocadoras são pessoas de baixa renda que muitas vezes
usam a prática do mangueio por uma questão de sobrevivência”. (PARTE DA
ENTREVISTA COM A CARIMBOZEIRA URBANA LOBA RODRIGUES).
A partir do abordado por meio de Lefebvre (2008) podemos invocar o trabalho
do pesquisador Harvey (2014) sobre a teoria das cidades rebeldes para afirmar que
o processo urbano se expandiu através da globalização, nesse sentido o direito a
cidade passou a ser o direito a vida urbana. Sendo assim, podemos analisar que o
carimbó produzido em espaços urbanos passou a estimular a apropriação social
do espaço público, social e político dentro dos ambientes urbanos como praças,
mercados e ruas, englobando a realização de um desdobramento estético do ca-
rimbó como abordado anteriormente, quando comentamos sobre os elementos
da prática do carimbó urbano.
Harvey (2014) explora o conceito de direito a cidade de Lefebvre (2008) como
um direito coletivo sobre o processo de urbanização e isso implica em conflitos
com as estruturas estabelecidas nos espaços públicos, entretanto, percebemos que
a manifestação cultural do carimbó nos espaços urbanos atravessa e é atravessada
por esses aspectos, portanto, por meio de intervenções como a prática do mangueio

273
pelos carimbozeiros da região metropolitana de Belém. Percebemos, portanto, ele-
mentos de sociabilidade como fomento, produção e apresentação de espetáculos,
divulgação de eventos que dialogam para a construção de uma cadeia produtiva
que envolve a capitalização e distribuição de trabalhos autorais de carimbó urbano.

O direito à cidade é, portanto, muito mais do que um direi-


to de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade
incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais
de acordo com nossos mais profundos desejos. Além disso,
é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que
reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de
um poder coletivo sobre o processo de urbanização. (HARVEY,
2014, p. 28).

Nesse sentido, os atores sociais modificam a dependência da cadeia produtiva


da indústria cultural e passam a dialogar com novos formatos de produção social
do espaço para a manutenção da sua produção cultural por meio do carimbó
produzido em ruas, praças, feiras e mercados desenvolvendo um espaço de inter-
câmbio, de encontro entre as diferenças a partir da intervenção das sociabilidades
da cultura popular como observado durante o trajeto da pesquisa de campo e
bibliográfica sobre a produção do carimbó urbano pelos carimbozeiros da região
metropolitana de Belém.

Conclusão

Depois de reunir os apontamentos anteriores sobre a existência do carimbó


urbano, ou seja, produzido em espaços urbanos da região metropolitana de Belém,
é possível afirmar que o mangueio é um recurso de sociabilidade que imprime
o exercício do direito à cidade por meio da ocupação de espaços públicos e tem
como base a realização uma manifestação cultural que reuni em si elementos que
constroem um estilo de vida dentro do carimbó urbano assim, como também, um
exercício estético, muito antes da pretensão de fazer emergir um produto artístico

274
material para o mercado comercial, objetivando, desta maneira, o fomento e a
resistência da expressão cultural no imaginário urbano.
O entendimento do mangueio, no contexto do carimbó urbano, como uma
manifestação sociocultural e política da prática do carimbó em espaços público,
configurando, dessa forma, novos formatos de produção social do espaço por meio
da intervenção e ocupação dos espaços urbanos como praças, ruas, mercados e
feiras demonstra que o ato de manguear exercita a relação do contato das comu-
nidades com a manifestação cultural, possibilitando, dessa forma, a resistência e
sobrevivência do carimbó em espaços urbanos da região metropolitana de Belém
com objetivos que potencializem a coletividade, a sociabilidade, a convergência
de manifestações culturais com o cotidiano social da cidade se apresentam como
recursos que vão à direção contrária da definição da cidade como mercadoria, pois
provoca a ressignificação das relações de uso do espaço público.

Referências

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Belém. In: 10º Fórum Paraense de Letras, Belém, 2004.
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Acesso em 08 nov. 2022.
<https://drive.google.com/open?id=1ZOU9B56Ob2b9pLAfOTY7dpt_ecrFh4Ws
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Carimbó Urbano). Acesso em: 08. Nov. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=7hGSkRGfqkY (Carimbó na Praça/Batucada
da Praça da República). Acesso em: 08. Nov. 2022.

276
A ETNOGRAFIA MULTI-SITUADA COMO PERCURSO
DE IMERSÃO E OBSERVAÇÃO DE PRÁTICAS
PRODUTIVAS E DISCURSIVAS QUE ENVOLVEM
A PRODUÇÃO DO CARIMBÓ NA REGIÃO
METROPOLITANA DE BELÉM/PARá

Daniel da Rocha Leite Junior111

Introdução

Investigar as manifestações da cultura popular, como o carimbó do Estado do


Pará, é imergir num processo de dinamismo, onde encontraremos diversos agen-
tes sociais e culturais em intercâmbio, transitando entre conceitos de oposição,
agregação e inclusão dentro dos âmbitos das práticas de produção e discursivas
que articulam interesses e sentidos por meio de fenômenos de sociabilidade que
atualizam ou fazem a manutenção de uma experiência de tradição cultural e que
promovem conflitos que se interrelacionam com estruturas de produção da socie-
dade contemporânea.
Este artigo tem a proposta de compreender as múltiplas redes de relação e
formas do fazer cultural, a partir da etnografia multi-situada de Marcus (1995) em
convergência com o conceito de interpretação das culturas de Geertz (1978) para
observar quais signos foram ressignificados através das mudanças resultantes do
carimbó produzido na região metropolitana de Belém-Pará, no âmbito discursivo e
das práticas de produção, em contraponto aos elementos que compõem o carimbó
patrimonializado ou pau e corda ou tradicional.

111 Doutorando poelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação, C, da Univwersidade federal do


Pará (PPGCOM/UFPA).

277
Para começar a imersão da pesquisa, é necessário pontuar o contexto da Ama-
zônia como lugar a margem dos grandes centros culturais do Brasil, segundo
aponta Paes Loureiro (2001) ao avaliar o reconhecimento da resistência cultural
que o imaginário da identidade amazônico paraense ocupa no quadro da cultura
nacional. “O isolamento que recobria a Amazônia com o manto do mistério, dis-
tância a intemporalidade, que a impedia de intercambiar seus bens culturais,
contribuiu para que se acentuasse sobre ela uma visão folclorizante e primitivista”.
(PAES LOUREIRO, 2001, p. 55).
Assinalo, também, outro apontamento segundo Castro (2013) sobre a folclo-
rização da cultura amazônico paraense no séc. XX com relação ao enrijecimento
das referências da identidade cultural, a partir de uma matriz icônica e vinculada
a noção do conceito de caboclo que agrega elementos de fetichização e exotização
ao ambiente amazônico dentro do imaginário brasileiro. Esse discurso é carregado
por matrizes icônicas, ou seja, por referenciais de fácil e superficial identificação,
normalmente associados a uma fetichização do espaço amazônico. (CASTRO,
2013, p. 451)
É necessário pontuar que o processo de patrimonialização do carimbó acon-
teceu durante a produção de uma nova política nacional de cultura promovida
pelo Ministério da Cultura (MinC), no caso específico no período de 2003 até
2007 na gestão de Gilberto Gil, no mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva e durante essa gestão foi desenvolvido uma política nacional construída
por meio do reconhecimento do caráter participativo da cultura. Desta forma, foi
estimulada uma intensa circulação de representantes de manifestações culturais
por todo território nacional, promovendo, portanto, um ambiente propício para
o intercâmbio cultural, a partir de conferências, audiências públicas, reuniões,
encontros, conselhos e outras formas de organização e gestão sociocultural que
resultou em uma acentuada reconfiguração do contexto de militância cultural no
Brasil no âmbito das manifestações da cultura popular.
É importante ressaltar, segundo Alves (2011), que o Brasil neste período em
concordância com as diretrizes discursivas desenvolvidas para a cultura popular
na esfera internacional e adaptadas para o contexto brasileiro possibilitou que as
manifestações culturais do país se distanciassem da característica de folclore para
assumir um caráter participativo e, posteriormente, alcançassem o domínio de
patrimônio imaterial por meio dos instrumentos de salvaguarda dessa nova política
nacional que se instalava no território brasileiro.

278
Nesse contexto, a noção de pertencimento sobre as manifestações culturais
segundo Agier (2001) passa pela criação de novas retóricas identitários a partir do
entrelaçamento entre a cultura e o lugar, portanto a pesquisa pede um olhar
sobre a questão dos processos identitários, a partir do contexto da patrimonialização
do carimbónos últimos anos, pois é possível encontrar formatos de pertencimento
da manifestação cultural que expandem o conceito do fazer da expressão cultural
quando pensamos a dissociação acarretada no intercâmbio entre lugar e cultural.
Conforme interpretação, a partir do postulado na pesquisa do Dossiê Iphan
Carimbó (2013), o carimbó tradicional ou pau e corda pode ser denominado,
também, de carimbó patrimonializado. Sendo assim, ao olhar para o carimbó
produzido na regiãometropolitana de Belém, também, denominado nessa pesquisa
de carimbó urbano e desenvolvido a partir de pautas das urbanidades, ou seja,
estimuladas por outras formas de sociabilidades, pelas políticas públicas, além do
mercado da arte e da cultura, encontra-se um modo de fazer com características
ao mesmo tempo convergentes e divergentes do carimbó patrimonializado.
Após o exposto anteriormente, é perceptível o enquadramento do carimbó
do Estado do Pará no contexto de uma manifestação cultural participativa mesmo
antes do processo de patrimonialização que a manifestação atravessou no ano de
2014, porém ao olharmos para o carimbó produzido na região metropolitana de
Belém-Pará, a partir da pesquisa para construção do Dossiê Iphan Carimbó (2013),
encontramos transformações no processo de criação estética, dos fenômenos de
sociabilidade e nas praticas produtivas e discursivas se comparada ao carimbó
patrimonializado.

Apontamentos sobre a historiografia do carimbó

Para começar a jornada na historiografia do carimbó faz-se necessário definir


apontamentos sobre o seu surgimento no território do Estado do Pará, até a sua
consolidação como gênero musical símbolo da identidade cultural paraense no
século XXI, segundo o Dossiê Iphan Carimbó (2013).
O vocábulo carimbó, segundo Gabbay (2012) é uma herança da língua Tupi
korimbó, que é a junção das prefixos curi (pau oco) e m’bo (furado) que origina a

279
expressão “pau que produz som” e é, também, o nome dado ao tambor, o curimbó,
utilizado para batucar o ritmo do carimbó e que, posteriormente, veio a ser o termo
associado à manifestação cultural.
Segundo as pesquisas de Salles e Salles (1969) e Gabbay (2012), definir um lugar
de partida para o nascimento do carimbó suscita debates que invocam questões
referentes aos processos de miscigenação, que aconteceram na cultura do Estado do
Pará. Portanto, remontar os signos que formaram a identidade amazônico-paraense
é encontrar elementos de hibridização cultural por meio da influencia de povos
indígenas, negros e europeus-ibéricos na construção da identidade sociocultural
do Estado do Pará,como indica Salles (1969, pg 27): “dentro da Amazônia nada
é, essencialmente, indígena, africano ou europeu”.
Podemos analisar por meio das afirmações do inventário realizado peloDossiê
Iphan Carimbó (2013) que um dos logradouros e povos preponderantes para o
surgimento da manifestação cultural é a cidade de Marapanim, no litoral do Es-
tado, a partir do povo indígena Tupinambá, porém é interessante observar que há
documentos que apontam o carimbó como um invento de negros e escravos que
ocupavam o território paraense no século XVII.

Desta maneira, alguns estudos apontam para a influência in-


dígena observada na dança em formato de roda e em alguns
instrumentos de percussão como asmaracas. No batuque (sín-
copes, antifonias e polirritmias), na aceleração do ritmo e no
“molejo” da dança estaria a contribuição do negro. E, por fim,
na dança em pares ou mesmo individualmente com gestos,
palmas e estalar de dedos, além dos padrões melódicos, estaria
à influência ibérica. Nesta figuração, passou a ser comum a
associação do carimbó aos emblemas e ícones identitários de
promoção cultural emanados discursivamente por seus de-
fensores e praticantes. (DOSSIÊ IPHAN CARIMBÓ, 2013,
p. 14).

A análise sobre a historiografia do carimbó permitiu a visualizar a influênciaque


foi mobilizada das culturas indígena, negra e europeu-ibérica que influenciaram
sua criação, portanto, após essas percepções podemos afirmar, segundo Cancli-
ni (2003), que o carimbó é uma manifestação cultural híbrida, pois o encontro

280
entre culturas que foram deslocadas para o território amazônico proporcionou
um ambiente favorável para criação da manifestação cultural e, posteriormente,
o desenvolvimento de outro modo de fazer carimbó nos espaços de urbanidade
da região metropolitana de Belém, o que denominamos durante a pesquisa de
carimbó urbano.
O hibridismo das práticas culturais de três culturas distintas, como obser-
vado anteriormente sobre o DNA do carimbó, possibilitou a percepção sobre o
deslocamento de símbolos culturais que foram adaptados ao contexto amazônico
paraense, por meio da interação entre as subjetividades que resultaram em negocia-
ções culturais, a partir de processos de interculturalidade através de convergências
e oposições entre tensões socioculturais estéticas.

De um mundo multicultural – justaposição de etnias ou grupos


em uma sociedade ou nação – passamos a outro, intercultural e
globalizado [...] Em contrapartida, a interculturalidade remete
à confrontação e ao entrelaçamento,àquilo que sucede quando
os grupos entram em relações e trocas. Ambos os termos im-
plicam dois modos de produção do social: multiculturalidade
supõe aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica
que os diferentes são o que são, em relações de negociação,
conflito e empréstimos recíprocos (CANCLINI, 2009, p. 17).

Podemos, a partir da informação citada anteriormente, entender o estímulo


que a diáspora cultural, influenciada pelos processos de mestiçagem e hibridização,
ofereceu aos povos da Amazônia, pois segundo Hall (1996) é preciso observar a iden-
tidade como uma produção que nunca se finaliza, afinal deve ser percebida como
um processo estabelecido internamente e não de forma externa a sua apresentação.
O conceito de interculturalidade segundo Hall (2003) e hibridização cultu-
ral conforme o percebido nas pesquisas de Canclini (2009) oferece base para o
entendimento do surgimento e dos elementos que compõem a configuração do
carimbó como manifestação cultural da identidade amazônico-paraense no âmbito
sociocultural.
A oralidade de comunidades tradicionais de regiões do território do Estado
Pará caracteriza a expressão musical do carimbó pau e corda ou tradicional até a
década de 70, quando surge o desdobramento do carimbó moderno dentro do

281
mercado do long play (LP) na fonográfica brasileira, porém, antes de aprofundar a
pesquisa para análise sobre o carimbó tradicional e moderno. Salles e Salles (1969)
explicam que há segmentações de produção que são demográficas, ele fala sobre
a existência do carimbó pastoril, alusão à produção de carimbozeiros da Ilha do
Marajó112, a presença do carimbó rural, referente ao que é oduzido na região do
Baixo Amazonas113 e por último o carimbó praieiro do município de Marapanim
e da ilha de Maiandeua na faixa litorânea da Zona do Salgado114.
Nesse momento da análise, reacendemos o debate estimulado por Hall (1996)
sobre as identidades culturais não estarem fixadas, apesar de serem provenientes
de algum grupo de signos, e sim em continuado processo de negociação de
deslocamentos socioculturais e estéticos quando encontramos variações da produção
do carimbó pau e corda ou tradicional nos territórios do interior do Estado do
Pará, antes mesmo de qualquer comentário sobre a existência do desdobramento
moderno da manifestação cultural do carimbó.

As identidades culturais provêm de alguma parte, têm histórias.


Mas, como tudo o que é histórico sofrem alterações constantes.
Longe de fixas eternamente em algum passado essencializado,
estão sujeitas ao contínuo “jogo” da história, da cultura e do
poder. As identidades, longe de estarem alicerçadas numa sim-
ples “recuperação” do passado, que espera para ser descoberto
e que, quando o for, há de garantir nossa percepção de nós
mesmos pela eternidade, são apenas os nomes que aplicamos
a diferentes maneiras que nos posiciona, e pelas quais nos
posicionamos, nas narrativasdo passado (HALL, 1996, p.69).

Após a exposição dos tipos de carimbó pau e corda ou tradicional, podemos


perceber a partir do reconhecimento da espetacularização do carimbó dentro da
indústria cultural de que há duas correntes carimbozeiras que foram consolidadas
no imaginário popular com o passar do tempo, segundo Amaral (2004) e Gabbay

112 A Ilha de Marajó é uma ilha costeira do tipo fluviomarítima situada na Área de Proteção Ambiental
do arquipélago do Marajó, no estado do Pará.
113 A Mesorregião do Baixo Amazonas é composta por municípios que fomentam a economia do Esta-
do doPará. São 13 cidades que compõem o território do Baixo Amazonas: Alenquer, Almeirim, Belterra, Curuá,
Mojuí dos Campos, Faro, Juruti, Monte Alegre, Óbidos, Oriximiná, Prainha, Santarém e Terra Santa.
114 A Zona do Salgado Paraense compreende as Reservas Extrativistas de Mãe Grande de Curuçá, São
João da Ponta, Caeté-Taperaçu, Tracuateua, Araí Peroba, Gurupi-Piriá, Chocoaré-Mato Grosso e Soure no
Estado do Pará.

282
(2012) com relação às estéticas distintas do carimbó pau e corda ou tradicional e
do carimbó moderno ou estilizado respectivamente representadas nas trajetórias da
produção musical durante a carreira de Mestre Verequete115 e Pinduca116. As duas
correntes carimbozeiras foram responsáveis dentro da suaperspectiva de produção
pela popularização da manifestação cultural do carimbó na indústria cultural, porém
com atuações distintas de ambos no cenário mercadológico regional e nacional,
O presente artigo tem como proposição investigar o carimbó produzido na
região metropolitana de Belém-Pará por meio de uma etnografia multi-situada a
partir instrumentações diversas e diferenças com relação ao conteúdo das composi-
ções. Porém, podemos afirmar que ambos defendiam o carimbó como manifestação
cultural originária e característica da identidade cultural do Estado do Pará,
apesar das variações estéticas e socioculturais produzidas.

A etnografia multi-situada em convergência com a antropologia


interpretativa como percurso de imersão/observação

Da proposta de Marcus (1995) em convergência com o pensamento de Geertz


(1978) emrelação a uma antropologia interpretativa para conseguir alcançar quais
as transformações resultantes do processo de patrimonialização da manifestação
cultural do carimbó atravessou no início do séc. XXI através de uma analise no
âmbito das práticas de produção e discursivas dentro da produção do carimbó em
espaços urbanos da região metropolitana de Belém.
A antropologia interpretativa de Geertz (1978) funcionará como uma bússola
para guiar o reconhecimento da cultura como uma condição plural da atividade
humana com o intuito de buscar compreender o que pode ser inferido sobre os
relatos etnográficos e os dados coletados sobre a estrutura produtiva, discursiva e
sociocultural do desdobramento do carimbó dentro dos espaços de urbanidade da
capital paraense para que, desta maneira, possamos mobilizar um entendimento
analítico dentre tantos possíveis sobre a manifestação urbana do carimbó.
115 Augusto Gomes Rodrigues, também conhecido como Mestre Verequete, foi compositor e canto de
carimbó pau e corda junto do grupo “O Uirapuru”, além de ter sido um dos primeiros a gravar a manifestação
cultural no estilo long play (LP).
116 Aurino Quirino Gonçalves, conhecido como Pinduca. Tem 32 anos de carreira como cantor e
compositor de carimbó com 25 discos gravados e que ajudou na popularização do carimbó no Brasil.

283
Tal visão de como a teoria funciona numa ciência interpretativa
sugere que a diferença, relativa em qualquer caso, que surge
nas ciências experimentais ouobservacionais entre “descrição”
e “explicação” aqui aparece como sendo, de forma ainda mais
relativa, entre “inscrição” (“descrição densa”) e “especificação”
(“diagnose”) — entre anotar o significado que as ações sociais
particulares têm para s atores cujas ações elas são e afirmar, tão
explicitamente quanto nos for possível, o que o conhecimento
assim atingido demonstra sobre a sociedade na qual é encon-
trado e, além disso, sobre a vida social como tal. Nossa dupla
tarefa é descobrir as estruturas conceptuais que informam os
atos dos nossos sujeitos, o “dito” no discurso social, e cons-
truir um sistema de análise em cujos termos o que é genérico
a essas estruturas, o que pertence a elas porque são o que são,
se destacam contra outros determinantes do comportamento
humano. (GEERTZ, 1978, p. 19).

A etnografia multi-situada de Marcus (1995) nos auxiliará na construção de


um mapa de possíveis referências bibliográficas, além da pesquisa de campo, para
que possamos analisar a partir de uma imersão nas cadeias de produção, trajetó-
rias de vida, fenômenos de sociabilidade e de uso de objetos, a partir dos fios que
compõem o contexto sociocultural dentro da produção do carimbó em espaços
urbanos e, dessa maneira, traçar justaposições e conjunções para estabelecer uma
conexão ou associação entre os signos que abarcam as práticas de produção e dis-
cursivas da manifestação cultural do carimbó na região metropolitana de Belém.

Nor is multi-sited ethnography merely a different kind of con-


trolled comparison, long a part of anthropological practice, as
it has also sometimes been understood, although it does represent
a revival of comparative study in anthropology. Conventional
controlled comparison in anthropology is indeed multi-sited,
but it operates on a linear spatial plane, whether the context is a
region, a broader culture area, or the world system comparisons
are generated for homogeneously conceived conceptual units (e.g.
peoples, communities, locales), and such comparisons usually are

284
developed from distinctly bounded periods or separate projects of
fieldwork. (MARCUS, 1995, 102).

Nesse contexto, as propostas de coleta de dados, citadas anteriormente, tais


como a pesquisa de campo qualitativa terá como questões pertinentes as práticas
discursivas e de produção a partir de entrevistas com carimbozeiros da região me-
tropolitana de Belém sobre suas práticas de produção, tais como o ato de manguear
e de se apresentar em casas de show ou espaços cultuais com o intuito de abrir
o diálogo para alcançar um fluxo de convergência entre a análise interpretativa
de signos culturais e de elementos de sociabilidade presente no carimbó urbano.
Um dos paradigmas que essa pesquisa apontou quanto à imersão na coleta
de dados foi à questão do posicionamento do pesquisador no processo, pois ao
realizar algumas das entrevistas propostas me deparei com a intervenção do meu
olhar como agente fazedor de cultura da manifestação do carimbó produzido em
espaços urbanos deBelém, pois durante um ano e cinco meses, durante os anos de
2018 e 2019, atuei como produtor executivo e cultural do conjunto de carimbó
Caruana e isso me permitiu um olhar mais imersivo sobre as práticas produtivas,
haja vista que nesse período aprovamos quatro editais de políticas públicas do
governo do Estado do Pará, assim como, também, lançamos em um teatro estaudal
o primeiro produto musical em formatolong play (LP) e distribuído nas platafor-
mas de mainstreaming, além da participação em festivais e eventos culturais dos
mais variados temas.
Segundo Marcus (1995) para a efetivação de uma etnografia multi-situada
é necessário elucidar as mudanças culturais e sociais em âmbitos locais, além do
contexto da globalização, pois há dicotomias que emergem do embate desta relação
local e globalque mobilizam diversos níveis de intercâmbio de elementos globais e
modernos com signos de culturais populares locais e tradicionais, portanto, há um
trânsito cultural em fluxo que acontece, seja por meio de recursos tecnológicos e
midiáticos quanto por meiode relações de sociabilidade que estimulam intersecções
e ressonâncias entre os fenômenos das práticas produtivas e discursivas de uma
manifestação da cultura popularde caráter participativo como o carimbó produzido
na região metropolitana de Belém.

The object of study is ultimately mobile and multiply situated,


so any ethnography of such an object will have a comparative

285
dimension that isintegral to it, in the form of juxtapositions of
phenomena that conventionally have appeared to be (or con-
ceptually have been kept) “worlds apart.” Comparison reenters
the very act of ethnographic specification by a research design
of juxtapositions in which the global is collapsed into and made
an integral part of parallel, related local situations rather than
something monolithic or external to them. This move toward
comparison embedded in the multi-sited ethnography stimulates
accounts of cultures composed in a landscape for which there is
as yet no developed theoretical conception or descriptive model.
(MARCUS, 1995, 102).

Além da perspectiva apontada anteriormente, também, foi realizado umlevanta-


mento de referências bibliográficas no âmbito audiovisual, jornalístico, discográfico
e científicos sobre a temática do carimbó no âmbito das suas práticas produtivas
e discursivas referente à produção do carimbó em todo território do Estadodo
Pará, além do foco naquele produzido na região metropolitana de Belém com o
objetivo de encontrar apontamentos teóricos que possam guiar os questionamentos
colocados durante o processo de construção de uma antropologia interpretativa
dentrode uma etnografia multi-situada, segundo Geertz (1978) e Marcus (1995),
que abarque os diferentes ângulos para olhar os objetos/sujeitos que estão em
constante movimento respeitando o processo de construção de uma etnográfica
multi-situada que proponha o rastreamento de um fazer interdisciplinar dentro
da investigação.

A questão identitária do carimbó produzido na região


metropolitana de Belem-Pará

No ano de 2014 o carimbó foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imate-


rial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
e inscrito no Livro de Registro de Formas de Expressão, a partir do processo
de registro da pesquisa referente ao Levantamento Preliminar e Identificação do
Carimbó nasMesorregiões Nordeste Paraense, Metropolitana de Belém e Marajó

286
ocorrida durante os anos de 2008 e 2013 que gerou o Dossiê Iphan Carimbó e
desta pesquisa realizada é importante ressaltar que o movimento de patrimonia-
lização do carimbó foi feito a partir de visitas em 45 municípios entre a capital e
o interior do Estado do Pará, em mais de 150 lugares e 415 entrevistas realizadas
com carimbozeiros.
O contexto de negociação cultural que o carimbó foi submetido por meio
dos instrumentos de salvaguarda como os utilizados pelo Iphan no movimento
de patrimonialização do carimbó mobiliza processos de ressignificação que são
estimulados pelos dispositivos de legitimação, assim como também, a partir de
instrumentos de resistência da cultura popular dentro dos contextos de sociabilidade
e das práticas de produção de uma manifestação cultural.
Nesse momento da pesquisa, faz-se necessário relembrar que nas décadas de
40 e 50 havia uma política nacional de cultura associada ao Movimento Folclórico
Brasileiro e tinha a intenção de fazer uma associação entre cultura popular,
autenticidade e pureza com o objetivo de instrumentalizar as manifestações culturais
para amparar a construção de uma unidade nacional da identidade cultural brasi-
leira, porém no final do séc. XX e início do séc. XXI, segundo Alves (2011) entrou
em circulação um pensamento de desconstrução desta práxis dentro do imaginário
da população brasileira, a partir da valorização do caráter participativo da cultura.

A cultura para o PNC/MinC deve ser pensada na sua dimensão


simbólica, econômica e cidadã. Essas três dimensões aparecem
de maneira combinada, tanto nas justificativas teóricas, quan-
tos nos programas e ações desenvolvidos. [...] A dimensão
simbólica decorre do imperativo que o MinC tem de valori-
zar e, por conseguinte, consolidar a identidade nacional. Por
outro lado, a dimensão simbólica repousa no imperativo de
criar as condições de fruição e experimentação cultural [...]A
dimensão econômica traça interfaces estreitas com a dimensão
simbólica, pode ser sintetizada a partir do entendimento de
que a riqueza simbólica também deve ser acompanhada da
possibilidade de criação de riqueza material para os criadores e
realizadores culturais, através da geração de trabalho, emprego
e [...]A dimensão cidadã trata da necessidade imperativa, se-
gundo os gestores do sistema MinC, notadamente no âmbito
da Secretaria de Cidadania Cultural, de acionar e cristalizar os

287
direitos culturais no Brasil, estabelecidos desde a constituição
de 1988. (ALVES, 2011, p. 07).

O processo de patrimonialização do carimbó colocou o carimbó pau e corda ou


tradicional como aquele que sustenta o discurso político entranhado no conceito
de Patrimônio Imaterial, criando dessa forma uma categoria de carimbó patrimo-
nializado que se opõem as outras formas de saber/fazer carimbó pelo Pará, seja na
capital ou no interior do Estado.
Após o que foi citado anteriormente em convergência com o consumo de pro-
dutos musicais de conjuntos de carimbó da região metropolitana de Belém como
Cobra Venenosa, Caruana, Lauvaite Penoso, Batucada Misteriosa e Estrela do Norte,
além de entrevistas com carimbozeiros, é possível afirmar que dentro da prática
discursiva dos carimbozeiros há um posicionamento de valorização do saber/fazer
do carimbó por meio de atuações que valorizam o caráter participativo da cultura
popular em contraponto ao caráter folclorizante, consolidado no início e meio
do séc. XX, queos carimbozeiros discursivamente estão cada vez mais se afastando.
Seguindo a pesquisa a partir da proposta de Marcus (1995) sobre a perspectiva
de uma etnografia multi-situada usarei como exemplo o grupo de carimbó Cobra
Venenosa que surgiu em 2016 no distrito de Icoaraci e é um dos expoentes do
movimento do carimbó produzido na região metropolitana de Belém para afirmar
através dos conceitos de Geertz (1978) que o objeto observado luta pela valorização
do carimbó pau e corda ou tradicional, entretanto com outros processos de produ-
ção, pois geram sociabilidades e produções que constroem desdobramentos estéticos
e socioculturais por meio da intervenção mútua entre os espaços urbanos e o con-
junto de carimbó Cobra Venenosa, haja vista que ambos sofrem atravessamentos.

Um repertório de conceitos muito gerais, feitos-na-academia e


sistemas de conceitos — “integração”, “racionalização”, “sím-
bolo”, “ideologia”, “ethos”, “revolução”, “identidade”, “metáfo-
ra”, “estrutura”, “ritual”, “visão do mundo”, “ator”, “função”,
“sagrado” e, naturalmente, a própria “cultura” — se entrelaçam
no corpo da etnografia de descrição minuciosa na esperança
de tornar cientificamente eloquentes as simples ocorrências. O
objetivo é tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos,
mas densamente entrelaçados; apoiar amplas afirmativas sobre

288
o papel da cultura na construção da vida coletiva empenhan-
do-as exatamente em especificações complexas. (GEERTZ,
1978, p. 20).

No ano de 2019 o grupo de carimbó Cobra Venenosa lançou seu primeiro


trabalho musical, um disco intitulado “Cobra Venenosa” que reúne oito faixas au-
torais einéditas no cenário fonográfico do carimbó, além, de cinco canções extras,
por meio de gravações realizadas ao vivo no ano de 2017.

O nosso grupo faz referência essa ao carimbó pau e corda,


um grupo jovem que surge formado por jovens das periferias
[...] envolvidos em atividades de rua e dos processos vividos
em Belém que tem haver com uma conjuntura nacional [...]
a gente tinha essa visão que era necessário valorizar o carimbó
pau e corda, não achávamos ele demodê, não achávamos que
pro som ser contemporâneo entre aspas moderno, precisa de
equipamentos eletrônicos [...] diferenciado do carimbó raiz,
porém no instrumental se mantendo tradicional, com curimbó,
banjos, maracas e efeitos orgânicos, sem o uso de bateria, baixo
ou guitarra [...] (ENTREVISTA DA PRISCILA DUQUE,
COMPOSITORA DO COBRA VENENOSA, NO PRO-
GRAMA SEM CENSURA PARÁ NO DIA 27.06.2019).

Sendo assim, a partir de uma análise do conteúdo das músicas, distribuição


do disco, instrumentação, vivência em shows e rodas de carimbó na região me-
tropolitana de Belém que o grupo participou com espetáculos, podemos tecer
comentários sobre o grupo de carimbó Cobra Venenosa, pois observamos que as
composições musicais tratam de temáticas que envolvem a esfera urbana a partir de
questões sociopolíticas que atravessam o mundo contemporâneo, além de usarem
variações de material na construção dos instrumentos musicais como curimbó
e banjo que são construídos por meio de processo de reciclagem de materiais
próprios do ambiente urbano como, por exemplo: o curimbó criado a partir da
reutilização de tubo de PVC ou no banjo feito de capacete de moto ou fundo de
panela de pressão.
Dessa forma, é possível afirmar sobre o grupo de carimbó Cobra Venenosa
que a matriz do carimbó patrimonializado, pau e corda ou tradicional sofreu uma

289
alteração dos seus elementos através das canções e da instrumentação com a inten-
ção dialogar com os elementos contemporâneos inseridos nos espaços urbanos em
que o grupo está inserido ao produzir carimbó associado ao ativismo sociopolítico
influenciado pelo contato com os processos das sociabilidades urbanas da região
metropolitana de Belém, ao mesmo tempo, que defende a manutenção do carimbó
comomanifestação cultural tradicional.
A partir do contexto, apresentado anteriormente, fica perceptível que ao longo
do processo da pesquisa para a patrimonialização do carimbó que uma nova forma
de atuação política dos fazedores de cultura ligada ao novo plano de políticas na-
cionais dos carimbozeiros a partir da Campanha do Carimbó Patrimônio Cultural
Brasileiro que possibilitou intercâmbios proporcionados entre as diversas regiões em
que o carimbó se faz presente como manifestação cultural, portanto uma forma de
militância participativa se fez presente na construção do carimbó patrimonializado,
diferentemente do carimbó folclorizado que foi reproduzido dentro da indústria
cultural nacional e imposto pela sua reprodutibilidade midiática no rádio e na TV,
além dos produtos culturais musicais como discos e CD’s.

Considerações finais sobre a questão identitária do carimbó


urbano a partirde uma análise entográfica multi-situada

A autonomia sociopolítica do carimbó levanta questões relacionadas às ne-


gociações socioculturais que uma manifestação cultural atravessa e é atravessada
no processo de patrimonialização que ocorreu no início do séc. XXI a partir dos
instrumentos de salvaguarda que estimularam o caráter participativo da cultura
popular, construindo um ambiente favorável para novos modos de fazer o
carimbó tanto no âmbito do significante quanto no do significado dentro do
que envolve as práticas de produção e discursiva do carimbó produzido na região
metropolitana de Belém.
A escolha pela construção de uma etnografia multi-situada a partir de Marcus
(1995) em convergência com a antropologia interpretativa de Geertz (1978) per-
mitiu uma imersão pontual sobre o que há de registro sobre o carimbó, tanto em
outras pesquisas científicas como em produtos audiovisuais ou musicais, além de
peças jornalísticas em confluência com momentos distintos na pesquisa de campo,

290
seja por meio da realização de entrevistas ou em vivências a partir de produção
executiva e cultural de conjunto de carimbó ou por participação em rodas ou
eventos do cenário do carimbó da região metropolitana de Belém. Possibilitando,
dessa forma, uma análise comparativa sobre o contexto das práticas produtivas
do carimbó no final do séc. XX, assim como, também, sobre o posicionamento
discursivo de afastamento do caráter folclorizente, após o processo de patrimonia-
lização no início do séc. XXI.

Multi-sited research is designed around chains, paths, threads,


conjunctions, or juxtapositions of locations in which the ethno-
grapher establishes some form of literal, physical presence, with
an explicit, posited logic of association or connection among sites
that in fact defines the argument of the ethnography. (MARCUS,
1995, p. 102).

As práticas de produção do carimbó urbano ou produzido na região metro-


politana de Belém ressignificou elementos do carimbó patrimonializado ou pau
e corda ou tradicional como observado no caso do uso de instrumentos de forma
diferenciada tanto na instrumentação quanto na confecção, antes tronco de árvore
e agora tubos de PVC. Assim como, também, a diferença na composição das letras,
a partir de pautas sociais e culturais ao fazerem uso de temáticas cosmopolitas e
contemporâneas e não mais tão-somente regionais que residem nos grandes centros
urbanos do Brasil e do Mundo, resultado numa atuação de ativismo político por
meio damanifestação cultural.
O empreendimento de uma reflexão sistemática sobre os contextos em que a
etnografia multi-situada é realizada coloca em ênfase pessoas e seus símbolos que
ultrapassam lugares e fronteiras de práticas de produção, discursivas e, consequen-
temente, de sociabilidades que estabelecem conexões em várias escalas etnográficas
dentro do emaranhado de redes superpostas de relações que compõem o fazer
da manifestação cultural do carimbó em espaços urbanos da região metropolitana
de Belém.

291
Referências

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293
PODER
E
COMUNICAÇÃO
EXPRESSÃO PSICOSSOCIAL DO PODER NACIONAL:
MIDIATIZAÇÃO E A IDENTIDADE DO NEGRO
DA AMAZÔNIA-AMAPAENSE NO CONTEXTO
DA DEMOCRACIA BRASILEIRA PARA O SEU
DESENVOLVIMENTO
Cássius Guimarães Chai117
Lúcio Dias das Neves118
Otacílio do Amaral Filho119

Amazônia negra amapaense

O estado do Amapá fica situado no extremo norte do Brasil (praticamente uma


ilha como defende diversos geógrafos), que está isolado do restante do país pelo
Rio Amazonas (sul e parte do sudeste); do estado do Pará e do Suriname pelo Rio
Jari (por todo sudoeste), e das Guianas Francesas pelo Rio Oiapoque (noroeste) e
banhada pelo Oceano Atlântico (ao norte e nordeste).
Tucuju120, ou simplesmente cidade de Macapá121, ela é a única capital do Brasil
a ser banhada pelo Rio Amazonas e possui uma população de aproximadamente
503.327 habitantes, de acordo como censo 2017. Situada ao sudeste do estado, é
também a única capital estadual brasileira que não possui interligação por rodovia
a outras capitais, sendo a via fluvial e via aérea os principais meios de entrada e
117 Professor Adjunto III da Universidade Federal do Maranhão, Curso de Graduação em Direito e
titular do programa de pós-graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça. Membro-professor da
International Association of Constitutional Law. São Luís, MA, Brasil.
118 Doutorando em Comunicação, Cultura e Amazônia – PPGCOM/UFPA; Mestre em Propriedade
Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação – PROFNIT/UNIFAP; Relações Públicas e líder do
grupo de pesquisa em Gestão, Comunicação e Inovação Tecnológica, com ênfase em comunidades tradicionais
da Amazônia – GesComIT/Amazônia. Macapá, AP, Brasil. E-mail: luciodias10@gmail.com
119 Professor Dr. do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Faculdade de
Comunicação (PPGCOM/Facom/UFPA). Líder do Laboratório de Pesquisa Midiática na Amazônia e diretor
do Instituto de Letras e Comunicação da UFPA. E-maol: otacilio@ufpa.br
120 Etnia indígena que habitava a margem esquerda da foz do Rio Amazonas, onde atualmente localiza-
-se a cidade Macapá, capital do estado do Amapá.
121 A toponímia é de origem Tupi, como uma variação de “macapaba”, que quer dizer lugar de muitas
bacabas, uma palmeira nativa da região

295
saída. Outra característica peculiar, ela é a única capital do país situada abaixo da
linha do Equador.
Subdivide-se em zonas Central, Norte, Leste, Oeste e Sul, além das zonas
urbanas que se limitam com a região Metropolitana, que é composta pelos mu-
nicípios de Santana (segunda cidade mais populosa e onde localiza-se a região
portuária do estado) e Mazagão (novo e velho), juntas elas possuem uma área de
6.407 km2, juntas forma a terceira maior aglomeração urbana da região norte,
com quase 560 mil habitantes.
Sua população é fruto de um processo intenso de miscigenação entre as popu-
lações indígenas, africanas e europeias. Segundo dados do censo de 2010, 249.720
eram pardos (62,7%), 105.093 eram brancos (26,4%), 38.325 (9,6%) eram pre-
tos e 4.343 (1,1%) eram amarelos. Tais dados contrariam as imagens midiáticas
publicadas que insistem em afirmar que a região norte brasileira é habitada apenas
por indígenas (risos).
Dentre as principais atrações turísticas da cidade de Macapá está o Forte de
São José, a orla fluvial de Santa Inês, o recém-inaugurado Bioparque Zoobotânico,
o balneário do Quilombo do Curiaú (região alagada pelo rio amazonas durante
nove meses do ano), a Fazendinha, as diversas praças espalhadas pela capital, a
igreja São José de Macapá, o Teatro das Bacabeiras, o Museu Sacaca, dentre outros.
Na economia, destaca-se o comércio, além do extrativismo, agricultura e in-
dústria. Porém, é importante destacar que a capital tem um enorme potencial para
desenvolver uma plataforma de turismo e de exploração de tecnologias tradicionais
a exemplo das louças produzidas no quilombo do Maruanum, os manejos de mel
nas comunidades tradicionais, o artesanato, as biojóias produzidas a partir das
escamas, espinhas e couros dos peixes nativos da região, o grude da gurijuba que
é super valorizado no mercado europeu, a importação da castanha do Brasil e do
açaí, dentro outros potenciais que são passiveis do pedido de proteção de junto ao
INPI, aparados pela Lei Federal de Inovação: n. 13.243/2016, e no âmbito local
pela Lei Estadual de Inovação Tecnológica. n. 2333/2018.
Dentre as manifestações culturais da capital destaca-se o Marabaixo122, a mais
autêntica manifestação da cultura popular afrobrasileira e a festa de São Tiago que
é realizada em Mazagão Velho, que todos os anos encenam a Guerra dos Mouros (a
exemplo da Paixão de Cristo em Nova Jerusalém – PE), além das tradicionais festas
ligas aos santos da igreja católica, com destaque ao Círio de Nazaré e o carnaval
do Amapá, que é realizado no sambódromo, com desfiles das escolas de samba,
122 Manifestação da popular afrobrasileira existente apenas no estado do Amapá.

296
similares ao carnaval do Rio de Janeiro e São Paulo, e as bandas que embalam a
folia na Av. FAB e na cidade de Santana.
As principais fontes de receita do estado do Amapá está diretamente ligada a agri-
cultura, pecuária, mineração, indústria e serviços; na área de serviços continua sendo
beneficiada pelos concursos públicos e comércio que impulsiona a economia local.
Como vivemos num país colonialista, e por mais que a existência do racismo
em suas diversas faces e nuances seja negado, invisibilizando, ou retratado a partir
do ângulo conveniente, principalmente daqueles que não sofrem ou sofreram os
estigmas deste racismo na pele, torna-se de vital importância essa discussão, a
exemplo das pesquisas realizada sobre Racismo Algorítmico em Plataformas Digitais:
microagressões e discriminação em código (SILVA, 2020). Visto que ao se falar sobre
comunidades tradicionais da Amazônia, povos da floresta, quilombismo (NASCI-
MENTO, 1980), há a necessidade de identificar como os processos comunicacionais
a mídia amapaense (numa escala local inicialmente) se relaciona com essa temática
e/ou como reforça positivamente ou negativamente na sociedade afroamapaense.
Este artigo tem como proposta refletir o diálogo a cerca da identidade na-
cional com a expressão psicossocial do Poder Nacional, e como ela se fragiliza ao
desconhecer direitos ao negro da Amazônia-Amapaense, marcando e reprodu-
zindo desigualdades sociais e como consequência, qual o papel da mídia local na
(des)construção, fortalecimento ou legitimação deste impacto para a população
afroamapaense, à luz da democracia brasileira para o seu desenvolvimento. Apro-
ximadamente 65% da população se autodeclarou como pretos/pardos no último
Censo de 2010. Porém, é nítido como este percentual não se reflete no quantitativo
de negros na autogestão pública, na política, na ciência, na tecnologia, na gestão
de grandes empresas, nos bancos das universidades públicas, dentre os médicos,
advogados e juízes do estado do Amapá. É reflexo do racismo estrutural ou da
decolonialidade na contemporaneidade?

A política nacional das comunidades quilombolas

Antes de adentrar na Amazônia Negra Amapaense torna-se fundamental com-


preender as leis que dão base jurídica e legal no que se refere a titulação das comu-
nidades/territórios remanescentes quilombolas e o entendimento sobre preservação
de suas culturas no território brasileiro.

297
A Constituição Federal de 1988 em seus artigos 215 diz que “O Estado garantirá
a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” e no 216
que se “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e ima-
terial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,” ambas
preveem o direito de preservação, valorização e difusão de sua própria cultura. Por
conseguinte, a Convenção nº169 da Organização Internacional de Saúde – OIT,
que foi ratificada através do Decreto nº 5051/2004, e revogada pelo Decreto nº
1º.088/2019, estabelece o direito de auto definição das comunidades tradicionais.
Por sua vez, a Lei 12.288/2012 – Estatuto da Igualdade Racial, (re) afirma os
direitos dos brasileiros quilombolas e tem em vista o combate a discriminação e as
diversas formas de intolerância contra os negros; sendo que a Instrução normativa nº
57 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Decreto
4.887/2003 são os instrumentos jurídicos que têm por objetivo a regulamentação
dos procedimentos das comunidades remanescentes. Iparrá (2014) acrescenta que:

O decreto trata da regularização, delimitação, demarcação e


titulação dos territórios quilombolas do que tange o artigo 68,
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
A partir deste decreto ficou da alçada do INCRA a função
de delimitar, demarcar e titular as terras das comunidades
quilombolas no Brasil (IPARRÁ, p. 02-03, 2014).

São instrumentos do Estado após longo anos de luta permanente por


parte do afrobrasileiros, as leis, normas, decretos, estatutos como ferramentas
para o reconhecimento e importância histórica, cultural e social das comunidades
remanescentes quilombolas e do povo negro do Brasil. Sabe-se que na prática tal
instrumento visa reparar as injustiças que foram cometidas e ainda insistem em
serem cometidas há séculos, principalmente sob o alicerce do racismo estrutural
na sociedade. Pois há tempos os afrobrasileiros que tanto contribuíram para a cria-
ção e desenvolvimento do país foram marginalizados, assassinados, humilhados,
desprovidos de direitos a justiça, a educação, a dignidade da vida, além do acesso
a terra (para a existência e o modo de vida) – que movimenta até os dias atuais
diversas brigas judiciais.

298
Identidade do sujeito constitucional - cultura,
igualdade e diferença com as expressões do poder nacional

Segundo a Escola Superior de Guerra, o conceito de Expressão Psicossocial tem


como premissa principal a realidade da pessoa humana e com a sua participação
na vida em sociedade:

[...] abrange pessoas, ideais, instituições, normas, estruturas,


grupos, comunidades, recursos e organizações, integrados num
vasto complexo, orientado para o alcance dos objetivos sociais
valiosos, situados no seu campo de atuação e além, que pos-
sam satisfazer às necessidades, aos interesses e as aspirações da
sociedade (BRASIL, p. 93, 2019).

A definição do “sujeito constitucional” é bastante complexa, ambivalente e


comporta diversos entendimentos, visto que, até mesmo os maiores juristas do
Brasil, apoiados por sociólogos, a partir da problematização dos professores Ro-
senfeld e Mackinder, consideram-na pauta de uma extensa e profunda discussão.
Neste sentido, tentando responde-la utilizarei alguns recortes para poder dar
conta do objeto a partir da fala do professor Rosenfeld, que apesar de não conhe-
cer a fundo a Constituição Federal do Brasil (p.29), nos traz como exemplos as
constituições da França e da Alemanha na sua sustentação discursiva, ao mesmo
tempo que as comparam com a Constituição Estadunidense, evidenciando-a como
uma da mais efetiva, ou seja, a que está em constante transformação por incluir os
desejos e anseios da população (por conseguir algum laço emocional entre o que
o sentimento possa ter do governo), com destaque a importância da consciência
coletiva do país, a uma certa ligação com a constituição.
Com base neste pensamento, o sujeito constitucional à luz da constituição
brasileira, ou o não-sujeito constitucional, está intrínseco as questões culturais de
como este possível sujeito, ou na verdade, de como estes sujeitos foram submeti-
dos/inseridos ao longo do seu processo de formação e visão do mundo a cerca da
constituição, do seu papel perante a lei e de como esta pode garantir os direitos
mínimos de cidadão, visto que, mesmo a Constituição Federal Brasileira de 1988
está disponível, acessível em diversos canais, ela não nos dá a garantia de comple-
tude, ou o sentimento popular, a exemplo dos EUA.

299
Entretanto, para uma grande parcela – da “sociedade marginalizada” –, ela
por si só, é bastante complexa e culturalmente não exprime igualdade, mas uma
realidade diferente com as expressões e o entendimento do Poder Nacional, em
paralelo a compreensão que os técnicos da área possuem ou parte da população
burguesa que há anos vêm se mantendo e fixando-se no poder, na politica, no
Estado. Tais sustentações estabelecem uma enorme lacuna para o entendimento
e a importância, assim, como, a formação coletiva/cultural desta identidade do
sujeito constitucional.
Chai entende que a palavra sujeito de certa forma é equivocada, pois ela
compreende, contem, expressa, exprime uma diversidade de significado dentro
do discurso que a identidade do sujeito é bastante complexa. Já a identidade do
sujeito constitucional é bastante complexa, pois pode ter diversos entendimentos:
1. Pode-se estar sujeito ao direito; 2. Podemos ser o sujeito de direito; 3. Ou po-
dem ser os direitos compartilhados dentro daquilo que chamamos de Estado de
Direito (não é qualquer estado de sujeito). Estado de Direito que tem o predicado
discursivo de dar qualidade ao sujeito, ou seja, trata-se da identidade do sujeito,
do SUJEITO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICO.
Baseando-se no entendimento de Habermas, apoiado pelo compromisso,
o sujeito constitucional democrático é aquele que no uso do exercício do discurso
na esfera pública, não basta que tenhamos o predicado de uma democracia para
a qualificar, para identificar o sujeito que somos nós, constituídos formalmente,
através ou por meio, com fundamento a norma constitucional. Mas sobretudo, que
esse exercício de construção, reconstrução e desconstrução que são permanentes e
inerentes a um esquadro de democracia, essas ações devem acontecer premidas e
movidas por um agir ÉTICO123. (HABERMAS, 2003)
Por fim, utilizo outra fala do professor Cássius Chai que diz “o sujeito consti-
tucional democrático somos todos nós que abraçamos o compromisso da não-ab-
solutização do poder, que abraçamos o compromisso com a necessária e inalienável
e instrumentalidade do controle reciproco ao exercício de suas funções públicas.
E por fim, seguindo a ideia de Chai à luz de Rosenfeld e Mackinder, apoiados
com o pensamento de Habermas, que chego ao entendimento do sujeito Lúcio
Dias em relação ao “Sujeito Constitucional Democrático”, enquanto pesquisador
das comunidade tradicionais da Amazônia Negra Amapaense, através do Programa

123 (transcrição da fala de Prof. Cassius Chai, vídeo: O que é identidade do Sujeito Constitucional?
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=eetaMHUgwH0&t=8s>. Acesso em 08 nov. 2022.

300
de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia PPGCOM/UFPA, com
o apoio fundamental e importância da disciplina Geopolítica, Institucionalidades e
Desenvolvimento, do Programa de Pós-Graduação em Instituições do Sistema de Jus-
tiça – PPGDIR/UFMA, sob responsabilidade do Prof. Dr. Cássius Guimaraes Chai.
Tais exposições acima demonstram as análises iniciais, na verdade as análises de
quem está no início da apropriação das leituras sugeridas na disciplina, onde possuo
mais “interrogações/indagações” ao tentar responder a esta pergunta proposta por
ti. Em suma, estou em processo de total desconstrução para poder construir ou
reconstruir algo a partir deste novo olhar.

Mídia, construção da identidades e conflitos sociais

Sem a existência da interação nos mais diversos canais midiáticos eu considero


que não temos como avaliar de forma prática os processos comunicacionais. Neste
sentido, interação e processos comunicacionais estão intrínsecos em nossa sociedade
e é a partir desta dinâmica que temos acesso as informações/comunicações nas
diversas mídias existentes. Ou seja, é através da interação com os processos comu-
nicacionais que os sujeitos acessam os assunto de interesse público, expressam suas
opiniões e trocam argumentos em torno de posições tomadas, agendas e debates
que se estendem além do tempo e do espaço (MAIA, 2018, p.60).
Entende-se que a mídia é todo meio de comunicar, informar, interagir, tornar
público, ressignificar, polemizar, dentre outros, por onde uma certa (ou certas)
mensagem é transmitida, e que podem influenciar comportamentos e percepções.
Pela leitura inicial em Maia (2018), pode-se observar que efetivamente o destaque
à página 70 vai muito mais além do que uma resposta simplicista. Principalmente
num país como o Brasil que é pluricultural, mas ainda assim, o seu reflexo na mídia
é distorcido para um viso elitista, de um minoria, que se comporta como se fosse
uma maioria, ao visibilizar os grupos minoritários, quem em suma, é a maioria
que está ausente, ou pessimamente representada.
Em outra vertente, quando tentam dar visibilidade a essa minoria, princi-
palmente as que estão concentradas nas regiões do nordeste e norte do Brasil, os
absurdos são ainda mais alarmantes. O destaque da afirmação de Maia contribui

301
para o objeto de pesquisa na Amazônia Negra Amapaense dentro do PPGCOM/
UFPA, no qual tem-se uma visão empírica sobre as lutas e autoafirmação desta
população pelos seus direitos, mas que somente serão legitimadas (ou não) a partir
do momento que a pesquisa for a campo para poder “dar vez e voz a quem é de
direito: as populações dos quilombos e dos bairros pretos do Amapá, pois através
desta pesquisa com estes sujeito, podemos efetivamente contrastar os dados desta
população afroamapaense com o que é dito sobre eles nas mídias locais, nacionais
e de como são vistos pela mídia internacional.
Maia (2018) argumenta sobre possíveis caminhos para a análise produtiva das
representações nos média quando nos aponta que, no cotidiano os profissionais
de comunicação precisam selecionar alguns aspectos da realidade percebida, a
qual se encontra em um fluxo constante, uma vez que é impossível contar uma
história sem o seu devido enquadramento, no entanto, eles têm uma considerável
autonomia para enquadrar histórias e interpretar o que está acontecendo e que
ao mesmo tempo que os conflitos sociais sofrem alterações, novas contradições e
novas formas de dominação podem ser criadas.
Meu argumento é que nem a passagem de imagens ‘negativas’ para ‘positivas’
no ambiente de mídia interconectada, nem o avanço de imagens excessivamente
simplificadas para outras mais plurais, necessariamente eliminam a degradação e
subjugação [...] basta ressaltar a complexa ligação entre os discursos e as represen-
tações dos media e os significados culturais que subjazem aos conflitos sociais e
políticos”. (Id. 2018, p. 73-74)
A abordagem da teoria do reconhecimento considera a ordem social como
permanentemente orientada pelo conflito e sustenta a ideia de que experiências
marcantes de desrespeito e de reconhecimento distorcido garantem a motivação
para que os grupos desfavorecidos lutem por reconhecimento.

Considerações finais

O Amapá é um estado rico em biodiversidade, pedras preciosas, serviços, tec-


nologia tradicional, artesanato, material humano, dentre outros. Contudo, para
o seu desenvolvimento torna-se fundamental o funcionamento da Hélice Tripla
– Estado, Universidade, Sistema “S”, para o desenvolvimento socioeconômico dos

302
pequenos e médios agricultores, principalmente para o pequeno e médio produtor
das florestas e comunidades tradicionais da Amazônia- Amapaense, o verdadeiro
Ubuntu124. Um vez que é papel da universidade através da pesquisa e extensão
proporcionar meios para o desenvolvimento local e circunvizinho da região em
que esteja inserida; um compromisso social das empresas mistas e/ou privadas
(Marketing 3.0); e do estado tanto na esfera federal, quanto estadual e municipal,
por força de lei, decretos, minutas, metas, dentre outros.
Dentro das comunidades quilombolas e dos bairros pretos da Amazônia-Ama-
paense são produzidas diversas atividades em harmonia com a biodiversidade local,
a exemplo: O Mel produzido na Pedreira, os biscoitos de Mazagão Velho, o abacaxi
de Porto Grande, o grude da Gurijuba na rampa da orla do Oiapoque, as louças
produzidas no Maruanum e em Mazagão velho, as biojóias a partir das escamas
e couro de peixe no distrito do Coração, a agricultura, pecuária, cultivo do açaí,
da castanha do Brasil na reserva do Cajari, dentre outros...que podem contribuir
diretamente para o desenvolvimento regional. Além do fortalecimento dos laços
ancestrais herdados da cultura africana fortemente afirmados através das rodas de
marabaixo125 - reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil (IPHAN, 2018),
do batuque e dos versos do ladrões de marabaixo, no cotidiano dos afroamapaenses.
Ao afirmar que pode-se contribuir com o desenvolvimento local, é justamente
sobre a premissa que toda essa produção é sub-explorada, possui atravessadores,
intermediadores e que efetivamente quem produz, não tem o retorno real do que é
comercializado. É justamente neste sentido que os direitos do negro na Expressão
Psicossocial do Poder Nacional, contraditoriamente, são negados. Visto que, são
explorados por grandes fabricantes que usam a marca amazônia como diferencial
de mercado e pagam valores surreais para compra da matéria-prima aos povo da
floresta e das comunidades tradicionais da Amazônia-Amapaense, porém, não
contribui diretamente para a manutenção da biodiversidade local, e muito me-
nos para o desenvolvimento econômico, social, educacional, cultural da região.
Nos estudos realizados por Neves (2020) sobre Tecnologia Tradicional a partir da
produção artesanal das cerâmicas na comunidade quilombola do Maruanum, a
pesquisa apontou diversas possibilidades para o desenvolvimento local:

[...] uma plataforma de inovação para as mais diversas áreas do


conhecimento: polo turístico; ecoturismo; desenvolvimento
124 Dialeto africano que significa “eu sou porque nós somos”.
125 A mais autentica expressão da cultura afroamapaense. Existente apenas no estado do Amapá.

303
sustentável; tecnologia tradicionais da amazônia; geografia
espacial, social, dos povos da amazônia; processos comuni-
cacionais; empreendedorismo; cultura a partir das rodas de
marabaixo e da fabricação das louças do Maruanum, dentre
outros (NEVES, p. 54, 2020)

É justamente neste sentido que torna urgente a participação do Estado (nas


esferas federal, estadual e municipal), das universidades, do Sistema S – da hélice
tripla, para efetivamente prestar serviço de consultoria, assessoria, trabalhar a for-
mação e qualificação dos povos da floresta e das comunidades tradicionais, para
que estes possam atuar no diretamente no mercado local e expandir para o mercado
global, sem atravessadores, para que estes trabalhadores possam obter lucro real e
possam investir cada vez mais em melhorias e novas tecnologias.

Referências

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Acesso em 08 nov. 2022.

304
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nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24
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e Ativismos Digitais: olhares afrodiaspóricos. São Paulo: LiteraRUA, 2020, p.
120-137.

306
UMA MULHER INDÍGENA:
NOTAS SOBRE A PARTICIPAÇÃO
DE SÔNIA GUAJAJARA NAS ELEIÇÕES
PRESIDENCIAIS DE 2018126
Una mujer indigena: notas sobre la participación de Sônia Guajajara en las elec-
ciones presidenciales de 2018.
An indigenous woman: notes on Sônia Guajajara’s participation in the presidential
elections of 2018.

Ananda Louzeiro de Souza127


Ana Shirley Penaforte Cardoso 128
Otacílio do Amaral Filho129

Introdução

Para todas, la negación de la historia de sus pueblos reper-


cute negativa- mente en sus vidasde mujeres cuando se en-
cuentran en el escenario de la socie- dad nacional, donde la
discriminación racista es constante, a la vez que las obliga a
rescatar, mantener y reproducir la memoria colectiva en el àm-
bito comunitario, donde los patrones culturales y los procesos
organizativos proprios se nutren de la memoria de un passado
reciente y lejano, que orienta sus acciones en el presen- te (
CELENTANI, 2014, p. 200).

Esta pesquisa tem como objetivo analisar a participação da indígena Sônia


Guajajara na condição de candidata à vice-presidente da República brasileira nas
126 GEPEM- Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes Sobre Mulher e Gênero. (UFPA) - Uni-
versidade.
127 Graduação em Jornalismo (PPGCOM/UFPA). E-mail: anandalouzeiros@gmail.com
128 Doutorando em Antropologia (UFPA). E-mail: anaspenaforte@gmail.com
129 Professor Dr. de Comunicação-FACOM/UFPA e do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cul-
tura e Amazônia. E-mail: otacilioamaralfilho@gmail.com

307
eleições de 2018. Usando a metodologia da comunicação, faremos uma análise
por meio dos comentários extraídos do Twitter, no período de março a outubro
de 2018, tendo como referência a midiatização da política nos ambientes digitais,
observando a participação feminina nos processos eleitorais e políticos. À luz
da teoria sobre intersecção de gênero de Crenshaw (2002) e da discussão sobre
feminismo comunitário e decolonial de Celentani (2014), a proposta visa revelar
que as discriminações sofridas por Sônia nas eleições são específicas das mulheres
indígenas, no sentido de serem vistas a partir de um olhar colonizado e atravessado
por ideais evolucionistas ultrapassados.
Sônia Guajajara é uma mulher indígena e milita pelas causas indígenas e ambien-
tais. Pertence ao povo Guajajara/Tenetehara, localizado na Terra Indígena Arariboia,
no estado do Maranhão (Figura 01). Sônia Guajajara nasceu em 6 de março de 1974.
Seu registro civil é Sônia Bone de Souza Silva Santos, mãe de Mahkai, Yaponã e
Ywara. Atuou nos encontros estaduais indígenas do Maranhão, no movimento
de ocupação da FUNASA, na interdição da Ferrovia Carajás-Vale, em 2005, no
Conselho de Direitos Humanos da ONU e nas Conferências Mundiais do Clima
(COP) de 2009 a 2017, e contra a PEC 215.
Com o apoio da Fundação Nacional do Índio, Funai, Sônia Guajajara, ainda
criança, mudou-se para Minas Gerais para cursar o Ensino Médio e regressou para
o Maranhão após a finali- zação da primeira etapa de seus estudos. Posteriormente,
ela graduou-se em letras e enfermagem e pós-graduou-se em educação especial.
Sua militância indígena e ambiental começou quando ela ainda era uma menina
e já integrava os movimentos de base, que envolviam interesses coletivos de ordem
cultural social e econômico de povos indígenas. O movimento cresceu a partir da
criação de associações e federações com atuação regional e nacional. Sônia Guajajara
iniciou sua trajetória política em instituições como a Coordenação das Organizações
e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão, COAPIMA, fundada em 2003.
Entre 2009 a 2013, trabalhou na Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia, COIAB. Posteriormente, passou a integrar a entidade de Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil, APIB.

308
FIGURA 01: Mapa da Terra Indígena Arariboia/MA, localizada, aproximadamente, a 530 km da Capital
São Luís, pela Rodovia MA 006.

Fonte: Google Maps.

No Congresso Nacional, foi linha de frente contra uma série de projetos - como
a PEC da Demarcação, PEC 215130, Proposta de Emenda Constitucional que
inviabilizava a demarcação de terras indígenas - que ameaçavam os direitos indí-
genas e o meio ambiente. Desde o início dos anos 2000, Sônia Guajajara defende
o território indígena como um lugar de existência, para o qual a vida dos rios, das
plantas e das pessoas se concentra e se conecta para além de se pensar uma terra
produtiva com fins capitalistas. Ela conquistou a confiança de lideranças indígenas
que a apoiaram significativamente, especialmente, por ser ela considerada entre os
indígenas como uma “parente”131.
Participou de vários eventos políticos para discutir a situação dos povos in-
dígenas brasileiros. Em agosto de 2017, por exemplo, esteve reunida na Terra
Indígena Alto rio Guamá, TIARG, com li- deranças de povos como Nara Baré,
uma das maiores ativistas femininas do movimento indígena brasileiro, durante
130 Com base em dados do site da FUNAI (2005), a PEC 215/00 propõe a transferência de responsabi-
lidades sobre a demarcação de Terras Indígenas (TI) do Poder Executivo para o Legislativo, e desrespeita a Cons-
tituição de 1988. A transferência dos poderes de decisão sobre as TIs pode deixar a permanência de sociedades
em suas terras em situação de vulnerabilidade, especialmente porque estará sujeita às maiorias políticas de ocasião.
Sabemos que, hoje, esta maioria representa interesses pessoais e financeiros e atua para que não seja demarcada
nenhuma TI, reiterado por parlamen- tares que compõe a Comissão Especial da PEC 215/00.
131 Termo de tratamento usado frequentemente por indígenas.

309
a XI Assembleia da COIAB, a fim de debaterem sobre o meio ambiente e sobre a
vulnerabilidade das políticas indigenistas que se desenhavam no cenário nacional.
Momento que usou para solidificar alianças e expor suas estratégias políticas em
benefício dos povos indígenas no país. Ganhou projeção internacional pela luta
travada em nome dos direitos dos povos originários. Em 2018, ela aceitou o convite
do Partido Socialismo e Liberdade, PSoL, para compor a chapa do partido e se
tornar candidata à vice-presidência do Brasil.
A participação de Sônia Guajajara nas eleições brasileiras de 2018 foi atravessada
por múlti- plos fatores de discriminação que vão além das desigualdades de gênero,
que a diferenciava apenas pelo fato de ser uma mulher indígena. Estas desigualdades
podem ser fundamentadas em relações de poder e nas imposições do patriarcado132.
Fatores relacionados à construção da imagem simbólica dos povos originários do
Brasil colocam as mulheres indígenas, que desconsidera as singularidades dos povos
e das mulheres indígenas em si. Esta forma de homogeneização pode ser um dos
fatores que contribuem para uma dupla ou tripla posição de subalternidade, a
saber: raça, gênero e classe. Esta discriminação se constitui como lógica da colo-
nização em forma de violência sistêmica, con- dicionando a resistência dos povos
subalternizados ao longo do tempo.
Neste artigo, analisamos como as intersecções entre gênero e discriminação de
raça e classe fizeram parte do período de campanha eleitoral de Sônia Guajajara.
Para isso, utilizamos como campo de pesquisa a rede social da internet Twitter.
Partindo de uma metodologia quanti-qualitati- va, para análise de comunicação,
extraímos de uma postagem na rede social Twitter133 50 comentários a respeito
da candidatura de Sônia Guajajara à Vice-presidência da República. O primeiro
“tuite” “#MeuRacistaSecreto” foi “tuitado” pela própria Sônia Guajajara no dia 1
de outubro de 2018. Esta postagem, assim como as seguintes, nos deu base para o
início da construção do nosso cor pus de análise e para continuarmos a pesquisa.
Assim, reunimos vinte e sete (27) comentários. No segundo “tuite”, desta vez,
tuitado pelo Portal de Notícias G1 no dia três de março de 2018, foram colhidos
23 comentários.

132 O patriarcado designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou, ainda mais sim-
plesmente, o poder é dos homens. DELPHY, Christine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, H. et al (org.).
Dicionário Crítico do Feminis- mo. Editora UNESP: São Paulo, 2009, p. 173–178.

133 Microblog utilizado para rápidas informações em apenas 140 caracteres.

310
Considerou-se, nesta análise, a comunicação como lugar não apenas de percep-
ção dos processos de sociação, como parte fundamental dos contatos e interações
sociais de reciprocidade en- tre os indivíduos, como organização e participação na
política comunitária, formação de lideranças políticas, ativismo nas redes sociais,
mas, antes de tudo, como um ambiente paradoxal que envolve relações de diálogo
e conflito no encaminhamento das questões sociais e políticas, o que nos leva a pos-
sibilidades outras de interpretação, considerando o ambiente midiático de grande
publicização em que a midiatização da política atinge um alto grau de importância,
tanto no sentido da formulação do discurso como na sua prática, influenciando as
estratégias de informação e as perspectivas de decisão, uma vez que a visibilidade
determina, em larga escala, os resultados nos processos elei- torais, considerando
tanto a imagem política formada quanto os atores políticos, especialmente, o eleitor
na forma de engajamento e lógica de decisão.
Fazer, portanto, a análise de comunicação, neste caso, usando o Twitter da Sônia
Guajajara no período eleitoral, nos permitiu entender a visibilidade política no
fluxo de suas mensagens a partir da relação entre candidatos e apoiadores, como um
processo de compartilhamento e participação, próprio das redes sociais, lugar em
que se processa parte das relações dialógicas e conflitantes nas formas de sociação
na contemporaneidade. Nesse sentido, é preciso considerar a comunicação como
uma prática e a experiência de viver esta prática, por um lado, e a interação com
o outro, questão fundamental da reflexividade (FRANÇA 2016, p. 159-161),
ampliadas pelas tensões e re- sistências próprias da política.

Participação política feminina: breve histórico

Os estereótipos de gênero constituintes das sociedades ocidentalizadas, especial-


mente na América Latina, impõem, desde o início das colonizações do continente
americano, qual o lugar social de mulheres e homens. Nesse sentido, enquanto ao
homem compete a qualidade de ocupar os espaços públicos (cargos executivos, exer-
cício do direito à tomada de decisões, lideranças, etc.), às mulheres caberia o dever
de preencher o espaço privado (familiar). É preciso evidenciar que neste contexto
se inserem as formas de resistência, que se mobilizaram na quebra de estereótipos,
especialmente aquelas que dizem respeito aos direitos civis, o feminismo, o direito

311
das minorias e dos movimentos sociais contemporâneos nas lutas pela emancipação.
Para Adriana Medina Espino (2010):

La oposición entre las cualidades consideradas “propias” de los


hombres y de las mujeres conformaría la separación simbólica
del espacio público como un ámbito muy valorado (el espacio
de la cultura), exclusivamente masculino, ocupado en su tota-
lidad por los hombres; mientras que el espacio privado se- ría
el ámbito inherente a lo femenino, el lugar “natural” de las
mujeres, que se distinguiría por su subordinación real y sim-
bólica frente a lo público-masculino. (ESPINO, 2010, p.16).

Essa desigualdade histórica de gênero vem tendo suas bases questionadas ao


longo, sobre- tudo, dos dois últimos séculos, por meio da luta de mulheres que
reivindicam para si o direito à participação em tomadas de decisão no âmbito do
espaço público. No final do século XIX e início do XX, a exemplo, o movimento
social de nível internacional, o “sufragismo”134, “que constituyó la repuesta de las
mujeres al monopolio masculino del espacio público” (ESPINO, 2010, p. 17),
ocorrido inicialmente no Reino Unido, levantou muitos debates que envolveram
questões de raça, gênero e classe, proporcionando, ainda, ampla discussão em
torno da igualdade política entre homens e mulheres, a partir da luta pelo direito
ao voto feminino – só efetivamente conquistado no final do século XIX, na Nova
Zelândia, e, posteriormente, em outras localidades mundiais.
De lá para cá, a luta travada pelas mulheres contra o monopólio masculino
no direito à participação política aumentou gradativamente, como, por exemplo,
o direito à licença maternidade, a criminalização do assédio sexual nas relações de
trabalho, a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, no Brasil. Na década de
1998, no Brasil, foi sancionada a lei135 de cotas feminina, a partir da qual os
partidos deveriam ter pelo menos 30% das candidaturas destinadas às mulheres.

134 Movimento social, político e econômico de reforma, em que as mulheres rei-


vindicavam o direito de decidir em assembleias políticas (o direito ao voto).
135 Lei 9504/1997. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/codigo-eleitoral/lei-das-eleicoes/
lei-das-eleicoes-lei-nb0-9.504-de-30-de-setembro-de-1997. Acesso em: 08 nov. 2022.

312
Há, entretanto, de se salientar que a representação partidária136 feminina ainda
tem um longo caminho a percorrer, em função dos mecanismos que os partidos
utilizam para burlar a legislação de cotas e o fundo financeiro eleitoral, em prol
de candidatos com mais chances de eleição e reeleição, tradicionalmente homens.
Araújo (2005) frisa: “Assim, ao lado de posições ideológicas, são os cálculos elei-
torais que influenciam na esfera organizacional, definem as estratégias partidárias
e o lugar dos atores nessas estratégias, inclusive o recrutamento e os investimentos
eleitorais” (ARAÚJO, 2005, p. 194).
Em 2018, uma pesquisa realizada pelas professoras Malu Gatto137, da University
College London (Reino Unido), e Kristin Wyllie138, da James Madison University
(EUA), divulgadas pela BBC News139 em 2019, revela quais os partidos políticos
mais lançaram como candidatas à câmara dos deputados mulheres laranjas140. As
pesquisadoras revelam que, entre os 20 anos de existência da legislação, as can-
didaturas de laranjas mulheres saltaram de 18%, em 1998, para quase 50%, em
2014, do total de candidaturas de mulheres.
Esse aumento exorbitante de possíveis candidaturas de “mulheres laranjas”
ao longo dessas duas décadas, também pode ser interpretado pelo fato de que, em
2009, a redação da lei que exigia que a reserva de 30% das vagas fosse destinada à
candidatura de mulheres passou a determinar o preenchimento desse percentual.
Desse modo, nas últimas eleições legislativas (2018), os partidos analisados lança-
ram candidaturas de fachada para burlar a lei de cotas e desviar recursos do fundo
eleitoral, seja para beneficiar o partido ou redirecionar esse recurso financeiro para
financiar cam- panha de políticos tradicionais, no caso, em sua maioria homens.
Essa adoção de candidaturas de mulheres “laranjas” ocorre, sobretudo, como
justificativa ao fato de que “o sistema eleitoral está, também, relacionado a padrões
de homens tende a gerar padrões de eleição e perfis com potenciais eleitorais também
associados aos padrões masculinos” (ARAUJO, 2010, p. 196).

136 Ver Clara Araújo - Partidos políticos e gênero: Mediações nas rotas de ingresso das mulheres na repre-
sentação política.
137 Professora Assistente no Instituto de Política Latino-Americana da University College London. Pesqui-
sa sobre represen- tação política com foco na América Latina.
138 Professora Assistente no Instituto de Política Latino-Americana da University College London. Pesqui-
sa sobre represen- tação política com foco na América Latina.
139 Departamento de notícias da British Broadcasting Corporation, BBC, responsável pela área de jor-
nalismo e notícias da corporação pública, e pela produção de seus programas de notícias, tanto para a televisão
como para a rádio e internet.
140 Candidaturas de fachada, usadas geralmente para burlar o sistema eleitoral e o fundo de finan-
ciamento eleitoral.

313
A tabela abaixo mostra os partidos que mais lançaram possíveis candidaturas
de fachada em 2018. A metodologia utilizada pelas professoras, para apurar e di-
ferir quais candidatas eram pouco competitivas e quais eram possíveis candidatas
laranjas, foi realizada a partir da comparação entre a competitividade de candidatos
homens e mulheres ao longo dos últimos 24 anos (1994-2018). “As pesquisadoras
identificaram que ao passo que a lei de cotas femininas são ampliadas, por exem-
plo, com sanções mais severas, os partidos passam a indicar mais mulheres como
candidatas, mas ape- nas para constar e evitar serem punidos por não cumprirem
o percentual mínimo”.

TABELA 01

Candidatas laranjas por partido político, na eleição de 2018 para a câmara dos deputados

Partido Candidatas mulheres % de possíveis candidatas laranjas Quantidade de mulher laranja para cada homem
laranja do partido

PSL 132 15,9% 24,1


PT 118 11% 2,48
PP 38 10,5% 5,54
MDB 109 14,6% 1,6
PSD 60 20% 13,7
PR 49 28,5% 4,25
PSB 72 12,5% 2,77
PRB 79 22,7% 2,78
PSDB 83 15,6% 4,85
DEM 49 22,4% 2,7
PDT 83 16,8% 2,67
SD 42 16,6% 1,72
PODE 59 35,5% 4,63
PTB 43 34,8% 3,79
PSOL 166 27,1% 1,18
PCdoB 45 31,1% 3,8
PSC 56 37,5% 5,58
PROS 75 40% 1,99
PPS 38 15,7% 2,34
NOVO 77 2% 2,6

Fonte: BBC News.

314
Os dados da pesquisa em questão apontam para uma relação de poder entranha-
da, simbo- licamente, na sociedade que valoriza as relações entre homens e exclui
as mulheres de espaços políticos. Atitudes que se intercruzam com alguns aspectos
do movimento sufragista, já citado, quando somente os homens tinham direito ao
voto. No entanto, a luta das mulheres por igualdade de direitos conquistou espaços
relevantes, que resultou no fortalecimento das discussões e ações, até chegarmos,
em 2010, à eleição da primeira mulher presidenta do país, Dilma Vana Rousseff,
eleita com mais de 56% dos votos válidos e que contrariou o cenário político bra-
sileiro, que, histo- ricamente, excluiu as mulheres das posições de chefas de estado.
Após a visualização e análise dos dados apontados na tabela 01, acima, faremos
um deslo- camento para comparar, compreender e analisar a participação de Sônia
Guajajara nas eleições à presidência da república brasileira em 2018.

Sônia e o cenário eleitoral de 2018

Quando Sônia Guajajara foi cotada como candidata à vice-presidência do Brasil,


em março de 2018, tanto a política nacional quanto a sociedade se encontravam
em uma crise moral e ética, provocadas por escândalos de corrupção disseminados
pela grande imprensa. De um lado, havia um candidato à presidência da República,
Jair Messias Bolsonaro, que tinha como discurso uma das falas mais emblemáticas
contra os povos indígenas, a saber, “Se eu chegar lá [presidência da República]
não terá um centímetro quadrado demarcado como terra indígena”141, afirmou ao
desembarcar no aeroporto Marechal Rondon, em Várzea Grande, Mato Grosso,
no dia 30 de março de 2017.
Em outros momentos, voltou a afirmar, como em novembro de 2018, em
entrevista ao Programa Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes142, além de discursar
a favor da retirada de direitos das mulheres como evidenciado em sua entrevista
ao Jornal ZeroHora, no dia 10 de dezembro de 2014, quando disse que a mulher,
por engravidar, deve ganhar menos que o homem, reafirmada em várias ocasiões
posteriores, como em 2016, em entrevista à apresentadora Luciana Gimenez, na
141 Disponível em: <https://www.rdnews.com.br/executivo/para-bolsonaro-demarcacao-sufoca-econo-
mia-e-indio-quer-luz-e-internet/82989>. Acesso em 08 nov. 2022. Acesso em: 08 nov. 2022.
142 Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/no-que-depender-de-mim-nao-
-tem%20-mais-demarcacao-de-terra-indigena-diz-bolsonaro-a-tv.shtml. Acesso em: 08 nov. 2022.

315
RedeTV.143 Do outro lado, haviam aqueles que se identificavam com o discurso
misógino e racista do candidato, sendo estes correspondentes a 1/3 do eleitorado
nacional, a exemplo, o ocorrido no dia 30 de setembro de 2018, em que dois can-
didatos, ao cargo de deputado estadual, Rodrigo Amo- rim (PSL/RJ), e o deputado
federal Daniel Silveira (PSL/RJ), quebraram uma placa em memória da vereadora
do Rio, Marielle Franco, militante e ativista feminista negra e LGBTI e das mino-
rias, assassinada, juntamente com o seu motorista, Anderson Gomes, em razão de
sua atuação política. Conforme a denúncia apresentada pelo Ministério Público,
MPRJ, à Justiça do Rio, TJRJ, o crime foi classificado como um “golpe ao Estado
Democrático de Direito”144.
Além do cenário hostil que se encontrava a corrida presidencial – a dissemina-
ção de fake news e discursos de ódio nas redes sociais, a violência por motivações
políticas como o assassinato do compositor e mestre de capoeira, Rômulo Rosário
da Costa, Moa do Katendê –, Sônia Guajajara teve que enfrentar o fato de que
nunca, na História do Brasil, uma mulher indígena havia chegado à candidatura
de um cargo tão alto. No entanto, sua experiência como militante do movimento
indígena, que luta por garantias de direitos ao território, à saúde, à educação e à
cultura, manteve-a firme contra posicionamentos, muitas vezes, preconceituosos
dos partidos adversários.
Sua candidatura foi de encontro ao padrão político, caracterizado por uma
cultura hege- mônica, na qual políticos eleitos para o exercício de mandato, tanto
no poder executivo quanto no legislativo, são majoritariamente compostos por
homens, e quando mulheres, brancas. Espino (2010) salienta que: “Aun cuando
el derecho al sufragio ha habilitado a las mujeres a participar en la política, no ha
logrado superar las desventajas derivadas de su condición y posición de género,
a las cuales se suman otras como la etnia, la edad, el grupo social de pertenencia,
etcétera” (ESPINO, 2010, p. 19).

O Gráfico 1, a fim de elucidar a problemática da debilidade da representação


feminina no que diz respeito às desigualdades étnica e racial, traz a composição da
Câmara dos Deputados para os próximos quatro (4) anos de mandato por gênero
e raça/cor dos parlamentares.

143 https://www.redetv.uol.com.br/superpop/videos/ultimos-programas/bolsonaro-diz-que-nao-paga-
ria-a-mulheres-o-mesmo-salario-dos-homens>. Acesso em: 08 nov. 2022.
144 disponível em: <https://www.bbc.news.com/portuguese/brasil-47539123>. Acesso em: 08 nov. 2022.

316
GRÁFICO 1

Fonte: Gênero e Número (2018).

As cadeiras da Câmara dos Deputados (2019-2022) serão ocupadas pelo per-


centual de 85% (436 parlamentares) de homens, sendo 302 autodeclarados bran-
cos, 132 negros e 2 amarelos. As mulheres ocuparão 15% (77 parlamentares) das
cadeiras, sendo elas 63 autodeclaradas brancas, 13 negras e uma indígena, como
mostrado no gráfico.

Mulher indígena e o debate interseccional

Desenvolvido pela teórica feminista estadunidense, Kimberlé Crenshaw (1998),


o termo interseccionalidade caracteriza os marcadores sociais a que determina-
dos grupos de mulheres estão sujeitas dentro das estruturas do patriarcado, tais
como classe, raça e cor (Crenshaw, 2002). Estas categorias de vulnerabilidades e
discriminações, invisibilizadas pelo feminismo eurocêntri- co, afetam direta e/ou
simbolicamente certos grupos de mulheres, tais como negras, indígenas, LGBTIs.
Em 1851, na convenção de direitos das mulheres em Akron, Ohio, Sojouner
Truth145 fez o famoso discurso “Não sou eu uma mulher?”. Sojouner levanta o

145 Sojouner Truth (1797-1883) foi uma abolicionista afro-americana e ativista política pelos direitos
das mulheres.

317
debate, por exemplo, sobre como a ideia de delicadeza e fragilidade é inerente
às mulheres brancas, uma construção que não se aproxima das mulheres negras
ou indígenas quando se leva em consideração o sistema de escravidão pelo qual
elas passaram e as vulnerabilidades, como a exploração sexual, que esse sistema
desenvolveu. Sobre isso, Angela Davis escreve:

Obrigadas pelos senhores de escravos a trabalhar de modo tão


“mascu- lino” quanto seus companheiros, as mulheres negras
devem ter sido profunda- mente afetadas pelas vivências du-
rante a escravidão. Algumas, sem dúvida, fica- ram abaladas e
destruídas, embora a maioria tenha sobrevivido e, nesse proces-
so, adquirido características consideradas tabus pela ideologia
da feminilidade do século XX (DAVIS, 2016, p. 24).

Essas discussões indicam dimensões para se pensar a forma como as mulheres


das várias etnias indígenas brasileiras vivenciam as discriminações concernentes
às suas identidades sociais, muitas vezes associadas a estereótipos como mulheres
selvagens, exóticas e sujas, desprovidas de educação e que falam errado. Partin-
do desse debate, as mulheres indígenas estão expostas a um sistema múltiplo de
subordinação. Estereótipos de raça, origem e classe fazem parte do cotidiano dos
povos originários do Brasil. Sobre isso, Crenshaw (2002) afirma:

Assim como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão,


de algum modo, sujeitas ao peso da discriminação de gênero,
também é verdade que ou- tros fatores relacionados a suas
identidades sociais, tais como classe, casta, raça, cor, etnia,
religião, origem nacional e orientação sexual, são diferenças
que fazem diferença na forma como vários grupos de mulheres
vivenciam a discriminação. Tais elementos diferenciais podem
criar problemas e vulnerabilidades exclusi- vos de subgrupos
específicos de mulheres, ou que afetem desproporcionalmente
apenas algumas mulheres (CRENSHAW, 2002, p. 173).

Para elucidar a problemática das vulnerabilidades que afetam a vida cotidia-


na das mulheres indígenas, quando estas se encontram no cenário da sociedade

318
nacional em especial, podemos observar como a questão dos múltiplos sistemas
de opressão contra essas mulheres afetam sua inserção na lógica dessa sociedade.
Quando Sônia Guajajara deixou sua comunidade para estudar em Minas Gerais,
por exemplo, para além da discriminação de gênero enfrentada por ela seja na
própria aldeia como na zona urbana, ela teve que enfrentar os estereótipos que
pesam sobre o seu povo, no caso, “indígena tem que viver nas aldeias, caçando e
pescando para sua própria subsistência”. Em entrevista (2006) para o blog do Ins-
tituto Socioambiental, ISA, Sônia Gajajara responde algumas questões que podem
ser esclarecedoras sobre seu cotidiano como mulher e como ativista:

ISA - Para começar, quais são, na sua opinião, os principais


desafios en- frentados pelas mulheres indígenas hoje?
Sônia Guajajara (SG): Primeiro, o principal de todos, é a ga-
rantia do terri- tório. Existe uma pressão do próprio Congresso
Nacional em relação às ameaças legislativas que estão a todo
instante tentando retroceder direitos constitucionais. Tem a
questão dos grandes empreendimentos e seus impactos que
aumentam a cada dia, além da flexibilização da legislação faci-
litando cada vez mais [a consoli- dação desses empreendimen-
tos], a exemplo do próprio Licenciamento Ambiental. E eu
acho que o outro desafio que talvez não apareça tanto, mas pra
gente é importante, é a tentativa de ocupar espaços públicos
do Parlamento, precisamos enfrentar isso e tentar avançar.
São dificuldades muito grandes que a gente pre- cisa superar.

ISA - Pode dar exemplos de diferentes realidades e problemas


– saúde, educação, participação nas organizações indígenas,
machismo?
SG: É um desafio diário, inclusive para a gente ocupar estes
espaços de discussão. Como tem esta questão mesmo da cul-
tura, do machismo. Embora tenham muitas lideranças ativas
e empoderadas, ainda somos um número muito pequeno de
mulheres que consegue ir além do espaço da aldeia. E a gente
precisa cada vez mais tentar chegar mais junto e ocupar e fazer
com que a voz da mulher seja escutada, não só dentro da nossa
própria terra como fora também. As mu- lheres precisam se
empoderar muito para se libertar disso.

319
ISA- E qual é o seu principal desafio, estando à frente da Ar-
ticulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que comanda
as mobilizações de mulheres e homens indígenas em todo o
Brasil?

SG: Acho que é continuar mantendo essa confiança e credi-


bilidade junto aos povos indígenas. É muito difícil conseguir
alcançar esta credibilidade sendo mulher. Hoje, embora possa
haver críticas e divergências eu sinto muita confian- ça, força e
motivação. Muita gente me diz: “Isso mesmo Soninha, estamos
juntos, pode contar com a gente”. (GUAJAJARA, 2016).

No contexto do pensamento de Celentani (2014), encontramos pontos con-


vergentes no que diz respeito à discriminação, racismo e sexismo no cotidiano de
muitas mulheres indígenas:

[...] Los modos de vivir de los pueblos indígenas no sólo de-


safían el tabú epistémico de la cultura hegemónica, sino que
la confrontan con sus proprias ideas y categorías filosóficas y
políticas: igualdad, liberdad, autonomía, democra- cia – y los
muchos más peligrosos conceptos de desarrollo y progreso – se
es- trellan contra una resistencia cultural secular. La violencia
con que se les reprime es propria de la frustación, pero no por
ello es menos violenta y opresiva contra las concretas mujeres
que son violentadas em instituiciones y espacios públicos y
privados por quien se autodefine como parte y portavoz de la
cultura dominante (CELENTANI, 2014, p. 221).

Como pondera Celentani (2014), a análise abaixo busca evidenciar como os dis-
cursos racistas e de discriminações de gênero específicas contra as mulheres indígenas
esteve presente no período de campanha eleitoral de Sônia Guajajara, em 2018.

320
Análise dos comentários no Twitter

Para esta análise da comunicação, dividimos os comentários em duas categorias:


gênero masculino e gênero feminino. Levamos em consideração a foto do perfil e/
ou o nome de usuário para classificar se o/a comentador/a era homem ou mulher.
Por exemplo, classificamos como sendo do gênero feminino a seguinte usuária:
“@comentadora”, e como do gênero masculino o usuário “@comentador”. Os
comentários foram extraídos do próprio Twitter de Sônia Guajajara. Dentro desta
categoria, nós subdividimos os comentários como sendo Racistas/Classe/Estereótipos,
Discriminação de Gênero e Outros Comentários – os quais destes não se enquadravam
em nenhuma das outras subdivisões –, de acordo com a tabela abaixo:

TABELA 02

Comentários
Racistas/
Comentários Outros Total de
Classe/Estereó- Discriminação
Comentários Comentadores
tipos de Gênero
Comentários de 4 0 8 12
Mulheres
Comentários de 23 3 12 38
Homens
Total 27 3 20 50

Fonte: dados da pesquisa

Observamos a predominância de comentários de cunho racista ou de este-


reótipos de raça, sobretudo, por comentadores identificados como sendo do sexo
masculino. Sônia Guajajara foi vítima de discriminação de gênero nas eleições,
mas, principalmente, foi vítima de racismo. Como evidenciado nos comentários
a seguir: “Pro Bolsonaro exigiram que soubesse tudo de economia e para o Boulos
e a vice (não esqueçam, povo, se acontecer algo, a vice assume) entende de quê,
de mato? Cala-te boca!”. (@comentadora, 3 de março de 2018).

321
O comentário a respeito do lançamento de Sônia Guajajara como pré-candidata
à vice-presidência da República pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSoL), do
Portal de notícia G1, tuitado por ela em 3 de março de 2018, evidencia alguns
indicadores de discriminação de raça e classe sofridos por Sônia, mas que eviden-
ciam, também, um olhar histórico e depreciativo sobre povos indígenas no Brasil,
porque questionam e põe em dúvida os conhecimentos de Sônia Guajajara, apenas
por ser uma indígena.
A fala evidencia a misoginia, uma vez que a cobrança sobre sua capacidade
recai sobre a mulher, enquanto que os candidatos Guilherme Boulos ou mesmo
o Jair Bolsonaro não sofrem maiores pressões do internauta. Apesar da ativista ter
duas formações em nível superior e um histórico extenso de luta e participação na
política nacional, o fato de ser in- dígena a coloca num lugar de subalternidade
por parte daqueles que se dizem detentores do poder e do saber, desconsideram o
conhecimento milenar incorporado na então candidata.
O usuário do Twitter atualiza um discurso evolucionista e civilizatório ao tratar
a cultura e os saberes ocidentais como superiores. Logo em seguida, a expressão
“Cala-te Boca” corrobora com a realidade a que os povos indígenas estão imersos,
no caso, ao processo danoso de silenciamento e à falta de políticas afirmativas que
valorizem e reconheçam as questões culturais e as singularidades de cada povo. Para
Celentani (2014), “o racismo, produto do colonialismo, este detentor do poder e
do saber, se carac- teriza como uma expressão inerente a uma cultura dominante
quando esta exige o reconhecimento de sua hegemonia”. “Índio não ter terra, mas
índio ter internet de homem branco kkkkkk” (@comentador, 1 de outubro de
2018). O comentário acima foi extraído de um “tuite” de Sônia em sua página no
Twitter (@GuajajaraSonia).
No comentário em questão, o personagem identificado como “@comentador”
ironiza o uso da tecnologia por Sônia. A ideia de que o indígena não pode utilizar
o aparato tecnológico desen- volvido pela cultura dominante, com a justificativa
de que se perde a identidade, é predominante da cultura hegemônica, esta que se
diz porta-voz do poder e do saber. Há de se pensar, por outro lado, que em toda e
qualquer sociedade a cultura não é estagnada. Ela agrega novos conhecimentos e
práticas, e Sônia utilizar uma determinada inovação tecnológica ou viver em uma
sociedade urbana não muda o fato de ela ser indígena, pois continuará a sofrer
discriminação de raça, devido à sua identificação cultural e aos seus fenótipos.
O comentário deixa ver algumas das contradições vivenciadas pelos povos

322
indígenas, desde a invasão portuguesa e a apropriação de suas terras, que perpassa
pelo domínio de tesouros, como ouro e outros produtos preciosos em troca de
facões e espelhos. Passa pelo esquecimento de lín- guas e de rituais. O contato
do indígena com o “homem branco” trouxe uma noção de hegemonia da cultura
europeia “civilizada” em relação a outras culturas. Trouxe doenças para os indíge-
nas, uma das causas de mortes e busca de médicos na cidade. O contato trouxe a
necessidade dos in- dígenas aprenderem a língua e as leis “do branco” para defen-
derem seus direitos. Usar um tênis, um aparelho de celular, a internet, cursar uma
universidade são ações políticas, que em nada vão interferir no ser indígena, mas
são instrumentos de defesa e de luta por seus direitos e garantias para o futuro.
A palavra índio, que aparece duas vezes em um comentário construído por doze
palavras, reflete uma espécie de padrão que uniformiza as sociedades indígenas,
fortemente entranhado em nossa sociedade, vinculada à ideia de que o índio, para
ser índio, tem que estar na floresta caçando. Índio é uma fabricação do “branco”.
Para os povos indígenas, existem, entre outros, os Tenetehara, Kayapó, Terena, Suruí
e os Guajajara. A escrita do internauta também desconsidera a língua de cada povo
indígena e evidencia uma das imagens mais fortes e negativas construídas sobre o ser
indígena, ‘sua fala errada da língua portuguesa’, como já destacamos anteriormente.

Considerações finais

A participação de mulheres indígenas e sua representação política partidária


ainda tem um longo caminho a trilhar. O desafio está em superar o monopólio mas-
culino dos poderes públicos e as discriminações e estereótipos de raça, entre outros.
As discriminações de gênero e vulnerabilidades de raça a que estas mulheres
estão sujeitas foram muito bem evidenciadas quando analisamos alguns comen-
tários no Twitter. A discussão ge- rada nessa plataforma digital contemporânea
nos proporcionou analisar e categorizar os múltiplos fluxos discriminatórios que
vitimam as mulheres indígenas quando estas estão no palco dos deba- tes, sobre-
tudo no que tange o cenário nacional. Avaliamos que as discriminações de gênero
sofridas por Sônia Guajajara são específicas das mulheres indígenas, no sentido
de serem consideradas, a partir de um olhar colonizado e atravessado por ideais

323
evolucionistas ultrapassados, que elas são pessoas exóticas, selvagens e, por isso,
devem estar no meio da floresta, não na cidade, em meio ao mundo “civilizado”.
Ao considerarmos os ambientes midiatizados como lugares efetivos do discurso
de poder, no seu alto nível de midiatização, vamos observar que o processo de par-
ticipação política e o compar- tilhamento leva à escolha de perfis discriminatórios,
à evidência de conflitos, a formas estereotípicas de raça e gênero, revelando, de
maneira exacerbada, os modelos conservadores e totalitários.
Em certo sentido, a política se volta contra o seu próprio discurso de liberdade,
permitindo a en- trada compartilhada das formas mais primárias da contra-política,
que se baseia, principalmente, no conflito. Por esta lógica, podemos observar que
a análise do Twitter nos levou a outras redes sociais, que, via de regra, reproduzem
este modelo produzido pela midiatização, oferecendo, em paralelo, um processo
de engajamento político que influencia diretamente os resultados dos processos
elei- torais, como o foi o caso das eleições de 2018 no Brasil.
Observamos neste trabalho que, apesar do extenso espaço temporal que nos
separa da colo- nização europeia, dos processos históricos e políticos que atravessa-
mos, assim como as revoluções tecnológica e industrial, algumas ideias equivocadas
e colonizadas continuam presentes em nossa sociedade. E alguns discursos sobre
sociedades indígenas, por exemplo, continuam a se propagar independente do
suporte midiático utilizado, seja por meio dos livros didáticos, nas páginas dos
jornais impressos, seja por meio da televisão, ou por meio de plataformas digitais,
como o Twitter.
Outro ponto relevante observado no comentário em relação à escrita, é a for-
ma sequencial da letra “K”, uma característica da linguagem utilizada no universo
virtual das redes sociais na con- temporaneidade e que está atrelada a uma ideia
de ironia, algo engraçado, muitas vezes, de ordem depreciativa. Neste sentido,
podemos deduzir que o internauta se referiu de modo irônico ao fato de Sônia
Guajajara se candidatar à vice-presidência da República, visto que é uma indígena
e “índio só sabe sobre mato”.
Acreditamos que a temática do gênero, raça e classe foram evidenciadas, a partir
do nosso corpus, durante as eleições presidenciais de 2018, especialmente, no sentido
de pensar a mulher indí- gena como um ser “sem” conhecimento relevante, exótico
e que fala errado. Uma pessoa que deve morar na floresta e não deve usar elementos
tecnológicos, porque são de uso “do homem branco”. No entanto, o discurso e o

324
trabalho da militante estão ligados à busca pelo respeito e reconheci- mento dos
povos indígenas brasileiros.

Referências

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326

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