Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Organizador
Capa
Fábio Augusto da Silva Bastos
Diagramação
Pedro Henrique Lobato
Revisão
Nair Santos Lima
326 p. il.
ISBN: 978-65-5404-096-9
[2022]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora folheando
Rua Quinze de Agosto, 51.
66821-345 — Belém — PA
Telefone: (91) 99159-6480
contato@editorafolheando.com.br
www.editorafolheando.com.br
facebook.com/editorafolheando
instagram.com/editorafolheando
twitter.com/e_folheando
Universidade Federal do Pará
Membros:
Claudiane Carvalho
Fábio Hansen
Fábio Hansen
Flávia I. Gonsales
Apresentação...............................................................................................11
FESTAS E FESTIVAIS...............................................................................................13
ESPETÁCULO E RELIGIOSIDADE.................................................................................199
SONORIDADES AMAZÔNICAS....................................................................................228
PODER E COMUNICAÇÃO.........................................................................................294
11
dá sustentação aos movimentos de resistência na educação buscando as formas de
entender a cultura e suas manifestações pelas festas e espetáculos.
É um trabalho que se desenvolveu nos últimos três anos, atravessando as
dificuldades trazidas pela pandemia e que ainda assim, resultou na produção de
artigos científicos povoados por este universo da cultura amazônica midiatizada
e como um desafio epistemológico para conhecer e reconhecer a Amazônia e não
em reinventá-la ou dicotomizá-la em defesa e ataque a floresta e suas populações,
como guardiães de proteção ou devastadores da floresta, ignorando a urbanização
e reificando estas oposições antigas, próprias do discurso centro e perifeira, mas
mostrar como ela existe afirmativamente em suas experiêcias e vivências reais e
imaginárias.
Este e-book coloca no círculo de divulgação as festas e os espetáculos como cul-
tura buscados e estudados por muitos pesquisadores em função da sua importância,
por perspectivas diferentes, mas que se encontram em suas evidências e discussões
por estes olhares próprios da comunicação e da resistência, daí o título, “Festas e
Espetáculos culturais na Amazônia: Comunicação e resistência”. Na primeira parte
apresentam-se artigos que discutem festas e festivais, na segunda parte o poder da
cultura como comunicação, na terceira parte espetáculo e religiosidade, na quarta
parte sonoridades amazônicas e na quinta parte o poder da comunicação, tudo
isto, mostrado no circuito da cultura amazônica que abriga todos estes fenômenos
por suas experiências e por suas manifestações. Um percurso que enfatiza o diálogo
com autores como João de Jesus Paes Loureiro, Wilson Nogueira, Neide Gondim,
Márcio Souza, Violeta Loureiro, Fábio Castro, Antonio Mauricio Costa, Edna
Castro e os nossos pesquisadores e autores do programa de pós-graduação e de
outros programas da região, do Brasil e da América Latina. E como não poderia
deixar de ser, esperamos que seja uma boa leitura.
12
FESTAS E FESTIVAIS
festas populares amazônicas: traços de colonialidade
nas tramas da pós-modernidade 1
15
sociedade complexa4 - de grande atividade econômica e cultural - originária dos
primeiros grupos nômades que atravessaram a floresta por volta de 15.000 anos
atrás dando origem colonização da Amazônia. Por volta de 8000 e 4000 a.C.,
grupos de caçadores e coletores constituíram uma comunidade de alta sofisticação5.
Mais tarde, em um período de 4000 a 2000 a. C., esses povos compunham uma
sociedade de subsistência, ou seja, viviam da pesca, da caça e da agricultura, além
da habilidade no cultivo de plantas e na criação de animais.
A existência de artefatos encontrados pertencentes a outros povos, prova o
comércio e o transporte que eles realizavam em longas viagens. Daí, infere-se a
presença de povos coletores nos muitos sambaquis encontrados próximo à foz do
rio Amazonas, na costa do Suriname e em algumas áreas do baixo Amazonas, por
volta de 3000 a.C. Nesses depósitos, as camadas mais recentes compunham-se de
restos de cerâmicas decoradas com figuras de animais.
Em “Breve História da Amazônia”, Márcio Souza (2001) questiona que, além
das teorias sobre a natureza e a adaptação desses povos aos trópicos é muito provável
que essas sociedades tivessem como base econômica a plantação de raízes como
a mandioca, praticada há pelo menos 5000 a.C., entretanto, com a chegada dos
europeus a vida desses povos indígenas retrocedeu para um estágio anterior ao
surgimento dessas economias intensivas.
Diante desse olhar, Souza (2001, p.23) conclui que “a Amazônia não era um
vazio demográfico”, pois já no século XVI havia um conjunto de sociedades hie-
rarquizadas com alta densidade demográfica (povoações em escala urbana), um
sistema intensivo de agricultura diversificada, produção de ferramentas, de cerâmica
e “uma cultura de rituais e ideologia vinculadas a um sistema político centralizado.
4 Nas últimas décadas, uma série de estudos tem contrastado com as posições que se estabeleceram
sobre a ocupação do solo amazônico. Por meio de novas pesquisas, como a da arqueóloga Anna Roosevelt (sobre
as culturas da ilha de Marajó e da calha amazônica), constata-se que a Amazônia contemplava em tempo pré-
-histórico um cenário rico e de diversas sociedades humanas.
5 A utilização de ferramentas para cavar petróglifos nas cavernas e “Outros artefatos de pedra encontra-
dos nos altiplanos venezuelanos e na Guiana, bem como nas barrancas do rio Tapajós” (SOUZA, 2001, p. 20).
16
Essas “sociedades complexas e politicamente surpreendentes”, como descreve
Souza (2001, p. 23) é também observado em Tesouro descoberto no máximo rio
Amazonas (2004) sobre um modo de vida particular dessas populações da Ama-
zônia. Nessa obra, o autor relata que os indígenas eram muito amigos de festas,
danças e bailes e, nesses eventos, entregavam-se a memoráveis “beberronias” e que
a música se aliava a um intuito utilitário. Servia tanto para o trabalho quanto para
a recreação, festas e folguedos. Haviam cânticos para ocasiões especiais: guerreiros,
núpcias, fúnebres e até mesmo báquico e erótico, assim como danças específicas
para cada atividade.
Esses registros constam das produções da época e das atividades desenvolvidas
pelas ordens religiosas, que em momentos diferentes e na disputa acirrada pelo
direito na administração do indígena, aqui aportaram. A música era utilizada para
influenciar os indígenas, que se aproximavam dos conventos seduzidos, segundo
Daniel (2004), por meio do tom alegre dos sinos, dos cânticos da missa, das dan-
ças e da própria cerimônia religiosa. Antes, essas atividades eram compartilhadas
apenas como um ato comum de movimento social.
Nessa prática,
Nos estudo sobre a festa, objeto das reflexões e comentários de Émile Durkheim
na obra Les formes elementaire le vie religieuse (1912), o autor trata da relação entre
ritual e festas e aponta para os limites “flutuantes” entre os ritos representativos e as
recreações coletivas. Para o autor, o elemento recreativo e estético é a característica
presente em toda religião, além disso, “toda festa, mesmo quando puramente laica
em suas origens, tem certas características de cerimônia religiosa” (DURKHEIM,
1968 apud AMARAL, 1998, p. 1).
As festas aqui tratadas referem-se às manifestações culturais que, de modo
17
particular em cada região brasileira celebra seus costumes, tradições, modos de vida
etc., ressaltando que, desde o período colonial esses modos de festejar se faziam
presentes entre os povos e,
6 Essa localidade foi fundada nos anos 1960 e concentra uma população de su-
listas que cultivam, além da tapioca, o milho, a soja e o arroz. Cerca de 70% das famílias
nessa localidade produzem a tapioca. Essa festa também é chamada de Festa da Integração
gaúcha.
18
que alcançaram maior projeção midiática, quer seja pelo turismo direcionado (di-
mensão cultural) ou por um modo de ação comunitária, trazem entretecidas em
seus enredos, alegorias e adereços histórias de um passado de subjugo ou subsunção
de colonialidade.
19
Ressalta-se, porém, que “(...) a extinção do colonialismo histórico-político nas
Américas, com a construção de nações independentes no século XIX, (...) não foi
condição necessária e suficiente para a emancipação político-econômica e cultural
dos países periféricos” (ASSIS, 2014, p. 613). Nesse sentido, para que se compreenda
a ideia de colonialidade permeada nas produções da cultura, convém esclarecer que
os traços de colonialidade, aqui proposto, está contemplado no próprio conceito
que, de forma transversal, emerge em diferentes campos de conhecimento, a fim
de discutir tendências e aspectos culturais diversos que resultaram em processos
de colonialismo9.
A Colonialidade pressupõe poder de dominação de uma cultura noutra; atua
nos modos de agir dos indivíduos e grupos sociais, nos comportamentos, valores,
conhecimentos e saberes. “Para mim, a pauta oculta (e o lado mais escuro) da
modernidade era a colonialidade (...) A colonialidade, em outras palavras, é cons-
titutiva da modernidade - não há modernidade sem colonialidade” (MIGNOLO,
2017, pp.1-2).
Sob outra perspectiva,
9 Nesse sentido, refere-se à dominação de ordem política e econômica de uma nação ou de um povo
sobre outro, numa relação (explícita) de poder, soberania e hegemonia.
20
ainda podem ser captadas por meio de investigação, a partir da perspectiva dos
descendentes e associadas a outros tipos de documentos.
É o que sugere LEAL (2017) ao citar as produções de autores paraenses, tais
como, Bruno de Menezes e Dalcídio Jurandir, nas quais as mães “são citadas
como pessoas de grande importância para a inserção desses escritores no mundo
da cultura negra paraense”. Afirma Leal (2017, p.87) que, “Todos os assuntos
listados por Bruno, em sua dedicatória, estiveram relacionados com a sua vida e
produção intelectual antes e após o movimento de 1938, pela liberdade de culto
no Pará, ou seja, “O despertar do engajamento intelectual negro, em 1937, por
ocasião das políticas de repressão aos terreiros afro religiosos, acarretou em debates
e atitudes que integraram diferentes pensadores e artistas da Amazônia” (LEAL,
2017, p.87, grifo nosso).
Em Chove nos Campos de Cachoeira, Dalcídio assim descreve a mãe do persona-
gem Alfredo: “D. Amélia era uma pretinha de Muaná, neta de escrava, dançadeira
de coco” (1991, p. 78).
21
um escravo congolês (Jargal) que se apaixonou pela patroa branca (COSTA, 2016).
A ópera que abria a temporada lírica em Belém e pioneira no regime republicano
foi regida sob a batuta do paraense José Cândido da Gama Malcher (1853-1921).
O espetáculo, inserido no contexto da abolição da escravatura brasileira ressal-
tava um elemento inusitado: a dança do “autêntico carimbó” que foi introduzido
em lugar das danças do Caribe,
22
voltados ao mundo da arte, literatura, música, escultura etc. Segundo o autor,
as festividades não devem ser apercebidas como algo sem valor, isto por que os
acontecimentos da cultura são produzidos por um conjunto de emoções coletivas
reunidas em desejos que exprimem alegria, satisfação, querência do viver, uma
espécie de ‘familiarismo’ que caracterizam “muitas relações sociais contemporâneas”
(MAFFESOLI, 1999, p.96).
Embora esse olhar contemple as relações que se estabelecem-na complexidade
da festa, ressalta-se que há questões mais profundas, subjetivas que permeiam esse
ambiente e a consciência dos indivíduos. Diante disso,
23
como linguagem simbólica e ocorre de modo particular, dependendo do espaço
geográfico e/ou regional. Há uma diversidade de festas e que a elas são referidas
“festivais”, “espetáculos”, “festas indígenas”, a saber: o festival dos Bois de Parintins,
Cirandas de Manacapuru; Sairé, em Santarém; Tribos de Juruti; Círio de Nazaré;
Arraial do Pavulagem, em Belém; Marujada em Bragança e Marabaixo, em Macapá.
Entretanto, não se pode desconsiderar, também, o modus vivendi dessas popu-
lações próprias dessa região, visto que a relação desses indivíduos com a natureza
se dá em um complexo ambiente de cultura povoado de mitos e símbolos, de
emoção e de poesia. Essa é a realidade do homem amazônico, aquele que vive
todas as possibilidades em seu próprio mundo, não somente, mas além do real,
um mundo tão denso e vasto, dentro e fora da floresta, um mundo imaginário
(LOUREIRO, 1985, p. 09-16), e que esse ambiente se constitui de um cenário
subjetivo que se reatualiza a cada ano e simbolicamente, visto que a cada novo ano
o círculo que se fechou recomeça. Portanto, de maneira global, a festa se elabora
das interações entre as pessoas.
Para Amaral (1998, pp. 7-8), as festas decorrem de,
Ressalta ainda Amaral (1998) que a festa medeia estruturas econômicas, sim-
bólicas e míticas ajudando nos conflitos e nas contradições da vida social, ou seja,
entre a utopia e a ação transformadora. Que na vontade de realizá-la os grupos
tendem a organizar-se e, com isso, a atingir finalidades específicas, além de que,
24
Desse modo, nas festas de cunho sagrado, os indivíduos que formam a co-
letividade são os que vivenciam a mesma religião e “sentem-se ligados uns aos
outros pelo simples fato de terem uma fé comum (DURKHEIM, 2008, p. 28).
Independente do grupo, o homem religioso sente necessidade de ocupar “seu”
espaço sagrado, por meio do qual se orienta no universo. Essa necessidade não é
arbitrária e se apresenta tal qual em nossa existência diária, na qual consolidamos
o nosso mundo particular pelos espaços mais significativos vivenciados em nossa
trajetória de vida, como, “a paisagem natal ou os sítios dos primeiros amores, ou
certos lugares na primeira cidade estrangeira visitada na juventude” (ELIADE,
1992, p. 18).
Para o indivíduo não-religioso esses lugares também são especiais, pois guardam
qualidades únicas como lugares sagrados do seu universo privado, e isso ocorre no
quotidiano entre amigos em que, por mais simples que seja o objetivo, há sempre
um motivo para festejar, configurando-se atualmente como um novo cenário social.
Novos paradigmas têm surgido com ênfase na cultura, na política e na eco-
nomia imbricados à ideia de pós-modernidade e com eles as discussões sobre a
complexidade de expressões artístico-estéticas, por exemplo, imersas em expressões
da cultura popular. Estas, por sua vez, adaptam-se a um modelo que possibilita
manter as características básicas de produção e consumo em seu próprio meio social.
Todavia, não se concebe a ideia de pós-modernidade sem relacioná-la a de
modernidade. Desse modo, afirma Coelho (1997, p.310), que um traço distintivo
entre elas seria o modo como os indivíduos se relacionam com a ideia de tempo,
pois na pós-modernidade o individualismo cede lugar a pessoa plural; a crença no
presente e o racionalismo sucumbem em detrimento da valorização do presente e
do sentimento; outra característica da modernidade residia em relação às diferenças:
a redução de tudo em um.
Hoje, o “espírito coletivo” da pós-modernidade inclui a diversidade, em todos
os aspectos: cultural, religiosa etc. e, a partir dessa nova configuração, percebe-se,
de modo holístico, que a imagem projetada de um mosaico preserva a harmonia
entre as partes, apesar de suas diferenças, (Maffesoli, 2005).
Outro olhar na pós-modernidade enfatiza as vibrações espirituais e artísticas
que são acentuadas dando lugar à sintonia e a empatia com os outros humanos.
Trata-se de uma construção social, de base sólida, da “ética da estética” (das emoções
e do compartilhamento dos afetos), perceptível nas diversas manifestações artísticas,
esportivas, entre outras, na interdependência do coletivo na ordem pós-moderna.
25
Propõe Sodré (2017) diante da sociedade que começa a se dissipar que “o outro
não é o espelho da gente”.
Na contramão da filosofia cartesiana, Sodré (2017) apresenta modos ou formas
diferentes de ver e pensar o mundo, sobretudo, o outro, ao que ele denomina de
filosofia nagô. Nesse modo, faz-se o passeio pela crença do outro sem a dimensão
do preconceito, visto que a verdade é consensual, é relativa. Ao pensar os mitos
das festas amazônicas, Sodré afirma que os mitos são constitutivos, o mito nos cria,
nos institui e sustenta a cultura. Maffesoli (2005) vê esse novo momento como
“crise”, que não é apenas econômica, mas social – uma atmosfera mental diferente,
específica dessa época. Segundo o autor,
26
Para o objetivo proposto nesse artigo, buscou-se fazer a leitura das músicas
dos Bois, de Parintins e das Tribos, de Juruti – no ano de 2019 -, a fim de iden-
tificar traços de colonialidade nessas composições. Vale lembrar que mesmo na
contemporaneidade as festas indígenas ainda “guardam lembranças de um passado
que se perdeu na voragem da conquista” (SOUZA, 1993, p.26), e assim “celebrar
festivamente as origens não é pois um simples retorno lembrador ao passado en-
quanto passado, mas a memória participativa de um passado matricial que envolve,
incorpora e identifica o presente de quem celebra” (TEIXEIRA, 2010, p. 31).
A Festa das Tribos (2019) ou o 25º Festribal, cujo tema é “Resistência Indígena
no Coração do Brasil” busca valorizar a cultura, o legado e trata da resistência in-
dígena configurada em todo o processo histórico de violência e opressão na região
desde a chegada do colonizador. As duas tribos de Juruti, autodefinem-se como:
Tribo Munduruku – a composição homenageia as Amazonas, mulheres guer-
reiras denominadas pelo espanhol Francisco Orellana, e que Frei Gaspar de Carvajal
as chamou de índias Icamiabas, essas lendárias mulheres habitavam a região do rio
Nhamundá, entre os estados do Amazonas e Pará. Sob as cores amarelo e vermelho
e o título ‘Brasil, não silenciarás o nosso canto ancestral’, a tribo Munduruku faz
lembrar que os povos indígenas continuam sendo explorados desde a chegada do
estrangeiro, e canta do tribódromo em forma de vocativo que diz:
27
Oh, oh, oh, oh/ Deixa fluir a emoção azul-vermelha/ e vem
cantar com a nação Muirá. [...] Muirapinima é amor...é garra e
calor. Vem pro delírio da galera azul e vermelha/ que comanda
a alegria dessa festa/ quando toca o regional [...] Muirá é magia,
a luz que nos guia e faz cantar minha nação [...].
28
A sociabilidade como suporte das festas amazônicas
29
Amaral e Alves (2018, p.39) afirmam que:
A evolução das manifestações tradicionais para os espetáculos contemporâneos
atinge a memória e a linguagem destes eventos pelo enquadramento midiático,
portanto, pela publicização, mas antes de tudo por um formato que denominamos
de rituais de consumo.
Dessa forma, as festas amazônicas têm alimentado o ciberespaço com o apoio
dos meios de comunicação, especialmente do jornalismo, que estrategicamente
pauta “cenários” transformados em espetáculos. Da origem das festas amazônicas
para o espaço destinado a elas houve a ressignificação dos mitos e das lendas, os
quais têm que ser reatualizadas a cada novo evento, a fim de se encaixar no formato
midiático da pós-modernidade.
Referências
30
ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Tradução José A. Ceschin. São Paulo:
Mercuryo, 1992.
GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. Editora Marco Zero, São Paulo,
1994.
JURANDIR, Dalcídio. Chove nos Campos de Cachoeira. 3. ed. Belém, Cejup:
1991.
LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. O Feminino na Formação Intelectual Negra Ama-
zônica. In: Gênero na Amazônia, Belém, n. 7-12, jul./dez., 2017.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Obras reunidas: poesia I Cultura Amazônica
– Uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editora, 2001.
MAFFESOLI, Michel. No Fundo das Aparências. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
________________. No Fundo das Aparências. Petrópolis: Vozes, 2005.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones
al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R.
(Org.) El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistémica más allá del
capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad
Referências Queiroz, Luis Ricardo Silva 157 REVISTA DA ABEM | Londrina |
v.25 | n.39 | 132-159 | jul.dez. 2017 Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores,
2007. p. 127-167. Disponível em: http:// http://ram-wan.net/restrepo/decolo-
nial/17-maldonado-colonialidad%20del%20ser.pdf . Acesso em: 06 nov. 2022.
MIGNOLO, Walter. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental
no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, E. (Org.). A colonia-
lidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas.
Buenos Aires: Clacso, 2005. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.
php/2591382/mod_resource/content/1/colonialidade_do_saber_eurocentrismo_
ciencias_sociais.pdf . Acesso em: 06 nov. 2022.
_______________. COLONIALIDADE - O lado mais escuro da modernidade.
RBCS Vol. 32 n° 94 junho/2017.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del Poder, Cultura y Conocimiento en Amé-
rica Latina. In: Anuário Mariateguiano. Lima: Amatua, v. 9, n. 9, 1997.
SALLES, Vicente. Maestro Gama Malcher: A figura humana e artística do
compositor paraense. Belém: UFPA/SECULT, 2005b.
SIMMEL, Georg. Sociologia. Em: MORAES FILHO, Evaristo (org). São Paulo:
Ática 1983.
31
___________. Problema da sociologia. In: MORAES FILHO, E. (org.). Georg
Simmel. São Paulo: Ática, 1983, p. 59-78.
_________. Questões fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
SODRÉ. Muniz. Pensar Nagô. Rio de Janeiro: editora Vozes, 2017.
SOUZA, Márcio. Breve História da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 2001.
TEIXEIRA, Joaquim de Sousa. Festa e Identidade. Comunicação e Cultura. Nº
10, p. 17-33, 2010. Disponível em:
http://comunicacaoecultura.com.pt/wp-content/uploads/01.-Joaquim-de-Sousa-
-Teixeira.pdf. Acesso em: 06 nov. 2022.
32
SAIRÉ DE ALTER DO CHÃO, CADÊ A FESTA DE
CURUMINS E CUNHANTÃS?11
Manuel Dutra12
33
No último dia era a varrição. No barracão do Sairé festeiros, empregados e o
povo comiam e bebiam a valer. Havia ainda a cerimônia de derrubação do mas-
tro, cuja forma parece ter variado de época. Mais recentemente havia o mastro
do juiz e o da juíza. Um indivíduo com capacidade de fazer palhaçadas subia no
pau e jogava nas pessoas embaixo as frutas amarradas desde o pé até o topo, onde
ficava uma garrafa de pinga, a ser avidamente disputada pelo povo. Uma bandeira
branca, com a figura do “Divino”, em vermelho, é finalmente lançada do alto do
mastro e aquele que a pegar ou aquele em quem ela bater ao cair, será o juiz ou a
juíza da próxima festa.
Houve épocas em que foi incluído o que eles chamam de marabaixo no ritual
de encerramento, que consistia na formação de blocos animados que percorriam a
Vila. Cantando “marabaixo”, eles entravam de casa em casa, dançando, comendo e
bebendo o que encontrassem nas cozinhas e armários, sem que os donos pudessem
reclamar. É comumente aceito que a festa do Sairé sempre terminava com a dança
do macucauá, no barracão, da qual todos participavam. Era uma homenagem ao
pássaro do mesmo nome, considerado, por eles como o “relógio” da Vila, pois ao
seu canto, no final da tarde, todos deviam largar o trabalho e voltar para casa. E a
dança era uma espécie de despedida. Terminada a festa da padroeira, todo o ritual
era recomeçado para a de São João.
Com essa reza o povo Borari, de Alter do Chão, e dezenas, talvez centenas
de outros povos, davam início ao grande carnaval amazônico, quando o Sairé e
muitas outras formas de festas duravam uma lua, isto é um mês, ao longo do Rio
Amazonas e seus afluentes.
O Sairé passa por mudanças sem relação com as raízes culturais da região.
O que seria então o Sairé? Basicamente trata-se de um escudo, em forma de se-
micírculo, confeccionado de cipó, a que primitivamente chamava-se também de
“Turyua”. Sua composição e decoração multicolorida variam de lugar para lugar,
porém a forma básica é encontrada em todos os locais onde foi introduzida a
dança característica: claramente uma mistura dos valores culturais indígenas com
as exigências do colonizador luso, cristão. O Sairé era usado preferencialmente na
festa da padroeira do lugar, Nossa Senhora da Saúde e na de São José.
Naquela época, o padre responsável pela freguesia não morava em Alter do
Chão. Os dois santos eram festejados em dias seguidos, três dias para cada um.
Na véspera da chegada do padre, a população arrumava tudo para a festa, prepa-
rava a igreja, que tinha um “tesoureiro” (que inclusive orientava ao padre) e, com
34
especial esmero preparava e ornamentava o barracão do Sairé, onde deveria sempre
haver um local para lautas refeições e beberronias e uma “Sala do Sairé”, espécie de
santuário tão respeitado quanto o sacrário dentro da igreja da padroeira. Havia o
“capitão”, que se encarregava da coordenação geral da festa e era quem motivava a
população para o acontecimento. Depois de desembarcar do batelão que o trazia
de Santarém, o padre dirigia-se para a casa paroquial, onde aguardava as “ordens”
dos organizadores da festa.
A seguir, texto de reportagem que publiquei em 1977 no jornal O Liberal,
de Belém. Primitivamente uma festa protagonizada por curumins e cunhantãs, a
procissão do Sairé é uma das mais antigas tradições do interior da Amazônia, que
pode revelar interessantes aspectos da ação dos jesuítas, nos primórdios da coloni-
zação. A ela referem-se dezenas de autores, alguns com pontos de vista divergentes,
porém, no contexto, todos os registros de viajantes e outros observadores coincidem.
Hoje em dia extinta como ritual religioso, a festa do Sairé está sendo revivida como
folclore na vila de Alter do Chão, município de Santarém, seguramente um dos
locais onde a manifestação foi mais pujante.
O dia da festa
35
do Sairé, o padre benzia as varinhas enfeitadas e as entregava aos doze mordomos
(seis homens e seis mulheres), que serviam, respectivamente, ao juiz e à igreja.
A partir daí formava-se a grande procissão: um casal de juízes, um casal de
procuradores, um capitão, um sargento, dois alferes, os rufadores de caixa, um
gaiteiro, os mordomos, todos tendo à frente a “saraipora”, a mulher que levava
o Sairé, com gestos rítmicos. Depois de percorrer as ruas do Vilarejo, o cortejo
chegava à igreja da santa, onde todos entravam com seus trajes e instrumentos,
à exceção da saraipora, que deixava o Sairé encostado à parede, do lado de fora
do templo como se fora um ato sacrílego aproximá-lo do altar onde logo mais se
celebraria a grande missa solene.
Durante o ato litúrgico os juízes tinham lugar destacado em frente ao altar-mor,
rodeados de seus mordomos. Ali não havia reza na língua indígena, pois quem
presidia o ato era o padre e as orações eram em latim. Finda a cerimônia, todos
voltavam solenemente ao barracão, onde o padre recebia as varas dos mordomos
e as depositava ao lado do Sairé, já instalado em sua sala adornada. Uma primeira
refeição era servida aos juízes e ao padre, e este se retirava para sua casa.
Na lembrança dos mais antigos de Alter do Chão, um dos aspectos que mais
chamava a atenção na celebração da padroeira era a participação quase unânime dos
habitantes do lugar. Um clima de festa contagiava a todos, tanto aos “empregados”
como ao povo de modo geral, com as pessoas bebendo café a valer até o meio-dia,
bastando chegar ao barracão onde a bebida era servida.
Índios e caboclos
“É difícil explicar isso tintim por tintim”, desiste o velho Umbelino. Na ver-
dade, para os mais antigos, muitos dos quais ainda chegaram a dançar o Sairé “no
tempo em que isso era coisa séria”, só resta a recordação. “Isso era uma festa alegre,
mas só pra caboclo. Depois que a ‘civilidade’ chegou, mudou tudo”, desabafa ele.
Com certa razão ele critica os mais jovens que agora tentam reviver a tradição, pois
“eles não levam a sério”. Naquele tempo não havia “pavulagem” e “até os padres
gostavam” e se não gostavam, vários deles a toleraram.
Este ano, inclusive, na festa que a comunidade de Alter do Chão tenta reviver
desde 1973, entre 23 e 26 de junho, muitos dos velhos nem chegaram a participar.
Um deles foi o velho “Café”, figura ainda popular e grande animador do Sairé
36
em épocas passadas. Ele acha que os principais detalhes do acontecimento estão
desvirtuados. Outros, como a “vovó” Anacleta, negra descendente de escravos e
cuja idade é estimada em 117 anos, acham que “o que mais se parece com a anti-
guidade é a dança do macucauá”, este ano revivida com rara beleza. Da festa como
um todo, pouco ela se lembra. Na observação de outros, como Manoel Sardinha
Vasconcelos, 71 anos, Anacleta tem razão de não se lembrar muito, de vez que “ela
é mulata e essa era uma festa que passou dos índios para os caboclos”.
No relato de observadores mais atentos, como “Neco” Sardinha, o Sairé teria
sobrevivido como culto religioso até por volta da década de 1920. Como ele,
ninguém sabe precisar quando nem porque a manifestação desapareceu. Além das
causas que sabidamente motivaram o desaparecimento desse tipo de manifestação
inocente da cultura popular, há indicadores mais ou menos seguros das causas
imediatas no fim do Sairé de Alter do Chão. Na vila, algumas pessoas possivel-
mente influenciadas por observadores recentes e apressados, afirmaram que a festa
foi abolida com a chegada dos missionários norte-americanos. E provam que um
deles chegou mesmo a mandar queimar um antigo escudo do Sairé.
Os missionários, na verdade, não chegaram a proibir a mistura profano-religio-
sa, revelam antigos juízes e mordomos. Foi, antes, a tentativa de “recristianizar” o
culto que acabou por levá-lo ao desestímulo. No princípio deste século, o primeiro
prelado de Santarém, Dom Frederico Costa, nascido na vila de Boim, rio Tapajós,
proibiu as esmolações, caravanas que saíam em viagens de até um mês de duração,
pedindo donativos para a festa de Nossa Senhora da Saúde, possibilitando assim
o sucesso material da comemoração. Isso levou a uma situação hoje criticada pelo
velho Manoel Sardinha Vasconcelos: “Antigamente, a gente mesmo fazia tudo e
escolhia os mais velhos para organizar. Agora, inventaram um tal presidente da festa
que tem de ser um comerciante e a gente não sabe mais da prestação de contas”,
Com a chegada dos franciscanos alemães à Prelazia de Santarém, em 1907,
o Sairé continuou e ainda é lembrada a figura de frei Ambrósio Philipsenburg,
grande incentivador da música na região. E foi esse incentivo que levou o povo
de Alter do Chão a apreciar a música de banda, “mais civilizada”, em detrimento
da tradicional pau-e-corda. Com a introdução da festa de arraial tal como hoje se
conhece, por volta de 1922 o barracão do Sairé passou a ter um forte concorrente
na pracinha da igreja. Além disso, em 1928 morreu o flauteiro Estácio, indivíduo
pantomimeiro que soprava a flauta, tamborilava e fazia gracejos ao mesmo tempo, e
seu desaparecimento foi um golpe de morte na festa do povo de Alter do Chão, cujos
37
melhores representantes da “sairezada” transferiram-se para Belterra e Fordlândia,
com a instalação da Companhia Ford Industrial do Brasil na região do Tapajós.
Pouco a pouco o Sairé foi sendo desestimulado, até que um dia houve um
atrito entre o padre e os habitantes. Ele queria mudar o costume segundo o qual
os juízes ocupavam “tronos” diante do altar, na hora da missa, acompanhados dos
mordomos portando suas varas. Mesmo com a explicação de que as varas eram
bentas, o padre não concordou. Quando os missionários norte-americanos chega-
ram, praticamente a tradição estava extinta e o que restava era uma leve menção ao
Sairé por ocasião da festa da padroeira. Nessa altura, a deterioração havia chegado
a tal ponto que já existia, na Vila, até mesmo um Sairé de ferro.
Processo inverso
38
alvíssima gaze e saias estampadas, foram em procissão à igre-
ja, primeiro dando uma volta pela cidade para recolher os
diferentes “mordomos” ou serventes cuja ocupação é assistir
o juiz da festa. Esses serventes carregam, cada um, uma longa
vara branca, enfeitada de fitas coloridas; diversos meninos
também os acompanham grotescamente, vestidos com es-
palhafato. Três velhas seguem à frente, carregando o Sairé,
um grande estandarte semicircular, envolto em algodão (em
rama) e enfeitado com adornos, pedaços de espelho e outras
coisas mais. Elas dançam acima e abaixo, cantando o tempo
todo um monótono e plangente hino em língua tupi e em
frequentes intervalos volteiam para encarar os acompanhantes
que, então, param todos, por alguns momentos (BATES apud
PEREIRA, 1989, p. 29).
Prossegue Bates (1989, p. 29), revelando que “informaram-me que o Sairé foi
um ardil adotado pelos jesuítas para atrair os selvagens à Igreja, porque esses, por
toda parte, seguem os espelhos, nos quais veem, como se estivessem magicamente
refletidas, as suas próprias pessoas”.
Rito católico-tupi
39
de andiroba, por eles mesmos fabricado e com um ou dois
pavios acesos, constitui essa lanterna primitiva (VERÍSSIMO,
1883, p. 07).
Mas, qual o sentido e qual a origem do termo Sairé? Esta pergunta não a res-
pondem nem os caboclos de Alter do Chão nem os registros mais antigos que se
conhecem. Escrito, ao longo do tempo, de diversas formas - Çairé, Sahyré, Sairée,
Sahiré e Sairé, há inclusive os que afirmam ser o termo uma corruptela de soirée,
do francês. Nem mesmo se sabe o significado da forma semicircular do objeto
venerado. Seria uma imitação dos escudos dos soldados portugueses? Ou uma
referência à lua? Idêntico objeto já existiria antes do colonizador? É possível que
sim e os jesuítas o teriam apenas aperfeiçoado para a catequese.
É possível que o nome tenha também sido obra da imaginação dos missionários,
pois referências mais antigas indicam para o círculo de cipó o nome de “turyua”,
que significa alegria. Alguns mencionam a formação de “açaí” mais “eré”, que
seria “salve, tu o dizes”. E Sairé, tanto o nome como o objeto, seria uma forma
requintada de saudação, suposição mais ou menos aceitável, se observado o ritual
como um todo.
40
Lembranças do grande carnaval amazônico
Tradições
41
mesmo retirado o negro, ao menos se quisermos entender a origem e a prática
de algo parecido com o Sairé nos primórdios da colonização, já que de antes da
conquista não há registros. Tudo indica que era uma festa dos grupos nativos a
quem o europeu chamou de índios que, em certas épocas do ano faziam imensos
festivais, aliás em nada diferentes de todos os povos.
De fato, como se verificava entre as classes populares europeias da Idade Média,
ocorriam grandes festivais entre os grupos indígenas já missionados dos primeiros
momentos da colonização. Na Amazônia, embora ainda merecendo estudos subs-
tanciais, o Sairé é concebido por alguns autores como resultado de uma imposição
cultural do missionário no sentido de “cristianizar” aquilo que o colonizador po-
derá ter associado à carnavalização medieval, em que massas populares tomavam
os espaços públicos, ora com permissão, ora sob repressão da hierarquia da igreja
e do estado.
O sairé e o círio
42
idosos do lugar, percebia-se uma nítida relação entre o profano e o religioso, embora
se tratasse, já naquele momento, de simples memória do que teria sido a festa em
seu sentido primeiro, uma lembrança possivelmente muito distante do que foram
as festas tribais de períodos anteriores à chegada do europeu.
Festivais
O Padre João Daniel, que viveu no Pará, em seu livro escrito numa cadeia
portuguesa, intitulado “Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas (1776)
informa que, no meado do século 18, algumas missões ainda toleravam os festivais,
já permeados de elementos culturais do conquistador, como “devotas cantigas” aos
santos. Outras missões já o proibiram em virtude do que o autor classifica como
exageros, entre eles as bebedeiras e posteriores desavenças.
Característico da negociação é a presença, no Sairé sincrético, de um personagem
chamado de “juiz”, que vai atrás do cortejo, com ar “grave” e rodeado de mordomos
solenes. O sentido desse juiz diz bem do universo cultural do colonizador. Significa
aquele a quem cabe julgar, manter a ordem, condenar. Evidente aviso aos grupos
submissos: não se excedam, caso contrário... pode cessar a permissão.
Houve missionários que, por “zelo”, nas vésperas do início dos festivais, iam
acompanhados por alguns oficiais em todas as casas das povoações quebrando
potes e outros e objetos utilizados na festa. Daniel revela que tais atitudes tinham,
como efeito, agoar-lhes as festas, porque [os índios] se melancolizam e vão me-
ter-se nos sítios. Outros escondem as talhas [com as bebidas] no mato, com que
sempre solenizaram a festa. Tamanha agressão cultural chegava, em alguns casos,
a levar os índios a ameaçarem os missionários, reações tópicas e ineficazes diante
da dominação totalitária a que foram submetidos.
Referindo-se ao processo sociorreligioso da colonização, Gilberto Freyre, em
Casa Grande & Senzala, opina que, sob a influência jesuítica, “a colonização
tomou rumo puritano”, porém, sufocando “muito da espontaneidade nativa: os
cantos indígenas, de um tão agreste sabor, substituíram-nos os jesuítas por outros,
compostos por eles, secos e mecânicos; cantos devotos, sem falar em amor, apenas
em Nossa Senhora e nos santos (FREYRE, 2003, p. 89).
43
Cantar triste
De fato, ao passar por Serpa, hoje Itacoatiara, em 1849, Henry Bates descreve
o Sairé como uma festa permeada por um hino monótono e plangente na língua
tupi. Já não podia ser de outra forma, o cantar triste nada mais era do que o resul-
tado já bissecular da brutalidade com que os índios tiveram devastados os valores
simbólicos e materiais de sua cultura. “Fui informado – diz Bates – de que o Sairé
seria um engodo de que se tinham servido os jesuítas para levarem os selvagens
até a igreja” (BATES, 1979, p. 123), porém o que informaram a Bates não foi o
engodo histórico que determinou a relação branco-índio. Aqui se tratava, segundo
o autor, da utilização de espelhos que adornavam o semicírculo chamado Sairé.
Atraídos pelos espelhos, os índios viam neles poderes mágicos, associando-os ao
missionário e a sua pregação.
Seguramente uma festa inteira triste por ter-se tornado insuportável ao co-
lonizador, por revelar a liberdade de um povo que não singularizava o próprio
corpo, parte do mundo exterior, do ambiente, do cosmo. No contato colonial,
isso chocava profundamente o racionalismo europeu que, como na Idade Média
e no Renascimento, desprezava os festivais populares nos quais o corpo, na cultu-
ra popular, tinha significado totalmente distinto do que representava na cultura
patrocinada pela Igreja e pelo Estado. Preconceituoso com os índios, acrescenta
Freyre: “Entre os caboclos ao alcance de sua catequese [os missionários] acabaram
com as danças e os festivais mais impregnados dos instintos, dos interesses e da
energia animal da raça conquistada, só conservando uma ou outra dança, apenas
graciosa, de curumins” (FREYRE, 2003, p. 89).
Na região amazônica, de fato, os missionários suportaram até determinado mo-
mento os festivais adultos até fazê-los refluírem, substituídos por festas de crianças,
forma encontrada pelo colonizador para fazer desaparecer o riso do índio, um riso
que fazia o missionário chorar, como descreve o Padre João Daniel.
Na Europa medieval e renascentista, de onde provinha a cultura do colonizador,
também o riso popular dos festivais espontâneos chocava a séria cultura oficial,
por simbolizar a liberdade de grupos que não separavam o riso do cotidiano que
costumavam transformar em festa e riso.
Há muitas informações esparsas sobre o Sairé, incluindo as controvérsias sobre
a origem do nome da festa, nome que, ao que tudo indica, designava o semicír-
culo que era levado nas “procissões”. É quase certo, no entanto, que esse nome é
44
posterior à chegada do conquistador. Mesmo após esse período, os imensos festivais
indígenas ainda configuravam algo que se poderia chamar de um grande carnaval
amazônico, embora com a manifestação realizando-se em épocas diferentes em
cada aldeia, sendo festivais que envolviam a comunidade inteira.
Sobre as festas “indígenas” há referências em muitos autores, de Bettendorf, que
em 1661 fundou a missão jesuítica do Tapajós (futura Santarém), a João Daniel
(1776). Este detalha, inclusive, como era o hábito paraense de tomar tacacá há
mais de 200 anos. Há diversificadas fontes que podem ser pesquisadas, em Galvão
(Museu Goeldi), há alguma coisa em teses na UFPA. Câmara Cascudo também
aborda o tema.
Embora sem uma obra de referência básica, o Sairé é encontrado aos nacos
em muitos autores. Seja com que nome for, as festas dos primeiros habitantes da
Amazônia podem ser pesquisadas por quem se interessa em ter uma ideia de como
era a vida dos povos antigos da região, com certeza muito mais felizes antes de
terem suas vidas e sua cultura destroçadas pelo mercantilismo predador do invasor
europeu. O assassinato em massa de muitos povos que habitaram a Amazônia, pré-
-conquista, coincide com o assassinato de sua alegria e de suas imensas festas tribais.
Referências
45
_______________. Scenas da vida amazônica – com um estudo sobre As Po-
pulações Indígenas e Mestiças da Amazônia. Lisboa: Livraria Editora de Tavares
Cardoso & Irmão, Largo do Camões, 6, 1886.
46
DO BREGA AO TECNOBREGA: RÁDIO, MÚSICA E
FESTA NA AMAZÔNIA PARAENSE
Abertura
47
brega paraense nesse contexto é exemplar, ao compor com a tecnologia do rádio,
a indústria de gravação sonora da música e as festas locais.
Transições mediáticas
48
compositores e cantores do gênero música popular da região que mais prosperou,
especialmente o segmento associado ao que passou a ser reconhecido como o de
música brega. Antes, os artistas paraenses somente gravavam seus discos nos estú-
dios instalados nas regiões sudeste e sul do Brasil, principalmente os das cidades
do Rio de Janeiro e São Paulo.
Este fato marca a vontade de estruturar organizadamente em Belém todas as
fases envolvidas no processo de criação, produção e comercialização da música
paraense, obedecendo aos critérios de negócios valorizados no mercado, no desejo
de firmar uma experiência nos moldes da grande indústria cultural. Mesmo diante
de alguns fracassos, e bem ao contrário do que ocorrera aos segmentos denomina-
dos de música erudita e de outras vertentes do popular17, o movimento da música
brega paraense, considerado em suas variações18, não insistiu em depender do
incentivo do poder público, ou de algum produtor de uma grande gravadora do
eixo Rio-São Paulo, para conseguir editar e divulgar seu trabalho. O êxito alcançado
por esse gênero nos anos 1980, auge da primeira “explosão do brega” confirma
esse fato, projetado pela gravação em disco fonográfico de vinil de LP (em inglês
long play record – gravação de longa duração) de seus artistas em estúdios locais
e sua consequente repercussão nas rádios de Belém. Em sequência, há o registro
de sucessos cantados por Roberto Villar, em 1997, seguidos por Banda Calypso
(sinônimo de popularidade, venda e audiência nos meios de comunicação em
geral; o grupo musical era liderado então pelo casal Chimbinha e Joelma), Banda
Tecnoshow (liderada por Gaby Amaranto), as aparelhagens de som e uma gama
diversa de produtores e artistas do chamado movimento do brega19 e expressões
decorrentes mais atuais, desenvolvidas no rastro daqueles episódios do que poderia
vir a se confirmar como indústria cultural da música no Pará. A extensão destes
últimos acontecimentos se fez repercutir nos meios de comunicação em geral, com
a presença massiva do tecnobrega, do “melody” e do calipso, principalmente, nas
programações de televisões e rádios de Belém, do Brasil e em outros países.
17 Referimo-nos aqui às outras expressões do gênero como não consideradas pertencentes ao brega.
Por exemplo, a praticada por artistas paraenses que mantinham elo de identificação com a chamada MPB, con-
siderada a mais “legítima e moderna” música contemporânea brasileira, oriunda de compositores de classe
média, universitários e de características urbana, difundida principalmente a partir dos estados do sudeste e
sul brasileiros.
18 Para um glossário das variações e influências do brega, sugerimos a consulta em COSTA,
2007, p. 64-65 e ao site www.bregapop.com.
19 Adotamos a definição levantada por Maurício Costa: “tecnobrega constitui uma fusão entre o
bregapadrão (se é que ele existe!) e elementos eletrônicos do teclado e da mesa de som” (Ibid.: 66).
49
Portanto, a história da música brega paraense desdobra-se, grosso modo, nesse
acontecimento de ascensão do tecnobrega nos meios de comunicação e na cultura
musical brasileira. Certos aspectos dessa história, principalmente os das três últimas
décadas do século XX, repercutem e passam a confundir-se com o momento da
constituição definitiva de uma indústria da música no Pará, acrescida da novida-
de de ser um acontecimento em princípio não atrelado diretamente ao circuito
da grande produção comercial e dos grandes meios de comunicação, e também
sem depender dos incentivos oficiais. O fato passou a ser tratado como uma das
principais evidências do fenômeno das indústrias da cultura musical recentes, de
caráter informal e independente, que desenvolvem um trabalho de criação, pro-
dução e difusão de produtos relacionados à música, a ser executada em festas
de aparelhagem e em veículos de comunicação da cidade de Belém e arredores,
reconhecido na generalidade da expressão tecnobrega, termo aglutinador de toda
variação de ritmos que o gênero brega paraense tem comportado.
Trata-se de um movimento de produção e comercialização da música feita
em regiões periféricas do capitalismo avançado, global, que se consolida dentro
do quadro das novas indústrias culturais locais. Um movimento denominado
de “indústria das ruas”; nos meios acadêmicos é considerado parte de um grupo
de indústrias – o cinema é uma outra – com perfil de economia informal,
cujo modelo de negócio não se sustenta de forma dependente da geração de
receitas por direitos autorais e de propriedade intelectual (SANCHES, 2007). No
Pará ele é popularmente conhecido como tecnobrega. Em nosso entendimento,
essa experiência equivale, designadamente, à expressão de música mediática20, um
produto musical de consumo massivo com sua constituição e natureza originaria-
mente atreladas aos dispositivos mediáticos de informação e comunicação, deles
dependente para existir.
No brasil e no mundo
50
contemporânea. A música produzida e destinada para uma cultura de massa er-
gueu-se sob a influência de muitos dos aspectos da forma e experiência musical
modernas, e se fez notar no quadro amplo e geral do sistema da música popular
ocidental como um produto do século XX. Um breve esboço sobre o tema é
apresentado em “História & Música”, por Marcos Napolitano (NAPOLITANO,
2002: 11-20). Nessa história percebe-se como o elemento do registro fonográfico
em um suporte físico e sua difusão e comércio são fatores centrais na dimensão
de uma indústria cultural da música. A Tin Pan Alley, em Nova York e a Denmark
Street, em Londres foram pioneiras na estruturação de um sistema de editoria
musical centralizada. Ao mesmo tempo, ocorre o desenvolvimento das indústrias
de gramofones (Victor-EUA e Gramophone Co., UK). Estimulava-se a criação
de editores musicais, promotores de concertos e espetáculos públicos populares
e eruditos, e após a 2ª Guerra mundial surgem as formas de música popular do
rock’n roll e da cultura pop.
Na ordem dessa história, o produto da música popular será aquele que se
adaptará às necessidades burguesas de um mercado urbano, sendo que uma de suas
faces mais reconhecidas nesse mercado será a de sua ligação com a dança, portanto,
como música para dançar. Por outro lado, o universo da música popular, enten-
dido e analisado dentro campo musical como um todo, reunirá elementos que
incluem desde tipos próprios da forma reconhecida como música erudita (o lied,
canto coral etc.), assim como da música folclórica (danças camponesas, narrativas
orais, cantos de trabalho etc.) e da música de protesto (engajamento, resistência).
Além do mais, a forma de música popular que se consolidou foi a de uma
peça instrumental ou cantada, disseminada por suportes escritos (a partitura) e de
gravação (o fonograma), ou como parte de espetáculos populares, como a opereta
e o music hall (café- concerto) e suas variações, como as formas circense, cômica e
dançante. Sobre esta última, sua função social básica seria estimular a participação
em reuniões coletivas, voltadas para a finalidade da dança.
Por sua vez, a influência da cultura urbana no produto da música popular
ocorrerá em razão do processo de adensamento populacional das cidades, inten-
sificado ao final do século XIX e início do século XX pela nova expansão indus-
trial, e, em consequência, viu surgir classes populares e médias nesse espaço. Esta
nova estrutura socioeconômica, produto do capitalismo monopolista, despertou
o interesse pela produção de uma música ligada à vida cultural e ao lazer urbanos.
Então, o desenvolvimento histórico de uma música popular de massaé marcado
51
pelas profundas mudanças ocorridas nas formas e experiências da cultura musical
popular, em que tais categorias vieram se alterando significativamente.
A história de uma música popular, que desenvolveu em torno de si aspectos de
face mercantil e uma experiência preocupada em atender os vários tipos de audiên-
cia, consolidará um campo musical-popular ligado a diversos fatores tecnológicos
e comerciais, fundamentais a esse processo, sobretudo as inovações ocorridas no
processo de registro fonográfico e a expansão do rádio comercial ao longo das
primeiras três décadas do século passado.
Ao observar a repercussão dessa história frente à realidade do continente da
América, nota-se que obedeceu a um processo que não apenas buscou aplicar o
modelo da experiência musical popular europeia. Ao incorporar formas e técnicas
musicais europeias, associaram-se os valores musicais criados a partir de outras
tradições, como as indígenas e negras, expressos em gêneros influentes, como o
samba brasileiro, o bolero mexicano, a rumba cubana, o tango argentino, o jazz
norte-americano etc. O campo musical popular desenvolvido no continente ame-
ricano se consolidou por um outro processo de síntese cultural, coincidente em
muito com a expressão de especificidadesnacionais e regionais. Assim,
52
da própria formulação histórica do que se convencionou reconhecer por música
brega no Brasil.
Nesse país, foram adotadas diversas denominações para qualquer tipo de arte
que não se enquadrava em um determinado e questionável padrão de qualidade.
“Mau gosto”, kitsch, “cafona” e “brega”. E a música popular não escapou a esses
rótulos. De um modo geral, foram assim considerados os gêneros e ritmos de países
ditos “subdesenvolvidos”, entre eles o Brasil; por exemplo, o country americano
jamais fora chamado de “brega”. De “mau gosto”21 seriam identificados o bolero
(Cuba, México), a rumba (Cuba), a guarânia (Paraguai), o merengue (países do
Caribe), entre tantos outros.
É dentro desse complicado processo cultural que determinados compositores e
artistas brasileiros identificados com esses gêneros – responsáveis por uma música
que, se não soam inteiramente como bolero ou merengue, guarda afinidades diretas
com eles – foram e são considerados membros do mundo do brega.
Entre uma enorme lista de compositores, cantores e grupos musicais consi-
derados bregas figuraram Odair José,Evaldo Braga, Diana, Peninha, Agnaldo Ti-
móteo, Nélson Ned, Waldick Soriano, em nível nacional; e Francis Dalva, Carlos
Santos, Alípio Martins, Mauro Cota, Ted Max, Juca Medalha, Os Panteras, Luiz
Guilherme, em nívelregional.
A própria trajetória histórica da chamada MPB (Música Popular Brasileira),
segundo Santusa Naves (2006), incorporou diversas acepções, sendo que sua
renovação em muitos casos se processou com a introdução de meios eletrônicos
– instrumentos e acessórios de gravação e exibição pública –, entre tantas outras
transformações pelas quais ela passou e continua a passar. Nessa história de mu-
danças e rupturas, sempre surgiu o questionamento de quem faria parte do catá-
logo colocado no escaninho dessa denominação. Desde 1960 (data provável do
surgimento “oficial” da sigla) até os tempos atuais, seu leque de novas sonoridades
e ritmos cresceu bastante, passando assim a considerá-la em uma definiçãomenos
restrita da que vigorou por muito tempo. Sua abrangência se estende do samba ao
baião, do pop ao sertanejo, da bossa nova ao axé, do rap ao funk. Compõem um
“caldeirão” caracterizado como MPB, e explicam, em certa medida, a renovação
ou a inserção da música brasileira na contemporaneidade.
Na década de 80 percebe-se que as produções da MPB “clássica” passaram a
21 As idéias de uma hierarquia do “gosto” na música popular estão em Tárik de Souza et al. Brasil
Musical. Rio de Janeiro:Art Bureau Representações e Edições de Arte, 1988, p. 194.
53
conviver com a ascensão de outros gêneros e ritmos do Brasil, ignorados ou pouco
reconhecidos que eram pelos meios de comunicação de massa, o que veio provocar
diversos surtos no mercado da música brasileira. Da geração do rock dos anos
1970 e, principalmente, de 1980, seguida das ondas do sertanejo, pagode e do axé,
todos receberam os incentivos da indústria do disco e chegaram à grande indústria
musical adjunta dos meios de comunicação. Muito dessa riqueza e diversidade que
passou a compreender o que compõem a música popular no Brasil resulta, nos
tempos atuais, do diálogo e encontro dessa música comas renovadas tendências
do pop planetário, na intenção de garantir seu nicho no disputado e globalizado
mercado mundial da cultura.
No Brasil, o rádio é sempre lembrado, quando se trata de comentar aspectos
relacionados à sua música popular, e a força desse meio de comunicação no país
ocorre especialmente por volta dos anos 1940 e 1950, o que gerou a possibilidade
de praticamente o país inteiro cantar seus astros e estrelas do microfone, e, mais
que isso, fazer deles seusídolos. Assim, mais do que o disco, o cinema e o teatro
juntos, o rádio influiu decisivamente nos gostos e tendências do público em relação
à música popular. Uma tendência talvez somente superada pela televisão, tempos
depois, e pela internet. A força do rádio seria, portanto, a responsável primeira
pela chegada de “todos os sons” à nação brasileira (SOUZA, 1988).
54
de rádio de Belém, e, posteriormente, em 1959, nas rádios do Rio de Janeiro,
cantando forrós, merengues e boleros. Seu sucesso, ao lado de artistas oriundos
principalmente da região nordeste, provocou investimentos das grandesgravadoras
de música do Brasil em artistas que viriam a se tornar exemplares do gênero brega,
como o pernambucano Reginaldo Rossi. Porém, o caso de Vavá da Matinha não
fora suficiente para confirmar uma tendência de que músicos e artistas da região
Norte do Brasil se firmariam no cenário da indústria fonográfica do país. Regis-
tra-se que é no mesmo período que surge em Belém um modo característico de
promover eventos e festas sociais, animadas por sistemas de som eletromecânicos,
as aparelhagens sonoras.
Os tempos iniciais do brega no Pará já apresenta um conjunto de ritos que
vieram formatar esta música como um gênero, através de sua versão em um supor-
te de música gravada e prensada em disco em vinil, a emissão sonora pelo rádio,
mais a presença no circuito social onde essa experiência musical passou a adquirir
sentido, as festas de aparelhagem de som. São lembranças de uma memória que
se fixou através do sentido da percepção radiofônica do movimento do brega, que
marcaria uma determinada relação de artistas e ouvintes socializados pelo rádio.
Essa relação é, portanto, parte constituinte do sentido adquirido pelas músicas de
brega (a festa) e da forma e expressão (a tecnologia e a experiência radiofônica)
pela qual elas se tornaram parte do imaginário de uma época.
É assim, então, que surgem diversos elementos peculiares que passariam a
fazer parte da construção do sentido social e histórico do brega e suas composições
musicais: a forma cênica baseada no exagero da performance gestual e a utilização
do disco, do rádioe das festas como meios de divulgação, capazes de constituir sua
audiência, seus ouvintes e frequentadores dos bailes dançantes.
Um dos maiores momentos de repercussão do brega nos meios de comunicação
local – principalmente nas rádios da cidade de Belém – acontece na década de 1980,
com a consagração de muitos artistas (COSTA, 2007: 28). Ele significou um dos
marcos mais importantes derealização e de sucesso de uma indústria cultural local,
que assumia uma espécie de “autoria”e carimbo “regional”, todavia, incluindo, ao
lado das gravadoras locais, a participação ainda decisiva das gravadoras nacionais23.
Dez anos depois, a participação do brega paraense na meios de comunicação local
perderia espaço, principalmente para o axé music baiano, permanecendo, na prática,
23 Acontece também nessa fase de prestígio do brega o lançamento do elepê “Adocica” (1988),
do cantor e compositorparaense Beto Barbosa, e o disco torna-se um dos maiores sucessos do gênero lambada
em Belém e no Brasil.
55
ancorado nas festas populares, animadas pelas aparelhagens sonoras, que passaram
a desempenhar a articulação entre a produção musical e o público apreciador do
brega, isto é, fazer o trabalho de divulgação.
Conforme ressalta Maurício Costa (2007), foi contraditoriamente este declínio
da divulgação do ritmo nas rádios de Belém que serviu de incentivo à consolidação
do modelo de festa de brega na cidade, ao promover a aproximação entre música
brega, aparelhagens de som, casas de festa e público apreciador. Esse fato definirá
o ritmo como “marca” do circuito festivo da cidade, integrando o universo do
brega desde o início dos anos 1980 em Belém.
Em 1995, o brega volta a se reerguer como ritmo musical, agora chamado de
brega pop, com o LP “A Nuvem”, gravado no estúdio Studio M Produções, de
Belém, e em 1997 com o CD “Ator principal”, gravado no estúdio Digitape, tam-
bém de Belém, todos sucessos do cantore compositor Roberto Villar, um destaque
nessa nova fase, quando obtém a vendagem mais expressiva do ritmo até o advento
da banda Calypso. Assim, o ressurgimento do gênero nesse “2º Movimento do
Brega” é marcado pela presença de novos produtores, músicos e cantores e novas
gravadoras. Ao final da década de 1990, o brega pop já se encontrava na progra-
mação de quase todas rádios locais e em alguns programas das tevês da cidade de
Belém. (Em 2002, a denominação brega pop perdeu sua força de representação,
substituída, principalmente, pelo nome de uma das novas versões de brega, o
tecnobrega; as outras versões de prestígio são o brega calypso e o brega melody).
O processo histórico de uma indústria cultural local, voltada ao segmento
do brega, consolida-se, desenvolvido através da presença de produtores, cantores,
compositores, músicos, estúdios/gravadoras, empresas e emissoras de comunica-
ção, posicionados ao redor do circuito das festas de brega em cidades do estado
paraense e seu entorno. Trata-se de um processo cuja dinâmica coloca em relação os
componentes implicados na criação de uma produção cultural local e o segmento
de empreendimento musical a ela associado.
Como indústria da música, portanto, o brega caracterizou-se como um tipo
empreendimento de maior preocupação com o trabalho de circulação dos produtos
do que com a produção de si mesmo, empenhado na distribuição dos produtos
(CD, DVD, MP3, mídias digitais etc.) e comercialização informal, bem como
na ampliação do público consumidor. Poroutro lado, definiu-se por sua condição
local, que justamente veio sugerir uma forma diferente de apropriação que o mo-
vimento realiza, aquela oriunda da experiência cultural das festas de aparelhagem
56
– ou, do “circuito bregueiro” – que lhe empresta significado e orienta suas ações.
“É nesse sentido que é pensada (...) a apropriação que o público de Belém faz da
música brega como produto de uma indústria cultural local” (Ibid.: 56).
Existe a ação de uma indústria cultural, baseada marcadamente em Belém, de
produção e difusão da música brega para a região e o país, envolvida necessariamente
nocontexto das festas de brega da cidade e seu entorno. É essa condição que leva
Maurício Costa compreenderque se trata de uma articulação que evoca uma relação
entre o estilo musical e uma suposta “identidade regional”: “Assim, a música brega,
tal como ela é produzida e consumida em Belém, constitui um típico exemplo da
cultura popular de massa, na medida em que articula ‘representações simbólicas
coletivas’ às relações sociais que organizam a indústria cultural local” (Ibid.: 58).
Na consolidação desse processo, o desenvolvimento dos estúdios de gravação
e a produção fonográfica em Belém é um de seus elementos mais destacados. Uma
história que começa com o trabalho do grupo privado de comunicação Rauland
Belém Som Ltda., depois RJ Produções, de pôr em prática o projeto de instalação
de uma rádio e de um estúdio de gravação, em 1975. Dedicava-se ao trabalho de
produzir artistas locais e distribuir o material gravado em LP (long play), ainda que
naqueles anos a reprodução dos fonogramas na prensagem em série necessariamente
fosse feita fora do estado.
No início da década de 1980, é criada em Belém a Gravasom, do empresário,
cantor e compositor Carlos Santos. É, provavelmente, o maior selo de produção,
gravação e prensagem de disco já instalado na cidade. Foi a maior veiculadora do
gênero do “primeiro movimento do brega”, que formou profissionais dedicados
às atividades de produção e gravação musical, muitos deles tendo passado ao
trabalho com as aparelhagens de som e festa. Porém, a Gravasom paralisa suas
atividades no princípio dos anos 90, deixando em funcionamento apenas seu
estúdio de gravação, em Belém.
Novos produtores fonográficos e estúdios de gravação voltam a surgir a partir
da segunda metade da década de 1990. Os principais, além da RJ Produções, foram
M Produções, MC Produções, AR Music. Como empresas de gravação destacam-se
a própria Gravasom, mais a Digi Record, Gravo Disco, Digi Tape, Transa Tape e
Digital Brasil. São criados ainda, no início do ano 2000, os estúdios familiares,
“caseiros”, dedicados à produção e gravação de CDs e DVDs de tecnobrega, que
incluem também os trabalhos de produzir e gravar programas rádio e televisão,
como fazem o Studio AVD, do DJ Beto Metralha, e o Estúdio Digital, de Tonny
Brasil, em Belém.
57
Na prática, tudo isso são atualizações tecnológicas, com capacidade de mais
uma vez imprimir um significado novo na forma de produzir e gravar música em
Belém. É ao nível do espaço doméstico do lar que passa-se realizar, na prática,
todo o serviço da cadeia de produção musical de um CD ou um DVD: da pro-
dução musical à performance artística, das letras das composições aos arranjos,
da logomarca à arte final da capa e do encarte, e, principalmente, a divulgação
(publicidade) dos produtos nos programas das grandes rádios e televisões, nas
festas, nas aparelhagens de som, na publicidade de rua de carros, motocicletas e
bicicleta, nas rádios comunitárias e de “poste” das feiras e mercados, nas bancas
dos camelôs e no comércio em geral. Esse acontecimento gerou a compreensão de
que o desenvolvimento do que se conhecia por indústria cultural utiliza atualmente
canais diferentesde comunicação, uma vez que ele não passa necessariamente pelo
circuito dos grandes conglomerados dos meios de comunicação para existir como tal.
Consideração final
58
indiferença e rejeição. Hoje, a TV Grão-Pará (repetidora da programação nacio-
nal da TV Gazeta, de São Paulo), a TV RBA (afiliada da TV Bandeirante, de São
Paulo), a TV Cultura do Pará, e a TV Liberal (afiliada da Rede Globo, do Rio de
Janeiro), veiculam programas dedicados ao brega.
Como forma de superar essas limitações à divulgação, o brega investiu mais no
trabalho em parceria com as festas de brega da periferia da cidade, e contou com o
apoio da audiência do público ouvinte das rádios, que passou a exigir a presença
do ritmo nas programações dos veículos. Outras estratégias foram adicionadas a
esse caminho alternativo utilizado para a divulgação do brega, como a aquisição
de espaços nas programações, através deinvestimentos dos próprios produtores
e artistas, ou a cessão de fonogramas às emissoraspelos produtores fonográficos,
e sua entrada nos bairros mais centrais da capital do estado paraense.
A presença da música brega do Pará no rádio se deu em grande parte em função
das alianças situacionais de produtores musicais e artistas de brega e os programa-
dores das emissoras. Ora o interesse partiu do próprio veículo de comunicação, ao
dedicar programas para o gênero, oraforam os artistas e proprietários das aparelha-
gens que procuraram as rádios como meio de divulgar o seu material, veiculado
nas festas. São essas situações que podem explicar o fato do movimento do brega
não desenvolver de modo imediato o aspecto da produção se comparado com
o da divulgação, o que o levou a diferenciar sua estratégia da forma mais
reconhecida de promoção na indústria cultural “clássica”, que sempre buscou
ligar produtoras e gravadoras de fonogramas musicais, artistas, rádios, televisões,
empresários e público.
Referências
59
SANCHES, Pedro Alexandre. A indústria das ruas. São Paulo : Carta Capital,
abril de 2007.
SOUZA, Tárik de et. al. Brasil Musical. Rio de Janeiro : Art Bureau Represen-
tações e Edições de Arte. 1988.
60
ESTUDO FOLKCOMUNICACIONAL SOBRE FESTAS
POPULARES: PRODUÇÃO DE UMA GRANDE
REPORTAGEM EM ÀUDIO ACERCA DA CIRANDA
DE MANACAPURU
Rodrigo de Araújo Ribeiro24
Introdução
61
firmou em Manacapuru, onde se tornou uma festa popular tradicional do estado
do Amazonas.
Desde o seu surgimento até os dias atuais, a tradicional festa de Manacapuru
sofreu mudanças e deixou de ser uma simples disputa entre escolas públicas para
se tornar um produto da indústria cultural, o Festival de Cirandas de Manacapuru,
com a disputa dos Grêmios Recreativos Flor Matizada, Guerreiros Mura e Tradi-
cional. Neste contexto, de que forma uma grande reportagem para rádio poderá
contribuir para resgatar a identidade cultural da ciranda de Manacapuru em tempos
de midiatização das festas populares?
Para tanto, fez-se necessário entrevistar moradores antigos, para conhecer
aspectos históricos da Ciranda no estado do Amazonas, conhecer como o festival
movimenta a economia local, mostrar o formato, os itens e o local das apresenta-
ções, conversar com integrantes das agremiações que produzem figurinos, adereços
e alegorias, identificar o processo de inserção da Ciranda na mídia.
Em 1967, Luiz Beltrão formulou sua tese de doutorado onde unia a comu-
nicação e o folclore dos marginalizados, denominada como “Folkcomunicação” e
conceituada por José Marques de Melo (2008) com uma disciplina que se dedica
ao estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e ideias. Melo
(2008) ainda classifica a folkcomunicação em gêneros e formatos, o corpus desta
pesquisa, a Ciranda de Manacapuru, está inserida no gênero cinética e no formato
dança que, neste caso, é o principal atrativo da indústria cultural.
Neste sentido, utilizamos uma grande reportagem em rádio como ferramenta
comunicacional de massa a fim de divulgar a Ciranda como festa popular, resgatando
sua identidade cultural, antes da exposição midiática, ou seja, a história da festa,
em seus primórdios, será essencial para entendermos a popularização e midiatização
da Ciranda. Mostraremos neste trabalho a identificação cultural da Ciranda de
Manacapuru, em seu aspecto folkcomunicacional, onde a comunicação, através
da festa popular, é feita do povo para o povo, tornando-se um processo prazeroso
e não como produto de industrialização cultural.
A pesquisa apresenta um caráter qualitativo, o que não poderia ser diferente,
visto que o objetivo das ciências sociais humanas, área em que se insere a comuni-
cação, é naturalmente qualitativo. Utilizaremos o método de abordagem dedutivo
pois, segundo Carla Cruz e Uirá Ribeiro (2003) trata-se de um método lógico
que pressupõe a existência de verdades gerais já afirmadas que servem de premissa
para se chegar, por meio dele, a novos conhecimentos. Para este trabalho serão
62
utilizadas as formas de pesquisas bibliográficas, experimental e ação. Utilizaremos
a entrevista como técnica de coleta de informações por trata-se de uma interação
entre pesquisador e pesquisado.
Portanto, o referido trabalho é a produção de uma grande reportagem para
rádio como forma de contribuição para o resgate da identidade cultural da Ci-
randa de Manacapuru, em tempos de midiatização das festas populares, visto que
o rádio é uma ferramenta comunicacional de massa para divulgação da Ciranda
como festa popular.
63
Após a criação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro outras rádios surgiram
no país com a intenção de atingir a massa. Nos anos seguinte, surgem no Rio as
rádios Clube do Brasil (1924), Educadora do Brasil (1926) e Mayrink Veiga (1934)
e aos poucos o novo veículo estendeu seu alcance, tanto na distância quanto na
diversificação de público, com uma programação voltada para o campo popular.
Chegam as transmissões de futebol e os programas musicais que abrem espaço para
as modinhas, o choro e o samba.
O estado do Amazonas viveu paralelamente todas as fases do rádio no Brasil e
até os dias atuais tem esse veículo como seu principal meio de comunicação pela
distância de seus municípios. Mesmo com o crescimento da internet e das possi-
bilidades de divulgação, o rádio ainda é o veículo mais eficaz no estado, quando
se trata de comunicação de massa, pois atua como importante meio para integrar
os habitantes de determinada região. Assim, Sandra Garcia (2012) reafirma a
transposição de informações nos municípios mais distantes da capital Manaus.
64
de radiotelegráfica, que seria a esperada primeira estação de rádio na cidade a Voz
de Manaós.
Nogueira (1999) enfatiza que a rádio tinha como objetivo levar informações
para os municípios mais distantes da cidade, passando dados sobre a cotação da
moeda, das chegadas e saídas de embarcações, e principalmente pelas realizações
governamentais. As transmissões eram feitas todas às segundas, quartas e sextas-
-feiras, entre nove e dez da noite.
Em 1992, a comunicação com os municípios do interior do Amazonas ain-
da era deficiente. Como relata a pesquisadora Ierecê Monteiro (1996) mesmo a
Telamazon, antiga empresa de telecomunicações do Amazonas26, atingindo 44
localidades a comunicação, não era efetiva.
Até os dias atuais, mesmo com o avanço tecnológico é difícil atingir os mais
longínquos municípios do Amazonas, onde o rádio torna-se a principal fonte de
comunicação, seja com avisos advindos de Manaus, ou avisos comerciais que são
divulgados pelas regiões próximas. É uma realidade mostrada em 1993 por Ierecê
Monteiro, mas até hoje é factual.
O rádio utilizado para o serviço e comércio é uma atividade muito comum no
interior do estado do Amazonas, principalmente para o uso dos avisos que se tor-
nou uma tradição cultural nestes lugares. Geralmente, estes avisos são manuscritos
pelos populares, com sua própria linguagem e lidos pelos locutores nos horários
determinados para este fim.
26 Hoje, quem comprou os direitos da Telamazon foi a OI telecomunicações.
27 Hinterland é uma palavra de origem alemã e diz respeito à parte menos desenvolvida de um país -
menos dotada de infraestrutura e menos densamente povoada, sendo também sinônimo de sertão ou interior,
neste caso refere-se aos lugares mais longínquos da região amazônica.
65
Monteiro (1996) relata que a prática de prestação de serviço das rádios no
Amazonas, ou seja, de usar as rádios como fonte de comunicação efetiva, princi-
palmente nos municípios do interior do estado, está ligada a dois tipos de avisos:
os comuns e os comerciais.
66
Funções do fenômeno da industrialização. É esta, através das
alterações que produz no modo de produção e na forma do
trabalho humano, que determina um tipo particular de in-
dústria (a cultural) e de cultura (a de massa), implantando
numa e noutra os mesmos princípios em vigor na produção
econômica em geral: o uso crescente da máquina e a submissão
do ritmo humano de trabalho ao ritmo da máquina; a explo-
ração do trabalhador; a divisão do trabalho. Estes são alguns
dos traços marcantes da sociedade capitalista liberal, onde é
nítida a oposição de classes e em cujo interior começa a surgir
a cultura de massa. (COELHO, 1987, p. 2).
Em 1967, Luiz Beltrão formulou sua tese de doutorado onde unia a comu-
nicação e o folclore dos marginalizados, denominada como “Folkcomunicação” e
conceituada por José Marques de Melo (2008) com uma disciplina que se dedica
ao estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e ideias. Foi
com Luiz Beltrão (1980) que este termo surgiu pela primeira vez. A teoria consiste
em mostrar a voz dos marginalizados, ou seja, daqueles esquecidos pela sociedade.
Estes têm assim meios próprios de expressão e somente através deles é que podem
entender e fazer-se entender.
67
humanas, produzindo comunhão grupal ou comunitária em torno da expressão
popular, e ao mesmo tempo mobilizadora das relações entre grupos distintos.
Atualmente, numa sociedade midiatizada, as culturas populares são atrativas
para uma exibição na TV, onde quase tudo do dia a dia pode transformar-se em
espetáculos para a mídia, como por exemplo, um acidente trágico, mesmo sem
envolver pessoas conhecidas, a um casamento, funeral de celebridades ou até
mesmo as festas populares, ou seja, a sociedade humana é inserida nos processos
midiáticos. “São momentos de grandes celebrações desde as campanhas eleitorais,
competições desportivas, concentrações religiosas, ritos de passagem ou aconteci-
mentos que estão fora do ordinário da vida cotidiana e entre esses acontecimentos
estão as festas profanas e religiosas.” (TRIGUEIRO, 2005).
Nogueira (2008) aponta que no Norte as principais festas populares também
são alvo da mídia cultural, mesmo com a forte inserção nos meios de comunica-
ção – rádio e TV – não necessariamente que essas festas fiquem mais distantes de
sua comunidade ou estão fadas a perder-se na era da informação. “O Boi-Bumbá
de Parintins, o Sairé de Alter do Chão e a Ciranda de Manacapuru estão hoje
inseridos no mercado. Tornaram-se alvos potenciais da mídia que caça turistas e
patrocinadores interessados em intermediar, com o mercado, produtos simbólicos
e/ou matérias.” (NOGUEIRA, 2008, p.54).
Festas populares são conectoras de relações humanas, produzindo comunhão
grupal ou comunitária em torno da expressão popular, e ao mesmo tempo mobi-
lizadora das relações entre grupos distintos, levando não só aquela manifestação
cultural para aquela região mais como também transborda conteúdo para aquela
nação.
Nossa proposta versa sobre a produção de uma grande reportagem para rádio
que contribua para resgatar a identidade cultural da ciranda de Manacapuru em
tempos de midiatização das festas populares. Por isso, faz-se necessário conhecer
68
os gêneros radiofônicos que é o instrumento que o rádio possui para atualizar
seu público por meio da divulgação, do acompanhamento e de análise dos fatos.
Este trabalho exporá suscintamente todos os gêneros radiofônicos, dando ênfase
aos gêneros jornalísticos que trata da grande reportagem, formato específico do
presente trabalho.
69
utilizar a “fórmula” da pirâmide invertida. Para uma reportagem bem apurada e
bem escrita exige muita dedicação, investimento e paciência.
A grande Reportagem constitui uma pesquisa muito mais aprofundada, com
discussão e reflexão, exigindo muito mais planejamento do que outros tipos de
coberturas que são executadas no cotidiano, sendo discutida a partir de três de seus
eixos: a teoria, a técnica e a prática. Milton Jung (2004) nos diz que “É na repor-
tagem que o Jornalismo se diferencia, levanta a notícia, investiga fatos, encontra
novidades, gera polêmica e esclarece o ouvinte. Fora dela sobra pouco do ponto
de vista da criação, quase tudo se resume à cópia” (Id, 2004, p.114)
A produção é feita pelo profissional direcionado exclusivamente para isto,
o pauteiro. O profissional é encarregado de definir assuntos para que seja feita
a cobertura, usando a ferramenta como caminho da futura matéria, contendo o
máximo de informações possíveis. A pauta deve conter sempre assuntos relevantes,
com isso Ferraretto (2014), nos sugere diversos assuntos que rendem uma boa
pauta, desde datas comemorativas, a decisões políticas importantes.
A reportagem se reveste de uma importância fundamental, sendo o mais im-
portante gênero do jornalismo, dentro de uma convergência digital, essa atividade
precisa cada vez mais se renovar, passando por uma espécie de readequação a frente
aos novos meios. A linguagem coloquial e fatores como o imediatismo e a mobi-
lidade são outros elementos que distinguem a narrativa radiofônica das existentes
nos outros veículos. Isto se isolarmos, neste primeiro momento, a linguagem digital,
que provoca novas reflexões sobre o significado de rádio.
Marcelo Parada (2000), autor do manual ‘Rádio: 24 horas de Jornalismo’, nos
orienta que todos os funcionários são repórteres, pois todos mantem relação à função
noticiosa e produção. A apuração é um instrumento essencial para o repórter, pois
ele como interlocutor procura responder todas as questões básicas aos ouvintes.
Para Ferraretto (2014), a estrutura básica para a reportagem se resume em
cabeça, ilustração ou sonora, encerramento e assinatura, ambas devem ter ligação
atraente na mensagem para o ouvinte. É necessário que o rádio tenha clareza e
com uma forma sedutora nas informações, facilitando cada vez mais no que é
repassado ao ouvinte.
70
precede a veiculação da reportagem. A manchete, a chamada,
a abertura de um jornal do boletim e o trecho em áudio com
entrevista devem ser convergentes ou complementares. (Id,,
2014, p. 162).
O entrevistador precisa ter ciência de todas as versões do assunto que foi dado
na pauta, é necessário saber lhe dar com todos os tipos de opiniões diferentes e saber
levar a entrevista. Os seus interesses pessoais (o entusiasmo em relação ao assunto
ou ao entrevistado pode cobrir aspectos negativos passíveis de ser noticiados); A
bagagem cultural do indivíduo (tanto a sua quanto a do entrevistado); Entre outros
exemplos não devem atrapalhar a entrevista.
Após todos esses processos é feita a Pós-Produção, como o próprio nome remete,
é algo que virá depois, sendo por sua vez um trabalho de acabamento, incluindo a
decupagem, e toda a edição do conteúdo antes de ir ao ar, esse processo é utilizado
tanto para a rádio, quanto para outros meios.
Metodologia do produto
71
celular com gravador de voz, para assim serem geradas as sonoras que irão compor
as reportagens. Assim diz Mcleish “o objetivo de uma entrevista é fornecer, nas
próprias palavras do entrevistado, fatos, razões ou opiniões sobre um determinado
assunto, de modo que o ouvinte possa tirar uma conclusão no que diz respeito à
validade do que está sendo dito.” (MCLEISH, 2001, p. 43).
Uma etapa importante é a decupagem das sonoras para transmitir exatamente
o intuito dos entrevistados, dando nexo à montagem do trabalho. A criação do
roteiro, segundo Ferrareto “que é o guia básico para organizar, planejar e produzir
um conteúdo sonoro gravado” (FERRARETO, 2014, p. 198) entrará após a coleta
das informações sobre a ciranda de Manacapuru. Ele será composto por BG’s, que
remetem a músicas do festival das cirandas, criando um cenário do real para repor-
tagem; Criação de textos para off’s, fazendo ligação as cirandas de Manacapuru e
fornecendo dados concretos e defendendo ideias e opiniões.
A realização da grande reportagem só acontece após a conclusão de todas
essas etapas. A organização da produção é essencial para o resultado final de uma
gravação, sendo que o produtor tem que providenciar tudo o que for necessário
para a execução do roteiro. Mas, a produção não acaba no momento da gravação,
ela só se completa com a efetiva realização da grande reportagem, ou seja, quando
a reportagem vai ao ar.
72
Conclusão
73
população do município o que o povo de Manacapuru faz para ele mesmo, apre-
sentando suas tradições, a arte da sua população e as origens da festa. Portanto,
percebe-se a contribuição deste trabalho como resgate da identidade cultural da
Ciranda de Manacapuru como festa folclórica popular, através de uma grande
reportagem para rádio, disseminando a Ciranda enquanto elemento cultural e
tradicional do município, antes de se tornar um produto da indústria cultural
amazonense.
Assim, espera-se que o Festival de Cirandas de Manacapuru cresça cada vez
mais, pois apresenta um potencial turístico e econômico muito grande, da mesma
forma que outras festas populares do Amazonas.
Referências
74
NOGUEIRA, Luiz Eugênio. O rádio no país das Amazonas. Manaus: Valer
Editora, 1999.
NOGUEIRA, Wilson. Festas Amazônicas. Manaus: Valer Editora, 2008.
PARADA, Marcelo. Rádio: 24 horas de jornalismo. São Paulo: Panda Books,
2000.
SIGRIST, Marlei. “Danças Folclóricas”. In: Noções Básicas de Folkcomunicação:
Uma introdução aos principais termos, conceitos e expressões. Org. Sérgio Luiz
Gadini; Karina Jans Woitowicz. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2007, pp. 103-106.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. “Festas Populares”. In: Noções Básicas de Folk-
comunicação: Uma introdução aos principais termos, conceitos e expressões.
Org. Sérgio Luiz Gadini; Karina Jans Woitowicz. Ponta Grossa: Editora UEPG,
2007, pp. 107-112.
75
MOSAICOS, RESISTÊNCIAS E IDENTIDADES:
NOTAS SOBRE OS TEMAS DO FESTIVAL
FOLCLÓRICO DE CARACARAÍ — RR29
Gabriel Augusto Nogueira dos Santos30
Introdução
76
identidades regionais e aos novos fluxos e fixos que surgiram com o fortalecimento
político e social dos movimentos culturais existentes na região
Acompanhando o processo evolutivo das manifestações culturais, as novas
relações baseadas em maior integração espacial e vinculada a uma globalização e
midiatização do espetáculo. Com isso, a construção das identidades amazônicas
ainda contém traços relacionados às grandes manifestações já consolidadas, con-
forme analisa Trindade (2017). Como exemplo, destaca-se o Festival de Parintins,
cuja consolidação é relacionada ao marketing difundido e aos novos discursos que
a festa carrega em suas apresentações, conforme analisa Nogueira (2008, 2013).
O artigo em questão irá discutir sobre o Festival Folclórico de Caracaraí, evento
criado a partir do ano 2006. O projeto inicial estava alusivo às seguintes premissas:
atividades educacionais, inserção econômica e cultural, conforme destaca Rapozo
(2019). Ao longo da curta história, as influências culturais de Caracaraí estavam
entre a migração nordestina e o Festival de Parintins, tomando como principal
característica, a história oral das lendas da Cobra Mariana e o Gavião Caracará,
que trazem símbolos e contextos alocados na cultura roraimense.
A pesquisa é de cunho bibliográfico e documental, além de aspectos vinculados
a entrevistas informais com brincantes e dirigentes das agremiações, onde procu-
rou entender a construção do Festival Folclórico e as relações de integração com
as demais manifestações locais e regionais. O objetivo é analisar a vinculação do
resgate cultural e as mensagens veiculadas pelo Festival Folclórico, tomando como
base a questão educacional e também a midiatização do espetáculo, a partir das
influências de outras manifestações e até mesmo, relacionadas a contextos políticos.
77
econômicas e suas relações sociais e de vida. Nesse sentido, Tocantins (2000) e
Nogueira (2008) destacam a transformação desses folguedos, oriundos das brin-
cadeiras de bumba-meu-boi e outras manifestações advindas do Nordeste, mas
que ganharam significados e tradições amazônicas, influenciados principalmente
pela cultura indígena.
No âmbito dessas influências, Tocantins (2000), Braga (2002) e Nogueira
(2008, 2013) exemplificam a influência religiosa e suas relações com o profano.
Neste caso, o Çairé de Alter do Chão e a construção da dramatização acerca do
Festival Folclórico de Parintins, sendo essas as principais manifestações culturais
da região, a partir da sua consolidação e posterior aprimoramento junto a moder-
nidade tecnológica e, até mesmo, midiática.
É importante compreender esses novos significados a partir das transformações
dos folguedos tradicionais e seus novos contextos, enfatizados em uma crítica
social ou até mesmo, aos resgates das memórias e histórias dos povos tradicionais.
Braga (2002) e Nogueira (2008) exemplificam esse processo de significados aos
seguintes conceitos: interesses locais de incentivos econômicos e também, as novas
redes culturais que se formam a partir das atividades econômicas, trazendo um
significado também mercadológico nas festas populares na Amazônia, a partir do
que se entende como cultura de massa.
Com o sentido mercadológico e midiático, há a presença do sentido político
das manifestações, relacionados aos incentivos econômicos e as mudanças no seu
formato. Para isso, existe uma necessidade de conceber as imagens do espetáculo
para uma promoção a partir da exposição de mídia, além de movimentos par-
tidários existentes nas localidades. Machado (2011), Santos e Monteiro (2020)
contextualizam esse sentido com a questão do novo “coronelismo” na Amazônia
e a condenação a instabilidades de realização e perpetuação das manifestações
culturais existentes na região.
Em relação às instabilidades políticas, a necessidade de uma profissionalização
das práticas culturais, desde o aspecto vinculado à organização cultural como um
bem social, mas também atrelado a competência dos agentes envolvidos. Ressalta-se a
importância desse amadurecimento a partir da criação das associações culturais como
organizações sociais e os maiores requisitos dos participantes, onde Nogueira (2013),
Santos e Monteiro (2020) analisam como características importantes nesse processo.
Lopes e Barbosa (2017) e Holanda (2019) destacam nesse papel, a figura dos
artistas, considerados andarilhos e agentes de deslocamentos temporais, onde destaca
78
a migração sazonal desses personagens. A partir dessa percepção, é importante
analisar os fluxos de artistas nas manifestações como fatores positivos de trocas de
experiências e a consagração dos trabalhos desenvolvidos.
A conjuntura de redes e fluxos é destacado por Costa Júnior (2011) com os
seguintes formatos: direto, vinculados às atividades do festival, desde o ir e vir de
turistas e artistas, e o indireto, vinculados aos bens e serviços que chegam para o
complementar das manifestações culturais em aspectos sazonais ou permanentes,
atrelados a um ciclo, como destaca Holanda (2019). Entretanto, os artistas podem
ser considerados como anônimos na construção do espetáculo, o que pelo contrá-
rio, são os principais elos da interlocução entre as diversas manifestações culturais
existentes, em que se analisa o ressurgimento e os novos traços com os diálogos
relacionados à cultura local.
79
Além disso, Rapozo (2019) destaca outros aspectos em relação à criação do festi-
val: forma de ocupação da juventude local, em função da questão da ociosidade
e a promoção futura da economia local advinda da festividade, mesmo que em
forma sazonal, ampliando cenários para o fortalecimento do Ecoturismo e outras
atividades econômicas
A primeira agremiação a surgir foi denominada Cobra Mariana, sob a respon-
sabilidade do professor Beto Lima e tem como suas cores, o azul e branco (figura
1). Em relação à lenda, são diversos significados que a mesma remete, o primeiro é
contado a partir da vista de uma serpente que arrastou um cavalo de um morador
local para as profundezas do Rio Branco, conforme destaca Silva (2019).
80
a 60 centímetros e a ligação dela com o município está atrelada a dois significa-
dos: o primeiro, vinculado a presença do mesmo em áreas de caça e queimadas e
campinaranas, sendo uma categoria de vegetação sazonal e de pequeno porte ou
até mesmo, acompanhando o gado transportado na região.
81
Estrutura de carros alegóricos, tripés, pai-
8 Alegorias néis, envolvendo a criatividade do artista
envolvendo o tema.
Roupas e detalhes que exaltam a cultura
9 Fantasias e Adereços
regional.
O principal personagem da apresentação –
10 Símbolo
Cobra Mariana ou Gavião Caracará.
Defende o tema abordado pela agremiação
11 Porta-Estandarte
a partir da bandeira (Estandarte).
Crianças que representam a fauna e flora da
12 Ala das Riquezas Naturais
região, com faixas etárias de 04 a 10 anos.
Beleza e Majestade da mulher roraimense e
13 Rainha
do folclore
Fonte: Lei Municipal nº447/2007, Trindade (2017), Rapozo (2019), Silva (2019) e Santos (2020)
82
A PRIMEIRA FASE DO FESTIVAL – PROJETO PILOTO
E AS PRIMEIRAS MENSAGENS (2006 – 2013)
83
próximos. Percebe-se de início, uma forte influência do corpo de fundadores dos
festivais com a identidade com o Festival do Peixe Ornamental de Barcelos.
84
Outro aspecto no ano inicial, foi a participação de artistas já consagrados de
festivais como o de Parintins. Como um dos apresentadores, é destacado a figura
de Klinger Araújo representando a cultura amazonense no estado de Roraima, para
divulgação e um posterior marketing, já que o artista é reconhecido dentro e fora
da Amazônia pela sua aptidão musical e instrumental, conforme a figura abaixo.
85
como o Çairé e o próprio Festival do Peixe Ornamental, enquanto a Cobra Mariana
trouxe as relações com as populações indígenas de Roraima e os fios condutores
da economia local.
Já o Gavião Caracará, trouxe como fio condutor da sua apresentação, o se-
guinte tema: “Nas asas do Gavião uma Cultura de Preservação”, em que se sagrou
o primeiro campeão da disputa. A concepção do tema em questão, se pautou no
debate da preservação da fauna e flora, a partir de um olhar vinculado a questão
milenar das populações tradicionais e dos ecossistemas locais, percebido inclusive
nas indumentárias dos itens femininos, uma característica a parte, envolvidas as
agremiações no simbolismo da mulher caracariense, conforme visto abaixo.
86
Destaca-se no Folha de Boa Vista (2008), o sucesso do segundo ano de festival,
cuja estimativa foi de 20 mil turistas nos dias de festa na cidade de Caracaraí (figura
7), já destacando os problemas da pequena rede hoteleira do município, devido a
pouca disponibilidade. Entretanto, a matéria do G1 Roraima (2008), trata o Festival
como um “mini-boi associado à Parintins”, além do envolvimento de artistas da
capital nacional do folclore. A partir disso, a reflexão sobre as questões das redes
do folclore, que podem contribuir ou descaracterizar parte do espetáculo, pauta
discutida desde sempre pelos organizadores e fundadores do Festival de Caracaraí.
Créditos: G1 Roraima
Nesse ano, o festival foi vencido pela Cobra Mariana com o seguinte tema:
“Amazônia Mãe, a Dama do Universo”, cuja concepção apresentada, segundo
destaca um dos fundadores do festival, está relacionada à homenagem de lendas e
rituais indígenas da Amazônia. Essa construção é percebida, sobretudo, no enfa-
tizar dos troncos linguísticos e povos que habitam a região, além de um enfoque
voltado a uma alusão da preservação ambiental, tal como destacado no projeto
inicial de criação do festival.
Um aspecto a destacar, está no número de povos indígenas, onde o Instituto
Socioambiental (ISA), mostra a existência de 305 povos indígenas (isolados e
não-isolados), representando um total de quase 900 mil indivíduos. Somente na
Amazônia Legal, existem cerca de 200 povos e uma população estimada em cerca
87
de 435 mil indivíduos, sendo alguns desses grupos existentes em mais de um estado,
sobretudo, no caso do Amazonas, Pará, Mato Grosso, Rondônia e Roraima, até
mesmo nos países limítrofes como Venezuela, Guiana e Colômbia, o que demandou
essa discussão sobre os mitos e lendas da região.
O Gavião trouxe neste ano uma relação do Monte Roraima com o desconhe-
cido. Intitulado “Galrásia: o mundo Perdido”, esse tema foi uma relação direta
com a formação do relevo roraimense com o desconhecido universo dos Macuxis.
Silva (2019) traz em relação ao registro daquele ano, que a partir dos fósseis pré-
-históricos encontrados na região naquele período, havia um universo repleto de
magias e encantos em relação ao sagrado que o Monte é referenciado.
Entre os anos de 2009 a 2012 não houve disputa e nem festival. Os motivos
relacionados estão atrelados a falta de repasse por parte da Prefeitura e Governo
do Estado, além da problemática em relação a Patrocínios e prestação de contas.
Apesar de uma realização bem recente, os anos posteriores de falta de incentivos
ocasionaram a sensação de falta e pertencimento por parte da população, que
cobravam iniciativas de retorno da festividade.
Em 2013, com o apoio do Serviço Social do Comércio (SESC), Federação
do Comércio de Roraima (FECOMÉRCIO – RR), o Festival voltou a ocorrer,
ainda com traços iniciais, mas com um novo direcionamento em relação à questão
política. Com esse apoio por parte do capital privado, o Festival passa a ganhar um
novo aliado, neste caso, os interessados no mercado e do turismo na cidade-porto.
Abaixo, a propaganda do apoio do SESC na realização do festival naquele ano.
88
O tema da Cobra Mariana no ano em questão foi “Água, Sangue da Terra”. A
concepção do tema está relacionada com a importância da água perante a sociedade
e a sua função essencial de manutenção da vida no planeta. Nesse sentido, há uma
percepção de um dos objetivos do Festival, vinculado a aspectos de educação e
questões ambientais, devido a uma concepção educacional do projeto da criação
deste festival, conforme abaixo.
Por sua vez, o Gavião Caracará trouxe o tema “Mitos, Lendas e Tradições”,
onde procurou explorar o universo do folclore brasileiro. Nesse sentido, a apre-
sentação veio em busca de retratar os personagens de todas as regiões, claro que
em primeiro lugar, o enfatizar seria nos contextos amazônicos. Nesse sentido, é
importante destacar toda a construção temática baseada no resgate de diversas ge-
rações a partir do que é a essência do folclore, tal como a outra agremiação trouxe,
uma perspectiva educacional.
Em ambas as temáticas, durante o aprofundamento deste artigo, trouxe a se-
guinte indagação: as temáticas podem ser ampliadas para fins educacionais em sala
de aula? Durante a organização bibliográfica do artigo, a leitura de Santos (2012)
traz em seu texto, a contribuição do Festival de Parintins na educação local pode
89
ser entendida como a relação da formação integral do indivíduo com a inserção
do mesmo na manifestação cultural.
O papel da Educação Ambiental nesse sentido, se inclui como um fator de
resgate da cultura local, mas também como uma forma de aliar a questão dos temas
transversais existentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) com a prática
de ensino. A partir disso, as temáticas e canções podem se tornar elementos na
visão crítica vinculada ao meio ambiente, não só no caso específico de 2013, mas
também outros temas vinculados a áreas como Geografia, História e até mesmo,
a Língua Portuguesa.
Apesar do empate posterior neste ano, o Festival se consolidou a partir desse
aspecto como uma voz e essência da região central de Roraima, consolidando um
papel de artistas e todos os itens envolvidos. Nesse sentido, os próximos passos se
atrelam a uma mensagem educativa voltada ao conhecimento e com um diálogo
sobre os diversos contextos da região Amazônica.
Até o ano de 2013, o ritmo musical predominante tinha como inspiração, o
executado no Festival de Barcelos, tendo uma influência do baião e também de
ritmos caribenhos, em que o uso do teclado é constante. Além disso, a participa-
ção de artistas de outros festivais como Júnior Paulain e Klinger Araújo, ambos
de Parintins, davam um tom de profissionalização da festa. Silva (2019) e Santos
(2020) analisam essa construção com outras influências, desde o axé ao forró, cuja
característica começaria a ganhar novos sentidos, sobretudo em relação ao tribal
a partir de 2014.
90
trouxe o tema “Roraima Indígena - Santuário da Vida”, composta por 09 toadas,
cuja interpretação seria de Sebastião Júnior (figura 10), então levantador de toadas
do Boi Garantido de Parintins.
91
Figura 12 - A chegada do homem branco e a interpretação de Sebastião Jr.
92
Figura 13 - Apresentador Klinger Araújo e o intérprete Ericson Mendonça em 2014
93
Figura 14 - Vanessa Alfaia representando Nossa Senhora do Livramento
94
na religiosidade local, destacam-se polêmicas com símbolos ou algumas letras que
envolvem elementos do sincretismo que possam causar algum desconforto, como
já aconteceu em Parintins ou outras cidades nos últimos anos.
Já em relação ao que foi apresentado, frisa-se a participação de Vanessa Alfaia,
como intérprete efetiva no ano de 2015 pela agremiação e sagrando-se campeã
no seu item. A primeira parte sobre a apresentação é baseada nas cronologias
das missões religiosas em Roraima, em que se destaca a atuação das carmelitas,
salesianos e missionários da Consolata no estado de Roraima e a polêmica relação
entre o catolicismo e a população indígena, principalmente abordando os conflitos
com os Waimiri-Atroari, a partir da expedição do Padre João Calleri em 1968,
conforme visto abaixo.
Figura 15 - Cenário com a homenagem ao Padre Calleri
Já a segunda parte da apresentação envolveu dois cenários que hoje são elemen-
tos primordiais na religiosidade de Caracaraí: o milagre do vaqueiro Bernardino
por parte de Nossa Senhora do Livramento, padroeira do município, as romarias
fluviais de São Pedro, presente na região e a encenação da Paixão de Cristo em
Mucajaí, sendo perceptíveis principalmente na indumentária do apresentador
Fabiano Neves. Nota-se, que a agremiação contextualizou cada contexto religioso,
conforme visto abaixo.
95
Figura 16 - Representação da Paixão de Cristo e o apresentador Fabiano Neves
96
Nesse sentido, o entendimento acerca do Rio Branco é apresentado como
elemento primordial do estado de Roraima. Desde a morada da Cobra Mariana
a necessidade de proteção da morada e da fonte de vida do povo roraimense, a
construção do tema se baseou em uma cronologia geo-histórica na importância
do Rio como elemento essencial ao desenvolvimento. É importante ressaltar a
construção desse tema a partir da seguinte frase: “o rio comanda a vida”, título do
livro de Leandro Tocantins (2000), além da relação do povo caracariense com o
pertencimento do espaço em questão, conforme visto abaixo.
97
Figura 19 - Mapa da então localização do Lago Parime
Esse local, era onde possivelmente se localizava o tão famoso “El Dorado”,
neste caso, a cidade de Manoa, onde se escondiam tesouros de ouro e pedras pre-
ciosas em que os Incas levaram ao se refugiar das invasões espanholas na região.
Nesse sentido, Maziero (2018) destaca os principais expedicionários que tentaram
encontrar vestígios como Thomas Roe em 1611, Padre Samuel Fritz em 1689 e
Alexander von Humboldt, entre os anos de 1799 a 1803 considerados como os
principais expedicionários.
Esse destaque está relacionado principalmente a duas teorias sobre a existência:
a formação de pequenas lagunas em épocas sazonais. Stevenson (1994) e Reis et
al. (2009) descrevem a localização dessa cidade em uma região ocidental do que
seria esse lago, já próximo do que seria a foz do Rio Uraricoera, mas por falta de
vestígios geológicos, ainda há controvérsias, trazendo um misto de relatos orais de
uma mitologia local ou relações científicas.
98
A Falta de Repasse de Verbas, Retorno e o bi-Campeonato do Gavião
Caracará (2017 – 2019)
99
Em relação a não disputa, o Gavião Caracará anunciou que não iria se apre-
sentar, mas posteriormente com apoio privado decidiu participar do evento. Com
cerca de 90 brincantes, o tema foi “Uma noite em Parintins”, onde homenageou
os grandes sucessos de Parintins e como uma forma de não deixar vazio o con-
texto da agremiação naquele ano. Nesse sentido, a construção temática se baseou
principalmente na inspiração que o boi-bumbá trouxe no resgate da identidade
em Caracaraí, a partir das ideias iniciais que deram origem ao festival em 2006,
onde os brincantes se apresentaram de abadá, devido ao recurso advindo de bingos
e pequenos patrocinadores.
Para 2018, “Roraima: um mosaico cultural” foi a peça chave para a Cobra
Mariana. Valorizando a diversidade populacional do estado, desde a migração nor-
destina, quanto as recentes em relação aos fenômenos econômicos recentes. Além
desse aspecto, é apresentado um panorama das diversas manifestações culturais
do estado, como a Vaquejada, Cirandas e o tradicional “Boa Vista Junina”, este
último considerado a maior festa popular do Extremo Norte. Nesse sentido, as
alas temáticas e figuras regionais se basearam em uma apresentação de representa-
tividade cultural nas cidades.
100
Figura 22 - Ala Temática representando as quadrilhas juninas
Créditos: G1 Roraima
101
Figura 23 - Representação da Rainha do Gavião com as cores de Parintins
Créditos: G1 Roraima
102
Figura 24 - O conflito entre o colonizador e os índios
103
Feitosa (2014) analisa o Movimento Roraimeira como uma forma de criação
das novas bases vinculadas ao entendimento da afirmação de uma identidade lo-
cal, tanto vinculado a aspectos de manifestar os problemas da região. Entretanto,
o movimento que, ao mesmo tempo, é conhecido por levar o estado ao externo,
ainda não se destaca como representação no próprio estado, sobretudo no am-
biente escolar, o que traz uma necessidade de a temática ser mais abordada tanto
em aspectos transversais, como vinculações em áreas específicas das linguagens.
Nesse sentido, o segundo período relacionado a consolidação do Festival, a es-
sência da contextualização da História de Roraima se tornou cada vez mais evidente,
apesar das mudanças rítmicas, o processo de construção da identidade roraimense
se tornou cada vez mais evidente. Nota-se que o aprimoramento na elaboração
dos temas se tornou cada vez mais presente, desde o explorar de um movimento
literário a questão geológica, trazendo um papel interdisciplinar nas apresentações
e destacando uma relação que pode ser debatida também em sala de aula.
104
Folclórico de Caracaraí é um evento com menos de 20 anos de existência, pode
perceber que o empenho da comunidade caracariense ainda se faz presente, mes-
mo com as midiatizações de espetáculo e as transformações que deixaram muitas
características iniciais do projeto-piloto de lado.
Posteriormente, houve uma descontinuidade temporária devido à pandemia
de Covid-19 foi ocasionada principalmente pela falta de apoio institucional e de
patrocínios. Percebe-se um hiato de mais de 01 (um ano) e alguns meses, até o
convite referente ao Natal Cultural de Caracaraí, onde marcou o reencontro de
ambas as agremiações em uma apresentação simbólica, conforme visto abaixo.
Para esse retorno, foi orquestrado o apoio cultural da Lei Aldir Blanc e da
Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto de Caracaraí (SEMECD),
onde ambas as agremiações contaram com o tempo de 40 minutos para a sua apre-
sentação. Percebe-se em conversas com os brincantes na realização dessa pesquisa,
a rivalidade se acendeu com esse evento, mesmo que não fosse uma disputa social,
a velha brincadeira sobre quem é o melhor e os pontos fortes de cada agremiação.
Com isso, ressalta uma perspectiva de um recomeço pós-pandemia, com novas
transformações e saberes na realização de um festival, tanto em bastidores, quanto
na arena propriamente dita, onde o sentimento e o pensamento se transformam
no que seria uma “ópera popular”.
105
Considerações finais
106
e músicas do festival. Além disso, destacar o apoio incondicional dos brincantes
Sérgio Lima e Orleilson Lopes durante a realização dessa pesquisa.
Referências
107
e Cultura na Amazônia) – Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura
na Amazônia - Universidade Federal do Amazonas, Manaus.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas do Brasil. Disponível
em: https://pib.socioambiental.org/pt/P%C3%A1gina_principal. Acesso em: 26
out. 2022.
LOPES, Iago Klinsman Guimarães; BARBOSA, Tatiana da Rocha. O deslocamen-
to temporal dos artistas plásticos que trabalham com o Festival Folclórico de
Parintins-AM: a mercantilização da mão de obra artística e suas redes. 2017.
20f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Geografia) – Universidade
do Estado do Amazonas, Parintins.
MACHADO, Amanda Nina Ramos. O Festival do Cará: Culturas e Manifestações
Populares em Caapiranga – AM. 2011, 58p. Monografia (Bacharelado em Ciências
Sociais) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus.
NOGUEIRA, Wilson de Souza. Festas Amazônicas - boi-bumbá, sairé e ciranda.
01. ed. Manaus: Editora Valer, 2008.
______________. A espetacularização do imaginário amazônico no boi-bumbá
de Parintins. 2013. 244 f. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia)
– Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia - Universidade
Federal do Amazonas, Manaus.
PLITT, Laura. A origem da prática de tribo sul-americana de encolher a cabeça
de seus inimigos. BBC Mundo, 16 de junho de 2017. Disponível em: https://
www.bbc.com/portuguese/geral-40302750. Acesso em: 26 out. 2022.
PREFEITURA MUNICIPAL DE CARACARAÍ. Lei n. 447, de 18 de junho de
2007. Dispõe sobre a criação do Festival Folclórico do Município de Caracaraí-RR
e dá outras providências. Caracaraí, RR, 18 jun. 2007.
RAPOZO, Guty. Histórico do Festival Folclórico de Caracaraí. Boa Vista,
2019, 10p.
REIS, Nelson Joaquim; SCHOBBENHAUS, Carlos; COSTA, Fernando. Pedra
Pintada, RR - Ícone do Lago Parime. In: Winge, M. (Org). Sítios Geológicos e
Paleontológicos do Brasil. Brasília: CPRM, 2009. v. 2, p.1-13.
PORTAL RORAIMA EM FOCO. O Festival Folclórico de Caracaraí começa
hoje. 2008. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/164500648/Festival-
-de-Caracarai?doc_id=164500648&download=true&order=477014240. Acesso
em: 26 out. 2022.
108
SANTOS, Elizabeth da Conceição. Educação ambiental e festas populares: um
estudo de caso na Amazônia utilizando o Festival Folclórico de Parintins. 1. ed.
Manaus: EDUA, 2012.
SANTOS, Gabriel Augusto Nogueira dos Santos. Na terra de Makunaima, tem
festa e globalização. Revista Tocantinense de Geografia, v. 9, n. 18, p. 40-54, 2020.
SANTOS, Gabriel Augusto Nogueira dos Santos; MONTEIRO MELO, Fer-
nando. Agricultura camponesa e cultura popular na Amazônia: um estudo
sobre o Festival Folclórico do Cará em Caapiranga (AM). Revista Educação e
Humanidades - REH, v. 2, p. 298-316, 2020.
SILVA, Ivete Souza da; SANTOS, Clarisse Martins. Movimento Roraimeira:
contribuições interculturais e antropofágicas ao ensino de artes no estado de
Roraima. Educação (Santa Maria Online), v. 41, p. 459-469, 2016.
SILVA, Joelson Vaz da. Festival Folclórico de Caracaraí. 2019, 104f, Trabalho
de Conclusão de Curso (Licenciatura em Música) - Universidade Federal de Ro-
raima, Boa Vista.
STEVENSON, Roland. Em Busca do Lago Parime. In: Uma luz nos Mistérios
Amazônicos. Manaus: SUFRAMA, 1994, p. 135-167.
TOCANTINS, Leandro. O Rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia.
9.ed.rev. Manaus: Valer, 2000.
TRINDADE, Paulo de Lima. Criação do Festival Folclórico da cidade de Cara-
caraí - Roraima. 2017, 61 f. Monografia (Graduação em Licenciatura em História)
– Universidade do Estado de Roraima, Caracaraí.
109
MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AMAZÔNICAS
– DA FORMAÇÃO À MIDIATIZAÇÃO DO SAIRÉ
Introdução
110
Dos vários estudos sobre a região, as pesquisas de Gondim (1994),
sugerem que “A Amazônia não foi descoberta, sequer foi construída; na
realidade, a invenção da Amazônia se dá a partir da construção da Índia,
(...) pelo relato dos peregrinos, missionários, viajantes e comerciantes
(GONDIM, 1994, p. 09). Essas narrativas construídas sobre a Amazônia ain-
da repercutem, em tempos atuais dentro e fora da região e prevalece pela falta de
investimento e dos parcos recursos destinados às pesquisas sobre o tema, além de
carecerem de um saber que permita conhecer as causas do pensamento arraigado
nessas populações da Amazônia desde o início do século XVII.
111
Sobre a noção de modernidade37, Mignolo (2017) declara que a partir da lei-
tura de Cosmopolis: the hidden agenda of modernity (Stephen Tulmin, 1990), uma
questão levantada por Tulmin (1990) passou a incomodá-lo: o que seria a pauta
oculta da modernidade? Mais tarde ele percebeu e declara: “Para mim, a pauta
oculta (e o lado mais escuro) da modernidade era a colonialidade”. A partir da
construção de dois cenários – um do século XVI, e o outro do final do século XX
e primeira década do século XXI – Mignolo (2017) se pergunta: “O que aconteceu
entre esses dois cenários”?
Nos estudos da historiadora Karen Armstrong há dois pontos cruciais: a
economia e a epistemologia. É o que apresenta Mignolo (2017):
Metodologia
37 Segundo Mignolo (2017), ‘modernidade’ “é uma narrativa complexa, cujo ponto de origem foi a Euro-
pa, uma narrativa que constrói a civilização ocidental ao celebrar as suas conquistas enquanto esconde, ao mesmo
tempo, o seu lado mais escuro, a ‘colonialidade’”. Em outras palavras, ‘colonialidade é constitutiva da modernidade
– não há modernidade sem colonialidade.
112
aquele - o Outro -, um ser reduzido à ignorância, tanto de sua alma, como de sua
individualidade.
Essa condição, proveniente da rejeição histórica sofrida ao longo desse processo
pelo ameríndio, cuja presença constituía um obstáculo à expansão colonial, além
do desprezo e da desvalorização - armas destinadas a favorecer sua submissão -,
cuja diferença fundamental induziu a uma lógica de eliminação (Thierion, 2014).
De modo geral, desses ambientes inóspitos se produziu o que Du Bois denomina
de “dupla consciência” 38. A ideia de identidade dividida, entre a consciência do
colonizador e do colonizado, possibilitou o duplo processo de ocidentalização, o
pensamento mestiço, racionalidade subversiva que desafia as concepções daquilo
que Anibal Quijano cunhou como a colonialidade do poder.
Esse sistema forjou a organização colonial do mundo, culturalmente, uma
vez que não ocorreu apenas no âmbito geográfico e, com isso, possibilitou certa
delimitação hierárquica dos povos, presente no chamado “etnicismo” (Agier, 1991).
O termo etnicidade traz em sua concepção a ideia de classificação (hierarquia) da
espécie humana, por critérios etnocêntricos e evolucionistas europeus, como a
branquitude, por exemplo.
Esses parâmetros servem de referência humana e ocupam o ápice da cadeia
hierárquica, permitem destacar o “eu” dos “outros”, e implica a necessidade de se
identificar para excluir o que não faz parte do “nós”. Porém, na contramão dessa
regra urge a necessidade de ações que subvertam a dupla consciência por meio da
criação de uma nova lógica para as questões sociais de agora.
Nesse contexto desponta uma proposta que vem alcançando relevância - a
mestiçagem crítica -, que atua como força e espaço alternativo à realidade discricio-
nária própria à colonialidade do poder, isto por que a condição dupla da existência
colonial só é superada quando se concretiza a descolonização.
De maneira geral, a “dupla consciência” é um lugar de discussão sobre mes-
tiçagem, processo que é histórico, político, de difícil apreensão e continuamente
invizibilizado. Para Du Bois, a dupla consciência é o resultado de deslocamento e
reterritorialização dessas populações e das experiências, cujo movimento determina
novamente o sentimento de pertença (Gilroy, 2001).
38 Termo que ficou conhecido a partir da obra The Souls of Black Folk (1903) na qual o autor, sociólo-
go, analisava o indivíduo afro-americano vivendo na condição de sua identidade fragmentária: de um lado ele
convivia na condição de colonizado e hierárquico, e de outro na esperança de alcançar e viver numa sociedade
igualitária, apesar de suas diferenças.
113
A ideia de movimento insere-se à de cultura enquanto mestiçagem heterogênea,
e é desse lugar de cultura, das manifestações populares da região que se buscou
apreender essa dinâmica, porém, é recorrente os termos que designam as populações
da Amazônia, quer sejam a elas referidos como caboclos, índios, amazônidas ou
povos da floresta, entretanto, a noção de povo é questionada, visto que estão pre-
sentes em sua constituição as “diferentes camadas históricas”, como explica Dussel:
114
O que se pretende, portanto, é validar o conjunto de saberes e dar garantias a
esse processo de ressignificação por meio dos movimentos da cultura local. Desse
modo, suscitar um diálogo horizontal entre as diversas culturas, uma comunicação
que reuna ampla representatividade regional, a fim de fortalecer as Epistemologias
do Sul39, ou seja, uma gama de saberes concebidos como inferiores sob o ponto de
vista da colonialidade do poder.
Nesse sentido, o termo colonialismo de poder trata, também, de privatização
dos lugares, visto que se varre o conhecimento quando se varre o lugar. Segundo
Santos (2010) há muitos “suis” epistemológicos, com isso existe a necessidade de
se “quebrar hierarquias” como forma de descolonizar o saber, quer seja por meio
da oralização ou mesmo do conhecimento escrito e do diálogo. “(...), a história
do homem na Amazônia é marcada por silêncios e ausências que acentuam a sua
relativa invisibilidade e velam os traços configurativos da sua identidade” (FRAXE;
WITKOSKI; MIGUEZ, 2009, p. 30).
Acrescenta Santos (2010) que existe uma linha abissal que separa as formas
de sociabilidades, ou ainda, exclui o outro. Essa linha se instituiu na consolidação
do território pelos portugueses, daí, deu-se “o início do processo de caboquização
dos índios, quando esses nativos foram retirados das mais diferentes culturas e
modos de produção e reunidos em vilas e aldeias espalhadas de maneira estratégica”
(SOUZA, 2001, p. 53).
Desse modo, a cultura indígena fragmentou-se brotando suas manifestações em
lugares distantes de suas origens primeiras. Entretanto, na contramão dessa radica-
lidade, faz-se necessário pensar uma ecologia de saberes como forma de valorizar
a experiência de grupos sociais invisibilizados pelas formas, as mais diversas, que
ainda hoje permeiam a vida social, de algum modo. Assim, em meio aos “silêncios
e ausências” desses povos surgem motivos – os mais variados – para as festas indí-
genas que ocorrem ao longo do território amazônico, como Sairé, por exemplo.
39 Termo cunhado pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos (2009) em contraponto à expressão
epistemologias do norte ou saber eurocêntrico.
115
subsistência, entretanto, com a abertura da estrada Santarém-Alter do Chão trouxe
um novo ciclo: o turismo. Do centro de Santarém até a vila o itinerário se faz pela
rodovia (PA-457), sendo este o acesso mais rápido e mais utilizado. Há linha de
ônibus que atende aos moradores e visitantes/banhistas. Lanchas e barcos também
fazem o percurso pelo rio Tapajós, geralmente em passeios turísticos, privilegiando
a paisagem ribeirinha que culmina com a geografia do lugar.
116
trajetória. Supõe-se que, “em função dos parcos registros sobre o Sairé, à época,
não há certa unanimidade quanto à definição do termo, sua origem e composição”
(LIMA, N. S e FREITAS, I. C., 2013).
Com base nos registros, dos mais remotos aos atuais sobre a origem do ter-
mo, buscou-se conhecer a grafia da palavra Sairé. Nunes Pereira reuniu histórias
(inventadas e contadas) dos índios do Amazonas e em “O Sahiré e o Marabaixo”
registrou as observações e relatos sobre esse fenômeno indígena.
Francisco Gomes de Amorim, o termo Sahiré aparece pela primeira vez, em
1856, na literatura dramática de Portugal, no contexto da coletividade amazônica.
Além dos autores citados, Henry Bates e Barbosa Rodrigues não conseguiram
esclarecer a etimologia. Concernente ao assunto, Barbosa Rodrigues esclarece:
“por mais que tenha procurado a origem ou etimologia da palavra çairé ainda não
pude descobrir”. “Não será o vocábulo çairé uma corruptela de soirrée? Pergunta
ele.” (PEREIRA, 1989, p.18).
Outro registro que foi encontrado na obra Poranduba Amazonense, assim
consta: “A palavra çairé deriva-se de çai e iré (salve! Tu o dizes) ou saudação e turyua,
que significa alegria.” (1887, p. 279). Mais tarde, no “Vocábulário Indígena”, à
página 20, justifica:
117
a investir no festival Sairé e a mudança começou pela grafia do termo, trocando-a
de Sairé para Çairé41.
A ideia satisfez os remanescentes boraris que, de certo modo, privilegiou a iden-
tidade indígena amazônica daquele povo, como uma “marca” cultural da própria
vila; entretanto, em 2005, com a posse do novo gestor, o termo volta a ser grafado
com “S”. Segundo CUNHA (1978), o vocábulo Sairé tem origem no tupi *sai´re e
significa dança indígena. O (*) indica forma hipotética e o (´), que a sílaba seguinte
é tônica. Consoante norma gramatical não se inicia com Ç nenhuma palavra da
língua portuguesa, bem como, sob os princípios da ortografia vigentes no Brasil e
em Portugal, a palavra Çairé passou, então, a ser grafada com “S”, em referência ao
que preceitua a gramática normativa. O termo tem origem em ÇAIRÊ, de “ÇAI”
(salve) + “ERÉ” (tu o dizes ou saudação) e turyua, que significa alegria, ou, ainda,
ÇA-IERÊ que significa “corda em giro”, espécie de dança praticada apenas pelos
homens da tribo. (PEREIRA, 1989, p.32).
A partir dos escudos dos portugueses, em uma espécie de imitação, os índios
criaram o seu próprio “ÇAIRÉ”, objeto que é conduzido nas procissões e que se
assemelha à proa de uma embarcação, provavelmente, as portuguesas. Nele, as cruzes
representam o mistério da Santíssima Trindade e atribui caráter religioso ao símbolo.
De outro modo, Pereira (1989), concluiu que o Sairé e o Marabaixo, perdu-
raram até os dias atuais, embora folclorizados, porque três fontes (de emoção e de
religiosidade) contribuíram para isso: do conquistador português, do escravo negro
e do índio (animista e curioso). A mudança do “S” para “Ç”, em 1997, valorizou
o termo em Tupi, justificado por Barbosa Rodrigues em Poranduba Amazonense,
edição de 1889, pagina 279 (PEREIRA, 1989, p.18).
Dessa forma, as duas formas estão corretas, a depender do uso, se com “Ç” (na
língua tupi) deve ser, portanto, sublinhada, aspeada, grifada ou posta em negrito, se
com “S” está respaldado pela forma em língua portuguesa ou mesmo em nheengatu.
A festa do Sairé não difere das demais festas espontâneas, visto que, com o passar
do tempo, “[...] podem cair no gosto popular e serem folclorizadas integralmente
41 De acordo com Câmara Cascudo (1889) existem dois sairés, um com “S” e outro com “Ç”. O Sairé
com “S” é ciranda; o com “Ç” é manifestação religiosa (Helcio Amaral, memorialista paraense).
118
ou - como no caso de algumas festas religiosas - manter dois momentos distintos,
ditos sagrado e profano [...] (BENJAMIN, 2001, p.19).
Composta por elementos religiosos e profanos, o Sairé é uma manifestação
cultural que ocorre há cerca de 350 anos no oeste paraense, resultado da misci-
genação cultural entre índios e colonizadores europeus. Entretanto, a fim de que
houvesse aceitação por parte do indígena ou um modo de comunicação entre ambos,
estabeleceu-se como estratégia o acesso aos rituais festivos, com batuques, danças,
comidas e bebidas, pois esses rituais eram comuns em qualquer civilização indígena.
Com essa aproximação os jesuítas idealizaram um instrumento que marcaria,
a priori, as festas indígenas: um semicírculo de cipó enfeitado de fitas a que os
índios nomearam de Sairé. A imagem abaixo retrata o momento que antecede à
procissão do Sairé.
Fotografia 1: Símbolo do Sairé
Fonte: TV Brasil.
Como manifestação popular restrita à Alter do Chão (PA), o festival Sairé atrai,
a cada ano, um número expressivo de pessoas, turistas, em especial, à vila balneária.
Muitos são os motivos: descanso, lazer, interesses empresariais, imobiliários etc.
Como consequência da visibilidade crescente. À nível regional, nacional e inter-
nacional, no final da década de 1990. Atualmente, o festival Sairé está associado
ao turismo ou à beleza natural do lugar.
Há uma intensa movimentação nos dias que antecedem ao evento. Empresários,
vendedores, além da população da vila, são atraídos pela festa. Mas, o que é o Sairé?
Pode-se pensar o Sairé como festa primitiva de agradecimento pela fartura entre
os integrantes da tribo, como festa dos descendentes boraris em homenagem a um
119
santo qualquer, como momento de alegria, da recepção que se fazia ao estrangeiro
europeu e, mais recentemente, relacionado à lenda do boto.
No final da década de 1990, com base no turismo, a comissão organizadora do
festival Sairé acrescentou à programação o “festival dos botos”, com características
de outro grande evento amazônico, o Boi-Bumbá, de Parintins. O festival dos botos
se estabeleceu com base na lenda do boto, estruturado em duas agremiações da Vila,
a do Boto Tucuxi e do Boto Cor de Rosa42. O auge da festa (profano) é marcado
pela disputa das agremiações dos botos, conforme figura abaixo:
120
misturar impunemente as coisas, sobretudo quando se trata de
aspectos de uma manifestação cultural tão antiga. (DUTRA,
2010, p.1).
Considerações finais
121
festas indígenas, apesar de trazerem lembranças de um passado, são realizadas por
um conjunto de emoções coletivas e expressam alegria, satisfação e modos de viver
intrínsecos das vinculações sociais na atualidade.
Referências
122
LIMA, N. S; FREITAS, I. C. A travessia do Sairé: uma perspectiva ecossistêmica
e semiótica. Dissertação de mestrado, UFAM, Disponível em: https://tede.ufam.
edu.br/handle/tede/4869. Acesso em 26 out. 2022.
MIGNOLO, Walter. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental
no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo. (Org.). A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-a-
mericanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.
_____________. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. RBCS,
v. 32, n. 94, 2017.
PEREIRA, Nunes. O Sahiré e o Marabaixo. 2. ed. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco Ed. Massangana, 1989.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del Poder, Cultura y Conocimiento en América
Latina. In: Anuário Mariateguiano. Lima: Amatua, 1997.
SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez,
2010.
SOUZA, Márcio. Breve História da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 2001.
TV Brasil. Ao Vivo: Festa do Sairé com os Botos Cor de Rosa do Tucuxi. Especiais
TV Brasil. Disponível em: <https://tvbrasil.ebc.com.br/especiais-tv-brasil/2019/09/
ao-vivo-festa-do-saire-com-os-botos-cor-de-rosa-e-tucuxi>. Acesso em 26 out. 2022.
123
A ESCOLA DE SAMBA BOLE-BOLE EM BELÉM/PA:
HISTÓRIA, COMUNIDADE E IDENTIDADE
Introdução
Este artigo tem como objetivo, fazer um sobrevoo sobre a história do carna-
val de escola de samba de Belém do Pará a partir da Escola de Samba Bole-Bole,
ressaltando a importância desta escola de samba para a economia e fortalecimento
identitário de sua comunidade com o bairro a que pertence. Teve como base para sua
construção a tese de doutorado de Gordo (2015).
A vivência no mundo carnavalesco na cidade de Belém há alguns anos, a carência
de pesquisas e de material sobre este tema e a necessidade de trazer à luz as relações
estabelecidas em uma escola de samba com o bairro a que pertence, foram o fio con-
dutor para a realização deste estudo sobre o carnaval nessa cidade, dando ênfase ao
movimento pelo qual passa uma escola de samba até que esteja pronta para o grande
dia, que neste caso é o desfile oficial de carnaval promovido pela Fundação Cultural
do Município de Belém (FUMBEL).
A Associação Carnavalesca Bole-Bole enraizada no populoso bairro do Guamá há
38 anos (fundada em 02.02.1984), mais especificamente na passagem Pedreirinha, será
o objeto deste estudo. Apesar da pouca idade no que concerne às Escolas de Samba mais
antigas e tradicionais de Belém, a história da Bole-Bole se confundecom a história atual
43 Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Federal do Oeste do
Pará (UFOPA). Doutora em Educação pela UNICAMP. Professora da Escola de Aplicação da UFPA. Membro dos
Grupos de Pesquisa: LABORARTE/UNICAMP, GPRAPE/UFPA. E-mail: margarida.gordo@ifpa.edu.br
44 Doutorando em Comunicação, Cultura e Amazônia do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
UFPA. Mestre em Comunicação, linguagem e cultura pela UNAMA. Professor do IFPA. É pesquisador de carnaval e
cultura popular, músico, compositor e escritor. E-mail: heriveltosilva01@yahoo.com.br
124
do carnaval paraense e já apresenta uma forte identidade e relação de pertencimento
com sua comunidade, principalmente por possuir uma sede que serve de retaguarda,
proporcionar atividades de emprego e renda e, por seu envolvimento com a cultura
regional e popular paraense (DIAS JÚNIOR, 2009; FERREIRA, 2012).
A Bole-Bole, mesmo sem essa pretensão, substituiu a escola Arco-Íris em seu bairro.
Iniciou desfilando em 1984 como bloco de carnaval, conquistandopor mérito mudar
de categoria para bloco de empolgação, ascendendo para bloco do grupo B e depois
A. Em 1995 ascendeu para escola de samba do grupo B e em 1997 para o grupo
especial. É a única escola de samba de Belém que passou por todas as categorias, desde
bloco. Em seu histórico como escola de samba acumula quatro títulos de campeã
(GORDO, 2015), inclusive o de Campeã do Carnaval dos 400 anos de Belém em
2016 e vários títulos de vice-campeã.
Quis o destino que a Bole-Bole fosse estabelecida na passagem Pedreirinhano bairro
do Guamá. Esta pequena rua tem pouco mais de 500 metros de extensão e conta com
uma grande diversidade de manifestações de cultura popular: boi- bumbá, bloco
carnavalesco, terreiro centenário de umbanda, festa tradicional de São João, grupo de
carimbó e outras. Por conta disso, essa escola de samba conta com a experiência desse
povo em reunir-se para os festejos que acontecem o ano inteiro nessa rua e nesse
bairro (FERREIRA, 2012).
O texto foi estruturado com dois tópicos, Carnaval e escola de samba: que traça
um breve histórico do carnaval no Brasil, fazendo um contraponto entre o carnaval de
escola de samba do Rio de Janeiro com o de Belém do Pará. Afinal no que diz respeito
à escola de samba, o Rio de Janeiro serve como inspiração e modelo para o país inteiro,
apesar de no Brasil existirem muitos carnavais. Destaca também a cadeia produtiva que
se desenvolve em torno do carnaval, bem como o mercado carnavalesco em Belém,
trazendo demonstrativos financeiros da escola de samba Bole-Bole no ano de 2014.
Escola de samba: comunidade e identidade é o segundo tópico, que traz à luz o movi-
mento da Escola de Samba Bole-Bole, abordando a importância de suacomunidade
e a identidade que se estabelece nas vivências cotidianas, que são reforçadas pelos
enredos e sambas-enredo cantados em cada carnaval.
125
Carnaval e escola de samba
E mais
Os ranchos carnavalescos foram os primeiros grupos a se
apresentar no carnaval com músicas próprias. Foram eles os
126
primeiros a incluir o enredo, o cortejo linear e a formalizar
uma estrutura de ensaios e desfiles que serviria, segundo alguns
autores, de modelo para as escolas de samba (GONÇALVES,
2006, p. 76).
A ênfase dada aos ranchos deve-se a dois motivos, o primeiro é porquea forma
de organização e de elementos que adquiriram, deu origem à escola de samba, foco
deste estudo e, o segundo é pela forte influência que exerceram na origem de uma das
mais antigas escolas de samba do Brasil e a primeira do estado do Pará, em um bairro
da periferia de Belém, no Jurunas, o Rancho Não Posso Me Amofiná, que deu início ao
movimento carnavalesco de escola de samba – apesarde muito incipiente em seus pri-
meiros anos – evoluindo com o passar do tempo e adquirindo algumas características
próprias, mas mantendo suas raízes ligadas ao carnaval carioca.
O carnaval carioca, na forma de desfile de escola de samba, foi oficializadopela Pre-
feitura do Rio de Janeiro em 1935, devido à repercussão positiva dosanos anteriores,
em que eram promovidos pelos jornais. Tanto no Rio de Janeiro quanto em Belém,
os jornais e as emissoras de rádio foram os grandes mediadores da institucionalização
das escolas de samba e os promotores do carnaval de rua, das batalhas de confete, dos
concursos de samba, do concurso de passistas – umapeculiaridade do carnaval de Belém
(GALVÃO, 2009; OLIVEIRA, 2006).
A oficialização do desfile pela Prefeitura do Rio culminou em uma regulamen-
tação, que suscitou certa organização, porém, tomou formas que foram “sufocando e
desvirtuando a pureza da manifestação popular” (GALVÃO, 2009,
p. 43). Sendo que o cumprimento às regras impostas pela prefeitura resultaria
em ajuda financeira às escolas, do contrário deixaria as escolas sem esse auxílio. Assim,
nenhuma dessas agremiações poderia se dar ao luxo de contrariar tal regulamentação.
A institucionalização e a oficialização do carnaval vão de encontro ao entendimento
de alguns autores
127
participa cada indivíduo. Essa é a própria essência do carna-
val, e os que participam dos festejos sentem-no intensamente
(BAKHTIN, 1987, p. 6).
Turner (apud DAWSEY, 2005, p. 22) revela que “os carnavais surgem como
momentos extraordinários, ou interrupções do cotidiano. No mundo docapitalismo
industrial, eles surgem como interrupções do trabalho. São como momentos de
“loucura” que se contrapõem ao cotidiano”. Da Matta (1981) concebe o carnaval
como uma festividade que estilhaça a realidade social, inventando uma ordem in-
vertida, sem a existência de um centro de gravidade.Turner (2005), Bakhtin (1987) e
Da Matta (1981) referem-se ao carnaval como uma quebra do cotidiano em busca de
liberdade, mesmo que momentânea, do indivíduo, da pessoa e do ser humano. Com
a institucionalização do carnaval e a implementação de regulamentos essa liberdade
passou a sofrer ameaças.
É importante ressaltar que a oficialização do carnaval no Brasil se deu em plena
ditadura varguista e, um dos itens do regulamento que precisava ser cumprido era
o tema nacionalista. Este não partiu diretamente do governo, mas sim da União das
Escolas de Samba que vislumbravam com isso a aceitação do governo, que usava
os enredos nacionalistas das escolas como uma forma de propaganda positiva
(GALVÃO, 2009).
É a partir da oficialização, que uma grande teia foi-se tecendo em prol do carnaval
carioca. O espetáculo, que hoje deslumbra, também teve seus momentosde dificuldade.
Porém, quando governo estadual e municipal, empresários e mídiaperceberam o filão
que seria investir no carnaval carioca, este deslanchou. Emtorno do carnaval carioca
há uma cadeia econômica muito bem constituída e articulada com os comandantes
das escolas de samba e destes com a comunidade,que também envolve a contravenção
do jogo do bicho.
No que concerne ao desfile de carnaval em Belém, segundo Oliveira (2006)
e Palheta e Rodrigues (2010) este viveu seu apogeu na década de 1980, sendo con-
siderado o terceiro maior e melhor carnaval do Brasil. Esse auge vivido pelo carnaval
paraense se deu, principalmente por conta da fundação em 1983da Escola de Sam-
ba Arco-Íris no bairro do Guamá, que apoiada pela mídia e por empresários locais,
reproduziu o Carnaval do Rio de Janeiro na Doca de SouzaFranco – antiga passarela
do samba de Belém – ao trazerem como carnavalescos, os famosos Joãosinho Trinta e
Laíla, comandantes artísticos da escola cariocaBeija-Flor de Nilópolis, para liderarem
a equipe de artistas que a referida Arco- Íris estava construindo.
128
Pelo que foi capturado em pesquisas nos jornais da época, como “O Estado
do Pará”, que tinha um caderno especial sobre carnaval e em Oliveira (2006), em
relação às escolas de samba, esse apogeu do carnaval foi muito pontual, pois a
maioria das escolas, como exemplo a Quem São Eles, do bairro do Umarizal, vivia
uma grande crise financeira, haja vista que seu presidente no ano de 1983 teve que
vender alguns bens pessoais para pagamento de dívidas da escola e, encontrou como
saída o arrendamento da sede por um empresário numa tentativa de que sua escola
desfilasse no carnaval de 1983. Isso não aconteceu, sua escola não foi para a avenida.
Fato este que se repetiu no Rancho Não Posso me Amofiná. A escola de samba
do bairro do Jurunas estava se reerguendo com a ajuda do empresário do jogo do bicho
e político João Bosco Moisés – responsável pela construção de sua atual sede – e
também sempre contou com o apoio da imprensa e da classe política e empresarial,
devido principalmente à apelação de ser a primeira escola de samba de Belém e uma
das mais antigas do Brasil, nesse ano de 1983 também não desfilou.
Já a escola de samba Embaixada do Império Pedreirense, também vivia uma
série de dificuldades financeiras e estruturais, mesmo assim desfilou no carnaval
de 1983 e acabou conquistando o terceiro lugar (OLIVEIRA, 2006). Outra escola
de samba que entrou nesse cenário no início da década de 1980 e que era apoiada
por um bicheiro, o sr. Waldir Fiock, foi a escola Acadêmicos da Pedreira, que teve
alguns momentos de glória até a saída desse seu principal apoiador na década de 2000,
ocasião em que esta foi enfraquecendo, passando a não mais desfilar, e atualmente,
vem tentando retornar ao cenário carnavalesco, enfrentando algumas resistências por
conta do regulamento em vigor. Naquele carnaval de 1983 a Acadêmicos da Pedreira
foi a vice- campeã (OLIVEIRA, 2006).
A escola Arco-Íris do bairro do Guamá, também apoiada por um bicheiro, ex-
-senador da República Mário Couto Filho, recém-fundada em 1982, estava com
todo fôlego, inclusive financeiro, levando para a avenida do samba da época, a Doca
de Souza Franco, os melhores sambistas de Belém e nomes consagrados do carnaval
carioca (OLIVEIRA, 2006). Nesse ano o samba-enredo Um grande Coração Chamado
Brasil de autoria do compositor Herivelto Martins e Silva “Vetinho”, um dos fundadores
da Arco-Íris, se tornou o samba mais tocado e o que mais vendeu exemplares em
toda a história do carnaval paraense com 54 mil cópias de discos (compacto vinil)
vendidas, segundo foi divulgado pela imprensa na época.
O luxo e a grandiosidade, que foram a grande marca da escola Arco-Íris, aque-
ceram o mercado carnavalesco em Belém na década de 1980. É interessante observar
129
que em 1983, ano de nascimento dessa escola e já se sagrando campeã, os sambistas
cariocas, devido às dificuldades financeiras que enfrentavam, pediamajuda aos governos
municipal e estadual para que pudessem colocar suas escolas na rua para desfilar.
Em 1984 foi inaugurado o sambódromo do Rio de Janeiro na Marquês de
Sapucaí, e foi criada a Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA) que
passou a administrar o espetáculo como um negócio. Assim, com a venda de in-
gressos, dos discos com os sambas-enredo das escolas, a negociação dos direitos
de transmissão do desfile, foi-se formatando, com o passar dos anos, um modelo de
carnaval autossustentável que teve como resultado um crescimento indescritível
(MARQUEIRO, 2011).
Belém não acompanhou esse crescimento do carnaval carioca. A partir da década
de 1990, com o fim da escola Arco-Íris, o carnaval paraense começou a perder força.
Poderia ter aproveitado a explosão que foi a Arco Íris e todo o contexto empresarial
e midiático que se desenvolveu na década de 1980, mas isso não aconteceu. Mesmo
com muitas dificuldades, as escolas de samba resistem com o apoio de sua comunidade
e conseguem se aprontar para o dia do desfile oficial.
Esse aprontar está intimamente relacionado com o capital de giro de uma escola de
samba, que tem como principal fonte o incentivo financeiro proveniente da Prefeitura e
do Governo do Estado, que além de ser insuficiente, quase sempre é disponibilizado às
vésperas do desfile e às vezes até após o desfile. As escolas arrecadam muito pouco em
suas quadras durante o ano. No que concerne ao carnaval, a indústria fonográfica
é inexistente. A mídia descrente. Poder público e privado quase ausentes. As escolas
longe de se tornarem uma unidade para lutarem com mais eficiência por melhorias
para o carnaval, buscam isoladamenteapoio financeiro para suprirem suas demandas.
A característica marcante dessa atividade cultural realizada em quase todo o país, é
que, além de ser uma grande festa, o carnaval abre muitas possibilidades de geração de
renda, pois, nesse período as agremiações contratam diversos serviços, como exemplo,
o dos sapateiros, que no caso de Belém, confeccionam entre mil a duas mil sapati-
lhas para cada agremiação (são oito só no grupo especial), além de escolas e blocos de
outras categorias. Outros serviços como das costureiras e bordadeiras na confecção de
fantasias, dos artesãos na preparação das alegorias, dos serralheiros na construção das
estruturas dessas alegorias, dos carpinteiros, dos pintores, entre outros profissionais
que criam uma cadeia produtiva que se entrelaça, pois
130
excelência – o desfile das escolas de samba, principalmente as
do Grupo Especial – possui um grande potencial de deman-
da sobre a indústria fornecedora de materiais típicos para a
construção de carros alegóricos, tais como plástico, ferragens,
isopor, tecidos, tintas etc., e para a confecção de fantasias e
adereços, assim como é importante gerador de oportunidades de
empregos, contratando serviços de diferentes especialidades, tais
como modeladores, costureiras, marceneiros, coreógrafos, entre
outros, para sua produção (PRESTES FILHO et al., 2011,
p. 8-9).
131
porta-bandeira, porta-estandarte (uma peculiaridade do carnaval de Belém), inte-
grantes da bateria, ala das baianas etc.
Uma fantasia é composta por chapéu (item obrigatório), que podeter sua base de
papelão, EVA, arames, acetato, entre outros e de ser devárias formas; de resplendor
(uma armação de ferro decorada que vai nas costas do brincante) é opcional, depende
do que o carnavalesco pensou para aquela fantasia, bem como, da situação financeira
da escola; a roupa propriamente dita, onde há uma mistura de tecidos com diversos
materiais, como plumas, fitas, e outros artigos decorativos. Os pés deverão estar
calçados, são sapatilhas, sapatos, botas etc. É importante registrar que cada ala deverá
usar o mesmo tipo de fantasia, incluindo o sapato, com o intuito de manter a estética
e a uniformidade, que será julgada sob a denominação de conjunto.
As fantasias dos quesitos como comissão de frente, mestre-sala e porta-bandeira
e porta-estandarte, por serem únicas, são confeccionadas com materiais mais sofisti-
cados e caros do que as alas.
O ensaio é primordial para que a escola afine seus instrumentos juntamente com
a voz dos cantores, para que ambos desfilem em uma harmoniosa cadência, levando
todos os brincantes a se envolverem na magia do carnaval. A comissão de frente, o
mestre-sala e a porta-bandeira, o porta-estandarte, as baianas, a bateria e demais
componentes da escola também ensaiam durante o período que antecede o carnaval.
É importante salientar que a quadra da escola deverá estar equipada com som;
deverá contratar os serviços de carro som, para os ensaios de rua, que propor-
cionarão aos componentes da escola, que ensaiem em locomoção com o intuito
de simularem um desfile, organizando sua evolução, harmonia, conjunto etc. Há
também, a confecção de camisas padronizadas para integrantes da “harmonia, chefes
de ala e amigos” das escolas, além da alimentação dos trabalhadores do barracão.
A cadeia produtiva do carnaval envolve muita gente, profissionais de várias
áreas e sua comunidade. Segundo Prestes Filho et al. (2009, p. 28), “a era romântica
ficou para trás. Os barracões das escolas de samba funcionam hoje como linha de
produção de uma moderna fábrica”, por isso a necessidade de profissionais espe-
cializados. “Não há mais espaço para amadorismo e improviso” (PRESTES FILHO
et al., 2009, p. 28).
Abaixo nos Quadros de 1 a 5 há um demonstrativo – baseado na Escola de
Samba Bole-Bole – das despesas necessárias para que as escolas participemdo desfile
oficial, tendo a seguinte sequência: alegorias, alas e quesitos, ensaios de quadra e de
132
rua, pagamento de pessoal, entre outras. Não serão informados valores em reais, e
sim em forma de percentual, que cada item representa no valor total que a escola
arrecada.
Quadro 1 – Descrição e percentual de despesa com a construção e decoração das alegorias
Item %
Serviços de serralheria
Serviços de mecânica dos carros
Serviços de borracharia
Serviços de marcenaria
Varas de ferro diversas
Madeiras diversas
Pregos diversos
Papelão
Tecidos (TNT, esponjado, cetim, lurex etc.)
20
Placas de acetato
Aluguel de barracão
133
Quadro 3 – Descrição e percentual de despesas com ensaios de quadra e de rua
Item %
Som
Carro Som
5
Banner e Panfletos com a letra do samba
134
deslumbramento frequente de turistas” (PRESTES FILHO et al., 2009, p. 28- 29), bem
como para atender aos interesses públicos dos órgãos arrecadadores de impostos, dos
empresários que lucram com a prestação de serviços nessa épocave da própria escola
que precisa manter-se entre os primeiros lugares, a fim de resguardar seu espaço.
Como demonstrado até aqui, é possível visualizar a imensa complexidade para
que uma escola de samba consiga chegar pronta e completa na avenida. Para isso
ela passa por vários processos, os quais iniciam com a ideia e com o nascimento
do enredo; depois vem samba; muito ensaio (comissão de frente, mestre-sala e
porta-bandeira, porta-estandarte, bateria, baianas etc.); muito papel riscado até que os
desenhos das fantasias e das alegorias estejam prontos; aí vem os protótipos; ferragens,
tecidos diversos e outros materiais, para que então uma escola desfile na avenida do
samba. Por trás de tudo isso, tem uma grande equipetrabalhando, contratação de som
de quadra e de rua, materiais de reposição dos instrumentos da bateria, enfim uma
cadeia humana e mercadológica sendo fomentada a todo momento.
135
no qual a comunidade se sente dona daquele universo, protegendo e protegida por ele.
Ainda segundo essa autora, uma das características da comunidade ou desse superor-
ganismo, é resistir ao que vem de fora dela, ao que lhe é estranho.
Carneiro (2011), em pesquisa realizada na Escola de Samba da Mangueira, des-
taca a delimitada fronteira entre a comunidade e a sociedade, entre o nós e o eles, ou
seja, entre as pessoas da comunidade com as de fora, denominadas de sociedade.
Ressalta ainda a autora que para não perder força, a comunidade não se isenta em se
autoafirmar como patrimônio cultural, demarcando seu lugar e sua importância
para a perpetuação de sua escola de samba.
Desta forma, a relação entre comunidade e sociedade, mediada pela escolade sam-
ba, mais especificamente pelo mundo do samba, como assinala Tramonte (2007), se
estabelece por meio de alguns fenômenos, os quais só poderão ser compreendidos
se houver o entendimento de que sua ocorrência não se dá isoladamente ou des-
conectada, há uma inter-relação formando uma redecontraditória, a qual imbrica-se
mutuamente. Tramonte (2007, s.p.) ressalta que a“configuração do Mundo do Samba,
bem como o papel mediador nos processos pedagógicos cumpridos pela escola de
samba, delineará suas características conforme o momento histórico e o contexto
social em que se inserem”.
Para Tramonte (2007), há um aspecto pedagógico bem delineado que busca
estabelecer essa convivência e consolidar a base comunitária como garantia da manu-
tenção das raízes e perpetuação da agremiação. Aprender a tocar uminstrumento,
dançar, representar, cantar, compor, desenhar, cortar, costurar, colar, transformar,
criar, sonhar, se relacionar, se entregar para viver e aprender, são processos vivos na
escola de samba e que congregam as pessoas fortalecendoos laços identitários delas com
a escola de samba a que pertencem. E isso tudo é muito vivo na Bole-Bole.
Ao ler e analisar os enredos e sambas-enredo da Bole-Bole, verifica-se uma
preocupação desta escola em construir uma identidade com o seu bairro. O Guamá
com sua diversidade, suas peculiaridades, seus problemas, suas inúmeras possibilidades
e movimentos de cultura popular etc., é frequentemente cantado no carnaval da
escola, ou seja, suas características viram enredo e samba-enredo (GORDO, 2015).
Abaixo segue o samba-enredo de 1999 composto por Dio, Magé e Ademir do
Cavaco – foi a única vez que houve concurso de samba na Bole-Bole, pois esta escola
possui seu compositor, Vetinho (também compositor dos três primeiros sambas da
escola Arco-Íris), que desde sua fundação compôs todos os sambas da escola, com
exceção deste. Algumas vezes estabelecendo parcerias – enredo idealizado por Vetinho A
136
Fantasia de um Guamá Feliz e interpretado por Ademar Carneiro, que ilustra o objetivo
desta escola em seus sambas-enredo
Esse enredo tinha como ponto de partida o sonho dos guamaenses. Nesse sonho,
o Barão de Igarapé-Miri – nome de uma das principais avenidas existentesno bairro do
Guamá – reúne as mentes mais geniais, que estão se desenvolvendo na Universidade
Federal do Pará (UFPA), para desenvolver pesquisas em prolde mudanças propositi-
vas na área da educação, saúde, transporte, moradia, urbanização, trabalho, lazer, mas
sem se apartar do romantismo vivido em épocaspassadas, e sem esquecer de pedir as
bênçãos no terreiro de umbanda secular localizado na mesma rua que a Bole-Bole.
É também recorrente o apelo para que a UFPA, localizada neste bairro, às margens
do rio Guamá, volte sua atenção por meio de ações, nas mais diversificadasáreas, para mi-
nimizar problemas relacionados à educação, saúde, meio ambiente,urbanização entre
outros, por meio de suas tecnologias. A exposição dos problemas e das virtudes do
bairro é uma tentativa de atrair a atenção da classepolítica e empresarial. Os proble-
mas, para tentarem ser resolvidos e as virtudes, para que consigam incentivo, fomento
e políticas públicas para se expandirem.
Como no desfile de 2001, com o enredo O Sol nasce no Guamá, numa homenagem
ao radiante astro que rebenta todas as manhãs, despontando seusprimeiros raios no
Guamá, por ser o bairro que se situa mais a sul/leste na cidade de Belém, com samba
de Vetinho e interpretado por Ademar Carneiro
137
Na beira do rio, do rio Guamá. É a morada do sol nascente! É o
ninho do saber, é o oriente. Que Bole-Bole o coração de nossa
gente! É hora de realizar um sonho tão antigo: vencer os velhos
inimigos, miséria, poluição a degradar. Ciências, tecnologias sem
burocracia. É o anseio da comunidade. Ver a Universidade em
projetos de ação, em busca de uma solução. Fazer o Tucunduba
desaguar feliz, e resgatando a cultura da raiz. Ainda queremos ver:
o fim da guerra urbana, dessa luta desumana e o lixo reciclar. A
arte-consciência, a vida, pode transformar! E o samba em nova
cadência: no sirimbangu-ê, no carimboi-bumbá. O sol já vai
nascer, vem bolebolear! É pai d’égua o pop brega no Guamá.
Nesse enredo, crítico e apelativo, a Bole-Bole volta a evocar a UFPA para cui-
dar do bairro do Guamá – desburocratizando suas ações; tornando sua tecnologia
a serviço dos guamaenses, como a recuperação do rio Tucunduba que passa por
dentro da universidade e está com alto índice de poluição etc. –contribuindo para
que seus moradores tenham acesso à educação, aliando a arte a essas ações.
Mas o objetivo principal desses sambas é a construção de uma identidade com o
bairro, levar informação e aguçar a criticidade dos moradores do Guamá. Esse des-
pertar proposto pela Bole-Bole, tanto da universidade quanto da classe política e da
comunidade é mediado pelo samba, acompanhado pela bateria ecantado com vigor
por sua comunidade, pois reconhecer-se em determinado lugar está diretamente
ligado com sua identidade.
Outra função dos sambas-enredo da Bole-Bole (frutos de pesquisas de carnava-
lescos e compositores) tem sido de informar aos moradores mais jovense de lembrar
aos mais antigos, que o Guamá é o bairro da cidade de Belém comuma das maiores
diversidades de manifestações de cultura popular paraense: boi-bumbá, pássaro junino,
quadrilhas roceiras, grupos musicais de vários gêneros, procissões e festas religiosas,
terreiros de umbanda, entre outros.
Isto pode ser comprovado neste samba composto por Vetinho em 2002 que
homenageou o grupo musical Arraial do Pavulagem com o enredo A pavulagem do
meu povo, promovendo uma mistura rítmica, entre o batuque do boi com o samba
e outros ritmos regionais. O samba interpretado por Ademar Carneiro era assim,
138
nosso jeito de brincar o carnaval. Bole-Bole num tambor de
couro! Xequerê num maracá de cuia! Reco-reco de bambú, uru-
cum na cara. Ficou pai d’égua esse banzeiro Paraoara! Será que é
retumbão, ou é bangu-ê, carimboi na rua, ou siriáa, ou siriáa!
Que esse samba de cacete tem magia. No arraial que é do sol,
no arraial que é da lua! Diz a tacacazeira: menino, é lindo meu
Guamá nessa folia! Veja o Arraial chegou e me arrastou! Venha,
esse banzeiro é um Paraoá de amor! Dança Boi Tinga, bicho
folharal. Axé? axi, meu cheiro é peixe regional! Meu rio é Rui,
é Tiritó, Lucindo, Baldez, Waldemar-açu!Tem boto no Sairé, no
Mexilhão do Icatu! Quem é jarana vai morar no sul.Hei, bole-boi,
bole-boi, bole-boi, bole-boi, bole-boi.
139
A Bole-Bole tem uma sede que é um dos raros espaços existentes no bairro,
onde comporta reunião de entidades, instituições, partidos políticos etc.; comando
médico; vacinação (de gente e de animais); festas religiosas, profanas eescolares, dentre
tantas outras atividades promovidas pela própria escola ou que seja de interesse de
sua comunidade.
Assinala Poubel (2012, p. 12) que “os moradores de uma mesma localidade têm na
escola de samba uma referência para a construção de identidades sociais, estabelecendo
discursos e práticas em comum”. Revela ainda Poubel (2012, p. 12) que “o fato de
pertencer a uma escola de samba de determinado bairro cria relações entre as pessoas,
atuando na construção de identidades e representações sociais que orientam as práticas
dos moradores dessas localidades”. Essa identidade e esse vínculo estabelecido com
a escola de samba cria uma relação de pertencimento.
Conclusão
Quando esforços foram unidos para compor este artigo, a missão foi fazer um
registro sobre o mercado carnavalesco em Belém tendo como referência os dados
financeiros da Escola de Samba Bole-Bole. Porém, não dá para reduzir essa escola às
questões financeiras, principalmente pela forte identidade e elo criados com sua co-
munidade, com o bairro do Guamá, com a passagem Pedreirinha, enfim, com todo
seu entorno. Por isso, economia, comunidade e identidade passaram a dialogar na
construção deste artigo.
Acredita-se que não cabe mais imitar o espetáculo promovido pelas escolas do Rio
de Janeiro, não tem recursos para isso, há que se repensar esse modelo e retomar
o compromisso por parte de todos os envolvidos com o carnaval deBelém – poder
público em todas as esferas, empresas, mídia e gestores das escolas de samba – em prol
de seu soerguimento para que as agremiações carnavalescas venham se fortalecer, se
tornarem autossustentáveis e continuarem gerando mais empregos e renda, dentro
da cadeia produtiva do carnaval.
Somado a isso tudo, as escolas necessitam contar com a viabilidade depolíticas
públicas por meio de projetos sociais que tragam mais recursos paraque consigam
140
se manter o ano inteiro interagindo com suas comunidades, melhorando a qualidade
de vida dessa população, além de se aprontarem para o desfile oficial de carnaval.
É importante ressaltar que uma escola de samba não se resume ao dia do desfile
oficial no carnaval, a avenida é palco para a evolução de ideias colocadas em prática
por pesquisadores, carnavalescos, ferreiros, carpinteiros, costureiros, coreógrafos, rit-
mistas, compositores etc., que desenvolvem tudo isso de forma artística, ordenada,
metódica e didática durante o ano todo.
Referências
141
(Mestrado em Ciências Sociais – Antropologia) - Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2012.
GALVÃO, W. N. Ao som do samba: uma leitura do carnaval carioca. São Paulo:Fun-
dação Perseu Abramo, 2009.
GONÇALVES, R. S. Os ranchos carnavalescos e o prestígio das ruas: territoriali-
dades e sociabilidades no carnaval carioca da primeira metade do século XX. Textos
escolhidos de cultura e arte populares. Rio de Janeiro, v.3, n. 1, p. 71-80, 2006.
GORDO, M. E. S. C. O carnaval é o quintal do amanhã: saberes e práticasedu-
cativas na escola de samba Bole-Bole em Belém do Pará. 2015. Tese. (Doutorado
em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2015.
MANZINI, Yaskara Donizeti. Pra tudo se acabar na quarta-feira: aproximações,diálo-
gos e estranhamentos entre carnaval e teatro nas performances da comissão de frente.
2012. 234f. Tese (Doutorado em Artes) - Universidade Estadual de Campinas,
Campinas-SP, 2012.
MARQUEIRO, P. A estatização das escolas de samba. Disponível em:http://
moglobo.globo.com/integra.asp?txtUrl=/opiniao/mat/2010/02/12/a- estatizacao-
-das-escolas-de-samba-915851511.asp. Acesso em: 10 jul. 2011.
MOTTA, J. F. A cultura do samba nas gaiolas da educação. 2003. 204f. Tese (Dou-
torado em Educação) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2003. OLIVEIRA, A. Carnaval paraense. Belém: SECULT, 2006.
PALHETA, C.; RODRIGUES, C. I. Do enredo ao desfile, a campeã do carnaval.
Revista Ensaio Geral, Belém, v. 2, n. 4, p. 47-56, ago./dez. 2010.
POUBEL, M. S. O bairro e a escola de samba: sociabilidade e pertencimento em
Vila Isabel (RJ). 2012. 104f. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropolo-
gia) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal doRio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2012.
PRESTES FILHO, L. C.; et al. Cadeia produtiva da economia do carnaval.Dis-
ponível em: http://www.gestaocultural.org.br/livrosonline.asp?page=cadeia-produtiva.
Acesso em: 06 ago. 2011.
RELATÓRIO DA ESCOLA DE SAMBA BOLE-BOLE. Dados financeiros. Belém:
Acervos da Escola, 2014.
TRAMONTE, C. Aspectos educativos do carnaval no Brasil: a pedagogia dasescolas
de samba. In: Os Urbanistas – Revista de Antropologia Urbana, a.4, v. 4, n. 6,
2007. Disponível em: http://www.osurbanitas.org/osurbanitas6/
Tramonte2007-c.html. Acesso em: 10 mar. 2014.
142
TRAMONTE, C. O samba conquista passagem: as estratégias e a ação educativa
das escolas de samba. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001.
VIEIRA, I. Declaração: vivências na Associação Carnavalesca Bole-Bole na década
de 1990. 2014. (Documento escrito em 2014 e publicado na tese de doutorado
de GORDO, M. E. S. C, 2015, p. 183-1850)
143
O PODER DA CULTURA COMO COMUNICAÇÃO
O MARKETING DA FLORESTA: A PROMESSA
PUBLICITÁRIA PARA AS POPULAÇÕES INDÍGENAS,
POPULAÇÕES TRADICIONAIS E NOVAS POPULAÇÕES
DO MUNDO GLOBAL NA AMAZÔNIA
Otacílio Amaral Filho45
Introdução
46 A ideia inicial é mostrar o objeto anunciado, a Amazônia, sua nomeação e o seu uso como iden-
tificação e pista principal para o consumo. E de forma complementar analisar a Amazônia como se fosse uma
marca, isto é, como um ativo das empresas, fazendo a distinção no jogo da concorrência dos produtos e serviços
como um elemento importante do sistema de capital na constituição do seu principal lugar de ação no mundo
global que é o mercado. Trabalha com pesquisa e orientação em comunicação e de forma mais específica em
publicidade, mídia, cultura e espetáculo. Publicou o livro, “Marca Amazônia: o marketing da floresta” (2016) e
organizou o livro “Espetáculos Culturais na Amazônia” (2018). Essa Marca é também uma promessa publicitária
que agrega um valor mercadológico a um grande número de produtos e serviços, cuja essência está na relação
entre a Amazônia real e uma Amazônia simbólica produzida com o objetivo de fidelizar consumidores globais
na contemporaneidade. A promessa publicitária se constitui na oferta de um imaginário povoado pelo natural,
145
Analisamos a promessa publicitária oferecida pela cultura do consumo, evi-
denciando o processo de midiatização das populações indígenas por meio do
documentário “Os guerreiros da floresta”, que mostra a experiência sustentável dos
Huni-Kuin no Acre, dos Paeter-Suruí em Rondônia, e dos Yanomami em Roraima
como forma de resistência na luta contra a invasão de suas terras. Evidencia-se o
processo de comunicação com base na visualidade e visibilidade que possibilita a
apresentação da cultura destas populações de forma espetacularizada, conduzida
pelo discurso da sustentabilidade que orienta, em boa medida, o ativismo ambiental
e as novas sociabilidades nos espaços midiatizados.
De forma objetiva dois discursos se sobressaem nesta disputa, no caso da
devastação da floresta, o discurso do aquecimento global que estende sua ampli-
tude para a discussão da ciência entre os analistas dos problemas do clima global
relacionados a floresta e os céticos que entendem que o aquecimento global não
é afetado pela devastação da floresta. O segundo discurso é um discurso voltado
para a ocupação da Amazônia como um lugar ideal para se viver e como lugar
obrigatório da panaceia do desenvolvimento sustentável, na promessa publicitária
que tem origem do marketing de negócios que impulsiona o mercado de produtos
da cultura e do turismo.Podemos dividir o debate discursivo entre o conhecimento
produzido pela ciência e os saberes nas práticas das populações tradicionais, nos
mais diferentes cantos da Amazônia, movendo os interesses do mercado financeiro
na exploração da cultura amazônica e dos seus produtos.
Neste artigo vamos discutir a panaceia do desenvolvimento sustentável como
categoria empírica que constitui o conceito de floresta e da luta das populações
indígenas pela sua manutenção, e de forma mais específica a experiência susten-
tável dos Huni-Kuin no Acre, dos Paeter-Suruí em Rondônia e dos Yanomami
em Roraima como uma promessa publicitária. O objeto central desta resistência dos
povos indígenas, é o lugar, na perspectiva de pertencimento aliado a lógica indentitária e
da imaginação, que constituem, de forma articulada, a economia social e a cultura destas
populações. Entende-se que a interseção dos modelos da natureza baseados no lugar e na
economia, permite um entendimento sobre as racionalidades produtivas que possibilitem
um contexto de referência mais amplo para situarmos o debate sobre sustentabilidade
cultural e ecológica como propõe Escobar (2005, p. 161).
a plenitude da natureza, ligada, portanto, à pureza e ao original, ordenada pelo desenvolvimento sustentável e pela
responsabilidade social como requisitos da racionalidade econômica do sistema de capital que é repassada aos
produtos como conteúdo e forma e se dirige para influenciar o comportamento do consumidor como indutor
para a conduta de compra (AMARAL FILHO, Otacílio, 2016). E-mail: otacilioamaralfilho@gmail.com.
146
Do lado da comunicação na sua forma operativa, na mediação como diálogo,
conflito e interpretação, constata-se a consolidação do vídeo-ativismo que possibilita
uma modificação importante no uso da linguagem audiovisual por um processo
de produção que trabalha com o jornalismo e a publicidade entre a linguagem
espetacular e a narração do fato entrelaçado com o modelo do anúncio publicitário
pela proposição da promessa publicitária. A promessa do mundo publicitário se
ordena pela lógica da verdade criada, ou que se pode criar como forma de persua-
são, pelo testemunhal, buscando o sentido arquetípico da imagem conceitual para
consolidar esta narrativa. Desta forma aproxima-se do jornalismo, para além do
acontecimento, pela narração do fato, e, pela perspectiva da vontade da verdade.
A hipsterização de Alter do Chão, é um bom exemplo da promessa publicitária
como lugar turístico, do “Caribe brasileiro”, ou de “paraíso amazônico”, da forma
que tratam o jornalismo e a publicidade pela nomeação do lugar e a sua oferta
para o consumo.
Esta discussão é potencializada e disseminada a partir da marca Amazônia, isto
é, a agregação do conceito da floresta a produtos e serviços para atrair os consu-
midores globais aproximando a produção capitalista ao conceito de natural pela
lógica do desenvolvimento sustentável e da responsabilidade social, estendendo
este conceito para a Amazônia como um valor simbólico não apenas para os pro-
dutos e serviços, mas ainda mais, para formas de vida sustentáveis e estilos de vida
globalizados incorporadas pelo ativismo ambiental e pela ordem mercadológica.
147
viralização como forma estético-política de controle das mídias digitais e sociais.
O predomínio da imagem, ao colocar o mundo nas telas, nos dá a dimensão da
quebra da invisibilidade de tal sorte que o imaginário e realidade se fundem no
virtual criando este ambiente-simulacro pela imagem. “É preciso ser visto para existir
e contar. [...] O invisível é o que é ocultado da vista, mistério e tabu.
Ao contrário da visibilidade há a opacidade, o oculto, o censurado, o proibido”
(BARUS-MICHEL, 2013, p.33-45). A viralização por outro lado tem dimensões
outras, mas que terminam convergindo para velhas questões da política de imagem
e da estetização dos discursos como forma de poder e controle, da informação e
da comunicação. A informação “passou a ser ouro puro” (Baitello, 2019, p. 66),
transforma-se em bem de consumo, político por excelência, mas vinculado a for-
mação de novas riquezass no mundo totalizante do capitalismo financeiro.
A crítica ao público alienado da televisão, principalmente, se reconstitui no
abraço circunferente da visualidade e da visibilidade, mais precisamente das tiranias
da visibilidade da sociedade das telas, na “ânsia de ver tudo”, ver tudo mesmo o que
não existe, o que existiu, o que poderia existir, “um mundo em que a realidade é
igual ao imaginário e constitui uma multiplicação extraordinária de poderes, uma
forma de onipotência enquanto aquele que está diante da tela imóvel” (BARUS-
-MICHEL, 2013, p.34-35).
O gesto com os dedos que se faz para mostrar ou apagar o mundo que se quer
ver. Explico, a primazia da imagem, não mais platônica como foi apresentada no
mito da caverna com a alegoria do mundo sensível, nem falsa como queria a reli-
gião, mas espetacular como nos pedem a visualidade e a visibilidade características
da contemporaneidade – a imagem na essência benjaminiana da reprodutibilidade
técnica. A captura da imagem pelo olho das câmeras e a disponibilização que a
tecnologia da composição criou se amplia também pelo lugar que é levado junto
e o valor de exposição; a tela e a apresentação.
O valor de exposição se amplia pela ação de um indivíduo espectador que pro-
duz, escolhe e compartilha a imagem, como forma de participação e engajamento
obrigatório no mundo da visibilidade. Uma espécie de performance que traz o
indivíduo e sua vida cotidiana para as telas. Nesse sentido o principal elemento
da teoria da visualidade e visibilidade é a viralização. O clicar deixa de ser uma
ação automática para se constituir como ação de concordância, discordância ou
distribuição quantitativa do acontecimento pelo processo de comunicação que
aciona a viralização da imagem, caracterizada por um ação aleatória nos ambientes
148
virtuais que muito mais que uma ação individual quantificada, passa a ser um modo
categórico do fato ou como conhecimento da cultura, no sentido classificatório do
que é reconhecido como valor. O sentido quantitativo é estatístico na origem, mas
transforma-se no centro da avaliação escondendo o sentido qualitativo e denotando
a perspectiva de afirmação valorativa do acontecimento, seja fato, foto, vídeo, Doc.,
clip, Stories. Como consequência, servirá como parâmetro de mercado que regula
do ponto de vista também financeiro, as redes sociais.
Na perspectiva da formação de imagens conceituais e mentais sobre determinados
temas, a viralização age como um gatilho para a definição destes conceitos e afetos e
emoções que passam a acompanhar a imagem para além da sua natureza intrínseca,
sua visualidade, para a sua natureza conotada. A relação entre falso e verdadeiro tem
como resultado uma escolha emocional afastando-se da vontade da verdade, ou mais,
instituindo-se como verdade. Acrescente-se a isso, o valor da distinção. Conquistar
um seguidor, um usuário, um colaborador, um apoiador passa a ter uma função
determinante na construção do discurso e na formação da imagem pública e política
de seus personagens. Assim a viralização tem de forma intrínseca o risco da imagem
falsa, da visibilidade negativa, mas afirma-se nesta possibilidade, de outra verdade
que se cria entre o acontecimento e a forma de apresentação.
Mas a viralização se forma em fluxo intrincado de possibilidades do aconte-
cimento que só pode ser entendido pela perspectiva do acaso como gatilho do
acontecimento por uma série de repetições e cópias que a reprodutibilidade técnica
permite e que em determinado momento algo é selecionado e viraliza. Por isso
mesmo, é possível influenciar a viralização criando fluxos de interesses de assuntos
e temas dos conteúdos pelas hashtags ou um algoritmo indicador de possibilidades
em que a realidade é conquistada.
O trabalho estratégico de publicização, em busca da visibilidade, assemelha-se
ao marketing tradicional, mas amplia-se pela precisão indicada por pesquisas ou
tendências do mercado. De forma direta, o uso dos algoritmos na constituição da
informação como dado, origina um conhecimento encadeado de possibilidades
sobre determinado fato, acontecimento ou do uso da informação por um processo
de controle direto de empresas e corporações e por uma outra dimensão produtiva
que explora o marketing e merchandising sociais.
O jogo das repercussões, táticas e de fluxos coincidentes na ordem de conteúdos
com potencial de viralização, se aperfeiçoam no marketing digital que hiper-realiza
as questões objetivas da imagem das instituições para poder se conectar com as
149
perspectivas subjetivas da visibilidade que poderão influenciar o consumidor naquele
momento. Uma linha-do-tempo se forma, dando ao acontecimento, como um fluxo,
a probabilidade de tornar-se verdade por este recurso de conquista da realidade.
Na dimensão do público, no sentido político do seguidor ou apoiador ou do
consumidor ou do ativista, volta-se ao processo de alienação não pela maneira
passiva do comportamento massivo, mas pela concordância automática que exige
a tirania da visibilidade, sem o aval, vamos dizer assim, de certificação de quem
de direito no controle do discurso e da formação da imagem, uma vez que, as
corporações e o Estado cooptado pelo capitalismo financeiro controla os regras e
cria os algoritmos norteadores para o fortalecimento das teses e leis do mercado,
que no conjunto da obra reafirmam a violência sistêmica das exclusões próprias
do patriarcalismo e do colonialismo como formas atualizadas de exploração. Do
público massificado da televisão para o público idiotizado das redes sociais.
Umberto Eco, no discurso em que recebeu o título de doutor honoris causa na
Universidade de Turim, na Itália (2015), afirmou que as redes sociais dão o direito
à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois
de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. “O drama da internet é
que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”, acrescentou. Em que
pese o discurso reducionista sobre a internet, é importante nos voltarmos para o
valor da comunicação no sentido pós-disciplinar e relacional tanto na sua forma
de constituição da verdade quanto da sua negação. Provavelmente, aqui resida o
incômodo que as tiranias da visibilidade provocam por um processo dicotômico
paradoxal entre a verdade e sua forma de constituição que se está chamando hoje
de pós-verdade.
Mas queremos contrariar este princípio, da “legião de imbecis” pela oposição
dialética do engajamento, tanto social, quanto político no sentido da argumentação,
ou seja, a internet como um lugar do debate e da deliberação, ainda que preso ao
requisito fundador da visibilidade e seus ditames do indivíduo digital que vive
ligado no sentido do ambiente conectado. A perspectiva do jornalismo como ato
de socialidade deve apontar, pela apuração, o lugar e a natureza do fato na sua
essencialidade, para usar como exemplo. E a promessa publicitária se faz na criação
do mundo publicitário que termina por oferecer opções de engajamento social e
ambiental embutidos na linguagem dos anúncios, uma língua própria que oferece
parâmetros de diferenciação pelo comum, pelo conhecimento comum, estereotí-
pico, que constitui o seu discurso e que se torna útil na formação das socialidades
150
contemporâneas como forma, inclusive de enfrentamento aos modelos dominantes
do capitalismo financeiro.
Uma questão que aqui se impõe e que se reafirma, quando se trata das questões
das populações da amazônia, é a referência ao lugar, o lugar de pertencimento ao
considerarmos a identidade e o lugar de identificação se olharmos os vínculos que
se estabelecem na sociedade moderna, especialmente no confronto entre a visão
totalizante globalizada de desenraizamento e as questões de identidade, territoria-
lidade, autonomia política e visão de desenvolvimento das economias locais das
populações tradicionais e as novas populações.
Volto a argumentação de Escobar (2005, p. 133-168), sobre a defesa do lugar
a partir de uma ecologia política destas populações que se voltam para a relação
entre lugar, cultura e natureza. Na análise que fazemos se evidencia pelas lideranças
indígenas, Huni-Kuin, Paeter-Suruí e Yanonami, apresentadas no documentário, a
força do lugar como centro desta ecologia da vida, considerando a cultura própria
e a relação com o outro, por um posicionamento político claro que parte da visão
de sociedade e da natureza.
A promessa publicitária
151
O caso da mudança social da Vila de Alter do Chão, em Santarém, como ci-
tamos antes – de aldeia Borari e de uma vila ocupada por populações tradicionais
– para uma população que reune ativistas ambientais, ativistas naturais, turistas que
se alternam entre a população aumentada e a população flutuante que converge
para a Vila em datas específicas, como no período do espetáculo cultural do Sairé.
Há uma confluência de formas de vida, conduzidas por esta ecologia, como a hip-
sterização da vila de Alter do Chão ou da culinária amazônica invadindo o mundo
dos chefes e das disputas nos reality shows, e os espetáculos culturais da Amazônia
como o Boi de Parintins, o Sairé em Santarém, as Cirandas de Manacapuru, as
Tribos de Juruti, são paradigmáticos.
E no outro ambiente, que é o lugar da tradição, as novas economias indígenas
dos Paeter-Suruí, Yanomâmi e Huni-Kuni na Amazônia, enquadradas pelo desen-
volvimento sustentável e de forma mais específica no agronegócio e no comércio
de produtos pela internet, constitui a empiria que faremos uso para identificar
esta mudança que compõem a visualidade e visibilidades exploradas na promessa
publicitária pela linguagem espetacular. A promessa publicitária que discutimos
aqui, usa a espetacularização para mostrar a preservação da floresta amazônica,
de forma integrada, pelos atores sociais das populações indígenas e tradicionais e
as novas populações consumistas e de ativistas globais que formam esta ecologia
política do lugar e de suas novas identidades e identificações.
152
Esta empiria pode ser caracterizada pelo tipo de sociologia das emergências
como “zonas libertadas, como comunidades consensuais baseadas na participação
de todos os seus membros. Possuem uma natureza performativa, prefigurativa e
educativa” (SANTOS, 2019, p. 57) e tem sustentação numa ecologia dos saberes
que constituem este lugar, Amazônia. O que parece uma empiria extensa, na ver-
dade, é repetitiva na ordem da reprodutibilidade técnica e mostra a experiência
de publicização destes povos a partir da midiatização. A publicização nos leva a
promessa publicitária e a linguagem espetacular nos ambientes conectados. Não
funciona como a comprovação de um problema do ponto de vista metódico, mas
a formulação de um exemplo de comunicação como metodologia.
Partindo da informação que compõem os lugares da comunicação, podemos
ver que estes grupos são hostilizados de forma permanente pelos garimpeiros,
projetos de hidrelétricas e demarcação das terras, inclusive com ameaças de morte
as suas lideranças. O principal agressor a partir de 2019 é o governo de extrema
direita, que conduz as instituições ligadas ao meio ambiente e aos governos federal
e estaduais. O discurso oficial do governo federal é de agressão permanente às terras
indígenas, suas populações e sua cultura e à floresta.
Retomamos a questão fundamental, que está na tese da sustentabilidade para
estas comunidades, em contraponto ou em consonância com o desenvolvimento
sustentável pleiteado pelo capitalismo financeiro e pela promessa publicitária. A
manutenção de suas culturas está diretamente ligado a terra na concepção filosófica
que dá corpo ao mundo da vida destas populações, como um lugar de preservação,
acepção que conflita de forma direta com o capitalismo financeiro e a cultura
de consumo. A resultante desta relação paradoxal é o estado de violência que se
impõe, inclusive nas formas de adaptação destas culturas aos modos de produção
capitalista como forma de resistência e pós-resistência, como ocorre nos exemplos
aqui mostrados.
A ideia inicial é da volta ao saber. O saber, construído a partir da sua lógica
de formação e de sua potência coletiva que encontramos na cultura manifestada
como ação e como resposta no sentido da resistência na constituição fundamental
da emancipação. Aqui se forma a narrativa que constitui a cultura resultante de
ação e comportamento como “insurreição dos saberes dominados”, a que se refere
Foucault sobre o poder, requisitado pelo caráter local da crítica e que entendemos
como uma lógica que formou o ente na reação à violência sistêmica no processo
criativo da cultura, tanto do ponto de vida da existência, quanto da experiência
153
cotidiana. Para os povos indígenas “as costas desse céu que caiu no primeiro tempo
tornaram-se a floresta em que vivemos, o chão no qual pisamos. Por este motivo
chamamos a floresta wãro patarima masi, o velho céu...” (KOPENAWA, 2015,
p.195). É mais do que uma visão filosófica da terra. É o lugar da vida. É a realização
da promessa para estas populações.
O amálgama da cultura que se constrói na Amazônia e que queremos conceituar
como cultura amazônica nasce da resistência a violência instituída pela escravidão,
e que se constitui especialmente sobre o uso da floresta e de suas formas degrada-
das pela visão civilizatória do velho mundo. A forma-escravidão irá potencializar
e definir as instituições que a originaram e que se organizam de forma atualizada
no colonialismo, patriarcalismo e no capitalismo modernos. Do ponto de vista
metodológico, somos pressionados por um fio condutor que precisa partir da
empiria constituidora e formadora, como narrativa primordial na construção de
um pensamento que enfrente de forma crítica o modelo de conhecimento estabe-
lecido pela formas coloniais e pós-coloniais, para que de forma propositiva se possa
construir o conceito de cultura amazônica.
A cultura amazônica é ainda, um manguezal cultural de si mesma e do mundo.
“É uma cultura que tem produzido amplos e originais processos de conhecimento
no campo da medicina natural, de formas alternativas do trabalho, do amor, do
sonho, da camaradagem, da solidariedade, da compreensão do homem e da vida”
(PAES LOUREIRO, 2019, p. 110). As populações tradicionais se posicionaram
e se posicionam nas formas de aparente concordância por terem guardado estes
saberes ao longo do tempo. Paes Loureiro complementa ao afirmar que [...] ainda
se espera, por “reconhecimento e respeito como forma de saber e sentimento, não
apenas como matéria a ser consumida ou riqueza expropriada”.
São desafios de enfrentamento ao processo globalizador e mercadológico que
avança pelo mundo, o que faz com que tudo na Amazônica esteja em risco de desapa-
recer, “não mais destruído por mãos bárbaras de guerreiros conquistadores, mas como
consequência da racionalíssima decisão de ampliação mercadológica globalizadora,
acionada pelo grande capital e pela comunicação, [...] e pela “crônica ausência de
projetos políticos que sustentem sua diversidade”47. Mais uma vez o paradoxo da
floresta se evidencia, o consumo da floresta que a promessa publicitária oferece na
hipostasia de suas imagens. A floresta útil na sua diversidade e por seus produtos
e a floresta como imagem para ser consumida por todos, a floresta visível para o
consumo global.
47 Ibid., 2019, p. 111.
154
O material utilizado é o documentário disponibilizado no Youtube e no canal
Futura, “Guerreiros da Floresta”, realizado pela Santa Rita Filmes, com o relato
dos caciques Ninawa Inu Bakê, dos Huni-Kuin; Almir, dos Paeter-Suruí e David
Kopemawa, dos Yanomami. Versalo (2019) mostra que “o Brasil possui 8.467
produtoras independentes cadastradas na Ancine24, isto é, aptas à captação de
recursos – por meio de fomento direto ou indireto do Estado – para a realização
de produções audiovisuais.” O que nos leva a um universo disperso de produções,
diferente dos modelos dos meios regulados pela mensuração da audiência, para um
lugar difuso da cultura do audiovisual e de forma mais específica do merchandising
social impulsionado pelo ativismo ambiental e formas de vidas impulsionadas pela
promessa publicitária.
Na pesquisa OBITEL BRASIL 201948, dirigida por Maria Immacolata Vassallo
de Lopes, constatou-se que “o acesso dos brasileiros à internet segue em ascensão,
como temos apontado nos últimos anuários. De acordo com o IBGE2149, a conexão
via celular é a preferida de 94,6% dos usuários, e a pesquisa ainda aponta que 76,4%
desses acessos foram realizados para assistir a vídeos, programas, séries e filmes. O
país está em quarto lugar no ranking mundial de usuários de internet, atrás apenas
de EUA, Índia e China, respectivamente” (LOPES, 2019, p. 82).
A relação entre quantidade e qualidade assume um lugar de importância nesta
discussão, pois se vai encontrar um mega volume de dados disponíveis para a mine-
ração para filtros de qualidade, em detrimento da grande quantidade de arquivos
acionados não apenas por mecanismos de seleção mas, pela natureza direta da repro-
dutibilidade técnica no processo de viralização. Ao mesmo tempo que a visibilidade
permite a disponibilização, permite também a formação de um subterrâneo de
contrainformações, in-comunicações, sofismas, contrariando princípios científicos,
sociais e culturais e possibilitando a manipulação e repercussão de acontecimentos
outros, como se fossem verdadeiros e pelas notícias falsas.
No documentário Guerreiros da Floresta50, encontramos a forma direta do
discurso de resistência pela preservação da floresta e da cultura indígena pelo ca-
cique Ninawa Inu Huni- Kuin e Davi Kopenawa dos Yanomami e uma narrativa
48 Documento disponível em: https://icabrasil.org/2016/index.php/mediateca-reader/obitel-
-2019-modelos-de-distribuicao-da-televisao-por-internet-atores-tecnologias-estrategias.html. Acesso em 28
out. 2022.
49 Para mais informações, ver: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/pt/agencia-home.html. Acesso em
28 out. 2022.
50 Cf. <https://canaisglobo.globo.com/assistir/futura/guerreiros-da-floresta/v/7487407/> Acesso em
28 out. 2022.
155
de resistência pelo enfrentamento na forma da economia local trazida pelo cacique
Almir dos Paeter-Suruí. O documentário sintetiza uma proposição midiática em
textos curtos no início do vídeo: “Esta série conta a luta de três líderes indígenas,
reconhecidos pela ONU, mas perseguidos por fazendeiros e mineradores, eles são
ameaçados de morte por lutarem contra a invasão de seus territórios na Amazônia”.
E na sequência: “Seus povos têm a mesma luta, a preservação da cultura indígena,
somada à sustentabilidade da Amazônia”51.
A promessa publicitária está definida aqui. O lugar de reconhecimento destas
populações pelos fórum globais, no caso a ONU e o discurso da sustentabilidade
como estratégia dos mercados globais. Em que pese o discurso da sustentabilidade
buscado pelo ativismo ambiental e social o documentário parte do lugar de fala de
quem de direito, de quem pode dar crédito a promessa de um mundo, como um
gênero, cujo grau de existência condiciona-se a experiência, participação ou adesão
do receptor. Ao mesmo tempo, em que o vídeo, faz parte deste discurso ativista,
apresenta-se também como uma narrativa de resistência, na forma de realização,
pressupondo a livre fala dos atores sociais e como uma peça que fala por si só,
como metalinguagem.
O documentário divido em três histórias narra na perspectivas dos atores
indígenas como narradores da vida nas suas comunidades. O percurso linear da
narrativa permite chegarmos a cada uma das terras indígenas usando os rios e as
estradas, passando pelas cidades, construindo-se um percurso de entendimento
objetivo de cada história. A imagem central segue a narrativa mostrando os ambien-
tes da floresta passando por planos gerais dos lugares e detalhes das pessoas e dos
narradores. Não se tem outras falas senão a dos narradores guerreiros. A perspectiva
do guerreiro é quebrada pelo discurso de conciliação proposto por cada um deles,
pela preservação utópica da floresta.
Podemos pensar numa ação midiática que envolve os efeitos que a mídia
busca na ordem do acontecimento, o jornalismo e as mídias sociais e o mundo
publicitário oferecido pelas estratégias do marketing da floresta que amplia a ideia
51 Ibid., 2019.
156
de sustentabilidade na divulgação das economias locais e do consumo categorizado.
Por uma narrativa ampliada pela imagem realidade e imaginário e ficção se fundem
numa linguagem ágil da promessa publicitária. A fala das lideranças indígenas é
o fio condutor do documentário, dividido em três histórias, cada um contando a
história do seu povo na linguagem documental do vídeo acompanhando as imagens
auxiliares da narrativa. Recortamos as falas dos atores indígenas que representam
estas discusõe teóricas propostas até aqui. A trilha sonora busca a música tradicional,
no mesmo modelo estereotípico que a publicidade oferece sempre. Sons de sopro
e leve batuque buscando a identificação com os sons da floresta.
O primeiro guerreiro da floresta que o documentário traz, é o cacique Ninawa
Inu Baquê Huni-Kuin. Ele fala incialmente do nome de batismo do seringalista
que escravizou o seu povo, para afirmar o seu nome dado por seu avô e que ele
precisou de dois anos para tê-lo reconhecido, como nome social. Ninawa defende
a sustentabilidade de forma direta pela proteção da floresta e do seu povo, reconhe-
cendo ao mesmo tempo as populações caboclas que vivem no entorno e dependem
dos recursos florestais.
Fig. 1 - Imagem que abre a Narrativa do Cacique Ninawa Inu Baquê Huni-Kuin
Meu nome é Ninawa, nome que foi dado pelo meu avô
hoje tem 102 anos de existência e ele me deu esse nome em
157
homenagem ao avô dele que é de uma família de que vem
de líder e esse nominal ao nome que representa o homem da
floresta, né pode ser traduzido também como o pai da mata,
o chefe da floresta.
158
de Rio Branco vem pela município de Bujari Sena Madureira
Manoel Urbano Feijó Tarauacá chega até Cruzeiro do Sul e logo
que ela foi aberta indiretamente no estudo sobre a rima que
foi o primeiro estudo que foi feito de impacto socioambiental
dentro dos territórios indígenas ela afetou a terra indígena do
ralinho que atende namorando maquiar a terra indígena kaxi-
nawá a terra do campina a terra indígena colônia 27.
159
O documentário mostra na sequência a sua transfiguração espetacular de ho-
mem comum que iniciou a narrativa sobre o seu povo, para o líder Huni-Kuin,
trocando a roupa que vestia no início do vídeo, falando da mundaça do nome e dos
sobrenomes dados pelos seringueiros, José Carvalho Alberto Nunes, para o seu nome
social, Ninawa Inu Baquê Huni-Kuin, o primeiro indígena a conseguir no Brasil
este reconhecimento. Imagens feitas de cima mostram a floresta com detalhes para
as árvores, animais e a vida na aldeia Huni-Kuin. O proscesso de caracterização do
ator social se dá pela visualidade como forma espetacular da visibilidade. Não se dá
somente pela troca das vestes indígenas, mas pela transformação do protagonista,
a pintura, o cocá e a expressão. Um close do seu rosto, e a sua enunciação: Eu sou
Ninawa Huni- Kuin, eu sou um guerreiro da floresta.
O segundo guerreiro é Almir Surui que fala do projeto de 50 anos do seu povo,
mudando a orientação inicial que tinham de povo madereiro para o uso da tec-
nologia como ferramentas
de educação para a proteção da terra e para as agroflorestas. Ele começa afir-
mando: “o território Sete de Setembro do povo Suruí é uma das terras indígenas
mais que desmatou né imagina que eles que não lutam que não tem plano de
desenvolvimento para impedir isso.”
160
Terra sete de setembro é um das terras indígenas mais que des-
matou. Imagina que aqueles que não luta que não tem plano
de desenvolvimento para impedir todos nós somos responsáveis
pelos nossos trabalhos todos nós acreditamos que o nosso traba-
lho é importante para o mais moço todas nós acreditamos que
a gente pode contribuir para o bem comum de todos através
da nossa luta e através da nossa trabalho que acreditar no que
floresta tem papel importante para isso acontecer.
161
poderiam acreditar e ajudar e avançar na construção desse
plano 50 anos nossa missão é condenado e decidido pelo o
tempo eu espírito das florestas pelo espírito da natureza eu
tenho aprendido muito com isso que eu tento transformar
esse crítica sobre minha liderança sobre o ano que eu criei se
realmente tenta lidar com responsabilidade social ambiental e
econômico e tecnológico todo ferramentas que podem mover
o mundo que pode mover uma sociedade justo eu me sinto
cada vez mais responsável de fazer isso quando eu vejo terri-
tório isso está sendo destruído sendo entregue para as pessoas
que têm interesse de explorar o território meio ambiente de
maneira errada.
162
Hoje o povo indígena está preparado. Não é como antigamente
os antepassados meus liderança não tava preparado não sabia
nem falar reclamar nós homens das florestas florestas nós es-
tamos de olho mas não estamos esperando quem vai proteger
a nossa pulmão do mundo, somos nós.
Considerações finais
163
populações tradicionais que vivem no entorno, a partir do uso dos recursos da
floreta, associado a projetos agroflorestais, como é o caso do projeto de 50 anos
dos Paeter- Suruí. Formas de vida identitárias, processos de identificação, trafegam
na oferta da cultura de consumo conduzidos pela espetacularização como lingua-
gem, na sua natureza expressiva, processos de negociação e de sociabilidade nos
ambientes midiáticos, o bios virtual que Muniz Sodré apresenta, também como
lugar de mercado. A Amazônia da promessa publicitária, é uma Amazônia ideal, o
lugar do natural, de uma cultura da floresta e suas populações.
A cultura amazônica assimila a perspectiva de identidade no sentido da for-
mação clássica entre a violência colonial e pós-colonial e o patriarcalismo para se
oferecer na promessa publicitária, como cultura do consumo, introduzida pelo
capitalismo financeiro pela sustentabilidade e uma espécie de forma alternativa de
vida em consonância com a natureza e de forma mais direta com a floresta. Esta
identidade busca suas formas de identificação, requisitando as questões de lugar
como nos mostra Paes Loureiro no sentido de uma identidade amazônica, ao
mesmo tempo em que propõe uma identidade denegada, do caboclo e assimilada
das novas populações globais engajadas, como propõe Castro (2013), entre as
formas presumidas pelo imaginário como matriz da cultura da floresta, das águas
dos rios, e do seu povo.
Os guerreiros da floresta protagonizam via linguagem espetacular, como enun-
ciadores reais, a destruição da floresta, por uma perspectiva paradoxal mostrando
que a saída possível estar na sua preservação pelas mãos do mercado global, como
bem representa a fala do cacique Almir Suruí quando fala da plantação do café
para vender na Suíça. Por esta perspectivas transformam-se em ativistas ambientais
enfrentando madeireiros, garimpeiros, grileiros, autorizados pelo governo de extre-
ma direita que se instalou no Brasil em 2019, em um processo constante de defesa
de suas terras sofrendo constantes ameaças de morte, muitas efetivadas ao longo
do tempo, como é caso do cacique Paulinho Guajajara assassinado recentemente.
A posição dos líderes indígenas em defesa e proteção da florestas e dos seus
lugares, cultura, e identidades está na contramão do avanço das atividades preda-
doras como a mineração, a construção de hidrelétricas, estradas e do agronegócio
comprometendo a floresta e suas populações. Uma forma de entendimento que ao
mesmo tempo que se aproxima do ativismo ambiental global, como aparece na fala
de Ninawa Huni-Kuin e de Davi Kopenwa em defesa da terra, busca adequar-se
ao modelo do mercado capitalista da agrofloresta, na fala de Almir Suruí.
164
A forma comunicação aparece no audiovisual quando busca mostrar a vida
destas comunidades identificando as diferenças que se impõem pela cultura em
contraponto a sua midiatização, ao mesmo tempo que se aproxima de um discurso
descolonizado, pela via espetacular, como uma forma de diálogo possível, pela
informação como uma espécie de produto final, nestes espaços interconectados.
Referências
165
leiaarqueologia.files.wordpress.com/2017/08/davi_kopenawa___bruce_albert_
-_a_queda_do_c_u.pdf>. Acesso em: 28 out. 2022.
LOPES, M. I.V.; LEMOS, Ligia Prezia. Streaming no Brasil: tudo junto e
misturado.
Disponível em: < https://www.academia.edu/42061888>. Acesso em 28 out. 2022.
OBSERVATÓRIO IBERO-AMERICANO DA FICÇÃO TELEVISIVA - Mo-
delos de distribuição da televisão por internet: atores, tecnologias, estratégias.
Org. Maria Immacolata Vassallo de Lopes e Gui- llermo Orozco Gómez. -- Porto
Alegre: Sulina, 2019. Disponível em: <https://www.academia.edu/40651325/
Modelos_de_Distribui%C3%A7%C3%A3o_da_Televis%C3%A3o_por_Inter-
net_Atores_Tecnologias_Estrat%C3%A9giass>. Acesso em 28 out. 2022.
PAES LOUREIRO. Cultura amazônica hoje. Uma poética do imaginário revi-
sitada. Belém: Secult/PA, 2019.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo. A afirmação das
epistemologias do sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
SODRÉ, Muniz. A ciência do comum. Notas para o método comunicacional.
Petrópolis: Vozes, 2014.
166
A ARQUITETURA VERNACULAR E AS PAISAGENS
AMAZÔNIDAS: ASPECTOS CONSTRUTIVOS E
CULTURAIS E O HABITAR COMO POESIA
Vivian Soares52
Valdecir Júnior53
Introdução
167
evoluíram com o tempo, transformando-se em exemplos de arquitetura vernácula,
conhecida também como popular ou tradicional. Essas estruturas são adequadas
às limitações econômicas de cada região por serem simples, acessíveis e autôno-
mas, em sua maioria realizada pela pessoa que viverá nela, além da utilização de
materiais extraídos da natureza, portanto, com menos degradação, muito esforço
e habilidade. Uma arquitetura cheia de histórias, culturas e poesias de identidade
de um povo no seu habitar.
Pensar a arquitetura como processo social e cultural é uma maneira de com-
preender os entrelaços estabelecidos na construção vernacular, por isso, entender as
interfaces culturais é entender as relações organizacionais com o ambiente no qual
se está inserido. A partir de uma leitura histórica, busca-se neste artigo identificar as
relações sociais nos ambientes amazônicos (urbano e rural) e entender a poética do
habitar e compreender os processos sociais desenvolvidos a partir desse imaginário.
168
desencontro está numa sociedade que tem na sua estrutura de cultura a questão
do ter e encontrou uma cultura aqui voltada para o ser”, na qual resultou numa
sobreposição cultural dos europeus aos nativos da região, que representou uma
quebra na essência cultural.
A história indígena é um capítulo que foi negligenciado pela história social
da Amazônia, isto porque, embora houvesse uma resistência indígena aguerrida e
do conhecimento reunido da região, pouco se valorizou, mesmo com fauna, flora,
navegações, clima, agricultura e saberes alimentares transmitido por gerações. Ao
longo dos séculos de colonização os povos indígenas foram vistos, na perspectiva
dos colonizadores, como passivos, inferiores, pagãos, submissos e incultos criando
uma narrativa que visava a categorização, nomeação e classificação de culturas, ten-
do como base a cultura ocidental, na qual é entendida, supostamente, como uma
civilização culturalmente superior. Nesse contexto, ressalta-se que os procedimentos
de colonização portuguesa proporcionaram a formação de domínios coloniais, que
pela lógica mercantilista e também religiosa, acabaram determinando a subordi-
nação sociocultural, econômica e política do “Novo Mundo”, e pela natureza dos
processos de transformações intensos vividos pelos indígenas, os quais produziram
descontinuidades culturais e desterritorialização, dentre outros estorvos que foram
e depois de séculos continuam existindo na sociedade contemporânea
A repercussão desses fatos contribuíram para a transformação do espaço físico e
cultural das terras então colonizadas pelos portugueses, que embasaram sua cultura
ocidental numa cultura indígena existente na região, resultando em um processo
de hibridação que abrange diversas mesclas interculturais entre as etnias envolvidas
(negra, branca e indígena), apresentando uma prevalência cultural portuguesa,
devido à herança ideológica posta ao longo de cinco séculos de imposição cultural
(CANCLINI, 2000).
Países europeus, como França, Inglaterra, Holanda e Portugal, usaram de suas
arquiteturas para influenciar as construções de paisagens antrópicas nas cidades
amazônicas, muitas obras foram planejadas para as cidades europeias e reprodu-
zidas no norte do Brasil, até então colónia de Portugal. Tudo era pensado para
o colonizador europeu, assim como, vestimentas - inadequadas para o clima da
região -, habitações, plantações e planejamentos urbanos.
Nessa época, a arquitetura vernacular, como hoje é conhecida, dominava o local,
com respeito e sensibilidade às condições locais geográficas, como clima e vegetação,
e construções com elementos ofertados pela natureza e técnicas - diferentes em cada
169
região - passadas por gerações a gerações, e um expressionismo sentimental e de
aspectos identitário e culturais, ou seja, se cada região possui suas singularidades é
indubitável entender que questões tecnológicas, econômicas, históricas e ambien-
tais refletem essa arquitetura. Então, cabe-nos ressaltar que uma interpretação da
Amazônia realista diverge de uma percepção não homogênea e monótona a que
é associada, mas sim em suas diversas paisagens e posicionamento do homem em
meio ao espaço que ele ocupa nesta região voltada para a várzea, terra firme e os rios.
Ailton Krenak (2019) aborda em seu livro, “Ideias para adiar o fim do mun-
do” com certa ironia a forma que os brancos adotam para viver, abrindo mão da
liberdade de estar em contato e em harmonia com a natureza, respeitando-a como
mãe. “A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas
e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram
arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador
chamado humanidade” (KRENAK, 2019. p. 14).
Nesse trecho, o autor fala dos vínculos profundos que os indígenas têm com a
memória ancestrais e com as referências de identidade, diz que os povos indígenas
não se veem separados da natureza, mas a veem como sagrada, e isso dá sentido à
vida e prazer de viver. Por esse motivo, as montanhas, os rios e as árvores são tratadas
com todo respeito, como sendo divindades. Nessa troca de afeto com a natureza,
eles recebem e dão presentes entre si. Ainda mais, o autor diz que os antepassados
indígenas usaram a criatividade e a poesia para resistir à barbaridade da civilização,
à integração para entrar no “clube da humanidade”. Com isso, conseguiram adiar
o fim do mundo e preservar sua cultura.
170
isso, o desenvolvimento do exótico foi construído de forma avassaladora e que
até hoje sofremos consequências socioeconômicas dessa exotização, isso porque,
Segundo João de Jesus de Paes Loureiro (1995) a relação entre o olhar do natural
e o olhar do viajante para a Amazônia é processado de maneiras distintas, enquanto
o primeiro já constrói suas relações baseadas na preservação do espaço e da natureza,
e na interação de coexistência dos sujeitos com o meio, o segundo passa por um
processo de apreciação da imensidão da Amazônia, dos rios volumosos e cheios
de curvas em meio às planícies, às abundantes variedades de fauna e de flora que
misturam o verde e o azul a perder de vista na linha do horizonte.
Há diferenças na forma com que as vivências experienciadas na Amazônia
urbana e na Amazônia rural se apresentam socialmente, porém, há também uma
mutualidade na qual essas duas faces culturais amazônidas se interligam e se ex-
pressam. Culturalmente diversa, a Amazônia não se caracteriza por um espaço
homogêneo, seja por seu porte físico ou por suas características culturais. A diver-
sidade reinava e ainda reina na região, não somos um povo, somos diversos povos
que unidos formamos uma região culturalmente diversa.
171
a bacia hidrográfica do rio amazonas e sua floresta, como uma das maiores regiões
de biodiversidade do planeta e de maior bioma Brasileiro. Ademais, a Amazônia é
o lugar de diversidade tanto na fauna e na flora, como também de povos étnicos
existentes nesta região.
Os rios amazônicos possuem aspectos labirínticos e voluptuosos e que assu-
mem uma relevância fisiográfica, como também forte influência na vida cotidiana
dos naturais da região. Leandro Tocantins (2000, p. 78) sintetiza o controle das
águas sobre o modo de vida na Amazônia, quando afirma, “(...) onde a vida che-
ga a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos
destinos humanos”. Os rios fazem parte da paisagem, e também, de quem mora
a sua margens, cultivando a vida ali existente, de forma que o rio, apesar de ser
uma parcela da paisagem, ele é de grande importância, logo, sem ele haveria uma
lacuna existencial.
172
(que a Amazônia, que sempre se constituiu para os viajantes
e estudiosos um espaço delimitado de geografia e cultura),
tornou-se também uma extensão ilimitada às instigações do
imaginário. Por essa via prazerosa, o homem da Amazônia
percorre pacientemente as inúmeras curvas dos rios, ultra-
passando a solidão de suas várzeas pouco povoadas e plenas
de incontáveis tonalidades de verdes, da linha do horizonte
que parece confinar com o eterno, da grandeza que envolve o
espírito numa sensação de estar diante de algo sublime. (PAES
LOUREIRO, 1995, p. 59).
173
0). Para o poeta, o natural expõe o imaginário que compõe o social, que constrói
relações entre os indivíduos, e desses indivíduos se estabelece os rituais sociais,
“revelando a beleza escondida do mundo, a poesia alarga o círculo da imaginação,
linguagem e repercussão na cultura, ela torna, inclusive, uma época mais memorável
do que outra” (PAES LOUREIRO, 1995. p. 50).
DARDEL (2001) apud (HOLZER (2010) refere-se à paisagem como “a reação
das interações dos espaços telúricos, aéreos, aquáticos e o conrstruído.” Nesse senti-
do, compreende-se como paisagem todos os elementos geográficos que circundam
o ser humano, e apesar de apresentar a totalidade estética, apresenta também a
sentimental acessível aos sentidos humanos, possibilita a coexistência do indivíduo
e sua ligação com a terra produzindo uma paisagem com afetividade.
A cultura está presente na formação social de uma região, cuja poética está
presente no processo de continuidade cultural. A comunicação na Amazônia é
marcada por sua oralidade, transmitida entre gerações. Segundo Paes Loureiro
(1995) existem dois grandes espaços sociais na região, o urbano e o rural, marcados
por suas características próprias e independentes, mas que possuem na região arti-
culação mútua tendo assim reverberações culturais que os interligam e os mantêm
conectados.
A Amazônia é marcada por seu imaginário ribeirinho que ecoa para os espaços
urbanos, trazendo lendas e encantos, mitologias e histórias para dentro dos centros
urbanos, explicitando Belém e Manaus como as duas maiores metrópoles da região
norte. Para Paes Loureiro, essa poética “reflete predominantemente a relação do
homem com a natureza e se apresenta imersa numa atmosfera em que o imaginário
174
privilegia o sentido estético dessa realidade cultural.” (1995. p. 55). As relações
que nós, amazônidas, estabelecemos com o espaço urbano e com o espaço rural
possuem traços da cultura ribeirinha, pois a poética do espaço urbano se apresenta
na materialidade dos processos culturais cotidianos, como alimentação, transporte
e a relação com o ambiente e o que ele tem a oferecer. Essa materialidade também
aparece na forma estrutural das construções das quais abordaremos no próximo
tópico.
175
pela abundância dos rios e da floresta. (PAES LOUREIRO,
1995. p. 57).
Paes Loureiro cita a relação entre o indivíduo e a sua cultura, suas caracterís-
ticas, suas práticas sociais e as representações dessas práticas, como uma forma de
ligação do habitar na Amazônia com a arte, num viés poético de viver em sintonia
com o meio inserido numa cultura mergulhada na oralidade, a qual reflete pre-
dominante essa relação com a natureza e se apresenta imersa numa atmosfera em
que o imaginário prevalece em questão da estética.
Dessa forma, revela a beleza que se esconde nesse mundo, que alimenta o
pensamento de construir um lar no mundo, um microcosmo, em que os hábitos
dos ribeirinhos, sejam os culturais ou religiosos, invocam essa poesia no viver, a
paisagem cultural se torna um poema, intermediada pelo prazer em saudar a na-
tureza com esplendor, como uma forma de aperfeiçoar o ser, pois
176
prática, dentro da reciprocidade dinâmica constitutiva da di-
mensão social da cultura. É como entender a cultura como
sendo um processo de aperfeiçoamento [...]. A cultura vem
sendo considerada, desde a antiguidade clássica, como algo
que engloba diferentes ângulos de uma totalidade voltada
para preservação de bens materiais-imateriais, passando pelo
cultivar, pelo habitar e pelo cuidar. E o homem, através dessas
formas de relação com a realidade, se torna um doador de
sentido às coisas (PAES LOUREIRO. 1995. p 53).
177
Nessa visão, a totalidade dessa caracterização da pertença ao mundo ocorre
pelo auto reconhecimento do ser habitar e pelo sentimento de pertencimento e de
gratidão de um povo a essa região e suas experiências. E de como a natureza atua e
determina a vida dessas pessoas, e de onde tiram seu alimento e seu sustento para
viver. Outrossim, as culturas nacionais, em um discurso que moldam sentidos de
influência e organização das nossas ações, são compostos de símbolos e represen-
tações, além de ser instituições culturais, constroem uma essência de “nação”, no
qual, podemos nos identificar, e construir nossas identidades, a partir de nossas
origens e conhecimentos que nos agregam a um espaço. Como Stuart Hall afirma
em A identidade Cultural na Pós Modernidade (1992):
178
na interpretação, que transita entre homem e terra, que por sua vez estabelece
como horizonte, base e esclarecimento para a fundação de diferentes concepções
geográficas de mundo.
A essência do lugar está nas pessoas que ali habitam, suas histórias, formação
de uma cultura rica como muito a nos ensinar. As construções sustentáveis e efi-
cientes nos mostram que é possível construir sem destruir a natureza, construir
com consciência e ainda captar sentimentalismo, uma arquitetura sem arquitetos,
baseadas apenas em ensinamentos de pais para filhos, são gerações de técnicas e
conhecimentos e manuseio de materiais naturais e sustentáveis.
Considerações finais
179
e conviver com o ambiente de forma criativa e ao mesmo tempo comprometida
com a forma de viver.
Nesse artigo iniciarmos uma discussão sobre os aspectos construtivos e culturais
da arquitetura vernacular amazônida, visto que, buscaremos desenvolver em outros
artigos uma continuidade sobre os mesmos, apresentar demais panoramas e outras
proposições teóricas e conceituais e novas avaliações, interpretações e proposições
sobre esta questão.
Referências
180
MOREIRA, Ruy. Marxismo e geografia: a geograficidade e o diálogo das onto-
logias. GEOgrafia - Ano. 6 - NQ II – 2004.
PAES LOUREIRO, João de Jesus. Cultura amazônica: uma poética do imaginário.
Belém: Cejup/UFPA, 1995.
TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia,
edição 9, Editora Vale Editora 2000.
WERÁ, Kaká. A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por
um índio, publicado pela editora Petrópolis, 1998.
181
COMUNICAÇÃO, CULTURA, RESISTÊNCIA
QUILOMBOLA E TECNOLOGIA SOCIAL NO
DESENVOLVIMENTO LOCAL DA AMAZÔNIA
NEGRA MARUANENSE55
Lúcio Dias das Neves 56
Otacílio Amaral Filho57
Introdução
182
(2018.1), ao mesmo tempo em que atendeu o anseio dos pesquisadores que já
atuam nesta área ou em áreas correlacionada, por conseguinte, também despertou
um novo olhar em relação às diversas possibilidades no que diz respeito ao pedido
de proteção de patentes, de transferência de tecnologia e de propriedade intelectual,
como ativo de inovação tecnológica. Principalmente com a promulgação da Lei
Federal de Inovação: nº 13.243/2016; e a Lei Estadual de Inovação Tecnológica.
n.º 2333/2018, que também estimula o desenvolvimento de inovação tecnológica
no âmbito do território do Amapá.
Neste sentido, dentre as diversas possibilidades para atuação e estímulo ao
desenvolvimento científico à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica, e
à inovação, pensou-se como efetivamente as nossas pesquisas podem impactar
as demandas da sociedade amazônica, principalmente no que diz respeito as co-
munidades tradicionais amapaenses59 – que se encaixa na Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT),
partindo do pressuposto de que a inovação tornou-se uma necessidade para atender
a demanda globalizada, como um processo coletivo local, onde todos os envolvidos
estejam implicados com a causa.
Inicialmente sugeriu-se que a pesquisa analisaria apenas o ecossistema de ino-
vação amapaense, propriamente a Indicação Geográfica (IG), visto que o Amapá
pertence a um dos maiores biomas naturais e mais ricos do mundo, o bioma da
Amazônia. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio
(2017), destaca que:
183
de Santa Luzia do Maruanum, em Macapá, que é composto pelas comunidades
de Conceição, Torrão, Simião, São Raimundo, São José, Auto Pirativa, São Tomé,
Santa Maria, Fátima e Santa Luzia, essas comunidades mantêm profundas relações
histórico-culturais entre si. De acordo com o Portal G1 (2020), o estado do Amapá
possui uma população que ultrapassa 861,7 mil habitantes, sendo que aproximada-
mente 65% desta população se autodeclarou como preto/pardo (CENSO, 2010).
A comunidade é definida como uma identidade caboclo-ribeirinha organizada
em torno do Rio Maruanum, que é “um afluente do rio Matapi, o qual verte suas
águas no Amazonas, perto da foz, portanto, os dois rios Matapi e Maruanum estão
sujeitos às marés as quais influenciam todas as atividades” (COIROLO, 1991, p. 73).
Segundo o Portal do Governo do Amapá (2016), existem aproximadamente
200 comunidades quilombolas identificadas, sendo que 47 já foram certificadas
pela Fundação Palmares, outras quatro tituladas pelo Instituto Nacional de Colo-
nização e Reforma Agrária (INCRA) e outras 11 comunidades seguem no processo
de reconhecimento. Contudo, o estado do Amapá com toda a sua riqueza natural,
cultural, patrimonial e humana, não possui nenhum pedido de registro para IG
sobre os produtos/serviços produzidos em seu território. Sobre a relevância da IG,
entende-se que:
184
(IP) que se refere ao nome de um país, cidade ou região conhecido como centro
de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de
determinado serviço.
O quilombo do Maruanum é formado por pequenos agricultores e por mu-
lheres que produzem louças e cerâmicas para complementar a renda familiar. A
economia da Comunidade Santa Luzia do Maruanum é baseada na agricultura
com o cultivo de mandioca, abacaxi, banana e batata, além da criação de bovinos
e da produção artesanal de panelas, fogões, fogareiros, tigelas e bonequinhos de
barro. Também está presente no cotidiano desta comunidade as ladainhas, cânti-
cos, batuque e as rodas de marabaixo61, como forma de expressão e sociabilidade
da cultura afrobrasileira nos quilombolos do amapaenses, e que são apresentados
durante os eventos políticos, sociais e culturais e que estão associados aos santos e
calendários da igreja católica (louvores a Santíssima Trindade e ao Divino Espírito
Santo), conforme a figura abaixo que apresenta o Ciclo do Marabaixo62 e o Corte
do Mastro63.
185
Amaral Filho e Alves (p. 36, 2018) entendem essas manifestações culturais
como:
As Louceiras do
Maruanum e o Defesa de Dis-
Balneário
1 SILVA, E. C. G. turismo Cultural sertação - UNI- 2019
Camboriú
da Região Ama- VALI
zônica
Indicação de Pro- I Semana Ama-
cedência das Lou- paense de Ino-
NEVES, L. D.; SOA-
2 ças produzidas vação Tecno- Macapá 2019
RES, A. A. C.
no Quilombo do lógica (SAIT)
Maruanum/AP - Resumo
64 Este relatório técnico foi apresentado como trabalho de conclusão de curso do mestrado profissio-
nal em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação - PROFNIT/UNIFAP, no qual
considerou em seu diagnóstico propositivo que o processo e as técnicas tradicionais para a produção das louças
do Maruanum apresentavam características de IP, por desenvolver uma tecnologia tradicional única/singular na
região amazônica, e que (re)existe todo um ritual ancestral afrobrasileiro para retirada dessa matéria-prima na
natureza, do respeito ao solo, assim como, o respeito as divindades existentes na fauna e na flora, no processo de
seleção inicial sobre quem/quais louceiras estão aptas para este momento de coleta, à mística com a natureza, e
até mesmo a profundidade e localidade de onde essa argila é retirada, herdados das religiões de Matriz Africana
(NEVES, 2020).
186
N. Autor Titulo Editora/Revista Cidade Ano
187
N. Autor Titulo Editora/Revista Cidade Ano
Associação de
Mulheres Loucei-
ras do Maruanum
(ALOMA): tra- Revista Gestão
9 SANTOS, K. P. Fortaleza 2016
dição e economia em Análise
solidária no Ama-
pá-Amazônia-
-Brasil.
Cerâmica do Ma- B i b l i o t e c a
10 TYMEREMY, G. K. São Paulo 2015
ruanum SCRIBD
O Valor da Cul-
tura: estudo de
caso sobre a in-
serção da louça D i s s e r t a ç ã o
11 SILVANI, J. M. do Maruanum/ ( M e s t r a d o Rio de Janeiro 2012
AP no mercado e IPHAN)
a sua relação com
a preservação pa-
trimonial
Atividades e Tra-
dições dos Grupos R e p o s i t ó r i o
12. COIROLO, A. D. Belém 1991
Ceramistas do Museu Goeldi
Maruanum (AP)
188
Tecnologia social das louceiras do Maruanum e o PPGCOM/UFPA
65 Conforme ela gosta de ser chamada carinhosamente, para além dos laços familiares
66 Tese que se desenvolve a partir da linha 1 - Comunicação, Cultura e Socialidades na Amazônia, do
Programa de Pós- Graduação em Comunicação Cultura e Amazônia – PPGCOM/UFPA.
189
desenvolvimento local e regional, mas não possui sequer um pedido de indicação
geográfica registrado junto ao INPI.
A tecnologia social produzida pelas louceiras do Maruanum (Fig. 3) obedece
à função socioambiental da propriedade, pois a atividade cerâmica da produção
de louças de argila é baseada no cooperativismo, pois a área de onde é retirada a
aluvião beneficia todas as louceiras, que produzindo as peças garantem a geração
de renda que complementa o orçamento familiar – é importante destacar que a
retirada do barro ocorre em único momento a cada ano e geralmente se associa as
socialidades comunitárias , as rodas de marabaixo e a devoção religiosa da Santíssima
Trindade e o Divino Espírito Santo, como retratado nas pesquisas de Monteiro e
Amaral Filho (2018).
190
do Amapá - a partir da Secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia (SETEC/
AP)68. As secretarias são agências estratégicas governamentais para o fomento da
inovação tecnológica e da tecnologia social dentro das comunidades quilombolas
do estado do Amapá e dos quilombos urbanos e bairros pretos da capital Macapá,
e podem contribuir diretamente com as louceiras do Maruanum para a forma-
lização do primeiro pedido de IG junto ao INPI, pois existem algumas taxas e a
necessidade de consultoria, de assessoria técnica, uma vez que o pedido de IG só
pode ser realizado por associações, cooperativas e entidades representativas, e existe
um rito burocrático e especifico para cumprimento deste protocolo.
Conclui-se que a proposta era original por ser um tema inovador e que as
pesquisas sobre as tecnologias sociais na Amazônia amapaense ainda são recentes
e apresentam poucas produções, sendo que no estado do Amapá, ainda não existe
nenhum pedido de IG junto ao INPI.
Esta pesquisa teve como objetivo geral identificar de tecnologia social desen-
volvida através das louças/cerâmicas confecionadas pelas mulheres quilombolas
associadas e a possibilidade da ALOMA formalizar o pedido para o reconhecimento
da IP do artesanato produzido no Maruanum junto ao INPI. Destacaram-se dentre
os objetivos específicos:
68 Ainda não houve a formalização devido a Pandemia do Corona Vírus surgida no início de 2020.
69 O Questel Orbit é um sistema de busca e análise de informações contidas em patentes que provê
acesso a informações de publicações de patentes em mais de 90 países, com recursos avançados de visualização,
exportação e análises de grandes conjuntos de informações.
191
de estender a busca prospectiva para outras fontes, como o próprio site do INPI,
Periódicos da CAPES, SCOPUS, Google Acadêmico, Repositório da UFPA, da
UNIFAP, dentre outros.
A busca prospectiva sobre patentes que envolve louças se desenhou da seguin-
te forma: inicialmente com a palavra-chave “Barro” e após com a palavra-chave
“Cerâmica””, em ambas as pesquisas os dados encontrados não se aproximavam
do objeto de investigação. Visto que os resultados encontrados se aproximavam da
cerâmica da Construção Civil (azulejos, lajotas, métodos de combinação, dentre
outros). Mudou-se a palavra-chave para “Porcelanas” e ainda assim prospectou-se
derivados da pesquisa anterior. Neste sentido, acrescentou mais uma palavra na
busca e iniciou-se a pesquisa com “Porcelana de barro”, “Porcelanatos de barro” e
“Louças de barro”, Artesanato de barro”, onde o resultado ainda era apresentado
insuficiente ou com os mesmos resultados.
A prospeção sobre louças de barro no site do Orbit Questel resultou em ape-
nas um único pedido de patente destacado acima, neste sentido, se utilizou da
plataforma do INPI para que fosse possível prospectarmos novas possibilidades de
pedidos de IG, ao menos no Brasil.
Também serão analisadas as leis federal e estadual que dispõem sobre o Marco
Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, para identificação de como estas podem
amparar legalmente a possibilidade do reconhecimento e notoriedade através dos
saberes e tecnologias tradicionais existentes ou não na Comunidade Quilombola de
Santa Luzia do Maruanum, além da proposta do desenvolvimento da história-oral
para registro dos mais diversos processos comunicacionais e culturais, e sobre o
relacionamento da comunidade para preservação da biodiversidade amazônica local.
Foram utilizados os autores e pesquisadores da região norte para fundamentar
as manifestações culturais, a devoção à bandeira da Santíssima Trindade e a ban-
deira do Divino Espírito Santo, principalmente os autores e pesquisadores locais
que narram a história e a imersão sociocultural presente nas rodas de marabaixo, a
exemplo da pesquisadora Piedade (2013) e suas contribuições na obra “Batuques,
Folias e Ladainhas”, que versa sobre a cultura do quilombo do Cria-ú70 na Educação
(Lei 10.639/03)71 e o professor e historiador Alci Jackson (2014) que dedica suas
70 Nome de referência usado costumeiramente pelos primeiros moradores para a comunidade quilom-
bola do Curiaú devido as condições alagadas durante nove meses ao ano, que significava “Lugar bom para criar
o Ú” – o búfalo.
71 Que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas,
públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.
192
pesquisas sobre a cultura negra no Amapá, dentre outros. Além das contribuições
de Lilia (1992/1993) que versam sobre as teorias raciais no Brasil e o espetáculo
das raças; e do Vicente Salles que trás uma discussão sobre a negociação e conflitos,
a resistência negra no Brasil e que regionaliza a discussão sobre o negro no Pará.
A realização do levantamento histórico e sociocultural da comunidade do
Maruanum, bem como, da pesquisa bibliográfica e pesquisa de observação, foi
a opção metodológica inicial para investigação e análise dos dados obtidos, visto
que esta pesquisa não encerrou com a produção do relatório descritivo e analítico
demonstrado no mestrado profissional, uma vez que estes dados iniciais contribuí-
ram para a mudança, a melhora na prática da pesquisa, também gerou um novo
aprendizado no decorrer do processo, tanto a respeito da prática quanto a respeito
da investigação. Isto posto, torna-se necessário a realização de uma pesquisa-ação
que, por consequência, pode gerar diversas outras pesquisas, justamente por ser
classificada como informal e dialética (BRANDÃO, 1999).
Secundariamente (já no âmbito da tesse de doutoramento), utilizaremos a
pesquisa qualis-quanti e semiestruturadas, uma vez que o método qualitativo pode
sofrer influência do pesquisador, a exemplo da idade, sexo, etnia, renda familiar,
estado civil etc., além de que no método quantitativo se pode obter como resul-
tado índices numéricos que apontam as preferências comportamentos e diversas
outras ações dos indivíduos pertencentes ao grupo social do Maruanum (esse
pesquisa no lócus será realizada após a vacinação contra o COVID-19 e seguirá as
recomendações da Agencia de Vigilância Sanitária – prevista a partir de 2021.2).
Como o Marabaixo se manifesta através de diversas formas no cotidiano das
comunidades tradicionais do Amapá, utilizaremos o Ciclo do Marabaixo e a festa
de Santa Luzia, as quais se realizam na comunidade quilombola onde ocorre o
ritual da coleta do barro, ação comunitária realizada em um único dia do ano,
cuja comunidade (maruanum) é responsável pela produção das louças no decor-
rer do ano. Assim sendo, buscou-se registrar com fotos, áudios e audiovisual o
evento por ser o momento mais festivo e de interações sociais para a realização da
pesquisa etnográfica, além de possibilitar a análise da relação comunitária com a
biodiversidade amazônica. Acrescentam-se ainda a mística, os saberes e as exper-
tises ancestrais que são consideradas sagradas e que devem ser preservadas pelos
sacerdotes da comunidade (desafio da pesquisa para coleta e registro dos dados).
Devido o método da pesquisa ser informal e dialética do início ao final, os au-
diovisuais servirão também para catalogarmos e registrarmos através dos relatos de
193
experiência (oralidade) das pretas e dos pretos velhos da comunidade do Maruanum.
Nesse sentido, Amaral Filho afirma que esta é uma das funções da universidade:
72 Grupo de pesquisa cadastrado pela Pró-Reitoria de Pesquisa (ProPesq) do IFAP junto ao Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
194
e aprofundamento desta pesquisa, visto que a geopolítica do estado do Amapá é
extensa, possui diversas vias e estradas federais e estaduais em condições precárias,
assim, como o acesso limitado da internet, além de regiões remotas e extremas,
para visita, o que pressupõe investimentos financeiros.
Em consequência, a pesquisa terá uma abordagem qualitativa (MINAYO,
2001), pois se pretende trabalhar com o universo de significados, motivos, aspira-
ções, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacio-
nalização de variáveis. A pesquisa também será de natureza aplicada, pois objetiva
gerar conhecimentos para aplicação prática, dirigidos à solução de problemas
específicos, no que tange a obtenção da certificação de IG, amparada pelos Marco
Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação (nacional e estadual).
Quanto aos objetivos, serão exploratórios e descritivos. Segundo Gil (2007),
uma pesquisa exploratória proporciona maior familiaridade com o problema,
com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses. Associada a pesquisa
descritiva, pois exigirá do investigador uma série de informações sobre o que de-
sejará pesquisar. Esse tipo de estudo pretende descrever os fatos e fenômenos de
determinada realidade (TRIVIÑOS, 1987).
Quanto à técnica de levantamento de dados, a pesquisa trabalhará com as se-
guintes fontes de dados e informações: pesquisa bibliográfica, pesquisa documental,
pesquisa de campo e o estudo de caso (FONSECA, 2002, p. 32).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta proposta de pesquisa está em andamento, pois, devido a pandemia do
Coronavírus eclodida no início de 2020.1, as atividades de campo foram adiadas
para 2021, após o controle da curva de infectados/mortes, pois há a necessidade da
pesquisa de campo e pesquisa exploratória dentro das comunidades tradicionais/
povos da floresta, e com isso, preservar a vida e o ecossistema durante a coleta das
amostras.
Inicialmente foi pensado que a pesquisa aprovada na seleção do doutorado
intitulada “Das Louças as Rodas de Marabaixo: os processos comunicacionais no coti-
diano histórico e sociocultural da comunidade quilombola do Maruanum – Amapá”
permaneceria apenas na Comunidade do Maruanum. Mas, de acordo com as
orientações realizadas durante a disciplina Laboratório de Pesquisa73 (ministra-
73 A disciplina Laboratório de Pesquisa está associado ao grupo de pesquisa Laboratório de Mídia (LA-
BMÍDIA), sob a liderança do prof. Dr. Otacílio Amaral. Doutor em Desenvolvimento Sustentável do Trópico
Úmido (NAEA/UFPA) e Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo PósCom da Universidade
195
da pelo Prof. Orientador Dr. Otacílio Amaral), além dos autores e bibliografias
apresentados durante as disciplinas remotas em 2020.2, a pesquisa foi ampliada
e o novo lócus de pesquisa passou a ser o “(AFRO)Marketing dos produtos e festas
populares da Amazônia Negra Amapaense”. Por se entender que há necessidade de
ampliarmos o objeto de pesquisa para todo o estado do Amapá.
Deste modo, a pesquisa realizada no Maruanum irá compor um dos capítulos
da tese de doutoramento, pois a proposta para o reconhecimento da confecção das
louças/cerâmicas como tecnologia tradicional junto ao INPI ainda não foi realizado,
uma vez que a ALOMA necessita do apoio das secretarias dos governos estadual
e municipal, a saber: Secretaria de Tecnologia do Estado do Amapá – SETEC/AP
(apoiado na Lei Estadual nº. 2333/2018 que dispõe sobre a indução e incentivos ao
desenvolvimento do Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação) e o Instituto Munici-
pal de Promoção da Igualdade Racial – IMPROIR, para ao menos oferecer apoio,
assessoria e consultoria à associação, além de ajuda para pagamento das custas e
protocolos junto ao INPI (NEVES, 2020).
Referências
196
AMARAL FILHO, Otacílio. Marca Amazônia: o marketing da floresta. Editora
CRV, 1. ed. – Curitiba/PR, 2016.
BRANDÃO, C. R. (Org.). Pesquisa participante. 18. ed. São Paulo: Brasiliense,
1999.
BRASIL. Lei 10.639/03. Que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em 31
out. 2022.
BRASIL. Lei Federal de Inovação: nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016. Dis-
ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/
L13243.htm>. Acesso em 31 out. 2022.
BRASIL. Povos e comunidades tradicionais. Secretaria Especial do Desenvol-
vimento Social – Ministério da Cidadania. Disponível em: < http://mds.gov.
br/assuntos/seguranca-alimentar/direito-a-alimentacao/povos-e-comunidades-tra-
dicionais.>. Acesso em 31 out. 2022.
FIGUEIREDO, Fabiana. População do Amapá ultrapassou os 861,7 mil habi-
tantes, segundo estimativas do IBGE. Portal G1 Amapá. 2020. Disponível em:
<https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2020/08/27/populacao-do-amapa-ul-
trapassou-os-8617-mil-habitantes-segundo-estimativa-do-ibge.ghtml>. Acesso
em: 31 out. 2022.
FONSECA, J. J. S. Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UEC, 2002.
Apostila.
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
IBGE. Características Gerais da População, Censo Demográfico 2010 – Resul-
tados da Amostra.
INPI. Instrução Normativa 095/2018: estabelece as condições para o Registro
das Indicações Geográficas. Ministério da Industria, Comercio Exterior e Serviços,
2018.
LINO, Piedade Videira. Batuques, folias e ladainhas: a cultura do quilombo do
Cria-ú em Macapá e sua educação. Fortaleza: Edições UFC, 2013.
MAIORKI, Giovane José; DALLABRIDA, Valdir Roque. A indicação geográfica
de produtos: um estudo sobre sua contribuição econômica no desenvolvimento
territorial. INTERAÇÕES, v. 16, n. 1, p. 13-25, jan./jun. Campos Grande, 2015
197
MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis:
Vozes, 2001.
MONTEIRO, Ana Elvira Amaral Torres; AMARAL FILHO, Otacílio. Os espe-
táculos culturais da amazônia: o marabaixo chegou. In: Espetáculos culturais
na Amazônia/ Otacílio Amaral Filho, Regina de Fátima Mendonca Alves (org.)
- Curitiba: CRV, 2018.
NEVES, Lúcio Dias das. et al. Indicação de Procedência das Louças Produzidas
no Quilombo do Maruanum AP. Caderno de Prospecção - v.15, n. 2, Salvador:
UFBA, 2021.
NEVES, Lúcio Dias das. Indicações Geográficas do Amapá: mestria das louças
produzidas no quilombo do Maruanum. Relatório Técnico (Mestrado em Admi-
nistração) – Universidade Federal do Amapá, Programa de Pós-Graduação em
Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação Tecnológica.
Macapá, p. 136. 2020.
CHWARCZ, Lilia K. M. Homens de Ciência e a Raça dos Homens: Cientistas
Instituições e Teorias Raciais no Brasil de final de Século XIX. São Paulo, 1992.
Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Uni-
versidade de São Paulo.
198
ESPETÁCULO
E
RELIGIOSIDADE
199
PubliCIDADE DO CÍRIO DE NAZARÉ:
O NATAL DOS PARAENSES74
Luiz LZ Cezar Silva dos Santos75
200
mas às vezes tinha companheiros; deixava presentes nas meias
e nos sapatos, ao lado da lareira, da janela, da cama; vinha
caminhando, voando ou no lombo de um burro. (BOWLER,
2007, p. 28).
Fonte: Google
201
significados, sendo, portanto, essencialmente ambígua. A firma ainda que as
mascotes “tinham o papel inequívoco de aproximar produto/marca dos consumi-
dores, sendo, em muitos casos, portadoras de didatismo necessário aos pioneiros
em novos mercados”. No mundo moderno, a imagem da mascote Papai Noel ganha
uma presença e um realce maior no mundo dos negócios (empresas) e das marcas
(produtos e serviços).
Com o passar do tempo, o “Papai Noel”, mais que uma mascote natalina, se
transforma em um vendedor eficiente, pois, historicamente, a imagem vendedora
de Papai Noel sempre foi atraente para o comércio, principalmente, relacionada
ao consumismo. Historicamente, sua aparência continua a mesma: um velhinho
rechonchudo, de gorro na cabeça, barba branca e que carrega um saco cheio de
presentes. O Papai Noel ideal, segundo Bowler (2017, p. 134), “para as grutas ou
oficinas das lojas de departamentos é o descrito como um sujeito de meia-idade,
gordo, de cara vermelha e barbudo, que seja capaz de encantar as crianças e com
ficha limpa na polícia.”
Para Baudrillard, é a velha história do Papai Noel:
202
relação de gratificação pelos pais (mais precisamente pela mãe)
que caracterizara as relações da primeira infância. Esta relação
miraculosa, completada pelos fatos, interioriza-se em uma
crença que é o seu prolongamento ideal. (BAUDRILLARD,
1973, p. 176).
203
Essa força ideológica da Coca-Cola, conseguida por meio de uma constante
massificação publicitária, modelou também, de maneira direta, na mente das pes-
soas, o modo de o mundo ver Papai Noel como a imagem do “Bom Velhinho”.
Um exemplo perfeito da combinação magistral de uma imagem encantadora e ao
mesmo tempo mercenária, pois, nos anúncios, Papai Noel nunca forçava ninguém
a beber Coca-Cola, ainda que sua finalidade fosse sempre vendê-la.
204
Figura 4 – Anúncio Círio – Vivenda
205
Figura 5: Cartazes do Círio de Nazaré
206
Figura 6 – Anúncio do Círio da Y. Yamada
Não é à toa que o Círio de Nazaré é considerado uma das maiores festas reli-
giosas do mundo pois reúne em média cerca de dois milhões de pessoas durante
as festividades que tem como ápice a procissão realizada anualmente no segundo
domingo de outubro. O Círio é também, desde 2004, considerado como Patrimô-
nio Cultural Imaterial Brasileiro, por ação do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN). É também, desde 2013, Patrimônio Cultural Imaterial
da Humanidade, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO).
207
PubliCIDADE natalina e ciriana
208
Panetone (Figura 7) e na tarde do Círio temos o almoço com as comidas típicas da
região amazônica e o tradicional Pato no Tucupi.
209
Já as galinhas antes, durante e depois de botar os ovos fazem o maior estarda-
lhaço, gritam enlouquecidamente ao botar os ovos, tornando-se impossível não
saber o que está acontecendo. Por fim, os ovos da pata são maiores e mais nutri-
tivos que os das galinhas, mas, os ovos das galinhas fazem o maior sucesso afinal
a propaganda é a alma do negócio. Dentro das festividades do Círio de Nazaré, o
pato, historicamente, enquanto iguaria alimentar é a principal refeição do almoço,
ganha um significado como o “pato do Círio” (Figura 8), ave típica do almoço do
Natal dos paraenses.
210
Vale ressaltar que com o passar dos anos e a escassez de patos e os alto preços
cobrados na sua comercialização ao aproximar-se o Círio de Nazaré, outras duas
aves como produto alimentício começaram aos poucos a assumir o lugar do pato no
almoço do Círio (Figura 9), mesmo as pessoas continuem se referindo no almoço
ao o “pato no tucupi do Círio”.
211
Outra relação simbólica entre o Natal e o Círio que é usualmente utilizada pelo
comércio como forma de vender os produtos relacionados a cada festividade está
relacionado com a árvore e a estrela de Natal (Figura 10) e a vela do Círio de Nazaré.
Figura 10: Anúncio – CDL
212
ela consome através desta imagem, desta ficção, deste álibi – e em que acreditará
mesmo quando deixar de crer – é o jogo da miraculosa solicitude dos pais e as
cautelas que tomam para serem cúmplices da fábula.” (BAUDRILLARD, 1973,
p. 176). Portanto, segundo a lógica comercial do Natal e sua principal mascote-
-vendedora, o Papai Noel, não podem ser negadas, como nos afirma Baudrilard:
Considerações finais
Como o exemplo dessa questão, no Brasil de uns tempos para cá, surgiu uma
crítica que é feita sobre a imagem americanizada do “bom velhinho”, na qual Pa-
pai Noel aparece sempre com elementos típicos da cultura e do clima de inverno
americano, até mesmo quando é para vender o “Natal” em pleno calor amazônico.
Contudo, mesmo com o passar dos anos, as mensagens publicitárias referentes ao
Natal permanecem as mesmas no mercado paraense, a única diferença é que nos
rios da Amazônia, Papai Noel troca o trenó pelo barco, como podemos observar
pela imagem do Papai Noel que se utiliza de uma embarcação para distribuir pre-
sentes aos ribeirinhos do entorno da cidade de Belém/PA (Figura 11). O sugestivo
nome da embarcação apresenta a simbologia da marca de fórmula 1 dos carros da
McLaren aliada ao nome da Ilha do Combú, localizada em frente da cidade de
Belém, apenas 5 minutos de travessia, local de lazer dos belemenses e de turistas,
com diversos restaurantes sobre palafitas.
213
Figura 11: Papai Noel Ribeirinho78.
Com relação ao Círio de Nazaré, festa religiosa que acontece na cidade de Belém
do Pará há mais de três séculos, ela traz consigo traços característicos de muitas
outras festas religiosas que acontecem de norte a sul do Brasil. Contudo, à medida
que a festividade, as procissões e o culto à Santa começaram a ganhar notoriedade,
os rituais do Círio trataram de incorporar, na sua realização, características locais
(paraenses) e regionais (amazônicas). Assim, a festividade do Círio de Nazaré nos
proporciona também descortinar um pouco a cidade de Belém como um lugar de
publicização religiosa e suas interações midiáticas durante as festividades do pe-
ríodo e que nos remete para a representação imagética (publicitariamente falando)
de Nossa Senhora de Nazaré como a “mascote”, como a principal personagem de
toda a festividade nazarena, por ser a marca simbólica mais forte de todo o Círio
de Nazaré.
Como podemos observar mais do que a coincidência de N-A-T-A-L e do C-Í-
-R-I-O serem duas palavras formadas por cinco letras, são também duas festividades
religiosas ligadas ao catolicismo mesmo sofrendo as intervenções sociais, culturais
e políticas e econômicas dos tempos. Sendo assim, tanto a atividade publicitária
214
como a da propaganda, uma das características que lhes são marcantes é a utilização,
na comunicação comercial, de seres imaginários, mitológicos e maravilhosos na
criação de marcas e mascotes. Estes seres são (re)utilizados como representações
“novas” de personagens mitológicos “antigos”, utilizados indiscriminadamente
para anunciar publicitariamente e vender mercadologicamente os mais diversos
produtos e serviços. Mitologicamente a publicidade se utiliza das centenas de
seres frutos das criações e das invenções humana, dos lendários, dos mitológicos,
dos extraterrestres, das lendas urbanas, dos seres tecnológicos e, por fim, de um
personagem conhecido mundialmente: Papai Noel.
Referências
ALLEN, Rick. A Fórmula Secreta. Trad. Ruy Jungmann. São Paulo: Objetiva,
1995.
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Ave Maria. 8º ed. São Paulo: Editora Ave-
-Maria, 2013.
215
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973.
BOWLER, Gerry. Papai Noel: uma biografia. São Paulo: Editora Planeta, 2007.
CEZAR, LZ. Sempre Coca-Cola: isso é que é sabor de modernidade. Belém, 2003.
MARK, Margaret; PEARSON, Carol S. O Herói e o fora-da-lei: como construir
marcas extraordinárias usando o poder dos arquétipos. São Paulo: Cultrix: Meio
& Mensagem, 2003.
PENDERGRAST, M. Por Deus, pela pátria e pela Coca-Cola: a história não
autorizada do maior dos refrigerantes e da com- panhia que o produz. Trad. Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993.
PEREZ, Clotilde. Mascotes: semiótica da vida imaginária. São Paulo: Cengage
Learning, 2011.
216
A FESTA DA CHIQUITA:
ESPAÇO DE COMUNICAÇÃO E RESISTÊNCIA
Introdução
217
bem como partilhá-los coletivamente e de formas diversas. A Festa da Chiquita
foi idealizada e criada pelo sociólogo carioca, Luís Bandeira, na década de 70, e a
partir de 1990, a festa passou a ser coordenada pelo artista Elói Iglesias, que propôs
uma mudança na dinâmica do movimento, tornando-o uma festividade voltada
para o público LGBT e “simpatizante”.
De acordo com o historiador Antônio Costa, a
218
região, como fator de inclusão e, nos últimos anos, tem atraído artistas, intelectuais
e a população em geral que assiste as apresentações realizadas na festa.
219
Tendo em vista que o espaço transita entre a linha tênue do proibido e do
permitido, as dinâmicas presentes na festa permitem atentar para alguns pontos
interessantes de análise. Ainda segundo Milton Ribeiro, essa “festa dentro da festa”
pode ser compreendida como resultado da afirmação política e das reivindicações
dos sujeitos homoeróticos que tomam a Praça da República após a passagem da
Trasladação na noite de sábado que antecede o Círio. De acordo com Ribeiro,
Comunicação e resistência
Por outro lado, um aspecto importante a ser analisado sobre a Festa da Chi-
quita, é buscar compreendê-la sob a perspectiva da comunicação e, sobretudo, da
comunicação de resistência. Nesse momento em que ideologias, valores e sensações
são partilhadas em coletivo e expressas sob diversas formas, nota-se na composição
da festa seu caráter de autoafirmação.
Maria Nazareth Ferreira, professora da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, no artigo “Comunicação, Resistência e Cidadania: As
festas populares” discorre sobre as festas populares como sistema de comunicação
das classes subalternas e fortalecimento da memória histórica e da resistência cul-
tural dessas classes. Segundo a autora,
83 Ibid, p. 209
220
As festas podem ser examinadas do ponto de vista da atividade lúdica, mas
também como um acontecimento aglutinador da realidade das comunidades
envolvidas, no sentido de avaliar seu potencial como formadora da cidadania, da
conscientização e da participação social, porque um dos elementos mais signifi-
cativos no processo de realização da festa é a transformação do indivíduo comum
em protagonista daquele evento. (FERREIRA, 2006, p. 111-112).
84 Ibid, p. 115
221
aspectos já mencionados e que não são contemplados pela celebração oficial do
Círio de Nazaré.
222
No Círio de Nazaré há um clima que dilui as barreiras e fron-
teiras entre o sagrado e o profano, entre o rico e o pobre,
entre o católico e os membros de outras denominações. E,
sobretudo, em ambas as dimensões se privilegiam o coletivo
e a convivialidade em oposição ao individualismo engendrado
pelas características urbanas. (FRUGOLI, R e BUENO, M.
S, 2014. p. 153).
223
na qual se criam momentos para a convivialidade e o com-
partilhamento festivo de seus valores. Se o sagrado propicia o
conforto espiritual ou psicológico da proteção e do auxílio da
Santa, o profano, através das manifestações festivas, promove
a participação coletiva que une e integra a comunidade. Tudo
vai permitir falar mais vigorosamente sobre as tradições e re-
-dinamizar as relações sociais e os valores comuns (FRUGOLI,
R e BUENO, M. S, 2014.p. 153).
Durante a festa da Chiquita, que costuma ocorrer até horas antes do Círio
de Nazaré, muitas premiações e disputas são feitas. Como os tradicionais prêmios
“Veado de Ouro”, “Botina de Ouro” e “Rainha do Círio”. Já o estilo musical varia
desde tecnobrega, ritmo de grande influência paraense, até o pop internacional, e
o público costuma lotar a Praça da República para ver toda a programação.
224
lado, empurra o indivíduo à figa, à evasão da realidade banal,
do cotidiano, para mergulhá-lo no momento mágico da festa,
que é também o momento do sagrado e do caos primordial.
Essa evasão é provocada pelas técnicas que constituem a parte
essencial da instituição festiva: o riso, o jogo, a dança, a música,
a alegria, o descontrole orgiástico, o dramático etc. De outro
lado, o clima festivo abre uma possibilidade psicológica e for-
nece uma carga de energia psíquica que permite ao indivíduo
enfrentar com vigor e independência criativa as batalhas do
cotidiano. (FERREIRA, 2006, p. 114).
225
Considerações finais
Referências
226
br/2014/08/pela-permanencia-da-festa-da-chiquita.html>. Acesso em: 31
out. 2022.
RIBEIRO, Milton. “Eu Sou a Filha da Chiquita Bacana...”. Notas antropológicas
sobre a Festa da Chiquita em Belém do Pará. Gênero na Amazônia, Belém, n.
6, jul./dez., 2014.
SOERENSEN, Claudina. A carnavalização e o riso segundo Mikhail Bakhtin.
Revista Travessias, edição XI, pp. 318-321, 2011. Disponível em: https://e-revista.
unioeste.br/index.php/travessias/article/view/4370 . Acesso em 05 nov. 2022.
227
SONORIDADES
AMAZÔNICAS
BIOINSTRUMENTOS: A CRIAÇÃO DOS RITMOS
AMAZÔNICOS A PARTIR DOS SONS DA FLORESTA
Nair Santos Lima85
Introdução
229
bioinstrumentos86 na música e da similaridade e sonoridade com os sons da floresta,
como o canto das aves, o rastejar dos répteis e o som dos igarapés apreendidos por
meio da sensibilidade e criatividade musical de seu idealizador87, a partir de suas
memórias no ambiente amazônico.
A noção de cultura amazônica presente nas obras de Paes Loureiro conforma
a experiência comunicativa e subjetiva na vida cotidiana do ser amazônico, e nos
permite conhecer o modo como essa cultura se evidencia no ambiente escolar e na
concepção artística do espectador, quando das apresentações da música regional.
Esse olhar contempla as práticas artístico-musical das experiências vivenciadas, “da
livre expansão do imaginário” (PAES LOUREIRO, 2015, p. 122). Essa percep-
ção esquadrinha o movimento, as nuances e os ritmos da poesia do imaginário88
amazônico, no qual os povos desse território fazem seus percursos, suas histórias,
seus lares, (re)criam seus ambientes e suas festas.
A ênfase do termo ‘cultura amazônica’ recai na cultura local, do lugar, “nascida
em tal contexto” amazônico. Esse ambiente irradia uma aura próxima do que con-
vencionou-se chamar de “culturas míticas ou das origens”. E é desse lugar “imaginal”
que o autor experiencia essa cultura e pontua sua estética. Na confluência desses
saberes originários, ressalta-se que há benefício dessa qualidade cultural amazônica
na produção artística por comportar “qualidades expressivas originais e significati-
vas, componentes de sua estrutura de conteúdo e expressão’’ (PAES LOUREIRO,
2015, p. 15). Os bioinstrumentos são objetos vindo da floresta (sementes, cuias,
ouriços etc.) e que foram introduzidos na música regional amazônica, a partir da
semelhança com os sons da natureza, como o cantar dos pássaros ou o som das
águas de um igarapé.
230
Metodologia
89 Diz-se do som dos frutos e sementes ao cair dentro d’água. Significa pescar com som. (Braga, s/d).
90 Chocalho feito de cabaça, coco, bastante usado pelos índios. Está presente em diversos rituais e no
folguedo do bumba-meu-boi do Maranhão.
231
No Raízes Caboclas, Celdo Braga passou a inserir sons da floresta em suas
composições musicais e a criar seus próprios instrumentos do recurso da floresta:
folhas, sementes, cuias etc., portanto, com conhecimento ancestral e musicalidade
orgânica. Nesse espaço-tempo a diversidade de peças aumentou e o acervo do poeta
já soma mais de 100 (cem) peças catalogadas91, de sua autoria e em parceria com
o percussionista do grupo musical Gaponga.
O trabalho catalogado conta ainda com uma caneta digital92 que faz a leitura
de cada imagem/peça e da sonoridade orgânica, como o som da água retirada da
canoa, do pisar nas folhas ao caminhar na mata ou o ruflar das asas de um pássaro
... um misto de sons numa poética imaginária amazônica.
Figura 1 – Catálogo de bioinstrumentos Gaponga/música orgânica
232
canção (...) O tempo daqui é manso, selvagem só no seu jeito,
rios negros, rios brancos, ora largos, ora estreitos / Quem na-
vega bem conhece a fundura dos seus leitos / e o rio de todas
as águas tem nascente no meu peito / Trago na mão calejada
lembrança do que plantei / no som de cada remada, os rios
que naveguei (...) (BRAGA, s/d).
233
vindos do sul do País, mas também daqueles que se aventuravam nos garimpos
de ouro da região.
Embora no período colonial e ainda no século XVIII a economia se sustentasse
da floresta93 e, posteriormente, no século XIX com a extração da borracha para
exportação, concebe-se que a Amazônia vive de seus ciclos, necessitando de tempo
para renovação de seu solo, revitalização da flora, reorganização de seus espaços e
reconhecimento de sua cultura em todas as suas fases, por que “nada está totalmente
organizado em compêndios na cultura amazônica” (LOUREIRO, 2001, p. 25).
Na perspectiva em que se configuram outras amazônias, dos territórios dos
povos indígenas e de seus saberes, suas crenças, da íntima relação com a natureza
e embora de uma cultura invisibilizada, mas resistente na travessia do tempo, o
poeta Celdo Braga produz sua arte: sons e poesia, música e artesanato, assim se
constroem os bioinstrumentos Gaponga – a sonoridade amazônica reproduzida
no papagaio moleira, na revoada de periquitos, tucano, pererecas, no sapo kambô
e muitos outros sons da floresta e dos rios, como a arraia estilizada em um instru-
mento de quatro cordas.
Dentre as composições musicais do grupo, os sons são em sua totalidade pro-
duzidos das sementes, cascas de árvores, cuias, resíduos de madeira e de material
descartado. São experiências imemoráveis de quem vive a região. Nesse acervo so-
noro encontram-se, por exemplo, duas metades de cuias ou semi cuias no formato
de seios femininos e que reproduz o som de chocalhos, um coco com um parafuso
e que com movimentos próprios imita o coaxar de um sapo “cururu”, também
de uma cuia com um balão em um dos lados se “extrai” o som de buzina de uma
embarcação cruzando os rios da Amazônia.
Corrobora com essa especificidade cabocla a filósofa Neiza Teixeira (apud Paes
Loureiro, 2015, p. 17): “Os povos aqui instalados possuem maneira diferenciada
de compreender o mundo. Os caboclos, mesclados até o âmago da cultura indí-
gena, criaram um olhar próprio” e, por meio desse olhar, Celdo Braga compôs
“Água Doce”, cuja sonoridade foi extraída da proteção do cacho da palmeira Inajá
transformada em tambor d’água, metáfora da poluição dos mananciais de água
doce – “um apelo pela revitalização dos igarapés” e da concepção ambiental do
projeto, segundo o compositor.
234
Do predomínio da população indígena e cabocla da região, da experiência
com a economia de subsistência, de seus lugares de vivência do estar-junto e dos
saberes acumulados por séculos constituíram-se dos fatores que permitiram que
a cultura cabocla94 resistisse e conferisse singularidade ímpar dentre as demais
culturas nacional. Embora no contexto político o termo caboclo(a) pareça por-
menorizar o amazônida, no cotidiano desses povos as limitações étnicas parece
indicar pertencimento.
Na literatura regional da Amazônia brasileira, vários são os autores que abordam
a cultura cabocla como cultura amazônica, e essa tendência ocorre tanto na música
quanto nas artes plásticas. Com efeito, o termo “caboclo” é bastante instável, visto
que, em determinadas circunstâncias se adequa, e em outras situações parece in-
comodar. De todo modo, na contemporaneidade, no contexto regional da cultura
amazônica, a palavra assume o significado “amigo” ou ainda, de “muito próximo”.
Loureiro (2015) sugere ampliar o conceito de cultura cabocla, a fim de ultrapassar
essas limitações, visto que o termo alude à identidade cabocla que não pode ser configu-
rada a um lugar preciso, uma vez que todo ponto humanizado no espaço amazônico é
seu” (GRENAND, 1990, p. 33 apud LOUREIRO, 2015, p. 49). E, portanto, desse
espaço amazônico de vivências compartilhadas, questiona Krenac (2019, p. 16):
235
Desse contexto, presume-se que a cultura amazônica floresce numa nova am-
biência, um novo ciclo consubstanciada pelo coletivo, pela comunidade, numa
nova forma de brotação de saberes, de consciência e “(...) onde ainda se constata
uma incessante produção de narrativas fabulosas na oralidade que caracteriza a
sociedade regional amazônica (PAES LOUREIRO, 2019, p. 1).
236
contendo pequenas peças desenvolvidas para o público infantil daquela instituição,
como: sapinhos, chocalhos, maracas e xeques, além de peças mais delicadas que as
crianças aprendem a guardá-las depois do uso. Tambores, como o de vara também
fazem parte do material produzido. Ressalta-se, porém, que nem todos os alunos
têm a mesma desenvoltura, mas o professor consegue perceber, por exemplo, no
próprio tempo de aprendizado que vai além da sala de aula, como nos treinos em
casa, em que o aluno acompanha a música selecionada “substituindo” o percus-
sionista. E essa dinâmica é percebida e registrada em vídeos que os pais fazem e
apresentam ao professor.
A suspensão das aulas pela pandemia desestimulou essa turma de alunos, os
quais não tiveram o resultado esperado, e, apesar do retorno das aulas presenciais,
a classe ficou reduzida. Entretanto, aqueles que continuaram a frequentar as aulas
concluíram a primeira etapa, a fim de galgar o nível seguinte, que é a aprendizagem
de um outro instrumento. Ao final desse período, o curso passou a ser disciplina
no currículo de Percussão do Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro, do estado
do Amazonas.
O projeto que envolve os bioinstrumentos abrange ainda as oficinas que ocor-
rem em alguns municípios amazonenses, nas quais os alunos aprendem a criar seus
próprios instrumentos, numa dimensão que aborda a concepção, a confecção e
a percepção da sonoridade de cada elemento. Entre teoria e prática, o município
de Silves (AM) formou o grupo “Sapopema” o qual reuniu no ano de 2021 um
número expressivo de espectadores em sua primeira apresentação no Teatro Ama-
zonas, em Manaus.
237
extrativismo florestal e em função do rio. Entretanto, muitos desses trabalhadores
tiveram que se adaptar à cultura do lugar onde foram inseridos e em um modo
de vida singular e de desafios causado principalmente pela dificuldade de retorno
às suas origens.
A percepção sobre aqueles que migraram para a Amazônia em épocas passa-
das pode ser compreendida pelo que Heidegger trata como ser–no–mundo95, a
partir da questão que norteia seu pensamento: como é Ser humano? (e não, o que
é Ser humano?) O mundo de que trata o filósofo é o não-cosmológico, mas o de
natureza dialética – política, econômica, sociológica etc., em que o ser é “lançado
no mundo” e, portanto, em uma vida inautêntica e angustiada, incompleta, que é
viver a vida em uma perspectiva ilusória, distanciado de suas potencialidades, das
experiências vitais, da existência humana.
A questão da inautenticidade referida não significa que a vida fosse menos,
de valor, tanto moral quanto ontologicamente, por exemplo, ou que haja uma
existência melhor. São antes, modos de existir e concebe-se como possibilidades
do ser-aí, de estar-no-mundo, uma vez que o Dasein na inautenticidade jamais se
encontra perdido. Nesse sentido, a Amazônia permeou a identidade desses migran-
tes e ela mesma torna-se inautêntica por sua incompletude de ciclos, renovável,
de uma “complexidade complexa”, tanto pela interrupção dos fluxos quanto pelas
interações (LUHMAN, 2010, p. 185).
Em meio a complexidade amazônica, busca-se conhecer o termo fundamentado
no pensamento de Morin, no qual sugere que o conhecimento pertinente deve
enfrentar a complexidade.
238
Desse convívio em outro ambiente, construiu-se uma densa relação com a
natureza: seus mistérios, o respeito pelo tempo e suas estações, do plantio à ceifa e
apreendeu-se uma dimensão estética que circunda seu imaginário “(...) buscando
desvendar os segredos de seu mundo, recorrendo dominantemente aos mitos e à
estetização” (PAES LOUREIRO, 2015, p. 48).
Na contemporaneidade, a Amazônia é também simbolismo e produto, referên-
cia sígnica e marca que se impôs na densa diversidade cultural, dentre as quais, na
música, na diversidade da artesania regional, nas festas, como também na criação
de bioinstrumentos, isto porque,
239
panamazônica percebida desde a chegada dos pioneiros da navegação além-mar
nesse território. Visões embaçadas e teorias divergentes foram construídas sobre
“a grande esfinge do nosso tempo”96.
Com efeito, a diversidade cultural amazônica é atualmente representada por
sua “marca”, produto com base em seu imaginário e dimensão estética, por seu
dinamismo cultural, porquanto é cíclica e diversificada. O amazônida, Djalma
Batista afirma que “A natureza amazônica não está suficientemente conhecida e
estudada. Considero, por isso, em primeira prioridade, a necessidade de incentivar
pesquisas científicas e tecnológicas, que venham a servir de orientação indispen-
sável” (BATISTA, p. 36, 2007)
96 Segundo Telles (2007, Orelha do livro); axioma no qual o acadêmico e professor Tenório Telles se
refere a Amazônia, em BATISTA, Djalma. O Complexo da Amazônia (2007).
240
por parâmetros socioeconômicos, e culturais publicizados em escala mundial pelo
campo da comunicação” (AMARAL FILHO, 2008, p. 16). Nesse contexto, os
bioinstrumentos “atravessam a experiência tradicional para se consolidarem ‘além’
– um pós-tradicional” (AMARAL; ALVES, 2018, p. 37).
Em processo de comercialização, os bioinstrumentos passaram a ser abriga-
dos, segundo Celdo Braga, em uma biblioteca internacional97 na perspectiva da
comercialização, aqui denominados de “rituais de consumo”, tal como uma ampla
variedade de produtos da cultura amazônica, como: objetos, peças de vestuário,
artesanato regional e local, souvenir, hospedagens, comida regional e outros. Os
rituais de consumo constituem-se de potenciais criativos e de possibilidades de
reinvenção, visto que no aspecto econômico essa maneira de produzir “(...) está
diretamente ligada ao trabalho da comunidade que o concebeu como manifestação
da cultura” (AMARAL FILHO, 2018, p. 235, grifo nosso).
Esse processo evoca à economia de mercado, cujos rituais de consumo são
dispostos para atender a uma complexa rede de produtos e serviços, mas também
como possibilidade que permite a comunidade reavaliar seus símbolos e significados
culturais estabelecidos entre si, e nessa ritualização, os bioinstrumentos se inserem
tanto pela memória sonora regional quanto por ressignificar a vida e a tradição de
dada localidade, além do que, potencializam a habilidade de Luthier, adequando
as relações sociais no âmbito da comunidade e do mercado.
MARCA AMAZÔNIA NO RITMO
Paes Loureiro (2010) sintetiza que a cultura amazônica é um manguezal cultural
de si mesma e do mundo. A cultura é criativa, complexa, rica de significados e nesse
terreno a arte se ramifica para todas as direções. São brotações recentes para as quais
os sentidos se aprimoram: olhar, tocar, sentir, pela estética dos bioinstrumentos.
Essa é também a proposta do poeta Celdo Braga – criar um ritmo amazônico,
que, segundo o poeta,
241
O lançamento da primeira música ao ritmo do Kambô98 ocorreu no dia 06 de
outubro de 2021, no palco do teatro Amazonas, acompanhado pela Orquestra de
Câmara do Amazonas - OCA, entretanto, esse repertório sonoro já influenciava
o erudito das canções de Cláudio Santoro conferindo uma identidade outra dessa
proposta musical. O poeta explica que o grupo costuma estudar os sons e ritmos
da floresta amazônica e que a composição Sapopema99 reúne esse nível de sons e
compasso.
Ressalta, Celdo Braga que um dos objetivos de cantar a Amazônia é que o
mundo conheça a potencialidade musical dos amazônidas, e que eles mesmos
aprendam a utilizar cada vez mais essa potencialidade. Entretanto, o que ele observa
é que “nós os amazônidas não gostamos do que é nosso”, falta pertencimento com
o lugar e o reconhecimento e valoração dessa cultura.
Krenac (2019, p. 14) parece corroborar com o poeta: “Se as pessoas não tive-
rem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão
sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compar-
tilhamos”. Afirma ainda que “(...) Nosso tempo é especialista em criar ausências
... do próprio sentido da experiência da vida (...)” e sugere que precisamos “contar
mais histórias. Se pudermos fazer isto, estaremos adiando o fim100” (KRENAC,
2019, p. 20)
Da contemporaneidade o passado não mais existe, evoca-se o tempo sob a forma
de memória, e dependendo de como as informações foram adquiridas, com carga
emocional ou afetiva, são mais bem lembradas que as memórias de fatos menos
expressivos. É o que o Gaponga sugere para impulsionar a cultura cabocla, abdicada
por tantos em algum lugar. Izquierdo (1989) afirma que não existe tempo sem um
conceito de memória, assim, as imagens (reminiscência) antes armazenadas por
meio de informação, resultam das experiências individual e coletiva, especialmente
familiar, nesse ambiente, o da floresta.
98 kambô é uma espécie de rã esverdeada brilhante, muito comum no noroeste da Amazônia e territó-
rios de países amazônicos limítrofes, mas também medicamento da cultura indígena. O termo refere-se ainda à
secreção expelida pelo batráquio para se proteger de seus predadores, portanto, um tipo de veneno que auxilia
na imunidade e que quando aplicado provoca um certo transe no usuário. O ritmo foi transcrito manualmente,
a partir do som do animal. Depois passado para o editor de partituras, para finalmente adaptá-lo aos bioins-
trumentos. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral/2016/05/160509_sapo_amazonia_reme-
dio_mv. Acesso em 01. abr. 2022.
99 Do tupi, o termo significa “raiz chata” e faz referência à árvore Samaúma ou Sumaúma. Disponível
em: https://www.hypeness.com.br/2020/10/samauma-a-arvore-rainha-da-amazonia-que-guarda-e-distribui-
-agua-para-outras-especies/. Acesso em: 03 abr. 2022.
100 Frases do livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, do líder da etnia indígena Krenac, filósofo e
escritor brasileiro.
242
Em diferentes lugares do mundo, nos afastamos de uma ma-
neira tão radical dos lugares de origem que o trânsito dos
povos já nem é mais percebido. (...) Se é certo que o desen-
volvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um
lugar para outro que as nossas comodidades tornaram fácil a
nossa movimentação pelo planeta também é certo que essas
facilidades são acompanhadas de uma perda de sentidos dos
nossos deslocamentos (KRENAC, 2019, p. 32-33).
Considerações finais
243
caminhar nas trilhas do saber e semear sonhos de amanhãs para colhê-los no alvo-
recer do encantamento na arte e da vida. Afirma Paes Loureiro que a cultura é um
campo de significação da arte, onde “[...] O real nos coloca diante da objetividade
prática de viver. O imaginário nos garante as aventuras de sonhar. (PAES LOU-
REIRO, 2007, p. 17), portanto, os bioinstrumentos são modulados pela criação
dos artistas que extraem da floresta sua matéria-prima, sem danos ou prejuízo.
Esses artefatos sonoros remetem ao ambiente simbólico descritos nos poemas
de Homero (Grécia Antiga), segundo o qual, quando Orfeu declamava encantava
não apenas os humanos, mas também os animais, as árvores e as pedras, e quando
“a poesia começava a caminhar na infância de si mesma, já estava ela entranhada
na alma das palavras e trazia o imaginário na essência da linguagem significante.
(PAES LOUREIRO, 2015, p. 51). A matéria-prima dos bioinstrumentos parece
trazer consigo a memória do espaço-tempo de vivência na floresta, tal como neste
fragmento de poema de Celdo Braga: “Em silencio a planta sabe, desde o tempo
de semente, buscar água na vertente da dura entranha do chão (...) Sabe o grande
desafio de crescer frutificar, repartir sua existência com quem dela precisar”.
Ressalta-se, porém, que a criação dos bioinstrumentos dá sentido, a priori, à
existência de seus artesãos, e desenvolve a habilidade e pereniza a memória dos
envolvidos com o projeto, sejam eles espectadores ou alunos das oficinas. Com
efeito, “A diversidade dinâmica real e simbólica de suas relações com a realidade
exige uma compreensão também dinâmica e diversa dessas relações. (PAES LOU-
REIRO, 2007, p. 11) para as quais essas ações concernentes aos aspectos sociais
e culturais precisam ser estimuladas, experienciadas e compartilhadas, a fim de
serem preservadas.
Referências
244
BATISTA, Djalma. O Complexo da Amazônia – Análise do processo de Desen-
volvimento. 2ª. Edição. Manaus: Editora Valer, Edua e Inpa, 2007.
BRAGA, Celdo. Info-Discografia: Sarau na Floresta. Manaus/AM: CD +/W&O/
Studio 3001, Fevereiro de 2007.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair
da modernidade. 4 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: São Fran-
cisco. 2006 (Originalmente publicado em 1927).
IZQUIERDO, Ivan. Memórias. Estudos Avançados, São Paulo, v. 3, n. 6, maio/
ago. 1989. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0103-40141989000200006. Acesso em: 31 out. 2022.
KRENAC, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2019.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Obras reunidas: poesia I Cultura Amazônica –
Uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editora, 2001.
___________. Cultura amazônica: uma diversidade diversa. Belém: Edufpa, 2005.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma diversidade diversa.
Amazônia Latitude. ISSN 2692 7462 (Online). 2019. Disponível em: <https://
amazonialatitude.com/2019/04/10/cultura-amazonica-uma-diversidade-diversa/>
Acesso em: 31 out. 2022.
LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas; tradução de Ana Cristina
Arantes Nasser. 2. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cor-
tez/ Unesco, 2001b.
PAES LOUREIRO, João. A conversão semiótica: na arte e na cultura. Belém:
Edufpa, 2007.
PAES LOUREIRO, João de Jesus. Cultura amazônica - Uma poética do imagi-
nário. Manaus: Editora Valer, 2015.
SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da Sociologia: indivíduo e Sociedade.
Tradução de Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006.
245
A PATRIMONIALIZAÇÃODO CARIMBÓ E O
MOVIMENTO DUAL DE RESSIGNIFICAÇÃO
CULTURAL DENTRO DAS PRÁTICAS DE PRODUÇÃO
E DISCURSIVAS DA MANIFESTAÇÃO DENTRO DA
REGIÃO METROPOLITANA DE BELÉM
Daniel da Rocha Leite Junior101
Introdução
246
que recobria a Amazônia com o manto do mistério, distância a intemporalidade,
que a impedia de intercambiar seus bens culturais,contribuiu para que se acentuasse
sobre ela uma visão folclorizante e primitivista. (PAES LOUREIRO, 2001, p. 55).
Assinalo, também, outro apontamento sobre a folclorização da cultura ama-
zônica paraense no séc. XX com relação à ao enrijecimento das referências da
identidade cultural, a partir de uma matriz icônica e vinculada a noção do conceito
de caboclo que agrega a fetichização e exotização do ambiente amazônico dentro
do imaginário brasileiro. “Esse discurso é carregado por matrizes icônicas, ou seja,
por referenciais de fácil e superficial identificação, normalmente associados a uma
fetichização do espaço amazônico. (CASTRO, 2013, p. 451).
Hall (2003) reflete sobre as identidades culturais como pontos de identificação
móveis e que oferecem não uma ideia de essência, mas sim de posicionamento
mutável, portanto, uma interpretação diaspórica da cultura pode ser compreendida
através de um olhar crítico sobre os processos de alteração dos modelos culturais
tradicionais, no caso específico deste artigo, por meio das transformações dos
paradigmas existentes nos modos de fazer da produção cultural do carimbó no
meio urbano.
É necessário pontuar que o processo de patrimonialização do carimbó acon-
teceu durante a produção de uma nova política nacional de cultura promovida
pelo Ministério da Cultura (MinC), no caso específico no período de 2003 até
2007 na gestão de Gilberto Gil, no mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva e durante essa gestão foi desenvolvidouma política nacional construída
por meio do reconhecimento do caráter participativo da cultura.
Desta forma, foi estimulada uma intensa circulação de representantes de ma-
nifestações culturais por todo território nacional, promovendo ambiente propício
para o intercâmbio cultural, a partir de conferências, audiências públicas, reuniões,
encontros, conselhos e outrasformas de organização sociocultural que resultou em
uma acentuada reconfiguração do contexto de militância cultural no Brasil no
âmbito das manifestações da cultura popular.
Após o exposto anteriormente, é perceptível o enquadramento do carimbó do
Estado do Pará nesse contexto quando pensamos pela ótica do processo de patri-
monialização que a manifestação atravessou no ano de 2014,a partir da pesquisa
para construção do Dossiê Iphan Carimbó (2013), encontramos transformações
estéticas, sociais e culturais dentro de outros contextos de produção do carimbó nos
últimos, principalmente, em espaços urbanos da região metropolitana de Belém.
247
É importante ressaltar, segundo Alves (2011) que o Brasil neste período, em
concordância com as diretrizes discursivas desenvolvidas para a cultura popular na
esfera internacional e adaptadas para o contexto brasileiro possibilitaram que as
manifestações culturais do país se distanciassem da característica de folclore para
assumir a categoria de diversidade e posteriormente alcançassem o domínio de
patrimônio imaterial por meio dos instrumentos de salvaguarda dessa nova política
nacional que se instalava no território brasileiro.
A pesquisa pede um olhar sobre a questão dos processos identitários, a partir
do contexto da patrimonialização do carimbó nos últimos anos, pois é possível
encontrar formatos de pertencimento da manifestação cultural que expandem o
conceito do fazer da expressão cultural quando pensamos a dissociação acarretada
no intercâmbio entre lugar e cultural, conforme interpretação no que foi postulado
na pesquisa do Dossiê Iphan Carimbó (2013), o carimbó tradicional ou pau e corda
pode ser denominado, também, de carimbó patrimonializado. Sendo assim, ao
olhar para o carimbó produzido na região metropolitana de Belém, denominado,
também de carimbó urbano e desenvolvido a partir de pautas das urbanidades,
ou seja, estimuladas por outras formas de sociabilidades, pelas políticas nacionais
de cultura do governo, além do mercado da arte e da cultura, encontra-se um
modo de fazer com características ao mesmo tempo convergentes e divergentes
do carimbó patrimonializado.
Nesse contexto, a noção de pertencimento sobre as manifestações culturais
segundo Agier (2001) passa pela criação de novas retóricas identitários a partir do
entrelaçamento entre a cultura e o lugar que ela acontece, sendo assim a pesquisa
irá emergir no fluxo do movimento dual que, atualmente acontece com o carimbó
urbano para elucidar questões referentes ao âmbito discursivo, pois é evidente que
se afastou da simbologia folclórica e, também, dentro do ponto de vista das práticas
de produção, encontra-se modos distintos de fazer carimbó, ou seja, um ligado a
tradição carimbozeira e outro relacionado à militância política, cultural e social.
É nítida a necessidade da expansão de pesquisas sobre a produção de carimbó na
região metropolitana de Belém para, dessa maneira, podermos ampliar os estudos
culturais referentes aos fenômenos de socialidadepresentes na manifestação cultural
do carimbó, a partir de seus desdobramentos estéticos dentro do espaço urbano
da capital paraense, pois éurgente a percepção de que os elementos mobilizados
pelo carimbó urbano demonstram diferenças pontuais do carimbó pau e corda
ou tradicional, também denominado carimbó patrimonializado que precisam ser
compreendidas.
248
Comentários sobre a historiografia do carimbó
249
espaço, sendo assim, é necessário pontuar, como afirma Salles (1980) que dentro
da Amazônia nada é essencialmente, indígena,africano ou europeu.
Apresentado como resultado da união das influências culturais de índios, negros
e europeus (portugueses), o carimbó é comumente divulgado como uma das mais
significativas formas de expressão da identidade paraense e brasileira, já que estas
referências estariam presentes de forma integrada no canto, na música, na dança e
na formação instrumental. Nesta figuração, passou a ser comum a associação do
carimbó aos emblemas e ícones identitários de promoção cultural emanados dis-
cursivamente por seus defensores e praticantes. (DOSSIÊ IPHAN, 2013, pg. 14).
Segundo Salles e Salles (1969) o carimbó pau e corda ou tradicional é uma
expressão cultural marcada pela oralidade de comunidades tradicionais da Amazônia
paraense, reproduzindo, dessa forma, elementos culturais pertencentes às comuni-
dades em diversas regiões do Estado do Pará, podendo ser divididas em: primeiro o
carimbó pastoril, presente na Ilha do Marajó102, segundo o carimbó rural, referente
ao produzido na região do Baixo Amazonas103 e por terceiro o carimbó praieiro,
fazendo alusão ao feito na faixa litorânea da Zona do Salgado104, principalmente,
no município de Marapanim e na ilha de Maiandeua, ambos fazendo referência
ao que é considerado carimbo tradicional ou carimbó pau e corda.
Além dessas variações do carimbó citados antes, é necessário falar sobre a
inclusão do carimbó moderno como um dos desdobramentos estéticos da ma-
nifestação cultural dentro da lógica elétrica, ou seja, o carimbó estilizado com a
inserção de instrumentos como a guitarra, a bateria e o baixo elétrico e que foi
popularizado pelo Pinduca105 por meio da distribuição do ritmo na década de 70
dentro indústria cultural.
Segundo Gabbay (2012) e Amaral (2004) sobre as estéticas distintasdo carimbó
pau e corda ou tradicional e do carimbó moderno ou estilizado, é possível pontuar
que ambas foram correntes carimbozeiras consolidadas no imaginário popular, a
partir da trajetória da produção musical durante a carreira de Mestre Verequete106
e Pinduca.
102 A Ilha de Marajó é uma ilha costeira do tipo fluviomarítima situada na Área de Proteção Ambiental
do arquipélago do Marajó, no estado do Pará.
103 A Mesorregião do Baixo Amazonas é composta por municípios que fomentam a economia do
Estado do Pará. São 13 cidades que compõem o território do Baixo Amazonas: Alenquer, Almeirim, Belterra,
Curuá, Mojuí dos Campos, Faro, Juruti, Monte Alegre, Óbidos, Oriximiná, Prainha, Santarém e Terra Santa.
104 A Zona do Salgado Paraense compreende as Reservas Extrativistas de Mãe Grande de Curuçá, São
João da Ponta, Caeté-Taperaçu, Tracuateua, Araí Peroba, Gurupi-Piriá, Chocoaré-Mato Grosso e Soure no
Estado do Pará.
105 Aurino Quirino Gonçalves, conhecido como Pinduca, tem 32 anos de carreira como cantor e com-
positorde carimbó com 25 discos gravados e que ajudou na popularização do carimbó no Brasil.
106 Augusto Gomes Rodrigues, também conhecido como Mestre Verequete, foi compositor e canto de
carimbó pau e corda junto do grupo “O Uirapuru”, além de ter sido um dos primeiros a gravar a manifestação
cultural no estilo long play (LP).
250
O carimbó de Marapanim, como matriz musical e coreográfica
para o carimbó de Belém, teria se organizado em dois tipos
distintos, já nesta última localidade: 1º) um carimbó tradi-
cional e 2º) um carimbó moderno. O primeiro, representado
pelo cantador Verequete, manteria a estrutura musical do
referencial marapaniense de “originalidade”; o segundo, repre-
sentado por Pinduca, teria alterado essa estrutura, no sentido
de atribuir-lhe uma feição de modernidade. Essa diferenciação
construiu a ideia da existência de duas correntes carimbóticas
em Belém, confirmando uma histórica rivalidade entre defen-
sores da tradição e da modernidade. (AMARAL, 2004, p. 03).
251
do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e
inscrito no Livro de Registro de Formas de Expressão, a partir do processo de regis-
tro da pesquisa referente ao Levantamento Preliminar e Identificação do Carimbó
nas Mesorregiões Nordeste Paraense, Metropolitana de Belém e Marajó ocorrida
durante os anos de 2008 e 2013 que gerou o Dossiê Iphan Carimbó e desta pesquisa
realizada é importante ressaltar que o movimento de patrimonialização do carimbó
foi feito a partir de visitas em 45 municípios entre a capital e o interior do Estado
do Pará, em mais de 150 lugares e 415 entrevistas realizadas com carimbozeiros.
O contexto de negociação cultural que o carimbó foi submetido por meio dos
instrumentos de salvaguarda utilizados pelo movimento de patrimonialização do
carimbó mobiliza processos de ressignificação que são estimulados pelos disposi-
tivos de legitimação, assim como também, segundo Mignolo (2005) a partir de
instrumentos de resistência da cultura popular dentrodos contextos de sociabilidade
e das práticas de produção de uma manifestação cultural.
Esse momento da pesquisa, faz-se necessário relembrar que nas décadas de 40
e 50 havia uma política nacional de cultura associada ao Movimento Folclórico
Brasileiro e tinha a intenção de fazer uma associação entre cultura popular, auten-
ticidade e pureza com o objetivo de instrumentalizaras manifestações culturais para
amparar a construção de uma unidade nacional da identidade cultural brasileira,
porém no final do séc. XX e início do séc. XXI, segundo Alves (2011) entrou em
circulação um pensamento de desconstrução desta práxis dentro do imaginário
da população brasileira, a partir da valorização do caráter participativo da cultura
popular, porém ainda atua como nomenclatura de classificação das manifestações
culturais brasileiras que passam por processos de patrimonialização dentro dos
órgãos regulamentadores como o Iphan.
252
que a riqueza simbólica também deve ser acompanhada da
possibilidade de criação de riqueza material para oscriadores e
realizadores culturais, através da geração de trabalho, emprego
e [...]A dimensão cidadã trata da necessidade imperativa, se-
gundo os gestores do sistema MinC, notadamente no âmbito
da Secretaria de Cidadania Cultural, de acionar e cristalizar os
direitos culturais no Brasil, estabelecidos desde a constituição
de 1988. (ALVES, 2011, p. 07).
253
outros recursos e instrumentos de salvaguarda como foi visto no período de de-
senvolvimento do levantamento para o Dossiê Iphan do Carimbó, caracterizando
um posicionamento de resistência sociocultural através da militância e ocupação
dos ambientes da esfera política brasileira no âmbito regional e nacional pelos
carimbozeiros.
Segundo Agier (2001) a questão dos distúrbios identitários expostos unido
a pesquisa sobre o lugar das culturas, em Amaral (2011), é possível dizer que a
patrimonialização do carimbó possibilitou a manifestação de uma série de novas
práticas de produção e significados integrados discursivamente ao caráter participa-
tivo desta manifestação popular além da relação entre localidades onde o carimbó
é produzido com outros agentes e instituições culturais, assim como, também,
um afastamento das características folclorizantes para assumir um sentido de
pertencimento que ultrapasse as barreiras da instrumentalização e adente o
âmbito das sociabilidades daidentidade cultura amazônico paraense107.
107 Espaço que abarca o território em que habita, predominantemente, a floresta amazônica dentro
do estado do Pará.
254
os resultados que esses processos oferecem dentro do carimbó produzido na região
metropolitana de Belém.
255
sociopolítico, mesmo que sejam tidos como fazeres diferentes, objetivam a mesma
ideia de manutenção da manifestação cultural do carimbó como identidade cul-
tural paraense que implica saberes e modos de fazer específicos e organizados em
estilo de vida, cadeia produtiva independente e vinculada ao caráter participativo
da cultura popular.
Para exemplificar o ponto abordado no parágrafo anterior, usarei como exemplo
o grupo de carimbó Cobra Venenosa que surgiu em 2016 no distrito de Icoaraci e
é um dos expoentes do movimento do carimbó produzido na região metropolitana
de Belém e luta pela valorização do carimbó pau e corda ou tradicional, entretanto
com outros processos de produção social do espaço, pois geram sociabilidades e
produções que constroem desdobramentos estéticos e socioculturais a partir da
intervenção nos espaços urbanos.
No ano de 2019 o grupo de carimbó Cobra Venenosa lançou seu primeiro tra-
balho musical, um disco intitulado “Cobra Venenosa” que reúne oito faixas autorais
e inéditas no cenário fonográfico do carimbó, além, de cinco canções extras, por
meio de gravações realizadas ao vivo no ano de 2017. Nesse sentido, a partir de uma
análise do conteúdo das músicas, distribuição do disco, vivência em shows e rodas
de carimbó na região metropolitana de Belém, em que o grupo participou com
espetáculos, podemos tecer alguns comentários sobre a instrumentação do grupo
de carimbó Cobra Venenosa. Observou-se que as composições musicais tratam
de temáticas que envolvem a esfera urbana a partir de questões sociopolíticas que
atravessam o mundo contemporâneo, além de usarem variações de material na
construção dos instrumentos musicais como curimbóe banjo que são construídos
por meio de processo de reciclagem de materiais próprios do ambiente urbano
como, por exemplo: o curimbó criado a partir da reutilização de tubo de PVC em
oposição ao uso de troncos de árvore ou no banjo feito de capacete de moto ou
fundo de panela de pressão ao invés de madeira ou metal.
Dessa forma, é possível afirmar sobre o grupo de carimbó Cobra Venenosa
que a matriz do carimbó patrimonializado, pau e corda ou tradicional sofreu uma
alteração dos seus elementos através das canções e da instrumentação com a inten-
ção dialogar com os elementos contemporâneos inseridos nos espaços urbanos em
que o grupo está inserido ao produzircarimbó associado ao ativismo sociopolítico
influenciado pelo contato com os processos das sociabilidades urbanas da região
metropolitana de Belém, ao mesmo tempo, que defende a manutenção do carimbó
como manifestação cultural tradicional.
256
O nosso grupo faz referência ao carimbó pau e corda, um
grupo jovem que surge formado por jovens das periferias [...]
envolvidos em atividades de rua e dos processos vividos em
Belém que a ver com uma conjuntura nacional [...] a gente
tinha essa visão que era necessário valorizar o carimbó pau e
corda, não achávamos ele demodê, não achávamos que pro som
ser contemporâneo entre aspas moderno, precisa de equipa-
mentos eletrônicos [...] diferenciadodo carimbó raiz, porém no
instrumental se mantendo tradicional, com curimbó, banjos,
maracas e efeitos orgânicos, sem o uso de bateria, baixo ou
guitarra [...] (entrevista da Priscila Duque, compositora
do Cobra Venenosa, no Programa Sem Censura Pará no dia
27.06.2019).
257
A construção do carimbó patrimonializado a partir dos elementos presentes no
carimbó pau e corda ou tradicional oferece segundo Agier (2001) o entendimento
da convergência entre lugar, cultura e identidade, pois o Levantamento Preliminar e
Identificação do Carimbó nas MesorregiõesNordeste Paraense, Metropolitana de
Belém e Marajó realizado durante osanos de 2008 e 2013 que gerou o Dossiê
Iphan Carimbó foi construído a partir da participação dos agentes culturais envolvi-
dos na produção e manutenção damanifestação cultural dentro do Estado do Pará.
258
processo de patrimonialização, entretanto, ainda é necessário olhar para a manifes-
tação a partir de suas características específicas a partir das práticas produtivas que
envolvem a produção do carimbó em contato com os lugares e as sociabilidades
em que estão inseridos.
Referências
259
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
(IPHAN).
Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) Carimbó. Dossiê Iphan
Carimbó. Belém-PA, 2013.
MIGNOLO, Walter D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental
no horizonte conceitual da modernidade. Buenos Aires, Consejo Latinoamericano
de Ciencias Sociales (CLACSO), 2005.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Obras reunidas: poesia I Cultura Amazônica
– Uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editora, 2001.
SALLES, Vicente. A música e o tempo no Grão-Pará. Belém: CEC, 1980.
SALLES, Vicente e SALLES, Marena. Carimbó: trabalho e lazer do caboclo.
Revista Brasileira de Folclore, Rio de Janeiro, ano 9, n. 25, 1969.
260
NOSSO PALCO É A RUA: REFLEXÕES SOBRE
CARIMBÓ URBANO E A PRÁTICA DO MANGUEIO
COMO RECURSO DE SOCIABILIDADE PARA A
AFIRMAÇÃO DO DIREITO A CIDADE108
Daniel da Rocha Leite Junior109
Introdução
261
Segundo conceitos de Canclini (2003) iremos compreender quais elementos
foram mobilizados no processo de hibridização do carimbó dentro de espaços ur-
banos da região metropolitana de Belém e assim poder visualizar como acontecem
as dinâmicas dos modos de fazer, da cadeia produtiva à expressão artística, assim
como, dos modos de viver, como manifestação cultural e movimento social,
impressos no que chamamos de carimbó urbano. Nesse sentido, iremos observar
quais elementos são mobilizados no processo de produção do carimbó, dentro dos
ambientes de urbanidade, e nos fixaremos na prática do mangueio pelos carim-
bozeiros urbanos nas ruas, feiras e praças da região metropolitana de Belém, para
analisar como este recurso de resistência cultural se configura face os processos do
capital, por meio da indústria cultural, e da ausência de espaços privados ou políticas
públicas de fomento, não focadas, nos moldes da patrimonialização do carimbó.
Nessa acepção, se faz relevante entender como funciona a realidade dos con-
textos urbanos dentro da Amazônia paraense para a melhor compreensão das
contradições espaciais presentes no cotidiano da região metropolitana de Belém
a partir dos conceitos de Lefebvre (2006) sobre a produção social dos espaços de
urbanidade e como as manifestações culturais, no caso em questão o carimbó
urbano, transitam e sobrevivem não somente no sentido material, mas, também,
nas relações de poder projetadas na disputa pelo território simbólico.
É nítida a necessidade da expansão de pesquisas sobre a produção de carimbó na
região metropolitana de Belém para, dessa maneira, podermos ampliar os estudos
culturais referentes aos fenômenos de socialidade presentes na manifestação cultural
do carimbó, a partir de seus desdobramentos estéticos dentro do espaço urbano
da capital paraense, pois é urgente a percepção de que os elementos mobilizados
pelo carimbó urbano demonstram diferenciações que precisam ser compreendidas
frente a visão da patrimonialização do carimbó.
262
Korimbó – união de curi (pau oco) e m’bó (escavado) resultando na expressão “pau
que produz som” – que dá o nome ao tambor, o curimbó, usado para tocar e que
é uma característica fundamental do carimbó.
No ano de 2014 o carimbó foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial
do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a
partir do processo de registro da pesquisa referente ao Levantamento Preliminar
e Identificação do Carimbó nas Mesorregiões Nordeste Paraense, Metropolitana
de Belém e Marajó ocorrida durante os anos de 2008 e 2013 que gerou o Dossiê
Iphan Carimbó e é importante ressaltar que o movimento de patrimonialização do
carimbó foi feito a partir de visitaram 45 municípios entre a capital e o interior do
Estado do Pará, em mais de 150 lugares e fizeram 415 entrevistas com carimbozeiros.
O contexto de negociação cultural que o carimbó foi submetido por meio dos
instrumentos de salvaguarda utilizados pelo movimento de patrimonialização do
carimbó mobiliza processos de significação e ressignificação da cultura popular
dentro de contextos que envolvem os dispositivos de legitimação e os instrumen-
tos de resistência da cultura popular como observado segundos os conceitos de
Mignolo (2005).
Segundo o Dossiê Iphan Carimbó (2013) há registros que assinalam o sur-
gimento do carimbó na cidade de Marapanim, localizada no litoral do Pará a
partir do povo indígena Tupinambá, assim como, também, há documentos que
apontam o carimbó como uma invenção de negros escravos que ocupavam o ter-
ritório amazônico paraense no século XVII. Portanto, pesquisadores como Gabbay
(2012) e Salles e Salles (1969) afirmam que o carimbó é um resultado da união
de influências culturais por meio da interação entre índios, negros e portugueses,
pois estão presentes elementos de ambas as etnias dentro da manifestação cultural.
263
Conceituar um ponto de partida para o surgimento de uma manifestação
cultural como o carimbó dentro do contexto amazônico do Estado do Pará abre
espaço para discussões sobre os elementos de miscigenação mobilizados na Ama-
zônia paraense, haja vista os processos de hibridização da identidade cultural desse
espaço, sendo assim, é necessário pontuar, como afirma Salles (1980, p. 27) que
dentro da Amazônia nada é essencialmente, indígena, africano ou europeu.
264
Segundo Amaral (2004) sobre o questionamento dos tipos de carimbó que
existem dentro do Estado do Pará, é necessário analisar contraponto entre carimbó
tradicional e o carimbó moderno que se apresentam sobre a manifestação cultural
do carimbó na região metropolitana de Belém, após o explicitado anteriormente,
entre a existência de duas correntes distintas de observação: uma que analisa a exis-
tência do carimbó tradicional e outra que avalia a experiência do carimbó moderno.
265
é possível encontrar a manifestação do carimbó em espaços urbanos da região
metropolitana de Belém dentro desse contexto após a massificação da sua estética
musical por meio da assimilação do carimbó pela cadeia produtiva da indústria
cultural a partir dos anos 70 com variações de repercussão nas décadas de 90 e,
recentemente, após uma nova valorização do carimbó depois da consolidação da
manifestação cultural como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil no início dos
anos 10 do século XXI.
A dicotomia entre tradicional e moderno dentro do carimbó oferece um olhar
entre conceitos da cultura popular e da indústria cultural, entretanto após vivên-
cias empíricas dentro de eventos de batucadas, rodas de carimbó, contato com
mestres, carimbozeiros e ensaios de conjuntos de carimbó é possível perceber
entrelaçamentos entre o carimbó tradicional, pau e corda, e o carimbó moderno,
que pode ser denominado carimbó urbano e vem sendo produzido dentro da
região metropolitana de Belém.
O carimbó urbano possui variações dentro do seu contexto de produção como,
por exemplo, os eventos de e carimbó como a Batucada da Praça da República o
no Mercado de São Brás ou intervenções como a prática do mangueio, o ato da
relação de troca do artista com o público na rua através do intercâmbio de um
objeto ou performance artística por dinheiro, configurando, dessa forma, como
recursos de sobrevivência da cadeia produtiva dos carimbozeiros dentro do espaço
urbano da região metropolitana de Belém.
266
cidade característica das manifestações da cultura popular em função da ausência
de fomento, acontecem de forma orgânica entre os carimbozeiros que se reúnem
em pontos da região metropolitana de Belém para se apresentarem para o público
transeunte.
O mangueio, segundo o dicionário, pode ser caracterizado como o ato de pedir
dinheiro na rua, entretanto, pode pressupor ou não o intercâmbio de dinheiro em
troca de objetos artísticos, haja vista que a prática de manguear é algo que advém
da contracultura e de mecanismos de sociabilidade e resistência do movimento
hippie como observado, também, na pesquisa de Da Silva Neto (2017).
267
quando reunirmos os conceitos e interpretações de Harvey (2014) sobre os estímulos
e intervenções na socialidade dos ambientes urbanos pelas coletividades, tal como
no contexto do carimbó produzido em espaços urbanos da região metropolitana de
Belém que carregam no seu fazer a intenção de reinventar a cidade para consolidar
a sobrevivência do estilo de vida dos carimbozeiros urbanos e, consequentemente,
a resistência da manifestação cultural.
268
espaços urbanos da região metropolitana de Belém é feito de forma analógica pelas
ruas, salvo em momentos de ocupação com os eventos de batucada, onde ocorre
o uso de equipamentos de som, configurando desta forma duas formas distantes
de produção do mangueio, uma em movimento entre locais e outra estática em
uma localidade.
A partir dos conceitos de Lefebvre (2008) sobre a produção social dos espaços
de urbanidade e Harvey (2014) referente às intervenções da sociabilidade da cultura
popular dentro do ambiente urbano é possível compreender quais elementos são
mobilizados pelo carimbó urbano nos processos de apropriação dos espaços públicos,
como ruas e praças, da região metropolitana de Belém a partir da prática do man-
gueio por meio de performances e produtos musicais dos carimbozeiros urbanos.
Após uma análise dos conceitos sobre a produção social do espaço e, também,
sobre às intervenções da sociabilidade da cultura popular dentro do ambiente
urbano, conjuntamente, com uma análise de entrevistas realizadas durante
a pesquisa com carimbozeiros urbanos sobre a questão do mangueio é possível
tecer observações. Encontramos a existência de dinâmicas sociais que incorporam
atravessamentos na manifestação cultural do carimbó na região metropolitana de
Belém, haja vista a necessidade de mecanismos que possibilitem aos carimbozeiros
urbanos encontrarem sua subsistência nos espaços urbanos por meio da produção
do carimbó.
É necessário perceber que o carimbó urbano movimenta outras estruturas de
socialidade para o exercício do direito aos espaços públicos da cidade, como por
exemplo, a experiência do mangueio como recurso de sociabilidade por meio de
apresentações itinerantes na rua, assim como, também, espaço midiático de divulga-
ção e distribuição de seus trabalhos autorais, além de mecanismo de resistência so-
ciocultural e capitalização econômica a partir das doações financeiras de indivíduos
que entram em contato com o show autoral realizando, segundo Harvey (2014),
que as intervenções das sociabilidades do carimbó urbano estimulam alterações
269
nas dinâmicas da rua e possibilitam, como observado nos conceitos de Lefebvre
(2008), novas configurações na produção social do espaço por meio da ocupação
do espaço público pelos carimbozeiros urbanos com o intuito de desenvolverem
mobilizações de resistência com a cultura popular através do mangueio.
É importante ressaltar que entre o século XIX e XX havia nos municípios de
Vigia, no interior do Estado do Pará, e na capital Belém, segundo Salles e Salles
(1960), uma lei municipal de No1.028 da data de 5 de maio de 1880, do Código
de Posturas, que marginalizava a prática do carimbó com penalizações e prisão,
gerando dessa forma uma postura proibitiva sobre a manifestação cultural. “É
proibido, sob pena de 30.000 reis de multa [...] Fazer bulhas, vozerias e dar autos
gritos [...] Fazer batuques ou samba [...] Tocar tambor, carimbó, ou qualquer outro
instrumento que perturbe o sossego durante a noite” (CÓDIGO DE POSTURAS
DE BELÉM apud Salles e Salles, 1969)
Como visto anteriormente, segundo intervenções dos conceitos de Lefebvre
(2008), podemos afirmar que a emersão do carimbó urbano promoveu novas
condições de exposição e de produção da manifestação cultural e uma delas foi o
debate sobre a apropriação dos espaços públicos pelos produtores de carimbó dentro
do contexto urbano e esse fato demonstra a emancipação do indivíduo a partir da
construção de espaços de interação social por meio de elementos impressos pelo
carimbó atravessado pela urbanidade.
270
de fomento e de divulgação de trabalhos autorais por conjuntos, mestres e carimbo-
zeiros do meio do espaço urbano do Estado do Pará que conferem novas condições
sobre a dialética espacial a partir de elementos que possibilitam a manutenção
sociocultural da produção do carimbó urbano, entretanto é necessário reconhe-
cer que a cidade possui zonas onde à segurança pública impede a livre circulação
e expressão dos indivíduos que não estiverem enquadrados em aspectos morais
ligados a cultura do bairro.
271
um sobrando ela vai tocar, então a gente destrói a ideia de
um palco e transforma uma relação mais humana com todos.
(PARTE DA ENTREVISTA COM O CARIMBOZEIRO
URBANO JOÃO PINHEIRO).
272
a nossa própria cultura para as ruas, bares e calçadas pra onde
der no sol quente ou numa lua cheia e fazer muito carimbó. É
um ato político, uma resistência, porque agente não tem tantos
espaços pra mandar nosso carimbó, pra escutar, pra vivenciar
isso da nossa terra, então a gente cria esses espaços como uma
forma de nos sustentar. (PARTE DA ENTREVISTA COM
O CARIMBOZEIRO URBANO MATEUS LEÃO).
273
pelos carimbozeiros da região metropolitana de Belém. Percebemos, portanto, ele-
mentos de sociabilidade como fomento, produção e apresentação de espetáculos,
divulgação de eventos que dialogam para a construção de uma cadeia produtiva
que envolve a capitalização e distribuição de trabalhos autorais de carimbó urbano.
Conclusão
274
material para o mercado comercial, objetivando, desta maneira, o fomento e a
resistência da expressão cultural no imaginário urbano.
O entendimento do mangueio, no contexto do carimbó urbano, como uma
manifestação sociocultural e política da prática do carimbó em espaços público,
configurando, dessa forma, novos formatos de produção social do espaço por meio
da intervenção e ocupação dos espaços urbanos como praças, ruas, mercados e
feiras demonstra que o ato de manguear exercita a relação do contato das comu-
nidades com a manifestação cultural, possibilitando, dessa forma, a resistência e
sobrevivência do carimbó em espaços urbanos da região metropolitana de Belém
com objetivos que potencializem a coletividade, a sociabilidade, a convergência
de manifestações culturais com o cotidiano social da cidade se apresentam como
recursos que vão à direção contrária da definição da cidade como mercadoria, pois
provoca a ressignificação das relações de uso do espaço público.
Referências
275
LEFEBVRE, Henri. O Direito à cidade. 4. ed. São Paulo: Centauro, 2006.
MIGNOLO, Walter D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no
horizonte conceitual da modernidade. Buenos Aires, Consejo Latinoamericano
de Ciencias Sociales (CLACSO), 2005.
PAES LOUREIRO, João de Jesus. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário.
São Paulo: Escrituras, 2001.
SALLES, Vicente. A música e o tempo no Grão-Pará. Belém: CEC, 1980.
SALLES, Vicente e SALLES, Marena. Carimbó: trabalho e lazer do caboclo.
Revista Brasileira de Folclore, Rio de Janeiro, ano 9, no25, 1969.
ENTREVISTAS REALIZADAS COM CARIMBOZEIROS URBANOS
Disponível em: <https://docs.google.com/document/d/1TRUiU0zLZ8Snc9pv-
pheSVIsN_xhHlz60/edit> e
<https://drive.google.com/open?id=1ZOU9B56Ob2b9pLAfOTY7dpt_ecrFh4Ws>.
Acesso em 08 nov. 2022.
<https://drive.google.com/open?id=1ZOU9B56Ob2b9pLAfOTY7dpt_ecrFh4Ws
youtube.com/watch?v=xQEV8wp5esk> (Belém-Pa.Ver-o-Peso/mangueio de
Carimbó Urbano). Acesso em: 08. Nov. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=7hGSkRGfqkY (Carimbó na Praça/Batucada
da Praça da República). Acesso em: 08. Nov. 2022.
276
A ETNOGRAFIA MULTI-SITUADA COMO PERCURSO
DE IMERSÃO E OBSERVAÇÃO DE PRÁTICAS
PRODUTIVAS E DISCURSIVAS QUE ENVOLVEM
A PRODUÇÃO DO CARIMBÓ NA REGIÃO
METROPOLITANA DE BELÉM/PARá
Introdução
277
Para começar a imersão da pesquisa, é necessário pontuar o contexto da Ama-
zônia como lugar a margem dos grandes centros culturais do Brasil, segundo
aponta Paes Loureiro (2001) ao avaliar o reconhecimento da resistência cultural
que o imaginário da identidade amazônico paraense ocupa no quadro da cultura
nacional. “O isolamento que recobria a Amazônia com o manto do mistério, dis-
tância a intemporalidade, que a impedia de intercambiar seus bens culturais,
contribuiu para que se acentuasse sobre ela uma visão folclorizante e primitivista”.
(PAES LOUREIRO, 2001, p. 55).
Assinalo, também, outro apontamento segundo Castro (2013) sobre a folclo-
rização da cultura amazônico paraense no séc. XX com relação ao enrijecimento
das referências da identidade cultural, a partir de uma matriz icônica e vinculada
a noção do conceito de caboclo que agrega elementos de fetichização e exotização
ao ambiente amazônico dentro do imaginário brasileiro. Esse discurso é carregado
por matrizes icônicas, ou seja, por referenciais de fácil e superficial identificação,
normalmente associados a uma fetichização do espaço amazônico. (CASTRO,
2013, p. 451)
É necessário pontuar que o processo de patrimonialização do carimbó acon-
teceu durante a produção de uma nova política nacional de cultura promovida
pelo Ministério da Cultura (MinC), no caso específico no período de 2003 até
2007 na gestão de Gilberto Gil, no mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva e durante essa gestão foi desenvolvido uma política nacional construída
por meio do reconhecimento do caráter participativo da cultura. Desta forma, foi
estimulada uma intensa circulação de representantes de manifestações culturais
por todo território nacional, promovendo, portanto, um ambiente propício para
o intercâmbio cultural, a partir de conferências, audiências públicas, reuniões,
encontros, conselhos e outras formas de organização e gestão sociocultural que
resultou em uma acentuada reconfiguração do contexto de militância cultural no
Brasil no âmbito das manifestações da cultura popular.
É importante ressaltar, segundo Alves (2011), que o Brasil neste período em
concordância com as diretrizes discursivas desenvolvidas para a cultura popular
na esfera internacional e adaptadas para o contexto brasileiro possibilitou que as
manifestações culturais do país se distanciassem da característica de folclore para
assumir um caráter participativo e, posteriormente, alcançassem o domínio de
patrimônio imaterial por meio dos instrumentos de salvaguarda dessa nova política
nacional que se instalava no território brasileiro.
278
Nesse contexto, a noção de pertencimento sobre as manifestações culturais
segundo Agier (2001) passa pela criação de novas retóricas identitários a partir do
entrelaçamento entre a cultura e o lugar, portanto a pesquisa pede um olhar
sobre a questão dos processos identitários, a partir do contexto da patrimonialização
do carimbónos últimos anos, pois é possível encontrar formatos de pertencimento
da manifestação cultural que expandem o conceito do fazer da expressão cultural
quando pensamos a dissociação acarretada no intercâmbio entre lugar e cultural.
Conforme interpretação, a partir do postulado na pesquisa do Dossiê Iphan
Carimbó (2013), o carimbó tradicional ou pau e corda pode ser denominado,
também, de carimbó patrimonializado. Sendo assim, ao olhar para o carimbó
produzido na regiãometropolitana de Belém, também, denominado nessa pesquisa
de carimbó urbano e desenvolvido a partir de pautas das urbanidades, ou seja,
estimuladas por outras formas de sociabilidades, pelas políticas públicas, além do
mercado da arte e da cultura, encontra-se um modo de fazer com características
ao mesmo tempo convergentes e divergentes do carimbó patrimonializado.
Após o exposto anteriormente, é perceptível o enquadramento do carimbó
do Estado do Pará no contexto de uma manifestação cultural participativa mesmo
antes do processo de patrimonialização que a manifestação atravessou no ano de
2014, porém ao olharmos para o carimbó produzido na região metropolitana de
Belém-Pará, a partir da pesquisa para construção do Dossiê Iphan Carimbó (2013),
encontramos transformações no processo de criação estética, dos fenômenos de
sociabilidade e nas praticas produtivas e discursivas se comparada ao carimbó
patrimonializado.
279
expressão “pau que produz som” e é, também, o nome dado ao tambor, o curimbó,
utilizado para batucar o ritmo do carimbó e que, posteriormente, veio a ser o termo
associado à manifestação cultural.
Segundo as pesquisas de Salles e Salles (1969) e Gabbay (2012), definir um lugar
de partida para o nascimento do carimbó suscita debates que invocam questões
referentes aos processos de miscigenação, que aconteceram na cultura do Estado do
Pará. Portanto, remontar os signos que formaram a identidade amazônico-paraense
é encontrar elementos de hibridização cultural por meio da influencia de povos
indígenas, negros e europeus-ibéricos na construção da identidade sociocultural
do Estado do Pará,como indica Salles (1969, pg 27): “dentro da Amazônia nada
é, essencialmente, indígena, africano ou europeu”.
Podemos analisar por meio das afirmações do inventário realizado peloDossiê
Iphan Carimbó (2013) que um dos logradouros e povos preponderantes para o
surgimento da manifestação cultural é a cidade de Marapanim, no litoral do Es-
tado, a partir do povo indígena Tupinambá, porém é interessante observar que há
documentos que apontam o carimbó como um invento de negros e escravos que
ocupavam o território paraense no século XVII.
280
entre culturas que foram deslocadas para o território amazônico proporcionou
um ambiente favorável para criação da manifestação cultural e, posteriormente,
o desenvolvimento de outro modo de fazer carimbó nos espaços de urbanidade
da região metropolitana de Belém, o que denominamos durante a pesquisa de
carimbó urbano.
O hibridismo das práticas culturais de três culturas distintas, como obser-
vado anteriormente sobre o DNA do carimbó, possibilitou a percepção sobre o
deslocamento de símbolos culturais que foram adaptados ao contexto amazônico
paraense, por meio da interação entre as subjetividades que resultaram em negocia-
ções culturais, a partir de processos de interculturalidade através de convergências
e oposições entre tensões socioculturais estéticas.
281
mercado do long play (LP) na fonográfica brasileira, porém, antes de aprofundar a
pesquisa para análise sobre o carimbó tradicional e moderno. Salles e Salles (1969)
explicam que há segmentações de produção que são demográficas, ele fala sobre
a existência do carimbó pastoril, alusão à produção de carimbozeiros da Ilha do
Marajó112, a presença do carimbó rural, referente ao que é oduzido na região do
Baixo Amazonas113 e por último o carimbó praieiro do município de Marapanim
e da ilha de Maiandeua na faixa litorânea da Zona do Salgado114.
Nesse momento da análise, reacendemos o debate estimulado por Hall (1996)
sobre as identidades culturais não estarem fixadas, apesar de serem provenientes
de algum grupo de signos, e sim em continuado processo de negociação de
deslocamentos socioculturais e estéticos quando encontramos variações da produção
do carimbó pau e corda ou tradicional nos territórios do interior do Estado do
Pará, antes mesmo de qualquer comentário sobre a existência do desdobramento
moderno da manifestação cultural do carimbó.
112 A Ilha de Marajó é uma ilha costeira do tipo fluviomarítima situada na Área de Proteção Ambiental
do arquipélago do Marajó, no estado do Pará.
113 A Mesorregião do Baixo Amazonas é composta por municípios que fomentam a economia do Esta-
do doPará. São 13 cidades que compõem o território do Baixo Amazonas: Alenquer, Almeirim, Belterra, Curuá,
Mojuí dos Campos, Faro, Juruti, Monte Alegre, Óbidos, Oriximiná, Prainha, Santarém e Terra Santa.
114 A Zona do Salgado Paraense compreende as Reservas Extrativistas de Mãe Grande de Curuçá, São
João da Ponta, Caeté-Taperaçu, Tracuateua, Araí Peroba, Gurupi-Piriá, Chocoaré-Mato Grosso e Soure no
Estado do Pará.
282
(2012) com relação às estéticas distintas do carimbó pau e corda ou tradicional e
do carimbó moderno ou estilizado respectivamente representadas nas trajetórias da
produção musical durante a carreira de Mestre Verequete115 e Pinduca116. As duas
correntes carimbozeiras foram responsáveis dentro da suaperspectiva de produção
pela popularização da manifestação cultural do carimbó na indústria cultural, porém
com atuações distintas de ambos no cenário mercadológico regional e nacional,
O presente artigo tem como proposição investigar o carimbó produzido na
região metropolitana de Belém-Pará por meio de uma etnografia multi-situada a
partir instrumentações diversas e diferenças com relação ao conteúdo das composi-
ções. Porém, podemos afirmar que ambos defendiam o carimbó como manifestação
cultural originária e característica da identidade cultural do Estado do Pará,
apesar das variações estéticas e socioculturais produzidas.
283
Tal visão de como a teoria funciona numa ciência interpretativa
sugere que a diferença, relativa em qualquer caso, que surge
nas ciências experimentais ouobservacionais entre “descrição”
e “explicação” aqui aparece como sendo, de forma ainda mais
relativa, entre “inscrição” (“descrição densa”) e “especificação”
(“diagnose”) — entre anotar o significado que as ações sociais
particulares têm para s atores cujas ações elas são e afirmar, tão
explicitamente quanto nos for possível, o que o conhecimento
assim atingido demonstra sobre a sociedade na qual é encon-
trado e, além disso, sobre a vida social como tal. Nossa dupla
tarefa é descobrir as estruturas conceptuais que informam os
atos dos nossos sujeitos, o “dito” no discurso social, e cons-
truir um sistema de análise em cujos termos o que é genérico
a essas estruturas, o que pertence a elas porque são o que são,
se destacam contra outros determinantes do comportamento
humano. (GEERTZ, 1978, p. 19).
284
developed from distinctly bounded periods or separate projects of
fieldwork. (MARCUS, 1995, 102).
285
dimension that isintegral to it, in the form of juxtapositions of
phenomena that conventionally have appeared to be (or con-
ceptually have been kept) “worlds apart.” Comparison reenters
the very act of ethnographic specification by a research design
of juxtapositions in which the global is collapsed into and made
an integral part of parallel, related local situations rather than
something monolithic or external to them. This move toward
comparison embedded in the multi-sited ethnography stimulates
accounts of cultures composed in a landscape for which there is
as yet no developed theoretical conception or descriptive model.
(MARCUS, 1995, 102).
286
ocorrida durante os anos de 2008 e 2013 que gerou o Dossiê Iphan Carimbó e
desta pesquisa realizada é importante ressaltar que o movimento de patrimonia-
lização do carimbó foi feito a partir de visitas em 45 municípios entre a capital e
o interior do Estado do Pará, em mais de 150 lugares e 415 entrevistas realizadas
com carimbozeiros.
O contexto de negociação cultural que o carimbó foi submetido por meio
dos instrumentos de salvaguarda como os utilizados pelo Iphan no movimento
de patrimonialização do carimbó mobiliza processos de ressignificação que são
estimulados pelos dispositivos de legitimação, assim como também, a partir de
instrumentos de resistência da cultura popular dentro dos contextos de sociabilidade
e das práticas de produção de uma manifestação cultural.
Nesse momento da pesquisa, faz-se necessário relembrar que nas décadas de
40 e 50 havia uma política nacional de cultura associada ao Movimento Folclórico
Brasileiro e tinha a intenção de fazer uma associação entre cultura popular,
autenticidade e pureza com o objetivo de instrumentalizar as manifestações culturais
para amparar a construção de uma unidade nacional da identidade cultural brasi-
leira, porém no final do séc. XX e início do séc. XXI, segundo Alves (2011) entrou
em circulação um pensamento de desconstrução desta práxis dentro do imaginário
da população brasileira, a partir da valorização do caráter participativo da cultura.
287
direitos culturais no Brasil, estabelecidos desde a constituição
de 1988. (ALVES, 2011, p. 07).
288
o papel da cultura na construção da vida coletiva empenhan-
do-as exatamente em especificações complexas. (GEERTZ,
1978, p. 20).
289
alteração dos seus elementos através das canções e da instrumentação com a inten-
ção dialogar com os elementos contemporâneos inseridos nos espaços urbanos em
que o grupo está inserido ao produzir carimbó associado ao ativismo sociopolítico
influenciado pelo contato com os processos das sociabilidades urbanas da região
metropolitana de Belém, ao mesmo tempo, que defende a manutenção do carimbó
comomanifestação cultural tradicional.
A partir do contexto, apresentado anteriormente, fica perceptível que ao longo
do processo da pesquisa para a patrimonialização do carimbó que uma nova forma
de atuação política dos fazedores de cultura ligada ao novo plano de políticas na-
cionais dos carimbozeiros a partir da Campanha do Carimbó Patrimônio Cultural
Brasileiro que possibilitou intercâmbios proporcionados entre as diversas regiões em
que o carimbó se faz presente como manifestação cultural, portanto uma forma de
militância participativa se fez presente na construção do carimbó patrimonializado,
diferentemente do carimbó folclorizado que foi reproduzido dentro da indústria
cultural nacional e imposto pela sua reprodutibilidade midiática no rádio e na TV,
além dos produtos culturais musicais como discos e CD’s.
290
seja por meio da realização de entrevistas ou em vivências a partir de produção
executiva e cultural de conjunto de carimbó ou por participação em rodas ou
eventos do cenário do carimbó da região metropolitana de Belém. Possibilitando,
dessa forma, uma análise comparativa sobre o contexto das práticas produtivas
do carimbó no final do séc. XX, assim como, também, sobre o posicionamento
discursivo de afastamento do caráter folclorizente, após o processo de patrimonia-
lização no início do séc. XXI.
291
Referências
292
JUNIOR, Daniel Leite. Entrevistas com carimbozeiros urbanos. Belém-PA
2019. Disponível em: < https://drive.google.com/open?id=1ZOU9B56Ob2b-
9pLAfOTY7dpt_ecrFh4Ws>. Acesso em 08 nov. 2022.
LAUVAITE PENOSO, Banda de Carimbó. Fanpage nas redes sociais.
Disponível em: <https://www.facebook.com/BandaLauvaitePenoso/>. Acesso em
08 nov. 2022.
MAGNANI, G. Etnografia como prática e experiência. Horizontes Antropológicos.
Porto Alegre, ano 15, n. 32, 2009.
MARCUS, George E. Ethnography in/of the word system: the emergence os
multi- situed ethnography. Annual Anthropological Reviem, no 24, 1995.
293
PODER
E
COMUNICAÇÃO
EXPRESSÃO PSICOSSOCIAL DO PODER NACIONAL:
MIDIATIZAÇÃO E A IDENTIDADE DO NEGRO
DA AMAZÔNIA-AMAPAENSE NO CONTEXTO
DA DEMOCRACIA BRASILEIRA PARA O SEU
DESENVOLVIMENTO
Cássius Guimarães Chai117
Lúcio Dias das Neves118
Otacílio do Amaral Filho119
295
saída. Outra característica peculiar, ela é a única capital do país situada abaixo da
linha do Equador.
Subdivide-se em zonas Central, Norte, Leste, Oeste e Sul, além das zonas
urbanas que se limitam com a região Metropolitana, que é composta pelos mu-
nicípios de Santana (segunda cidade mais populosa e onde localiza-se a região
portuária do estado) e Mazagão (novo e velho), juntas elas possuem uma área de
6.407 km2, juntas forma a terceira maior aglomeração urbana da região norte,
com quase 560 mil habitantes.
Sua população é fruto de um processo intenso de miscigenação entre as popu-
lações indígenas, africanas e europeias. Segundo dados do censo de 2010, 249.720
eram pardos (62,7%), 105.093 eram brancos (26,4%), 38.325 (9,6%) eram pre-
tos e 4.343 (1,1%) eram amarelos. Tais dados contrariam as imagens midiáticas
publicadas que insistem em afirmar que a região norte brasileira é habitada apenas
por indígenas (risos).
Dentre as principais atrações turísticas da cidade de Macapá está o Forte de
São José, a orla fluvial de Santa Inês, o recém-inaugurado Bioparque Zoobotânico,
o balneário do Quilombo do Curiaú (região alagada pelo rio amazonas durante
nove meses do ano), a Fazendinha, as diversas praças espalhadas pela capital, a
igreja São José de Macapá, o Teatro das Bacabeiras, o Museu Sacaca, dentre outros.
Na economia, destaca-se o comércio, além do extrativismo, agricultura e in-
dústria. Porém, é importante destacar que a capital tem um enorme potencial para
desenvolver uma plataforma de turismo e de exploração de tecnologias tradicionais
a exemplo das louças produzidas no quilombo do Maruanum, os manejos de mel
nas comunidades tradicionais, o artesanato, as biojóias produzidas a partir das
escamas, espinhas e couros dos peixes nativos da região, o grude da gurijuba que
é super valorizado no mercado europeu, a importação da castanha do Brasil e do
açaí, dentro outros potenciais que são passiveis do pedido de proteção de junto ao
INPI, aparados pela Lei Federal de Inovação: n. 13.243/2016, e no âmbito local
pela Lei Estadual de Inovação Tecnológica. n. 2333/2018.
Dentre as manifestações culturais da capital destaca-se o Marabaixo122, a mais
autêntica manifestação da cultura popular afrobrasileira e a festa de São Tiago que
é realizada em Mazagão Velho, que todos os anos encenam a Guerra dos Mouros (a
exemplo da Paixão de Cristo em Nova Jerusalém – PE), além das tradicionais festas
ligas aos santos da igreja católica, com destaque ao Círio de Nazaré e o carnaval
do Amapá, que é realizado no sambódromo, com desfiles das escolas de samba,
122 Manifestação da popular afrobrasileira existente apenas no estado do Amapá.
296
similares ao carnaval do Rio de Janeiro e São Paulo, e as bandas que embalam a
folia na Av. FAB e na cidade de Santana.
As principais fontes de receita do estado do Amapá está diretamente ligada a agri-
cultura, pecuária, mineração, indústria e serviços; na área de serviços continua sendo
beneficiada pelos concursos públicos e comércio que impulsiona a economia local.
Como vivemos num país colonialista, e por mais que a existência do racismo
em suas diversas faces e nuances seja negado, invisibilizando, ou retratado a partir
do ângulo conveniente, principalmente daqueles que não sofrem ou sofreram os
estigmas deste racismo na pele, torna-se de vital importância essa discussão, a
exemplo das pesquisas realizada sobre Racismo Algorítmico em Plataformas Digitais:
microagressões e discriminação em código (SILVA, 2020). Visto que ao se falar sobre
comunidades tradicionais da Amazônia, povos da floresta, quilombismo (NASCI-
MENTO, 1980), há a necessidade de identificar como os processos comunicacionais
a mídia amapaense (numa escala local inicialmente) se relaciona com essa temática
e/ou como reforça positivamente ou negativamente na sociedade afroamapaense.
Este artigo tem como proposta refletir o diálogo a cerca da identidade na-
cional com a expressão psicossocial do Poder Nacional, e como ela se fragiliza ao
desconhecer direitos ao negro da Amazônia-Amapaense, marcando e reprodu-
zindo desigualdades sociais e como consequência, qual o papel da mídia local na
(des)construção, fortalecimento ou legitimação deste impacto para a população
afroamapaense, à luz da democracia brasileira para o seu desenvolvimento. Apro-
ximadamente 65% da população se autodeclarou como pretos/pardos no último
Censo de 2010. Porém, é nítido como este percentual não se reflete no quantitativo
de negros na autogestão pública, na política, na ciência, na tecnologia, na gestão
de grandes empresas, nos bancos das universidades públicas, dentre os médicos,
advogados e juízes do estado do Amapá. É reflexo do racismo estrutural ou da
decolonialidade na contemporaneidade?
297
A Constituição Federal de 1988 em seus artigos 215 diz que “O Estado garantirá
a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” e no 216
que se “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e ima-
terial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,” ambas
preveem o direito de preservação, valorização e difusão de sua própria cultura. Por
conseguinte, a Convenção nº169 da Organização Internacional de Saúde – OIT,
que foi ratificada através do Decreto nº 5051/2004, e revogada pelo Decreto nº
1º.088/2019, estabelece o direito de auto definição das comunidades tradicionais.
Por sua vez, a Lei 12.288/2012 – Estatuto da Igualdade Racial, (re) afirma os
direitos dos brasileiros quilombolas e tem em vista o combate a discriminação e as
diversas formas de intolerância contra os negros; sendo que a Instrução normativa nº
57 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Decreto
4.887/2003 são os instrumentos jurídicos que têm por objetivo a regulamentação
dos procedimentos das comunidades remanescentes. Iparrá (2014) acrescenta que:
298
Identidade do sujeito constitucional - cultura,
igualdade e diferença com as expressões do poder nacional
299
Entretanto, para uma grande parcela – da “sociedade marginalizada” –, ela
por si só, é bastante complexa e culturalmente não exprime igualdade, mas uma
realidade diferente com as expressões e o entendimento do Poder Nacional, em
paralelo a compreensão que os técnicos da área possuem ou parte da população
burguesa que há anos vêm se mantendo e fixando-se no poder, na politica, no
Estado. Tais sustentações estabelecem uma enorme lacuna para o entendimento
e a importância, assim, como, a formação coletiva/cultural desta identidade do
sujeito constitucional.
Chai entende que a palavra sujeito de certa forma é equivocada, pois ela
compreende, contem, expressa, exprime uma diversidade de significado dentro
do discurso que a identidade do sujeito é bastante complexa. Já a identidade do
sujeito constitucional é bastante complexa, pois pode ter diversos entendimentos:
1. Pode-se estar sujeito ao direito; 2. Podemos ser o sujeito de direito; 3. Ou po-
dem ser os direitos compartilhados dentro daquilo que chamamos de Estado de
Direito (não é qualquer estado de sujeito). Estado de Direito que tem o predicado
discursivo de dar qualidade ao sujeito, ou seja, trata-se da identidade do sujeito,
do SUJEITO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICO.
Baseando-se no entendimento de Habermas, apoiado pelo compromisso,
o sujeito constitucional democrático é aquele que no uso do exercício do discurso
na esfera pública, não basta que tenhamos o predicado de uma democracia para
a qualificar, para identificar o sujeito que somos nós, constituídos formalmente,
através ou por meio, com fundamento a norma constitucional. Mas sobretudo, que
esse exercício de construção, reconstrução e desconstrução que são permanentes e
inerentes a um esquadro de democracia, essas ações devem acontecer premidas e
movidas por um agir ÉTICO123. (HABERMAS, 2003)
Por fim, utilizo outra fala do professor Cássius Chai que diz “o sujeito consti-
tucional democrático somos todos nós que abraçamos o compromisso da não-ab-
solutização do poder, que abraçamos o compromisso com a necessária e inalienável
e instrumentalidade do controle reciproco ao exercício de suas funções públicas.
E por fim, seguindo a ideia de Chai à luz de Rosenfeld e Mackinder, apoiados
com o pensamento de Habermas, que chego ao entendimento do sujeito Lúcio
Dias em relação ao “Sujeito Constitucional Democrático”, enquanto pesquisador
das comunidade tradicionais da Amazônia Negra Amapaense, através do Programa
123 (transcrição da fala de Prof. Cassius Chai, vídeo: O que é identidade do Sujeito Constitucional?
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=eetaMHUgwH0&t=8s>. Acesso em 08 nov. 2022.
300
de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia PPGCOM/UFPA, com
o apoio fundamental e importância da disciplina Geopolítica, Institucionalidades e
Desenvolvimento, do Programa de Pós-Graduação em Instituições do Sistema de Jus-
tiça – PPGDIR/UFMA, sob responsabilidade do Prof. Dr. Cássius Guimaraes Chai.
Tais exposições acima demonstram as análises iniciais, na verdade as análises de
quem está no início da apropriação das leituras sugeridas na disciplina, onde possuo
mais “interrogações/indagações” ao tentar responder a esta pergunta proposta por
ti. Em suma, estou em processo de total desconstrução para poder construir ou
reconstruir algo a partir deste novo olhar.
301
para o objeto de pesquisa na Amazônia Negra Amapaense dentro do PPGCOM/
UFPA, no qual tem-se uma visão empírica sobre as lutas e autoafirmação desta
população pelos seus direitos, mas que somente serão legitimadas (ou não) a partir
do momento que a pesquisa for a campo para poder “dar vez e voz a quem é de
direito: as populações dos quilombos e dos bairros pretos do Amapá, pois através
desta pesquisa com estes sujeito, podemos efetivamente contrastar os dados desta
população afroamapaense com o que é dito sobre eles nas mídias locais, nacionais
e de como são vistos pela mídia internacional.
Maia (2018) argumenta sobre possíveis caminhos para a análise produtiva das
representações nos média quando nos aponta que, no cotidiano os profissionais
de comunicação precisam selecionar alguns aspectos da realidade percebida, a
qual se encontra em um fluxo constante, uma vez que é impossível contar uma
história sem o seu devido enquadramento, no entanto, eles têm uma considerável
autonomia para enquadrar histórias e interpretar o que está acontecendo e que
ao mesmo tempo que os conflitos sociais sofrem alterações, novas contradições e
novas formas de dominação podem ser criadas.
Meu argumento é que nem a passagem de imagens ‘negativas’ para ‘positivas’
no ambiente de mídia interconectada, nem o avanço de imagens excessivamente
simplificadas para outras mais plurais, necessariamente eliminam a degradação e
subjugação [...] basta ressaltar a complexa ligação entre os discursos e as represen-
tações dos media e os significados culturais que subjazem aos conflitos sociais e
políticos”. (Id. 2018, p. 73-74)
A abordagem da teoria do reconhecimento considera a ordem social como
permanentemente orientada pelo conflito e sustenta a ideia de que experiências
marcantes de desrespeito e de reconhecimento distorcido garantem a motivação
para que os grupos desfavorecidos lutem por reconhecimento.
Considerações finais
302
pequenos e médios agricultores, principalmente para o pequeno e médio produtor
das florestas e comunidades tradicionais da Amazônia- Amapaense, o verdadeiro
Ubuntu124. Um vez que é papel da universidade através da pesquisa e extensão
proporcionar meios para o desenvolvimento local e circunvizinho da região em
que esteja inserida; um compromisso social das empresas mistas e/ou privadas
(Marketing 3.0); e do estado tanto na esfera federal, quanto estadual e municipal,
por força de lei, decretos, minutas, metas, dentre outros.
Dentro das comunidades quilombolas e dos bairros pretos da Amazônia-Ama-
paense são produzidas diversas atividades em harmonia com a biodiversidade local,
a exemplo: O Mel produzido na Pedreira, os biscoitos de Mazagão Velho, o abacaxi
de Porto Grande, o grude da Gurijuba na rampa da orla do Oiapoque, as louças
produzidas no Maruanum e em Mazagão velho, as biojóias a partir das escamas
e couro de peixe no distrito do Coração, a agricultura, pecuária, cultivo do açaí,
da castanha do Brasil na reserva do Cajari, dentre outros...que podem contribuir
diretamente para o desenvolvimento regional. Além do fortalecimento dos laços
ancestrais herdados da cultura africana fortemente afirmados através das rodas de
marabaixo125 - reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil (IPHAN, 2018),
do batuque e dos versos do ladrões de marabaixo, no cotidiano dos afroamapaenses.
Ao afirmar que pode-se contribuir com o desenvolvimento local, é justamente
sobre a premissa que toda essa produção é sub-explorada, possui atravessadores,
intermediadores e que efetivamente quem produz, não tem o retorno real do que é
comercializado. É justamente neste sentido que os direitos do negro na Expressão
Psicossocial do Poder Nacional, contraditoriamente, são negados. Visto que, são
explorados por grandes fabricantes que usam a marca amazônia como diferencial
de mercado e pagam valores surreais para compra da matéria-prima aos povo da
floresta e das comunidades tradicionais da Amazônia-Amapaense, porém, não
contribui diretamente para a manutenção da biodiversidade local, e muito me-
nos para o desenvolvimento econômico, social, educacional, cultural da região.
Nos estudos realizados por Neves (2020) sobre Tecnologia Tradicional a partir da
produção artesanal das cerâmicas na comunidade quilombola do Maruanum, a
pesquisa apontou diversas possibilidades para o desenvolvimento local:
303
sustentável; tecnologia tradicionais da amazônia; geografia
espacial, social, dos povos da amazônia; processos comuni-
cacionais; empreendedorismo; cultura a partir das rodas de
marabaixo e da fabricação das louças do Maruanum, dentre
outros (NEVES, p. 54, 2020)
Referências
304
BRASIL. LEI Nº 12.288/2010: Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis
nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24
de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm>. Acesso
em 08 nov. 2022.
BRASIL. Lei Federal de Inovação: nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016. Dis-
ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/
L13243.htm>. Acesso em 08 nov. 2022.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
______________. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 2 v.
MAIA, R. Representação na Mídia, Construção da Identidade e Conflitos Sociais:
por uma abordagem teórica do reconhecimento. In: MAIA, R. M ídia e Lutas por
Reconhecimento. São Paulo: Paulus, 2018, p. 59-86.
INPI. Instrução Normativa 095/2018: estabelece as condições para o Registro
das Indicações Geográficas. Ministério da Industria, Comercio Exterior e Serviços,
2018.
PARRÁ, Danielson da Silva; Roni Mayer LOMBA. Santa Luzia Do Maruanum
I: uma análise do quilombo em face ao processo de reconhecimento e delimitação
do território. VII Congresso Brasileiro de Geógrafos. Vitória/ES, 2016. Disponivel
em: <http://www.cbg2014.agb.org.br/resources/anais/1/1405548299_ARQUI-
VO_ArtigoSantaLuzia.pdf>. Acesso em 08 nov. 2022.
IPHAN. Expressão cultural amapaense, o Marabaixo, é reconhecido como
Patrimônio Cultural do Brasil. Portal do IPHAN, 07 de novembro de 2018,
às 14h54. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1941>;
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Marabaixo.pdf>. Acesso
em: 08 nov. 2022.
NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980.
NEVES, Lúcio Dias das. Indicações Geográficas do Amapá: mestria das louças
produzidas no quilombo do Maruanum. Relatório Técnico (Mestrado em Ad-
ministração) – Universidade Federal do Amapá, Programa de Pós-Graduação em
Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação Tecnológica.
Macapá, p. 66. 2020. Disponível em: <https://www.profnit.org.br/wp-content/
305
uploads/2021/01/LUCIO-DIAS-DAS-NEVES-Relatorio-Tecnico.pdf>. Acesso
em 08 nov. 2022.
SILVA, TARCÍZIO. R acismo Algorítmico em Plataformas Digitais: microagres-
sões e discriminação em código. In: SILVA, T. (org). Comunidades, Algoritmos
e Ativismos Digitais: olhares afrodiaspóricos. São Paulo: LiteraRUA, 2020, p.
120-137.
306
UMA MULHER INDÍGENA:
NOTAS SOBRE A PARTICIPAÇÃO
DE SÔNIA GUAJAJARA NAS ELEIÇÕES
PRESIDENCIAIS DE 2018126
Una mujer indigena: notas sobre la participación de Sônia Guajajara en las elec-
ciones presidenciales de 2018.
An indigenous woman: notes on Sônia Guajajara’s participation in the presidential
elections of 2018.
Introdução
307
eleições de 2018. Usando a metodologia da comunicação, faremos uma análise
por meio dos comentários extraídos do Twitter, no período de março a outubro
de 2018, tendo como referência a midiatização da política nos ambientes digitais,
observando a participação feminina nos processos eleitorais e políticos. À luz
da teoria sobre intersecção de gênero de Crenshaw (2002) e da discussão sobre
feminismo comunitário e decolonial de Celentani (2014), a proposta visa revelar
que as discriminações sofridas por Sônia nas eleições são específicas das mulheres
indígenas, no sentido de serem vistas a partir de um olhar colonizado e atravessado
por ideais evolucionistas ultrapassados.
Sônia Guajajara é uma mulher indígena e milita pelas causas indígenas e ambien-
tais. Pertence ao povo Guajajara/Tenetehara, localizado na Terra Indígena Arariboia,
no estado do Maranhão (Figura 01). Sônia Guajajara nasceu em 6 de março de 1974.
Seu registro civil é Sônia Bone de Souza Silva Santos, mãe de Mahkai, Yaponã e
Ywara. Atuou nos encontros estaduais indígenas do Maranhão, no movimento
de ocupação da FUNASA, na interdição da Ferrovia Carajás-Vale, em 2005, no
Conselho de Direitos Humanos da ONU e nas Conferências Mundiais do Clima
(COP) de 2009 a 2017, e contra a PEC 215.
Com o apoio da Fundação Nacional do Índio, Funai, Sônia Guajajara, ainda
criança, mudou-se para Minas Gerais para cursar o Ensino Médio e regressou para
o Maranhão após a finali- zação da primeira etapa de seus estudos. Posteriormente,
ela graduou-se em letras e enfermagem e pós-graduou-se em educação especial.
Sua militância indígena e ambiental começou quando ela ainda era uma menina
e já integrava os movimentos de base, que envolviam interesses coletivos de ordem
cultural social e econômico de povos indígenas. O movimento cresceu a partir da
criação de associações e federações com atuação regional e nacional. Sônia Guajajara
iniciou sua trajetória política em instituições como a Coordenação das Organizações
e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão, COAPIMA, fundada em 2003.
Entre 2009 a 2013, trabalhou na Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia, COIAB. Posteriormente, passou a integrar a entidade de Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil, APIB.
308
FIGURA 01: Mapa da Terra Indígena Arariboia/MA, localizada, aproximadamente, a 530 km da Capital
São Luís, pela Rodovia MA 006.
No Congresso Nacional, foi linha de frente contra uma série de projetos - como
a PEC da Demarcação, PEC 215130, Proposta de Emenda Constitucional que
inviabilizava a demarcação de terras indígenas - que ameaçavam os direitos indí-
genas e o meio ambiente. Desde o início dos anos 2000, Sônia Guajajara defende
o território indígena como um lugar de existência, para o qual a vida dos rios, das
plantas e das pessoas se concentra e se conecta para além de se pensar uma terra
produtiva com fins capitalistas. Ela conquistou a confiança de lideranças indígenas
que a apoiaram significativamente, especialmente, por ser ela considerada entre os
indígenas como uma “parente”131.
Participou de vários eventos políticos para discutir a situação dos povos in-
dígenas brasileiros. Em agosto de 2017, por exemplo, esteve reunida na Terra
Indígena Alto rio Guamá, TIARG, com li- deranças de povos como Nara Baré,
uma das maiores ativistas femininas do movimento indígena brasileiro, durante
130 Com base em dados do site da FUNAI (2005), a PEC 215/00 propõe a transferência de responsabi-
lidades sobre a demarcação de Terras Indígenas (TI) do Poder Executivo para o Legislativo, e desrespeita a Cons-
tituição de 1988. A transferência dos poderes de decisão sobre as TIs pode deixar a permanência de sociedades
em suas terras em situação de vulnerabilidade, especialmente porque estará sujeita às maiorias políticas de ocasião.
Sabemos que, hoje, esta maioria representa interesses pessoais e financeiros e atua para que não seja demarcada
nenhuma TI, reiterado por parlamen- tares que compõe a Comissão Especial da PEC 215/00.
131 Termo de tratamento usado frequentemente por indígenas.
309
a XI Assembleia da COIAB, a fim de debaterem sobre o meio ambiente e sobre a
vulnerabilidade das políticas indigenistas que se desenhavam no cenário nacional.
Momento que usou para solidificar alianças e expor suas estratégias políticas em
benefício dos povos indígenas no país. Ganhou projeção internacional pela luta
travada em nome dos direitos dos povos originários. Em 2018, ela aceitou o convite
do Partido Socialismo e Liberdade, PSoL, para compor a chapa do partido e se
tornar candidata à vice-presidência do Brasil.
A participação de Sônia Guajajara nas eleições brasileiras de 2018 foi atravessada
por múlti- plos fatores de discriminação que vão além das desigualdades de gênero,
que a diferenciava apenas pelo fato de ser uma mulher indígena. Estas desigualdades
podem ser fundamentadas em relações de poder e nas imposições do patriarcado132.
Fatores relacionados à construção da imagem simbólica dos povos originários do
Brasil colocam as mulheres indígenas, que desconsidera as singularidades dos povos
e das mulheres indígenas em si. Esta forma de homogeneização pode ser um dos
fatores que contribuem para uma dupla ou tripla posição de subalternidade, a
saber: raça, gênero e classe. Esta discriminação se constitui como lógica da colo-
nização em forma de violência sistêmica, con- dicionando a resistência dos povos
subalternizados ao longo do tempo.
Neste artigo, analisamos como as intersecções entre gênero e discriminação de
raça e classe fizeram parte do período de campanha eleitoral de Sônia Guajajara.
Para isso, utilizamos como campo de pesquisa a rede social da internet Twitter.
Partindo de uma metodologia quanti-qualitati- va, para análise de comunicação,
extraímos de uma postagem na rede social Twitter133 50 comentários a respeito
da candidatura de Sônia Guajajara à Vice-presidência da República. O primeiro
“tuite” “#MeuRacistaSecreto” foi “tuitado” pela própria Sônia Guajajara no dia 1
de outubro de 2018. Esta postagem, assim como as seguintes, nos deu base para o
início da construção do nosso cor pus de análise e para continuarmos a pesquisa.
Assim, reunimos vinte e sete (27) comentários. No segundo “tuite”, desta vez,
tuitado pelo Portal de Notícias G1 no dia três de março de 2018, foram colhidos
23 comentários.
132 O patriarcado designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou, ainda mais sim-
plesmente, o poder é dos homens. DELPHY, Christine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, H. et al (org.).
Dicionário Crítico do Feminis- mo. Editora UNESP: São Paulo, 2009, p. 173–178.
310
Considerou-se, nesta análise, a comunicação como lugar não apenas de percep-
ção dos processos de sociação, como parte fundamental dos contatos e interações
sociais de reciprocidade en- tre os indivíduos, como organização e participação na
política comunitária, formação de lideranças políticas, ativismo nas redes sociais,
mas, antes de tudo, como um ambiente paradoxal que envolve relações de diálogo
e conflito no encaminhamento das questões sociais e políticas, o que nos leva a pos-
sibilidades outras de interpretação, considerando o ambiente midiático de grande
publicização em que a midiatização da política atinge um alto grau de importância,
tanto no sentido da formulação do discurso como na sua prática, influenciando as
estratégias de informação e as perspectivas de decisão, uma vez que a visibilidade
determina, em larga escala, os resultados nos processos elei- torais, considerando
tanto a imagem política formada quanto os atores políticos, especialmente, o eleitor
na forma de engajamento e lógica de decisão.
Fazer, portanto, a análise de comunicação, neste caso, usando o Twitter da Sônia
Guajajara no período eleitoral, nos permitiu entender a visibilidade política no
fluxo de suas mensagens a partir da relação entre candidatos e apoiadores, como um
processo de compartilhamento e participação, próprio das redes sociais, lugar em
que se processa parte das relações dialógicas e conflitantes nas formas de sociação
na contemporaneidade. Nesse sentido, é preciso considerar a comunicação como
uma prática e a experiência de viver esta prática, por um lado, e a interação com
o outro, questão fundamental da reflexividade (FRANÇA 2016, p. 159-161),
ampliadas pelas tensões e re- sistências próprias da política.
311
das minorias e dos movimentos sociais contemporâneos nas lutas pela emancipação.
Para Adriana Medina Espino (2010):
312
Há, entretanto, de se salientar que a representação partidária136 feminina ainda
tem um longo caminho a percorrer, em função dos mecanismos que os partidos
utilizam para burlar a legislação de cotas e o fundo financeiro eleitoral, em prol
de candidatos com mais chances de eleição e reeleição, tradicionalmente homens.
Araújo (2005) frisa: “Assim, ao lado de posições ideológicas, são os cálculos elei-
torais que influenciam na esfera organizacional, definem as estratégias partidárias
e o lugar dos atores nessas estratégias, inclusive o recrutamento e os investimentos
eleitorais” (ARAÚJO, 2005, p. 194).
Em 2018, uma pesquisa realizada pelas professoras Malu Gatto137, da University
College London (Reino Unido), e Kristin Wyllie138, da James Madison University
(EUA), divulgadas pela BBC News139 em 2019, revela quais os partidos políticos
mais lançaram como candidatas à câmara dos deputados mulheres laranjas140. As
pesquisadoras revelam que, entre os 20 anos de existência da legislação, as can-
didaturas de laranjas mulheres saltaram de 18%, em 1998, para quase 50%, em
2014, do total de candidaturas de mulheres.
Esse aumento exorbitante de possíveis candidaturas de “mulheres laranjas”
ao longo dessas duas décadas, também pode ser interpretado pelo fato de que, em
2009, a redação da lei que exigia que a reserva de 30% das vagas fosse destinada à
candidatura de mulheres passou a determinar o preenchimento desse percentual.
Desse modo, nas últimas eleições legislativas (2018), os partidos analisados lança-
ram candidaturas de fachada para burlar a lei de cotas e desviar recursos do fundo
eleitoral, seja para beneficiar o partido ou redirecionar esse recurso financeiro para
financiar cam- panha de políticos tradicionais, no caso, em sua maioria homens.
Essa adoção de candidaturas de mulheres “laranjas” ocorre, sobretudo, como
justificativa ao fato de que “o sistema eleitoral está, também, relacionado a padrões
de homens tende a gerar padrões de eleição e perfis com potenciais eleitorais também
associados aos padrões masculinos” (ARAUJO, 2010, p. 196).
136 Ver Clara Araújo - Partidos políticos e gênero: Mediações nas rotas de ingresso das mulheres na repre-
sentação política.
137 Professora Assistente no Instituto de Política Latino-Americana da University College London. Pesqui-
sa sobre represen- tação política com foco na América Latina.
138 Professora Assistente no Instituto de Política Latino-Americana da University College London. Pesqui-
sa sobre represen- tação política com foco na América Latina.
139 Departamento de notícias da British Broadcasting Corporation, BBC, responsável pela área de jor-
nalismo e notícias da corporação pública, e pela produção de seus programas de notícias, tanto para a televisão
como para a rádio e internet.
140 Candidaturas de fachada, usadas geralmente para burlar o sistema eleitoral e o fundo de finan-
ciamento eleitoral.
313
A tabela abaixo mostra os partidos que mais lançaram possíveis candidaturas
de fachada em 2018. A metodologia utilizada pelas professoras, para apurar e di-
ferir quais candidatas eram pouco competitivas e quais eram possíveis candidatas
laranjas, foi realizada a partir da comparação entre a competitividade de candidatos
homens e mulheres ao longo dos últimos 24 anos (1994-2018). “As pesquisadoras
identificaram que ao passo que a lei de cotas femininas são ampliadas, por exem-
plo, com sanções mais severas, os partidos passam a indicar mais mulheres como
candidatas, mas ape- nas para constar e evitar serem punidos por não cumprirem
o percentual mínimo”.
TABELA 01
Candidatas laranjas por partido político, na eleição de 2018 para a câmara dos deputados
Partido Candidatas mulheres % de possíveis candidatas laranjas Quantidade de mulher laranja para cada homem
laranja do partido
314
Os dados da pesquisa em questão apontam para uma relação de poder entranha-
da, simbo- licamente, na sociedade que valoriza as relações entre homens e exclui
as mulheres de espaços políticos. Atitudes que se intercruzam com alguns aspectos
do movimento sufragista, já citado, quando somente os homens tinham direito ao
voto. No entanto, a luta das mulheres por igualdade de direitos conquistou espaços
relevantes, que resultou no fortalecimento das discussões e ações, até chegarmos,
em 2010, à eleição da primeira mulher presidenta do país, Dilma Vana Rousseff,
eleita com mais de 56% dos votos válidos e que contrariou o cenário político bra-
sileiro, que, histo- ricamente, excluiu as mulheres das posições de chefas de estado.
Após a visualização e análise dos dados apontados na tabela 01, acima, faremos
um deslo- camento para comparar, compreender e analisar a participação de Sônia
Guajajara nas eleições à presidência da república brasileira em 2018.
315
RedeTV.143 Do outro lado, haviam aqueles que se identificavam com o discurso
misógino e racista do candidato, sendo estes correspondentes a 1/3 do eleitorado
nacional, a exemplo, o ocorrido no dia 30 de setembro de 2018, em que dois can-
didatos, ao cargo de deputado estadual, Rodrigo Amo- rim (PSL/RJ), e o deputado
federal Daniel Silveira (PSL/RJ), quebraram uma placa em memória da vereadora
do Rio, Marielle Franco, militante e ativista feminista negra e LGBTI e das mino-
rias, assassinada, juntamente com o seu motorista, Anderson Gomes, em razão de
sua atuação política. Conforme a denúncia apresentada pelo Ministério Público,
MPRJ, à Justiça do Rio, TJRJ, o crime foi classificado como um “golpe ao Estado
Democrático de Direito”144.
Além do cenário hostil que se encontrava a corrida presidencial – a dissemina-
ção de fake news e discursos de ódio nas redes sociais, a violência por motivações
políticas como o assassinato do compositor e mestre de capoeira, Rômulo Rosário
da Costa, Moa do Katendê –, Sônia Guajajara teve que enfrentar o fato de que
nunca, na História do Brasil, uma mulher indígena havia chegado à candidatura
de um cargo tão alto. No entanto, sua experiência como militante do movimento
indígena, que luta por garantias de direitos ao território, à saúde, à educação e à
cultura, manteve-a firme contra posicionamentos, muitas vezes, preconceituosos
dos partidos adversários.
Sua candidatura foi de encontro ao padrão político, caracterizado por uma
cultura hege- mônica, na qual políticos eleitos para o exercício de mandato, tanto
no poder executivo quanto no legislativo, são majoritariamente compostos por
homens, e quando mulheres, brancas. Espino (2010) salienta que: “Aun cuando
el derecho al sufragio ha habilitado a las mujeres a participar en la política, no ha
logrado superar las desventajas derivadas de su condición y posición de género,
a las cuales se suman otras como la etnia, la edad, el grupo social de pertenencia,
etcétera” (ESPINO, 2010, p. 19).
143 https://www.redetv.uol.com.br/superpop/videos/ultimos-programas/bolsonaro-diz-que-nao-paga-
ria-a-mulheres-o-mesmo-salario-dos-homens>. Acesso em: 08 nov. 2022.
144 disponível em: <https://www.bbc.news.com/portuguese/brasil-47539123>. Acesso em: 08 nov. 2022.
316
GRÁFICO 1
145 Sojouner Truth (1797-1883) foi uma abolicionista afro-americana e ativista política pelos direitos
das mulheres.
317
debate, por exemplo, sobre como a ideia de delicadeza e fragilidade é inerente
às mulheres brancas, uma construção que não se aproxima das mulheres negras
ou indígenas quando se leva em consideração o sistema de escravidão pelo qual
elas passaram e as vulnerabilidades, como a exploração sexual, que esse sistema
desenvolveu. Sobre isso, Angela Davis escreve:
318
nacional em especial, podemos observar como a questão dos múltiplos sistemas
de opressão contra essas mulheres afetam sua inserção na lógica dessa sociedade.
Quando Sônia Guajajara deixou sua comunidade para estudar em Minas Gerais,
por exemplo, para além da discriminação de gênero enfrentada por ela seja na
própria aldeia como na zona urbana, ela teve que enfrentar os estereótipos que
pesam sobre o seu povo, no caso, “indígena tem que viver nas aldeias, caçando e
pescando para sua própria subsistência”. Em entrevista (2006) para o blog do Ins-
tituto Socioambiental, ISA, Sônia Gajajara responde algumas questões que podem
ser esclarecedoras sobre seu cotidiano como mulher e como ativista:
319
ISA- E qual é o seu principal desafio, estando à frente da Ar-
ticulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que comanda
as mobilizações de mulheres e homens indígenas em todo o
Brasil?
Como pondera Celentani (2014), a análise abaixo busca evidenciar como os dis-
cursos racistas e de discriminações de gênero específicas contra as mulheres indígenas
esteve presente no período de campanha eleitoral de Sônia Guajajara, em 2018.
320
Análise dos comentários no Twitter
TABELA 02
Comentários
Racistas/
Comentários Outros Total de
Classe/Estereó- Discriminação
Comentários Comentadores
tipos de Gênero
Comentários de 4 0 8 12
Mulheres
Comentários de 23 3 12 38
Homens
Total 27 3 20 50
321
O comentário a respeito do lançamento de Sônia Guajajara como pré-candidata
à vice-presidência da República pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSoL), do
Portal de notícia G1, tuitado por ela em 3 de março de 2018, evidencia alguns
indicadores de discriminação de raça e classe sofridos por Sônia, mas que eviden-
ciam, também, um olhar histórico e depreciativo sobre povos indígenas no Brasil,
porque questionam e põe em dúvida os conhecimentos de Sônia Guajajara, apenas
por ser uma indígena.
A fala evidencia a misoginia, uma vez que a cobrança sobre sua capacidade
recai sobre a mulher, enquanto que os candidatos Guilherme Boulos ou mesmo
o Jair Bolsonaro não sofrem maiores pressões do internauta. Apesar da ativista ter
duas formações em nível superior e um histórico extenso de luta e participação na
política nacional, o fato de ser in- dígena a coloca num lugar de subalternidade
por parte daqueles que se dizem detentores do poder e do saber, desconsideram o
conhecimento milenar incorporado na então candidata.
O usuário do Twitter atualiza um discurso evolucionista e civilizatório ao tratar
a cultura e os saberes ocidentais como superiores. Logo em seguida, a expressão
“Cala-te Boca” corrobora com a realidade a que os povos indígenas estão imersos,
no caso, ao processo danoso de silenciamento e à falta de políticas afirmativas que
valorizem e reconheçam as questões culturais e as singularidades de cada povo. Para
Celentani (2014), “o racismo, produto do colonialismo, este detentor do poder e
do saber, se carac- teriza como uma expressão inerente a uma cultura dominante
quando esta exige o reconhecimento de sua hegemonia”. “Índio não ter terra, mas
índio ter internet de homem branco kkkkkk” (@comentador, 1 de outubro de
2018). O comentário acima foi extraído de um “tuite” de Sônia em sua página no
Twitter (@GuajajaraSonia).
No comentário em questão, o personagem identificado como “@comentador”
ironiza o uso da tecnologia por Sônia. A ideia de que o indígena não pode utilizar
o aparato tecnológico desen- volvido pela cultura dominante, com a justificativa
de que se perde a identidade, é predominante da cultura hegemônica, esta que se
diz porta-voz do poder e do saber. Há de se pensar, por outro lado, que em toda e
qualquer sociedade a cultura não é estagnada. Ela agrega novos conhecimentos e
práticas, e Sônia utilizar uma determinada inovação tecnológica ou viver em uma
sociedade urbana não muda o fato de ela ser indígena, pois continuará a sofrer
discriminação de raça, devido à sua identificação cultural e aos seus fenótipos.
O comentário deixa ver algumas das contradições vivenciadas pelos povos
322
indígenas, desde a invasão portuguesa e a apropriação de suas terras, que perpassa
pelo domínio de tesouros, como ouro e outros produtos preciosos em troca de
facões e espelhos. Passa pelo esquecimento de lín- guas e de rituais. O contato
do indígena com o “homem branco” trouxe uma noção de hegemonia da cultura
europeia “civilizada” em relação a outras culturas. Trouxe doenças para os indíge-
nas, uma das causas de mortes e busca de médicos na cidade. O contato trouxe a
necessidade dos in- dígenas aprenderem a língua e as leis “do branco” para defen-
derem seus direitos. Usar um tênis, um aparelho de celular, a internet, cursar uma
universidade são ações políticas, que em nada vão interferir no ser indígena, mas
são instrumentos de defesa e de luta por seus direitos e garantias para o futuro.
A palavra índio, que aparece duas vezes em um comentário construído por doze
palavras, reflete uma espécie de padrão que uniformiza as sociedades indígenas,
fortemente entranhado em nossa sociedade, vinculada à ideia de que o índio, para
ser índio, tem que estar na floresta caçando. Índio é uma fabricação do “branco”.
Para os povos indígenas, existem, entre outros, os Tenetehara, Kayapó, Terena, Suruí
e os Guajajara. A escrita do internauta também desconsidera a língua de cada povo
indígena e evidencia uma das imagens mais fortes e negativas construídas sobre o ser
indígena, ‘sua fala errada da língua portuguesa’, como já destacamos anteriormente.
Considerações finais
323
evolucionistas ultrapassados, que elas são pessoas exóticas, selvagens e, por isso,
devem estar no meio da floresta, não na cidade, em meio ao mundo “civilizado”.
Ao considerarmos os ambientes midiatizados como lugares efetivos do discurso
de poder, no seu alto nível de midiatização, vamos observar que o processo de par-
ticipação política e o compar- tilhamento leva à escolha de perfis discriminatórios,
à evidência de conflitos, a formas estereotípicas de raça e gênero, revelando, de
maneira exacerbada, os modelos conservadores e totalitários.
Em certo sentido, a política se volta contra o seu próprio discurso de liberdade,
permitindo a en- trada compartilhada das formas mais primárias da contra-política,
que se baseia, principalmente, no conflito. Por esta lógica, podemos observar que
a análise do Twitter nos levou a outras redes sociais, que, via de regra, reproduzem
este modelo produzido pela midiatização, oferecendo, em paralelo, um processo
de engajamento político que influencia diretamente os resultados dos processos
elei- torais, como o foi o caso das eleições de 2018 no Brasil.
Observamos neste trabalho que, apesar do extenso espaço temporal que nos
separa da colo- nização europeia, dos processos históricos e políticos que atravessa-
mos, assim como as revoluções tecnológica e industrial, algumas ideias equivocadas
e colonizadas continuam presentes em nossa sociedade. E alguns discursos sobre
sociedades indígenas, por exemplo, continuam a se propagar independente do
suporte midiático utilizado, seja por meio dos livros didáticos, nas páginas dos
jornais impressos, seja por meio da televisão, ou por meio de plataformas digitais,
como o Twitter.
Outro ponto relevante observado no comentário em relação à escrita, é a for-
ma sequencial da letra “K”, uma característica da linguagem utilizada no universo
virtual das redes sociais na con- temporaneidade e que está atrelada a uma ideia
de ironia, algo engraçado, muitas vezes, de ordem depreciativa. Neste sentido,
podemos deduzir que o internauta se referiu de modo irônico ao fato de Sônia
Guajajara se candidatar à vice-presidência da República, visto que é uma indígena
e “índio só sabe sobre mato”.
Acreditamos que a temática do gênero, raça e classe foram evidenciadas, a partir
do nosso corpus, durante as eleições presidenciais de 2018, especialmente, no sentido
de pensar a mulher indí- gena como um ser “sem” conhecimento relevante, exótico
e que fala errado. Uma pessoa que deve morar na floresta e não deve usar elementos
tecnológicos, porque são de uso “do homem branco”. No entanto, o discurso e o
324
trabalho da militante estão ligados à busca pelo respeito e reconheci- mento dos
povos indígenas brasileiros.
Referências
325
PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE, PSOL. Conheça Sônia Guajajara,
primeira indígena em uma pré-candidatura presidencial. 14 de março de 2018.
Disponível em: <http://psol50.org. br/conheca-sonia-guajajara-primeira-indige-
na-em-uma-pre-candidatura-presidencial/>. Acesso em: 08 de novembro de 2022.
PASSARINHO. N. Candidatas laranjas: pesquisa inédita mostra quais partidos
usaram mais mulheres para burlar cotas em 2018. BBC News Brasil em Londres.
Disponível em: <https://www.bbc.com/ portuguese/brasil-47446723>. Acesso
em: 08 nov. 2022.
SODRÉ, M. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede.
Petrópolis: Vozes, 2002.
326