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br/colunas/ronaldolemos/2020/03/procrastinar-e-trabalhar-para-os-
outros.shtml

Procrastinar é trabalhar para os outros

Ronaldo Lemos*

Regra do mundo contemporâneo: quanto mais nossas vidas vão ficando digitais,
maior é a tentação de procrastinar. A definição do termo inclui “adiar uma ação” ou
ainda “prolongar uma situação para ser resolvida depois”.

A procrastinação tornou-se hoje um dos desafios presentes no cotidiano de quem


está conectado à internet, especialmente os “millennials”.

A situação é familiar: você tem uma tarefa para fazer, com prazo para ser cumprida.
Em vez de terminar logo, para ter tempo livre, fica adiando ao máximo a execução,
até que o prazo se aproxima e a tarefa é então executada às pressas (e com
frequência em pânico).

Desde logo vale se tranquilizar um pouco. A procrastinação não é hoje um problema


individual, só da pessoa, mas, sim, um problema social.

Com a digitalização das nossas vidas a mercadoria mais importante na internet


passou a ser a atenção. Trata-se de um recurso limitado. Com isso, há hoje uma
competição brutal pela atenção dos usuários da rede. Nessa competição vale tudo:
criar plataformas altamente compulsivas, que se valem da lógica de cassino para
compelir os usuários a voltar o tempo todo. E é claro, vale também monitorar
exatamente qual é o gosto de cada pessoa, o que ela se interessa mais, para
oferecer conteúdo similar para prender sua atenção.

Com isso, quando alguém procrastina, na maior parte dos casos está deixando de
criar valor para si mesmo para criar valor para os outros.

Imagine só uma estudante universitária que tem um trabalho para redigir, mas em
vez de fazer isso prefere ficar em uma rede social atribuindo coraçõezinhos para
fotos postadas por seus amigos ou desconhecidos por horas a fio. O que essa
estudante está fazendo é —em vez de trabalhar no seu próprio interesse redigindo o
trabalho que precisa fazer— está gastando seu tempo criando valor não para si
mesma, mas a para a plataforma em que ela está inscrita.
Em outras palavras, procrastinar no mundo de hoje não significa não trabalhar.
Significa trabalhar para outras pessoas e empresas, que capturam o valor daquele
trabalho realizado na maior parte dos casos de forma gratuita.

Essa constatação põe em xeque a completamente a ideia de “lazer” e “trabalho”. No


mundo contemporâneo, dificilmente há algum momento em que não estamos
gerando valor para alguém. Quando andamos pelas ruas, nossos celulares
monitoram o caminho que fazemos e essa informação valiosa é transmitida para
várias empresas diferentes. Quando ficamos “de bobeira” na internet, tudo que
fazemos tem valor que, de novo, vai para várias empresas diferentes.

Nesse contexto, como então lidar com a procrastinação? O primeiro passo é ficar
ligado sobre o valor que estamos produzindo o tempo todo. A questão é quanto
desse valor está retornando para você e quanto dele está simplesmente sendo
capturado por outras pessoas e empresas.

É cruel: no mundo de hoje é muito mais divertido e prazeroso trabalhar para os


outros do que para si mesmo. Vale também lembrar que procrastinação é diferente
de ócio. Hoje, a procrastinação é o um mal que assola trabalhadores de toda sorte.
O ócio, por sua vez, é a liberdade total de empregar o tempo no seu próprio
interesse.

O ócio é seu amigo. A procrastinação não.

* Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo. 2 de março de 2020.

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