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TEXTO NÃO PUBLICADO

(julho de 2018)

A DEMOCRACIA GOLPEADA:
A ORDEM NEOLIBERAL E OS ATAQUES
CONTRA A EDUCAÇÃO PÚBLICA1

Fernando Nicolazzi
Departamento de História da UFRGS

Mas a ordem social e humana nem


sempre se alcança sem o grotesco e
alguma vez o cruel.

Machado de Assis

O golpe de Estado que destituiu a presidenta Dilma Rousseff em 2016


teve entre seus principais objetivos e efeitos a aceleração de uma ordem
neoliberal no Brasil, ocasionando a profunda transformação dos preceitos que
definem o Estado brasileiro estabelecidos pela Constituição de 1988. Sobretudo,
são os fundamentos da cidadania, entendida como a articulação de direitos
sociais, políticos e civis,2 que se encontram sob o forte ataque promovido pelas
variadas forças protagonistas do golpe, ocasionando uma rápida erosão do solo
democrático onde se assentam tais fundamentos.
Um dos alvos principais deste ataque é a educação pública, desde seus
mecanismos constitucionais de financiamento, passando pelas formas de sua
organização funcional e estruturação curricular, até o entendimento mais vasto
sobre o papel que os processos educacionais devem realizar para a construção
de uma sociedade democrática. O intuito deste texto é analisar brevemente as
consequências dessa situação, refletindo sobre suas consequências
econômicas, políticas e morais.
O argumento aqui colocado é o de que o golpe pode ser pensado como a
feição política da intensificação do capitalismo neoliberal no Brasil, daquilo que

1
Uma primeira versão deste texto foi apresentada no II Encontro de Educação e Humanidades
nas Ciências da Saúde: a utilidade dos saberes inúteis, realizado em setembro de 2017 pelo
Departamento de Educação e Humanidades da UFCSPA. Versões mais atualizadas foram
apresentadas como aulas nos cursos O golpe de 2016 e a nova onda conservadora no Brasil,
ministrado no âmbito do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, em maio de
2018, e O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil, realizado pelo Departamento de
História da UFOP, em junho de 2018. Agradeço aos amigáveis convites feitos,
respectivamente, por Ana Boff de Godoy, Claudia Wasserman e Andréa Lisly para participação
nos referidos eventos.
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CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Edição atualizada. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

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já foi chamado de “nova razão do mundo”, implicando, com isso, na produção de


sujeitos e de princípios morais que atuem em consonância com o
desenvolvimento dessa racionalidade de natureza eminentemente econômica e
empresarial.3 Assim, não há como desvincular este processo de constituição de
sujeitos morais dos mecanismos criados especificamente para fazer funcionar
este processo de subjetivação. No âmbito da razão neoliberal, a educação
desempenha um papel central na conformação dos sujeitos e, para tanto, ela
necessita ser transformada de forma ampla e perene.4
Esta “nova razão do mundo” é encarada como uma forma de sistema
normativo que incide diretamente sobre as modalidades de governo de si e dos
outros por meio das quais tanto os indivíduos quanto os Estados ao mesmo
tempo atuam e são submetidos a um processo constante, e normalmente
violento, de mercantilização de todas as instâncias da vida, seja em sua
dimensão íntima e pessoal, seja na dimensão social e política. Nesse sentido,
sem entrar na discussão de como este processo incide mais amplamente no
âmbito institucional do Estado, procuro sustentar que, no que diz respeito aos
indivíduos, a razão normativa neoliberal age segundo uma dinâmica de
subjetivação, ou seja, por meio de relações de poder e saber que tanto
possibilitam como determinam os modos pelos quais as pessoas se constituem
e se reconhecem enquanto sujeitos sociais e políticos.5 O sistema formal de
ensino em uma sociedade é certamente um dos principais elementos desta
dinâmica.
Os traços peculiares desse sujeito neoliberal, ainda que de forma
excessivamente breve, podem ser definidos da seguinte maneira. Em primeiro
lugar, trata-se de um sujeito que assume para si e incorpora em sua conduta o

3
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. Ver ainda LAVAL, Christian. A escola não é uma
empresa. O neoliberalismo em ataque ao ensino público. Londrina: Editora Planta, 2004.
4
O argumento colocado não desconsidera a historicidade própria do problema: o
neoliberalismo no Brasil e seus efeitos na educação não emergem apenas após a destituição
da presidenta Dilma, muito pelo contrário. O que se pretende aqui sustentar é o fato de que o
golpe acelera este processo, substituindo as premissas democráticas fundamentais que
deveriam definir as escolhas políticas da sociedade (o resultado eleitoral, por exemplo) por
mecanismos autoritários, portanto ilegítimos, de imposição de uma nova ordem.
5
A referência aqui, obviamente, são os trabalhos de Michel Foucault elaborados a partir de
meados da década de 1970. Para mencionar apenas uma e incontornável referência, ver
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Curso dado no Collège de France (1978-1979).
São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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ethos da concorrência. Se o funcionamento da economia neoliberal está ligado


antes ao princípio da competição do que ao da troca, a lógica que sustenta tal
funcionamento é sobretudo uma lógica concorrencial. Nesse sentido, assim
como as empresas se tornam cada vez mais competitivas na medida em que
mais se capitalizam, no neoliberalismo o indivíduo, encarado não apenas como
parte de uma empresa, mas ele próprio como uma empresa, apenas se torna um
“concorrente” apto quando se valoriza enquanto um “capital humano”. Essa
valorização econômica do indivíduo, sobretudo em uma sociedade de serviços
em que competências de comunicação e capacidades intelectuais funcionam
como valor agregado, passa decisivamente pela formação educacional. Assim,
a conjunção entre a lógica da concorrência e a capitalização do indivíduo toma
forma naquele que se tornou um personagem central no mundo contemporâneo:
o empreendedor.
O sujeito neoliberal é produto de um processo de “empreendedorização
de si”, se me é permitido usar o feio neologismo, processo esse atravessado de
ponta a ponta pelo sistema formal de ensino.6 E duas características se
apresentam como condições incontornáveis para a atuação do empreendedor,
estando presentes na forma como a educação neoliberal é pensada e projetada:
a flexibilidade, de um lado, e a despolitização, de outro. Flexibilização é palavra-
chave para o entendimento das atuais relações de trabalho e das leis trabalhistas
(ou da ausência delas). Dessa maneira, se a educação é pensada não apenas
como formação para a cidadania, mas também como preparação para o mundo
do trabalho, não há como evitar que o “flexível” se torne fator educacional
importante. O grande problema é conciliar uma coisa com a outra, ou seja, se
para o mercado de trabalho se faz necessário um trabalhador flexível, qual seria
o grau de flexibilidade aceitável para o cidadão no âmbito da cidadania?

6
“Educação para o empreendedorismo” tornou-se, nos últimos anos, quase um clichê nas
discussões a respeito das relações de ensino e aprendizagem em determinados setores
sociais. Para não me alongar nos exemplos, cito apenas a implementação em 2017 do
Programa Instituição Amiga do Empreendedor, uma parceria entre o Ministério da Indústria,
Comércio Exterior e Serviços com o Ministério da Educação e que tem por intenção, segundo
Paulo Barone, secretário de ensino superior do MEC, “qualificar os pequenos empreendedores
e aqueles, entre professores e alunos, que desejam ter uma formação de negócios”.
Informações disponíveis em http://portal.mec.gov.br/busca-geral/212-noticias/educacao-
superior-1690610854/52951-mec-coordena-lancamento-do-programa-instituicao-amiga-do-
empreendedor (acesso em 04/07/2018).

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Assim, a preponderância da economia (mercado de trabalho) sobre a


esfera política (cidadania) acaba tendo por efeito imediato justamente a
despolitização das condutas. Os direitos sociais, civis e políticos se tornam eles
próprios flexíveis, quando não absolutamente dispensáveis. No limite, a
abdicação da cidadania aparece como condição para o ingresso no mundo do
trabalho, que se torna cada vez mais precarizado não apenas econômica, mas,
sobretudo, politicamente. Considerando, então, o lugar da educação neste
processo, vejamos como isso tem ocorrido, nas suas variadas dimensões, neste
contexto de profunda transformação dos direitos sociais por que passa a
sociedade brasileira contemporânea.
No plano da economia, uma das principais medidas tomadas pelo poder
executivo, apenas quatro meses após a destituição de Dilma Rousseff, foi a
alteração no texto da Constituição, instituindo por um período de vinte anos um
novo regime fiscal e congelando os gastos federais com as despesas primárias
do Estado. Por meio da Emenda Constitucional 95/2016, ficou estabelecido
legalmente um limite para os gastos públicos, excetuando-se o pagamento da
dívida pública, com base no orçamento aprovado em 2016, o qual será por duas
décadas corrigido anualmente apenas pelo índice de inflação. Em certa medida,
pode-se considerar que o tempo dos investimentos sociais no Brasil poderá ser
estancado durante duas décadas: os calendários de 2036 serão, desse ponto de
vista, os mesmos de 2016.
Para o caso da educação, a EC 95 estabelece que até 2036 o
financiamento será fixado a partir do teto definido no ano de 2017, com a referida
correção inflacionária. Na prática, a medida de austeridade tomada pelo governo
inibe qualquer forma de ampliação dos investimentos na educação no Brasil e
ainda impõe à sociedade uma situação bastante perversa: para aumentar o
investimento com educação seria necessário diminuir o montante destinado a
outras áreas sociais, como a saúde, por exemplo. Considerando tratar-se de dois
setores fundamentais para a manutenção e para o desenvolvimento da
cidadania e dos direitos humanos no Brasil, ainda bastante carentes de recursos
para permitir o acesso amplo da população a eles, como seria possível escolher
um em detrimento do outro? Que princípios de ordem social ou ética poderiam
ser mobilizados para esta escolha? Certamente, a moralidade empresarial
definirá uma lógica puramente econômica para isso.

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O que merece ser destacado nesta medida é o fato de que o


financiamento da educação no Brasil passa a não ter qualquer tipo de vínculo
com o crescimento econômico do país. Com isso, o cumprimento da Lei
13.005/2014, que instituiu o Plano Nacional da Educação (PNE) e prevê como
meta, até 2024, a reserva de 10% do PIB para a educação não poderá mais ser
realizado. E se a Constituição de 1988, pensada no sentido de se criar as bases
sociais de um estado de bem-estar para a população, vinculava um aporte
mínimo de recursos destinados à educação de acordo com as receitas
resultantes dos impostos coletados (no caso, 18% das receitas no âmbito federal
e 25% nas esferas estaduais e municipais), o regime fiscal estabelecido pelo
golpe rompe o elo básico entre ampliação de receita e aumento de investimento
social. Não por acaso, medidas semelhantes a essa de desvinculação entre
investimentos na educação e receita de impostos foram tomadas por governos
ditatoriais, como em 1937, no Estado Novo, e em 1971, durante nossa última
ditadura civil-militar.7
Em outras palavras, considerando que o pagamento dos juros e da
amortização da dívida pública está fora dos limites impostos pela EC 95, o
crescimento econômico do país não será realizado em proveito do
desenvolvimento social de sua população, mas sim em favor do enriquecimento
de seus credores nacionais e internacionais, em sua grande maioria fundos de
previdência, fundos de investimento e instituições financeiras. Nesse modelo
neoliberal de Estado, o âmbito das finanças se distancia de forma cada vez mais
rápida da sociedade, espoliando os recursos produzidos por ela em prol de uma
concentração cada vez mais absurda da riqueza no próprio sistema financeiro.
As taxas de lucro dos bancos em situações de recessão econômica demonstram
isso.8

7
MELO, Adriana Almeida Sales de; SOUSA, Flávio Bezerra de. “A agenda do mercado e a
educação no governo Temer”. In: Germinal: Marxismo e Educação em Debate, vol. 9, n. 1,
2017, p. 27-28.
8
O lucro do Banco Santander no Brasil durante o primeiro trimestre de 2018 teve um
crescimento de 25,4%. No mesmo período, o desemprego também teve um crescimento,
atingindo o percentual de 13,1% na taxa de desocupação. Dados disponíveis em
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/04/lucro-do-santander-brasil-cresce-254-no-1o-
trimestre-com-aumento-da-receita.shtml e https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-
noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20995-desemprego-volta-a-crescer-no-primeiro-
trimestre-de-2018.html (acesso em 29/06/2018)

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Mas há outro elemento que torna ainda mais grave a situação: o


crescimento demográfico da população previsto para o período. Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira em
2036 será cerca de 10% maior que a existente atualmente.9 O gasto social por
habitante, nesse sentido, será substancialmente reduzido. Se considerarmos
ainda que, de acordo com dados do Ministério da Educação (MEC),10 havia em
2016 cerca de 48 milhões de pessoas matriculadas na educação básica, para
uma população em idade escolar de aproximadamente 63 milhões, sem
investimentos consideráveis o déficit de matrículas tende a se acentuar e, ao
mesmo tempo, tornar ainda mais precária a realidade das escolas públicas no
Brasil.
As estatísticas indicam ainda que por volta de 2030 a população brasileira
será predominantemente adulta, ou seja, a força de trabalho nacional se
encontrará no seu ápice demográfico, o que possibilitaria, em tese, o aumento
de sua capacidade produtiva. No entanto, a falta de investimentos e a
precarização da educação tornará igualmente precária a formação de seus
trabalhadores, intensificando o processo de segregação social já bastante
intenso a partir da expansão do precariado como relação social de trabalho.11
E é justamente neste ponto que outra medida tomada pelo governo federal
referente à educação vem complementar a situação. Em fevereiro de 2017 foi
aprovada a Lei 13.415, criada sem o devido debate público a partir de medida
provisória do Poder Executivo, que transforma profundamente a organização do
Ensino Médio no país. Alguns pontos merecem ser aqui discutidos.12 O primeiro
deles é a paradoxal ampliação da carga horária mínima anual, demandando
maior volume de investimento público justamente em um contexto de

9
Dados disponíveis em https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/populacao/9109-
projecao-da-populacao.html?=&t=resultados (acesso em 13/05/2018).
10
Dados disponíveis em http://inep.gov.br/censo-escolar (acesso em 13/05/2018).
11
BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado. Trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo:
Boitempo, 2017.
12
Não é de todo correta a afirmação de que a lei aprovada após o golpe apenas repete o
conteúdo da reforma proposta ainda no governo Dilma, por meio do PL 6.840/2013. Em
primeiro lugar, há uma importante diferença de encaminhamento: no contexto democrático em
que vivíamos, o Projeto de Lei seria submetido à discussão política; com o golpe, a reforma foi
implementada monocraticamente por meio de medida provisória. Além disso, o conteúdo dos
textos legais é sensivelmente distinto, já que o PL previa explicitamente como temas
transversais, por exemplo, educação sexual, ética na política e participação política e
democracia. A retirada destes pontos é um efeito direto da confluência dos interesses contidos
nesta reforma com os da ideologia Escola sem Partido, que serão discutidos mais adiante.

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congelamento dos gastos com a educação. Como, portanto, equacionar uma


medida que implica necessariamente em um aporte maior de recursos para sua
real efetividade, com outra que cria obstáculos incontornáveis à implementação
deste aporte?
A solução encontrada pelo governo foi a aprovação, em abril de 2018, de
um contrato de crédito no valor US$ 250 milhões, mantido com o Banco
Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), destinado ao
investimento no chamado “Novo Ensino Médio”.13 Ou seja, trata-se de uma
solução elaborada em consonância com a EC 95: limitam-se os gastos sociais
de modo a permitir um valor maior a ser destinado para o pagamento da dívida
pública, ao mesmo tempo em que se aumenta o montante da própria dívida a
ser paga. A espoliação econômica aqui se faz ainda mais perversa, na medida
em que é feita supostamente em nome do desenvolvimento da educação no
país.
Os problemas com a reforma do ensino médio, no entanto, não param por
aí. A nova lei estabelece que a maior parte da carga horária mínima obrigatória
para o ensino médio (2.400h de um total de 4.200h) seja destinada ao
“aprofundamento acadêmico”, segundo os termos oficiais, a partir do
cumprimento de “itinerários formativos” que serão escolhidos pelos estudantes
nas cinco áreas assim definidas: linguagens e suas tecnologias, matemática e
suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e
sociais aplicadas, formação técnica e profissional.14 Contudo, não há nenhum
mecanismo legal que torne obrigatório aos sistemas de ensino municipais,
estaduais e federais o oferecimento de todos os itinerários em cada uma das
suas escolas.
Dessa maneira, a educação pública poderá se encontrar na seguinte
situação: a existência de escolas localizadas em determinadas regiões que
formarão seus estudantes em apenas poucas áreas do conhecimento, quando
não tiverem suas formações restritas apenas a uma área específica, como a
técnica e profissionalizante, por exemplo. Ao contrário, portanto, da

13
Informação disponível em http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/211-218175739/63011-
ministerio-contara-com-reforco-de-us-250-milhoes-do-bird-para-implementacao-do-novo-
ensino-medio (acesso em 30/05/2018).
14
Informações disponíveis em http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=40361
(acesso em 30/05/2018).

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propagandeada flexibilidade que permitiria a cada estudante seguir “o caminho


de suas vocações e sonhos”, a reestruturação do ensino médio condicionará os
indivíduos a formações que serão definidas muitas vezes à revelia de sua
vontade, seguindo tão somente as imposições determinadas pelo mercado de
trabalho. E num contexto de flagrante crise de legitimidade das humanidades em
escala global, pode-se imaginar quais serão as determinações dadas pela lógica
economicista e o grau de comprometimento para uma formação voltada para a
dimensão humanista da sociedade.
Nesse sentido, ao invés de realmente aumentar a carga horária de uma
educação que constitucionalmente foi pensada “visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho” (art. 205 da Constituição), a lei 13.415 poderá
restringir parte importante dos processos formativos dos estudantes,
notadamente aqueles voltados para o desenvolvimento amplo da pessoa e para
o efetivo exercício da cidadania.15 E se as escolas e sistemas privados de ensino
terão os meios para permitir que seus estudantes realmente percorram múltiplos
itinerários, a rede pública corre o risco de se tornar cada vez mais um mecanismo
de produção e reprodução de mão de obra com formação precária e, portanto,
com menos chance de inserção no mercado de trabalho ou, quando inserida,
destinada a ocupar postos forçosamente precarizados.
Como não poucos analistas já indicaram, a reforma do ensino médio se
liga a um fenômeno amplo de mercantilização e de privatização da educação
pública no Brasil, atendendo a interesses de grupos vinculados
predominantemente ao capital financeiro internacional. Um dos mais atuantes e
com maior poder de manobra é o grupo chamado Todos pela Educação, criado
em 2006 e mantido por grandes instituições financeiras, como os bancos
Bradesco, Itaú, Unibanco, bem como por fundações ligadas a empresas do porte
da Ambev, Natura, e de conglomerados de mídia como as organizações Globo.16

15
Sobre isso, ver a contundente carta escrita por César Callegari em seu pedido de demissão
da presidência do Conselho Nacional de Educação, ocorrida em 29/06/2018:
https://jornalggn.com.br/noticia/com-criticas-a-reforma-do-ensino-medio-presidente-de-
comissao-da-bncc-pede-demissao (acesso em 04/07/2018).
16
PERONI, Vera; CAETANO, Maria Raquel; LIMA, Paula de. “Reformas educacionais hoje. As
implicações para a democracia”. In: Revista Retratos da Escola, vol. 11, n. 21, 2017.

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Some-se a isso a voracidade com que fundos de investimentos globais,


como a Kroton Educacional, vêm intensificando suas formas de atuação tanto no
ensino superior como na educação básica, por meio de fusões e aquisições de
outros grupos, seja no âmbito de faculdades e sistemas de ensino privados, seja
na esfera editorial de produção de material didático voltado para a rede pública.17
A reforma do ensino médio atende plenamente aos interesses de uma formação
voltada exclusivamente para o posicionamento dos indivíduos no mercado.
Neste caso, antes dos valores sociais compartilhados, a lógica empresarial
parece prevalecer inconteste.
O pano de fundo dessa situação está intimamente vinculado ao
entendimento dos processos de ensino e aprendizagem apenas como respostas
a padrões e metas avaliativas para a educação. Exemplo disso é o peso dado
ao Programme for International Student Assessment (PISA), coordenado pela
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como
um dos principais orientadores das políticas educacionais no país. Realizado
apenas a cada 3 anos, os indicadores produzidos se concentram exclusivamente
nas áreas de leitura, matemática e ciências. Ou seja, trata-se de uma forma de
produção de estatísticas voltadas predominantemente ao letramento e ao
cálculo. O campo das ciências exatas também é valorizado, assim como, a partir
de 2015, a chamada “competência financeira” e a “resolução colaborativa de
problemas”.18
Se o PISA pode, de fato, ser considerado um instrumento útil para se
pensar os rumos da educação, suas limitações e o viés ideológico que o
sustentam requerem muitos cuidados e matizes em seu uso. Não é preciso muito
esforço, por exemplo, para perceber o modelo de racionalidade eminentemente
econômica que ampara a ideologia por trás dessa avaliação, assim como a
desconsideração de saberes voltados para o âmbito social e humanístico que,
assim, passam a ser igualmente desconsiderados no plano das políticas

17
KENJI, Allan. “Kroton Educacional: ‘em termos de educação pública nunca experimentamos
um inimigo com uma força social tão concentrada como esse’” (entrevista). In: Instituto
Humanitas Unisinos, 30 de abril de 2018. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-
noticias/578444-kroton-educacional-em-termos-de-educacao-publica-nunca-experimentamos-
um-inimigo-com-uma-forca-social-tao-concentrada-como-esse# (acesso em 13/05/2018).
18
Informações disponíveis em http://portal.inep.gov.br/pisa (acesso em 30/05/2018).

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públicas, quando não diretamente atacados pelo senso comum.19 Como os


indicadores gerados por essa métrica poderiam dizer algo a respeito da
formação para os direitos humanos, por exemplo? Além disso, seus efeitos no
próprio funcionamento das escolas engendram um clima de concorrência próprio
à realidade empresarial, quando os resultados da avaliação servem também
para bonificação da atuação docente, como espécie de “funcionário do mês” nas
escolas públicas.20
Nesse sentido, a reformulação do ensino médio, em consonância com a
medida econômica de congelamento dos investimentos em educação que
estrangulará o sistema público de ensino, funcionará como um mecanismo
político-social ainda mais intenso de hierarquização dos indivíduos de acordo
com os padrões formativos a que tiverem acesso, dividindo e separando aqueles
com possibilidade de ingresso no ensino superior e em carreiras profissionais
mais estabelecidas, daqueles cuja formação os condicionará ao ingresso direto
no mercado de trabalho, ocupando postos precarizados e condizentes com as
limitações de formação a que foram submetidos.21
A esses ataques que incidem na gestão econômica da educação e nas
formas político-sociais de sua organização e funcionamento, vem complementar
um outro ataque que acaba por se mostrar ainda mais violento, uma vez que
incide sobre a dimensão moral da sociedade e seu entendimento do que é e qual
a importância efetiva da educação e de seus profissionais. Esse ataque é
protagonizado especialmente pelos defensores e difusores da ideologia
chamada “Escola sem Partido” (ESP) e aqui se percebe como à agenda
neoliberal se junta a pauta conservadora encabeçada, sobretudo, pelo
fundamentalismo cristão.

19
Como mostra a questionável matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo, em
16/04/2017, intitulada “Filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em matemática”.
Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/04/filosofia-e-sociologia-
obrigatorias-derrubam-notas-em-matematica.shtml (consulta em 13/05/2018)
20
ALAVARSE, Ocimar Munhoz. “Pisa, um viés ideológico” (entrevista). In: Carta Educação, 15
de março de 2016. Disponível em http://www.cartaeducacao.com.br/entrevistas/pisa-um-vies-
ideologico/ (acesso em 13/05/2018); BULLE, Nathalie. “PISA: une ingérence douteuse”. In:
Revue Skhole.fr., 14 de março de 2017. Disponível em http://skhole.fr/pisa-une-ingerence-
douteuse-par-nathalie-bulle (acesso em 13/05/2018).
21
Em nossa sociedade, há uma relação direta entre a formação no ensino superior e a renda.
Segundo dados da OCDE, a diferença salarial entre um trabalhador com diploma universitário
e outro sem chega a ser de 140% no Brasil, a maior entre 40 países analisados. Informação
disponível em https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/09/12/trabalhador-com-nivel-superior-
ganha-140-a-mais-mostra-estudo.htm (acesso em 29/06/2018).

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Nascido como um programa em 2004 a partir da iniciativa do advogado e


procurador do estado de São Paulo, Miguel Nagib, o ESP ganhou evidência
quando foi transformado em projetos de lei protocolados, a partir de 2014, em
diversas instâncias parlamentares, dos municípios até o congresso federal,
passando ainda por várias assembleias legislativas de diversos estados. Em sua
essência, em seus objetivos e em seu modus operandi, tal ideologia nada mais
é que uma campanha de ódio e de criminalização da atividade docente movida
contra professores e professoras de todo o país, sob a falsa alegação de que as
escolas se tornaram centros de doutrinação comunista que colocam em risco os
fundamentos da moral familiar, entendida por este viés ideológico como a moral
de caráter exclusivamente cristão-evangélico.
Não há absolutamente nada nos textos programáticos do ESP que possa
defini-lo como um projeto educacional. A relação que esta ideologia mantém com
o tema da educação é uma relação invertida, em negativo, pois inverte os
sentidos socialmente construídos da educação pensada em sua dimensão
crítica, voltada para uma formação cidadã e que permita de forma plena o
desenvolvimento e a atuação dos indivíduos no espaço público. Nesse sentido,
ao projeto de privatização econômica e política da educação pública, soma-se
aqui a privatização dos seus aspectos morais, misturando-se os pressupostos
empresariais do neoliberalismo com os princípios dogmáticos do
fundamentalismo religioso.
De acordo com os postulados defendidos pelo ESP, a educação é uma
prerrogativa reservada à família e à igreja cristã, cabendo à escola tão somente
trabalhar com os aspectos necessários à instrução individual, metrificada por
parâmetros avaliativos limitados. Como sustentam os defensores do programa,
o professor não é um educador, mas apenas um gestor de informação e
administrador de conteúdos que devem ser repassados aos estudantes. Todo e
qualquer conteúdo escolar pertencente à esfera da interpretação política e
social, bem como ao domínio da moral devem ser tratados exclusivamente
dentro do domínio familiar.
Em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados a respeito do
tema, em fevereiro de 2017, Miguel Nagib afirmou sem pudores que “quem diz
o que é moral ou imoral é o padre, o pastor, o pai e a mãe [...] O professor é um
burocrata. Ele transmite aos alunos o conteúdo do currículo, aquilo que está

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escrito e foi aprovado pelas autoridades competentes. Não lhe cabe dizer aos
filhos dos outros o que é certo e o que é errado em matéria de moral. Esse é o
ponto”.22 O educador que “invade” a seara familiar em matéria de moral é
considerado pelo próprio Nagib como um abusador infantil, um “estuprador”,
comparação feita pelo próprio advogado na mesma audiência pública em 2017.
Esse tema da moral incide notadamente nas discussões a respeito de
identidades de gênero e de orientação sexual nas escolas. As iniciativas
parlamentares que pretendem tornar o ESP uma lei voltam-se decisivamente
para a proibição de temas como estes em sala de aula. Em outras palavras,
conteúdos que tratam da diversidade social e que dizem respeito às formas de
constituição de si elaboradas pelos estudantes, definidoras das identidades
sociais, políticas, civis e, portanto, dos princípios básicos da cidadania, são
interditadas de acordo com tal ideologia. E, se levados ao pé da letra, estes
projetos de lei negam à escola, inclusive, a possibilidade de trabalhar assuntos
relacionados à sexualidade, como por exemplo, a prevenção de doenças
sexualmente transmissíveis.
Cabe destacar que o governo que assumiu o poder executivo após o
impedimento de Dilma Rousseff sempre se mostrou muito simpático às
demandas encabeçadas pelo ESP. Um dos primeiros compromissos do ministro
da educação assim que assumiu a pasta foi receber representantes de
movimentos sociais organizados em torno da defesa dos projetos do ESP,
nenhum deles ligados profissionalmente ao campo da educação (um deles,
inclusive, um conhecido ator pornô brasileiro). Considerando que a Frente
Parlamentar Evangélica compreende quase 200 deputados dos 513 que
compõem o Congresso Nacional, conclui-se que a simpatia com este projeto
assume interesses políticos envolvidos com a aprovação dos demais projetos de
destruição de direitos sociais encaminhados pela presidência, como a reforma
trabalhista e a reforma da previdência.

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Citado em PENNA, Fernando. “‘Escola sem Partido’ como ameaça à educação democrática:
fabricando o ódio aos professores e destruindo o potencial educacional da escola”. In:
MACHADO, André Roberto de A.; TOLEDO, Maria Rita de Almeida (orgs.). Golpes na história e
na escola: o Brasil e a América Latina nos séculos XX e XXI. São Paulo: Cortez, ANPUH-SP,
2017, p. 252. Cabe reconhecer aqui o papel fundamental desempenhado por Fernando Penna
na luta contra essa ideologia.

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TEXTO NÃO PUBLICADO
(julho de 2018)

Assim, ao esvaziamento dos sentidos sociais, definidores da educação,


promovido pelos cortes de financiamento e pela reestruturação da sua
organização no ensino médio, é preciso acrescentar o esvaziamento do papel
da escola como mediadora das instâncias pública e privada na sociedade, ou
seja, do papel que ela deve exercer na mediação entre a casa e a rua, cujo
objetivo principal é a formação política e ética de cidadãos efetivamente
preparados para a vivência na pólis. Não é à toa que para Nagib os aspectos
legais referentes à educação devem ser buscados não nos pressupostos da
cidadania, mas no Código de Defesa do Consumidor, já que o processo
educacional é por ele pensado simplesmente como o oferecimento de um serviço
de natureza eminentemente econômica, subsidiado pelo entendimento da
responsabilidade parental como uma relação de propriedade representada pelo
mote por ele constantemente repetido: “meus filhos, minhas regras”.
Percebe-se, portanto, como a razão neoliberal e a moral fundamentalista
coadunam-se num processo que, se não se iniciou naquele momento, foi
potencializado pelo golpe de 2016. Assim, o argumento aqui colocado é o de que
a destituição ilegítima da presidenta Dilma Rousseff intensificou e acelerou a
implementação de uma agenda neoliberal no Brasil que, ao menos no âmbito da
educação, concilia-se com interesses do conservadorismo religioso, operando
um mecanismo de privatização do ensino público em suas dimensões
econômica, política e moral. Entre os efeitos mais perversos deste processo
estão a despolitização das discussões públicas e a consequente
desdemocratização das instâncias sociais no país, a escola sendo uma dessas
instâncias principais. Ao sujeito neoliberal encarnado na figura do empreendedor
se junta aqui, portanto, a figura do moralista carola. Não à toa, a tópica “sou
liberal na economia, mas conservador nos costumes” se tornou recorrente entre
os agentes deste processo.
E se é apenas por meio de uma educação realizada de forma livre e
amparada por condições materiais razoáveis que uma sociedade pode se pensar
como democrática, nota-se como e em que medida vivemos hoje no Brasil em
uma democracia violentamente golpeada.

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