ROBERTO NOVAES DE SÁ Um das tendências centrais do pensamento filosó fico contem- porâ neo é a chamada desconstruçã o da noçã o substancialista da alma lumana, ou do sujeito, na terminologia da filosofia moderna. Subs- [ancialidade, aqui, nã o entendida apenas como característica do que tem um modo de ser extenso, mas daquilo que subsiste por si mesmo enquanto algo dado no mundo, ainda que em um modo nã o extenso, como a res cogitans cartesiana. Essa tendência desconstrucionista tem influenciado as prá ticas psicoló gicas clínicas de maneira significativa. Constata-se no heterogêneo campo dessas prá ticas, paralelamente à pevitalizaçã o dos projetos cientificistas biologizantes e fisicalistas, uma perspectiva crítica que tende a deslocar a questã o metafísica o que é O homem, qual a sua quididade, o seu ser em-si, para a questã o sobre o sentido do seu ser, ou seja, uma questã o hermenêutica. Com esse des- locamento do plano metafísico para aquele de uma hermenêutica que “e sabe irremediavelmente histó rica, as psicoterapias se definem menos à partir de formulaçõ es técnico-cientificas e se afirmam como prá ticas reflexivas de conhecimento e transformaçã o de si, envolvendo as di- fmensõ es ontoló gicas, estéticas, éticas e políticas da existência humana. As abordagens fenomenoló gicas e existenciais na psicologia têm um papel relevante nestas transformaçõ es histó ricas da psicoterapia, justa- mente por se inspirarem em uma concepçã o nã o metafísica de homem + assumirem uma posiçã o crítica com relaçã o aos projetos cientificistas da psicologia moderna. Apresentaremos neste trabalho algumas dificuldades que, ao nos- so ver, a crítica da moderna metafísica do sujeito encontra e o enca- minhamento que a questã o ganha no pensamento de Heidegger. Em seguida relataremos um caso clínico no qual as questõ es discutidas nos parecem essencialmente implicadas. Nã o estabeleceremos uma corre- laçã o pontual entre as noçõ es filosó ficas de Heidegger e o desenrolar do processo psicoterapêutico apresentado, até porque entendemos ser este um caminho perigoso, facilmente assimilá vel pela compulsã o técnico- científico de sistematizaçã o e controle dos entes. O saber clínico es- sencial é aquele que somos e nã o o que temos enquanto representaçã o conceitual, A contribuiçã o que buscamos na filosofia nã o é a de funda- mentaçã o de uma teoria psicoló gica, mas a de uma reflexã o essencial que, na medida em que afeta nosso horizonte de compreensã o e dispo- siçã o afetiva, altera necessariamente nosso modo de cuidado clínico. A crítica contemporâ nea ao sujeito, principalmente fundamenta- da nas filosofias de Nietzsche e Heidegger e amplamente desenvolvida no pensamento francês por Derrida, Deleuze, Foucault e na psicaná lise de Lacan, aponta a inconsistência da ideia de um eu ou si-mesmo hu- mano auto fundado na razã o e na vontade, suporte de uma identidade constante, coerente e auto transparente. Por outro lado, as desconstruçõ es de cará ter fisicalista, como as dos behaviorismos e de grande parte das neurociências, apesar de se apoiarem em uma perspectiva radicalmente distinta daquele desconstrucionismo filosó fico, convergem na produçã o de uma cultura intelectual de desilusã o com respeito ao. valor e à s expectativas que o humanismo moderno havia depositado no eu livre e soberano. Mas, curiosamente, mesmo no ambiente cultural em que esta desconstruçã o é produzida e promovida, muitas vezes com entusiasmo libertá rio, os comportamentos individuais e sociais, as relaçõ es em geral, nã o parecem menos fundadas em uma experiência de si com egoidade. Isto é, nã o há , até agora, indícios aparentes de que a crítica intelectual à noçã o de um eu substancial tenha como consegii- ência um modo de ser menos egoísta. Parecem se aplicar bem à nossa experiência contemporâ nea do si-mesmo, as palavras de Simone Weil: O fato de terem perdido o eu nã o significa que nã o tenham mais egoísmo. Ao contrá rio. Certamente, isso acontece al- gumas vezes, quando se produz uma devoçã o de cã o. Mas geralmente o indivíduo é reduzido, ao contrá rio, ao egoís- mo nu, vegetativo. Um egoísmo sem eu. (1993, p. 27-28) Apesar das críticas, a intuiçã o cotidiana nos doa, em um primeiro momento, a vida psíquica como interioridade — denominada como eu, pessoa, personalidade, espírito, alma, sujeito, consciência — como mundo pró prio, interno correlativamente à nossa experiência do mundo cir- cundante. A dissoluçã o do dado intuitivo que essas noçõ es encobrem, enquanto produçã o histó rica ou estrutura bioló gica de funçõ es adap- tativas, é uma abstraçã o científica sem preenchimento em nossa expe- rência direta de si ou do outro como semelhante a nó s. O ú nico efeito Imediato desta reduçã o apressada parece ser um afastamento maior vom relaçã o aos problemas existenciais e responsabilidades concretas implicados no fato de que a experiência que faço é sempre e a cada vez minha: eu sou. Com isso nã o queremos pregar o resgate de uma meta- física do sujeito, longe disso, nossa intençã o é questionar apenas a in- suficiência de uma desconstruçã o meramente intelectual, tal como tem sido promovida pelo pensamento contemporâ neo no Ocidente. O fato de que a experiência ô ntica, cotidiana, do eu nã o seja base adequada e suficiente para sua tematizaçã o ontoló gica, também nã o autoriza que se descarte simplesmente essa experiência sem uma investigaçã o mais detida do seu sentido. A ideia da insubstancialidade e heteronomia do eu nã o é uma originalidade histó rica da modernidade e da contempo- puncidade ocidental. Linhagens tradicionais do pensamento oriental e mesmo correntes do pensamento místico no Ocidente têm explorado há séculos, de forma consistente, esta concepçã o. Queremos pensar, ainda que de modo introdutó rio, sobre a necessidade de uma via longa para essa desconstruçã o, que considere uma fenomenologia da experiência de si-mesmo, em suas mú ltiplas possibilidades e sentidos, além das prá - ficas e estratégias existenciais de transformaçã o da experiência de si. Compreender o eu é compreender a si mesmo, nã o se trata, portanto, de um tipo de conhecimento que se possa meramente ter, no sentido de aumentar o acervo de nossas representaçõ es conceituais sobre as coisas. Aqui, mais do que em qualquer outro tipo de interrogaçã o, fica patente a impossibilidade de dissociaçã o entre saber e ser. Criticar a noçã o de um sujeito substancial nã o significa, obrigato- rlamente, reduzir a experiência de si a um mero efeito de causas físicas ou histó ricas. A fenomenologia de Husserl, nos alerta para a insepara- bilidade das noçõ es de ser e de experiência. Ser é aparecer: fenô meno. A crítica fenomenoló gica ao eu empírico de Descartes, ou a qualquer forma de objetivaçã o da consciência, visa justamente preservar a origi- nariedade da consciência e sua irredutibilidade à condiçã o de algo dado dentro do mundo. O eué a condiçã o ontoló gica de possibilidade para a doaçã o de qualquer coisa enquanto coisa, nã o podendo ser, portanto, ele mesmo tomado como alguma coisa, sem que se perca a si mesmo no que lhe é mais essencial. É para expressar esse cará ter radicalmen- te originá rio que Husserl lança mã o da noçã o de eu transcendental, embora a expressã o tenha dado margem a interpretaçõ es ambíguas, já que sugere facilmente, no contexto de nossa tradiçã o metafísica, a ideia de uma reificaçã o idealista do eu. Se lembrarmos, no entanto, o papel fundamental que a intencionalidade teve na pró pria origem da fenomenologia, podemos compreender porque a noçã o husserliana de consciência já aponta para uma unidade antepredicativa com o mundo. A característica essencial da consciência é ser sempre consciência de algo. O ser nã o é simplesmente dado como quididade em-si, como pro- põ e uma metafísica realista, nem dado por uma consciência prévia auto subsistente, como quer uma metafísica idealista. Como disse Merleau-Ponty (1994): “Trata-se de reconhecer a pró pria consciência como projeto do mundo, destinada a um mundo que ela nã o abarca nem possui, mas em direçã o ao qual ela nã o cessa de se dirigir” (p. 15). De qualquer modo, para ser mais fiel à fenomenologia que o pró prio mestre, e nã o para negá -la, Heidegger substitui a noçã o do eu transcendental pela de ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), tentando evitar, assim, o peso semâ ntico depositado nas noçõ es de eu, sujeito ou consciência, pela tradiçã o metafísica. Aqui, ao contrá rio da tradiçã o ou mesmo da fenomenologia husserliana, é a condiçã o pró pria ao homem de abertura ao ser, o ser-aí (Dasein), que constitui a condiçã o ontoló gica de possibilidade da cons- ciência e do si-mesmo. Ao chegar, apó s o exercício metó dico da dú vida, ao cogito ergo sum, penso, logo existo, Descartes prioriza o cogito, penso, em detri- mento do sum, existo. Considera, assim, o eu, a partir da ontologia natural do ser-simplesmente-dado, como coisa pensante, res cogitans. Embora Kant negue a substancialidade do eu e conceba o eu penso como mero sujeito, isto é, como consciência de si no pensamento ou na açã o, é ainda da constâ ncia e da identidade de algo simplesmente-dado que se trata no sujeito kantiano. Heidegger (1990, p. 112-5) argumenta que nã o basta evitar a separaçã o entre o eu e o pensar, como fez ant esquecendo-se de que na determinaçã o fundamental da experiência de “ mesmo já está desde sempre, como pressuposto ontoló gico, o eu penso alguma coisa. Neste alguma coisa pressupõ e-se, implicitamente, a do, Dizer eu significa dizer, portanto, eu-sou-no-mundo-com e nã o um sujeito isolado que acompanha, como substrato está vel, a diversidade das vivências. A aná lise fenomenoló gica da existência revela na experiência do vu, que nã o necessita ser discursivamente explicitada, a constituiçã o antoló gica do eu como ser-no-mundo. A apropriaçã o cotidiana da ex- periência de si parte, no entanto, do mundo das ocupaçõ es e tende a interpretar-se do mesmo modo como toma aquilo que lhe vem ao en- contro no mundo, isto é, como sendo simplesmente dado dentro do mundo. No falató rio natural sobre o eu pronuncia-se um eu que, de Início e na maior parte das vezes, eu nã o sou. É na experiência silencio- aa de si como acontecimento originalmente entrelaçado com tempo e mundo, justamente quando nã o se diz eu, que emerge o ser sissriesmo vm um modo pró prio. A possível subsistência do eu como continuida- «le do ser si mesmo nã o se fundamenta em nenhum tipo de giididade, mas na pura liberdade de poder perder-se naquilo em que se ocupa ou antecipar-se na lembrança de si como ser-no-mundo. Heidegger, em sua analítica da existência cotidiana, realizada em Ser e Tempo, nos alerta sobre as dificuldades de uma fenomenologia da volidianidade mediana do ser-aí (Dasein) humano. Ao interpelar dire- tamente a experiência de si e dizer sempre eu sou a existência cotidiana ainda nã o dá provas de que subsiste na atençã o e escolha de suas possibi- lidades singulares de ser si mesma. É possível que, justamente, ta de sur sempre minha a existência encontre suas motivaçõ es para, de início e na maior parte das vezes, nã o ser ela pró pria. Isso nã o quer dizer que ela neja absolutamente desprovida de eu, mas que o modo de ser deste eu é 4 perda de si pró prio enquanto singularidade. A existência encontra, de início, a si mesma naquilo que lhe vem ao encontro no mundo: as coisas de que se ocupa e os outros com quem convive. Tanto a eficiência das peupaçõ es, quanto a deficiência das convivências cotidianas tendém a encobrir o mundo como abertura de sentido, isto é, a lançar a existência em uma pré-compreensã o de si e dos outros como simplesmente dados dentro de um mundo igualmente dado. Essa convivência deficiente, re- gida pela ocupaçã o, dissolve o ser si mesmo no modo de ser dos outros, de tal forma que os outros desaparecem em sua diferença e singularida- de para constituir o todo mundo que nã o é ninguém específico. Heideg- ger denomina essa dinâ mica vigente na cotidianidade como o impessoal (Das Man, substantivaçã o do pronome impessoal): falamos cotidiana- mente como impessoalmente se fala, nos comportamos em cada situa- çã o como as pessoas devem se comportar, somos diferentes e originais como se deve ser e até criticamos a impessoalidade da vida cotidiana como todo mundo critica. Quanto maior a falta de estranhamento e surpresa, mesmo quando a curiosidade e a novidade sã o exaltadas, mais a impessoalidade domina a existência cotidiana. Esta aná lise, feita por Heidegger, nã o deve em hipó tese alguma ser tomada como uma crítica valorativa à cotidianidade, como se denun- ciasse um erro imputá vel a um sujeito negligente ou de má índole. Tal interpretaçã o seria por si mesma contraditó ria, pois é justamente a difi- culdade de determinaçã o de um sujeito imputá vel que foi desvelada na investigaçã o. Trata-se, antes, de uma estrutura ontoló gica, constitutiva, portanto, da existência. Nã o se passa de um modo impessoal para outro pessoal e singular como se isso fosse um desenvolvimento evolutivo da personalidade. Impessoalidade e singularidade sã o possibilidades exis- tenciais sempre em jogo a cada momento do existir concreto. Se o essencial ao homem nã o é objetivá vel, se o ser-aí humano é mero poder-ser, é pura abertura de sentido, cabe, entã o a pergunta: por que de início e na maior parte das vezes a existência se toma como algo simplesmente dado dentro de um mundo também dado? Entre- tanto, para que a pergunta possa se encaminhar de forma adequada à natureza do que se interroga, é necessá rio que descartemos de antemã o as direçõ es mais usuais em que perguntamos pelos porquês das coisas. Nã o poderia se tratar aqui de perguntar pela decisã o voluntarista de um | sujeito autô nomo, nem, muito menos, por uma causa, no sentido determinista das ciências naturais. A interrogaçã o se dirige, antes, ao sentido da experiência cotidiana impessoal, ao â mbito daquilo que ainda nã o sendo nela apropriado, se constitui, por isso mesmo, como sua moti- vaçã o essencial. Toda a cotidianidade mediana se estrutura como uma fuga, um desvio da existência em relaçã o ao seu modo mais pró prio de ser, À existência cotidiana é sempre temerosa; teme por si mesma frente à s ameaças do mundo. Mas, todo temor ô ntico, enquanto temor por algo ameaçador, ancora-se ontologicamente na possibilidade distintiva da existência de poder nã o mais ser, em sua finitude. Esse temor sem objeto é denominado como angú stia. Na angú stia a existência é arran- vada das ocupaçõ es com os entes intramundanos para a livre abertura em que se dá o mundo como tal. Mas a angú stia, neste sentido pró - prio é um fenô meno raro na existência cotidiana, predomina em geral sa experiência impró pria enquanto medo de algo com o qual possa- mos nos ocupar, controlando e assegurando a habitaçã o impessoal na qual nos protegemos da liberdade e da responsabilidade constitutivas de nosso poder ser si mesmo singular. Encontramo-nos aqui em um eirculo hermenêutico, no interior do qual a cotidianidade permanece encerrada: a existência desvia-se de si mesma enquanto ser-no-mundo, prendendo-se à s ocupaçõ es e tomando-se como simplesmente dada, por que se angustia diante do mundo como livre abertura de sentido; e nã o ultrapassa a angú stia, em direçã o à possibilidade de um deixar-ser livre e sereno, por que permanece fechada na experiência de si como um eu isolado, simplesmente dado no interior do mundo. As reflexõ es de Heidegger sobre o ser do homem levam a um es- tranho paradoxo. Se, por um lado, trata-se de superar toda concepçã o «le um eu simplesmente dado ou qualquer forma de subjetivismo, essa experiência apenas pode ser posta em curso na medida em que o ho- mem se aproxima de seu ser-si-mesmo. Nenhuma desconstruçã o de vará ter meramente intelectual ou moral é capaz de deslocar o ser-aí liumano em direçã o ao seu centro pró prio e, somente a partir desta von-centraçã o é possível ao homem uma autêntica experiência de des- ventramento. Quando suspendemos ou somos arrancados das identifi- vaçõ es cotidianas dos entes em geral e de nó s mesmos como coisas auto aubsistentes, abrimos a experiência do mundo como co-emergente e Interdependente de nó s. Se suportarmos a vertigem inicial e a angú s- [in perante esse nada (no sentido de que nada aparece como simples- mente dado), apreendemos nosso ser mais pró prio como mero poder- net, mera transparência, através da qual os entes aparecem segundo o jugo de luz e sombra que se articula nesta abertura de possibilidades. Con-centrados em nosso ser si-mesmo mais pró prio, enquanto ser-no- mundo-com, percebemos que nosso verdadeiro centro nã o é nenhum nú cleo substancial está vel no interior de nó s mesmos, ser originaria- mente em-meio-aos- entes significa ser ex-cêntrico ou ter o seu centro naquela abertura transparente que sempre ultrapassa nossa consciência de sujeitos. O si-mesmo do ser-aí jamais se confunde, portanto, com qualquer compreensã o psicoló gica de algum verdadeiro self interior, em oposiçã o ao eu ordiná rio. Se o deslocamento da experiência de si, efetuado pela suspensã o do mundo impessoal das ocupaçõ es cotidianas, abre sempre outras possibilidades de identificaçõ es, o essencial deste movimento nã o sã o essas novas identificaçõ es possíveis, mas o simples poder-ser, a pura liberdade aberta ao mistério. Nã o sendo o si-mesmo um verdadeiro self, nã o há oposiçõ es em relaçã o a falsos selfs. Nã o há nenhum verdadeiro self a ser alcançado, ser si-mesmo em um sentido pró prio ou impró prio diz respeito apenas ao grau de aprisionamento ou de liberdade em relaçã o à s nossas identificaçõ es. Inspirando-se no místico alemã o Mestre Eckhart, Heidegger de- nomina como Serenidade (Gelassenheit) a disposiçã o espiritual em que nos colocamos para além da experiência de um sujeito auto fundado na razã o e na vontade. Embora este tema seja tratado pelo filó sofo a partir da década de quarenta, em um contexto semâ ntico já distante de Ser e Tempo, dois motivos nos autorizam uma aproximaçã o entre essas conceitualidades diacrô nicas. Primeiro, em um texto de 1945, Diá logo num caminho do campo, que Heidegger sugere como comentá rio à con- ferência Serenidade, ele pró prio faz uma aproximaçã o entre a serenida- de e a noçã o de decisã o (Entschlossenheit), utilizada em Ser e Tempo. De acordo com ele, decisã o, “[...] tal como é pensada em “Ser e Tempo; deve se entender como: “o propriamente assumido abrir-se do ser-aí ao aberto” (2000, p. 58), acreditamos, portanto, ser essencial esta luz re- trospectiva do chamado segundo Heidegger sobre a compreensã o de Ser e Tempo. Segundo, é ainda o pró prio Heidegger quem sugere, em uma carta a Boss de 1971, a leitura da conferência Serenidade para os psiquia- tras participantes dos seminá rios de Zollikon e membros da, entã o, re- cém fundada Associaçã o Suiça de Daseinsanalyse (2001, p. 301-2). Mas, para que tal aproximaçã o faça sentido, devemos deixar em suspenso as interpretaçõ es que estabelecem uma tensã o conflitiva entre os chama- dos primeiro e segundo Heidegger, e compreender suas diferença apenas como uma modulaçã o complementar de perspectivas. Se o primeiro Heidegger trata do ser-aí humano, nã o é para construir uma antropolopia filosó fica, mas para pensar a essência do homem como abertura ao wr; e se o segundo Heidegger trata mais diretamente do acontecimento histó rico do ser, ainda é da apropriaçã o histó rica do homem ao ser que também se trata. Heidegger retoma a noçã o de serenidade, apreendida com Eckhart, para pensar um caminho, em meio à nossa época dominada pela técni- va, de resgate da experiência daquilo que é mais essencial ao homem, sua abertura ao ser. Para ele, a serenidade, enquanto uma equanimida- de da alma perante tudo aquilo que é, nos permitiria dizer sim e nã o, simultaneamente, à técnica moderna, estabelecendo deste modo uma relaçã o mais livre com ela. A disposiçã o de serenidade nã o se confunde pum nenhuma espécie de passividade, que seria ainda uma possibili- dade interna à posiçã o voluntarista. A serenidade é um modo de ser livre c aberto ao mistério. Seguindo a breve referência que Heidegger [uz a Ser e Tempo no texto proposto como comentá rio à serenidade, já mencionado acima, sugerimos que, além da disposiçã o afetiva da an- fú stia, a serenidade também poderia ser pensada como uma disposiçã o privilegiada para a experiência do ser-aí humano em seu modo mais pró prio e singular. Usando a conceitualidade de Ser e Tempo, pensamos aque a partir da serenidade é possível dizer, simultaneamente, sim e nã o du Idlentificaçõ es do impessoal. É possível dizer sim porque o mundo das Heupaçõ es cotidianas é visto como um horizonte de desvelamento de sentido, nã o sendo o caso de negá -lo reativamente em nome de alguma pulra suposta verdade. Ao mesmo tempo, é possível dizer nã o porque fazemos a experiência de que o poder deste horizonte nã o lhe é inerente, tuas, faz parte de uma dinâ mica de originaçã o que o ultrapassa. Essas consideraçõ es têm por objetivo, como apontamos inicial- mente, contribuir para uma discussã o sobre a crítica da metafísica mo- dera do sujeito no â mbito das prá ticas psicoló gicas clínicas. Acredita- mos que na maioria das psicoterapias contemporâ neas entra em jogo tma experiência de desconstruçã o e desidentificaçã o das identidades aubjetivas que se tornaram rígidas, impedindo um poder corresponder qmais livre e flexível à s variadas demandas de tudo aquilo que nos vem ao encontro no mundo. Mas, pensamos também que na grande maioria dos tusos, à nova identidade estabelecida é entendida como um si-mesmo mais verdadeiro do que aquele com o qual se estava identificado antes. Muitas teorias psicoló gicas reforçam essa tendência, de lastro existencial, através de noçõ es essencialistas do psíquico. Para uma clínica de inspi- raçã o heideggeriana, talvez O insight terapêutico mais essencial, nã o seja a descoberta de potenciais identidades positivas, mas a experiência de si como mero poder-ser. Narramos a seguir um caso clínico? que, em nossa perspectiva de compreensã o, foi um processo de abertura da experiência de si, para além da mera mudança de identidades subjetivas. Ao falar de seus problemas, no primeiro encontro, a principal quei- xa de Clara diz respeito ao modo de relaçã o que ela tem com o seu pai, sente-se aprisionada a uma teia de sentimentos ambivalentes que seu consegue explicitar para si mesma adequadamente. Os afetos sã o dissi- mulados através de uma forma de diá logo que, segundo ela, possui sem- pre um tom de ironia, humor negro ou cinismo. Chora ao lembrar-se da frase que ele falava quando ela era pequena e se machucava: vaso ruim nã o quebra. Ela diz que ficava muito magoada diante da indiferença dele e que a dor de se sentir um vaso ruim era maior que a do machucado. Ela se identifica com uma imagem muito negativa de si mesma. Considera-se burra, sem jeito, pouco feminina. Clara é formada em Psicologia, mas nunca exerceu a profissã o. Sente-se incompetente para lidar com qualquer tipo de problema e nã o gosta de atividades que envolvem grupos de pessoas, pois nunca sabe o que dizer. Acha que fez psicologia porque sua mã e queria que alguma filha fosse freira. Assim; ela poderia ajudar as pessoas e, de certa forma, realizar o desejo da má Sua família possuía uma pequena confecçã o de roupas, na qual Clara trabalhava no setor de encomendas, visitando os clientes, funçã o que exigia dela um grande esforço emocional para lidar com as situaçõ es de exposiçã o. Ela explicava seu medo de encontrar os compradores do seguinte modo: como vou vender, fazer propaganda do meu produto? É como se eu estivesse falando bem de mim e isso nã o combina. Clara tem uma irmã aproximadamente dois anos mais velha. Ela me diz que sempre competiu com a irmã pela atençã o do pai e se com- para a ela fregientemente. Procura justificar racionalmente a maior proximidade do pai em relaçã o à irmã por eles terem mais interesses em comum, mas nã o parece dar muita importâ ncia a essa explicaçã o. 2 Apesar de verossímil, o caso clínico apresentado é ficcional e foi criado a partir de minha pró pria experiência como Psicoterapeuta, supervisor clínico e orientador de pesquisa. Agradeço aos bolsistas de PIBIC e estagiá rios do Servi- go de Psicologia Aplicada da UFF pela colaboraçã o. ( vem uma frase negligentemente solta em meio ao discurso, ela expres- 4 «le modo bem mais significativo seus sentimentos: meu pai nunca postou de mim. Quando procura a terapia, Clara tem trinta anos de idade. Casada desde os vinte e dois, ela tem um filho de cinco anos. Sente-se sobre- varregada com os afazeres domésticos e os cuidados com o filho. Diz aus o marido age sempre como uma criança e que nã o divide nenhum problema com ela: ele é casado apenas na alegria e na saú de e nã o na dristeza e na doença. Com relaçã o ao seu filho, ela tem uma preocupaçã o específica: será que ele vai conseguir crescer? Este receio nã o se refere apenas ao tumanho físico, mas também à maturidade. Clara acha que ele é muito halxo em comparaçã o à s crianças da mesma idade e teme que, no futu- to, ele tenha dificuldades para relacionar-se no mundo dos adultos, da ihesma forma que ela sente. Aquele mundo é visto como chato por ser sério demais. Ela se considera infantil e teme que suas experiências se tepitam na vida do filho. Esse temor leva Clara, de certa forma, a reali- gar a expectativa temida ao trocar o filho de escola a cada ano, dificul- tando, assim, que ele estabeleça vínculos mais está veis com os colegas. Afirmaçõ es do tipo: eu fiz psicologia porque minha mã e queria uma hilhia freira, meu marido é assim porque a mã e o superprotegeu ou meu filho vai pegar o há bito da mentira porque o pai dele mente, fazem parte da sua teoria de que o modo de ser das pessoas é determinado por aquilo que os pais foram ou fizeram com elas. Embora, a partir de nossa visã o fenomenoló gica existencial do homem, essas afirmaçõ es possam pare- per simplistas e ingênuas, a psicoterapia nã o é um espaço para críticas, discussõ es ou explicaçõ es conceituais. O essencial seria elaborar tema- localmente o sentido dessas crenças no projeto existencial de Clara, que implicaçõ es elas tinham no seu modo de lidar com as indeterminaçõ es, 48 temores, a liberdade e a responsabilidade perante a existência? Clara gosta de desenhar e acha que se pendurasse todos os seus ilesenhos na parede e ficasse olhando todos os dias, entenderia melhor a sua vida. Ela pergunta, espontaneamente, se há papel e lá pis cera na sala para que possa desenhar durante os atendimentos. Embora as téc- nicas lú dicas e expressivas sejam mais utilizadas com crianças, nã o há , em princípio, nenhum problema quanto à sua utilizaçã o em uma abordagem fenomenoló gica, a especificidade se apresenta apenas no modo de compreensã o das imagens ou histó rias elaboradas, mas esta especifi- cidade já caracteriza a escuta do relato usual em primeira pessoa. Seus desenhos, todos em estilo abstrato, sã o feitos enquanto conversamos. Em um dos encontros, pergunto se alguma daquelas formas lhe su- gere algo. Ela aponta um girino em um dos desenhos e conta que tem observado os girinos virarem sapos no aquá rio que o marido montou para o seu filho, mas que nã o consegue compreender como é possível essa transformaçã o. Lembra-se, ainda, de um desenho animado em que um girino, ao observar a metamorfose de uma lagarta, pensou que um dia ele também se transformaria em borboleta. Enquanto ele observava este processo, transformou-se, sem se dar conta, nã o em borboleta, mas em sapo. Ela finaliza a histó ria com um tom de perplexidade, dizendo que o girino queria ser como as borboletas, mas ao compreender que era um sapo, sentiu-se muito bem. Seu discurso revela a dificuldade em compreender as transforma- çõ es. Clara demonstra ambivalência e resistência à s novidades, o que ela mesma é capaz de identificar nã o apenas na esfera emocional, mas também nas atividades corriqueiras do cotidiano. Seu temor e dificul- dade de experienciar transformaçõ es, traduz-se em um modo queixo- so e esquivo de lidar com a vida. Na terapia, procura voltar sempre à temá tica do desamparo paterno, como explicaçã o para os sentimentos de insuficiência e restriçã o existencial. Oscila entre a culpa, por ser a filha que nã o desabrochou para uma vida adulta rica em realizaçõ es, e a raiva do pai, que nã o teria lhe dado o afeto e a segurança necessá rios para esse amadurecimento. Durante anos, Clara teve um sonho recorrente: o mar invadia o quintal de sua casa, ela estava trancada em seu quarto, olhava aterrori- zada para a janela fechada na expectativa de que ela nã o resistiria à for- ça da á gua, mas, embora isso nã o a trangú ilizasse, nã o Pingavam nem gotas pelos cantos da janela. Falamos sobre esse sonho diversas vezes, ela percebia que o medo que sentia no sonho era semelhante ao que sentia em alguns momentos da vida quando se sentia demandada por situaçõ es que achava estarem além de suas possibilidades. Diante des- sas cobranças do mundo adulto ela também se trancava completamente e nenhuma gota de transformaçã o penetrava sua existência. Quase um ano apó s o início da terapia, Clara fala sobre seu medo da morte e acrescenta que se a vida melhorasse, morrer se tornaria ainda 56 «Roberto Novaes de Sá tais terrível porque a perda seria maior. Nã o corroboro essa interpre- taçã o de que o medo da morte seria, entã o, a causa das suas resistências à mudanças. Entendo que o sentido da morte aqui ainda estava restrito ao de um evento bioló gico pontual. Remeto, ao contrá rio, a questã o da morte ao medo das transformaçõ es, ao medo da vida em sua dimen- sã o trá gica de indeterminaçã o e insegurança. Percebemos que era um momento importante da terapia, pois o sentimento do desamparo esta- va sendo explicitado e elaborado em uma perspectiva de compreensã o mais ampla do que aquela do desamparo paterno. Seu humor continuava fechado para a realizaçã o de novos projetos. Mas o discurso de auto censura ou de queixas contra o pai já nã o eram tã o enfá ticos. Em alguns momentos, as cobranças morais eram substituí- tas por um questionamento mais objetivo sobre as possibilidades de sua existência. No final de uma sessã o, Clara diz já ter cumprido todas as suas ubrigaçõ es: terminou a faculdade, se casou e teve filho. Agora nã o queria alwidecer a mais nada. Pergunto a ela o que significa isso: se ela quer di- por que nã o precisa fazer mais nada na vida ou se agora pode escolher o que quer fazer? Fica calada alguns segundos e depois responde com um aurriso irô nico:...significa que agora posso escolher nã o fazer mais nada. Concordo, também com um sorriso, e nos despedimos. Em uma das sessõ es seguintes, Clara relata um sonho que a dei- sou intrigada: Eu morava em uma casa velha, cheia de lixo, coisas ve- Ilhas, quebradas e sem valor. Aparecia, entã o, um catador de lixo com um urrinho de madeira para levar aquelas coisas embora. Mas, quando ele momeçava a separar as tralhas, encontrava muitos objetos bons, coisas novas e de valor que ele ia colocando feliz no seu carrinho. Eu ficava com vara de boba e eram tantas coisas boas que ele nem conseguia colocar fú do no carrinho. Discutimos o conteú do deste sonho pensando sobre o modo somo ela estava se relacionando com suas coisas velhas e sem valor e atas coisas boas e caras na vida desperta. Atendo-nos estritamente ao material onírico (surpresa ao encontrar estas coisas de valor que ela pensava serem apenas lixo e o fato de só conseguir ver este valor media- dlo pelo olhar de um outro), percebemos que, também aqui, Clara nã o de vé como alguém que possui outras possibilidades de ser, apenas se feconhece como uma pessoa inú til e sem valor. Porém, ao revelar que “4 valor das coisas muda de acordo com o observador, o sonho amplia Situaçõ es Clínicas | + 57 o espaço existencial de apropriaçã o de outros modos de ser possiveis para Clara, liberando-a, para sua surpresa (eu ficava com cara de boba), do peso da identificaçã o restritiva de sua existência com significaçõ es de insuficiência e carência de valor. Esta ampliaçã o do espaço existen- ciá rio” do poder-ser nunca é uma conquista definitiva, no momento seguinte a uma experiência de desencobrimento de possibilidades, po- demos retornar a uma identificaçã o encobridora. Por outro lado, tais experiências de desidentificaçã o nunca deixam a existência incó lume, como fazem as meras compreensõ es representacionais, sem nenhum preenchimento intencional na pró pria existência. Sentimo-nos ameaçados quando nosso contexto cotidiano de sig- nificaçõ es é abalado por algum acontecimento que emerge como im- previsto, inusitado ou carente de sentido no â mbito deste horizonte. Na maior parte das vezes, essas experiências nos remetem, de modo nã o temá tico, à condiçã o de desabrigo existencial. A ameaça é tã o mais in- tensa e insuportá vel, quanto mais restrita e rigidamente estruturada for a existência, isto é, quando nosso modo de ser se constrange à identi- ficaçõ es rigidamente cristalizadas, nã o havendo, portanto, flexibilidade para lidar com aquilo que surge como diferente. Mas, é também aí que pode se abrir de modo privilegiado a experiência de co-pertencimento entre homem e mundo. O desabrigo e a angú stia perante a ausência de qualquer sentido previamente dado para a vida sã o a contraparte, na maioria das vezes necessá ria, embora nem sempre suficiente, das experiências de liberdade, gratuidade e aceitaçã o serena do existir em sua condiçã o pró pria de mistério. Os eventos que suscitam essas expe- riências de estranhamento nã o precisam ser exó ticos ou grandiosos, Acontecimentos simples do dia-a-dia podem produzir pequenas ilu- minaçõ es a partir do modo de co-respondência daquele que os acolhe, Clara relata uma experiência em que um contra tempo corriqueiro a convidou à reflexã o sobre si: uma abelha picou seu braço na varanda de casa. Convite ao qual ela correspondeu produzindo uma poesia: 3 O termo “existenciá rio” faz referência à dimensã o ô ntica da existência. Ontologicamente, o poder-ser é uma determinaçã o existencial constitutiva do ser-aí, apenas por isso é possível que onticamente a existência sofra restriçõ es em seu poder- ser. 58 « Roberto Novaes de Sá Abelha-espelho, Com veneno má gico (todo veneno é má gico?) Me transformou em mulher-com-dor. Do canto do meu quarto, Quadrado, Me vi no centro, Mulher-abelha. A dor passou, Virou histó ria. Desta vez escapei, Mas ainda temo a abelha E seu má gico veneno, Capaz de me acordar Ou me adormecer Na dor. Recuando diante da experiência da dor, desidentificando-se ela pú de ver sua dinâ mica de constituiçã o (mulher-abelha, mulher-com- dor), tornando-se, assim, mais livre (acordada) com relaçã o à dor. Al- guns dias depois, Clara chega excitada, dizendo ter feito uma descober- [a muito importante, que a frase Meu pai nunca gostou de mim, contém 4 afirmaçã o: Meu pai gostou de mim, bastando para isso, retirar o nã o p, da mesma forma, Meu pai gosta mais da minha irmã do que de mim também contém Meu pai gosta de mim. Ela fala que se moveu de um ponto pra outro, que nã o sabe muito bem explicar como, mas que agora palava diferente com o pai. Pergunta-me como é que ocorrem estas mu- danças, porque ela nã o consegue localizar exatamente quando houve pase salto, mas que era estranho como, de repente, as queixas contra seu pai e o sentimento de abandono nã o pareciam mais tã o reais. Pergunto u que cla sentia naquele instante, e que significado essa descoberta tinha vim sua vida. Ela responde que estava se sentindo mais independente e que nã o havia mais necessidade de colocar à prova ou competir pelo amor do pai. Clara comprou um livro que falava sobre o que as pessoas apren- dem em diferentes idades. Cada pá gina começava da mesma forma: Eu (lulano) aos (tantos anos) aprendi que.... Ela escreveu na ú ltima pá gina: Situaçõ es Clínicas | 59 Eu, Clara, aos 32 anos de idade, aprendi que meu pai gosta de mim e o deu de presente ao pai. No dia seguinte, sua mã e telefonou dizendo que o pai havia lido o livro e que estava muito emocionado. Clara diz ter apenas confirmado o que já havia compreendido, o quanto ela também sempre havia sido importante para ele, e que para amar de forma adulta tinha que sair de si mesma para olhar o outro. Neste mesmo período, ao dizer sua idade para alguém que preen- chia uma ficha de cadastro, Clara teve a estranha sensaçã o de nã o estar falando a verdade, isto porque nã o se sentia com 32 anos: Como 32, se eu acabei de acordar? Como, se foi agora que eu nasci e abri os olhos pro mundo? ... Acho que sempre associei juventude à liberdade, talvez por isso me sentisse como uma criança velha, sem liberdade, agora que me sinto amadurecendo, sinto-me também mais jovem. Fazendo um balanço sobre o caminho percorrido durante estes dois anos de terapia, ela me fala sobre o que mudou e, ao referir-se ao marido, o coloca na posiçã o de adormecido, como aquele que está fechado à s mudanças, abandonado à s traças, frase que a mã e dele cos- tuma dizer. Lê, entã o, uma poesia de Fernando Pessoa que transcreveu pra ele em um belo cartã o que deu junto com um presente pelos de; anos de casados: Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante que viria De além do muro da estrada. Ele tinha que tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que a Princesa vem. A Princesa adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. 60 + Roberto Novaes de Sá Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. lile dela ignorado. lila para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino. Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mã o, e encontra hera, E vê que ele mesmo era, A Princesa que dormia. Clara diz, sorrindo, que tem em casa um belo adormecido. Que, por muito tempo se chateou e brigou, pois, ela mesma adormecida, só via o adormecido, mas que agora também via o belo. Em outra sessã o, Clara diz que, recentemente, releu um de seus livros da época da faculdade e compreendeu textos que antes pareciam absurdos. A insistência da família para que ela encontre um emprego somo psicó loga nã o tem mais o mesmo efeito constrangedor. Recente- mente, Clara iniciou uma distribuidora de roupas em um anexo de sua vasa, além de vender a produçã o da família, também compra de outras vonfecçõ es. Ter o seu negó cio pró prio e fazê-lo ao seu modo tem lhe dado muita satisfaçã o. Nã o acha mais tã o difícil fazer propaganda dos «eus produtos. Lembro-me que ela expressava essa dificuldade antes, dlizendo que falar bem daquilo que vendia era como falar bem de si Situaçõ es Clínicas | * 61 mesma e isso parecia nã o combinar. Pergunto se, agora, a boa imagem dos produtos combina com a auto imagem dela. Clara diz que, agora, simplesmente, a boa ou má qualidade das roupas nã o tinha nada a ver com as qualidades dela. A resposta de Clara me surprendeu, pensei que eu mesmo talvez ainda nã o tivesse me dado conta do quanto ela podia ver as coisas de forma madura e perspicaz. Por outro lado, foi também um sentimento tranqgiuilizador. Nas ú ltimas semanas eu me lembrava com fregiiência de que em breve estaria viajando para um intercâ mbio acadêmico e teria que interromper minhas atividades clínicas por um período mínimo de seis meses. Ainda nã o havia comentado o assunto com Clara. A viagem dependeria de apoio financeiro de uma agência de pesquisa e eu dizia para mim mesmo que só falaria quando houvesse algo concreto, mas eu já tinha essa confirmaçã o há quinze dias e tivera dois encontros com ela desde entã o sem mencionar nada. Embora eu nã o considerasse ter problemas pessoais com o término das relaçõ es te- rapêuticas, identificava em mim uma certa dificuldade quando pensava no assunto. Mesmo nã o achando que a origem deste desconforto era alguma presunçã o de que ela nã o poderia prescindir da terapia comigo, o fato de ela ter mostrado uma compreensã o das coisas para além da. minha intervençã o psicologizante foi confortador. Senti que era uma boa oportunidade para lhe dizer que daí a três meses eu teria que ausentar. Para minha surpresa, ela expressou um desapontamento ape-. nas educado e tratou o assunto com objetividade. Observei em mim misto de decepçã o e rejeiçã o diante de sua objetividade fria, junto com preocupaçã o por achar que a reaçã o dela era um modo de suportar seu pró prio sentimento de abandono. Estaria eu novamente subestimando Clara e, desta vez, para lidar com minha pró pria dificuldade em aceitar que talvez eu nã o fosse tã o importante assim para ela? Na sessã o seguinte, discutimos melhor as opçõ es diante da i terrupçã o que se aproximava: continuar com outro terapeuta ou pa sem previsã o de data para o retorno. Clara diz que nã o queria parar, tinha medo de que interromper a terapia significasse parar também as transformaçõ es que sentia em sua vida: Tenho vontade de desistir e ficar satisfeita com o que já mudou, mas ainda falta algo muito importante falta mú sica, ia dar um colorido todo especial. Clara havia recentemente. voltado a brincar, como ela dizia, com o violã o que ela tocara um pou- co na adolescência. Estava fazendo uma letra para uma cançã o, mas 62 « Roberto Novaes de Sá diria nã o se sentir capaz de fazer a mú sica e que pediria a aro amigo pata compor para ela. Se conseguisse dominar a mú sica, seria perfeito. Pergunto a ela: é possível dominar a mú sica? Ela me responde ss assim que a palavra dominar saiu de sua boca teve certeza que eu para algum comentá rio a respeito. Sinto-me desconfortavelmente previsível. Ela vuntinua dizendo que, na verdade, nã o achava que seria à pala vi mais alequada ao que estava querendo dizer, mas que nã o conseguiu encon- trar outra. No final desta sessã o, Clara diz que nã o pretende procurar uutro terapeuta e que tudo vai ficar bem. Sorrio condga mesmo sem ffansparecer e penso que ela inverteu os nossos papeis. pe Nas sessõ es seguintes, Clara retoma questõ es de sua vida cotidiana. Fala sobre o filho que está com alergia respirató ria e comenta que ss pe suas à recriminam porque ela fica com pena de levá -lo para tomar injeçã o. Lembra-se de sua infâ ncia e do quanto era terrível para ela ir ao pesa de Wivinaçã o. Questiono a suposiçã o de que a experiência do filho será igual hua, Ela entã o me pergunta por que eu estou sempre interrogando a fespeito das causas que ela me expõ e como explicaçã o para o que aee Junho vontade de discorrer para ela sobre fenomenologia, mas me asso mulizer que as perguntas visam apenas compreender melhor o sentido, di aque acontece. Ela retruca: é muito bonito na teoria, mas na prá tica é difícil. E ancordo com ela. Clara retorna a um discurso muito parecido com o a Inicio da terapia. Fala sobre o pai, sobre o marido, sobre ia quei- | no mesmo tom de lamentaçã o. Acho estranha a maneira como ela coloca neste momento porque nã o sinto como uma fala autêntica, mas pú mmo uma provocaçã o dirigida a mim. Nã o acho oportuno peniana: o discurso, digo apenas que sei bem o quanto, à s vezes, à vida parece vil e solitá ria. Clara retorna mais animada na semana seguinte. Traz uma letra mú sica que fez sobre a luta diá ria a procura de uma vaga a estacio- hento para seu carro quando visita os clientes. Diz que ainda está curando alguém para fazer a melodia. Enquanto leio, uma plura- lade de significaçõ es vai me ocorrendo. Estacionar o carro és corta ate, um problema bastante comum nos centros urbanos, mas nã o wderia ela estar falando também sobre a sua busca por um lugar, no dentido de se posicionar diante das situaçõ es e ocupar seu espaço se “diferenciados contextos da vida? É uma possibilidade de interpretaçã o que faz sentido diante da sua histó ria. Digo isto a cla. Quanto à melodia, me recordo de nossa conversa sobre a interrupçã o da terapia, em que ela disse que faltava a mú sica. Explicito a analogia e pergunto se nã o seria interessante que ela mesma tentasse compor a mú sica. Clara me diz que, na verdade, já está tentando, mas ainda nã o sabe se vai conseguir, por isso, nã o é bom descartar a possibilidade de uma parceria. Concluo, dizendo que essa liberdade de compor sozinha ou fazer parcerias é, ao meu ver, muito mais interessante do que dominar a mú sica. No início de nossa penú ltima sessã o, Clara diz que ainda nã o as- similou muito bem essa ideia de parar a terapia. Nã o está segura de que seja o momento certo e teme nã o conseguir continuar o processo sozinha. Em seguida, me conta que começou a conversar com uma pes- soa desconhecida pela internet: estava buscando alguém para dialogar quando acabassem os atendimentos. Segundo Clara, esta pessoa, com quem ela conversaria on-line, ocuparia um lugar semelhante ao de um terapeuta, porque nã o teria o mesmo nível de envolvimento cotidiano de um amigo, seria um outro tipo de intimidade, menor e maior ao mesmo tempo. Pergunto por que, entã o, ela nã o considera melhor a possibilida- de de continuar a terapia com outro psicó logo, eu mesmo poderia lhe dar alguma indicaçã o. Ela diz que vai pensar, mas que talvez seja apenas medo e nã o uma necessidade real. Falo que a internet pode ser um. meio de comunicaçã o para pessoas que se encontram a grandes dis- tâ ncias físicas, e pergunto se poderia entender a alusã o a um terapeu! virtual como uma sugestã o para a continuaçã o de nossas convers Clara ri e diz que nã o havia pensado nisso, mas agora me ouvindo fal parecia ó bvio. Digo a ela que esta possibilidade já tinha me ocorrido que já ouvira até falar em pesquisas sobre atendimento psicoterapêu: tico on-line, mas além de ser um campo onde eu nã o gostaria de me aventurar no momento, também nã o poderia assumir outros compro- missos, pois minha agenda de trabalho no período em que estaria fora seria bastante apertada. Ela me diz que entende e que nã o vê realmen- te necessidade de que eu lhe dê alguma indicaçã o de outro terapeuta. Afirma que está bem com sua vida e que é mesmo difícil abrir mã o de um espaço que foi tã o importante para o seu crescimento, diz que será mais uma transformaçã o e embora ainda nã o consiga entender como acontece, já sabe que acontece. Chega o momento de nossa ú ltima sessã o. Clara sugere que tro- quemos nossos lugares, sentando um na cadeira do outro. Eu concordo. Acho desnecessá rio entulhar este movimento tã o significativo com pa- iuras. Ela diz que a perspectiva da sala sob aquele â ngulo é mais bonita. Vigo que talvez seja o deslocamento de posiçã o que esteja permitindo vor essa beleza, pois eu também estou achando a vista da minha nova perspectiva bastante interessante. Ficamos em silêncio a maior parte tempo, mas nã o há aquele desconforto tenso do silêncio que ain- da é apenas a impotência do falató rio diante da grave proximidade do futro. Na terapia, o silêncio do cliente é, com frequência, associado ao Iuslvamento, mas aqui o silêncio era reconhecimento e gratidã o pela ex- periência da abertura existencial, que nos foi proporcionada através do pncontro. Nã o apenas a abertura circunstancial de uma autoimagem po- ailiva, desta precisamos sempre falar mais. No entanto, nenhum discurso pode dar abrigo definitivo ao homem. O silêncio é o traço essencial distintivo da existência humana, condiçã o ontoló gica de possibilidade “ale qualquer discurso.
Acceptance and Commitment Therapy For Anxiety Disorders - A Practitioner's Treatment Guide To Using Mindfulness, Acceptance, and Values-Based Behavior Change Strategies (PDFDrive) .En - PT