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CONSERVAÇÃO E RESTAURO

AULA 6

Profª Danielly Dias Sandy


CONVERSA INICIAL

Todo trabalho com o patrimônio histórico, artístico ou cultural é um


trabalho bastante sério e deve seguir diretrizes éticas. Cada ação que constitui
uma intervenção de restauro deve estar pautada na ética e, para tanto, é
necessário que os profissionais tenham conhecimento acerca dos conteúdos
das Cartas Patrimoniais, sobretudo da Carta de Atenas e da Carta do
Restauro, que tratam especificamente sobre o tema. Assim, cada ato de
reintegração da policromia de uma obra ou objeto deve ser pensado e discutido
antes da tomada de decisões.
O objetivo principal desta aula é fomentar a consciência ética referente
às intervenções de restauro, trazendo temas e questões importantes para
debates que poderão contribuir com o maior entendimento do cuidado que se
deve ter com determinadas ações, como no caso da reintegração cromática.
Assim, o aluno é, inclusive, instrumentalizado para dar seus primeiros passos
no estudo da reintegração de objetos, cuidando para não realizar trabalhos
desastrosos e tendo como exemplo o restauro das obras Santa Ana, a Virgem
e o Menino, no Museu do Louvre, e a obra A Ronda Noturna, no Rijksmuseum.

TEMA 1 – ÉTICA NA PRESERVAÇÃO

Nas diferentes áreas do conhecimento, a ética é fator indispensável para


qualquer trabalho e isso não ocorre de outra forma na área da conservação e
do restauro, que possui diretrizes consolidadas acerca da importância da ética
nas ações do profissional ou da instituição. O trabalho com o patrimônio, seja
ele material ou imaterial, deve ser realizado com profunda reverência e muitos
cuidados devem ser tomados. No caso de uma intervenção de restauro, são
vários os processos pelos quais a obra ou objeto deve passar, de pesquisas
até exames e testes diversos, conforme visto anteriormente. A origem da
palavra ética é grega e vem de ethos, cujo significado está relacionado àquele
que tem “bons costumes”. No Dicionário de Filosofia (2006, p. 298), de
Cambridge, ética é primeiramente apresentada como “o estudo filosófico da
moralidade”.

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1.1 A Carta de Atenas

As Cartas Patrimoniais tratam de recomendações e declarações sobre a


área da conservação e do restauro, estabelecendo diretrizes sólidas para a
atuação dos profissionais no mundo inteiro. Esses documentos não possuem
caráter de lei, mas se consolidam como um caminho ou código de conduta
considerado o ideal ético para a área. Como exemplo, citamos a Carta de
Atenas, de outubro de 1931, a qual afirma que:

Nos casos em que uma restauração pareça indispensável devido à


deterioração ou destruição, a conferência recomenda que se respeite
a obra histórica e artística do passado, sem prejudicar o estilo de
nenhuma época (Unesco, 1931, citado por IPHAN, 2019).

A partir dessa informação, identificamos a preocupação de estabelecer


normas para a atuação de preservação tendo cuidado, sobretudo, com o
caráter histórico, artístico e documental do bem patrimonial. A Carta de Atenas
apresenta uma análise sobre determinados aspectos divergentes, destacando
os seguintes tópicos:

 Administração e legislação dos monumentos históricos


 A valorização dos monumentos
 Os materiais de restauração
 A deterioração dos monumentos
 Técnica da conservação
 A conservação dos monumentos e a colaboração internacional
 Deliberação da conferência sobre a anastilose dos monumentos da
acrópole

Não obstante, a Carta de Atenas destaca a importância do trabalho de


educação patrimonial para a preservação, informando que a conferência estava
convencida de que a melhor maneira de garantir a conservação, tanto de
monumentos como de obras, é fomentando o respeito e o interesse pelo
passado. E isso, principalmente, pelos próprios povos que precisam desse
sentimento de pertença para que não danifiquem ou realizem ações de
depredação, e sim respeitem sua história, considerando que o patrimônio é um
testemunho de nossa civilização. Sobre esse incentivo, deve haver interesse
do poder público para a promoção de uma educação efetiva nesse sentido.
(Unesco, 1931, citado por IPHAN, 2019).

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1.2 A Carta do Restauro

Outro documento marcante para a área foi a Carta do Restauro, de


1972, a qual apresenta diretrizes para a preservação patrimonial em um
sentido mais amplo. Isso pode ser já identificado nos art. 1º e 2º do
mencionado documento, que abrange obras de arte de todas as épocas,
incluindo monumentos arquitetônicos, pinturas, esculturas e fragmentos. A
Carta do Restauro menciona os bens do período paleolítico até as “expressões
figurativas das culturas populares e contemporânea”, incluindo edifícios,
centros históricos, coleções artísticas, decorações, jardins e parques,
pertencentes às instituições e aos colecionadores individuais.
A Carta do Restauro está bastante afinada com o pensamento do
restaurador italiano Cesare Brandi que demonstra em sua obra uma grande
preocupação com intervenções de restauro desastrosas ou mal conduzidas,
defendendo a necessidade da Carta do Restauro possuir caráter de lei e ser
rigorosamente respeitada (Brandi, 2004). Na Carta do Restauro, destacam-se
as seguintes proibições:

1) aditamentos de estilo ou analógicos, inclusive em forma


simplificada, ainda quando existirem documentos gráficos ou
plásticos que possam indicar como tenha sido ou deva resultar o
aspecto da obra acabada;
2) remoções ou demolições que apaguem a trajetória da obra através
do tempo, a menos que se trate de alterações limitadas que debilitem
ou alterem os valores históricos da obra, ou de aditamentos de estilo
que a falsifiquem;
3) remoção, reconstrução ou translado para locais diferentes dos
originais, a menos que isso seja determinado por razões superiores
de conservação;
4) alteração das condições de acesso ou ambientais em que chegou
até os nossos dias a obra de arte, o conjunto monumental ou
ambiental, o conjunto decorativo, o jardim, o parque etc.;
5) alteração ou eliminação das pátinas (Brandi, 2004, p. 229-230).

O artigo seguinte recomenda, nos casos de intervenções ou


reintegrações, a adoção de material diferenciado para facilitar a distinção
apenas a partir do olhar, além da adoção de contornos para que não se
confunda com o material da obra original. Além disso, a limpeza jamais deverá
alcançar o estrato da cor devido à necessidade de se respeitar as pátinas nas
superfícies como naturais marcas do tempo. Desta forma, a documentação
também deve estar em dia para que detalhes importantes do bem patrimonial
não sejam perdidos ou haja uma fragmentação da obra (Brandi, 2004, p. 230-
231).

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TEMA 2 – O PROCESSO DE REINTEGRAÇÃO

A reintegração de uma obra é uma das ações que compõe a prática do


restauro e deve, sobretudo, respeitar a anastilose do objeto ou obra. Conforme
mencionado na Carta do Restauro, e segundo Brandi (2004), o processo de
reintegração é algo bastante sério e que deve respeitar tanto a anastilose da
obra quanto as marcas do tempo – como possíveis pátinas e amarelecimentos.
Jamais deverá ser restituída a cor do momento de criação de uma obra, pois
isso seria um gravíssimo falso histórico.

2.1 Recomposição das áreas perdidas

O tempo é um fenômeno natural que contribui com a degradação dos


objetos. Não obstante, há outros elementos que podem causar severos danos
à matéria de uma obra ou objeto como, por exemplo, agentes poluentes,
animais, insetos, micro-organismos e os próprios seres humanos. Sabemos
que, dentre os danos causados por esses elementos, podemos ter, inclusive,
perdas de matéria ou mesmo perdas de camadas, principalmente da camada
pictórica.
O processo de restauração prevê também a recomposição das áreas
perdidas e isso independe do material utilizado na criação do objeto. Isso
implica na possibilidade de utilizar diferentes materiais nesse processo, o que
não dá liberdade ao restaurador para deliberar sem uma consciência do que
realmente está fazendo. Por isso é necessário que o restaurador esteja
constantemente em busca de conhecer novos materiais e suas possíveis
reações com outros materiais, destacando que todo uso e aplicação deve ser
reversível (Brandi, 2004).
A recomposição da área perdida implica no processo de nivelamento da
superfície da obra ou objeto para que, em seguida, seja realizada a
reintegração das cores com parcimônia. Esse cuidado deve ser tomado pois
qual seria o sentido de fazer com que uma obra do século XV viesse a se
parecer com uma obra recém-criada? Isso, para além de Brandi, não é
considerado ético na área do restauro. O tempo e a história fazem parte da
matéria e ignorar esses fatos contribui com o esvaziamento do sentido das
coisas, permitindo que grandes obras se percam nas mãos de restauradores
que não compactuam com os princípios do restauro.

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De acordo com Brandi (2004, p. 33), “a restauração deve visar ao
restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja
possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar
nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo”. Tal unidade potencial
não aceita a inserção de outros materiais, pois qualquer mínima alteração já
interferirá na leitura de sua imagem. Naturalmente, isso cria a sensação de um
paradoxo, pois não podemos interferir nas marcas do tempo, mas devemos
preservar a unidade da obra. A questão é que as marcas do tempo passam a
fazer parte da unidade da obra pois demonstram sua época e podem ser
preservadas desde que não comprometam sua segurança e integridade.

2.2 A cor neutra como possível solução estética

Diante da possibilidade de que vários erros e falsos históricos sejam


criados a partir de uma reintegração desastrosa das cores de uma obra, foram
sugeridos alguns padrões. Uma das soluções apontadas é a aplicação de uma
cor neutra como o cinza nas lacunas.
Mesmo em uma escala de cores neutras podemos encontrar variações
diversas e que podem ir da cor quente à cor fria e a inserção dessas cores em
uma camada pictórica, naturalmente resultará em alteração do todo da imagem
original. E uma cor considerada neutra pode parecer quente ou fria
dependendo do conjunto de cores em que for inserida. No livro Da cor à cor
inexistente, de Israel Pedrosa, é abordada a teoria da lei do contraste
simultâneo das cores, de Michel-Eugéne Chevreul, o qual afirma que “colocar
cinza ao lado de uma cor é torná-la mais brilhante e, ao mesmo tempo,
equivale a tingir este cinza com a cor complementar da cor a que foi justaposto”
(Chevreul citado por Pedrosa, 2002, p. 173).
Para Brandi (2004), esse método, conhecido também como reintegração
neutra, inicialmente parece um método honesto, porém é ineficiente porque
qualquer tinta neutra que se coloque em um quadro naturalmente afeta o
resultado estético do todo da criação do artista, e assim a lacuna pode se
transformar em uma nova parte do quadro – e esse não deve ser o propósito
da restauração.
Assim, há mais de uma possibilidade de preenchimento da área perdida
e o restaurador deve decidir qual técnica será empregada com a adoção dos
critérios estabelecidos pelas políticas de restauração da instituição em que
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trabalha. Além disso, cada medida adotada pelo restaurador deve ser
previamente tratada com o proprietário ou responsável pela obra.

TEMA 3 – MODELOS DE REINTEGRAÇÃO

Após o nivelamento da camada da superfície, o próximo passo é a


reintegração cromática. Esse processo é motivo de acaloradas discussões
entre muitos profissionais da área ao longo da história porque qualquer ato mal
planejado pode comprometer a originalidade e a legibilidade da obra. Assim,
existem vários modelos de reintegração cromática, sendo alguns mais
utilizados que outros e isso também depende da instituição ou do proprietário.
Os principais modelos são a reintegração mimética, ou ilusionista, e a
reintegração diferenciada, também conhecida como visível.

3.1 Reintegração mimética

A reintegração mimética, também chamada de ilusionista, tem como


intenção a recuperação total das cores da camada pictórica da obra a partir da
imitação de seu matiz. Além disso, a reintegração cromática no modelo
mimético busca também imitar a textura da camada de tinta, assim como as
linhas e as formas, e assim dando continuação à pintura dentro das lacunas. O
objetivo dessa reintegração é esconder por completo a intervenção para
promover a sensação de que a obra foi produzida recentemente.
Para tanto, as lacunas são inteiramente igualadas às áreas com cor ao
seu redor, evitando a percepção do observador de que algum dia a obra veio a
perder partes de sua policromia. Não obstante, todos os esforços para
esconder as intervenções ainda não são suficientes, pois naturalmente o tempo
faz com que os materiais reajam entre si – os originais utilizados na obra com
os materiais utilizados na intervenção –, trazendo à tona as manchas e
diferenças entre a camada original e a pintura inserida nas lacunas.
De acordo com Bailão (2011), essa técnica também pode ser
considerada vantajosa do ponto de vista estético e interpretativo da obra. Sua
obtenção pode ser a partir da sobreposição de veladuras ou da mistura
realizada na paleta, e o objetivo é que “a reintegração se funda opticamente
com a cor adjacente, deixando perceber todas as informações da camada
subjacente” (Bailão, 2011, p. 48).

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Muitos restauradores defendem a reintegração mimética porque
consideram que esta é ainda a mais indicada, pois não interfere de maneira
direta na leitura da obra. Assim, destacam que qualquer outro tipo de
reintegração pode comprometer e leitura da obra e a reintegração mimética,
por mais fiel que seja à pintura original, sempre poderá ser descoberta a partir
de testes e exames científicos, análises químicas ou através do uso de
lâmpadas de radiação ultravioleta.

3.2 Reintegração diferenciada

A reintegração visível, ou diferenciada, é aplicada com o intuito de


restabelecer o potencial estético da obra, mas sem deixar de mostrar os
indícios do processo de restauração com reintegração da camada pictórica.
Cesare Brandi (2004) afirma que a restauração deve ser facilmente
identificada, defendendo que toda a reintegração cromática em uma obra deve
ser visível. O modelo de reintegração visível busca recuperar a matéria da obra
com a intenção de não permitir que ela seja degradada, porém não imita a
técnica original do artista. Isso ocorre para que não seja criado um falso
histórico, todavia, essa técnica deve ser utilizada com cuidado porque pode
gerar sérias interferências na imagem da obra.
Há vários modelos para a reintegração cromática diferenciada ou visível,
dos quais se destacam principalmente:

3.2.1 Reintegração com tratteggio ou tracejado

É realizado um tracejado nos espaços das lacunas, geralmente em


linhas diagonais. Nessa técnica, não se busca atingir a textura ou imitar as
formas das figuras. É bastante utilizada por alguns museus da Europa por ser
defendida como uma solução simples e, ao mesmo tempo, ética. Considera-se
que a reintegração com tracejado não interfere demasiadamente na estética de
uma obra ou objeto, também sendo facilmente identificada.

3.2.2 Técnica neutra

É utilizada uma tonalidade neutra, geralmente um tom de cinza obtido a


partir da mistura de algumas cores da paleta da obra mais a cor branca, e
inserida nas lacunas da camada pictórica.

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3.2.3 Técnica de reintegração subtom

É semelhante ao modelo de reintegração neutra, porém, é inspirada na


técnica de restauro de peças arqueológicas. A reintegração subtom consiste
em alcançar uma tonalidade abaixo do matiz original das bordas da lacuna, ou
seja, um matiz visivelmente mais claro que a cor original, porém sem o risco de
se ressaltar, como acontece na maioria das vezes com a cor neutra.

3.2.4 Técnica de reintegração de suporte à vista

Tem um resultado estético semelhante ao da técnica de reintegração


neutra e, assim como seu nome, permite que fique visível a cor do suporte da
obra, apenas tratando a lacuna sem, no entanto, acrescentar uma tonalidade
que irá diferenciá-la ou não.

3.2.5 Reintegração com pontilhismo

Consiste em evitar as linhas de contornos e a utilização de cores


prontas; pretende conseguir uma tonalidade que resulte da mistura de
pequenos pontos justapostos de outros matizes puros.

TEMA 4 – ANULAR OU NÃO AS MARCAS DO TEMPO

Todo processo de restauração requer um tempo para reflexão, análise e


planejamento. A reflexão envolve distintos fatores, tais como questões
socioculturais diversas e isso demanda do restaurador a consciência de que
não há uma única solução para cada problema e por isso, valores como ética e
responsabilidade devem sempre estar presentes. Uma obra ou objeto sempre
conta uma história e, às vezes, muitas histórias ao mesmo tempo, e isso não
pode ser perdido.

4.1 O objeto de memória

Até o momento, a humanidade já produziu um imensurável número de


bens artísticos, históricos e culturais. Cada grupo, naturalmente, possui
memórias que compõe sua identidade e essas memórias são muitas vezes
consolidadas em bens materiais. Geralmente a intenção é perpetuar a memória

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cristalizada nesses objetos, que muitas vezes se transformam em símbolos, ou
seja, a intenção é perpetuar esses objetos.
Para um restaurador, tocar no símbolo de uma cultura representa um ato
que demanda, conforme mencionado anteriormente, grande responsabilidade.
Isso implica no fato de que todo objeto é um importante vetor da memória e
não pode, de forma alguma, ser sacrificado por qualquer tipo de negligência.
De acordo com Muñoz Viñas (2003, p. 177), o “restaurador não pode decidir
pelo que crê ser o melhor, o que considera mais honesto; o critério fundamental
que deve pautar sua ação é a satisfação dos sujeitos a quem o trabalho afeta e
afetará no futuro”.
Assim sendo, há todo um cuidado quando se toca em um bem
patrimonial, independentemente de sua história e do grupo a que pertence. A
exemplo disso, podemos citar os objetos ritualísticos das diferentes religiões
que demandam cuidados específicos em todas as esferas. O sentimento de
reverência às distintas crenças e culturas deve também fazer parte da conduta
do restaurador e de todos os demais profissionais que venham a trabalhar,
direta ou indiretamente, com esses objetos.

4.2 Intervenções desastrosas

Locais inapropriados, falta de experiência, estudo ou conhecimento,


economia de materiais ou improvisação, são alguns dos exemplos que
geralmente resultam em intervenções desastrosas. No ano de 2012, houve um
caso desastroso de restauração amadora, mas que curiosamente acabou por
deixar a responsável, a obra e o local mundialmente famosos. O fato ocorreu
na pequena cidade de Borja, na Espanha, quando uma senhora octogenária,
com a permissão de um padre, resolveu realizar uma intervenção de restauro.
A obra em questão retrata Jesus Cristo na técnica de afresco e foi intitulada
Ecce Homo, feita pelo artista Elias García Martínez, no século XIX. O afresco
estava realmente danificado pela umidade do local e apresentava várias
lacunas devido às perdas em sua camada pictórica.
A responsável pela restauração não tinha formação nem os
conhecimentos necessários para a realização do trabalho. Acabou fazendo o
que muitos restauradores já fizeram durante a história: repintou a obra do
artista. O resultado ficou bizarro e recebeu diversas críticas, no entanto, o
resultado, de tão absurdo, repercutiu como piada nas redes sociais.
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Inicialmente, todos estavam preocupados em punir, de alguma forma, os
responsáveis, mas como isso seria feito nesse caso e qual o tipo de punição
adequada? A autora confirmou ter autorização do padre responsável pela igreja
onde a obra ficava, porém o padre evitou se pronunciar.
Mesmo movida por outras intenções, a inusitada restauradora criou uma
nova história para a obra, a qual, mesmo que voltasse ao seu estado original,
já não seria mais vista da mesma maneira que antes. Embora pareça uma bela
história, jocosa e com final aparentemente feliz, não é bem assim que as coisas
geralmente acontecem. É imprescindível que o restaurador tenha noção de
todo o processo antes de iniciar seu trabalho, o que também não o impede de
ter algumas surpresas.

TEMA 5 – SOLUÇÕES PRÁTICAS

Há obras de arte criadas por grandes artistas que, ao longo do tempo,


passaram a fazer parte da vida e da história de muitas pessoas. E os museus
têm esse poder de fomentar no coração das pessoas o sentimento de
pertencimento em relação à arte e à história. E quando essas obras ou objetos
precisam passar por alguma intervenção, é comum que, a princípio, a
população e a imprensa manifestem preocupação – fato que é bastante
positivo. Diante disso, e do fato de estarem lidando com algo que notavelmente
demanda muita responsabilidade, alguns museus vêm adotando a estratégia
de tornar públicas suas intervenções de restauro. Um exemplo é a obra Santa
Ana, a Virgem e o Menino, cujo processo de restauro deu origem ao
documentário Léonard de Vinci: La Restauration du Siècle (Leonardo da Vinci:
a restauração do século), escrito e realizado por Stan Neumann (Léonard,
2012), e a obra A Ronda Noturna, cujo processo de restauro foi transmitido ao
vivo pela internet (Operation, 2019).

5.1 O Museu do Louvre e a restauração da obra Santa Ana, a Virgem e o


Menino

A obra Santa Ana, a Virgem e o Menino foi criada pelo artista


renascentista Leonardo da Vinci (1452-1519), no século XV. A técnica
empregada foi óleo sobre painel de madeira. A obra pertence ao acervo do
Museu do Louvre, em Paris, e suas dimensões estão entre 168 cm x 130 cm.

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Em 2011, a equipe de conservadores e restauradores do Museu do
Louvre deu início aos preparativos para a realização de uma intervenção na
obra Santa Ana, a Virgem e o Menino, a qual permanecia exposta no espaço
conhecido como a Grande Galeria do Louvre, recebendo mais de 8 milhões de
visitantes por ano. Nesse processo, também estiveram envolvidos os
profissionais do C2RMF, além dos maiores especialistas em obras de
Leonardo da Vinci do mundo, formando uma comissão científica consultiva.
Após muitos exames, testes, análises e pesquisas, os profissionais
identificaram que a obra estava relativamente em boas condições mediante sua
data de criação e anos de existência, mas, mesmo assim, precisava passar por
uma intervenção de restauro. Isso porque foi identificado na pintura a presença
de manchas provenientes de processos anteriores de reintegração cromática,
cujos materiais naturalmente reagiram de maneira diferente dos materiais
originalmente utilizados pelo artista. O verniz encontrava-se em avançado
estágio de oxidação, resultando em amarelecimento e o suporte apresentava
marcas de abaulamento que estavam ocasionando o craquelamento da
camada pictórica.
Por muito tempo a obra apenas recebeu tratamento paliativo com
camadas sobre camadas de verniz para que a pintura fosse consolidada e,
assim, buscando evitar as possíveis perdas. Já na década de 1990, houve uma
tentativa de restaurá-la, mas isso não ocorreu pois a população se manifestou
contra, juntamente com uma forte campanha promovida pela imprensa
francesa. A população ignorava o fato de que a obra precisava de uma
intervenção e temia os resultados de um possível restauro desastroso.
Após o quadro ter sido retirado da parede do museu e encaminhado
para o laboratório do C2RMF, passou por diversos exames e contou com a
utilização de câmeras ultravioleta e infravermelha – um processo
rigorosamente acompanhado pela comissão científica reunida pela Louvre. Os
resultados dos estudos apontaram cerca de quatro ou cinco camadas que
indicavam processos anteriores de reintegração cromática sobrepostos na
pintura original, ao longo de décadas em que a obra recebeu esses cuidados.
Diante de todo o histórico a obra, a membros da comissão chegaram ao
consenso de apenas desbastar a camada de verniz, pois estavam apreensivos
pois qualquer “exagero” poderia comprometer a originalidade. O primeiro passo
foi a limpeza profunda, seguida do desbaste das camadas de verniz. Para que

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não houvesse erro em relação à uniformidade da retirada do verniz, foi utilizado
um micrômetro para medir a espessura da camada pictórica.
Com tantas camadas de verniz sobrepostas, a obra praticamente havia
perdido seus volumes, que foram aos pouco redescobertos à medida que o
verniz oxidado foi desbastado pelos restauradores. As cores também ficaram
mais vivas e foi possível identificar nuances criados pelo pintor renascentista
ainda desconhecidos pela contemporaneidade. Assim, o assombro diante da
beleza de uma obra de Leonardo da Vinci foi intensificado e desbastar a
camada de verniz se tornou um dos processos de restauro mais conhecidos e
divulgados desde então.

5.2 O Rijksmuseum e o restauro da obra A Ronda Noturna

A obra A Ronda Noturna, do artista barroco Rembrandt Harmenszoon


van Rijn (1606-1669), encontra-se atualmente exposta no Rijksmuseum, em
Amsterdã, na Holanda. A obra foi produzida em 1642, suas dimensões são
3,63 m x 4,37 m e seu peso é de 337 kg – o que demanda uma grande e
altamente preparada equipe para poder movê-la.
Em julho de 2019, foi dado início ao processo de restauro da obra A
Ronda Noturna, sendo este realizado na própria sala expositiva e visível aos
visitantes do museu, além de ser transmitida ao vivo pela internet a partir de
um link disponível no site do Rijksmuseum (Operation, 2019). A obra foi movida
por um elevador hidráulico para um espaço com uma parede de vidro entre ela
e o público, permitindo a visualização do processo de restauro. A equipe
formada tem doze restauradores, além de outros especialistas que
acompanharam de perto todo o processo.
Para o início da restauração, foram dedicados dez meses somente à
pesquisas históricas e diversos testes e exames que trazem maiores
informações acerca dos materiais utilizados pelo artista e, ainda, as reações
destes ao tempo. A obra passou também por várias sessões de fotografia para
registro de cada detalhe de sua superfície, tanto no anverso como no verso. A
obra já passou por uma intervenção de restauro em 1975, quando foi
danificada por uma faca com golpes dados por um professor holandês.

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NA PRÁTICA

 Escolha uma obra de sua preferência cuja imagem esteja disponível em


alta resolução na internet.
 Imprima a imagem em papel A3 e, preferencialmente, de alta gramatura.
 Cole a reprodução em uma superfície plana de madeira.
 Faça alguns rasgos, arranhões e furos com estilete.
 Aplique o que aprendeu nas aulas (faça o nivelamento da camada
superficial utilizando massa acrílica; faça a reintegração cromática da
reprodução utilizando aquarela ou tinta acrílica diluída).
 Procure praticar os diferentes tipos de reintegração (mimética e
diferenciada). Para cada ação, reflita sobre os motivos de sua escolha e
analise se esses motivos estão de acordo com a ética da restauração.

FINALIZANDO

Nesta aula, aprendemos um pouco mais sobre:

 A responsabilidade e a ética na preservação dos bens culturais,


qualidades fundamentais para o trabalho dos conservadores,
restauradores e demais agentes envolvidos com a preservação do
patrimônio cultural.
 As Cartas Patrimoniais, com dois exemplos que tratam acerca da ética
nos procedimentos e intervenções de restauro.
 Modelos de reintegração cromática, destacando que alguns evidenciam
a intervenção; outros, como o modelo mimético, buscam imitar ao
máximo a obra original do artista, criando o que alguns restauradores,
como Brandi, consideram um falso histórico.
 Os riscos de restaurações desastrosas.
 A restauração da obra Santa Ana, a Virgem e o Menino, de Leonardo da
Vinci, que se encontra no Museu do Louvre.
 A restauração da obra A Ronda Noturna, de Rembrandt, no museu
Rijksmuseum, em Amsterdã.

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REFERÊNCIAS

BAILÃO, A. As técnicas de reintegração cromática na pintura: revisão


historiográfica. Ge-conservación, Porto, n. 2, p. 45-63, 2011.

BRANDI, C. Teoria da restauração. São Paulo: Ateliê, 2004.

CAMBRIDGE. Dicionário de filosofia. São Paulo: Paulus, 2006.

CURY, I. (Org.). Cartas Patrimoniais. 3. ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004.

LÉONARD de Vinci: la Restauration du Siècle. Direção: Stan Neumann.


França: Arte France, 2012. 54 min.

MUÑOZ VIÑAS, S. Teoria Contemporânea de la Restauración. Madrid:


Sintesis, 2003.

MUSEU holandês transmite na internet restauração de quadro de Rembrandt.


Casa Vogue, 8 jul. 2019. Disponível em: <http://tiny.cc/cay3fz>. Acesso em: 11
nov. 2019.

OPERATION Night Watch. Rijksmuseum, 2019. Disponível em:


<https://www.rijksmuseum.nl/en/nightwatch>. Acesso em: 11 nov. 2019.

PEDROSA, I. Da cor à cor inexistente. 8. ed. Rio de Janeiro: Léo


Christiano/EDUFF, 2002.

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