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DA CENA À PÁGINA

Pedro Serra

1. O teatro vicentino e a ‘fábrica do mundo’. Gil Vicente é a figura


maior do teatro português e a amplíssima tradição crítica dos chamados
estudos vicentinos foi coagulando a imagem de um dramaturgo, encenador,
contra-regra, compositor musical e actor que ocupa um lugar fundacional no
teatro da comunidade interliterária luso-espanhola ibérica,1 onde ombreia
com nomes tão importantes como Juan del Encina ou Lucas Fernández,
embora deles se afaste progressivamente, numa deriva que comuta um inicial
pendor pastoril e religioso por uma criação dominada pela sátira moralizante
e de pendor alegórico. Lembremos o comentário coevo de Garcia de
Resende, o compilador do Cancioneiro Geral, que, referindo-se ao
pioneirismo do dramaturgo, afirmou: “ele foy ho que inventou | isto caa, com
mais graça e mais doutrina”.2 ‘Graça’ e ‘doutrina’ são atributos da arte
vicentina: inventiva natural que faz rir – o famigerado veio cómico vicentino,
com restos algo amortecidos de ‘carnavalização’ –, mas que não deixa de
supor formação e doutrina, conhecimento aplicado e uma robusta visão moral
do mundo. Gil Vicente é, sem assomo de dúvida, um nome com assento na
história do teatro europeu, ibérico e português – cujos antecedentes medievais
de índole dramática, antecessores quer religiosos quer profanos, acomoda e
transforma: moralidades, mistérios, milagres, farsas, momos ou entremeses,
por exemplo.
Contudo, são muitas as incógnitas referentes à sua biografia, de que
apenas se conhecem alguns dados. Terá nascido provavelmente em Lisboa
por volta de 1465, vindo a falecer em data próxima a 1536, ao que tudo indica

                                                                                                                       
1
Cf., para esta noção, Vítor M. Aguiar e Silva, “Camões e a comunidade interliterária
luso-castelhana nos séculos XVI e XVII”, in A Lira Dourada e a Tuba Canora: Novos
Ensaios Camonianos, Lisboa, Livros Cotovia, 2008, pp. 55-92.
2
Garcia de Resende, Livro das Obras, edição de Evelina Verdelho, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1994, p. 571.
na cidade de Évora. Alentando, a sua vida, diferentes mitografias,
estimulando alguma indeterminação – a de ter sido ourives ou ‘mestre da
balança’ será uma delas3 –, de certo apenas temos o ter sido trovador de
‘aytos’ na Corte Régia portuguesa, que acompanhará, na sua ambulância,
pela geografia do reino: Lisboa, Coimbra, Évora, Almada, Abrantes ou
Tomar. De 1502, data da representação do Monólogo do Vaqueiro ou
Auto da Visitação, até 1536, ano da Floresta de Enganos, o dramaturgo
português averbará um pouco mais de quatro dezenas de peças, das
quais 15 são em língua portuguesa, 11 em castelhano e 18 em ambos os
idiomas. Gil Vicente foi um “homem de palco”, como formulou um dos seus
mais inspirados leitores, António José Saraiva,4 cuja bagagem das letras – a
sua obra revela conhecimentos de muita índole: teologia, clássicos greco-
latinos, teatro e para-teatro medieval europeu –, enfim, permitiu perfazer a
ascese social, reconhecendo-lhe e atribuindo-lhe um lugar no âmbito
cortesão, ao qual se vincula de modo orgânico, mas no seio do qual produz
‘distância’: a sua de súbdito de um rei absoluto, e a ‘distância’ suposta por
representações teatrais que interrompem o ‘mundo da vida’ no espaço da
corte. Assim, a actividade dramatúrgica de Gil Vicente foi desenvolvida no
âmbito da corte régia portuguesa que abrange os reinados de D. Manuel I e D.
João III, tendo tido na Rainha Dona Leonor, viúva de D. João II e irmã de D.
Manuel, uma mecenas e protectora. Os espectáculos vicentinos acomodavam-
se, pois, basicamente, ao ‘tempo cosmológico’ do calendário litúrgico
(nascimento e paixão de Cristo) e à temporalidade, igualmente mítica, dos
rituais sociais (casamentos, nascimentos, celebrações solenes) que visam
perpetuar a corte régia como cabeça do reino, como ‘umbigo’ de um empório
em progresso e de um império que já se imagina.5
O teatro vicentino desempenhou, por conseguinte, um papel de relevo
na conformação de um espaço de sociabilidade cortesã, não deixando,
                                                                                                                       
3
Cf. José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente, Lisboa, Edições 70, 2008.
4
Apud José Augusto Cardoso Bernardes, “A Copilaçam de todalas as obras: o livro e o
projecto identitário de Gil Vicente”, Diacrítica. Ciências da Literatura, nº18-19/3, 2004-
2005, p. 196, n. 14.
5
Cf. José Alberto Ferreira, Uma discreta invençam. Estudos sobre Gil Vicente e a
cultura teatral de Quinhentos, Coimbra, Angelus Novus, 2004, p. 15 e ss.
simultaneamente, de ser determinado pelos valores áulicos, que têm como
abóbada o “cristianíssimo firmamento”, eloquente expressão utilizada pelo
próprio Gil Vicente no texto que viria a servir de preâmbulo à editio princeps
das obras completas, saída dos prelos em 1562. Neste contexto, deixou-nos
uma produção teatral permeada por modelos mentais em trânsito para a
Modernidade, uma obra empenhada na renovação das formas dramáticas
medievais de cunho popular, religioso e cortesão. Uma obra entre o
crepúsculo da Idade Média, aquele tempo outonal tão eloquentemente
descrito por Johan Huizinga6; e o advento da chamada Idade Moderna, uma
espécie de nova infância das sociedades da Europa Ocidental: um novo
‘Mundo Novo’, reinventado pela imprensa de caracteres móveis e pelos
Descobrimentos náuticos. O limiar da ‘Galáxia Gutenberg’, como lhe
chamou McLuhan7, e a conformação de um hemisfério global, o imaginário
do ‘Globo Metafísico’ na bela designação de Peter Sloterdijk recentemente
apostilada por Bruno Latour.8
Uma obra, enfim, entre o tempo do cavaleiro cruzado, peregrino que
percorre o caminho que conduz à Jerusalém Celeste e à Jerusalém Terrestre; e
o tempo do navegador, militar ou comerciante, que segue as rotas das Índias
seguindo as linhas inscritas, more geometrico, na ‘fábrica do mundo’. A
primeira peça incluída no presente volume, o Auto da Índia, produzida pela
primeira vez em 1509, pressupõe já esse ‘Globo Metafísico’, fazendo-o muito
embora pelo viés da sátira social e do olhar moral sobre o mundo,
precisamente refractário a uma ordem moral. Um “mundus inversus”, tópica
estruturante da dramaturgia de Gil Vicente que foi magistralmente sintetizada
por João Nuno Alçada: “Este ‘mundo ao contrário’, para Gil Vicente não é o
de visões alucinantes, ocupadas por monstros ou animais onde o trágico se
junta ao cómico, na máxima incongruência formal de uma visualização
                                                                                                                       
6
Cf. O Declínio da Idade Média, tradução de Augusto Abelaira, 2ª edição, Lisboa,
Editora Ulisseia, 1985.
7
Cf. La galaxia Gutenberg. Génesis del homo typographicus, Barcelona, Galaxia
Gutenberg, 1998.
8
Cf. “From Realpolitik to Dingpolitik or How to Make Things Public”, in Bruno Latour
e Peter Weibel, eds., Making Things Public. Atmospheres of Democracy, Karlsruhe-
Londres, ZKM/The MIT Press, 2005, p. 27.
dramática de todos os vícios humanos. Deles bem poderia servir de exemplo
iconográfico As Tentações de Santo Antão de Hyeronimus Bosh (Museu
Nacional de Arte Antiga, Lisboa) que Damião de Dóis comprou em
Antuérpia para a sua colecção pessoal. § Ele é sobretudo, tal como em âmbito
de poesia galego-portuguesa havia sido para Martin Moya, um mundo no
qual se verifica constantemente uma inversão de valores morais, mas do qual
não se deve excluir a esperança de salvação”.9 Desta ‘fábrica do mundo’ –
um mundo com gravitação teológica e mobilizado por essa inapelável
revolução escatológica – temos abundantes exemplos nas peças vicentinas
aqui reunidas.
Assim, no Auto da Índia, o ‘Marido’ da volúvel Constança, um
pescador atraído pelas possíveis benesses do Império, movido pelo
“cheiro da canela” do Oriente – descurando, neste sentido, a
mediocridade da uma vida doméstica –, será castigado pela paixão que o
anima: a ambição, a ambitionis, termo oriundo de ambio, que alude a um
movimento circular – do verbo ambire, ‘andar às voltas’, uma ciranda
sem centro – obviando o essencial, o próprio, o apropriado. O dinheiro,
a fama, a ascese social – tudo vaidades – são os motivos que mobilizam
a figura e lhe determinam esse movimento excêntrico.
Nem sempre esse ímpeto militar – associado ao espírito de
cruzada – e crematístico da Expansão foi submetido a burla, no marco
de uma sátira social ampla que caracteriza a obra de Gil Vicente:
pensemos no Auto da Fama (1510), em Exortação da Guerra (1514) ou
n’As Cortes de Júpiter (1521). É-o, explicitamente, no impropriamente
chamado Auto da Índia – trata-se de uma farsa –, onde o adultério
feminino da protagonista, Constança – tópico muito rentável no
imaginário medieval –, tem vindo a ser lido tanto como sintoma de uma
sociedade que sucumbe moralmente pela miragem do Oriente, como
castigo da incúria do Marido que, muito embora tendo sido marinheiro e
tenha feito a guerra nos confins do Império, regressa pobre a casa
(“pelado coma formiga”, como diz a personagem). Anos mais tarde, na
                                                                                                                       
9
João Nuno Alçada, Por ser cousa nova em Portugal. Oito ensaios vicentinos, Coimbra,
Angelus Novus, 2003, pp. 46-47.
Auto de Inês Pereira, que também integra a presente antologia, Gil
Vicente replicará o tema da empresa imperial perturbando a vida
matrimonial: um Escudeiro, o galante marido eleito pela casadoira Inês
em detrimento do ‘rústico’ Pêro Marques, parte para as “partes d’Além”,
isto é, para a guerra no Norte de África. Sonho de cavalarias de onde
não regressará, cumprindo, no fundo, o desejo da jovem esposa pois
Brás da Mata, o Escudeiro, uma vez casados, lhe impõe uma vida de
absoluto recato doméstico. Sobrevém um segundo casamento, agora sim
com Pêro Marques, personagem pouco ‘discreta’, simples mesmo, mas
que significará para Inês Pereira a consumação da ambicionada
liberdade. Uma liberdade que, todavia, supõe a contrafacção da moral e
dos bons costumes, pois o final da peça vislumbra um futuro adúltero
para Inês.
Em Gil Vicente, a exortação da belicosidade só acontece quando
se trata de produzir um louvor do expansionismo legitimado pelo
espírito de cruzada: é o que temos, na linha das obras já mencionadas,
no Auto da Barca do Inferno, que também integra o presente volume,
‘auto de moralidade’ – é este o título com que correu em folha volante
de cerca de 1518 –, onde toda uma galeria de tipos sociais desfila – o
Fidalgo, o Onzeneiro, o Sapateiro, o Frade, a Alcoviteira, o Judeu
usurário, o Corregedor e o Procurador, o Parvo Joane e, enfim, um
Enforcado –, numa espécie de macabra procissão post-mortem rumo à
condenação, com ecos lucianescos10 e das ‘danças da morte’ medievais.
Ora, como corolário dos sucessivos quadros dialógicos concatenados, os
Cavaleiros de Cristo, que morreram em combate pela Fé contra o Islão –
mortos, enfim, “nas partes d’Além” –, mártires do tal “cristianíssimo
firmamento”, são os únicos que se salvam. A exortação do espírito
cruzadístico, estreitamente vinculado no tempo vital de Gil Vicente à política
da Corte, a legitimação da empresa imperial pela assistência e propagação do
Evangelho, contudo, não significa que um dos principais alvos da crítica e
                                                                                                                       
10
Cf. Eugenio Asensio, “Gil Vicente y su deuda con el humanismo: Luciano, Erasmo y
Beroaldo”, in Estudos Portugueses. Homenagem a Luciana Stegagno Picchio, Lisboa,
Diffel, 1990, pp. 277-299.
sátira vicentina não tenha sido a própria Igreja. Abundam os exemplos, mas
fique por todos eles o Auto da Feira, de meados da década de 20, denúncia,
em modo alegórico e satírico, dos desmandos de Roma; e ainda, para centrar-
nos nas peças aqui reunidas, as figuras do frade concupiscente do Auto da
Barca do Inferno e o eremita da Auto de Inês Pereira. Seja como for, a
‘máquina do mundo’ que o conjunto da obra de Gil Vicente tem a pulsar no
seu cerne não deixa de ter como êmbolos o ceptro e o báculo. A ‘fábrica do
mundo’, vista a partir do espaço da corte onde Gil Vicente se moveu e agiu,
tem na abóbada que dá sentido ao todo a constelação teológico-política
conformada pelas instituições eclesiástica e monárquica.

2. Acordes e dissonâncias da obra vicentina. A Copilaçam de 1562,


organizada pelos filhos do dramaturgo, Luís e Paula Vicente, constitui a
primeira edição da obra completa de Gil Vicente. Uma editio princeps
com carácter póstumo, por conseguinte. Sabemos, seja como for, que
muitas peças, depois de produzidas e representadas, correram avulsas
sob a forma de folhas volantes: é caso do Auto da Barca do Inferno, de
que se conserva uma impressão autónoma, aproximadamente de 1518,
com o título Auto da Moralidade, lição preciosa do ponto de vista
dramatúrgico porque mais próxima do momento originário de
representação; é igualmente o caso da Auto de Inês Pereira, de que
conservamos uma folha volante datada de 1523, e cujo título é Auto de
Inês Pereira. ‘Auto’, aqui, funciona como hiperónimo, trata-se, na
verdade, de uma ‘farsa’. Na Copilaçam foram reunidos, seguindo um
modelo de ‘cancioneiro’ – é este o termo utilizado no “Privilégio” da
Copilaçam de 1562, onde se concede alvará para “empremir hum livro e
cancioneiro de todas as obras” –, os diferentes géneros cultivados por
Gil Vicente, tanto de carácter devocional (milagres, mistérios ou
moralidades), como de índole profana (comédias, farsas ou
tragicomédias). Um dos problemas que tem mobilizado os estudos
vicentinos tem sido, precisamente, a questão genológica, uma
problemática sempre difícil de enfrentar.
A ponderação da razão externa ou interna dos géneros que
assistem à inteligibilidade das diferentes peças visa, no fundo,
reconhecer ou construir uma ordem, um sistema com limites e princípio
mobilizador que imprimam sentido e coerência a um corpus que não
pode deixar de constituir um todo, uma totalidade sempre maior que a
soma de cerca de 50 peças de extensão variável. José Augusto Cardoso
Bernardes, neste sentido, sublinhou recentemente que ‘farsas’,
‘comédias’ e ‘moralidades’, “a tripartição proposta pelo próprio [Gil
Vicente na carta-prefácio de Dom Duardos,] constitui ainda o melhor
quadro de compreensão do conjunto das peças”11. A editio princeps
póstuma, neste ponto revelando a mão interventiva de Luís Vicente, opta
por uma distribuição menos justa: “obras de devaçam”, “obras meúdas”
e “tragicomédias”. Ambas opções, coevas, tendendo à organização da
ampla fenomenologia das peças em classes de géneros, contrastam com
modelos contemporâneos da teoria literária cuja vocação é, antes, a da
discriminação e destrinça.
Assim, para um dos mais importantes estudiosos de Gil Vicente,
António José Saraiva, o conjunto das obras reparte-se por 9 espécies:
“Julgo poder afirmar que em Gil Vicente são reconhecíveis os géneros
seguintes: 1º o mistério; 2º a moralidade; 3º a fantasia alegórica; 4º o
milagre; 5º (completamente diferenciado do milagre) o teatro
romanesco; 6º a farsa; 7º a écloga, ou auto pastoril; 8º o sermão
burlesco; 9º o monólogo” 12 , admitindo, muito embora, o ilustre
historiador da literatura portuguesa, que títulos como Farsa das Ciganas
e o Auto das Fadas constituiriam um resto, uma porção fora daquela
constelação genológica. Trata-se, de facto, de um problema espinhoso,
jogado na acomodação do singular ao geral, do indivíduo à espécie.
Mesmo uma peça tão perfilada como o Auto da Barca do Inferno, a
segunda que integra este volume, numa descrição mais densa, pode

                                                                                                                       
11
José Augusto Cardoso Bernardes, coord., História Crítica da Literatura Portuguesa,
vol. II, Humanismo e Renascimento, Lisboa, Editorial Verbo, 1999, p. 84.
12
Gil Vicente ou o Fim do Teatro Medieval, 3ª ed., Lisboa, Livraria Bertrand, 1981, p.
74.
mostrar uma natureza poliédrica, como uma pedra preciosa talhada com
muitas faces.
Tenha-se em conta, neste sentido, a seguinte descrição levada a
cabo por Margarida Vieira Mendes, cujos ensaios sobre Gil Vicente são
também de referência: “Um auto tão homogéneo como o da Barca do
Inferno actualiza a chamada moralidade, a obra de devoção de capela e
do tempo da Quaresma, as artes de morrer e a literatura limiar, a
iconografia da dança da morte, o sermão sobre o contemptus mundi, a
composição cénica dos momos – que Gil Vicente viria a transformar em
fantasias alegóricas ou tragicomédias –, a técnica dramática do conflito,
a estrutura do tribunal e ainda formas musicais, poéticas, cénicas e
coreográficas”.13 A proposta de Margarida Vieira Mendes é ponderosa e
produtiva, ancorando a problemática genológica num modelo
hermenêutico cuja pregnância provém da tensão entre caso e teoria do
caso, mostrando como é necessário, para adensar o ordenamento do
corpus, recortar o cronótopo material e simbólico em que se inscreve Gil
Vicente, ponderar a relação entre referencialidade e alegoria – o modo
alegórico, como se sabe, é fundamental para entender grande parte da
obra vicentina –, não descurando tão-pouco a dialéctica entre
singularidade e cânone de uma obra cuja intensidade advém de uma
pulsão de “inovação” dentro de uma “tradição”.
Seja como for, o que está em jogo na questão dos géneros do
corpus de peças teatrais de Gil Vicente não é apenas uma questão de
refracção do sistema cultural e literário coevo. O problema da lei formal
de cada uma das peças, da sua representação e sintaxe na póstuma
Copilaçam de todalas obras diz respeito, também, se não mesmo
fundamentalmente, ao reconhecimento, no legado vicentino, de uma
Obra. Por outras palavras, os estudos vicentistas têm incorporado nessa
dialética peça/género e peça/obra a tensão que sustenta a complexa
mundivisão de Gil Vicente, polarizada entre uma normatividade ‘moral’
que modeliza uma visão da harmonia – uma harmonia determinada pela
                                                                                                                       
13
“Gil Vicente: o génio e os géneros”, in Estudos Portugueses. Homenagem a António
José Saraiva, Lisboa, ICALP/FLUL, 1990, p. 334.
providência divina – e o desmancho dissonante do mundo. De um lado a
obra como Livro, como forma que introduz ordem na realidade; por
outro lado, o Mundo caótico, desviante, resistente a um logos que o
organize. O trovador de ‘aytos’ torna-se, nesse processo em que devém
‘livro’, uma espécie de atlas que sustenta o Mundo, que vigia a
conformação, ou afastamento, do real ao ideal.
É neste marco que, assim, devemos enquadrar o modo como um
dos mais autorizados especialistas actuais em Gil Vicente, José Augusto
Cardoso Bernardes, dispõe e descreve a coerência da obra vicentina
como um todo, cujas dominantes dialécticas se articulam no binómio
‘sátira e lirismo’,14 embora o par estruturante só o seja verdadeiramente
quando conciliado com a tensão entre o ‘pormenor’ e o ‘conjunto’:
“Examinadas de forma isolada, Sátira e Lirismo não só não
proporcionam a visão das linhas de coesão do teatro vicentino, como
produzem, de facto, uma imagem refractada do objecto em análise. Na
sua verdade possível, o teatro de Gil Vicente deixa-se ver melhor, se for
avaliado à luz de uma dinâmica de percepção conjugada com a adopção
simultânea de uma perspectiva de conjunto e de uma perspectiva de
pormenor”.15 O ‘Lirismo’ apontando para a harmonia antes mencionada,
a ‘Sátira’ assinalando a dissonância. O ponto importante da tese de
Bernardes é o de vincular a publicação das peças na Copilaçam à
rentabilização da relação dialógica entre ‘sátira e lirismo’ no âmbito da
conformação de um modelo de sujeito, e um modo de subjectividade,
que visa agir no tempo, interceder no espaço áulico, entrar – como
literalmente entrou – no círculo restrito da Corte, aproximar-se do
Monarca, ponto arquimediano da sociedade cortesã, da nação: “A
decisão de dar forma de livro a uma obra teatral (marcada pelo efémero)
destina-se justamente a reforçar esse desígnio [de intervir junto do Rei],
na medida em que a transforma em monumento escrito, dedicado ao
Monarca português: a D. João III, em primeiro lugar, mas também ao
                                                                                                                       
14
Cf. Sátira e Lirismo. Modelos de síntese no teatro de Gil Vicente, Coimbra, Biblioteca
Geral da Universidade de Coimbra, 1996.
15
Ibidem, p. 552.
Rei abstractamente concebido, fora do tempo vivido pelo dramaturgo”.16
Aproximar-se, no fundo, do imperium que domina, dando sentido, o
globo terrestre.

3. Meios e remediações: sobre a voz de Gil Vicente. Da


representação teatral ao livro: processo de mediação que instala no cerne
da obra vicentina toda uma problemática das chamadas ‘materialidades
da comunicação’. A escrita – manuscrita ou tipográfica – e o livro
tipográfico são media cujo conteúdo, como recorda Friedrich Kittler, são
outros media.17 Assim, da cena à página de um livro, supõe um acto de
remediação: para Bolter & Grusin, ainda, “Qualquer acto de mediação é
dependente de outro, na verdade, muitos outros, actos de mediação e é,
portanto, uma remediação”.18 Quando a voz de Gil Vicente se fez ouvir
pela primeira vez no Paço das Alcáçovas, em 1502, por ocasião do
nascimento do futuro D. João III, na câmara de D. Leonor – que seria
protectora do dramaturgo até meados da segunda década do século XVI –
propalando o Monólogo do Vaqueiro; quando as vozes dos actores e
actrizes que representaram, em 1509, em Almada, a farsa Auto da Índia
– primeira peça com enredo narrativo, em português, depois de um
primeiro ciclo em castelhano, como já foi referido, de cunho
eminentemente pastoril e religioso (Auto Pastoril Castelhano, de 1502,
o Auto dos Reis Magos, de 1503, o Auto de São Martinho, na Igreja das
Caldas em 1504); quando as vozes dos actores ressoam na câmara da
Rainha Dona Maria onde, em 1517, se representa pela primeira vez o
Auto da Barca do Inferno (moralidade que enceta a impropriamente
chamada ‘trilogia das barcas’ – seguir-se-ia, em 1518, o Auto da Barca
do Purgatório, produzido no Hospital de Todos os Santos por ocasião da
quadra natalícia; o Auto da Barca da Glória, por seu turno, ao contrário
                                                                                                                       
16
José Augusto Bernardes, “A Copilaçam de todalas as obras: o livro e o projecto
identitário de Gil Vicente”, Diacrítica. Ciências da Literatura, nº18-19/3, 2004-2005, p.
187.
17
Cf. “Perspective and the Book”, trad. por Sara Ogger, Grey Room, 05, Outono de
2001, p. 45.
18
Remediation. Understanding New Media, MIT Press, 1998, p. 56.
das anteriores, integralmente escrito em castelhano, dada a extracção
‘elevada’ das personagens, coincidirá com a festividade da Páscoa, em
1519); quando os acordes e notas musicais da ‘cantiga’ que põe em
marcha a Auto de Inês Pereira percutem nas paredes do Convento de
Tomar no ano de 1523; quando a ‘presença’ de todas essas vozes vibra e
toca os auditórios que assistiam às representações, estamos já perante
actos de mediação. Desde logo porque são actores e actrizes que não se
distinguem, nos termos em que se objectiva nos nossos dias, das
personagens que representam. Vejamos em que termos.
José Alberto Ferreira tem contribuído com ensaios fundamentais
para o conhecimento da teatralidade gil-vicentina, possível de ser
reconstruída conceptualmente, mas impossível de ‘saturar’ porque se
refere a um hic et nunc performativo. Por um lado, propõe uma leitura da
obra extraindo consequências do facto de “os textos de Gil Vicente
implic[arem] a presença da Corte”.19 Uma presença que nos devolve, por
exemplo, a contiguidade dos espaços de representação com os espaços
cortesãos. Assim, as peças foram representadas nos salões do Paço régio,
em igrejas e capelas, em mosteiros, em hospitais ou em jardins,
pressupondo, neste sentido, que não existe propriamente a
autonomização de um palco que faça a destrinça nítida entre realidade e
representação. José Camões sublinhou, neste sentido, o “processo
metonímico de espaço e público muito ao gosto de Gil Vicente”. 20
Assim, e talvez melhor, realidade e representação replicam um vínculo
circunstanciado entre o jogo e o real, isto é, um vínculo marcado por um
determinado momento histórico. É neste contexto que ganha especial
valor heurístico e hermenêutico a noção de um “teatro per figuras”
também estudado por Ferreira. O “regime figural do teatro
quinhentista”21 significa que a separação entre ‘actor’ e ‘personagem’

                                                                                                                       
19
José Alberto Ferreira, Uma discreta invençam. Estudos sobre Gil Vicente e a cultura
teatral de Quinhentos, Coimbra, Angelus Novus, 2004, p. 34.
20
“El espacio escénico en el teatro de Gil Vicente. Invención e integración”, in XVII
Jornadas de teatro clássico, Almagro, 1994, p. 170.
21
José Alberto Ferreira, op. cit., p. 9.
não tem o valor discreto que sobrevirá alguns séculos mais tarde, já no
contexto do teatro neoclássico. ‘Actor’ e ‘personagem’ supõem um
entrosamento que tem na noção de figura um objecto teórico mais
ajustado. Como esclarece José Alberto Ferreira, a figura articula um
“plano modal” (do ‘actor’) e um “plano textual” (da ‘personagem’). A
mais-valia de leitura que esta noção supõe para a leitura das peças
vicentinas radica na inclusão do ‘actor’: “Realidade biface, é justamente
pela condição modal que a determina que se reencontra a ideia de um
teatro ‘per figuras’”22. Assim, por tudo isto, não é difícil imaginar um
salão palaciano em que cavaleiros e damas, perante o olhar do Rei,
fazendo parte da cena, assistem a uma peça. Interrupção momentânea
das regras do ‘mundo da vida’, tempo festivo, suspensão lúdica da
temporalidade, a ‘proximidade’ entre os cortesãos e os actores e actrizes
passava pela interpelação, pela adequação dos movimentos das
personagens à proxémia determinada pelas normas sociais, pelo decoro,
pela resposta activa – mediante o aplauso, por exemplo – dos cortesãos
que assistem à representação.
Recordemos ainda que Gil Vicente, poeta-pastor, se trata de um
súbdito que é tão só a figura do homem que, no cronótopo pelo qual
responde a obra vicentina e o mundo dela, o mundo do ‘Globo
Metafísico’, representa a submissão do orbe terrestre à ordem teológico-
política do corpo místico sacro-católico: o Monarca. A cabeça do assim
chamado e conceptualizado corpo político era justamente esse ponto
transcendental arquimediano – um corpo arquimediano, na linguagem
matemática, é um corpo ordenado que não possui elementos
infinitesimais – que produzia um modelo de mundo autoevidente, ápice
máximo legislando o lugar das coisas e dos seres; enfim, impondo-lhes
uma ontologia estável e previsível. Um vértice ou ângulo
incomensurável que, na verdade, carecia propriamente de um lugar
localizado, em virtude do seu carácter absoluto e não relativo: ponto
transcendental, pois, de emanação da Verdade. Na sua dimensão

                                                                                                                       
22
Ibidem.
‘estética’ ou ‘simbólica’, esse ponto transcendental é o ‘lugar não
localizado’ do qual emanam todas as linhas, todos os traços que marcam
o mundo – as suas rotas, os seus limites –, foi-nos devolvido mediante a
imagem de uma cabeça. Uma cabeça que tudo mede, que metrifica,
submete ao métron. Aquela cabeça que na famosa gravura, atribuída a
Abraham Bosse, acabará por servir de frontispício ao Leviathan de
Thomas Hobbes, publicado pela primeira vez em meados do século
XVII.
A obra vicentina concitou uma ampla hermenêutica daquilo a
que podemos o seu sentido político. Neste particular, foram já assentadas
questões fundamentais, concretamente referentes à mundivisão até certo
ponto conservadora de Gil Vicente, um autor para quem a moralidade
assegura uma espécie de mansarda, a um tempo imanente e
transcendente, de onde observar um mundo desconcertado. Assim, o que
tem dominado nos estudos da obra vicentina é a valoração do seu
carácter político em função do conceito de discurso ideológico: assim,
foram sendo procuradas evidências temáticas e formais, por exemplo, de
um Gil Vicente erasmista, de um Gil Vicente humanista, de um Gil
Vicente ‘oficialista’ e tradicionalista ou de um Gil Vicente transgressor e
utópico. Ora, é possível pensar numa alternativa a este marco teórico, se
atentarmos para a obra dramática de Gil Vicente em função daquilo a
que Bruno Latour chamou ‘política dos objectos’ e ‘política das
coisas’.23 Assim, num segundo olhar sobre a gravura do frontispício do
libro de Thomas Hobbes, deparamos com uma grande variedade de
objectos.
Ora o teatro de Gil Vicente foi ‘político’ na sua dimensão
performativa, isto é, enquanto espectáculo, na medida em que supôs uma
espacialidade onde determinados objectos principais foram situados, se
moveram, determinaram distâncias e proximidades. Onde certos
objectos, aliás, impuseram limites à imaginação do dramaturgo, objectos
cuja materialidade condiciona a própria natureza performativa da peça.

                                                                                                                       
23
Cf. Bruno Latour, op. cit., pp. 14-41.
Assim, José Camões, estudioso da obra vicentina, distingue, por um
lado, esta classe de “objectos pré-existentes” e, por outro, uma classe de
“objectos fabricados” ad hoc. A este último conjunto pertencerão,
decerto, no Auto da Índia, as tigelas ondem brincam os gatos ou as
moedas – os ‘cinquinhos’ e os ‘dous reais’ – que Constança entrega à
Criada. A objectualidade, entretanto, adquire um valor simbólico e
alegórico muito expressivo no Auto da Barca do Inferno. Cada um dos
tipos sociais cujo juízo conforma os sucessivos ‘quadros’ da peça é
identificado por um objecto que representa o motivo da condenação: o
manto, o criado e a cadeira de espaldas de D. Anrique, o Fidalgo; o
bolsão do onzeneiro; o avental e as formas do sapateiro; Florença, a
espada, o escudo, o elmo e o hábito do frade; os hímenes postiços, as
arcas de feitiços, os armários de mentir, os furtos alheios, as jóias de
seduzir, a guarda-roupa de encobrir, casa movediça, estrado de cortiça,
coxins e moças de Brízida Vaz, a Alcoviteira; o bode do Judeu; os
processos, a vara da Justiça e os livros do Corregedor e do Procurador;
ou o baraço do Enforcado. Por fim, o objecto principal que, ao invés dos
anteriores, significa a salvação: a cruz de Cristo dos Quatro Cavaleiros.
Por último, os objectos da Auto de Inês Pereira afastam-se desta função
simbólica: os utensílios de bordar de Inês; a carta de Pêro Marques; o
gabão e o capelo de Pêro Marques; a cadeira onde se senta Pêro
Marques; as peias e pêras de Pêro Marques; os chocalhos e corda de
Pêro Marques; a viola do Escudeiro; a carta de Arzila trazida pelo Moço
que anuncia o falecimento do Escudeiro; e, por último, as lousas que
Pêro Marques deverá carregar. O mais relevante desta ‘política dos
objectos’ reside no facto de objectos e espacialidade se imbricarem de
forma inextricável. No mesmo estudo de José Camões sobre o espaço
cénico vicentino, somos confrontados com um caso eloquente desta
imbricação: “O Auto da Barca da Glória foi concebido tendo em conta o
lugar onde ia ser representado. O autor contava com suportes pictóricos
existentes na igreja de Almeirim. A visão do inferno apontada pelo
Diabo às diferentes personagens é feita a partir de um objecto real
existente na igreja, quer fosse um quadro quer fosse um fresco pintado
numa das paredes. Gil Vicente parece ter integrado esse elemento cénico
no seu auto, depois de saber o lugar onde ia ser representado na Páscoa
de 1519”.24 A conformação de uma ‘coisa pública’, de uma res publica,
de um âmbito político – no caso vertente a Corte Régia e os seus
múltiplos espaços de inscrição, mas também a cidade, a polis, como
figura do social, do comunitário –, segundo o já mencionado Latour, não
depende apenas de uma agência humana na história; depende, também,
dos objectos que ocupam o espaço, definem os limites e a natureza da
espacialidade, determinam, em suma, a própria temporalidade do tempo.
Ora, esta obra é ‘política’ na medida em que supôs uma voz situada num
lugar – em rigor, lugares – e que situava objectos num lugar: é neste
sentido que podemos valorar a acção vicentina, cujo poder estriba nesta
capacidade para dispor de objectos e corpos.
Daí que, do nosso ponto de vista, seja oportuno ainda tecer
algumas considerações sobre esta ‘voz vicentina’: uma voz que é
mediação e remediação. Vejamos, então. No conhecido preâmbulo
redigido por Gil Vicente quando trabalhava, já na “velhice”, na
preparação de uma edição das suas obras, e que viria apenas a ser
editado, por iniciativa de Luís Vicente, na Copilaçam de 1562, como
“Prólogo em que o autor deregia esta cópia de suas obras ao muito alto e
excelso Príncipe, el-Rei dom João, o terceiro deste nome em Portugal”,
encontramos algumas fórmulas muito interessantes para compreender o
valor da remediação da voz pela escrita, da cena pelo livro, no limiar do
‘Novo Mundo’ do homo typographicus como lhe chamou o já aludido
Marshall McLuhan (cf. 1998). O livro Copilaçam de todalas obras é o
momento álgido de autonomização de uma ‘voz autoral’ como propôs
José Augusto Cardoso Bernardes. 25 Gostaríamos, neste sentido, de
colocar algumas questões referentes ao uso da metáfora da voz neste
sintagma. Porque de uma metáfora se trata para referir a condição de
autor, e correlatos como autoria ou autoridade. Gil Vicente como voz, a
                                                                                                                       
24
José Camões, op. cit., p. 163.
25
Cf. “A Copilaçam de todalas as obras: o livro e o projecto identitário de Gil Vicente”,
pp. 179-198.
voz de Gil Vicente, que terá ressoado, efectivamente, na câmara da
Rainha de Dona Leonor em 1502 aquando da celebração do nascimento
do príncipe, pois terá sido um Gil Vicente em figura de pastor o que
propalou o chamado Monólogo do Vaqueiro, em Dezembro,
concretamente no dia 7 deste mês tão importante no calendário litúrgico.
Interessa-nos colocar uma questão impossível: como era a voz de Gil
Vicente? Isto é, como soava e ressoava nuns aposentos régios a voz do
que virá a ser dramaturgo maior do Reino de Portugal? Desconhecemos
a existência de possíveis descrições, por mínimas que pudessem ser, da
voz de Gil Vicente. O que sim se pode especular, com alguma garantia, é
que a audibilidade dessa voz dependeu de uma estrutura de percussão – o
espaço físico onde acontece funciona como ‘caixa de ressonância’, e
poderá mesmo ter sido acondicionado para implementar o alcance da
voz.
Ora bem, o questão que gostaríamos de ponderar de modo
sintético é a da relação entre esta voz ressoante e o sentido que o lexema
‘voz’ tem no sintagma ‘voz autoral’. Desde logo, o ponto fundamental
prende-se com a ideia de que a letra e o livro impressos supõem uma
equação voz/representação da voz que passa por determinações materiais
e simbólicas diferentes das nossas. Toda a voz, do meu ponto de vista,
supõe ‘presença à distância’ – pela sua dependência de uma estrutura de
percussão, isto é, pela sua dependência de um meio físico: não há ‘voz’
sem mediação –, e desde logo no processo de remediação da letra
impressa e do livro tipográfico o que temos é possibilidade de ampliar
essa ‘produção de presença’, para utilizar uma conhecida noção de Hans
Ulrich Gumbrecht.
Vejamos, então, alguns lugares significativos do preâmbulo de Gil
Vicente que foi integrado da editio princeps da obra completa. Depois
de captar a benevolência do destinatário, o Rei, através da humildade –
manifesta que as suas peças seriam tão-só “misérrimas obras” –,
considerando que “antigos e modernos” já tudo tinham ‘dito’,
‘inventado’ ou ‘descoberto’, Gil Vicente introduz uma espécie de
contrafactual. Partindo dessa “pobreza do meu engenho”, afirma que
poderia ter encontrado refúgio na repetição desse dizer ‘saturado’ dos
“antigos e modernos”. Vale a pena citar esta nova fórmula de modéstia,
pois ao colocar-se numa situação de subalternidade em relação a
“antigos e modernos” precisamente, utiliza uma imagem que nos pode
ajudar a compreender o que significa escrita e livro naquele momento
adventício de uma nova tecnologia como a imprensa de caracteres
móveis: “Assi que – diz-nos Gil Vicente –, pera passar seguro da pena
que minha ignorância padecer nam escusa, me fora fermosa guarida nam
dizer senam o que eles dixeram, ainda que eu ficasse como eco nos
vales que fala o que dizem, sem saber o que diz”.26 Assim, ‘empremir’ o
que a ‘pena’ dissesse como simples repetição do que “antigos e
modernos” já disseram, se bem que seria “fermosa guarida”, uma
espécie de refúgio, teria uma analogia no “eco”. Ora, o que isto nos
devolve é a imagem de uma letra impressa que se propaga como um eco
da voz. O livro impresso, assim, projecta ‘à distância’ uma voz: logo, é
também o meio da voz como eco. Friedrich Kittler recorda como
aquando das primeiras edições de missais, o clero considerou um
“milagre divino” a possibilidade de coincidência de todas as cópias a
partir de uma composição tipográfica matriz.27 O ‘milagre da cópia’, dir-
se-ia. Com a tipografia, os livros “entram na era da sua técnica, e, por
conseguinte silenciosa, reprodutibilidade”.28 Ora, no preâmbulo de Gil
Vicente, a fórmula de um ‘eco que fala sem saber o que diz’ – o que o
dizer do autor seria ‘empremindo’ apenas o que outros disseram já – é
uma imagem que refracta essa nova tecnologia de repetição insciente da
repetição, isto é, que exclui o factor ‘humano’ que perturba a cópia dos
textos. Porque o que o ‘eco que fala sem saber o que diz’ nos devolve é
um sonoridade vocal insciente. Uma voz sem consciência, sendo que,
lembremos com Derrida, é atributo da consciência humana o ouvir-se
                                                                                                                       
26
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, introdução e normalização do texto de
Maria Leonor Carvalhão Buescu, 2 vols., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1984, p. 13; sublinhado nosso.
27
Cf. Friedrich A. Kittler, “Perspective and the Book”, trad. por Sara Ogger, Grey Room,
05, Outono de 2001, p. 43.
28
Ibidem.
falar. 29 Por conseguinte, e uma vez que Gil Vicente ‘imprime’ sem
repetir o que “antigos e modernos” disseram, o que temos é um impresso
que não supõe apenas som (isto é, eco insciente): é um som que suporta
uma consciência.
O segundo lugar do preâmbulo que gostaria de destacar é aquele
em que Gil Vicente roga o amparo do Rei para defender a obra de
possíveis “malditos detractores”. Este pedido tem sentido, uma vez
mais, se se concebe uma escrita e um livro que são cópias perfeitas,
supondo ‘separação’ ou ‘ausência’ do autor. Assim, Gil Vicente pede a
“Vossa Alteza favor e emparo, pera que minha enferma escritura não
seja ferida de línguas danosas”.30 A “enferma escritura” reescreve as
“misérrimas obras” que antes vimos, a que se segue a imagem das
“línguas danosas” que a podem ‘ferir’. Apenas uma metáfora? Decerto,
mas haveria que convocar uma noção epocal importante sobre o ‘efeito à
distância’ de um enunciado proferido. Porquê ‘ferida’? Em que sentido
uma “língua danosa” pode ‘ferir’? O sentido figurado tem a sua
inteligibilidade num quadro mental em que a teoria da voz, a teoria do
som vocal, obedece a um modelo aristotélico. Para o Estagirita, o som é
o resultado do movimento e choque de corpos, sendo que a audição é a
forma do som. É assim que uma ‘escrita’ pode ser ‘ferida’ pela ‘língua’,
nos termos vicentinos consignados no preâmbulo. Na iconografia coeva,
aliás, a representação da voz é concretizada mediante imagens que
supõem a subjacente noção de movimento e choque corporal. Um bom
exemplo é aquele que temos na gravura da capa deste livro: o discurso
sedutor e enganador da figura diabólica é representado por uma voz que
fosse como ‘moedas’ que saem da boca, atravessam o ar e se supõe
afectarão os ouvidos do locutário ou locutários. Ainda, um exemplo da
preocupação coeva com a ‘geração dos sons’, no contexto de uma teoria
da métrica, encontramo-la na Epometria de Aires Barbosa, publicada em
1515.

                                                                                                                       
29
Apud Kittler, Gramophone, Film, Typewriter, p. 22.
30
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, op. cit., ed. cit., p. 14.
Coroando as imagens do eco e da língua que fere, ambas
modulação da escrita e do livro como tecnologia que produz ‘presença à
distância’, teremos o seguinte lugar do texto, que ganhará em ser lido à
luz destas considerações: “Pois, rústico peregrino de mi, que espero eu?
Livro meu, que esperas tu? Porém te rogo que quando o ignorante
malicioso te reprender, que lhe digas: Se meu mestre aqui estivera, tu
calaras”. 31 O autor dirige-se ao seu próprio livro, interrogando-o e
interrogando-se a si próprio. O “rústico peregrino de mi” é o livro, que
deambula ‘para além de mim’ como um peregrino. Mas um ‘peregrino
de mim’, que tem a sua ‘origem em mim’, que ‘parte de mim’... fazendo
de mim também um peregrino. O livro, entretanto, volta a ser o ‘eco
insciente’ a quem o autor empresta palavras de uma resposta impossível:
porque a frase “Se meu mestre aqui estivera, tu calaras” supõe o livro
como 1ª pessoa do discurso, como se um livro falasse.
Ora, do nosso ponto de vista, este livro que organiza num todo
uma obra dispersa, dando estabilidade ao que era efémero, plasma
diferentes analogias com o mundo. À semelhança do mundo, também o
livro tem garantida uma sua escatologia: uma leitura repreensiva
emudeceria perante a presença do Autor, que falando pelo livro falaria
de uma vez por todas. Essa comparência do autor é um juízo final,
reverberando nela o Deus que, no fim dos tempos, acaba por reconhecer
os seus. Assim, desamparo do livro tipográfico muito necessita da
paternidade autoral que, não se alienando àquele, antes pelo contrário, é
o garante da sua verdade. O livro impresso que circula é bem a imagem
do mundo como mentira generalizada; todavia, essa circulação não faz
claudicar a verdade: sublinha-a a contrario. As coordenadas mentais que
para aqui importam não são tão dialécticas que não travem a dialéctica
no seu momento afirmativo. Por muito torto que o mundo se apresente,
há sempre uma linha direita que o conduz a Deus.
Como Deus ampara Cristo e os seus, assim o Rei ampara o Autor,
e este ampara o Livro. Tal mundo que subsume a sua representação faz

                                                                                                                       
31
Ibidem.
descaso da mediação do representante. Céu (Eternidade) e Terra
(Tempo) encontram-se “cosidos”32, um Mundo sem história – processo
alterizante – porque absolutamente teológico. Neste mesmo sentido
lemos a subsunção do satírico ao lírico na obra vicentina, ou do
carnavalesco ao moralizante. Seguimos, aqui, a lição de José Augusto
Bernardes: “Concebida no seu todo, porém, e entrando em linha de
conta com a vertente lírica que atravessa positivamente a globalidade da
Copilaçam, tem que concluir-se que a sátira vicentina não coincide com
os processo de derisão ‘carnavalescos’, aparecendo mais ao serviço de
desígnios reconstitutivos e moralizantes”. 33 Dizendo-se “enferma”,
assim, a escrita de Gil Vicente sabe-se curada de “línguas danosas”. Que
o detractor emudeça significa que o livro transporta uma “moral” auto-
evidente: Bem e Mal são absolutos. Por muito equívoco que o Mal seja,
está garantida a priori a vitória redentiva do Bem.
Estas breves considerações a propósito de “Livro meu, que
esperas tu?” reverberam, aliás, na cena de Todo-o-Mundo e Ninguém do
chamado Auto da Lusitânia, obra tardia representada em 1532 ao Rei D.
João III por ocasião do nascimento de D. Manuel. Interessa-nos isolar a
cena, já de si sustentada por uma relativa autonomia.34 A reverberação a
que aludimos prende-se com o facto de esse núcleo dialógico vicentino
nos representar uma cena da escrita: Dinato escreve, por ditado de
Berzabu, o diálogo entre Todo-o-Mundo e Ninguém. Escrever esse
diálogo é votá-lo a uma repetição, é lançá-lo à possibilidade da sua re-
encenação, digamos. O escriba Dinato consigna dizeres que moralmente
se excluem e sustentam. Escreve pelos diabos, pois escreve a vitória
temporal do Mal sobre o Bem. Mas, no mesmo gesto, escreve contra o
demoníaco, pois o que escreve é o dispositivo moral absoluto que o
subordina, dispositivo validado pela divindade que carece de validação.

                                                                                                                       
32
Cf. Jacques Le Goff, A Civilização do Ocidente Medieval, vol. I, tradução de Manuel
Ruas, Lisboa, Editorial Estampa, 1983, p. 205.
33
José Augusto Cardoso Bernardes, História Crítica da Literatura Portuguesa, vol. II, p.
82.
34
Cf. José Augusto Cardoso Bernardes, Sátira e Lirismo, p. 97 e ss.
Digamos que, sendo consequentes com o problema colocado por
“Livro meu, que esperas tu?”, cabe perguntar pela futuração aberta pela
escrita diabólica. O par Dinato/Berzabu escreve o diálogo Todo-o-
Mundo/Ninguém. Este diálogo, que polariza os absolutos vício/virtude,
representa a ontologia negativa do Tempo. Sendo constructo ideal, é o
mais real do mundo terreno como negação. Que pode, neste sentido,
‘esperar’ um livro que consigna por escrito tal mundo terrenal? Do
ponto de vista dos diabos, certamente o desiderato da sua perpetuação.
Os diabos escrevem para assistir à continuada condenação do mundo.
Assim, o livro por eles escrito que como tal livro se consumasse no seu
carácter afirmativo, não pode coincidir com o livro que a Copilaçam,
pelas palavras do “Prólogo”, é. Um “ignorante malicioso” seria aquele
leitor que, lendo as letras diabólicas, sucumbisse à necessidade da
condenação. Que não claudique é possível pelo emudecimento a que os
vota a presença do “mestre”. Essa presença é a moralidade estruturante
que ampara inalienavelmente o livro. A astúcia escrevente dos diabos é
inconsequente, talvez por desconhecerem a sua demasiada humanidade
– ou não escrevessem. São figurações de um humano incapaz “de ter
inteira consciência da enormidade do seu pecado”.35
O que pelo caminho vai ficando é que a escrita diabólica só é
negada pela negação denunciada no “Prólogo”. Todo-o-Mundo é o que o
mundo é absolutamente, um absoluto cujo limite não pensado é a
Corte. 36 Representar esta alienação consumada visa convocar um
ausente que comparece: dá pelo nome de Ninguém. O par é realmente
ideal, sendo outro modo de dizer a costura do Tempo e da Eternidade:
“Todas as noções respeitantes ao mundo e à vida tinham o seu lugar
definido num vasto sistema hierárquico de ideias, onde se inscrevem
outras ideias de ordem mais geral e mais elevada, numa dependência
semelhante à que liga o vassalo ao seu senhor”.37 A vassalagem que aqui
se diz é outro nome para o “amparo” anteriormente aludido, atributo de
                                                                                                                       
35
Johan Huizinga, op. cit., p. 226.
36
Cf. Temas Vicentinos, Lisboa, ICALP, 1990, p. 176 e ss.
37
Johan Huizinga, op. cit., ed. cit., pp. 224-225.
Deus, do Rei e do Autor. Deles, apenas a caução de Deus não é relativa.
Deus não pode ser tomado por outra coisa que não seja Deus.
Ora, por tudo o que acabamos de dizer, a Copilaçam de 1562
concretizou o processo de conformação de um ‘autor’, a que, do nosso
ponto de vista, não é alheio este “Novo Mundo” da tipografia. Assentou
José Augusto Cardoso Bernardes que a obra vicentina “toma a forma de
livro por vontade do seu autor, exprimindo uma intenção memorial e
identitária”.38 Também aqui, o pioneirismo de Gil Vicente é conspícuo.
Ainda em palavras do mesmo especialista: “A decisão de dar forma de
livro a uma obra teatral (marcada pelo efémero) destina-se justamente a
reforçar esse desígnio, na medida em que transforma em monumento
escrito, dedicado ao monarca português: a D. João III, em primeiro
lugar; mas também ao Rei abstractamente concebido, fora do tempo
vivido pelo dramaturgo”.39 A Copilaçam de todalas obras, antecedida
pelo Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, editado em 1516,
significou, assim a mise en page, a engessadura de um fenómeno de
cunho performativo – determinado pela, digamos, ontologia do hic et
nunc, do ‘aqui’ e ‘agora’ –, na forma da letra e do livro tipográfico.
Vozes e gestos, evanescentes, têm um meio próprio enquanto
acontecimento, enquanto espectáculo: o espaço cortesão (por exemplo,
os aposentos da Rainha Dona Leonor). O livro tipográfico, neste sentido,
significará a remediação – no sentido já aludido, de Bolter e Grusin, para
referir a ‘impureza’ de qualquer meio, sempre ‘em relação’ com outro
meio, e tentando ‘ocultar’ a sua condição medial – do manuscrito. A
tecnologia manuscrita, por seu turno, perfaz a remediação da voz. E a
voz, enfim, não deixará de ser ela própria um ‘meio’ pelo qual
comparece um sujeito.

                                                                                                                       
38
José Augusto Cardoso Bernardes, “A Copilaçam de todalas as obras: o livro e o
projecto identitário de Gil Vicente”, p. 186.
39
Ibidem, p. 187.

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