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Paulo Bezerra
RESUMO
Dostoiévski tem uma presença muito marcante no público ledor brasileiro,
o que o prova o sucesso editorial de suas obras recém-publicadas no Brasil,
em tradução direta do russo. Só para citar um exemplo, o romance Crime e
castigo, que traduzimos diretamente do original, foi lançado na Bienal do
Livro em abril de 2001 e já alcançou a quinta edição. A que se deve esse
sucesso?
a atracar-se com um dândi que persegue a menina prostituta numa rua central de
Petersburgo, no episódio da criança perseguida por cães narrado por Ivan em Os
irmãos Karamázov. Na Londres florescente Dostoiévski registra a presença de
meninas de doze anos na prostituição, vê uma menina em trajes miseráveis,
espancada, coberta de equimoses, já marcada por "tanta maldição e desespero" e,
pior, sem chamar a atenção de ninguém. Essa observação- "sem chamar a atenção
de ninguém" - aponta para uma preocupação já manifesta por Dostoiévski em
Recordações da casa dos mortos, onde ele constata a impressionante capacidade
humana de adaptar-se a tudo, e isso vira hábito, hábito até de manifestar indiferença
pelo destino do próximo. Esse hábito o preocupa, porque tira do homem uma
qualidade essencial: a de compadecer-se dos infortúnios do ser humano e revelar
solidariedade a ele. Além do mais, ele vê a ofensa à criança como o maior dos
males, já que a criança é aquele ser em estado de pureza que só deve suscitar o
amor do homem.
Mas o narrador não se conforma, sente "a necessidade de muita resistência
espiritual e muita negação para não ceder, não se submeter à impressão, não se
inclinar ante o fato e não deificar Baal... não aceitar o existente".
Ainda em Notas.... Paris é a cidade em que tudo existe para a "felicidade
completa", a acumulação de bens deixou de ser conseqüência do processo
económico para se tornar virtude sagrada, mesclando-se economia e ética religiosa.
O burguês é um }anos Bifronte: roubar apenas para matar a fome própria e dos
filhos é delito imperdoável, mas com o fito de enriquecer é alta virtude, é um
roubo protegido, estimulado e organizado "de modo extraordinariamente firme".
O milhão é o único critério de mensuração dos valores. A liberdade, a igualdade
e a fraternidade, os grandes lemas da Revolução Francesa, viraram assunto de
museu. Quem tem um milhão goza da plena liberdade, tudo pode, quem não o
tem nada pode e fazem com ele "o que bem entendem". Os ideais da Revolução
Francesa redundaram num axioma: o burguês é tudo. Igualdade? Todos são iguais
perante a lei, mas o burguês é mais igual que os outros. Fraternidade? Esta "se faz
por si, concede-se por si, é encontrada na natureza". Menos na natureza do francês,
do homem do Ocidente, pois aí domina o princípio pessoal, o egoísmo burguês,
a oposição do Eu a toda a natureza e a todas as demais pessoas. No tema da
fraternidade Dostoiévski sai do filoeslavismo para o ocidentalismo mais radical
dos democratas revolucionários russos; nesse sentido, afirma que a transformação
do burguês em homem fraterno "leva milênios" e essas "idéias devem entrar na
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não. Deveis aceitá-la tal como ela é e, conseqüentemente, também todos os seus
resultados. Um muro é realmente um muro ... "
De onde vem esse muro, esse limite? Da filosofia burguesa em sua forma
mais acabada e otimista- o Iluminismo. Tese central do Iluminismo: o homem
não é uma criatura decaída de Deus, mas criação e parte da natureza. Segundo
Espinosa, as leis da natureza abrangem toda a ordem natural, da qual o homem
faz parte. O próprio homem é, antes de tudo e em todos os seus atas, um ser
natural. Age sempre segundo as leis da natureza pelas quais se guia desde o
nascimento. Logo, essas leis explicam sozinhas todos os motivos e feitos do
homem. Nesse homem natural não há nada que não possa ser explicado. Os
estímulos mais recônditos e as habilidades mais surpreendentes podem ser
explicadas com rigor fidedigno. O homem tornou-se objeto de uma ciência
perspicaz. Nesse contexto, a razão aparece como medida única de todo o existente.
É o ponto central que urde numa totalidade todos os princípios e tendências do
homem. Só a regulagem racional das paixões garante que sejam corretamente
orientadas, só a compreensão racional das próprias necessidades leva o homem a
praticar o bem. Segundo argumenta Holbach, embora as paixões humanas sejam
naturais, o homem deve sujeitá-las à razão. Em suma, razão, ciência e ilustração
são os meios universais de solução de todos os problemas do homem.
O homem do subsolo considera ingênuas todas essas concepções- "Oh,
criancinha de peito! Oh inocente e pura criatura!" Ele desdenha desse modelo de
homem guiado exclusivamente pela razão e defende o direito a viver segundo
vontade própria, ainda que seja "estúpida vontade". Ele vê o homem como um
ser complexo, que em toda a sua história sempre se pautou pelo livre arbítrio,
agindo "a seu bel-prazer e nunca segundo lhe ordenava a razão e o interesse". A
polêmica com as teses centrais do Iluminismo tem como pano de fundo a civilização
burguesa oriunda desse movimento, que, segundo o homem do subsolo,
incorporou os piores exemplos de violência da história e na história o homem
"talvez chegue ao ponto de encontrar prazer em derramar sangue", "os mais
refinados sanguinários foram todos cavalheiros civilizados" e "são encontrados
com demasiada freqüência, são por demais comuns, e já não chamam atenção"
porque seus atas sanguinários se tornaram hábito, passaram a integrar a própria
civilização. Aí o homem do subsolo antecipa teses que mais tarde estarão presentes
em Crime e castigo - a tese de Raskólnikov sobre os homens ordinários e os
extraordinários -, e em O idiota- a tese de Míchkin sobre a história ocidental
como história de conquistas e violência.
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fazer. .. para conhecer", restando apenas "calar os cinco sentidos", porque "o dois e
dois não são mais a vida ... mas o começo da morte". Logo, aceitar a civilização
burguesa, observada em Notas ... e imbuída de otimismo cientificista em
Memórias ... significa aceitar o fim da vida, o fim da criatividade humana. E o
homem do subsolo a rejeita, defende o homem imprevisível (que Marx chamou
de "um ser fortuito") capaz de se tornar louco intencionalmente, de bancar o
troglodita, de desejar para si coisa estúpida, de preferir o caos à ordem para conservar
"o principal, o que nos é mais caro, isto é, a nossa personalidade, a nossa
individualidade". Porque está em jogo a liberdade de escolher e decidir até quebrar
a cara, contanto que seja por vontade própria. Ele rejeita o egoísmo burguês, os
atos calculados, as coisas feitas com vistas a alguma vantagem pessoal. Rejeita,
igualmente, uma instituição que a burguesia triunfante erigiu à categoria do sagrado:
o trabalho. Faz o elogio da preguiça como "propriedade positiva", antecipando o
panfleto O direito à preguiça que Paul Lafargue publicaria em 1880.
Em 1849 publica-se Níétotchka Níezvânova, romance que Dostoiévski teve
de interromper por ter sido preso em virtude de sua participação no ciclo de
Pietrochévski, grupo de intelectuais que estudavam as idéias do socialismo utópico.
Agora publicado pela editora 34 em tradução reelaborada de Bóris Schnaiderman,
o livro impressiona pela modernidade dos procedimentos construtivos e dos temas
que estarão na obra de Dostoiévski, além de antecipar, como observa o tradutor
no posfácio, questões que só o século XX, e particularmente Freud iriam discutir.
Além disso, os métodos pedagógicos empregados na formação de Niétotchka
antecipa a visão que o príncipe Míchkin de O ídíota terá das crianças, principalmente
a capacidade destas para compreender questões das quais os adultos sequer
desconfiam. Ainda com relação ao processo pedagógico, há em Dostoiévski
considerações que mais tarde serão retomadas em termos mais amplos e específicos
por Vigotski, principalmente no livro Psicologia pedagógica editado no Brasil
pela editora Martins Fontes.
O tema do limite, levantado pelo homem do subsolo, é uma constante em
toda a obra de Dostoiévski e está vinculado ao estado de crise por que passam as
personagens. A peculiaridade principal dessa situação é a de encontrar-se a
personagem diante de um limite. O homem está diante de um limite, alguém o
proibiu de ultrapassá-lo, o homem desconsidera quem o proíbe e ultrapassa o
limite. Em Crime e castigo, a situação de miséria, a perda da condição de continuar
os estudos na universidade, o casamento da irmã por mero interesse em ajudá-lo
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tais crimes e a história o absolveu, por que ele, Rodion Românovitch Raskólnikok,
não pode matar uma mísera velha agiota, que repete na microestrutura da sociedade
o que o sistema bancário faz na macroestrutura. Para ele, Napoleão ultrapassou
todos os limites, como o mostra a seguinte passagem: " ... o verdadeiro soberano,
a quem tudo é permitido, esmaga Toulon, faz uma carnificina em Paris, esquece
um exército no Egito, sacrifica meio milhão de homens na campanha da Rússia e
se safa com um calembur em Vilna, e ao morrer é transformado em ídolo -logo,
tudo lhe é permitido ... Napoleão, as pirâmides, Waterloo- e uma viúva de
registrador, sórdida, descarnada, velha, usurária, com o bauzinho vermelho debaixo
da cama ... será .. que um Napoleão iria meter-se debaixo da cama da velha?!" Pois
bem, se Napoleão ultrapassou todos os limites, por que Raskólnikov não pode
ultrapassar um. Para ele, Raskólnikov, a questão do limite é um imperativo da
própria existência. Em diálogo com a mão e a irmã Dúnia, no qual explica as
razões que o levaram a dar todo o dinheiro que tinha à família de Marmieládov e
a irmã discorda, ele diz a irmã esta: "Bah! Até tu ... com pretensões! ... Bem, é até
lisonjeiro; melhor para ti ... assim chegarás a um limite que se não ultrapassares
serás infeliz mas se o ultrapassares serás mais infeliz ainda... " Portanto, para o bem
ou para o mal, o limite se impõe como um imperativo da própria existência, e só
os heróis de têmpera conseguem ultrapassá-lo.
As personagens que ultrapassam o limite em Dostoiévski são, quase
exclusivamente, aquelas imbuídas de altos propósitos éticos e humanos; os
burgueses não têm essa qualidade, o que se verifica nas imagens de Lújin, em
Crime e castigo, e Gánia Ívolguin, em O idiota. Lújin é o burguês, aquele eterno
pouco a pouco de que fala Mário de Andrade na "Ode ao burguês". Ele ultrapassa
todo e qualquer limite na sua torpe e desabalada corrida atrás do dinheiro, e no
seu desprezo burguês pelas qualidades efetivamente humanas das pessoas, mas
esbarra diante do limite essencial da condição humana que Dostoiévski faz suas
grandes personagens ultrapassarem. Gánia Ívolguin também é esse eterno pouco
a pouco, é incapaz até de um verdadeiro ato de safadeza, não presta nem para ser
verdadeiramente ruim. Depois de descrevê-lo como pessoa até inteligente mas
sem originalidade e incapaz de dar um salto significativo, o narrador de O idiota
acrescenta: "Era um jovem com desejos impetuosos e invejosos e, parece, até
nascido com os nervos irritados. Interpretava como força a impetuosidade dos
seus desejos. No seu desejo ardente de distinguir-se, às vezes estava pronto para o
salto mais irracional; no entanto, mal a coisa se aproximava do salto irracional,
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nosso herói sempre se revelava inteligente demais para se atrever a dá-lo. Isso o
deixava aniquilado. Tivesse oportunidade, é possível que se decidisse até por uma
coisa vil, contanto que conseguisse algo daquilo com que sonhava; porém, como
se fosse de propósito, tão logo chegava ao limite sempre se revelava honesto
demais para o ato extremamente vil (Aliás estava sempre disposto a aceitar uma
pequena vileza.). Portanto, Gánia Ívolguin faz parte da galeria das pessoas
ordinárias que, como o entende Dostoiévski, são indispensáveis no romance,
quase por uma questão de equilíbrio do real. Vejamos o que ele diz a respeito no
mesmo O idiota, numa passagem metalingüística em que ele faz uma brilhante
definição de construção de personagens e visão realista desse problema:" ... o que
o romancista tem a fazer com pessoas ordinárias, totalmente "comuns", e como
colocá-las diante do leitor para torná-las minimamente interessantes? Evitá-las
por completo na narração é totalmente impossível, porque as pessoas ordinárias
são, a todo instante e em sua maioria, um elo indispensável na conexão dos
acontecimentos cotidianos; portanto, evitá-las seria violar a verossimilhança.
Preencher romances só com tipos ou até simplesmente com pessoas estranhas e
irreais, para efeito de interesse, seria inverossímil, e talvez até desinteressante. A
nosso ver, o escritor deve empenhar-se em descobrir os matizes interessantes e
ilustrativos até mesmo entre as ordinariedades".
O contrário das personagens ordinárias são os indivíduos extraordinários,
cuja teoria Raskólnikov desenvolve em Crime e castigo. Para Raskólnikov, "o
homem extraordinário tem o direito ... de permitir à sua consciência passar. .. por
cima dos diferentes obstáculos, caso a execução da sua idéia (às vezes salvadora,
talvez, para toda a humanidade) o exija. E aí Raskólnikov justifica o sacrifício das
vidas das pessoas ordinárias em prol da realização de grandes idéias científicas ou
sociais. Diz que se as descobertas de Kepler e Newton só conseguissem chegar ao
conhecimento dos homens mediante o sacrifício da vida de um, dez, cem e mais
homens, que lhe servissem de obstáculo, eles teriam o direito, o dever e até a
obrigação de eliminar esses dez ou cem homens para tornar conhecidos da
humanidade as suas descobertas. Quanto à divisão dos indivíduos em ordinários
e extraordinários, esta obedece a uma lei da natureza que os separa em duas
categorias, como explica Raskólnikov: "uma inferior (a dos ordinários}, isto é,
por assim dizer, o material que serve unicamente para criar seus semelhantes", e a
outra categoria, a dos indivíduos propriamente ditos, isto é," os dotados de dom
ou talento para dizer em seu meio a palavra nova ... em linhas gerais, formam a
132 BEZERRA, Paulo. Breves considerações sobre a obra de Dosroiévski
para mim" em prol do "eu para os outros", para a coletividade, isto é, de realizar
o supremo ideal ético que o próprio Dostoiévski só considerava possível em
Cristo, e que pode ser resumido da seguinte maneira:" ... o mais alto emprego
que o homem pode fazer de sua personalidade, da plenitude do desenvolvimento
do seu eu é como que eliminar esse eu, consagrá-lo inteiramente a todos e a cada
um, sem reservas e com abnegação". Daí Míchkin com sua utopia do amor-
compaixão por todos, por uma humilhada e ofendida suíça chamada Mary e
pelas crianças, por Hippolit, Keller, Liébediev, predominantemente por Nastácia
Filíppovna, personagem complexa e mais uma integrante da galeria de humilhados
e ofendidos tão cara ao romancista. Na construção da imagem de Míchkin
predomina o tema da superação do egoísmo burguês. Para Dostoiévski essa é
uma questão filosófica de importância transcendental, como o atesta uma passagem
do romance em que um pensador imaginário diz para Liébediev: "Eu não acredito ...
nas carroças que transportam comida para toda a humanidade, sem o fundamento
moral do ato, podem excluir com o maior sangue frio uma parte considerável da
humanidade do prazer com o transportado, o que já aconteceu", isto é, podem
excluir essa parte considerável da humanidade do prazer de simplesmente comer,
de simplesmente manter-se viva. Nessa passagem transparece uma idéia
fundamental a Dostoiévski: ou se supera o egoísmo burguês ou se inviabiliza a
vida do homem na face da terra. Quando se nega o elementar ao ser humano, está
se negando a ele a própria vida.
Irmão! Não me abati e nem caí em desânimo. A vida é vida em qualquer lugar,
a vida está em nós mesmos e não fora. Ao meu lado haverá pessoas, e ser homem
entre elas e assim permanecer para sempre, quaisquer que sejam os infortúnios,
sem perder a coragem nem cair em desânimo- eis em que consiste a vida, em
que consiste o seu objetivo. Eu estava consciente disso. Essa idéia arraigou-se
em mim. Sim! É verdade! Aquela cabeça que criava, que vivia a vida suprema da
arte, que era consciente e habituara-se às demandas superiores do espírito,
aquela cabeça já havia sido cortada do meu pescoço. Restaram a memória e as
imagens criadas e ainda não concretizadas por mim. Elas haverão de me ulcerar,
é verdade! Mas em mim restaram o coração e aqueles sangue e carne que podem
amar, e sofrer, e compadecer-se, e lembrar-se, e isso é vida apesar de tudo. On
voit le solei!. Bem, irmão, adeus! Não te aflijas por mim! ... Nunca na vida
reservas tão abundantes e sadias de vida espiritual haviam fervido em mim como
neste momento. Mas se que o corpo vai agüentar eu não sei ...
Meu Deus! Quantas imagens, sobreviventes, criadas por mim irão morrer, irão
apagar-se em minha cabeça ou derramar-se em meu sangue como veneno! É, se
não puder escrever eu morro ... Em minha alma não há fel nem raiva, gostaria de
amar muito e abraçar ao menos alguma das pessoas de antes neste momento.
Isso é um deleite, eu o experimentei hoje ao me despedir dos meus entes
queridos perante a morte ... Quando olho para o passado e compreendo quanto
tempo perdi em vão, quanto o perdi com equívocos, com erros, na ociosidade,
na inabilidade para viver, como deixei de apreciá-lo, quantas vezes pequei
contra meu coração e minha alma meu coração se põe a sangrar. A vida é uma
dádiva, a vida é uma felicidade, cada minuto poderia ser uma eternidade de
felicidade".·
NOTAS
'As citações das cartas, assim como a definição teórica de realismo dada pelo próprio Dostoiévski e
aqui inseridas, baseiam-se nas notas dos organizadores da edição das obras completas de Dostiévski
em trinta tomos (N. do T.).
1 Há sol (em francês- Red.).
** Apud. Notas ...