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A Importância da literatura para a filosofia

Por: Gabriel Zaroni


Baseado na aula 02 do COF de Olavo de Carvalho

Isto aqui — a prática desse esforço permanente de expressar a experiência na sua


singularidade, sem transformá-la em outra coisa, mas ao mesmo tempo tornando-a
suficientemente reconhecível para que ela possa ser dita na linguagem coletiva — não é a
ocupação fundamental dos filósofos, mas sim dos escritores, ficcionistas e poetas. Porém,
sem essa transposição da experiência em memória, linguagem e expressão culturalmente
reconhecível, não há filosofia.
Se coincidiu de você nascer num meio onde há uma literatura muito rica, então você
tem, somente nessa literatura, acesso a uma galeria infindável de experiências humanas.
Algumas muito peculiares e difíceis de expressar, mas que uma vez expressas são
incorporadas na cultura e tornam-se de domínio comum. Isso não quer dizer que
tenham que ser experiências dificilmente acessíveis.

Basicamente: pra raciocinarmos sobre algo, usamos primeiramente: nossos sentidos, ou


seja, nossa experiência direta (testemunhar um crime por exemplo), mas, sofremos
também, independente da nossa vontade, influência cultural.

A literatura serve pra nos fornecer ambos, tanto experiência direta, quanto influência
cultural, ou seja, você pode nunca ter testemunhado um assassinato, mas através da
literatura, conseguimos observar (não com a mesma clareza, isso depende da genialidade
da escrita do autor) o que se passa na mente daquele que testemunha um assassinato, e
isso é a filosofia, unir nossas experiências diretas e a nossa cultura.
Por exemplo: quando o Flaubert escreveu Madame Bovary, mostrando o imaginário de
uma mulherzinha medíocre, idiota e sem graça, mas que se achava no direito de ter um
episódio romântico maravilhoso, essa não é uma experiência tão inacessível: nós sabemos
que as mulheres chatas, tediosas e sem graças imaginam que podem ter acesso a
experiências românticas muito interessantes, e que não lhes ocorre pensar que a
personalidade delas mesmas é incompatível com isso. Só que este tipo se incorporou no
nosso imaginário através de Madame Bovary, e nós, quando vemos pessoas assim,
sabemos que estamos na presença da mesma.

Ou seja, pelo fato de lermos o livro Madame Bovary, tivemos essa experiência direta de
conhecer mulheres que são sem graça, porém querem viver um romance extraordinário,
então quando encontramos alguém com uma personalidade tediosa, conseguimos fazer
essa relação entre o sujeito e o personagem (relação essa que jamais conseguiríamos fazer
sem a experiência direta)

Outro exemplo: Raskólnikov — o estudantezinho pobre, todo ferrado, que acha que é um
gênio, que acha que pode mudar o mundo e que, no entanto, vê a sua miséria, sua
pobreza, sua impotência. Ele começa a ficar revoltado e acha que pode fazer uma violência
para mudar a situação. Hoje nós conhecemos esse tipo, e nos recordamos dele facilmente
por causa do Raskólnikov de Crime e Castigo — e assim por diante.

Se há uma literatura rica em torno de você, então você tem uma infinidade de experiências
humanas, e depois de você ter absorvido muitas delas você pode combiná-las para
expressar coisas que você viu, mas que não coincidem com nenhuma delas. Uma pessoa
que você conhece, por exemplo, pode participar simultaneamente do drama de Raskólnikov
e de Madame Bovary. A mesma pessoa que é Madame Bovary por um lado, pode ser o
Raskólnikov por outro.

Mas e quando você não tem isso? Quando a literatura é pobre, ou os hábitos vigentes de
leitura não lhe permitem o acesso a este mundo de experiências? Então você vai ter que
inventar tudo por conta própria, e aí fica muito mais difícil. Você vai ter que ser Flaubert,
Dostoievski, Cervantes, todo mundo ao mesmo tempo. É precisamente isto o que as
pessoas tentam, e elas jamais conseguem.
Isso quer dizer que a absorção deste legado literário e artístico é absolutamente
fundamental para lhe dar os materiais com que mais tarde você vai raciocinar
filosoficamente. Quanto mais experiência humana previamente elaborada pela cultura você
absorver, mais fácil será você trabalhar filosoficamente esses materiais. Trabalhar
diretamente da experiência bruta é impossível. E trabalhar diretamente de uma experiência
já simplificada e até deformada pela cultura de massas também é impossível. Isso quer
dizer que se tudo o que o indivíduo tem é o que ele vivenciou efetivamente — ou seja, a sua
experiência real, mais os elementos simbólicos fornecidos pela TV e pelos jornais — ele
está lascado. Ele nunca vai poder raciocinar sobre a realidade — nunca, nem uma vez.
Tudo o que ele pensar vai ser falso. Ele não está totalmente desligado da realidade, mas
tem com a realidade uma relação analógica, parecida com a realidade, e isso é que o pior
de tudo, porque é uma ilusão, embora parecida.

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