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Assistimos, no início do terceiro milênio, a emergência de um “progresso” em nossa
contemporaneidade, o qual aponta para o declínio de uma sociedade que tinha nos preceitos
da religião e na lei instaurada pelo Nome-do-Pai1 as bases de sua organização, enquanto
uma outra, orientada pelo discurso das tecnociências, vem se impondo pela promessa de
que agora é possível a livre expressão de todos os desejos, com a consequente garantia de
sua realização.
A antiga norma mantém-se hoje tão verdadeira quanto o era antes. Só que
os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres pós-
modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por
um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de
uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na
busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade
provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma
segurança individual pequena demais.
Por sua vez, Charles Melman (2003, p.36), ao falar sobre a inscrição desse
“progresso” que estaria operando na cultura, hoje, convida-nos a uma constatação:
“Estamos lidando com uma mutação que nos faz passar de uma economia organizada pelo
recalque2 a uma economia organizada pela exibição do gozo 3”, atestando também, a
deslegitimação do modelo que organizava a forma de economia psíquica solidária com o
mundo das velhas normas, dos velhos padrões culturais, das antigas tradições.
No mundo ocidental, o advento dos tempos modernos ganha contornos mais
expressivos, sobretudo, após a eclosão da revolução francesa no século XVIII, período
onde os ideais antigos da tradição, da verticalização hierárquica consolidada nas figuras dos
monarcas, aristocratas e da igreja católica, entram em colapso ao destronar os preceitos da
monarquia absolutista em nome dos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade
materializada na “voz das ruas”.
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Neste cenário de levante impulsionado pelas revoluções, a legitimidade da
autoridade no social antes suportada numa exterioridade transcendental, por uma
heterotopia, marca fundamental nas culturas patriarcais, parece ter ruído dando lugar a uma
horizontalidade em que a dessimetria, antes legitimada simbolicamente nas figuras de
Deus, do Rei, do Professor, do Pai, encontrar-se-ia na contemporaneidade sem
funcionalidade no tecido social, ou pelo menos, funcionando de outra forma, sendo
necessário ser procurada em seu trajeto singular, na tensão inerente à trama social.
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Partindo dessa premissa, Néstor Garcia Canclini em seu trabalho Das utopias ao
mercado define bem o período moderno partindo da inscrição de quatro projetos:
emancipador, expansionista, renovador e democratizador. Segundo o autor,
Néstor Garcia Canclini, a esse respeito sugere fazer um exame sobre os processos
de hibridação na cultura, entendendo este conceito, hibridação, como:
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afirmá-las como essência de uma etnia ou de uma nação. A história dos
movimentos identitários revela uma série de operações de seleção de
elementos de diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos em
um relato que lhes dá coerência, dramaticidade e eloquência (2015, p.23).
Diz-nos ele:
Qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não
mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do
mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses
valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é
subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de
honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa
pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade.
Surge assim uma nova barbárie (1985, p. 115).
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O abalo operado por essa convulsão social implicada por uma profusão de
referências incidiria não apenas no apagamento relativo às fronteiras simbólicas, que
serviram de clivagem para separar os lugares do público e do privado no social, mas
também recairia sobre a transmissão intergeracional dos valores cultivados na cultura.
A despeito disso, Benjamin nos lembra de que a narração tornar-se-ia uma atividade
em via de extinção, posto que, em última instância, a experiência coletiva de contar e ouvir
histórias também se encontraria em declínio na modernidade. Para este autor,
O “período épico da verdade” cultivava-se a sabedoria e, por isso, a
narração apresentava uma função de aconselhamento porque não era um
simples relato, mas se consubstanciava como uma proposta de
continuidade de uma história que não cessava: “a arte de narrar tende para
o fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria está agonizando”
(1980, p. 59).
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Para tanto, até mesmo a ciência encontrar-se-ia numa condição conflitiva, quando
avaliamos os seus progressos na contemporaneidade. A despeito disso, Boaventura de
Sousa Santos, em seu trabalho Um discurso sobre as ciências, de 1987, apresenta-nos a
“crise” que recai sobre o paradigma dominante da ciência moderna, evocando justamente o
resultado interativo de uma pluralidade de condições que incidem desde as insuficiências
estruturais do paradigma científico - motivado pela expansão da produção de
conhecimento; passando pelo domínio da microfísica em que a mecânica quântica
relativizou o rigor das leis de Newton, demonstrando, a partir de Heisenberg e Bohr que
“não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele” ( 2004, p.55); até a
constatação no teorema da incompletude, sobre a possibilidade de formular proposições
indecidíveis, por exemplo, através das investigações de Godel - onde o rigor da matemática
carece, ele próprio, de fundamento, ou ainda, as investigações do físico-químico Prigogine,
que nos apresenta a instabilidade que repousa em sua teoria das estruturas dissipativas.
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que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia, e com ele se
desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo –
contínuo ou idêntico a ele – ao longo da existência do indivíduo. [...] Já o
sujeito sociológico, refletia a crescente complexidade do mundo moderno
e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e
autossuficiente, mas era formado na relação com outras pessoas
“importantes para ele”. Que mediavam para o sujeito os valores, sentidos
e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava. [...] Finalmente,
no sujeito pós-moderno, o próprio processo de identificação, através do
qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais
provisório, variável e problemático. Esse processo produz o sujeito pós-
moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial
ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam
(Hall, 1987, p.10).
Ao final dessa experiência, a criança não apenas será capaz de discernir a imagem
humana de si com a do seu semelhante, mas também diferenciar uma imagem real de uma
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virtual, refletida inversamente no espelho. A construção da imagem corporal é, não
obstante o primeiro processo de identificação operado pela criança em seu desenvolvimento
para constituir-se sujeito de linguagem.
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a entrada desse pai desejando-o como um homem e, por fim, que a criança consinta em não
ser o falo da mãe, tendo que procurá-lo junto ao pai.
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Se, na modernidade, a subjetividade não mais recebe em nome de um Deus-pai a
mensagem que outrora oferecia uma consistência, o horizonte pelo qual o sujeito enlaçava a
sua identidade através de uma referência transcendental, exterior, de um ponto fixo no
contexto social, hoje, segundo Charles Melman, esse sujeito, encontraria suas resposta no
consenso social, na mensagem sustentada pela ‘opinião’, que sempre tem bom senso,
porque justamente , ela é organizada pelo gozo e, propõe, que “uma das grandes
consequências clínicas desse dispositivo é que o sujeito com o qual lidamos tornou-se
atópico: não consegue mais encontrar seu lugar, sua própria voz, é um sujeito que parece
sem consistência, sem projeto fixo, sem votos que lhe seriam pessoais” (2002, p.153).
Na literatura, encontramos um bom exemplo dessa condição de não pertencimento,
de um não lugar, descrita nas experiências migratórias - seja das zonas rurais para as
grandes capitais, ou em outros países - o estranhamento frequentemente suscitado pelo
estrangeiro, pela percepção cosmopolita, intercultural do mundo, acaba por dividir o sujeito
entre a memória de um passado que não representa o presente e, por conseguinte, de um
presente sem passado e, as vezes, sem futuro nos casos em que se perdem os horizontes,
isto é, o desejo.
Essa condição de deriva, de atopia, vem sendo constatada, no contexto da clínica.
Nesse sentido, as depressões, por exemplo, se vinculariam com frequência,
fundamentalmente ao fato do sujeito experimentar a percepção de que não tem valor frente
ao Outro. Isto é, se, o ideal compartilhado e valorizado no social é algo do qual o sujeito
participa, este sente-se inserido e às “coisas” caminham bem, entretanto, se por algum
motivo essa relação com o ideal é deslocada e o sentimento de falta, de inadequação se
presentifica, pode-se deprimir.
Outro exemplo, que ilustra bem essa ambivalência entre o ter e o ser reside nas
toxicomanias, quando testemunhamos a relação que o sujeito estabelece com o objeto
tóxico. Por um lado, faz o possível e o impossível para possuir a substância e, por outro
assegura um lugar de enunciação frente ao Outro, ao se declarar um dependente químico,
um toxicômano, que com frequência rompe com as relações sociais (família, trabalho e
etc.), para viver em torno de um objeto capaz de consumi-lo, as vezes até a morte. Suely
Rolnik em seu trabalho sobre subjetividade em tempos de globalização, de 1997, propõe
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que estamos diante de uma intoxicação de identidade, resta sabermos em que medida isso
se transforma em “veneno” ou em remédio.
Por fim, a espetacularização na cena do mundo, a emergência de uma cultura das
celebridades, através da exposição da intimidade em reality show, na web, e nos meios de
comunicação em geral, tem orientado o caminho ideal para a entrada e participação no
mundo das representações. A esse respeito, Charles Melman, propõe que:
NOTAS
Lacan, em seu seminário cinco, conceitua: Trata-se do que chamo de Nome-do-Pai, isto é o pai simbólico.
Esse é um termo que subsiste no nível do significante, que, no Outro como sede da lei, representa o Outro. É o
significante que dá esteio a lei, que promulga a lei. Esse é o Outro no Outro [...] Para que haja alguma coisa
que faz com que a lei seja fundada no pai, é preciso haver o assassinato do pai. As duas coisas estão
estreitamente ligadas – o pai como aquele que promulga a lei é o pai morto, isto é, o símbolo do pai. O pai
morto é o Nome-do-Pai, que se constrói aí sobre o conteúdo. (LACAN, 1958, p.152)
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Para Freud o termo designa o processo que visa manter no inconsciente todas as idéias e representações
ligadas às pulsões e cuja realização, produtora de prazer afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do
individuo, transformando-se em fonte de desprazer (ROUDINESCO, 1998, p.647).
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O termo Gozo tornou-se um conceito na obra de Jacques Lacan inicialmente ligado ao prazer sexual, o
conceito de gozo implica a idéia de uma transgressão da lei, desafio, submissão ou escárnio. (ROUDINESCO,
1998, p.299).
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Lacan distingue a castração da frustração e da privação, situando-as, respectivamente, no tocante ao agente e
ao objeto, no contexto das instâncias de sua tópica do real, do imaginário e do simbólico. A castração opõe-se
à privação do ponto de vista do agente: ele é o “pai real”, inatingível e impensável, no sentido em que
podemos dizer de um ser que nunca sabemos “com quem estamos lidando realmente”, no que concerne à
castração; e é o “pai imaginário”, um pai assustador com o qual, ao contrário, lidamos o tempo todo, na vida
cotidiana e nos textos de Freud, no que concerne a privação (ROUDINESCO, 1998, P.106).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BAUMAN, ZYGMUNT O mal-estar da pós-modernidade. /Zygmunt Bauman; tradução
Mauro Gama, Cláudia Martnelli Gama; revisão técnica Luís Carlos Fridman. – Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
_______. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC
Editora, 2003.
ROLNIK, SUELY. Cultura e subjetividade: saberes nômades. São Paulo: Papirus, 1997.
Abstract: Starting from the impact of a cultural mutation that is currently taking place in the
contemporary world, the present work aimed to analyze the decline of authority in the
social in its relation with the advance of technosciences, and of the modern project
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analyzed by Canclini (1998), period in which the author addresses the concept of cultural
hybridization. In this work, Walter Benjamin's contributions on the authenticity /
inauthenticity of language were of fundamental importance for an extension of the present
investigation, which sought to reflect as an effect of this process, the installation of a
"crisis" of legitimacy in culture, which would fall , also, in the subjective dimension and,
therefore, in the territory of the subjects, with respect to those who would have the
attribution of representing figures of authority in the social. Nevertheless, it was necessary
initially to use the concepts of multiculturalism / interculturalism as an introduction to the
study of the phenomenon, valuing a more sociological and therefore cultural perspective,
and then to receive adequate treatment in the territory of Lacanian structuralism , where the
concept of identity could be articulated with the process of subjectivation in its relation to
identification in psychoanalytic theory. Finally, the study proposes to the incidence of an
atopy that would affect the contemporary, helpless subject, the drift, mobilized by a
mishmash in the field of language. In this scenario, the discussions around identities gain a
new color by witnessing the liquidity between the borders of what we could understand
from a more nationalist, a cosmopolitan, globalized, nomadic world perception and that
would allow the emergence of new forms of subjectivation and clinics.
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