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Adorno e a pintura:
mapeamento crítico
CAMPINAS
2019
ALBERTO JOSÉ COLOSSO SARTORELLI
CAMPINAS
2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387
me ver formado na faculdade; e para a minha mãe, que por muitas vezes
trabalhou mais de doze horas por dia para que eu pudesse me dedicar
meça: amor.
AGRADECIMENTOS
confecção desse trabalho. Devo todos os méritos dessa dissertação à Taisa; os deméritos
Teoria da Arte), pela interlocução, escuta e convivência frutífera. A vocês, meu mais
todos os outros que trabalham diariamente para proporcionar aos alunos e pesquisadores
essa pesquisa.
Agradeço de maneira destacada à FAEPEX, cujo financiamento foi vital para a conclusão
Para além do âmbito acadêmico, sou infinitamente grato aos amigos que, em diversas
e a vida ascética;
TEORIA ESTÉTICA
o enfrenta
MINIMA MORALIA
RESUMO
Este trabalho pretende mapear, na obra do filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969),
as linhas que versam especificamente sobre pintura; quero mostrar como as poucas linhas
que Adorno dedicou à pintura são coerentes diante da teoria filosófica do autor, e
continuam sendo um campo vivo de investigação e fortuna crítica, de grande valor para a
This work intends to map, in the work of the German philosopher Theodor Adorno (1903-
1969), the lines that deal with painting; I want to show how the few lines devoted to
painting are consistent with the Adorno’s philosophical theory, and remain a living field
of investigation and critical fortune, of great value for the decipherment of contemporary
art.
Figura 40. Rodrigo Andrade, Pequena ponte de pedra com arbusto à noite, 2011 109
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 14
CONCLUSÃO 111
BIBLIOGRAFIA 115
13
da arte em geral e de sua relação com a pintura em particular, situando-a em sua teoria da
arte moderna.
faz alguma referência, que estão quase que em sua totalidade situados temporalmente na
chamada modernidade artística. Os dois primeiros capítulos serão dedicados a Paul Klee e
Pablo Picasso, pois são os pintores mais citados por Adorno e em cujas obras o autor se
concentrou mais detidamente. Já o Capítulo III tratará de outros pintores citados na obra
No EXCURSO I tratarei do estado da arte, quer dizer, dos autores que se utilizaram
de conceitos adornianos para realizar críticas no campo das artes visuais. O mais
discussão acerca do modernismo, e sobre o alcance da indústria da arte nos dias de hoje.
dissertação.
14
APRESENTAÇÃO
“Pois bem, aqui chegamos ao ponto em que tenho que reconhecer, com efeito,
minha incompetência técnica em questões de pintura 1.“ [tradução nossa] Essa declaração foi
proferida pelo filósofo alemão Theodor W. Adorno em sala de aula, no curso de Estética
que ofereceu em Frankfurt no inverno entre 1958 e 1959. Declaração sintomática, pois nas
obras do filósofo sobre Estética encontramos poucas menções a pintores, e menos ainda a
quadros específicos. Em seus textos de estética musical, teoria e crítica de música quase
que se conjugam, já que o autor possuía profundo conhecimento da forma musical. Suas
menções acerca da pintura são na maior parte das vezes estritamente genéricas, em sua
mas não muito mais do que uma pessoa de boa formação em sua época 2. Quer dizer,
estava distante de ser um especialista, como era em música e literatura. Nesta pequena
seara que se apresenta, a saber, as poucas linhas que Adorno dedicou à pintura, são
maioria e encontramos maior riqueza de ideias nos escritos que se debruçam sobre a obra
dos pintores do chamado modernismo artístico. Suas interpretações de Klee e Picasso são
diretamente influenciadas por sua relação de interlocução com o galerista e crítico de arte
[1962] e Algumas relações entre música e pintura [1965]. Se Adorno não era um especialista
em pintura, isso não significa que sua obra não contenha nenhuma contribuição ao debate
1 “Ahora bien, aquí se alcanzó el punto en el que tengo que reconocer, en efecto, mi incompetencia técnica en
cuestiones de pintura.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 406.
2 É sabido que, de volta a Frankfurt nos anos 1950, Adorno possuía em sua casa um original de Wotruba e
impressões de obras de Klee, Picasso, Schultze e Hartung. Ver: MÜLLER-DOOHM, Adorno: a biography
[2003], p. 347.
3 Ver: ADORNO, Estética 1958/9, p. 390.
15
se com o próprio ímpeto da Teoria Crítica, que buscava constituir uma teoria nova,
reivindicava Kant, pois não pode abrir mão da autonomia da razão e do pensamento;
estrutura do capital e aquilo que dela resulta, adentrando aos mais variados âmbitos da
vida; Nietzsche, que foi um voraz crítico da razão; Weber, pelo conceito de
momentos de verdade, faz com que os textos de Adorno sejam um campo vivo de
indústria cultural, que serão muito importantes neste trabalho. O Iluminismo, expressado
entendia o uso da razão como naturalmente emancipatório, aquilo que traria luz às trevas
existe uma dialética intrínseca ao próprio conceito de razão: a razão pode, sim, ser
utilizada para a emancipação, mas pode também ser utilizada para a dominação. Nesse
segundo registro, a razão serve somente para realizar operações lógicas, sem preocupar-se
felicidade humana. Essa razão, instrumental, é tão abstrata quanto a lógica formal que lhe
esquecer-se dos fins que lhe deveriam ser inerentes, a razão pode ser violenta. E foi essa
que conhecemos pelo nome genérico de civilização ocidental. Para Adorno, o nazismo não
pode ser explicado somente pelas patologias desenvolvidas no mais íntimo do povo
alemão e em seus líderes, mas também pelo uso instrumental da razão – no Direito, na
O capitalismo avançado, do qual o nazismo não é uma anomalia mas sim uma
pela divisão social do trabalho, ou seja, não são mais fruto de profunda autonomia
artística; são feitos a partir do paradigma da vendabilidade, quer dizer, são produtos feitos
mesma máquina industrial que produz a mercadoria cultural (ou assimila aquelas que lhe
interessam), também publiciza, veicula, agrega valor através da crítica e, por fim, vende a
mercadoria cultural supervalorizada aos consumidores através dos mais diferentes meios
e das mais diversas abordagens. Mesmo produções que contrariam os clichês que
para uma clientela distinta, cult. Afinal, até os críticos do sistema são consumidores.
Assim, a indústria cultural aparece no século XX, com o alcance global dos meios de
5 Resumidamente, uma mercadoria é um produto do trabalho humano em que está impregnado não apenas
o seu valor de uso (que provém de suas qualidades inerentes), mas também o seu valor de troca, que provém
de seu valor quantificado em dinheiro (quer dizer, abstrato). A divisão social do trabalho faz com que os
trabalhadores, que vendem sua força de trabalho, não tenham consciência da totalidade do processo de
produção: estão alienados dele. Assim, o produto da divisão social do trabalho, a mercadoria, exerce certo
“feitiço” perante os consumidores, simplesmente por lhes ser estranha a sua gênese de produção. É a esse
encanto que Marx chama fetichismo da mercadoria. “O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto,
simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como
características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas
e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social
existente fora deles, entre objetos.” MARX, O Capital, A mercadoria [1867].
17
comunicação, como uma força “totalitária e totalizante”, deixando pouco espaço para as
Estética [1969], esboçam uma visão de mundo que, ainda que fragmentada, é
positividade, máscara de uma realidade catastrófica. Num mundo assim, a arte autêntica é
receptáculo da ideia de que as coisas não precisam ser necessariamente como são, e podem
ser de outro modo. “Toda obra de arte é, num certo sentido, “o mundo do novo”, quer
dizer, o mundo purificado dos fins imediatos 6.” [tradução nossa] Na sociedade falida e na
natureza destruída, as artes são um refúgio, o último posto avançado de uma liberdade
Entre as artes, nos interessa aqui a pintura. Se Adorno nos apresenta uma visão de
sua época e depois dele, afinal, acabou se tornando um filósofo conhecido; porém, além
disso, dedicou certa energia para escrever algumas linhas sobre pintura. Nada mais
moderna, que impactou a cultura dos séculos XIX e XX, foi tão sensível a essas
“teoria estética” de Adorno [2002]. O texto esboça a hipótese de que os escritos de Adorno
moderna, quer dizer, a das vanguardas heroicas. Persegui essa hipótese e busquei
trabalhar apenas com o texto da Teoria Estética, a obra final e inacabada de Adorno;
6 “Toda obra de arte es, en un cierto sentido, “el mundo de nuevo”, es decir, el mundo purificado de los
fines inmediatos.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 153.
18
todavia, o percurso da pesquisa trouxe à tona outros textos em que Adorno dedica
algumas linhas para discutir sobre as artes pictóricas. Destaco alguns desses textos,
Adorno em Frankfurt no inverno entre 1958 e 1959, com prefácio e tradução para a língua
espanhola por Silvia Schwarzböck (UBA), sob o título de Estética 1958/9. O segundo é o
ensaio A arte e as artes [1967] – e recentemente traduzido para a nossa língua por Rodrigo
Duarte; nessa edição também consta a importante tradução da Primeira Introdução à Teoria
Estética. Também foram de importância vital para a pesquisa os textos Sobre uma música
informal7 [1961], Algumas relações entre música e pintura [1965] e Rabiscado no Jeu de Paume
[1958].
A tradução portuguesa da Teoria Estética por Artur Morão é a única integral entre os
leitores de língua portuguesa; foi utilizada preponderantemente a edição de 1993, que não
contém os Paralipómenos; quando constar citação dos Paralipómenos, que se saiba que a
paginação refere-se à edição de 2008 da Teoria Estética, na qual consta a tradução desse
suplemento.
A maioria dos textos utilizados aqui possuem tradução para a língua portuguesa;
quando não possuem, realizo a tradução de trechos específicos no corpo do texto, seguidos
de tradução nossa; em nota consta sempre o trecho original. As datas entre colchetes após os
7 O título original do texto é Vers une musique informelle, em francês, e assim será referido neste trabalho.
19
INTRODUÇÃO
adorniano sobre pintura. Não podemos pensá-los como critérios cristalizados, afinal, a
pintura também, caminha não cronologicamente, mas por negação determinada: as obras
8 “[…] la coherencia (Stimmigkeit), no tiene nada que ver, naturalmente, con la lógica habitual, con la lógica
circundante habitual del concepto, y no hay que interpretarla tampoco, por ejemplo, como una lógica
mecánico causal, sino que es una lógica de una modalidad propia, la lógica de una conexión de sentido
(Sinnzusammenhang) motivada en sí misma y si se habla de una lógica estética en general, se tiene que
aceptar esta esencia específica de la lógica estética.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 61.
20
supera-se esse particular a partir de sua negação, mas essa superação contém em si sua
Tentarei ilustrar aqui essa concepção dialética da história da arte com exemplos. Em
Marat assassinado9 [1793], o pintor francês Jacques-Louis David - ele que era um jacobino -
9 Jacques-Louis David, Marat assassiné, 1793, óleo sobre tela, 128 x 165 cm. Museu Real de Belas Artes da
Bélgica, Bruxelas.
22
Paul Marat, o herói do povo, morto por seus opositores girondinos covardemente numa
banheira; independente das intenções políticas de David, que não era lá bem exatamente
contemporâneo [europeu] com a dignidade de ser retratado numa pintura de história, pois
anônimos, heróis do cotidiano, aqueles que sustentam a sociedade e por isso são mais
importantes do que seus líderes. Assim a pintura histórica tornou-se realismo: por negação
exteriores – dado o fim do monopólio das Academias - muitos artistas protestaram contra
[1887], ele afirma Courbet ao representar camponeses trabalhando, mas nega-o na forma,
Ainda que esta ilustração do processo seja cronológica, é importante lembrar que
este tipo novo de história da arte não opera por cronologia temporal; pelo contrário, está
inscrita nas obras mesmas, muito além de sua recepção na época ou período de ocaso.
Portanto, é uma história da arte aberta, e nesse elemento está a possibilidade de uma obra
Além da arte ter uma relação dialética com suas próprias produções, ela também
possui uma relação dialética com o mundo. A negação, para ser determinada, deve referir-
se a um outro específico. Para Adorno, a arte é o outro da empiria, que envolve a realidade
social. Todavia, vale lembrar, não é apenas reflexo desse outro, e sim sua negação
10 Gustave Courbet, Les Casseurs de pierres, 1849, óleo sobre tela, 165 x 257 cm. Destruído na Segunda Guerra.
11 Camille Pissarro, La récolte des foins, 1887, óleo sobre tela, 50 x 66 cm. Museu Van Gogh, Amsterdam.
23
determinada; e, por ser negação determinada, ao referir-se a esse outro, retira dele seus
materiais. “A arte comporta-se em relação ao seu outro [o mundo] como um íman num
campo de limalha de ferro12.” É essa referência ao outro que faz com que a arte não seja
um todo social, ou como se queira, do “espírito 13”. Só assim, como portadora do espírito,
pode haver na arte algum conteúdo de verdade que possa ser socialmente compartilhado.
Adorno diz que forma e conteúdo são distintos, porém em relação de reciprocidade
formalismo puro, que não se refere a nada e por isso é insosso; e o da arte como panfleto
Em qualquer um desses casos, a obra perde seu estatuto de arte, pois torna-se isenta de
tensão. “Toda obra de arte, ainda que se apresente como perfeita harmonia, é em si mesma
obra, é reverberação de algum problema objetivo: a tensão entre sujeito e objeto, geral e
particular, construção e espontaneidade, etc. Uma obra que não apresente tensão, é falsa
imitação da dor e da barbárie em seus aspectos mais repugnantes; isso quer dizer que o
substrato material ao qual a arte se refere na atividade mimética não é qualquer substrato
material do mundo, mas especificamente aquilo contra o qual a arte se volta. Portanto,
para Adorno, não basta a capacidade de imitação, e sim sua operação enquanto mímese
negativa.
Na verdade, a exigência adorniana passa pela necessidade de a arte pôr sua
afinidade mimética com o que há de mais morto e arruinado na realidade
social. Devemos levar às últimas conseqüências afirmações como: “A arte só
consegue opor-se através da identificação (Identifikation) com aquilo contra o
qual ela se insurge.” Adorno é extremamente claro neste ponto. Basta lembrar
ainda que: “as obras de arte modernas abandonam-se mimeticamente à
reificação, a seu princípio de morte”. Uma afirmação aparentemente estranha,
já que a tendência hegemônica tende a definir a arte moderna, ao contrário,
através da recusa a toda afinidade mimética com a sociedade reificada, isto
através, por exemplo, da crítica à representação e à figuração. (SAFATLE,
Espelhos sem imagens [2005], p. 39)
A expressão verdadeira numa obra de arte sempre será, até que as coisas mudem
radicalmente, a da dor. A expressão da dor social é uma das características da arte que
reconhece a sociedade cindida e bárbara e que, dialeticamente, visa libertar essa sociedade
É por meio da expressão da dor que a arte preserva a utopia de um mundo melhor,
e de maneira nenhuma pela representação ideológica, e por isso falsa, de uma sociedade
ideal - como no realismo socialista. “É melhor não haver arte alguma do que o realismo
socialista16”, diz Adorno. Se a felicidade, que é a reconciliação, ainda não existe, e a arte é
mimética, utilizando materiais de seu outro – a realidade social -, a arte não pode de modo
que a expressão dos vivos é a da dor 17.” Assim como na literatura, uma pintura que coloca
instrumental e a falsidade do mundo positivado pela face cruel da razão. Ainda de acordo
com Hussak:
Ao contrário do que possa inicialmente parecer, esta idéia não vem corroborar
com aqueles que defendem a irracionalidade da arte, mas, ao contrário, em
Adorno ela aparece como um veículo crítico que pode realizar um projeto
emancipatório. A arte é racionalidade porque, apesar de filha da magia, nega a
magia porque participa do desencantamento do mundo, assim ela é filha do
Esclarecimento. A arte, ao colocar o homem diante de sua finitude e impotência
quanto às pretensões de uma dominação total do mundo, subverte a lógica da
dominação porque, apesar de também ser uma forma de manipulação da
natureza, não visa de forma alguma subjugá-la, mas sim apontar para outras
finalidades que concernem às questões humanas. (HUSSAK, Mimese e verdade
no mundo administrado, p. 32-3)
quer dizer, aquela que conjuga a técnica e a experiência mais avançadas de uma
artista que realiza uma construção rigorosa, a partir de reflexões formais, e cuja construção
educar as massas com arte ligeira. Isso transpassa qualquer discussão sobre a adesão
Portanto, toda arte considerada “avançada” será uma arte que expresse, em sua
verdade, para Adorno, não é absoluta, e sim a verdade de uma época. Uma obra cuja
18 Também nos Estados Unidos fez-se algum esforço para fundamentar teoricamente as produções artísticas
do expressionismo abstrato, na busca da justificação daquela que seria a mais avançada vanguarda
internacional, de origem nova-iorquina. Ver: GONÇALVES, Clement Greenberg, o Expressionismo Abstrato e a
crítica de arte durante a Guerra Fria [2013].
27
moderna está no fato de não mais poder ser mais avaliada exteriormente, através de
critérios fixos pelas Academias, e sim pela coesão interna das obras; há uma lógica interna
das obras de arte. “Os verdadeiros critérios daquilo sobre o que falamos aqui não se
encontram na experiência subjetiva das obras de arte, mas na forma da obra de arte
mesma21.” [tradução nossa] A obra de arte moderna justifica a si mesma em sua própria
forma. E essa novidade faz-se ver também na crítica de arte, que torna-se antiquada
A crítica de arte não pode envolver a recepção sensível - apesar do artista em seu
exercício por vezes preocupar-se com isso – pois a compulsão à identidade e repulsa do
19 Hans Thoma foi um pintor alemão, conhecido por retratos e pintura decorativa, seguindo os moldes do
antiquado realismo acadêmico.
20 “De una obra de arte se puede decir ya con fundamento si es o no de buen gusto y se puede decirlo, por
cierto, en el sentido de si ella ha almacenado - o no - el estándar de los medios alcanzado históricamente en
cada época (es decir, el lenguaje más progresivo posible que pueda hablarse dentro del medio artístico
respectivo). En este sentido, Picasso es un pintor de buen gusto y Hans Thoma, uno de mal gusto.”
ADORNO, Estética 1958/9, p. 455.
21 “[…] los verdaderos criterios de aquello sobre lo que hablamos aquí no se encuentran en la experiencia
subjetiva de las obras de arte, sino en la forma de la obra de arte misma.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 400.
22 “No es mi intención, por una parte, dictar o establecer de manera dogmática, digamos, algo así como
valores estéticos absolutos, sino el concepto de una tal filosofia de los valores que procede de valores rígidos
que están frente al sujeto y que le resultan inmodificables, un concepto que me parece incompatible,
justamente, con la experiencia histórica y también con la experiencia de aquello que sucede,
obligatoriamente, en el arte mismo.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 56.
28
prazer com sensações diferentes das que somos bombardeados diariamente pelas mídias.
A objectivação da arte que, do exterior, da sociedade, constitui o seu feiticismo
é, por seu turno, social enquanto produto da divisão do trabalho. Por isso, a
relação da arte à sociedade não deve buscar-se predominantemente na esfera
da recepção. Essa relação é anterior a esta e situa-se na produção. O interesse
na decifração social da arte deve virar-se para esta produção em vez de se
contentar com inquéritos e classificações dos efeitos, que, muitas vezes, por
razões sociais, divergem totalmente das obras de arte e do seu conteúdo social
objectivo. As reacções humanas às obras de arte são, desde tempos imemoriais,
mediatizadas ao extremo e não se referem imediatamente à coisa (Sache); hoje,
esta mediação produz-se em toda a sociedade. A pesquisa do efeito não só não
aborda o carácter social da arte, mas não tem o direito de ditar normas à arte,
direito que ela usurpa sob o espírito positivista. (ADORNO, Teoria Estética, p.
256)
Adorno adota a premissa de Kant, na qual o prazer sensível não é critério distintivo
da experiência estética com as obras de arte, e sim a reflexão. Só com a experiência estética
enquanto reflexão, e não pelo apaziguamento dos sentidos gerado pelas formas simples e
da dor humana.
A comunicabilidade universal de um prazer traz já consigo, em seu conceito,
que este não deve ser um prazer da fruição, por mera sensação, mas sim da
reflexão: e assim arte estética, como bela-arte, é uma arte tal que tem por justa-
medida o Juízo reflexionante e não a sensação-de-sentidos. (KANT, Crítica do
Juízo [1790], § 44)
A denúncia da arte moderna contra o estado de coisas existente, para dar vazão à
expressão adequada do sofrimento, deve tomar para si a categoria do feio 23, indigno das
e a arte, por tomar da empiria seus materiais, deve apropriar-se do feio enquanto fruto da
social. Todavia, como bem nota Adorno, a apoderação da arte em relação ao feio não se
23 Aparentemente, um certo poeta parisiense foi pioneiro na assimilação do elemento repulsivo pela arte.
“Como um químico perfeito e como uma alma de santo / Pois de cada coisa extraí a quintessência / Tu [Paris]
me deste tua lama e eu a transformei em ouro.” BAUDELAIRE, Esboço de um epílogo para a segunda edição das
“Flores do Mal” [1861].
29
estabelece enquanto concordância, nem como paródia 24, mas enquanto denúncia. Os
mundo real repulsivo. Para Adorno, o aspecto negativo – e por isso de denúncia - da arte é
testemunho daquilo que a dominação esconde e, por isso, é mais avançada e mais
de elementos estranhos – porém signos do que existe - para, separada, ser possibilitada à
24 Adorno distingue a assimilação do feio na própria forma de expressão, aquela que salta aos olhos, e a
figuração tradicional do feio dentro das formas convencionais. Um exemplo da segunda é a Malle Babbe
(Frans Hals, 1635, óleo sobre tela, 75 x 64 cm. Galeria Nacional de Berlim) que assimila o feio enquanto
paródia e não realiza uma ruptura na estrutura formal da pintura de retrato. Ver: ADORNO, Estética 1958/9,
p. 305-6.
30
reconciliação real. Essa arte antitética, que guarda em sua recusa à reconciliação o
que não se harmoniza com este mundo 25.” A recusa da reconciliação aparece na recusa da
harmonia. Isso, em termos pictóricos formais, quer dizer uma pintura de signos cifrados,
figuras deformadas, como se fosse algo de outro mundo. E também na escolha das cores.
A cor negra e o aspecto sombrio não só são assimilados, como tendem a preponderar;
Na arte comprometida com a verdade e com a dor, quer dizer, com a utopia, a
o povo com uma linguagem simples. Adorno combate esse tipo de engajamento cuja
forma é tradicional em prol de sua fácil comunicabilidade. Uma arte que não é
suficientemente radical em sua forma não pode ser suficientemente radical na sua
reverberação política, pois é facilmente assimilada e tem seu conteúdo crítico neutralizado
mercadoria; torna-se uma mercadoria não muito diferente de um sapato, cuja utilidade ao
obras: buscados e justificados em sua própria forma 27. No entanto, existem alguns padrões
nas análises adornianas dos pintores exemplares do modernismo. As obras devem resultar
da conjunção entre a técnica e a experiência mais avançadas de uma época, sem fazer
porém a assimilam e superam, ou seja, são portadoras de sua própria história. Por fim, as
obras de arte trazem para si o feio e o doloroso, através da representação de coisas que não
existem, mas enquanto signos daquilo que existe, pois só assim, separadas e não
mundo inteiramente outro. Não por acaso, Adorno toma Paul Klee e Pablo Picasso como
27 “La única vía hacia la objetividad es la composición interna de la cosa, la estructura categorial – si puedo
decirlo así – que cada obra de arte presenta en sí misma.” [O único caminho em direção à objetividade é a
composição interna da coisa, a estrutura categorial – se posso dizer assim – que cada obra de arte apresenta
em si mesma.] ADORNO, Estética 1958/9, p. 60, tradução nossa.
32
Antes da obsolescência programada dos bens culturais, aquilo que era novo gerava
surpresa. E não raro reações de caráter violento. A arte nova tirava o solo firme de toda a
tradição, não só estética, mas também moral e metafísica. O indivíduo isolado de qualquer
mundo; dignidade esta conquistada a muito custo perante o modelo das Academias,
permeado do romantismo nacionalista que nem de longe dava conta das novas relações
nas quais o sujeito passou a se encontrar. A visão do novo mundo através das novas obras,
resignados com a nova ordem das coisas – não a real, mas a artística. Quem via, via com
própria época, muito menos nostálgicos do que já passou: nem o passado irredimido, nem
28 O mais famoso dos Salons foi o Salão de Paris, onde os artistas mais proeminentes da Academia Real
expunham suas obras. Os Salons eram tão visitados que eram capazes de ditar a moda. Do quadro de
Jacques-Louis David Brutus (Les Licteurs rapportant à Brutus les corps de ses fils, óleo sobre tela, 323 x 422 cm.
Museu do Louvre, Paris) exposto no Salão de 1789, diz o historiador da arte Friedlaender que “o belo
penteado inspirado em uma bacante romana, usado pelas filhas de Bruto, se tornou moda entre as
parisienses”. FRIEDLAENDER, De David a Delacroix [1952], p. 38.
29 “[Respecto de] estas formas de reacción negativas hacia el arte moderno, permítanme ahora detenerme un
momento en cómo uso aquí este concepto: sin duda en el sentido agudo en que se habla de arte moderno
cuando se habla de cuadros de Miró, de cuadros tachistas y también, por mi parte, de Klee o de una cierta
fase de Picasso, de la música de Schönberg, de la música de los sucessores de Schönberg y de la escuela
serial, del Finnegans Wake de Joyce, y este tipo de cosas.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 496.
33
o presente sufocante, nem o futuro sombrio que se apressa; a arte nova é a arte de um
mundo que não existe. É como portadora da utopia do não-realizado que a arte moderna
uma época, nem que seja a representação do olhar dessa época para o passado. O artista
exemplar é aquele cuja produção expressa os aspectos mais avançados de uma época, na
experiência e na técnica. Na relação com sua própria época, a arte é transformada pelas
novas relações emergentes muito mais do que tem capacidade de transformar essas
velocidade inimaginável dos novos meios de transporte, a vida moderna fragmentada pela
perda de sentido30. Essa mudança da relação do indivíduo com o tempo terá reverberação,
Paul Klee é testemunha de seu tempo. Seus quadros são de pequeno tamanho.
Revolução Francesa e seus quadros enormes, cujo intento era o de ser a representação do
movimento, e nada mais. Adorno compara o pequeno tamanho dos quadros de Klee com
reflexo de seu tempo, e que o pintor, enquanto alguém versado em música, observava de
perto.
Em última análise, a contingência é uma função da crescente estruturação
completa. Coisas tão aparentemente periféricas como a contracção temporária
30 Estamos falando aqui do fim das metanarrativas, totalidades doadoras de sentido. Ver: NIETZSCHE, A
Gaia Ciência [1882], § 343. Também: LUKÁCS, Teoria do romance [1920].
31 KLEE, Confissão criadora [1920], p. 46.
32 Tomemos um exemplo clássico da arte europeia: Jacques-Louis David, A Coroação de Napoleão (Le Sacre de
Napoléon, 1807, óleo sobre tela, 621 x 979 cm, Museu do Louvre, Paris). A cena é de Napoleão coroando sua
esposa Maria Josefina, enquanto o Papa só observa. David, nos mais de 6 por quase 10 metros de seu quadro,
afirma em cada centímetro a soberania nacional perante a Igreja e o resto da Europa.
34
indivíduos com o tempo, com as coisas e consigo mesmos. A relação com sua época, na
metade do século XIX e primeira metade do século XX, essa arte [moderna] expressa
aquilo que é mas não deve continuar sendo, e através da denúncia das repugnâncias do
mundo, vislumbra aquilo que não é mas poderia ser – o inteiramente outro. Segundo
Watson, “Adorno enfatiza que o caos revelado na abstração é o caos da história econômica,
e esse é o caos específico revelado nas obras de arte modernas 33.” [tradução nossa] Aí está,
em caráter de denúncia.
Sem dúvida, a noção de Moderno remonta cronologicamente muito atrás do
Moderno enquanto categoria filosófico-histórica; mas esta não é cronológica. É
antes o postulado rimbaudiano34 da consciência mais progressista, na qual os
procedimentos técnicos mais avançados e mais diferenciados se interpenetram
com as experiências mais avançadas e mais diferenciadas. Mas estas, enquanto
sociais, são críticas. Esta arte moderna deve mostrar-se adulta à grande
indústria, não a manipulando apenas. O seu próprio comportamento e a sua
linguagem formal devem reagir espontaneamente à situação objectiva; a
reacção espontânea, enquanto norma, circunscreve um paradoxo eterno da
arte. Porque nada pode esquivar-se à experiência da situação, também nada
conta que actue como se a ela se subtraísse. Em numerosas obras autênticas da
arte moderna, o estrato material industrial é rigorosamente evitado como tema,
por desconfiança perante a arte mecânica como pseudomorfose; mas, negada
pela redução do tolerado e por uma construção reforçada, afirma-se com maior
força: assim em Klee. (ADORNO, Teoria Estética, p. 47)
Pois não é possível escapar a seu tempo. Nem negar o avanço técnico. O grande
artista moderno era sobretudo alguém que tirava seus temas e materiais da própria vida
moderna e suas constantes transformações, diversa do modo de vida estável que se levava
33 “Adorno stresses that the chaos revealed in abstraction is the chaos of economic history, and this is
specific chaos revealed in modern works of art.” WATSON, Crescent moon over the Rational: philosophical
interpretations of Paul Klee [2009], p. 167.
34 Referência ao verso do poema Adieu [Adeus], de Arthur Rimbaud. “Il faut être absolument moderne.” [É
preciso ser absolutamente moderno]. RIMBAUD, Une saison en enfer [Uma temporada no inferno, 1873].
35
antes35. Klee, ao produzir quadros de tamanho reduzido e que não evitavam temas
tecnológicos, é mais radical em sua crítica do estado de coisas do que se pintasse uma
natureza não degenerada – que na Europa já não existia nem nos sonhos dos primeiros
impressionistas.
Em Pássaros descendo e setas36 [1919], Klee realiza uma estranha construção: pássaros
geometrizados, nos quais quadrados lembram asas e estão dispostos em diagonais abertas,
que se encontram num ponto que aponta para baixo; dividem o espaço com setas, cujas
pontas também apontam para baixo e reforçam uma sensação de movimento. Um céu de
espaço com caças e mísseis. De fato Klee viu uma guerra na Europa e teve de participar
dela; a guerra tirou muitas vidas promissoras, como a de dois jovens pintores que foram
reificação é, radicalmente, a busca da linguagem que mais dê conta da coisa em seus mais
diversos aspectos, contra a imposição vertical de uma linguagem universal para a coisa.
“Entregar-se ao objeto equivale a fazer justiça a seus momentos qualitativos 38”. É como se
conceitos mais adequados para dar conta das qualidades da coisa. Isso é inverter a
“Na arte, mais importante do que ver é tornar visível 39”, dizia Klee. Tornar visível
os escombros encobertos de uma sociedade cindida e perpassada pela dor, porém cínica
na avaliação de sua própria doença. Todavia, para tal, é preciso que o artista se expresse
através dos meios adequados. O risco do uso de meios inadequados resulta na total
37 Após a morte de seus amigos, o próprio Klee foi convocado, mas acabou escapando do combate nas
trincheiras. Ver: KLEE, Diários [1898-1918].
38 ADORNO, Dialética Negativa [1966], p. 44.
39 KLEE, Diários, nota 1134 [1918], p. 452.
37
nulidade da potência expressiva, e até mesmo numa afirmação pela forma daquilo que se
Ora, uma obra de arte, para Adorno, deve ser coerente em sua própria forma;
todavia, sua coerência depende do fato de conter questões para além dela mesma. É
construção racional. Klee diz que “quando a intuição é ligada à pesquisa exata, acelera o
infantilismo, e a pura construção racional, à esterilidade. Ou numa frase de Klee que mais
parece Adorno, "o espírito mais profundo, a alma mais nobre, são inúteis se não tivermos
não intercambiável da realidade barbarizada; ir contra essa ideia é correr o risco de afirmar
imanente, dentro da obra de arte; Klee o faz com êxito, pois sabe que sua obra nada tem a
perder com a representação daquilo que não apraz, pois a própria construção da obra, que
contém em si o elemento do feio, pode ser considerada bela. “Mas a beleza, que talvez não
possa ser dissociada da arte, não se refere ao objeto, e sim à representação plástica. Assim,
e só assim, é que a arte supera o feio, sem tirá-lo de seu caminho 42.” Desse modo, o artista
está de acordo com Adorno, que insiste na assimilação do feio como mímese verdadeira da
dor social.
felicidade - para Adorno, é uma razão não mais violenta. Na dialética do esclarecimento, é
deles é a impossibilidade da obra de arte. Adorno atenta para quem acusa os artistas
social, que muitos dos críticos da época não foram capazes de captar, e só posteriormente
obras como uma marca, que Adorno chama écriture. Nesse caso, a acusação de formalismo
A obra de arte, além da tensão entre forma e conteúdo, reproduz a tensão entre
43 O panteão pessoal do filósofo é constituído por Schönberg, Berg e Webern na música, Klee e Picasso na
pintura, Celan na poesia, Joyce na literatura e Beckett no teatro.
39
arte. O próprio Klee afirma que “todo o trabalho é a relação entre o particular e o geral 44”.
uma vez, Klee aparece como exemplo exitoso de expressão da generalidade a partir do
Ao que parece, Adorno via com bons olhos os artistas que tinham afinidade com
mais de um material artístico; poderiam, assim, refletir e ter consciência de como formas
transposição de mecanismos próprios de uma forma artística para outra. O que há, de fato,
é que “as artes se nutrem umas das outras 46”; isso quer dizer que elas se apropriam de
inovações das outras artes, mas recodificam tais inovações dentro de sua própria forma
específica, de modo imanente: ou seja, em sua própria forma. “As artes só convergem ali
onde cada uma persegue puramente seu princípio imanente 47”. [tradução nossa] Podemos
44 “Toda labor es la relación de lo particular con lo general.” KLEE, Filosofia de la creación [sem data], p. 92.
45 Sobre a apresentação em Munique do Pierrot Lunaire de Schönberg, no ano de 1913: “Arrebenta, burguês,
acho que tua horinha chegou!” KLEE, Diários, nota 916, p. 311.
46 ADORNO, A arte e as artes, p. 65.
47 “The arts converge only where each pursues its immanent principle in a pure way.” ADORNO, On Some
Relationships between Music and Painting [1965], p. 67.
48 Ver: RODRIGO DUARTE, Sobre o conceito de “pseudomorfose” em Theodor Adorno [2009].
40
ver situados no eixo de tais inovações os artistas tratados por Adorno como exemplares.
Com o fim das preceptivas para a pintura, os critérios cristalizados foram dissolvidos, e
cada artista buscava na produção de sua própria obra, e não mais fora dela, a sua
justificação. Ser moderno é buscar o novo, numa negação determinada da tradição. Buscar
Ora, se o próprio conceito da arte moderna tem “alergia”, para usar o termo
adorniano, da forma cristalizada, é preciso que a forma não seja mais aplicada, e sim
construção racional, condição para se atingir a expressão verdadeira. Klee afirma que “a
forma é fim, morte; a formação é vida 49.” [tradução nossa] Negando a forma cristalizada, é
possível criar obras de arte no mundo moderno, que caminhem para além de seu aspecto
49 “La forma es fin, muerte. La formación es Vida.” KLEE, Filosofia de la creación, p. 91.
50 “Y grandes artistas de la modernidad radical, como Paul Klee y Juan Gris – que, como todos saben,
pertenecen a los constructivistas – han expressado al respecto, una y outra vez, con énfasis, que en verdad la
obra de arte constructiva recién comienza en el instante en que se suspende su propria así llamada
legalidad.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 238-9.
41
perante o ser”51. [tradução nossa] A forma, na arte moderna, não é mais pensada como ser,
estática, mas como vir-a-ser, como construção constante. Reinventar a forma é repensar os
modos que dão vazão à forma. Klee dedicou reflexões sobre a cor, a linha, o quadro e o
outras coisas diversas. A linha operava como limite. Em Klee é diferente: a linha aponta
para fora, é propulsora de movimento; não limita, mas conduz para o ilimitado, como bem
O título do ensaio de Arantes é muito feliz. A utopia de Klee é por uma pintura em
movimento, dinâmica, não mais cristalizada enquanto mera arte espacial, que se encerra
pela finalização - ou abandono - do quadro pelo pintor. Klee imaginava a pintura como
arte temporal, inacabada, gênese constante, que aponta para muito além de si mesma. “A
obra de arte também é em primeira instância gênese, nunca pode ser vivenciada
[puramente] como produto52.” Para Arantes, a utopia de Klee consiste em dar movimento
ao que era até então estático, utilizando-se de meios estritamente pictóricos para tal. Os
que quer colocar seus quadros em movimento, com formas estranhas que não vemos na
51 “El devenir se mantiene por sobre el ser.” KLEE, Filosofia de la creación, p. 92.
52 KLEE, Confissão criadora, p. 47.
42
outro mundo. No entanto, a concepção de natureza de Klee é muito mais profunda: não se
preocupa com a reprodução fiel da aparência, mas das forças criadoras da natureza, em
movimento contínuo e eterno. Kahnweiler diz que “Paul Klee trata, em seu livro, das
forças muito mais do que das formas 53.” [tradução nossa] Aquilo que é retratado nos
quadros não é fiel e semelhante à aparência da realidade objetiva; com isso, o artista
mostra que o dito mundo real em sua totalidade não é necessário, que sua organização
poderia ser outra. “Sua composição [de Klee] não é submissa a nenhuma lei 54.” [tradução
nossa] Assim, refutando a necessidade das coisas serem como são, e preocupando-se mais
com as forças que subjazem à aparência do que com a própria aparência, Klee encontra a
Klee dá vazão para que o Eu do artista inscreva sua visão de mundo nas obras, não
de arte não só reproduzem com vivacidade o que é visto, mas também tornam visível o
53 “Paul Klee traite, dans ce livre, de forces beaucoup plus que de formes.” KAHNWEILER, Klee [1950], p. 6.
54“[…] sa composition ne s’est jamais soumise à aucune loi.” KAHNWEILER, Klee, p. 6.
55 KLEE, Sobre a arte moderna, p. 66.
43
separe-se dessa realidade; separada, realiza aquilo que ainda não é possível na sociedade:
o regime da liberdade, a utopia. A arte moderna é receptáculo da utopia, daquilo que não
existe mas que poderia existir. Para acentuar essa separação, a figuração do inexistente é
algo recorrente na arte moderna. Isso Adorno identifica e toma como exemplo no Angelus
Um olhar infantilizado, que procura pelo belo ingênuo na arte, não enxerga o
potencial emancipatório da arte moderna. Nela devemos procurar aquilo que a indústria
pelo olhar ingênuo, mas pela percepção do diverso, que ao mesmo tempo versa, ainda que
de modo cifrado, sobre a sociedade mesma. Não reproduzir o mundo como ele é, é não
aceitá-lo assim.
Com olhar enigmático, o anjo da máquina [refere-se ao Angelus Novus] força o
contemplador a se perguntar se ele anuncia a desgraça consumada ou a
56 Paul Klee, Angelus Novus, 1920, nanquim e óleo sobre papel, 31,8 x 24,2 cm. Hoje no Museu de Israel em
Jerusalém, o Angelus Novus originalmente foi de propriedade de Walter Benjamin e lhe serviu para suas
reflexões acerca da História. Ver: BENJAMIN, Teses sobre o conceito de História [1940], Tese IX.
57 O termo em grego é thaumázein, quer dizer admiração.
44
mecânico, algo que incomoda o espectador que identifica a ideia de pássaro com o belo
natural. Mas desta vez não ocupam o espaço como se estivessem em movimento, e não há
setas apontadas para reforçar essa dinâmica. Os pássaros estão pendurados por um fio que
termina numa manivela; nas figuras dos pássaros parece misturar-se à fina penugem o
esboço de molas. Parece haver também um suporte para partitura abaixo dos pássaros. A
abandonado. Os pássaros já não cantam livres ao ar livre; ligados por fios, seu canto se dá
mercadoria, mais pessoas ouvem o hit da semana do que o canto dos pássaros. Por seu
expressa a dor de um mundo que poderia ser diferente, através de elementos dele
O trecho não deixa dúvidas, e também parece escrito por Adorno. O espectador
educado na arte moderna, cujas obras rumam em direção à figuração não-realista e não
contemplador da catástrofe expressa pelas obras de arte modernas; mas não num
aparente, opera como portadora da utopia. Todavia, como já vimos, a história da arte é
constituída pela negação determinada. Klee, mesmo em seu momento mais abstrato, ainda
mantém algum laço com a realidade, negando-a. A autonomia absoluta da figuração não-
realista, sem negar em algum ponto a tradição, sem manter nenhum vínculo, mesmo que
negativo, com a realidade, é por isso inócua e sem tensão. Aí sim podemos dizer em
termos adornianos que é uma obra de arte abstrata: sem concretude, e por isso, abstrata
realista, mas ainda participa da negação determinada, pois nega a realidade social e a
61 “Donde no existe ninguna tradición más que un momento – sea como fuere – sublimado, no existe
tampoco, en verdad, la fuerza del arte revolucionario real. […] los más importantes de entre todos los
pintores modernos – tanto Klee como Picasso – han vacilado ante la borradura de todo vínculo con la
objetividad; y tiende a parecerme, en efecto, como si en la fase tardía de Klee, sobre todo, donde ha dejado
esto de manera póstuma, pero también el desarrollo de Kandinsky, este desarrollo no hubiera sido
necesariamente para bien. Esta vacilación no es – como algunos de mis amigos de Darmstad me han
reprochado oportunamente – una vacilación por cobardía o debilidad o inconsecuencia, sino que,
evidentemente, lo que los ha movido a ella a estos grandes artistas es el hecho de saber que, de algún modo,
se requiere de una resistencia a lo heterónomo para en realidad hacer primordialmente significativo el
concepto de autonomía. Es decir, la autonomía de la creación, en el instante en que se absolutiza y, de algún
modo, marcha en el vacío, se cancela [aufhebt] a sí mesma, [por lo tanto], no deviene más en un libertad,
cuando esta libertad no puede participar de algo de lo que tenga que diferenciarse.” ADORNO, Estética
1958/9, p. 408.
47
experiência mais avançadas de sua época, inscrevendo a experiência histórica nas obras de
arte. Por isso, Paul Klee é, para Adorno, um artista moderno por excelência, e faz parte do
D’Avignon62, de 1907. A crítica específica desse quadro, mais de cem anos depois,
permanece viva e inventiva63. Meu intento aqui é de somente apontar alguns elementos
da arte europeia.
A favor da sobrevivência do conceito de harmonia como momento fala o facto
de as obras de arte, que protestam contra o ideal matemático de harmonia e
contra as exigências de relações simétricas e buscam a assimetria absoluta, não
serem desprovidas de toda a simetria. A assimetria, segundo o seu valor
linguístico-artístico só pode conceber-se em relação à simetria; uma prova
muito recente disso são os fenômenos que Kahnweiler chama fenômenos de
distorção em Picasso. (ADORNO, Teoria Estética, p. 181)
arte Daniel-Henry Kahnweiler, alemão que vivia em Paris e seu amigo. Kahnweiler
estabelece uma crítica de inspiração kantiana, porém de pena muito inventiva; foi um dos
tradição.
62 “Jovenzinhas de Avingnon” não parece um título muito agradável para que valha a pena traduzi-lo. Pablo
Picasso, Les demoiselles D’Avignon, 1907, óleo sobre tela, 243,9 x 233,7 cm. MoMA, Nova Iorque.
63 O primeiro a se posicionar, logo no advento da obra, foi Kahnweiler; já com o quadro nos Estados Unidos,
Alfred Barr, Leo Steinberg, Giulio Carlo Argan, Carlo Ginzburg, Yves-Alain Bois, Rosalind Kraus, e muitos
outros já deram sua contribuição para a fortuna crítica da obra, apontando elementos disruptivos do quadro
através de diversas abordagens, como antropologia, exotismo, psicanálise, erotismo, formalismo, e mesmo
utilizando-se de conceitos adornianos, como Jay Bernstein, cujos escritos serão tratados em excurso à parte.
O próprio Adorno cita o quadro como paradigma de ruptura, mas que todavia tomada como cânone e regra,
abandona o espírito da vanguarda e corre o risco de regressão. “O valor posicional dos traços bárbaros na
arte nova modifica-se historicamente. O amador delicado, que se benze perante as reduções das Demoiselles
d'Avignon ou as primeiras peças de piano de Schönberg, é sempre mais bárbaro do que a barbárie que ele
teme.” ADORNO, Teoria Estética, p. 111-2.
49
em Ingres. O grande pintor francês, obcecado pela beleza e pela perfeição anatômica,
distorce o dorso d’A banhista de Valpinçon64 [1808]. Não é um corpo ideal porém inexistente,
como na escultura grega: desta vez é um corpo voluntariamente deformado. Ingres faz
esse movimento em nome do amor pelo ideal de beleza, e assim separa-o da mera
prescrição de verossimilhança anatômica. Manet, na sua Olympia65 [1863], estica ainda mais
o fio do tear de Ingres: a beleza desta vez emerge no plano chapado, não mais em
perspectiva linear. A Olympia não é bela porque se parece com alguma mulher real, ou
porque seu corpo foi deformado para ficar mais bonito: é bela por sua articulação formal,
separada da vida social por sua recusa do realismo, mas testemunha dela nos elementos
64 Jean-Auguste Dominique Ingres, La Baigneuse Valpinçon, 1808, óleo sobre tela, 146 x 97,5 cm. Museu do
Louvre, Paris.
65 Édouard Manet, Olympia, 1863, óleo sobre tela, 130,5 x 190 cm. Museu D’Orsay, Paris.
50
que seria posteriormente reconstruída pelo olhar do espectador. Mesmo com a aparição
próprio horror em forma. Quem opera essa ruptura é Picasso, nas Demoiselles. A distorção
66 “En los cuadros de Manet se esconde sin duda una determinada especie de shock, una determinada
especie de terror, respecto de la cosificación del mundo. Esto por lo que Manet se diferencia de los
impresionistas tardíos es el hecho de que él aún incorpora el mundo alienado a un continuum del aparato
sensual de percepción, a través del cual ese mundo vuelve de todos modos a reconciliarse con el sujeto, es
decir, el verdaderamente aprehende ese mundo, en su extrañeza, de manera precisa. Y los objetos que elige
por esa extrañeza (sobre todo la imagen de la prostituta como un tipo social, que en su obra está visto por
completo en un sentido de crítica social y de algún modo, como en Las flores del mal, la obra de su amigo
Baudelaire) resultan algo extraordinariamente caracteristico para este tipo de alienación social que, al mismo
tiempo, vuelve a las personas hacia lo más cercano de todo, hacia el cuerpo propio.” ADORNO, Estética
1958/9, p. 523-4.
52
não serve mais à pura beleza, e sim à plena fealdade (ou feiura, como se queira). Herança
kantiana: “A bela arte mostra sua preeminência justamente em descrever com beleza coisas
que na natureza seriam feias ou desagradáveis 67”. A distorção não serve mais para
por fim, uma afirmação da deformação como forma. Está aberto o caminho para o
“impressão” causada pela imprecisão do traço, mas sim reduzir a paisagem a figuras
geométricas simples, mostrando o objeto não só do ponto de vista do observador, mas dos
Algum tempo depois, os cubistas foram além em sua revolução. Em vez de somente
arte, foram tornados constitutivos das obras. Instituiu-se a colagem como método. Em vez
de tinta a óleo sobre a tela, os novos materiais eram recortes de jornal, pedaços de vidro,
serragem de madeira, restos de tecidos, etc. Não mais simplesmente representar, mas fazer
69 “Este nuevo lenguaje proporciona a la pintura una libertad inaudita. Ya no está ligada a la imagen óptica
más o menos «realista» que tan sólo admite un único punto de vista ante un objeto. Con tal de efectuar una
representación profunda de las cualidades «primarias del objeto», es capaz de mostrarlo sobre el plano como
un dibujo estereométrico, o, mediante varias representaciones del mismo, dar incluso su descripción
analítica, que sólo será refundida de nuevo en objeto en la conciencia de quien contempla el cuadro. La
representación tampoco necesita ya ser la propia del dibujo estereométrico, siempre cerrada, sino que - y éste
fue el gran paso dado en Cadaqués - unas superficies coloreadas pueden componer el esquema formal
gracias a su orientación, situación relativa, etc., sin nece sidad de ensamblarse en cuerpos cerrados. En lugar
de una descripción analítica, el pintor también puede, si lo prefiere, crear de esta manera una síntesis del
objeto, es decir, según Kant, «mezclar entre sí sus distintas imágenes y comprender su diversidad em una
única cognición».” KAHNWEILER, El camino hacia el cubismo, p. 61-2.
70 Pablo Picasso, Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler, 1910, óleo sobre tela, 100,4 x 73,4 cm. Art Institute of
Chicago.
54
o objeto mesmo saltar na explosão de sua aparência. Não mais simplesmente representar,
mas reordenar a matéria bruta. Nunca a arte havia sido tão concreta como no cubismo
sintético.
71 Juan Gris, Le Petit déjeuner, 1914, guache, óleo e giz de cera sobre papel impresso e colado sobre tela com
óleo e giz de cera. MoMA, Nova Iorque.
55
Uma arte sem autonomia, que prima somente pela comunicabilidade, rende-se sem luta
aos imperativos do sistema; uma arte completamente autônoma em seu idioma subjetivo
deixa de refletir os universais compartilhados, e por isso é tão ingênua quanto as artes
imediata – formalmente assinalada pela negação do realismo – e a recusa da arte pela arte,
já que as figuras, ainda que irreais, emergem do real num contexto de violência e
destruição. Num registro de figuração não-realista, emerge a dor social expressada num
real, no território basco, foi bombardeada por caças alemães a favor do ditador Franco, e
a catástrofe; a forma da expressão da barbárie consumada não poderia de modo algum ser
positiva. E assim, irreal - e por isso potente, Guernica aparece como representação
72 Pablo Picasso, Guernica, 1937, óleo sobre tela, 350 x 777 cm. Centro de Arte Reina Sofia, Madri.
56
Em seu texto Engagement [1962], que trata principalmente das peças de Sartre e
Brecht, Adorno conta uma exemplar anedota sobre Picaso e o Guernica durante a ocupação
nazista de Paris:
Quando um oficial alemão da ocupação visitou-o [a Picasso] em seu atelier e
lhe perguntou em frente ao quadro Guernica “o senhor fez isso?”, ele terá
respondido: “não, o senhor”. Também obras de arte autônomas, como esse
quadro, negam com certeza a realidade empírica, destroem a destruidora,
aquilo que aí está simplesmente e como mero existente repete infinitamente a
culpa. (ADORNO, Engagement, p. 65-6)
Ao levar o ideal de deformação a sério, Picasso diz muito mais sobre a realidade
cindida do que o realismo poderia fazer. A expressão fiel da crueldade é a única que dá
contra a verdade social, enquanto o caráter negativo de expressão da dor, esse sim, carrega
abdica da maioria das modalidades de prazer sensível, advogando apenas por algumas
delas, as mais facilmente manipuláveis pela indústria, como a predileção pelo harmônico e
à ideologia.
73 Talvez por uma sensação de dever histórico, Adorno e Horkheimer evocam o grande pintor de sua época
já em sua primeira obra de destaque, a Dialética do Esclarecimento. “Até Schönberg e Picasso, os grandes
artistas conservaram a desconfiança contra o estilo e, nas questões decisivas, se ativeram menos a esse do
que à lógica do tema.” ADORNO & HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 107.
74 Pablo Picasso, Massacre en Corée, 1951, óleo sobre tela, 110 x 210 cm. Museu Picasso, Paris.
75 Monodrama composto por Schönberg em 1909.
58
suas observações não são originais, podem ser consideradas no mínimo pertinentes.
“Rabiscado”, talvez pelos principais pontos do texto terem sido escritos ali mesmo,
durante a visita atenta ao museu76. “No Jeu de Paume77” o museu parisiense que abrigava
em seu acervo muitas das obras mais importantes do impressionismo. Sem saber, a
fundação do Museu D’Orsay em 1986 e o traslado das obras impressionistas para a nova
mundo, não só pela ruptura com o realismo, mas também pelo fato de suas paisagens
pressupunha ser impossível alcançar a natureza intocada – talvez tenha sido esse o motivo
da angústia de Paul Gauguin, que foi até a Polinésia procurando pelo primitivo 78.
Se prestarmos atenção não à forma de perceber e à maneira de pintar dos
impressionistas franceses, mas aos seus objetos, vemos que suas paisagens
estão cheias de signos da modernidade, em especial de momentos da técnica.
[...] A realização pictórica quer equiparar o estranhado [pontes e ferrovias, p.
ex.] ao vivo, salvá-lo para a vida. (ADORNO, Rabiscado no Jeu de Paume, p. 281,
tradução nossa79)
76 Adorno possui também uma reflexão importante sobre os museus. “A única relação concebível com a arte,
em nossa realidade catastrófica, seria a que considerasse as obras de arte com a mesma seriedade mortal que
tem caracterizado o mundo de hoje. Só está livre do mal tão bem diagnosticado por Valéry aquele que junto
com a bengala e o guarda-chuva também entregou, na entrada [do museu], a sua ingenuidade; aquele que
sabe exatamente o que quer, escolhe dois ou três quadros e se detém diante deles com enorme concentração,
como se fossem realmente ídolos.” ADORNO, Museu Valéry-Proust [1953], p. 185.
77 Jeu de Paume significa Jogo de Péla, esporte que deu origem ao tênis. O edifício foi originalmente
construído para abrigar a prática desse esporte. Não confundir com um outro e mais antigo prédio dedicado
ao jogo, local de importância histórica no qual os representantes do terceiro estado – burguesia, baixo clero e
sans-cullotes – se reuniram em 1789 e deram início à Revolução Francesa.
78 Para Adorno, porém, a forma encontrada por Gauguin envelheceu rapidamente. “A superioridade dos
grandes impressionistas sobre Gauguin só apareceu quando as inovações deste empalideceram perante
invenções posteriores.” ADORNO, Teoria Estética, p. 221.
79 “Si prestamos atención no a la forma de percibir y a la manera de pintar de los impresionistas franceses,
sino a sus objetos, vemos que sus paisajes están llenos de signos de la modernidad, en especial de momentos
de la técnica. […] La realización pictórica quiere equiparar lo extrañado a lo vivo, salvarlo para la vida.”
59
olha. Quer dizer, alcança-se (ou melhor, almeja-se) a identidade [virtual] por meio da não-
impressionismo canônico, Adorno defende seus precursores. Só uma história da arte que
caminhe não cronologicamente, e sim por negação determinada, é capaz de apontar maior
potência numa obra mais antiga do que nas mais recentes. A história da arte em Adorno é
entendida como se fosse uma imensa rede de fios: alguns foram cortados, alguns esticados
nós e puxa os fios, até o agora. É assim por exemplo com Manet.
O antigo pode adiantar o novo. Este ato de adiantamento parece ser o que
constitui a sobrevivência das obras de arte: em conjunto. Manet resulta mais
moderno, mais estranho que os impressionistas posteriores, que fazem avançar
mais coerentemente a técnica. Algo similar se pode observar posteriormente
em Van Gogh. (ADORNO, Rabiscado no Jeu de Paume, p. 282, tradução nossa82)
Manet. Ao que parece, ele entende Manet como o precursor do modernismo nas artes
modernismo nas artes visuais no Marat assassinado, de David, primeiro quadro da tradição
assassinato do jornalista sans-cullote Marat por uma girondina – mas já havia pintura desse
ilustrador de jornal Constantin Guys 85; tese muito interessante, pois as obras de Guys são
pequenas, são muitas, feitas propriamente para a reprodução, e representam fatos da vida
pintura histórica e do realismo. Todavia, faz todo o sentido que Adorno situe em Manet
82 “Lo antiguo puede adelantar a lo nuevo. Este acto de adelantamiento parece sr lo que constituye la
supervivencia de las obras de arte: en conjunto, Manet resulta más moderno, más extraño que los
impresionistas posteriores, que hacen avanzar más coherentemente a la técnica. Algo similar se puede
observar posteriormente en Van Gogh.” ADORNO, Garabateado en el Jeu de Paume, p. 282.
83 Ver: ARGAN, Arte Moderna [1970] e CLARK, A pintura no ano II [1994].
84 E o tema do quadro é a Guerra dos Sete Anos, conflito que criou as tensões e condições para a
Independência dos Estados Unidos e também para a Revolução Francesa, pois envolvia britânicos, franceses,
indígenas e colonos. A essa guerra se deve a existência do Canadá. O autor do quadro, de significativo
sobrenome West, curiosamente foi a Roma antes do próprio Jacques-Louis David. Esse tema é muito
interessante e, ao que parece, ainda não foi profundamente explorado pela crítica de arte. Benjamin West, A
morte do General Wolfe (The Death of General Wolfe), 1770, óleo sobre tela, 151 x 213 cm. Galeria Nacional do
Canadá, Ottawa.
85 Ver: BAUDELAIRE, O pintor da vida moderna [1863].
86“[…] para el arte moderno no existen más ninguna de esas normas de la creación artística que obligan
desde afuera (elementos tradicionales, convencionales, tópicos – como se prodía decir, incorporando un
concepto de la filología clásica-).” [Para a arte moderna não existe mais nenhuma das normas de criação
artística que obrigam desde fora (elementos tradicionais, convencionais, tópicos – como se poderia dizer,
incorporando um conceito da filologia clássica-).] ADORNO, Estética 1958/9, p. 361, tradução nossa.
61
essa transição. O pintor francês rompe com a perspectiva linear, com a verossimilhança
das cores, com a necessidade de dignidade das figuras representadas. Não quero dizer que
a Olympia e sua escrava são indignas, pelo contrário: eram indignas para a sociedade da
época, fato que depõe muito mais contra a sociedade e a época do que contra as figuras do
quadro.
Todos sabem que a arte moderna, num sentido muito amplo, se distancia
demasiado daquilo que satisfaz os sentidos. Isso talvez, de modo retroativo,
possa datar na pintura de Manet, na qual a satisfação da harmonia cromática
foi quebrada por cores extremamente contrastantes. (ADORNO, Estética
1958/9, p. 133, tradução nossa87)
Há ainda outra pista para o fato de Adorno considerar Manet o ponto de abertura
do modernismo nas artes plásticas: a recusa da homeóstase 89, quer dizer, do equilíbrio de
tensão e contentamento com a forma alcançada, mal do qual padeceram muitos dos
87 “Todos ustedes saben que el arte moderno, en un sentido muy amplio, se disntancia una y outra vez de lo
que satisface a los sentidos. Esto quizá ya podría datarse retroactivamente en la pintura de Manet, en la que
la satisfacción de la armonía cromática ha sido quebrantada por colores extremadamente contranstantes.”
ADORNO, Estética 1958/9, p. 133
88 Édouard Manet, Le suicidé, 1881, óleo sobre tela, 38 x 46 cm. Fundação E. G. Bührle, Zurique.
89 Ver: ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 444.
62
impressionistas que vieram depois dele. A isso responde a ânsia pelo novo, que tem sua
mostra avançado. Para Adorno, mais avançado do que seus colegas mais jovens, tal como
Para Adorno, Van Gogh é um pintor importante pois pela primeira vez expressa
figuração de temas heroicos de estatuto social elevado; as figuras de Van Gogh são comuns
representada.
Que obras adquiram a sua dignidade ao ocuparem-se de quaisquer
acontecimentos sublimes - cuja sublimidade é quase sempre apenas fruto de
ideologia, de respeito do poder e da grandeza - é desmascarado desde que Van
Gogh pintou uma cadeira ou alguns girassóis de tal modo que os quadros
ribombam com a tempestade de todas as emoções, em cuja experiência o
indivíduo da sua época registava pela primeira vez a catástrofe histórica.
(ADORNO, Teoria Estética, p. 171)
potência de Van Gogh, por vezes maior do que o expressionismo secularizado que proveio
desse ímpeto.
Figura 15. Van Gogh, A igreja de Auvers93, 1890
movimentos não pode ser reduzida somente pelo fato de alguns de seus integrantes 94
93 Vincent Van Gogh, L’église d’Auvers-sur-Oise, 1890, óleo sobre tela, 94 x 74 cm. Museu D’Orsay, Paris.
94 É ilustrativa a história do pintor expressionista Emil Nolde, que declarou apoio ao Terceiro Reich e
mesmo assim teve sua obra censurada pelo regime, tratada como degenerada.
64
Todavia, essa defesa geral do ímpeto surrealista não significa que Adorno admirava
tudo aquilo que proveio desse movimento. O filósofo critica o pintor André Masson por,
ainda é o cenário da crítica a Salvador Dalí, cuja obra é tratada por Adorno como vazia de
verdade histórica e cuja forma fetichizada serve a um público apático para ser consumida
95 Lembremos que Pasífae, na mitologia grega, é quem dá a luz ao monstro Minotauro. André Masson,
Pasiphaë, 1945, pastel sobre papel preto, 69,8 x 96,8 cm. MoMA, Nova Iorque.
65
do movimento do qual fazia parte, para depois cristalizar as formas e “abrandar” a tensão,
condição da expressão verdadeira. A crítica de Adorno vai ainda mais além: Masson
seculariza a técnica do “choque” cromático num tal grau que se furta aos objetos e,
consequentemente, à figuração.
96 Philip de László, pintor húngaro de retratos da aristocracia europeia, e Kees Van Dongen, retratista
holandês à moda fauve.
97 “O estímulo sensual da arte só se legitima onde, como no Lulu de Berg ou em André Masson, é portador
ou função do conteúdo, não fim em si mesmo.” ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 417.
98 André Masson, Les Filles de cuisine, 1962, óleo sobre tela, 50,2 x 61 cm. Tate Galery, Londres.
66
representar os objetos desamarrados das prescrições tradicionais, de modo que saltem aos
olhos devido à sua composição, muito mais do que pela verossimilhança com o real; ao
possibilidade de realização da liberdade pela livre configuração das formas, liberdade esta
criação artística.
Kandinsky – como todos vocês sabem – escreveu há uns quarenta anos aquele
famoso manifesto – o livro Sobre o espiritual na arte – no qual, pela primeira vez,
frente à representação dominante da arte como algo imediatamente sensível,
transformou a velha tese da filosofia idealista – idealista-especulativa - acerca
do caráter essencialmente espiritual da arte, em um programa de criação
artística, o qual – segundo ele – tão só deve ser expressão de algo espiritual e
abandonar mais ou menos toda a imediatidade sensível. (ADORNO, Estética
1958/9, p. 354, tradução nossa99)
99 “Kandinsky - como todos ustedes saben - ha escrito hace unos cuarenta años aquel famoso manifiesto - el
libro Sobre lo espiritual en el arte - en el que, por primera vez, frente a la representación dominante del arte
como algo inmediatamente sensible, transformó la vieja tesis de la filosofia idealista - idealista-especulativa -
acerca del carácter esencialmente espiritual del arte, en un programa para la creación artística misma, la cual
- según el - tan sólo debe ser expresión de algo espiritual y abandonar más o menos totalmente su
inmediatez sensible.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 354.
67
construção artística é um prazer do intelecto, mediado por este; a indústria cultural molda
o prazer sensível do público amplo ao mesmo tempo em que impele esse público a
da identidade; por isso a arte espiritual em tese não lhe interessa. “Somente como espírito
da estrutura existente do mundo 100.” Todavia, essa arte separada encontra seu meio de
expressão justamente no campo do sensível, quer dizer, na obra de arte mesma, que é uma
coisa concreta. A mediação entre o momento espiritual e sua expressão sensível é de fato o
sensível, carente do espírito, e que isolada e desarticulada nada diz sobre o mundo, e
também algo de metafísico e regressivo. Para o filósofo, as obras de arte contém o espírito -
103 “[…] ese proceso inexorable de espiritualización de los momentos sensibles del arte […] nunca puede
orientarse a algo sensiblemente particular. […] Nada sensiblemente particular en sí es algo absolutamente
espiritual, um portador absoluto de expresión, que se basta a sí mismo para produzir a lo espiritual. […]
Todos estos materiales particulares - sean los más bellos acordes dodecafónicos, sean matices nunca vistos
de un rojo de Nolde o sean contrastes cromáticos nunca vistos - no efectúan precisamente ellos solos esa
espiritualización, sino que la fuerza de la espiritualización que sin duda se exige hoy de todo arte […] se
encuentra exclusivamente en la configuración de estos momentos, por lo tanto, en qué importancia tienen
estos momentos en el contexto de una obra de arte y no más en algo aislado de ellos.” ADORNO, Estética
1958/9, p. 359-60.
104 Wassily Kandinsky, Courbe dominante, 1936, óleo sobre tela, 129, 2 x 194,3 cm. Guggenheim, Nova
Iorque..
69
que uma obra, quer dizer, são também portadoras do espírito 105. O espírito emerge nas
Kandinsky, que parece apontar para a teoria de origem platônica das ideias perfeitas: uma
orientação religiosa.
artista mais famoso - também foi digno de atenção por parte de Adorno. Para ele, também
mundo das formas perfeitas - através das obras. Isso é um fator limitante, pois quando o
mundo material não diz mais respeito à arte, as obras perdem em potência. Talvez por isso
declarada como permanente: utopia que pouco caso faz da impossibilidade da sua
realização106.” Ainda assim, para Adorno, “o significado da riqueza de suas formas [do
sofrimento. Todavia, para Adorno, esse sofrimento ainda era expressado por via de formas
mais ou menos convencionadas; aí reside outra limitação do Jugendstil, que nem por isso
108 “El Jugendstil es por completo, en cierta forma, también un arte de la expresión, y el sufrimiento dentro
de la convención es en él infinitamente fuerte. El intento de imponer, frente a las convenciones, a los
hombres autónomos libres, a los " hombres nobles libres " - como los llama Ibsen -, es realmente el motivo
más profundo del Jugendstil; sólo que este motivo de la expresión, en el Jugendstil en sí mismo, aún
permanece unido a la representación de algunas categorías formales fijas, que se piensan obligatorias para
todos.” ADORNO, Estética 1958-9, p. 184.
109 Gustav Klimt, Tod und Leben, 1915, óleo sobre tela, 178 x 198 cm. Leopold Museum, Viena. Foto: Leopold
Museum, Wien/ Manfred Thumberger
71
padrão: quando os artistas se contentam com a forma encontrada, suas obras perdem
potência. Um juízo que advoga pelo modernismo, indissociável da ideia do novo, em seu
âmago mais profundo. Esse juízo provém da própria concepção de história da arte
compartilhada por Adorno: a que progride por negação determinada, e cuja concretude se
mesmo de todas as fases de um mesmo artista. O fim das preceptivas, ao mesmo tempo
em que abriu as portas para a arte experimental, possibilitou um resgate de artistas até
então renegados pela tradição acadêmica. São trazidos à vida, por exemplo, El Greco, que
em pleno século XVI já deformava suas figuras, e Turner, que no auge do período
110 El Greco, Laocoön, 1614, óleo sobre tela, 137,5 x 172,5 cm. Galeria Nacional de Arte, Washington.
72
da Cultura, Gustave Courbet exilou-se na Suíça e lá realizou pinturas bem diferentes das
que havia feito antes. O filósofo João Bernardo levanta uma interessante hipótese 112: os
peixes mortos de Courbet na fase do exílio são os próprios communards. Vou além: em
figura surge morta em suspenso no espaço, como que uma aparição da destruição e da
morte emergindo do caos. A pergunta que Courbet deve ter se colocado foi: como dar
111 William Turner, Snow Storm, 1842, óleo sobre tela, 91 x 122 cm. Tate Galery, Londres.
112 Apresentada em comunicação oral na Semana de Comemoração dos 140 anos da Comuna de Paris,
realizada na PUC-SP entre 23 e 27 de maio de 2011. Suponho que João Bernardo estivesse se referindo ao
quadro As três trutas do rio Loue (Les trois truites de la Loue, 1872, óleo sobre tela, 107 x 85,5 cm. Kunstmuseum,
Berna).
73
realismo prescrito para expressar a sombra do genocídio. Mais uma demonstração de que
a história da arte não é um desenvolvimento cronológico, mas sua potência está nos feitos
de cada obra.
113 Gustave Courbet, La truite, 1873, óleo sobre tela, 65,5 x 98,5 cm. Museu D’Orsay, Paris.
74
Para Adorno, “abstração” é um termo pejorativo, pois a obra de arte, para ser
relevante, deve ter alguma relação com a realidade empírica - concreta - e tirar dela seus
materiais para, separada da empiria por negação determinada, apontar para um outro
porque uma obra de arte, se é uma obra de arte, é concreta 114”. [tradução nossa] Em pintura,
sofrimento social são predicados da grande arte moderna. Assim sendo, a tendência que
uma tendência avançada em pintura. Para Adorno, um artista representativo neste quesito
conteúdo, precisa dissolver qualquer elemento estático da forma, para que a liberdade seja
fazer do artista em relação a seu material. Essa tendência ao involuntário, que Adorno
ausência de regras a priori do fazer artístico. Todavia, como que emanando do material, a
numa obra cuja aparência é ao mesmo tempo de absoluto automatismo e máximo rigor às
116 Wols (Wolfgang Schulze), Oui, Oui, Oui, 1947, óleo, raspagem e marcas de tubo sobre tela, 80,5 x 64,2 cm.
The Menil Collection, Houston.
76
obra de arte relevante continua sendo aquela que refere-se à realidade histórica concreta.
histórica e socialmente compartilhada deixada pelo artista na obra, como que uma ferida
aberta numa época de desenvolvimento das formas artísticas que tendem à “abstração”. É
117 Bernard Schultze, Rifrost, 1958, óleo e plástico sobre tela, 120 x 100. Museu Ludwig, Colônia.
118 “Em debates recentes especialmente sobre artes plásticas, o conceito de écriture tornou-se relevante,
debates suscitados por páginas de Klee que se aproximavam de uma escrita gatafunhada. Esta categoria da
modernidade arroja como projector luz sobre o passado; todas as obras de arte são uma escrita, e não apenas
as que aparecem como tais, e certamente hieroglíficas, para as quais se perdeu o código e para cujo conteúdo
contribui acima de tudo a ausência de tal código. As obras de arte são linguagem só enquanto escrita.”
ADORNO, Teoria Estética, p. 145.
77
assim em Paul Klee e em Wols. Por isso, a abstração absoluta, que não se refere à realidade
nem à história, e nas quais os artistas abdicam de deixar sua “escritura”, é uma tendência
produções não realizariam mais a mímese negativa, característica central da arte relevante
para Adorno.
A action painting, a pintura informal, a música aleatória gostaram de levar ao
extremo o momento resignativo: o sujeito estético dispensa-se do esforço da
configuração do que lhe surge como contingente, configuração que ele
desespera de suportar durante mais tempo; imputa por assim dizer ao
contingente a responsabilidade da organização. Mas, de novo, o ganho é
falsamente avaliado. A legalidade formal presumivelmente destilada a partir
do contingente e do heterogêneo permanece também heterogênea e não
obrigatória para a arte. (ADORNO, Teoria Estética, p. 249)
impregnadas nas imagens que contém algo do sofrimento socialmente compartilhado. Por
119 “If painting or music were simply lacking the expressive element, the element of an expression without
anything concrete to be expressed, the work would no longer intend toward something that is not its own
phenomenon and that cannot be hidden in symbolic unity, either within it or anywhere outside it. Then its
character as writing would be lost. The work would regress, as innumerable examples do today, to a
preartistic state.” ADORNO, On Some Relationships between Music and Painting, p. 72.
78
que é a gênese dessas formas, e também das tensões provenientes do confronto produtivo
entre obras de arte; e por isso seriam alienadas da história, que é produto de tensões
Entretanto, estou convencido de que esse movimento artístico não se esgota nessas
exemplo seu maior expoente, ou pelo menos o mais famoso: Jackson Pollock. A obra de
processo histórico das artes visuais. Radicalmente, contesta o próprio utensílio secular da
mediação do pincel e debruça-se diretamente sobre suas tintas. Como bem explica Naves:
O problema de Jackson Pollock é a rigor criar uma resistência ao próprio ato de
pintar, um método que possibilitasse que as formas daí resultantes fossem a
concretização da própria dificuldade de formalizar – uma recusa portanto a
usar o pincel como um instrumento que domesticasse uma matéria (a tinta)
apropriada a um fim (a pintura, a tela).” (NAVES, Jackson Pollock: o mar e a água
viva [2007], p. 254)
120 “Abstruseness degenerates into ideology and to a vacuous craft where its actions remain on the aesthetic
plane and thereby submit to the very criterion of meaning - and culture is for good or ill the embodiment of
meaning - which they have challenged. However, this is dictated by the impossibility today of that politics
on which Dadaism still relied. 'Action painting', 'action composing' are cryptograms of the direct action that
has now been ruled out; they have arisen in an age in which every such action is either forestalled by
technology, or recuperated by an administered world. This indicates the extent to which political practice
influences aesthetic modes and it does so precisely at the point where the latter are at their most intransigent
and at their furthest remove from normal cultural practice. The limitations of art proclaim the limits of
politics.” ADORNO, Vers une musique informelle, p. 316.
79
O próprio Adorno, mesmo que receoso, ainda via alguma possibilidade ao menos
suas construções. “Só a teimosia poderia negar a função produtiva de elementos não-
aleatória121”.
é, dentro da pequena literatura desta pesquisa, um dos que melhor clarificam a obra de
Pollock a partir – também - da teoria adorniana. Duarte é convincente ao dizer que Pollock
desvela as estruturas sociais de seu tempo não mais como tema, mas inscrevendo-as à
orientador são desveladas por Pollock não através de alegorias ou sinais, mas na tensão
Duarte realiza uma análise primorosa do desenho Guerra [War122, 1947], de Pollock.
Para o crítico, o artista cria uma massa “informal” no centro do quadro, à qual confronta
com figuras “formais” aparentemente criadas a partir das técnicas tradicionais de desenho,
geral operado pela razão instrumental e acentuado no capitalismo avançado, que destrói
existência do diverso.
Ainda que avançada, a técnica de tensionar massas formais e informais não era
Alfaro Siqueiros já havia feito isso antes. Em sua obra Suicídio Coletivo123 [1936], vemos na
parte inferior do quadro dois blocos opostos com figuras definidas. No bloco do lado
esquerdo, o grupo carrega armas mas está nu, em conflito sobre a pedra, com corpos
formação o grupo a cavalo, de corpo coberto e com elmos e lanças. Os blocos estão
reconhecíveis por alusão, remetem às guerras da colonização. Mas o que mais impressiona
nesta obra de Siqueiros é a indeterminação que perpassa toda a parte superior do quadro.
atmosfera sombria. É como se fosse impossível qualquer vida ali. Se Siqueiros era em vida
um stalinista, não podemos dizer a mesma coisa em arte, ao menos no Suicídio Coletivo.
Pollock, com seu ímpeto inovador, posteriormente desafiou ainda mais a figuração
estabelecida. Dois dos procedimentos técnicos radicais de Pollock foram o dripping (jogar a
tinta diretamente na tela, abdicando do pincel) e o all-over (pintar com a tela no chão em
vez de pendurada no cavalete); além disso, o artista absorve o material bruto da indústria
como material de sua própria obra. Assim, através da utilização de esmaltes metálicos e
vernizes de automóveis nas obras, e apesar de não-figurativas, elas “estouram” aos olhos
como uma densidade de tensões, mimetizadas das tensões da sociedade tecnológica diante
distopia industrial dessa mesma sociedade. É assim por exemplo no enorme Ritmo de
123 David Alfaro Siqueiros, Collective Suicide, 1936, laca em madeira com seções aplicadas, 124,5 x 182,9 cm.
MoMA, Nova Iorque.
124 Jackson Pollock, Autumn Rhytmn, 1950, esmalte sobre tela, 266.7 x 525.8 cm. Metropolitan Museum of
Art, Nova Iorque.
83
Desta vez o traço não serve nem para delimitar e discriminar, nem para
de Pollock são feridas no tecido social, e sua obra não apresenta delimitações claras, é
84
como se a obra explodisse para fora, e pudesse continuar a registrar as feridas sociais
mantém na obra pollockiana, e as sensações pictóricas que gera não estão no regime da
arte pela arte, e sim da arte que demonstra em si a ferida social que a sociedade burguesa
se esforça em esconder; outra força que opera nessas obras é a vontade criativa e violenta
progresso, explodir o continuum vazio e homogêneo da história 125.” Não é isto o exemplo
O debruçar-se sobre a obra do artista pode revelar muitas coisas interessantes. Meu
esforço aqui foi o de mostrar como a obra de Pollock não só é interessante, como pensava
Adorno, mas que possui várias características pelas quais primava o filósofo na arte
moderna: apropria-se de materiais industriais, tem preferência pelas cores escuras e expõe
gradativo, e determinadas obras de Pollock são mais abstratas do que outras. O Ritmo de
Outono não contém estritamente écritures, signos do real. Todavia, me parece que a própria
da dor social.
Mesmo naquilo que figura vaguement sob o nome de pintura abstracta,
sobrevive algo da tradição, que por ela foi eliminada; ela aplica-se
provavelmente ao que se percebe já na pintura tradicional, na medida em que
os seus produtos se concebem como quadros e não como cópias de alguma
coisa. A arte leva a cabo a decadência da concreção, em que a realidade não
quer consentir e na qual o concreto constitui apenas a máscara do abstracto, o
particular determinado, simplesmente o exemplar representativo e enganador
da universalidade, idêntico com a ubiqüidade do monopólio. A sua ponta
volta-se assim contra toda a arte tradicional. (ADORNO, Teoria Estética, p. 44)
126 “O que Adorno mostra é que a obra se torna signo – isto é, adquire sentido – não simplesmente pela
conexão com um quadro de convenções dadas historicamente, mas sim através da ruptura com qualquer
designação. Música e pintura se aproximam não por pseudomorfose, ou seja, não porque usurpam o medium
específico uma da outra, mas convergem ao levar às últimas consequências a recusa de formas previamente
dadas – tornam-se assim uma “écriture”, uma escrita da experiência da não-identidade.” PATRIOTA,
Theodor Adorno e a construção do modernismo artístico. Tese de doutorado em andamento, IFCH – Unicamp.
86
Capítulo VI - A atualidade dos conceitos de raiz adorniana para a crítica das artes visuais
consciente dos limites formais, Adorno defende uma pintura que tende a tensionar a
figuração, mas que preserva traços que remontam ao mundo concreto, já que é dele que a
arte retira seus materiais e temas. Esses traços, “escrituras”, para estarem de acordo com a
verdade histórica, devem ser receptáculos da dor socialmente compartilhada. Quero dizer
que a arte que expressa a verdade histórica é aquela que, enquanto expressão adequada da
dominação ao apresentar a crueldade sem disfarces. Isso não significa que essa arte deva
parece uma avenida movimentada, nonde figuram um carro, prédios, transeuntes e uma
cafeteria, coloridos de preto e marrom. Mais acima, a superfície branca aparece como
ruptura, no que parece representar a cisão entre ideal e concreto. Nessa parte elevada do
quadro, uma figura chama a atenção: uma mulher “ao estilo clássico” de frente para um
espelho. Essa mulher, deslocada de contexto, está acima do mundo concreto. Todavia,
desnaturada e espelhada, ela parece ameaçada. Na superfície branca estão à espreita uma
127 Robert Rauschenberg, Tracer, 1963, óleo e silk-screen sobre tela, 213,7 x 154,4 cm. The Nelson-Atkins
Museum of Art, Kansas City. O título Tracer parece remeter ao conceito químico de “marcador”, utilizado
para medir a pureza ou o grau de componência de determinadas substâncias nos compostos químicos.
Steinberg defende que a obra de Rauschenberg é um “marcador” distintivo na relação da pintura com o
espaço, instituindo a pintura flatbed. Ver: STEINBERG, Outros critérios [1972].
87
águia, dois helicópteros de guerra e dois poliedros. A águia, ave de rapina, é símbolo
tradicional do império americano, dos barões das grandes multinacionais que estão
sempre à espreita e não poupam esforços para maximizar a margem de lucro à revelia das
que retira as qualidades dos materiais em busca de uma pureza carente de conteúdo. A
mas também aos prédios e aos transeuntes concretos. A mediação entre o plano concreto e
o abstrato parece se dar pelas figuras de duas aves empoleiradas: quando em uma época
ser de baixo para cima: primeiro, a matéria urbana bruta da sociedade industrial; depois,
imagens sobre tela; coloca figuras diferentes em tensão; e apresenta a “participação nas
Esses são alguns elementos que, numa visão adorniana, tornam sua obra relevante.
artista contemporâneo que mais levou a sério esse compromisso foi o alemão Anselm
Kiefer. A obra de Kiefer opera como uma arte da memória e portadora da história, pois
alemão, e a consequência prática desse pensamento, que deu naquilo que nunca deve ser
reduzido e muito menos esquecido: o nazismo. Em Todos estão sob sua própria cúpula no
céu128 [1970], vemos um indivíduo reduzido vestido com trajes militares e fazendo a
saudação nazista; todavia, ele está envolto numa cúpula ou domo, aparentada a uma
pois para ele só existe a razão instrumental; faz parte de um mecanismo maior do qual é
mera engrenagem, e trabalha fielmente para obedecer a esse ideal: a nação. O sujeito
isso é negacionista e adepto das fábulas e grandes feitos, da narrativa nacional falsa,
enquanto a vida real – da qual ele não suporta a consciência - consiste em pessoas de
128 Anselm Kiefer, Everyone Stands Under His Own Dome of Heaven, 1970, aquarela, guache e grafite sobre
papel, 40 x 47,9 cm. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.
89
expressão”; comparada com o mundo à sua volta, ao nos depararmos com os túmulos
daqueles a quem os nazistas não consideravam seres humanos – mas que são pais ou avós
de muitas pessoas vivas - , fica claro que a saudação nazista deve ser motivo de vergonha
eterna.
Figura 29. Kiefer, Todos estão sob sua própria cúpula do céu, 1970
emerge uma cabeça decapitada. Se existe o espírito alemão e ele é ligado àquela terra, a
Segunda Guerra serviu para manchar o solo sagrado com o sangue do próprio espírito,
série Lillith130, inspirada na cidade de São Paulo, apresenta os grandes centros urbanos
sempre envolvidos por uma sombra persistente. É como se a própria sombra tornasse a
cidade inviável, fosse algo impregnado naquela paisagem. A sensação é de que seguimos o
de linha. Lilith é a imagem de uma história que nos levou à iminência da catástrofe, em
129 Anselm Kiefer, Winterlandschaft, 1970, aquarela, guache e grafite sobre papel, 43,2 x 35,9 cm.
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.
130 Anselm Kiefer, Lilith, 1987/1989, óleo, laca, chumbo, cinzas, papoula, cabelo e argila sobre tela, 380 x 560
cm. Coleção Hans Grothe.
91
foi um dos artistas recentes que melhor absorveu a ideia de “participação nas trevas” da
mímese negativa, e levou-a consigo por toda a sua obra. Em Tudo te é falso e inútil IV 131
[1992], vemos uma figura mórbida, imersa num ambiente de cores escuras, aparentemente
a conversar com uma sombra. Esse é o indivíduo desorientado, filho das grandes cidades,
sem objetivos, sem verdades, que não é capaz de dar vazão a seus próprios talentos,
vivendo uma solidão involuntária e uma existência sem sentido – falando para a própria
sombra. Iberê apropria-se do feio para fazer emergir na cara do espectador a miséria
outdoor feito por encomenda do Jornal Zero Hora, de Porto Alegre. No ano de 1983, o
131 Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil IV, 1992, óleo sobre tela, 200 x 236 cm. Fundação Iberê Camargo,
Porto Alegre.
92
jornal encomendou a artistas eminentes do estado do Rio Grande do Sul que realizassem
obras que seriam reproduzidas em outdoors pela cidade. Em seu outdoor, Iberê imitou o
Deus mais parece um demiurgo, e sua criação, um amontado de caveiras sobre fundo
obra de Iberê Camargo mostra como essa razão não só pode gerar, como gerou destruição:
cidade com otimismo. Feliz 1984.” É por levar a sério o desvelamento da crueldade que
quando travou contato com os desenhos de Alfred Kubin. Esse encontro teve impacto
Goeldi aprendeu com Kubin a composição de luz e sombra e preto-e-branco, mas não
imitou-o nem no desenho ondulado, nem na figuração onírica, muito menos no meio
universo dos sonhos, e sim a vida real do trabalhador nas grandes cidades do terceiro
mundo. Não um retrato otimista e heroico, como no realismo socialista 135, mas uma
um corpo agindo, o indício de um olhar, mas não uma pessoa propriamente individuada.
133 Para entender melhor a relevância internacional da gravura brasileira até hoje, há uma curta porém
incisiva entrevista com Leon KOSSOVITCH para o SESC-SP em 31/08/2012.
134 Oswaldo Goeldi, Briga de rua, 1926, xilogravura, 14 cm x 20,30 cm.
135 “Em 1953, quando [Carlos] Scliar e Danúbio [Gonçalves] viajaram à URSS, junto com uma delegação de
intelectuais do PCB, e apresentaram aos membros da Academia de Belas Artes da URSS a produção do
Clube de Gravura de Porto Alegre, foram criticados pelo aspecto decorativo relacionado ao regionalismo. De
acordo com a diretriz socialista, o trabalhador deveria ser desenhado em ação, na luta, com expressão
otimista, confiante.” Bianca KNAAK e Talita MOTTER, O real socialismo nas impressões artísticas do Clube de
Gravura de Porto Alegre: engajamento e dispersão [2013], p. 58.
95
Essa desindividuação não é mentirosa: a sociedade da mercadoria, que iguala tudo e todos
em massa; as figuras negras de Goeldi, carentes de futuro, sem heroísmo, sem expectativa
e, formalmente, sem luz, são mais verdadeiras do que as apologias muralescas da classe
Renina Katz foi outra importante artista que, num primeiro momento de sua
anos 1970, interessa-se por tendências ditas “abstratas”. Na litografia O tempo e o vento136
136 Renina Katz, O tempo e o vento, 1994, litografia sobre papel, 61 cm x 40 cm. Coleção da artista.
96
[1994], encontramos uma expressão muitíssimo forte: eu diria até sublime. As cores
deixaria admirado até o próprio Paul Klee. As linhas das matrizes interpenetram-se,
continuando suas trajetórias, mas em outras cores e volumes. A tensão do quadro parece
nunca resolver-se. Insinuando tempestade, cachoeira, lava ou o que quer que seja, Renina
Katz quer insinuar o movimento primordial, para além de nossa apreensão completa: as
articulam a crítica de artes visuais com conceitos de raiz adorniana, excetuando aqueles
Duarte, que acompanhou a reflexão sobre Pollock no capítulo anterior, e cujos méritos já
foram destacados. No entanto, o único autor que parece tomar para si os conceitos
adornianos para versar especificamente sobre pintura, faz deles os fios condutores de suas
estadunidense Jay Martin Bernstein. Discutiremos aqui dois de seus textos, nos quais
reivindica a teoria estética de Adorno para ir além do próprio texto: em suma, realizar
propriamente crítica de pintura. São eles: “A demanda pela fealdade”: corpos de Picasso [2010]
quadro Les Demoiselles D’Avignon como uma virada axial (axial rotation) na arte moderna.
Para Bernstein, o quadro de Picasso, pela primeira vez, deu hegemonia aos objetos, e
consequentemente aos corpos; desse modo, os objetos e corpos emergem nas obras –
também – em toda a sua fealdade. Essa é a virada axial que torna possível as Demoiselles.
Bernstein ainda defende que, em Adorno, a fealdade em sua completude apresenta quatro
dor; todas essas características reagem contra o sistema de beleza estabelecido – projeção
Para Bernstein, a fealdade faz aparecer tudo aquilo que o sistema formal quer
Demoiselles.
O Modernismo é a operação da dialética negativa na arte; é que a prática
artística critica a racionalidade abstrata, permanecendo um repositório para
uma racionalidade - mimética - alternativa. O Modernismo torna-se assim a
voz da particularidade sensível contra a abstrata racionalidade. (BERNSTEIN,
“A demanda pela fealdade”, p. 213138, tradução nossa)
arte e na sociedade, se dá por meio da parataxe 139. Esse mecanismo consiste em colocar ao
lado, e sem conectivos, duas ou mais coisas diversas. Na pintura, isso se dá na justaposição
137 “Les Demoiselles d’Avignon mobilizes all four theses on ugliness— protesting repressive harmony through
dissonance, promoting artistic advance, the return of the archaic repressed, the expression of suffering—in
its ambition of expressing the primitive and irresolvable ambiguity of human sexuality, where human
sexuality is taken, via the beauty system, to be internally related to the very idea, the formal logic of modern
painting.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p. 225.
138 “Modernism is the operation of negative dialectic in art; it is that art practice that criticizes abstract
rationality by remaining a repository for an alternative—mimetic—rationality. Modernism thereby becomes
the voice of sensuous particularity against abstract rationality.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p.
213.
139 Me parece que a escrita filosófica de Adorno, cujo testemunho exemplar é a Dialética do Esclarecimento,
também se move por parataxe: frases densas de conteúdo que chocam-se entre si, e cuja mediação não é
conectiva, e sim no próprio fluxo do livro e da consciência de quem o acompanha na leitura.
99
mecanismo capaz de dar voz aos objetos, livres de relações anteriormente a eles
Bernstein defende que, nas Demoiselles e após o cubismo, Picasso deixa o objetos
140 “My hypothesis here is that Picasso deploys what is best thought of as the painterly equivalent of
parataxis in order to accomplish this systematic disordering, a disordering into a new conception of pictorial
order. Literally, parataxis is a form of syntax in which semantic units—words, clauses, sentences, paragraphs
—are ordered by sheer juxtaposition rather than through logical/conceptual subordination that is signposted
by the familiar connectives of hypotactic syntax: if x, then y; x because y; x necessitates y; and so on. With
parataxis there are just the items set next to one another—xy—with the character of their relation to be
elicited through reflective consideration of their respective semantic/material contents. Adorno argues for
parataxis being one of the central mechanisms of modernist art since it opens up the possibility of a different
relation between concept and object, unity and multiplicity.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p. 226-
7
141 “Let me begin by considering a small but obvious instance of Picasso’s paratactic procedure: the far left
figure’s left hand, which appears to float disconnected above her head, without the—organizing, syntactical
—mediation of arm length and distance.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p. 229.
100
geometrismo puro, e por isso retorna à expressão do horror, cujo resultado mais conhecido
é Guernica. Todavia, como já foi tratado no capítulo sobre Picasso, Adorno notava
às obras, dando-as uma concretude inédita. Ao que me parece, Adorno concordaria com a
análise da fealdade nas Demoiselles, mas não poderia concordar com a opinião da
precursores.
No entanto, esse movimento de comparar a fonte textual e seus usos serve somente
para demarcar qual é o pensamento estritamente do autor original, e onde começa a obra
e original, por exemplo, sua hipótese de que as Demoiselles operam no registro hegeliano
da dialética do senhor e do escravo 143, dando vazão à expressão potente do que era
reprimido (o escravo), que faz tremer a estrutura dominante que não permitia a si mesma
142 “Cubism’s intended divorce from the shadows of a forever private subjectivity is what called up the
claim that it was to be the true language of painting, painting’s own autonomous language.” BERNSTEIN,
“The demand for Ugliness”, p. 215.
143 Ver: HEGEL, Fenomenologia do Espírito.
101
Esse ímpeto de partir de um autor para alcançar um objeto outro, ou propor mais
trabalho que até agora levou mais longe os conceitos e a abordagem adornianas para a
análise de objetos que não foram particularmente tratados pelo filósofo, a saber, as obras
do expressionismo abstrato. Mais uma vez, Bernstein realiza uma crítica de inspiração
adorniana, já que não leva em conta as preocupações e críticas que Adorno teceu sobre
essas tendências. No entanto, acredito que ele tenha obtido alguns êxitos, ao defender
objetos, quer dizer, as obras do expressionismo abstrato. Para ele, assim como para
operar num registro diverso do da mera empiria, coloca os problemas dessa realidade e,
e impotência no sistema fechado. Para Bernstein, todo esse processo de contestação dos
abstrato como sua consequência mais avançada. Como Adorno não tratou com
“europeísmo”. Ora, apesar de não ter formação e prática em advocacia, não posso
concordar com essa acusação. Como tratado no capítulo sobre Pollock, Adorno via sim
144 “Picasso manages to make the Demoiselles a moment of radical self-consciousness on the part of the
viewer because the painting operates a systematic dismantling of the viewer’s self-possession [...]. Les
Demoiselles D’Avignon is indeed primitive, but primitive the same way that Hobbes’s state of nature is
primitive, or even the way Hegel’s struggle for recognition is primitive, terminating in the dialectic of master
and slave. In this painting is revealed the source of the slave’s power over her master; and here, for the first
time perhaps in modern painting, the master shudders, quakes, even collapses. So we come to self-
consciousness in the experience of an absolute otherness. Painting can thus begin again.” BERNSTEIN, “The
demand for Ugliness”, p. 239.
102
mais terrível e verdadeiro, não correrão o risco da abstração completa; por certo,
assim, por exemplo, em Pollock. Ao que parece, Bernstein esperava alguma declaração
heroica sobre expressionismo abstrato por parte de Adorno; é a mesma coisa que esperar
que o filósofo tire Schönberg de seu panteão e coloque John Cage – para falar de um
estadunidense - no lugar; isso não significa que Adorno não estivesse acompanhando
desencantamento ainda maior da arte146.” Ora, não é exatamente isso que torna essa arte
concreta e não descolada da realidade? Ainda assim, a crítica de pintura realizada por
Bernstein, em outros aspectos, me parece muito convincente. Destaco aqui três quadros
145 Ver: ADORNO, Vers une musique informelle. E também SOCHA, Música informal: perspectivas atuais do
conceito adorniano [2018] e DURÃO, Duas formas de se ouvir o silêncio: revisitando 4’33” [2005].
146 BERNSTEIN, Adorno e o expressionismo abstrato, p. 87
103
147 Willem de Kooning, Excavation, 1950, óleo sobre tela, 205,7 x 245,6 cm. Art Institute of Chicago.
104
148 Jackson Pollock, Lavender mist number I, 1950, óleo, esmalte e alumínio sobre tela, 221 x 299,7 cm. Galeria
Nacional de Arte, Washington.
149 Barnett Newman, Vir heroicus sublimis, 1951, óleo sobre tela, 242,2 x 541,7 cm. MoMA, Nova Iorque.
105
como reveladora e inimiga, pela sua forma, das estruturas repressivas da sociedade. O
expressionismo abstrato, em sua liberdade de ainda ser arte e não vida, apresenta a
ao desenvolvimento da pintura e precisa ser superado para que a arte prossiga, Bernstein
defende que esse tipo de arte protesta em todas as instâncias possíveis a favor do
artístico, tornando-o “vulgar”. Por isso, para Bernstein, o expressionismo abstrato não é
um entrave, mas sim o ponto mais avançado de desenvolvimento das tensões e promessas
desindividuação.
O que está em questão nestes "gestos de negação" [do expressionismo abstrato]
é o próprio significado da abstração, e portanto do custo envolvido na
superação do desencantamento da arte e do mundo pela sua continuação — ou
seja, por um trabalho ainda maior de negações do desencantamento. A arte não
pode evitar o desencantamento progressivo do mundo, ocorrido fora da arte;
se tentasse alcançar autenticidade e autoridade por si própria, invocando
deuses e significados mortos para dentro de seus domínios, seria corretamente
acusada de ingenuidade ou anacronismo. (BERNSTEIN, Adorno e o
expressionismo abstrato, p. 94)
sensível: o rasgo, a espiral, a cor, etc. Com isso concordaria Adorno já nos anos após a
Segunda Guerra:
Emancipando-se, o detalhe tornara-se rebelde e, do romantismo ao
expressionismo, afirmara-se como expressão indômita, como veículo do
protesto contra a organização. O efeito harmônico isolado havia obliterado, na
música, a consciência do todo formal; a cor particular na pintura, a composição
pictórica; a penetração psicológica no romance, a arquitetura. (ADORNO &
HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 104)
Esse particular sensível – que tem uma história, mesmo que seja na negação das
estruturas tradicionais da pintura - é que articula a obra com a própria história da arte, e
todo caótico da totalidade da obra. Por isso, na esteira da interpretação de Claudio Duarte,
acredito que, no expressionismo abstrato, não são as particularidades sensíveis das obras
que se emancipam, mas a própria obra como um todo é uma particularidade sensível
caótica: eis um momento no qual, mesmo sem ter utilizado o termo, Bernstein concordaria
concreto.
A crueldade da abstração, seu cortar a carne da sensibilidade a fim de
representar tal sensibilidade, remete-nos às bases de nossa mortalidade
corporal, que os universais reinantes eclipsam como condição para o
significado. A inquietude, a angústia, o sofrimento da superfície material — e
apenas isso — que estas telas representam (em e para nós) são uma maneira de
rememorar a realidade sensível e dar-lhe voz em suas espirais mortais, de
rememorar ou inventar uma experiência de profundidade ou transcendência
que se prende a nada mais que ao fato de habitarmos um mundo material em
que todas as coisas perecem. (BERNSTEIN, Adorno e o expressionismo abstrato,
p. 96)
107
É preciso confrontar
as ideias vagas
com imagens claras
GODARD em La Chinoise
Acredito que o critério de avaliação das obras de arte consiste em, dada a
construções artísticas mesmas. Quero dizer, o crítico deve localizar, em seus objetos de
análise, tendências de interesse, mas também de retrocesso. Para isso, é necessário algum
repertório conceitual, em relação dialética com a observação atenta. “Para ser objecto de
uma experiência total, toda a obra de arte exige o pensamento e, por conseguinte, a
filosofia, a qual nada mais é do que o pensamento que não se deixa travar 150.” Com os
avanços da pintura moderna - cada vez mais cifrada - todavia, essa aproximação objetiva
da crítica se dá muito mais pela tensão entre conhecimento técnico e intuição livre sobre as
obras do que por uma crítica que se almeje científica. É preciso que o crítico, a partir da
obra, possa criar hipóteses. É isso que faz Bernstein, por exemplo. Afinal, o exato nem
Dar voz ao objeto, ao material, e fazer dele emergir a ideologia e a verdade: eis a
função do crítico social ou de arte, a de ler o livro do mundo. Foi isso que aprendi como
Adorno, aquele que, radicalmente, conduz esse procedimento para a teoria e para a
linguagem mesma da expressão filosófica. Seus escritos são muito mais uma plataforma de
voo para pensar a modernidade, do que a própria aeronave. Rauschenberg e Renina Katz,
dela). E as produções desses dois artistas são dignas de interesse. O tempo e o vento, de
Renina Katz, está comemorando 25 anos. Nesse tempo, o que se tem produzido que seja
digno de nota?
entre esses métiers era clara: por isso eram considerados polímatas. Porém, desde pelo
menos Picasso com suas esculturas, e também os fantoches de Klee, esse movimento de
expansão para fora do quadro acentuou-se. “A pintura, por outro lado, não se contenta
espacial, invade o espaço151.” Marcel Duchamp foi pioneiro na arte da instalação, que hoje
em dia muitas vezes confunde-se com a própria arquitetura. Pollock conseguiu confundir
contra o próprio conceito de obra. Entretanto, mesmo que o conceito de obra esteja sob
“coisa” como ruptura abrupta com o paradigma moderno e abertura para novos
de arte. Não considero lá muito frutífera a discussão sobre o “pós-modernismo”. Uma das
confundem-se não por simples transposição de meios, mas por necessidade intrínseca de
derivados, deixamos muita coisa sem ser dita. Uma análise completa da imagem
contemporânea consistiria numa imersão em searas como arte digital e “arte de rua” –
pensemos em Basquiat ou Banksy - só para começar. Uma análise mais ampla das artes
plásticas em geral incluiria também tudo que sai da tela, como instalações, vídeo-
movimento para fora do quadro, ao que me parece, nunca foi tão intenso como agora.
Figura 40. Rodrigo Andrade, Pequena ponte de pedra com arbusto à noite153, 2011
152 Já há alguma especulação no sentido de uma crítica de inspiração adorniana para o happening. Ver:
HUSSAK, Adorno e o Happening [2013].
153 Rodrigo Andrade, Pequena ponte de pedra com arbustos à noite, 2011, óleo sobre tela sobre mdf, 120 x 180
cm.
110
Há também um outro elemento que advém como condição dessa “crise” da pintura:
o atual estado do mercado de arte. No Brasil, por exemplo, para ter circulação e
vendagem, os artistas precisam se sujeitar a pelo menos alguns critérios das grandes feiras
de arte, que praticamente centralizam esse mercado nesse país. Com o mercado
centralizado, artistas que não se adequam aos critérios dos principais dealers, acabam
produzindo de forma atomizada, por vezes com restrições materiais e, por isso, com maior
dificuldade de circulação. Apesar disso, algumas coisas boas emergem mesmo no meio
das grandes feiras. Entre gravura e pintura, e muitas vezes além disso, Rodrigo Andrade é
um grande artista.
financiamento para a produção de uma arte sem fins lucrativos. Não quero romantizar o
passado e diminuir os esforços de quem veio antes: todo artista de vanguarda enfrentou
resistência, e isso por vezes acarretou em miséria material – aqui o alto grau de empatia do
estudante de filosofia. Quero aqui situar o estado das coisas e evidenciar os nossos
problemas de agora. Essencialmente, a arte ainda luta para realizar o seu ideal: o da livre-
se porventura sua crítica é vista como algo que traz interessa à obra, ela agrega valor.
154 Sem que se esqueça da história do sofrimento compartilhado. “Mesmo num futuro lendariamente
melhor, a arte não deveria renegar a lembrança dos terrores acumulados, de outro modo, vã seria a sua
forma.” ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 492.
111
CONCLUSÃO
Com esse trabalho, espero ter dado conta de tratar das reflexões adornianas sobre
pintura. Não existem propriamente critérios de análise no discurso adorniano, e sim uma
obras de arte. Entretanto, alguns aspectos são destacados por Adorno e aparecem de modo
recorrente: aqueles que situam as obras em seu próprio tempo, e realizam o elo entre o
particular e o universal. A arte, enquanto algo separado do meio social, porém resquício
possibilidade outra de se viver no mundo. Se a obra deve ser tomada como um todo coeso,
não podemos separar forma de conteúdo; desse modo, a expressão artística deve conjugar
a técnica e a ideia mais avançadas de determinada época. É talvez por isso que Adorno
inovações incessantes, está no âmago de suas reflexões. A busca pelo novo pode ser
Por sua vez, o desejo pelo novo não pode recair em positivismo. Para Adorno, a
história da arte não caminha cronologicamente, mas sim por negação determinada em
relação às obras particulares. Algumas obras de arte mais antigas, dotadas de elementos
que por vezes passaram despercebidos em sua época, podem vir à tona posteriormente,
112
que obras temporalmente mais próximas das novas. Essa história da arte não-cronológica,
preocupada mais com as próprias obras do que com sua recepção, é uma história dialética
da arte.
técnicas e temas da indústria avançada, como elementos que situam as obras pictóricas em
exemplares dessa época são Paul Klee e Pablo Picasso, frequentemente evocados em
Para Adorno, toda obra de arte diz (ou deve dizer) respeito ao concreto, pois é da
realidade objetiva que a arte retira seus temas e materiais; desse modo, a expressão “arte
abstrata” perde validade crítica. Adorno protesta contra a abstração que, para ele, não
conteria “escrituras”, inscrições do sofrimento, e desse modo não teria mais nenhuma
capitalismo tardio. Tudo isso está impregnado na própria forma dessa pintura, realizada
Em seu importante artigo, Alvaro Valls155 conclui que a teoria estética de Adorno, ao
155 Ver: VALLS, A presença/ausência dos artistas plásticos na “teoria estética” de Adorno.
113
encontramos caminhos avançados, para além disso. É preciso entender que a teoria
heroico, de onde retira seu panteão de grandes artistas. No entanto Adorno, ligado ao
espírito do moderno, estava em contato com as inovações de seu tempo. Por exemplo, ao
dizer que a pintura tende a sair do quadro - tendência inaugurada no cubismo sintético – o
Quando defendo que a crítica de arte de raiz adorniana está alinhada com a teoria
filosófica do autor, não pretendo fechar caminhos críticos, e sim abri-los. Em resumo, a
teoria de Adorno consiste num grande diagnóstico de época, no qual realiza a crítica da
natureza e na arte. Sua filosofia é em prol da liberdade, contra qualquer tipo de coação
exterior. E a arte é um dos únicos âmbitos existentes que, por estar separada da empiria,
ainda pode ser portadora da utopia de um mundo livre. Como Zaratustra, Adorno não
pretendia ser seguido, e sim inspirar a emancipação em seus leitores. Acredito que o
mesmo aconteça com os críticos de arte. Como Cláudio Duarte e Jay Bernstein, o caminho
mais frutífero é o da crítica emancipada, abastecida muito mais pelo espírito adorniano do
que propriamente por sua letra. A teoria de Adorno oferece muitos elementos para
entender o mundo e a arte hoje: não todos. Junto das obras relevantes, é preciso ler o livro
do mundo. Uma atitude propriamente filosófica, do pensamento que não se deixa travar.
114
A cultura é a regra,
a arte é a exceção
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