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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ALBERTO JOSÉ COLOSSO SARTORELLI

Adorno e a pintura:

mapeamento crítico

CAMPINAS

2019
ALBERTO JOSÉ COLOSSO SARTORELLI

Adorno e a pintura: mapeamento crítico

Dissertação apresentada ao Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Estadual de Campinas como

conclusão dos requisitos exigidos para a

obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientadora: TAISA HELENA PASCALE PALHARES

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA

DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO ALBERTO JOSÉ

COLOSSO SARTORELLI, E ORIENTADO PELA PROFA DRA

TAISA HELENA PASCALE PALHARES.

CAMPINAS

2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Sartorelli, Alberto, 1994-


Sa77a SarAdorno e a pintura : mapeamento crítico / Alberto José Colosso Sartorelli. –
Campinas, SP : [s.n.], 2019.

SarOrientador: Taisa Helena Pascale Palhares.


SarDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Sar1. Adorno, Theodor W., 1903-1969. 2. Pintura. 3. Estética. 4. Teoria crítica.


5. Arte - História. I. Palhares, Taisa Helena Pascale, 1974-. II. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Adorno and painting : critical mapping


Palavras-chave em inglês:
Painting
Aesthetic
Critical theory
Art - History
Área de concentração: Filosofia
Titulação: Mestre em Filosofia
Banca examinadora:
Taisa Helena Pascale Palhares [Orientador]
Pedro Hussak van Velthen Ramos
Rafael Rodrigues Garcia
Data de defesa: 25-11-2019
Programa de Pós-Graduação: Filosofia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-3028-0571
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/6652660190202043

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta

pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 25/11/2019,

considerou o candidato Alberto José Colosso Sartorelli aprovado.

Profa. Dra. Taisa Helena Pascale Palhares

Prof. Dr. Pedro Hussak van Velthen Ramos

Prof. Dr. Rafael Rodrigues Garcia

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de

Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.


Dedico esse trabalho para o meu pai (in memoriam), que tinha o sonho de

me ver formado na faculdade; e para a minha mãe, que por muitas vezes

trabalhou mais de doze horas por dia para que eu pudesse me dedicar

integralmente aos estudos. Não há retribuição possível, nem valor que se

meça: amor.
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, quero agradecer profundamente à minha orientadora Taisa Palhares,

que com vasto conhecimento, conjugado de atenção e compreensão - qualidades muito

raras dentro do atual maquinismo acadêmico - foi de importância inestimável para a

confecção desse trabalho. Devo todos os méritos dessa dissertação à Taisa; os deméritos

são de minha responsabilidade.

Gostaria de agradecer também aos colegas do GEETA (Grupo de Estudos em Estética e

Teoria da Arte), pela interlocução, escuta e convivência frutífera. A vocês, meu mais

sincero muito obrigado.

Esse trabalho se deve muito à existência de instituições de ensino, pesquisa e extensão, e

de bibliotecas públicas. Quero agradecer especialmente aos funcionários do IFCH-

Unicamp: da limpeza, informática, biblioteca, Secretaria de Pós-Graduação em Filosofia, e

todos os outros que trabalham diariamente para proporcionar aos alunos e pesquisadores

um ambiente saudável; e também aos funcionários das bibliotecas da FFLCH-USP, MAC-

USP, EESC-USP, IEL-Unicamp e IA-Unicamp, que tiveram os acervos consultados para

essa pesquisa.

Agradeço de maneira destacada à FAEPEX, cujo financiamento foi vital para a conclusão

desse trabalho. Com essa dissertação, espero dar testemunho da importância do

financiamento público em pesquisa, tão ameaçado hoje em dia.

Para além do âmbito acadêmico, sou infinitamente grato aos amigos que, em diversas

circunstâncias, me ajudaram a suportar a existência e a levar a vida de maneira mais leve.

Transformada em simulacro pelos burocratas, contrapomos o espírito primevo da filosofia:

especulação infindável e a busca de uma arte de viver.


O burguês deseja

que a arte seja voluptuosa

e a vida ascética;

o contrário seria melhor.

TEORIA ESTÉTICA

Não há mais beleza nem consolo

exceto no olhar que vai até o cinzento,

o enfrenta

e mantém a possibilidade do melhor

na consciência não abrandada da negatividade.

MINIMA MORALIA
RESUMO

Este trabalho pretende mapear, na obra do filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969),

as linhas que versam especificamente sobre pintura; quero mostrar como as poucas linhas

que Adorno dedicou à pintura são coerentes diante da teoria filosófica do autor, e

continuam sendo um campo vivo de investigação e fortuna crítica, de grande valor para a

decifração da arte contemporânea.

Palavras-chave: Adorno; pintura; Estética; História da Arte; Teoria Crítica


ABSTRACT

This work intends to map, in the work of the German philosopher Theodor Adorno (1903-

1969), the lines that deal with painting; I want to show how the few lines devoted to

painting are consistent with the Adorno’s philosophical theory, and remain a living field

of investigation and critical fortune, of great value for the decipherment of contemporary

art.

Keywords: Adorno; painting; Aesthetic; History of Art; Critical Theory


LISTA DE FIGURAS

Figura 1. David, Marat assassinado, 1793 20

Figura 2. Courbet, Os quebradores de pedra, 1849 21

Figura 3. Pissarro, A colheita do feno, 1887 21

Figura 4. Klee, Pássaros descendo e setas, 1919 35

Figura 5. Klee, Angelus Novus, 1920 43

Figura 6. Klee, Máquina de gorjeios, 1922 44

Figura 7. Picasso, Les demoiselles D’Avignon, 1907 49

Figura 8. Ingres, A banhista de Valpinçon, 1808 50

Figura 9. Manet, Olympia, 1863 51

Figura 10. Picasso, Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler, 1910 53

Figura 11. Gris, Café da manhã, 1914 54

Figura 12. Picasso, Guernica, 1937 55

Figura 13. Picasso, Massacre na Coréia, 1951 57

Figura 14. Manet, O suicida, 1881 61

Figura 15. Van Gogh, A igreja de Auvers, 1890 63

Figura 16. Masson, Pasiphaë, 1945 64

Figura 17. Masson, Empregadas da cozinha, 1962 65

Figura 18. Kandinsky, Curva dominante, 1936 68

Figura 19. Klimt, Morte e Vida, 1915 70

Figura 20. El Greco, Laocoonte, 1614 71

Figura 21. Turner, Tempestade de neve, 1842 72

Figura 22. Courbet, A truta, 1873 73

Figura 23. Wols, Sim, sim, sim, 1947 75

Figura 24. Schultze, Rifrost, 1958 76

Figura 25. Pollock, Guerra, 1947 80

Figura 26. Siqueiros, Suicídio Coletivo, 1936 81

Figura 27. Pollock, Ritmo de outono, 1950 83

Figura 28. Rauschenberg, Tracer, 1963 87


Figura 29. Kiefer, Todos estão sob sua própria cúpula do céu, 1970 89

Figura 30. Kiefer, Paisagem de Inverno, 1970 89

Figura 31. Kiefer, Lillith, 1987-89 90

Figura 32. Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil IV, 1992 91

Figura 33. Iberê Camargo, Panfletário talvez, omisso não, 1983 92

Figura 34. Alfred Kubin, Medo, 1903 93

Figura 35. Goeldi, Briga de rua, 1926 94

Figura 36. Renina Katz, O tempo e o vento, 1994 95

Figura 37. De Kooning, Excavation, 1950 103

Figura 38. Pollock, Lavender mist number I, 1950 104

Figura 39. Newman, Vir heroicus sublimis, 1951 104

Figura 40. Rodrigo Andrade, Pequena ponte de pedra com arbusto à noite, 2011 109
SUMÁRIO

PLANO GERAL DA DISSERTAÇÃO 13

APRESENTAÇÃO 14

INTRODUÇÃO – Considerações gerais sobre pintura 19

Parte I – A PINTURA CIRCUNSCRITA

Capítulo I – Klee, pintura em movimento 32

Capítulo II – Subversões de Picasso 48

Capítulo III – Outros modernos 58

Parte II – COM ADORNO, E ALÉM

Capítulo IV – Desafios da abstração: Pollock 74

Capítulo V – A atualidade dos conceitos de raiz adorniana para a 86

crítica das artes visuais

Excurso I – Estado da arte: sobre Jay Bernstein 97

Excurso II – Nota sobre crítica, modernismo e indústria da arte hoje 107

CONCLUSÃO 111

BIBLIOGRAFIA 115
13

PLANO GERAL DA DISSERTAÇÃO

A APRESENTAÇÃO visa a exposição inicial ao leitor do tema da dissertação, a

saber, os elementos referentes à pintura na obra de Theodor W. Adorno.

Na INTRODUÇÃO apresentarei os conceitos gerais da estética de Adorno, acerca

da arte em geral e de sua relação com a pintura em particular, situando-a em sua teoria da

arte moderna.

A PARTE I da dissertação tratará especificamente dos pintores aos quais Adorno

faz alguma referência, que estão quase que em sua totalidade situados temporalmente na

chamada modernidade artística. Os dois primeiros capítulos serão dedicados a Paul Klee e

Pablo Picasso, pois são os pintores mais citados por Adorno e em cujas obras o autor se

concentrou mais detidamente. Já o Capítulo III tratará de outros pintores citados na obra

adorniana, como Van Gogh, Dalí e principalmente Manet e Kandinsky.

Na PARTE II avançaremos do “modernismo heroico” para fenômenos mais

próximos de nossa época no registro pictórico. O Capítulo IV tratará principalmente do

expressionismo abstrato estadunidense na figura de Jackson Pollock. O Capítulo V tratará

da possibilidade de se partir da estética adorniana para a crítica de pintura. Trataremos de

artistas como Rauschenberg, Kiefer, Iberê Camargo e Renina Katz.

No EXCURSO I tratarei do estado da arte, quer dizer, dos autores que se utilizaram

de conceitos adornianos para realizar críticas no campo das artes visuais. O mais

destacado deles é Jay Bernstein, em cuja obra me concentrarei.

O EXCURSO II é uma nota sobre a crítica de arte de raiz adorniana, sobre a

discussão acerca do modernismo, e sobre o alcance da indústria da arte nos dias de hoje.

A CONCLUSÃO, como se sabe, não passa de uma retomada da trajetória da

dissertação.
14

APRESENTAÇÃO

“Pois bem, aqui chegamos ao ponto em que tenho que reconhecer, com efeito,

minha incompetência técnica em questões de pintura 1.“ [tradução nossa] Essa declaração foi

proferida pelo filósofo alemão Theodor W. Adorno em sala de aula, no curso de Estética

que ofereceu em Frankfurt no inverno entre 1958 e 1959. Declaração sintomática, pois nas

obras do filósofo sobre Estética encontramos poucas menções a pintores, e menos ainda a

quadros específicos. Em seus textos de estética musical, teoria e crítica de música quase

que se conjugam, já que o autor possuía profundo conhecimento da forma musical. Suas

menções acerca da pintura são na maior parte das vezes estritamente genéricas, em sua

maioria destacadas em regime de comparação com a música ou a literatura. Todavia, nos

atentemos: são poucas as menções, o que é diferente de nenhuma. Na verdade, Adorno

preocupava-se também com o futuro da pintura de seu tempo. O percurso da investigação

me convenceu de que o filósofo possuía alguma instrução em teoria e história da pintura,

mas não muito mais do que uma pessoa de boa formação em sua época 2. Quer dizer,

estava distante de ser um especialista, como era em música e literatura. Nesta pequena

seara que se apresenta, a saber, as poucas linhas que Adorno dedicou à pintura, são

maioria e encontramos maior riqueza de ideias nos escritos que se debruçam sobre a obra

dos pintores do chamado modernismo artístico. Suas interpretações de Klee e Picasso são

diretamente influenciadas por sua relação de interlocução com o galerista e crítico de arte

franco-germânico Daniel-Henry Kahnweiler3, a quem dedica os textos Aqueles anos vinte

[1962] e Algumas relações entre música e pintura [1965]. Se Adorno não era um especialista

em pintura, isso não significa que sua obra não contenha nenhuma contribuição ao debate

das artes pictóricas.

1 “Ahora bien, aquí se alcanzó el punto en el que tengo que reconocer, en efecto, mi incompetencia técnica en
cuestiones de pintura.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 406.
2 É sabido que, de volta a Frankfurt nos anos 1950, Adorno possuía em sua casa um original de Wotruba e
impressões de obras de Klee, Picasso, Schultze e Hartung. Ver: MÜLLER-DOOHM, Adorno: a biography
[2003], p. 347.
3 Ver: ADORNO, Estética 1958/9, p. 390.
15

A obra adorniana, em sua totalidade, é um grande diagnóstico de época. Confunde-

se com o próprio ímpeto da Teoria Crítica, que buscava constituir uma teoria nova,

interdisciplinar e de abordagem materialista, adequada para o século XX. Adorno

reivindicava Kant, pois não pode abrir mão da autonomia da razão e do pensamento;

Hegel, pois a forma dialética de pensar é a que melhor dá conta da complexidade do

mundo que se apresenta; Marx, pelo diagnóstico preciso em registro materialista da

estrutura do capital e aquilo que dela resulta, adentrando aos mais variados âmbitos da

vida; Nietzsche, que foi um voraz crítico da razão; Weber, pelo conceito de

desencantamento do mundo; Lukács, por notar no romance moderno a perda da

experiência e a ausência de sentido da vida; e Freud, por começar a desvendar os mistérios

da psiquê. Essa miscelânea de referências interdisciplinares, assimiladas em seus

momentos de verdade, faz com que os textos de Adorno sejam um campo vivo de

possibilidades de entendimento do mundo, ainda hoje.

A teoria adorniana apresenta duas novidades 4: os conceitos de razão instrumental e

indústria cultural, que serão muito importantes neste trabalho. O Iluminismo, expressado

especialmente através da Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa,

entendia o uso da razão como naturalmente emancipatório, aquilo que traria luz às trevas

e conduziria a todos em direção ao conhecimento e ao bem geral. Todavia, há um sem

número de episódios da história da humanidade a evidenciar que, mesmo reivindicando

um ideal de racionalidade, foram cometidos atos execráveis, abjetos, profundamente

desumanos. Que palavras descrevem um genocídio? Adorno e Horkheimer notaram que

existe uma dialética intrínseca ao próprio conceito de razão: a razão pode, sim, ser

utilizada para a emancipação, mas pode também ser utilizada para a dominação. Nesse

segundo registro, a razão serve somente para realizar operações lógicas, sem preocupar-se

com as qualidades e com as mais valorosas das finalidades: a realização da liberdade e da

felicidade humana. Essa razão, instrumental, é tão abstrata quanto a lógica formal que lhe

serve de antecâmara; quando utilizada para a gestão de seres humanos, desumaniza-os,

transformando-os em estatística; só desse modo, metamorfoseada em coisa utilitária a

4 Ver: ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento [1947].


16

esquecer-se dos fins que lhe deveriam ser inerentes, a razão pode ser violenta. E foi essa

face da razão, a instrumental, que se tornou historicamente hegemônica, ao menos naquilo

que conhecemos pelo nome genérico de civilização ocidental. Para Adorno, o nazismo não

pode ser explicado somente pelas patologias desenvolvidas no mais íntimo do povo

alemão e em seus líderes, mas também pelo uso instrumental da razão – no Direito, na

propaganda, na arte oficial e na própria organização da máquina de guerra nazista - para

perpetrar um genocídio. Uma razão utilizada unicamente para eliminar o diverso.

O capitalismo avançado, do qual o nazismo não é uma anomalia mas sim uma

consequência de suas contradições, é profundo devedor da instrumentalização da razão,

que possibilitou à forma-mercadoria5 que se apropriasse cada vez mais e alcançasse o

âmago de todas as produções do mundo globalizado, inclusive da cultura: paulatinamente

a cultura foi se tornando mercadoria. Os produtos culturais em escala industrial passam

pela divisão social do trabalho, ou seja, não são mais fruto de profunda autonomia

artística; são feitos a partir do paradigma da vendabilidade, quer dizer, são produtos feitos

para vender, e não necessariamente construções autônomas sem finalidade utilitária. A

mesma máquina industrial que produz a mercadoria cultural (ou assimila aquelas que lhe

interessam), também publiciza, veicula, agrega valor através da crítica e, por fim, vende a

mercadoria cultural supervalorizada aos consumidores através dos mais diferentes meios

e das mais diversas abordagens. Mesmo produções que contrariam os clichês que

garantem a vendabilidade em massa são assimiladas enquanto mercadorias e vendidas

para uma clientela distinta, cult. Afinal, até os críticos do sistema são consumidores.

Assim, a indústria cultural aparece no século XX, com o alcance global dos meios de

5 Resumidamente, uma mercadoria é um produto do trabalho humano em que está impregnado não apenas
o seu valor de uso (que provém de suas qualidades inerentes), mas também o seu valor de troca, que provém
de seu valor quantificado em dinheiro (quer dizer, abstrato). A divisão social do trabalho faz com que os
trabalhadores, que vendem sua força de trabalho, não tenham consciência da totalidade do processo de
produção: estão alienados dele. Assim, o produto da divisão social do trabalho, a mercadoria, exerce certo
“feitiço” perante os consumidores, simplesmente por lhes ser estranha a sua gênese de produção. É a esse
encanto que Marx chama fetichismo da mercadoria. “O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto,
simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como
características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas
e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social
existente fora deles, entre objetos.” MARX, O Capital, A mercadoria [1867].
17

comunicação, como uma força “totalitária e totalizante”, deixando pouco espaço para as

manifestações exteriores a esse processo que ela mesma dirige.

As obras de Adorno, em especial as de maior fôlego, como a Dialética do

Esclarecimento [1947, em parceria com Horkheimer], a Dialética Negativa [1966] e a Teoria

Estética [1969], esboçam uma visão de mundo que, ainda que fragmentada, é

extremamente coerente. Pelas veredas da negatividade, renovamos o olhar perante a falsa

positividade, máscara de uma realidade catastrófica. Num mundo assim, a arte autêntica é

receptáculo da ideia de que as coisas não precisam ser necessariamente como são, e podem

ser de outro modo. “Toda obra de arte é, num certo sentido, “o mundo do novo”, quer

dizer, o mundo purificado dos fins imediatos 6.” [tradução nossa] Na sociedade falida e na

natureza destruída, as artes são um refúgio, o último posto avançado de uma liberdade

que míngua a cada dia.

Entre as artes, nos interessa aqui a pintura. Se Adorno nos apresenta uma visão de

mundo estabelecida enquanto teoria coerente, só isso já poderia reverberar na pintura de

sua época e depois dele, afinal, acabou se tornando um filósofo conhecido; porém, além

disso, dedicou certa energia para escrever algumas linhas sobre pintura. Nada mais

coerente para um filósofo preocupado em realizar um diagnóstico preciso da sociedade, e

nesse diagnóstico a arte serve de sismógrafo das transformações sociais; a pintura

moderna, que impactou a cultura dos séculos XIX e XX, foi tão sensível a essas

transformações quanto a literatura e a música.

Há um artigo de Alvaro Valls intitulado A presença/ausência dos artistas plásticos na

“teoria estética” de Adorno [2002]. O texto esboça a hipótese de que os escritos de Adorno

teriam algo a contribuir para a análise da pintura, principalmente da pintura dita

moderna, quer dizer, a das vanguardas heroicas. Persegui essa hipótese e busquei

desenvolvê-la, transformando-a numa dissertação de mestrado. Inicialmente, pretendia

trabalhar apenas com o texto da Teoria Estética, a obra final e inacabada de Adorno;

6 “Toda obra de arte es, en un cierto sentido, “el mundo de nuevo”, es decir, el mundo purificado de los
fines inmediatos.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 153.
18

todavia, o percurso da pesquisa trouxe à tona outros textos em que Adorno dedica

algumas linhas para discutir sobre as artes pictóricas. Destaco alguns desses textos,

frequentemente referenciados aqui. O primeiro é o curso de Estética ministrado por

Adorno em Frankfurt no inverno entre 1958 e 1959, com prefácio e tradução para a língua

espanhola por Silvia Schwarzböck (UBA), sob o título de Estética 1958/9. O segundo é o

ensaio A arte e as artes [1967] – e recentemente traduzido para a nossa língua por Rodrigo

Duarte; nessa edição também consta a importante tradução da Primeira Introdução à Teoria

Estética. Também foram de importância vital para a pesquisa os textos Sobre uma música

informal7 [1961], Algumas relações entre música e pintura [1965] e Rabiscado no Jeu de Paume

[1958].

A tradução portuguesa da Teoria Estética por Artur Morão é a única integral entre os

leitores de língua portuguesa; foi utilizada preponderantemente a edição de 1993, que não

contém os Paralipómenos; quando constar citação dos Paralipómenos, que se saiba que a

paginação refere-se à edição de 2008 da Teoria Estética, na qual consta a tradução desse

suplemento.

A maioria dos textos utilizados aqui possuem tradução para a língua portuguesa;

quando não possuem, realizo a tradução de trechos específicos no corpo do texto, seguidos

de tradução nossa; em nota consta sempre o trecho original. As datas entre colchetes após os

títulos de textos ou quadros indicam o ano da publicação ou exposição original.

7 O título original do texto é Vers une musique informelle, em francês, e assim será referido neste trabalho.
19

INTRODUÇÃO

Considerações gerais sobre pintura

Meu intento neste trabalho será o de encontrar alguns padrões do discurso

adorniano sobre pintura. Não podemos pensá-los como critérios cristalizados, afinal, a

estética adorniana se caracteriza pela análise do particular em sua legislação interna e

própria, e é por esse motivo tão rica e tão atual.


[…] [a coerência estética] nada tem a ver, naturalmente, com a lógica habitual e
circundante do conceito, e não podemos interpretá-la, por exemplo, como uma
lógica mecânico-causal, mas sim como uma lógica de modalidade própria, a
lógica de uma conexão de sentido motivada em si mesma; quando se fala de
uma lógica estética em geral, é preciso aceitar essa essência específica da lógica
estética. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 61, tradução nossa8)

Todavia, ao nos debruçarmos sobre as análises de Adorno que envolvam pintura,

encontramos alguns apontamentos que se assemelham. Acredito que esses apontamentos

não são considerações isoladas, e sim decorrências da teoria filosófica de Adorno,

adequadas à forma específica da pintura.

Primeiramente, o filósofo entende que a história da arte, e consequentemente a da

pintura também, caminha não cronologicamente, mas por negação determinada: as obras

negam-se umas às outras, e assim superam-se.


O conteúdo de verdade das obras de arte funde-se com o seu conteúdo crítico.
Eis porque exercem a crítica entre si. É isso, e não a continuidade histórica das
suas dependências, que liga as obras de arte umas às outras; «uma obra de arte
é a inimiga mortal da outra». A unidade da história da arte é a figura dialéctica
de uma negação determinada. (ADORNO, Teoria Estética, p. 49)

A negação determinada é uma operação da lógica dialética, que consiste em negar

não o todo indiscriminado, abstrato, mas um particular concreto. Ao negar o particular,

8 “[…] la coherencia (Stimmigkeit), no tiene nada que ver, naturalmente, con la lógica habitual, con la lógica
circundante habitual del concepto, y no hay que interpretarla tampoco, por ejemplo, como una lógica
mecánico causal, sino que es una lógica de una modalidad propia, la lógica de una conexión de sentido
(Sinnzusammenhang) motivada en sí misma y si se habla de una lógica estética en general, se tiene que
aceptar esta esencia específica de la lógica estética.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 61.
20

supera-se esse particular a partir de sua negação, mas essa superação contém em si sua

gênese, quer dizer, algo do particular negado.


A única coisa para alcançar a progressão científica - e em vista de cuja
intelecção inteiramente simples é necessário se empenhar de modo essencial - é
o conhecimento do enunciado lógico de que o negativo é igualmente positivo
ou que o que se contradiz não se dissolve no que é nulo, no nada abstrato, mas
essencialmente apenas na negação de seu conteúdo particular ou que uma tal
negação não é toda negação, e sim a negação da questão determinada que se
dissolve, com o que é negação determinada; que, portanto, no resultado está
contido essencialmente aquilo do qual resulta - o que é propriamente uma
tautologia, pois de outro modo seria um imediato, não um resultado. Na
medida em que o que resulta, a negação, é negação determinada, ela possui um
conteúdo. Ela é um novo conceito, mas conceito mais elevado, mais rico do que
o precedente; pois ela se tornou mais rica devido a essa negação ou oposição;
ela, portanto, o contém, mas também mais do que ele, e é a unidade dele e do
seu oposto. (HEGEL, Ciência da lógica [1812], p. 34)

Figura 1. David, Marat assassinado, 1793

Fonte: disponível em:


<https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Morte_de_Marat#/media/Ficheiro:Death_of_Marat_by_David.jpg> Acesso
em 13 dez. 2019
21

Figura 2. Courbet, Os quebradores de pedra, 1849

Fonte: disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gustave_Courbet_-_The_Stonebreakers_-


_WGA05457.jpg> Acesso em 13 dez. 2019

Figura 3. Pissarro, A colheita do feno, 1887

Fonte: disponível em: <https://www.vangoghmuseum.nl/en/collection/s0520S2010?v=1> Acesso em 13 dez.


2019

Tentarei ilustrar aqui essa concepção dialética da história da arte com exemplos. Em

Marat assassinado9 [1793], o pintor francês Jacques-Louis David - ele que era um jacobino -

nega a tradição da pintura histórica de somente representar os grandes feitos do passado

greco-romano e mostra, à maneira de Caravaggio pintar os santos, a figura do mártir Jean-

9 Jacques-Louis David, Marat assassiné, 1793, óleo sobre tela, 128 x 165 cm. Museu Real de Belas Artes da
Bélgica, Bruxelas.
22

Paul Marat, o herói do povo, morto por seus opositores girondinos covardemente numa

banheira; independente das intenções políticas de David, que não era lá bem exatamente

um aliado de Marat, efetivamente aconteceu uma ruptura: finalmente havia um

contemporâneo [europeu] com a dignidade de ser retratado numa pintura de história, pois

a Europa vivia um acontecimento do qual acreditava-se que possuía a dignidade de virar

História: A Revolução Francesa. Depois, o pai do realismo Gustave Courbet, em Os

quebradores de pedra10 [1849], dá a dignidade de personagem do quadro a trabalhadores

anônimos, heróis do cotidiano, aqueles que sustentam a sociedade e por isso são mais

importantes do que seus líderes. Assim a pintura histórica tornou-se realismo: por negação

determinada, assimilando, negando e superando as obras do passado, mas trazendo

consigo a gênese completa e necessária desse processo. O mesmo aconteceu na negação do

realismo pelo impressionismo: no deparar-se com o próprio material sem imperativos

exteriores – dado o fim do monopólio das Academias - muitos artistas protestaram contra

a ilusão da verossimilhança oferecida pela perspectiva linear, e o fizeram a partir de meios

estritamente pictóricos. Tomemos como exemplo Camille Pissarro: em A colheita do feno11

[1887], ele afirma Courbet ao representar camponeses trabalhando, mas nega-o na forma,

com o predomínio da cor perante a linha e ausência de perspectiva linear, já tendendo a

uma figuração não-realista.

Ainda que esta ilustração do processo seja cronológica, é importante lembrar que

este tipo novo de história da arte não opera por cronologia temporal; pelo contrário, está

inscrita nas obras mesmas, muito além de sua recepção na época ou período de ocaso.

Portanto, é uma história da arte aberta, e nesse elemento está a possibilidade de uma obra

antiga exercer influência e potência sobre produções contemporâneas.

Além da arte ter uma relação dialética com suas próprias produções, ela também

possui uma relação dialética com o mundo. A negação, para ser determinada, deve referir-

se a um outro específico. Para Adorno, a arte é o outro da empiria, que envolve a realidade

social. Todavia, vale lembrar, não é apenas reflexo desse outro, e sim sua negação

10 Gustave Courbet, Les Casseurs de pierres, 1849, óleo sobre tela, 165 x 257 cm. Destruído na Segunda Guerra.
11 Camille Pissarro, La récolte des foins, 1887, óleo sobre tela, 50 x 66 cm. Museu Van Gogh, Amsterdam.
23

determinada; e, por ser negação determinada, ao referir-se a esse outro, retira dele seus

materiais. “A arte comporta-se em relação ao seu outro [o mundo] como um íman num

campo de limalha de ferro12.” É essa referência ao outro que faz com que a arte não seja

somente expressão da subjetividade solipsista, e sim do sujeito enquanto constituinte de

um todo social, ou como se queira, do “espírito 13”. Só assim, como portadora do espírito,

pode haver na arte algum conteúdo de verdade que possa ser socialmente compartilhado.

Adorno diz que forma e conteúdo são distintos, porém em relação de reciprocidade

necessária; a forma é conteúdo historicamente sedimentado; todavia, o conteúdo interage

com a forma, e a forma, com o conteúdo. São distintos, porém, inseparáveis.


[…] quando tivermos que falar sobre o problema da estética formal e da
estética conteudista, nos ocuparemos meticulosamente de que ambas as
categorias estão reciprocamente mediadas, de que as assim chamadas formas
são conteúdos historicamente sedimentados, e de que o conteúdo estético, por
sua parte, é algo afetado até o mais íntimo pela forma, e não é, de nenhum
modo, algo que se recebe assim como material do mundo empírico e se
introduz propriamente na obra de arte. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 52,
tradução nossa14)

Se analisarmos em separado forma e conteúdo, corremos dois riscos: o do

formalismo puro, que não se refere a nada e por isso é insosso; e o da arte como panfleto

político, comumente utilizando-se de formas estabelecidas para “comunicar às massas”.

Em qualquer um desses casos, a obra perde seu estatuto de arte, pois torna-se isenta de

tensão. “Toda obra de arte, ainda que se apresente como perfeita harmonia, é em si mesma

um contexto de problema15”. Esse problema, proveniente de alguma tensão interna da

obra, é reverberação de algum problema objetivo: a tensão entre sujeito e objeto, geral e

particular, construção e espontaneidade, etc. Uma obra que não apresente tensão, é falsa

enquanto tentativa de mímese da realidade.

12 ADORNO, Teoria Estética, p. 18.


13 Ver: HEGEL, Fenomenologia do Espírito [1807].
14 “[…] cuando tengamos que hablar sobre el problema de la estética formal y la estética contenidista, nos
ocuparemos en detalle de que ambas categorias están reciprocamente mediadas, de que las así llamadas
formas son contenidos sedimentados, y de que el contenido estético, por su parte, es algo afectado hasta en
lo más intimo por la forma, y no es, de ningún modo, algo que se recibe así como material del mundo
empírico y se introduce propiamente en la obra de arte.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 52.
15 ADORNO, Primeira introdução à Teoria Estética, p. 149.
24

Pela recusa intransigente da aparência de reconciliação, a arte mantém a utopia


no seio do irreconciliado, consciência autêntica de uma época, em que a
possibilidade real da utopia - o facto de a terra, segundo o estado das forças
produtivas, poder ser aqui e agora o paraíso - se conjuga num ponto extremo
com a possibilidade da catástrofe total. (ADORNO, Teoria Estética, p. 46)

A função e o caráter da mímese na obra de Adorno também são um contexto de

problema. Em sintonia com a interpretação de Safatle, entendo a mímese em Adorno como

imitação da dor e da barbárie em seus aspectos mais repugnantes; isso quer dizer que o

substrato material ao qual a arte se refere na atividade mimética não é qualquer substrato

material do mundo, mas especificamente aquilo contra o qual a arte se volta. Portanto,

para Adorno, não basta a capacidade de imitação, e sim sua operação enquanto mímese

negativa.
Na verdade, a exigência adorniana passa pela necessidade de a arte pôr sua
afinidade mimética com o que há de mais morto e arruinado na realidade
social. Devemos levar às últimas conseqüências afirmações como: “A arte só
consegue opor-se através da identificação (Identifikation) com aquilo contra o
qual ela se insurge.” Adorno é extremamente claro neste ponto. Basta lembrar
ainda que: “as obras de arte modernas abandonam-se mimeticamente à
reificação, a seu princípio de morte”. Uma afirmação aparentemente estranha,
já que a tendência hegemônica tende a definir a arte moderna, ao contrário,
através da recusa a toda afinidade mimética com a sociedade reificada, isto
através, por exemplo, da crítica à representação e à figuração. (SAFATLE,
Espelhos sem imagens [2005], p. 39)

A expressão verdadeira numa obra de arte sempre será, até que as coisas mudem

radicalmente, a da dor. A expressão da dor social é uma das características da arte que

reconhece a sociedade cindida e bárbara e que, dialeticamente, visa libertar essa sociedade

de seus elementos repressivos. De acordo com Hussak:


A expressão da dor contradiz nossa própria existência, sendo, portanto o
elemento dialético por excelência, já que o conflito, o sofrimento e a luta
representam formas básicas da contradição muito antes de penetrar na sua
forma abstrata e conceitual. […] A expressão é precisamente a externação
estética do sofrimento humano, ou seja, a ex-pressão daquilo que antes estava
sob pressão e vem à tona. Pela expressão, a arte protesta contra as regressões à
barbárie. Se é o medo que leva à dominação da natureza, e a barbárie é o
retorno do impulso mimético reprimido, então o medo não deve ser reprimido.
A expressão do sofrimento visa libertar o homem da neurose de dominação da
natureza, é apenas neste enfrentamento que o homem pode superar a angústia
mítica. Na arte, o impulso reprimido que retorna enquanto regressão pode
25

aparecer livremente. (HUSSAK, Mimese e verdade no mundo administrado [2008],


p. 32)

É por meio da expressão da dor que a arte preserva a utopia de um mundo melhor,

e de maneira nenhuma pela representação ideológica, e por isso falsa, de uma sociedade

ideal - como no realismo socialista. “É melhor não haver arte alguma do que o realismo

socialista16”, diz Adorno. Se a felicidade, que é a reconciliação, ainda não existe, e a arte é

mimética, utilizando materiais de seu outro – a realidade social -, a arte não pode de modo

algum ser alegre. “A expressão da arte comporta-se mimeticamente, da mesma maneira

que a expressão dos vivos é a da dor 17.” Assim como na literatura, uma pintura que coloca

em cheque seu próprio sentido e função está protestando contra a racionalidade

instrumental e a falsidade do mundo positivado pela face cruel da razão. Ainda de acordo

com Hussak:
Ao contrário do que possa inicialmente parecer, esta idéia não vem corroborar
com aqueles que defendem a irracionalidade da arte, mas, ao contrário, em
Adorno ela aparece como um veículo crítico que pode realizar um projeto
emancipatório. A arte é racionalidade porque, apesar de filha da magia, nega a
magia porque participa do desencantamento do mundo, assim ela é filha do
Esclarecimento. A arte, ao colocar o homem diante de sua finitude e impotência
quanto às pretensões de uma dominação total do mundo, subverte a lógica da
dominação porque, apesar de também ser uma forma de manipulação da
natureza, não visa de forma alguma subjugá-la, mas sim apontar para outras
finalidades que concernem às questões humanas. (HUSSAK, Mimese e verdade
no mundo administrado, p. 32-3)

A expressão verdadeira, numa obra de arte, consiste na consciência progressista,

quer dizer, aquela que conjuga a técnica e a experiência mais avançadas de uma

determinada época. É importante notar aqui que, em termos adornianos, o artista de

consciência “progressista” não é aquele necessariamente alinhado à esquerda no espectro

político, principalmente levando em conta o contexto da época. Apesar de todas as

diferenças, o nazifascismo e o stalinismo foram regimes que centralizaram o poder,

cercearam liberdades individuais e eliminaram a diferença – como também acontece, com

outro grau de “sofisticação”, na democracia burguesa. Para Adorno, progressista é o

16 ADORNO, Teoria Estética, p. 68.


17 ADORNO, Teoria Estética, p. 130.
26

artista que realiza uma construção rigorosa, a partir de reflexões formais, e cuja construção

expressa a dor social, sem prender-se a modelos de antemão e nem ao imperativo de

educar as massas com arte ligeira. Isso transpassa qualquer discussão sobre a adesão

pessoal dos artistas a quaisquer ideologias.


No decurso da I Guerra e antes de Estaline, as opiniões política e esteticamente
avançadas conjugavam-se; a quem, na altura, começava a despertar, a arte
parecia-lhe a priori ser o que de nenhum modo era historicamente: a priori
politicamente à esquerda. Desde então, os Jdanov e os Ulbricht, com a
prescrição do realismo socialista, não só acorrentaram, mas destruíram a força
produtiva artística. […] Em contrapartida, pela divisão nos dois blocos, os
dirigentes do Ocidente, nos decênios após a II Guerra, assinaram uma paz
revogável com a arte radical; a pintura abstracta 18 é fomentada pela grande
indústria alemã e, na França, o ministro da cultura do General De Gaulle
chama-se André Malraux. […] O isolamento elitário da arte avançada deve ser-
lhe menos imputado do que à sociedade; os padrões inconscientes das massas
são os mesmos de que precisam as relações para a sua conservação em que as
massas estão integradas, e a pressão da vida heterónoma força-as à dispersão e
impede a concentração de um eu forte, que exige o não-rotineiro. Isso provoca
o ressentimento; nas massas, contra o que lhes é igualmente recusado pelo
privilégio da cultura (Bildung); na atitude de artistas esteticamente tão
progressistas desde Strindberg e Schönberg, contra as massas. (ADORNO,
Teoria Estética, p. 284)

Portanto, toda arte considerada “avançada” será uma arte que expresse, em sua

forma e conteúdo, a verdade histórica, à revelia de eventuais resistências em relação à

recepção, circulação ou mesmo da adesão pessoal do artista a regimes autoritários. A

verdade, para Adorno, não é absoluta, e sim a verdade de uma época. Uma obra cuja

expressão é verdadeira expressa as contradições de sua época. Se for ausente de tensão, a

obra é mero documento da cultura, e não uma obra de arte.


De uma obra de arte se pode dizer já com fundamento se é ou não de bom
gosto, e se pode dizê-lo, por certo, no sentido de se ela armazenou – ou não – o
padrão dos meios alcançado historicamente em cada época (quer dizer, na
linguagem mais progressiva possível que se possa falar dentro do respectivo

18 Também nos Estados Unidos fez-se algum esforço para fundamentar teoricamente as produções artísticas
do expressionismo abstrato, na busca da justificação daquela que seria a mais avançada vanguarda
internacional, de origem nova-iorquina. Ver: GONÇALVES, Clement Greenberg, o Expressionismo Abstrato e a
crítica de arte durante a Guerra Fria [2013].
27

meio artístico). Nesse sentido, Picasso é um pintor de bom gosto e Hans


Thoma19 um de mal gosto. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 455, tradução nossa20)

Para Adorno, o pensamento mais progressista da modernidade artística,

certamente, recusa de maneira veemente a forma cristalizada. A novidade da pintura

moderna está no fato de não mais poder ser mais avaliada exteriormente, através de

critérios fixos pelas Academias, e sim pela coesão interna das obras; há uma lógica interna

das obras de arte. “Os verdadeiros critérios daquilo sobre o que falamos aqui não se

encontram na experiência subjetiva das obras de arte, mas na forma da obra de arte

mesma21.” [tradução nossa] A obra de arte moderna justifica a si mesma em sua própria

forma. E essa novidade faz-se ver também na crítica de arte, que torna-se antiquada

quando cristaliza seus critérios.


Não é minha intenção, por um lado, ditar ou estabelecer de maneira
dogmática, digamos, algo como valores estéticos absolutos, ou o conceito de
uma filosofia dos valores que procede de valores rígidos que estão frente ao
sujeito e resultam imutáveis, um conceito que me parece incompatível,
justamente, com a experiência histórica e também daquilo que se passa,
obrigatoriamente, na arte mesma. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 56, tradução
nossa22)

A crítica de arte não pode envolver a recepção sensível - apesar do artista em seu

exercício por vezes preocupar-se com isso – pois a compulsão à identidade e repulsa do

diverso estão historicamente impregnadas na recepção sensível geral, educada pela

19 Hans Thoma foi um pintor alemão, conhecido por retratos e pintura decorativa, seguindo os moldes do
antiquado realismo acadêmico.
20 “De una obra de arte se puede decir ya con fundamento si es o no de buen gusto y se puede decirlo, por
cierto, en el sentido de si ella ha almacenado - o no - el estándar de los medios alcanzado históricamente en
cada época (es decir, el lenguaje más progresivo posible que pueda hablarse dentro del medio artístico
respectivo). En este sentido, Picasso es un pintor de buen gusto y Hans Thoma, uno de mal gusto.”
ADORNO, Estética 1958/9, p. 455.
21 “[…] los verdaderos criterios de aquello sobre lo que hablamos aquí no se encuentran en la experiencia
subjetiva de las obras de arte, sino en la forma de la obra de arte misma.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 400.
22 “No es mi intención, por una parte, dictar o establecer de manera dogmática, digamos, algo así como
valores estéticos absolutos, sino el concepto de una tal filosofia de los valores que procede de valores rígidos
que están frente al sujeto y que le resultan inmodificables, un concepto que me parece incompatible,
justamente, con la experiencia histórica y también con la experiencia de aquello que sucede,
obligatoriamente, en el arte mismo.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 56.
28

indústria cultural. É como se nossos sentidos estivessem atrofiados, incapazes de sentir

prazer com sensações diferentes das que somos bombardeados diariamente pelas mídias.
A objectivação da arte que, do exterior, da sociedade, constitui o seu feiticismo
é, por seu turno, social enquanto produto da divisão do trabalho. Por isso, a
relação da arte à sociedade não deve buscar-se predominantemente na esfera
da recepção. Essa relação é anterior a esta e situa-se na produção. O interesse
na decifração social da arte deve virar-se para esta produção em vez de se
contentar com inquéritos e classificações dos efeitos, que, muitas vezes, por
razões sociais, divergem totalmente das obras de arte e do seu conteúdo social
objectivo. As reacções humanas às obras de arte são, desde tempos imemoriais,
mediatizadas ao extremo e não se referem imediatamente à coisa (Sache); hoje,
esta mediação produz-se em toda a sociedade. A pesquisa do efeito não só não
aborda o carácter social da arte, mas não tem o direito de ditar normas à arte,
direito que ela usurpa sob o espírito positivista. (ADORNO, Teoria Estética, p.
256)

Adorno adota a premissa de Kant, na qual o prazer sensível não é critério distintivo

da experiência estética com as obras de arte, e sim a reflexão. Só com a experiência estética

enquanto reflexão, e não pelo apaziguamento dos sentidos gerado pelas formas simples e

estabelecidas, se é capaz de sentir alguma espécie de prazer – intelectivo - com a figuração

da dor humana.
A comunicabilidade universal de um prazer traz já consigo, em seu conceito,
que este não deve ser um prazer da fruição, por mera sensação, mas sim da
reflexão: e assim arte estética, como bela-arte, é uma arte tal que tem por justa-
medida o Juízo reflexionante e não a sensação-de-sentidos. (KANT, Crítica do
Juízo [1790], § 44)

A denúncia da arte moderna contra o estado de coisas existente, para dar vazão à

expressão adequada do sofrimento, deve tomar para si a categoria do feio 23, indigno das

artes acadêmicas antes da modernidade artística. O feio é o aspecto repulsivo da realidade

e a arte, por tomar da empiria seus materiais, deve apropriar-se do feio enquanto fruto da

sociedade e, desta maneira, expressar o feio para expressar verdadeiramente a realidade

social. Todavia, como bem nota Adorno, a apoderação da arte em relação ao feio não se

23 Aparentemente, um certo poeta parisiense foi pioneiro na assimilação do elemento repulsivo pela arte.
“Como um químico perfeito e como uma alma de santo / Pois de cada coisa extraí a quintessência / Tu [Paris]
me deste tua lama e eu a transformei em ouro.” BAUDELAIRE, Esboço de um epílogo para a segunda edição das
“Flores do Mal” [1861].
29

estabelece enquanto concordância, nem como paródia 24, mas enquanto denúncia. Os

entusiastas da beleza e da harmonia predizem uma arte harmônica e conciliada contra um

mundo real repulsivo. Para Adorno, o aspecto negativo – e por isso de denúncia - da arte é

testemunho daquilo que a dominação esconde e, por isso, é mais avançada e mais

verdadeira do que uma arte forçosamente reconciliada.


A arte deve transformar em seu próprio afazer o que é ostracizado enquanto
feio, não já para o integrar, atenuar ou reconciliar com a sua existência pelo
humor, que é mais repelente que todo o repulsivo, mas para, no feio, denunciar
o mundo que o cria e reproduz à sua imagem, embora mesmo aí subsista ainda
a possibilidade do afirmativo enquanto assentimento à degradação em que
facilmente se transforma a simpatia pelos reprovados. No pendor da arte nova
pelo repulsivo e fisicamente repugnante, ao qual os apologetas do estado de
coisas existente nada de mais forte sabem contrapor a não ser que esse estado
de coisas é já suficientemente feio e que, portanto, a arte deve votar-se à
simples beleza, transparece o motivo crítico e materialista, na medida em que a
arte, mediante as suas formas autônomas, denuncia a dominação, mesmo a que
está sublimada em princípio espiritual, e dá testemunho do que tal dominação
reprime e nega. (ADORNO, Teoria Estética, p. 63)

Além de integrar o feio como negação do imediatamente dado e denúncia da

dominação, a pintura moderna, em sua recusa intransigente do realismo, não mais

reproduz a aparência da realidade objetiva com verossimilhança, pelo contrário: utiliza-se

de elementos estranhos – porém signos do que existe - para, separada, ser possibilitada à

arte o papel de portadora da utopia.

O construtivismo, contraparte oficial do realismo, tem, através da linguagem


do desencantamento, um parentesco mais profundo com as transformações
históricas da realidade do que um realismo coberto desde há muito com um
verniz romântico, porque o seu princípio, a reconciliação ilusória com o
objecto, se tornou entretanto romantismo. (ADORNO, Paralipómenos à Teoria
Estética, p. 442)

Enquanto separada, a pintura moderna renova a possibilidade das coisas serem de

outro modo. É na negação da conciliação imediata que sobrevive a esperança de uma

24 Adorno distingue a assimilação do feio na própria forma de expressão, aquela que salta aos olhos, e a
figuração tradicional do feio dentro das formas convencionais. Um exemplo da segunda é a Malle Babbe
(Frans Hals, 1635, óleo sobre tela, 75 x 64 cm. Galeria Nacional de Berlim) que assimila o feio enquanto
paródia e não realiza uma ruptura na estrutura formal da pintura de retrato. Ver: ADORNO, Estética 1958/9,
p. 305-6.
30

reconciliação real. Essa arte antitética, que guarda em sua recusa à reconciliação o

horizonte da utopia, traz consigo momentos de verdade. “Pois, o verdadeiro é apenas o

que não se harmoniza com este mundo 25.” A recusa da reconciliação aparece na recusa da

harmonia. Isso, em termos pictóricos formais, quer dizer uma pintura de signos cifrados,

figuras deformadas, como se fosse algo de outro mundo. E também na escolha das cores.

A cor negra e o aspecto sombrio não só são assimilados, como tendem a preponderar;

cores vivas e infantilmente dispostas transpassam a felicidade da reconciliação não

realizada, que dissimula a gravidade da barbárie real; ou seja, falsidade.


Para subsistir no meio dos aspectos mais extremos e sombrios da realidade, as
obras de arte, que não querem vender-se como consolação, deviam tornar-se
semelhantes a eles. Hoje em dia, a arte radical significa arte sombria, negra
como sua cor fundamental. Grande parte da produção contemporânea
desqualifica-se por não atender nada a este facto, comprazendo-se
infantilmente nas cores. (ADORNO, Teoria Estética, p. 53)

Na arte comprometida com a verdade e com a dor, quer dizer, com a utopia, a

expressão é dissonante, assim como a realidade social é cindida. “A dissonância é a

verdade da harmonia26.” Muitos artistas engajados politicamente se esforçaram por educar

o povo com uma linguagem simples. Adorno combate esse tipo de engajamento cuja

forma é tradicional em prol de sua fácil comunicabilidade. Uma arte que não é

suficientemente radical em sua forma não pode ser suficientemente radical na sua

reverberação política, pois é facilmente assimilada e tem seu conteúdo crítico neutralizado

pela indústria cultural; sua linguagem é a linguagem da indústria, da propaganda, da

mercadoria; torna-se uma mercadoria não muito diferente de um sapato, cuja utilidade ao

menos é mais evidente.


As obras herméticas exercem muito mais a crítica do estado de coisas existente
do que aquelas que, por mor de uma crítica social mais compreensível, se
esforçam por uma conciliação formal e reconhecem implicitamente o tráfico em
toda a parte florescente da comunicação. (ADORNO, Teoria Estética, p. 167)

25 ADORNO, Teoria Estética, p. 74.


26 ADORNO, Teoria Estética, p. 130.
31

Ora, para Adorno, os critérios de avaliação da pintura moderna são imanentes às

obras: buscados e justificados em sua própria forma 27. No entanto, existem alguns padrões

nas análises adornianas dos pintores exemplares do modernismo. As obras devem resultar

da conjunção entre a técnica e a experiência mais avançadas de uma época, sem fazer

concessões à comunicabilidade rasa e imediata. Elas operam como críticas da tradição,

porém a assimilam e superam, ou seja, são portadoras de sua própria história. Por fim, as

obras de arte trazem para si o feio e o doloroso, através da representação de coisas que não

existem, mas enquanto signos daquilo que existe, pois só assim, separadas e não

reconciliadas, podem denunciar o estado de coisas vigente e carregar a utopia de um

mundo inteiramente outro. Não por acaso, Adorno toma Paul Klee e Pablo Picasso como

pintores modernos exemplares.

27 “La única vía hacia la objetividad es la composición interna de la cosa, la estructura categorial – si puedo
decirlo así – que cada obra de arte presenta en sí misma.” [O único caminho em direção à objetividade é a
composição interna da coisa, a estrutura categorial – se posso dizer assim – que cada obra de arte apresenta
em si mesma.] ADORNO, Estética 1958/9, p. 60, tradução nossa.
32

Parte I - A PINTURA CIRCUNSCRITA

Capítulo I – Paul Klee: a pintura em movimento

Antes da obsolescência programada dos bens culturais, aquilo que era novo gerava

surpresa. E não raro reações de caráter violento. A arte nova tirava o solo firme de toda a

tradição, não só estética, mas também moral e metafísica. O indivíduo isolado de qualquer

comunidade, que participa do universal somente como força de trabalho, o sobrevivente

diário da barbárie do capitalismo industrial, agora podia expressar sua visão de si e do

mundo; dignidade esta conquistada a muito custo perante o modelo das Academias,

permeado do romantismo nacionalista que nem de longe dava conta das novas relações

nas quais o sujeito passou a se encontrar. A visão do novo mundo através das novas obras,

fragmentado e impreciso, perturbou muitos espectadores acostumados aos Salons28 e nada

resignados com a nova ordem das coisas – não a real, mas a artística. Quem via, via com

espanto. E como costuma acontecer na história, os mantenedores do delírio da ordem fixa

e imutável não demoraram a entrar em ação.


A respeito das formas de reação negativa em direção à arte moderna,
permitam-me deter-me um momento em como uso aqui o conceito: sem
dúvida no sentido agudo que se fala de arte moderna quando se fala de
quadros de Miró, de quadros tachistas e também, por minha parte, de Klee ou
de uma fase de Picasso, da música de Schönberg, da música dos sucessores de
Schönberg e da escola serial, do Finnegans Wake de Joyce, e esse tipo de coisas.
(ADORNO, Estética 1958/9, p. 49629, tradução nossa)

Não é fato que os artistas modernos estivessem afirmando ingenuamente sua

própria época, muito menos nostálgicos do que já passou: nem o passado irredimido, nem

28 O mais famoso dos Salons foi o Salão de Paris, onde os artistas mais proeminentes da Academia Real
expunham suas obras. Os Salons eram tão visitados que eram capazes de ditar a moda. Do quadro de
Jacques-Louis David Brutus (Les Licteurs rapportant à Brutus les corps de ses fils, óleo sobre tela, 323 x 422 cm.
Museu do Louvre, Paris) exposto no Salão de 1789, diz o historiador da arte Friedlaender que “o belo
penteado inspirado em uma bacante romana, usado pelas filhas de Bruto, se tornou moda entre as
parisienses”. FRIEDLAENDER, De David a Delacroix [1952], p. 38.
29 “[Respecto de] estas formas de reacción negativas hacia el arte moderno, permítanme ahora detenerme un
momento en cómo uso aquí este concepto: sin duda en el sentido agudo en que se habla de arte moderno
cuando se habla de cuadros de Miró, de cuadros tachistas y también, por mi parte, de Klee o de una cierta
fase de Picasso, de la música de Schönberg, de la música de los sucessores de Schönberg y de la escuela
serial, del Finnegans Wake de Joyce, y este tipo de cosas.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 496.
33

o presente sufocante, nem o futuro sombrio que se apressa; a arte nova é a arte de um

mundo que não existe. É como portadora da utopia do não-realizado que a arte moderna

se tornou lastro histórico de sua época. Na arte em geral, encontramos a representação de

uma época, nem que seja a representação do olhar dessa época para o passado. O artista

exemplar é aquele cuja produção expressa os aspectos mais avançados de uma época, na

experiência e na técnica. Na relação com sua própria época, a arte é transformada pelas

novas relações emergentes muito mais do que tem capacidade de transformar essas

relações. A última metade do século XIX e a primeira metade do século XX transformaram

radicalmente a relação do indivíduo com o tempo: o avanço industrial e tecnológico, a

velocidade inimaginável dos novos meios de transporte, a vida moderna fragmentada pela

perda de sentido30. Essa mudança da relação do indivíduo com o tempo terá reverberação,

consequentemente, nas reflexões do artista diante de sua própria forma pictórica.

Paul Klee é testemunha de seu tempo. Seus quadros são de pequeno tamanho.

Neles, tempo e espaço modernos se conjugam - “O espaço também é um conceito

temporal”, escreve Klee31. Respondem ao imperativo industrial da produção breve e

incessante, de fragmentos de uma época, em detrimento da antiga continuidade e

aspiração à totalidade, representadas principalmente pela pintura de história pós-

Revolução Francesa e seus quadros enormes, cujo intento era o de ser a representação do

ideal romântico de nação32. Se há algo de contínuo em Klee, é certamente o contínuo

movimento, e nada mais. Adorno compara o pequeno tamanho dos quadros de Klee com

o processo de encurtamento das composições musicais, fenômeno formal que também é

reflexo de seu tempo, e que o pintor, enquanto alguém versado em música, observava de

perto.
Em última análise, a contingência é uma função da crescente estruturação
completa. Coisas tão aparentemente periféricas como a contracção temporária

30 Estamos falando aqui do fim das metanarrativas, totalidades doadoras de sentido. Ver: NIETZSCHE, A
Gaia Ciência [1882], § 343. Também: LUKÁCS, Teoria do romance [1920].
31 KLEE, Confissão criadora [1920], p. 46.
32 Tomemos um exemplo clássico da arte europeia: Jacques-Louis David, A Coroação de Napoleão (Le Sacre de
Napoléon, 1807, óleo sobre tela, 621 x 979 cm, Museu do Louvre, Paris). A cena é de Napoleão coroando sua
esposa Maria Josefina, enquanto o Papa só observa. David, nos mais de 6 por quase 10 metros de seu quadro,
afirma em cada centímetro a soberania nacional perante a Igreja e o resto da Europa.
34

de âmbito das composições musicais e os formatos reduzidos dos melhores


quadros de Klee podem assim explicar-se. (ADORNO, Teoria Estética, p. 249)

Esse fenômeno é parte de um processo geral de mudança das relações dos

indivíduos com o tempo, com as coisas e consigo mesmos. A relação com sua época, na

arte moderna, é aquilo que a vincula à realidade; dados os acontecimentos da segunda

metade do século XIX e primeira metade do século XX, essa arte [moderna] expressa

aquilo que é mas não deve continuar sendo, e através da denúncia das repugnâncias do

mundo, vislumbra aquilo que não é mas poderia ser – o inteiramente outro. Segundo

Watson, “Adorno enfatiza que o caos revelado na abstração é o caos da história econômica,

e esse é o caos específico revelado nas obras de arte modernas 33.” [tradução nossa] Aí está,

para Adorno, a força “revolucionária” da arte moderna: a conjunção entre a técnica e a

experiência mais avançadas; no caso da pintura, forte tendência à figuração não-realista

em caráter de denúncia.
Sem dúvida, a noção de Moderno remonta cronologicamente muito atrás do
Moderno enquanto categoria filosófico-histórica; mas esta não é cronológica. É
antes o postulado rimbaudiano34 da consciência mais progressista, na qual os
procedimentos técnicos mais avançados e mais diferenciados se interpenetram
com as experiências mais avançadas e mais diferenciadas. Mas estas, enquanto
sociais, são críticas. Esta arte moderna deve mostrar-se adulta à grande
indústria, não a manipulando apenas. O seu próprio comportamento e a sua
linguagem formal devem reagir espontaneamente à situação objectiva; a
reacção espontânea, enquanto norma, circunscreve um paradoxo eterno da
arte. Porque nada pode esquivar-se à experiência da situação, também nada
conta que actue como se a ela se subtraísse. Em numerosas obras autênticas da
arte moderna, o estrato material industrial é rigorosamente evitado como tema,
por desconfiança perante a arte mecânica como pseudomorfose; mas, negada
pela redução do tolerado e por uma construção reforçada, afirma-se com maior
força: assim em Klee. (ADORNO, Teoria Estética, p. 47)

Pois não é possível escapar a seu tempo. Nem negar o avanço técnico. O grande

artista moderno era sobretudo alguém que tirava seus temas e materiais da própria vida

moderna e suas constantes transformações, diversa do modo de vida estável que se levava

33 “Adorno stresses that the chaos revealed in abstraction is the chaos of economic history, and this is
specific chaos revealed in modern works of art.” WATSON, Crescent moon over the Rational: philosophical
interpretations of Paul Klee [2009], p. 167.
34 Referência ao verso do poema Adieu [Adeus], de Arthur Rimbaud. “Il faut être absolument moderne.” [É
preciso ser absolutamente moderno]. RIMBAUD, Une saison en enfer [Uma temporada no inferno, 1873].
35

antes35. Klee, ao produzir quadros de tamanho reduzido e que não evitavam temas

tecnológicos, é mais radical em sua crítica do estado de coisas do que se pintasse uma

natureza não degenerada – que na Europa já não existia nem nos sonhos dos primeiros

impressionistas.

Figura 4. Klee, Pássaros descendo e setas, 1919

Fonte: disponível em: <https://www.metmuseum.org/art/collection/search/483130> Acesso em 12 dez. 2019

Em Pássaros descendo e setas36 [1919], Klee realiza uma estranha construção: pássaros

geometrizados, nos quais quadrados lembram asas e estão dispostos em diagonais abertas,

que se encontram num ponto que aponta para baixo; dividem o espaço com setas, cujas

pontas também apontam para baixo e reforçam uma sensação de movimento. Um céu de

35 A literatura oferece os exemplos mais precisos da transformação do indivíduo em sua percepção


[moderna] do tempo, do espaço, dos outros e de si. Por exemplo: HOFFMANN, Na janela da esquina do meu
primo [1822]; POE, O homem na multidão [1840]; BAUDELAIRE, As Flores do Mal [1857].
36 Paul Klee, Birds Swooping Down and Arrows , 1919, aquarela, 24,4 x 32,1 cm. Metropolitan Museum of Art,
Nova Iorque.
36

pássaros geometrizados e setas gera algum incômodo àqueles acostumados a contemplar a

natureza. Parece remeter a um céu de tempos de guerra, no qual os pássaros dividem

espaço com caças e mísseis. De fato Klee viu uma guerra na Europa e teve de participar

dela; a guerra tirou muitas vidas promissoras, como a de dois jovens pintores que foram

seus amigos, August Macke e Franz Marc37.

No capitalismo avançado, avança também o processo de reificação. Numa

interpretação de contrassenso ao marxismo tradicional, Adorno defende que a reificação

não é necessariamente um processo que resulta na alienação do sujeito. Para ele, a

reificação é, radicalmente, a busca da linguagem que mais dê conta da coisa em seus mais

diversos aspectos, contra a imposição vertical de uma linguagem universal para a coisa.

“Entregar-se ao objeto equivale a fazer justiça a seus momentos qualitativos 38”. É como se

sujeito e coisa se envolvessem reciprocamente, e nessa conexão profunda adviessem os

conceitos mais adequados para dar conta das qualidades da coisa. Isso é inverter a

reificação capitalista, que a tudo transforma em mercadoria, inclusive o ser humano, e

elimina toda a especificidade em prol da universalidade enquanto mercadoria. Adorno

enxerga o conceito postivo de reificação na obra de Paul Klee.


O que se chama reificação tacteia obscuramente, onde ela é radicalizada, a
linguagem das coisas. Aproxima-se virtualmente da idéia daquela natureza
que extirpa o primado do humanamente significativo. A arte moderna enfática
exime-se ao domínio da representação da alma e transita para uma expressão
do que nenhuma linguagem pode significar. A obra de Paul Klee é, por isso, do
passado mais recente o testemunho mais significativo e ele era membro do
Bauhaus, de intenção tecnológica. (ADORNO, Teoria Estética, p. 76)

“Na arte, mais importante do que ver é tornar visível 39”, dizia Klee. Tornar visível

os escombros encobertos de uma sociedade cindida e perpassada pela dor, porém cínica

na avaliação de sua própria doença. Todavia, para tal, é preciso que o artista se expresse

através dos meios adequados. O risco do uso de meios inadequados resulta na total

37 Após a morte de seus amigos, o próprio Klee foi convocado, mas acabou escapando do combate nas
trincheiras. Ver: KLEE, Diários [1898-1918].
38 ADORNO, Dialética Negativa [1966], p. 44.
39 KLEE, Diários, nota 1134 [1918], p. 452.
37

nulidade da potência expressiva, e até mesmo numa afirmação pela forma daquilo que se

tentou negar pelo conteúdo.

Ora, uma obra de arte, para Adorno, deve ser coerente em sua própria forma;

todavia, sua coerência depende do fato de conter questões para além dela mesma. É

preciso o momento da espontaneidade expressiva, porém, necessariamente conjugado da

construção racional. Klee diz que “quando a intuição é ligada à pesquisa exata, acelera o

progresso da pesquisa, saltando etapas 40.” Separadas, a pura espontaneidade tende ao

infantilismo, e a pura construção racional, à esterilidade. Ou numa frase de Klee que mais

parece Adorno, "o espírito mais profundo, a alma mais nobre, são inúteis se não tivermos

em mãos as formas adequadas41." [tradução nossa]

A expressão verdadeira é sempre a da dor e do sofrimento, mímese verdadeira e

não intercambiável da realidade barbarizada; ir contra essa ideia é correr o risco de afirmar

a positividade e reproduzir ideologia. Para expressar a dor, é preciso assimilá-la de modo

imanente, dentro da obra de arte; Klee o faz com êxito, pois sabe que sua obra nada tem a

perder com a representação daquilo que não apraz, pois a própria construção da obra, que

contém em si o elemento do feio, pode ser considerada bela. “Mas a beleza, que talvez não

possa ser dissociada da arte, não se refere ao objeto, e sim à representação plástica. Assim,

e só assim, é que a arte supera o feio, sem tirá-lo de seu caminho 42.” Desse modo, o artista

está de acordo com Adorno, que insiste na assimilação do feio como mímese verdadeira da

dor social.

A construção, ato racional de dar forma à expressão da dor, não reproduzindo

clichês da indústria cultural, é um modo de resistência à própria alienação. A razão

utilizada desse modo, enquanto resistência aos imperativos da forma-mercadoria e

buscando a realização na arte daquilo que nos é impedido na vida – a liberdade e a

felicidade - para Adorno, é uma razão não mais violenta. Na dialética do esclarecimento, é

40 KLEE, Tentativas de exatidão no campo da arte [1928], p. 85.


41 "L'esprit le plus profond, l'âme la plus noble, cela ne sert à rien si nous n'avons pas à portée de main les
formes adéquates." KLEE, Cours du Bauhaus [1921-1922], p. 34-5.
42 KLEE, Diários, nota 733 [1905], p. 222.
38

esse o polo emancipatório da razão, contra a razão instrumental. E é nesse polo, de

racionalidade ilimitada e libertadora, que Adorno situa a obra de Klee.


Em artistas exemplares desta época, como Schönberg, Klee e Picasso, o
momento expressivo mimético e o momento de construção encontram-se com
igual intensidade, não certamente no meio medíocre da transição, mas na
tendência para os extremos: mas ambos são ao mesmo tempo e quanto ao
conteúdo, a expressão, a negatividade do sofrimento e, a construção, a
tentativa de resistir ao sofrimento da alienação, enquanto que esta é
ultrapassada no horizonte de uma racionalidade ilimitada e, portanto, não
mais violenta. Como no pensamento, para o qual a forma e o conteúdo tanto
são diferentes como reciprocamente mediatizados, assim o são também na arte.
(ADORNO, Teoria Estética, p. 287)

Forma e conteúdo são dois elementos distintos, todavia necessariamente

constitutivos da obra de arte, em relação de contínua reciprocidade na coesão interna da

obra, por meio de sua tensão; um elemento se dissolve no outro, e a negligência de um

deles é a impossibilidade da obra de arte. Adorno atenta para quem acusa os artistas

modernos43 de formalismo: esses artistas possuem realmente inúmeras reflexões sobre a

forma; porém, essas formas expressam determinados conteúdos, vinculados à realidade

social, que muitos dos críticos da época não foram capazes de captar, e só posteriormente

foram se desvelando. É a este registro perene do sofrimento, inscrição impregnada nas

obras como uma marca, que Adorno chama écriture. Nesse caso, a acusação de formalismo

é em verdade mera incompreensão do conteúdo.


Precisamente, onde a forma parece emancipada de todo o conteúdo pré-
estabelecido, as formas tiram de si a expressão e o conteúdo próprios. Em
algumas de suas obras, o surrealismo, em especial Paul Klee, actuou desta
maneira: os conteúdos que se depositaram nas formas aparecem com o tempo.
(ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 442)

A obra de arte, além da tensão entre forma e conteúdo, reproduz a tensão entre

particular e universal. O objetivo é, partindo-se do particular, apontar para o universal;

caso se restrinja ao particular, a obra esgota-se em sua especificidade, e perde potência;

desse modo, não passaria de um documento da cultura, carecendo do status de obra de

43 O panteão pessoal do filósofo é constituído por Schönberg, Berg e Webern na música, Klee e Picasso na
pintura, Celan na poesia, Joyce na literatura e Beckett no teatro.
39

arte. O próprio Klee afirma que “todo o trabalho é a relação entre o particular e o geral 44”.

[tradução nossa] O desafio do artista é expressar o universal a partir do particular. Mais

uma vez, Klee aparece como exemplo exitoso de expressão da generalidade a partir do

particular, pensada e realizada em sua forma específica, a pintura, apesar do pintor

também ser músico profissional e conhecer as inovações da Nova Música 45.


Exatamente os artistas de altíssima qualidade, cujo talento não esteve ligado
inequivocamente a um só material, como Richard Wagner, Alban Berg e talvez
também Paul Klee, dirigiram, com toda razão, sua energia para fazer
submergir a generalidade estética num material específico. (ADORNO, A arte
e as artes, p. 39)

Ao que parece, Adorno via com bons olhos os artistas que tinham afinidade com

mais de um material artístico; poderiam, assim, refletir e ter consciência de como formas

artísticas diversas respondiam ao desafio de expressar o universal a partir do particular.

Todavia, não parece que Adorno aprovasse a pseudomorfose imediata, ou seja, a

transposição de mecanismos próprios de uma forma artística para outra. O que há, de fato,

é que “as artes se nutrem umas das outras 46”; isso quer dizer que elas se apropriam de

inovações das outras artes, mas recodificam tais inovações dentro de sua própria forma

específica, de modo imanente: ou seja, em sua própria forma. “As artes só convergem ali

onde cada uma persegue puramente seu princípio imanente 47”. [tradução nossa] Podemos

chamar essa relação de entrelaçamento ou imbricação entre as artes, não de

pseudomorfose48. A especificidade da forma, para Adorno, exige uma resposta imanente à

própria forma. Como bem esclarece Durão:


As artes em nó apresentavam seu forte justamente no caráter espontâneo e a-
teórico do seu movimento de aproximação. Era como se, face à crise da
proclamação do novo, cada gênero artístico, precisamente ao ser fiel à sua
dinâmica interna, adotasse uma postura mimética em relação aos outros,
fazendo assim que um novo conceito de arte surgisse da própria prática
artística. (DURÃO, As artes em nó, p. 55)

44 “Toda labor es la relación de lo particular con lo general.” KLEE, Filosofia de la creación [sem data], p. 92.
45 Sobre a apresentação em Munique do Pierrot Lunaire de Schönberg, no ano de 1913: “Arrebenta, burguês,
acho que tua horinha chegou!” KLEE, Diários, nota 916, p. 311.
46 ADORNO, A arte e as artes, p. 65.
47 “The arts converge only where each pursues its immanent principle in a pure way.” ADORNO, On Some
Relationships between Music and Painting [1965], p. 67.
48 Ver: RODRIGO DUARTE, Sobre o conceito de “pseudomorfose” em Theodor Adorno [2009].
40

Em relação às inovações da arte moderna em suas diversas formas – uma

redundância, já que o conceito de arte moderna depende do elemento do novo – podemos

ver situados no eixo de tais inovações os artistas tratados por Adorno como exemplares.

Com o fim das preceptivas para a pintura, os critérios cristalizados foram dissolvidos, e

cada artista buscava na produção de sua própria obra, e não mais fora dela, a sua

justificação. Ser moderno é buscar o novo, numa negação determinada da tradição. Buscar

o novo significa repensar continuamente a questão da forma, sem prender-se a modelos.

Adorno vê claramente tal disposição na obra de Klee.


As obras integralmente construídas da modernidade revelam abruptamente a
insuficiência da logicidade e da imanência formal; para satisfazer o seu
conceito, devem despistá-lo; é o que afirmam as notas do Diário de Paul Klee.
(ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 439)

Ora, se o próprio conceito da arte moderna tem “alergia”, para usar o termo

adorniano, da forma cristalizada, é preciso que a forma não seja mais aplicada, e sim

conquistada em meio ao debruçar-se do artista perante seu material disponível, em

determinado contexto histórico, na busca pela feliz conjugação entre espontaneidade e

construção racional, condição para se atingir a expressão verdadeira. Klee afirma que “a

forma é fim, morte; a formação é vida 49.” [tradução nossa] Negando a forma cristalizada, é

possível criar obras de arte no mundo moderno, que caminhem para além de seu aspecto

decorativo e apresentem uma expressão verdadeira do estado de coisas.


Grandes artistas da modernidade radical, como Paul Klee e Juan Gris – que,
como todos sabem, pertencem aos construtivistas – expressaram a respeito,
mais de uma vez, com ênfase, que na verdade a obra de arte construtiva se
inicia no instante em que suspende sua própria assim chamada legalidade.
(ADORNO, Estética 1958/9, p. 238-950, tradução nossa)

49 “La forma es fin, muerte. La formación es Vida.” KLEE, Filosofia de la creación, p. 91.
50 “Y grandes artistas de la modernidad radical, como Paul Klee y Juan Gris – que, como todos saben,
pertenecen a los constructivistas – han expressado al respecto, una y outra vez, con énfasis, que en verdad la
obra de arte constructiva recién comienza en el instante en que se suspende su propria así llamada
legalidad.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 238-9.
41

Numa sentença heraclitiana extemporânea, Klee afirma que “o devir se mantém

perante o ser”51. [tradução nossa] A forma, na arte moderna, não é mais pensada como ser,

estática, mas como vir-a-ser, como construção constante. Reinventar a forma é repensar os

modos que dão vazão à forma. Klee dedicou reflexões sobre a cor, a linha, o quadro e o

estatuto da pintura como arte meramente espacial. Tradicionalmente, o desenho servia

para “delinear”, traçar as linhas que constituíam as figuras, as definiam e as separavam de

outras coisas diversas. A linha operava como limite. Em Klee é diferente: a linha aponta

para fora, é propulsora de movimento; não limita, mas conduz para o ilimitado, como bem

nos esclarece Otília Arantes:


A lição do grafismo kleeniano: pensar a linha como formação, como algo que
rompe com todos os limites (ao contrário da tradição dos “desenhistas”),
mesmo os do quadro, prologando-se em outras tantas configurações variadas
que, por sua mobilidade e instabilidade, não têm mais a ver com as figuras da
tela ou as que no instante se formam em nossa imaginação. Linhas que
apontam constantemente para fora, para um não-lugar. (ARANTES, Klee, a
utopia do movimento [1977], p. 99)

O título do ensaio de Arantes é muito feliz. A utopia de Klee é por uma pintura em

movimento, dinâmica, não mais cristalizada enquanto mera arte espacial, que se encerra

pela finalização - ou abandono - do quadro pelo pintor. Klee imaginava a pintura como

arte temporal, inacabada, gênese constante, que aponta para muito além de si mesma. “A

obra de arte também é em primeira instância gênese, nunca pode ser vivenciada

[puramente] como produto52.” Para Arantes, a utopia de Klee consiste em dar movimento

ao que era até então estático, utilizando-se de meios estritamente pictóricos para tal. Os

mesmos meios, todavia, organizados de maneira bem diversa.


O que visa Klee é criar o movimento com os elementos plásticos da pintura; é
imprimir movimento ao quadro, explorando as componentes energéticas da
linha e da cor. (ARANTES, Klee, a utopia do movimento, p. 87)

Imaginemos um espectador acostumado aos Salons vendo as obras de um artista

que quer colocar seus quadros em movimento, com formas estranhas que não vemos na

51 “El devenir se mantiene por sobre el ser.” KLEE, Filosofia de la creación, p. 92.
52 KLEE, Confissão criadora, p. 47.
42

natureza. Não é nem um esboço de paisagem, como no impressionismo. Parece coisa de

outro mundo. No entanto, a concepção de natureza de Klee é muito mais profunda: não se

preocupa com a reprodução fiel da aparência, mas das forças criadoras da natureza, em

movimento contínuo e eterno. Kahnweiler diz que “Paul Klee trata, em seu livro, das

forças muito mais do que das formas 53.” [tradução nossa] Aquilo que é retratado nos

quadros não é fiel e semelhante à aparência da realidade objetiva; com isso, o artista

mostra que o dito mundo real em sua totalidade não é necessário, que sua organização

poderia ser outra. “Sua composição [de Klee] não é submissa a nenhuma lei 54.” [tradução

nossa] Assim, refutando a necessidade das coisas serem como são, e preocupando-se mais

com as forças que subjazem à aparência do que com a própria aparência, Klee encontra a

expressão verdadeira, mais verdadeira do que um mero quadro realista.


Gostaria agora de considerar a dimensão os objetos em um novo sentido,
procurando mostrar como o artista costuma chegar a uma tal “deformação”,
aparentemente voluntária, das formas naturais. Em primeiro lugar, ele não
atribui a essas formas naturais de manifestação o significado coercitivo que
elas têm para os muitos críticos realistas. Ele não estabelece um vínculo tão
forte com uma tal realidade, porque não vê nas formas finais a essência do
processo da criação natural. Pois, para ele, importam mais as forças
formadoras do que as forças finais. Talvez ele seja, sem desejar, um filósofo.
[…] Então ele declara: “Em sua configuração atual, esse mundo não é o único
mundo possível!”. (KLEE, Sobre a arte moderna [1924], p. 64)

Klee dá vazão para que o Eu do artista inscreva sua visão de mundo nas obras, não

sendo silenciado ou restringido pelos imperativos da realidade objetiva. “Porque as obras

de arte não só reproduzem com vivacidade o que é visto, mas também tornam visível o

que é vislumbrado em segredo 55”. A percepção particular, ao se articular enquanto forma,

encontra sua generalidade.


Não quero mostrar o homem como ele é, mas apenas como ele poderia ser. E
desse modo posso obter com êxito a ligação entre uma visão de mundo e o
puro exercício artístico. (KLEE, Sobre a arte moderna, p. 67)

53 “Paul Klee traite, dans ce livre, de forces beaucoup plus que de formes.” KAHNWEILER, Klee [1950], p. 6.
54“[…] sa composition ne s’est jamais soumise à aucune loi.” KAHNWEILER, Klee, p. 6.
55 KLEE, Sobre a arte moderna, p. 66.
43

Não reproduzindo imediatamente a aparência da realidade objetiva, a obra de arte

separe-se dessa realidade; separada, realiza aquilo que ainda não é possível na sociedade:

o regime da liberdade, a utopia. A arte moderna é receptáculo da utopia, daquilo que não

existe mas que poderia existir. Para acentuar essa separação, a figuração do inexistente é

algo recorrente na arte moderna. Isso Adorno identifica e toma como exemplo no Angelus

Novus56 [1920], a única obra de Klee citada nominalmente pelo filósofo.


Com o Θαυμαζειν57 ingênuo e juvenil são também eliminadas as obras de arte;
o Angelus Novus de Klee igualmente o suscita, de modo semelhante às formas
ao mesmo tempo animais e humanas da mitologia indiana. Em toda obra de
arte genuína, aparece algo que não existe. (ADORNO, Teoria Estética, p. 100)

Figura 5. Klee, Angelus Novus, 1920

Fonte: disponível em: <https://www.imj.org.il/en/collections/199799> Acesso em 12 dez. 2019

Um olhar infantilizado, que procura pelo belo ingênuo na arte, não enxerga o

potencial emancipatório da arte moderna. Nela devemos procurar aquilo que a indústria

de produção e gestão da cultura faz questão de esconder. A admiração genuína se dá não

pelo olhar ingênuo, mas pela percepção do diverso, que ao mesmo tempo versa, ainda que

de modo cifrado, sobre a sociedade mesma. Não reproduzir o mundo como ele é, é não

aceitá-lo assim.
Com olhar enigmático, o anjo da máquina [refere-se ao Angelus Novus] força o
contemplador a se perguntar se ele anuncia a desgraça consumada ou a

56 Paul Klee, Angelus Novus, 1920, nanquim e óleo sobre papel, 31,8 x 24,2 cm. Hoje no Museu de Israel em
Jerusalém, o Angelus Novus originalmente foi de propriedade de Walter Benjamin e lhe serviu para suas
reflexões acerca da História. Ver: BENJAMIN, Teses sobre o conceito de História [1940], Tese IX.
57 O termo em grego é thaumázein, quer dizer admiração.
44

salvação aí mascarada. É, porém, segundo as palavras de Benjamin, que


possuía a ilustração, o anjo que não traz, mas toma. (ADORNO, Engagement
[1962], p. 71)

Figura 6. Klee, Máquina de gorjeios, 1922

Fonte: disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Twittering_Machine#/media/File:Die_Zwitscher-


Maschine_(Twittering_Machine).jpg> Acesso em 12 dez. 2019. © 2019 Artists Rights Society (ARS), New York
/ VG Bild-Kunst, Bonn

No quadro Máquina de gorjeios58 [1922], vemos novamente pássaros com aspecto

mecânico, algo que incomoda o espectador que identifica a ideia de pássaro com o belo

natural. Mas desta vez não ocupam o espaço como se estivessem em movimento, e não há

setas apontadas para reforçar essa dinâmica. Os pássaros estão pendurados por um fio que

termina numa manivela; nas figuras dos pássaros parece misturar-se à fina penugem o

esboço de molas. Parece haver também um suporte para partitura abaixo dos pássaros. A

expressão é de desnaturação total. É como se a natureza já há muito nos tivesse

abandonado. Os pássaros já não cantam livres ao ar livre; ligados por fios, seu canto se dá

ao bel prazer de quem dá corda. Historicamente, a indústria cultural nos mostrou o


58 Paul Klee, Die Zwitschermaschine, 1922, aquarela, 63,8 x 48,1 cm. MoMA, Nova Iorque.
45

tamanho do poder de quem dá corda; em nosso mundo globalizado pela forma-

mercadoria, mais pessoas ouvem o hit da semana do que o canto dos pássaros. Por seu

ambiente sombrio e melancólico perante as invenções tecnológicas, o quadro mostra o

eclipse do esclarecimento. A máquina de gorjeios dá testemunho do mundo administrado,

da dominação da natureza e do desencantamento do mundo 59.

Se, para Adorno, a reprodução imediata da realidade objetiva é um aspecto

conservador enquanto afirmação falsa da positividade, a arte “espiritual” é negativa, pois

expressa a dor de um mundo que poderia ser diferente, através de elementos dele

diversos. A espiritualização da arte, teorizada por Kandinsky, é o programa pela

separação da figuração dos imperativos da realidade – e de qualquer elemento concreto.

Estamos falando do exercício de figuração não-realista.


Abandonamos o âmbito do aqui e agora e buscamos edificação do outro lado,
onde é possível uma afirmação total. Abstração. […] Quanto mais horrível este
mundo (como hoje precisamente), mais abstrata a arte: um mundo feliz, em
contrapartida, produz uma arte que lhe é própria. (KLEE, Diários, nota 951
[1914], p. 348-9)

O trecho não deixa dúvidas, e também parece escrito por Adorno. O espectador

educado na arte moderna, cujas obras rumam em direção à figuração não-realista e não

possuem utilidade imediata enquanto propaganda, realiza sua liberdade – ao menos

virtualmente - na contemplação das formas autônomas: transformou-se num

contemplador da catástrofe expressa pelas obras de arte modernas; mas não num

contemplador resignado, e sim naquele que vê na autonomia da arte em sua denúncia

radical do estado de coisas a possibilidade do rompimento das amarras sociais.


[…] estou contemplando uma obra de arte no lugar de estar comendo uma
maçã, na verdade já pus em jogo esse processo completo da espiritualização
que logo se aperfeiçoa se estou frente a uma composição de Anton von Webern
ou a um quadro de Paul Klee. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 31260, tradução
nossa)

59 Ver: WEBER, Ciência como vocação [1917].


60 “[…] estoy contemplando una obra de arte en lugar de estar comiendo una manzana, ya puse en verdad
en juego ese proceso completo de la espiritualización que luego se perfecciona si estoy frente a una
composición de Anton von Webern o a un cuadro de Paul Klee.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 312.
46

A arte espiritual, enquanto separada e não imediatamente reprodutora do real

aparente, opera como portadora da utopia. Todavia, como já vimos, a história da arte é

constituída pela negação determinada. Klee, mesmo em seu momento mais abstrato, ainda

mantém algum laço com a realidade, negando-a. A autonomia absoluta da figuração não-

realista, sem negar em algum ponto a tradição, sem manter nenhum vínculo, mesmo que

negativo, com a realidade, é por isso inócua e sem tensão. Aí sim podemos dizer em

termos adornianos que é uma obra de arte abstrata: sem concretude, e por isso, abstrata

num sentido pejorativo.


Onde não existe nenhuma tradição além de um momento – seja como for –
existe tampouco, na verdade, a força da arte revolucionária real. […] Os mais
importantes dentre todos os pintores modernos – tanto Klee como Picasso –
vacilaram diante da abstração completa, portanto, vacilaram diante do
apagamento de todo o vínculo com a objetividade. Esta vacilação não é – como
alguns de meus amigos de Darmstad me reprovaram oportunamente – uma
vacilação por covardia ou debilidade ou inconsequência, mas, evidentemente,
o que moveu esses grandes artistas em direção a essa vacilação foi o fato de
saber que, de algum modo, é requerida uma resistência ao heterônomo para na
realidade fazer primordialmente significativo o conceito de autonomia. É dizer,
a autonomia da criação, no instante em que se absolutiza e, de algum modo,
caminha no vazio, cancela a si mesma, portanto, não se torna mais uma
liberdade, quando essa liberdade não pode participar de algo do que tenha que
se diferenciar. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 40861, tradução nossa)

A obra de Klee é concreta e exemplar. Sua produção é permeada de figuração não-

realista, mas ainda participa da negação determinada, pois nega a realidade social e a

tradição, assimilando-as; separada da realidade objetiva, sua obra é portadora da utopia

de um mundo diferente deste; conjuga espontaneidade e reflexão em construções

61 “Donde no existe ninguna tradición más que un momento – sea como fuere – sublimado, no existe
tampoco, en verdad, la fuerza del arte revolucionario real. […] los más importantes de entre todos los
pintores modernos – tanto Klee como Picasso – han vacilado ante la borradura de todo vínculo con la
objetividad; y tiende a parecerme, en efecto, como si en la fase tardía de Klee, sobre todo, donde ha dejado
esto de manera póstuma, pero también el desarrollo de Kandinsky, este desarrollo no hubiera sido
necesariamente para bien. Esta vacilación no es – como algunos de mis amigos de Darmstad me han
reprochado oportunamente – una vacilación por cobardía o debilidad o inconsecuencia, sino que,
evidentemente, lo que los ha movido a ella a estos grandes artistas es el hecho de saber que, de algún modo,
se requiere de una resistencia a lo heterónomo para en realidad hacer primordialmente significativo el
concepto de autonomía. Es decir, la autonomía de la creación, en el instante en que se absolutiza y, de algún
modo, marcha en el vacío, se cancela [aufhebt] a sí mesma, [por lo tanto], no deviene más en un libertad,
cuando esta libertad no puede participar de algo de lo que tenga que diferenciarse.” ADORNO, Estética
1958/9, p. 408.
47

coerentes; retira a forma específica de seu próprio material; e interliga a técnica e a

experiência mais avançadas de sua época, inscrevendo a experiência histórica nas obras de

arte. Por isso, Paul Klee é, para Adorno, um artista moderno por excelência, e faz parte do

reduzido panteão de artistas exemplares frequentemente evocados pelo filósofo.


48

Capítulo II – Subversões de Picasso

Provavelmente a primeira obra significativa de Picasso tenha sido Les demoiselles

D’Avignon62, de 1907. A crítica específica desse quadro, mais de cem anos depois,

permanece viva e inventiva63. Meu intento aqui é de somente apontar alguns elementos

que tornam a obra relevante.

Picasso foi muito além do impressionismo em vários aspectos. O primeiro deles é a

assimilação imanente do “feio”, através da distorção ou deformação dos corpos e pelos

rostos mascarados – herança da máscara africana, elemento externo ao sistema simbólico

da arte europeia.
A favor da sobrevivência do conceito de harmonia como momento fala o facto
de as obras de arte, que protestam contra o ideal matemático de harmonia e
contra as exigências de relações simétricas e buscam a assimetria absoluta, não
serem desprovidas de toda a simetria. A assimetria, segundo o seu valor
linguístico-artístico só pode conceber-se em relação à simetria; uma prova
muito recente disso são os fenômenos que Kahnweiler chama fenômenos de
distorção em Picasso. (ADORNO, Teoria Estética, p. 181)

Uma parcela considerável do entendimento de Adorno sobre a obra de Picasso, e

também do impressionismo, provém de sua leitura e interlocução com o dealer e crítico de

arte Daniel-Henry Kahnweiler, alemão que vivia em Paris e seu amigo. Kahnweiler

estabelece uma crítica de inspiração kantiana, porém de pena muito inventiva; foi um dos

precursores da defesa teórica da validade do cubismo e de seu aspecto de ruptura com a

tradição.

62 “Jovenzinhas de Avingnon” não parece um título muito agradável para que valha a pena traduzi-lo. Pablo
Picasso, Les demoiselles D’Avignon, 1907, óleo sobre tela, 243,9 x 233,7 cm. MoMA, Nova Iorque.
63 O primeiro a se posicionar, logo no advento da obra, foi Kahnweiler; já com o quadro nos Estados Unidos,
Alfred Barr, Leo Steinberg, Giulio Carlo Argan, Carlo Ginzburg, Yves-Alain Bois, Rosalind Kraus, e muitos
outros já deram sua contribuição para a fortuna crítica da obra, apontando elementos disruptivos do quadro
através de diversas abordagens, como antropologia, exotismo, psicanálise, erotismo, formalismo, e mesmo
utilizando-se de conceitos adornianos, como Jay Bernstein, cujos escritos serão tratados em excurso à parte.
O próprio Adorno cita o quadro como paradigma de ruptura, mas que todavia tomada como cânone e regra,
abandona o espírito da vanguarda e corre o risco de regressão. “O valor posicional dos traços bárbaros na
arte nova modifica-se historicamente. O amador delicado, que se benze perante as reduções das Demoiselles
d'Avignon ou as primeiras peças de piano de Schönberg, é sempre mais bárbaro do que a barbárie que ele
teme.” ADORNO, Teoria Estética, p. 111-2.
49

Figura 7. Picasso, Les demoiselles D’Avignon, 1907

Fonte: disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Les_Demoiselles_d%27Avignon#/media/


File:Les_Demoiselles_d'Avignon.jpg> Acesso em 13 dez. 2019. © 2019 Estate of Pablo Picasso / Artists Rights
Society (ARS), New York

O fenômeno de distorção ou deformação tem sua origem tradicionalmente situada

em Ingres. O grande pintor francês, obcecado pela beleza e pela perfeição anatômica,

distorce o dorso d’A banhista de Valpinçon64 [1808]. Não é um corpo ideal porém inexistente,

como na escultura grega: desta vez é um corpo voluntariamente deformado. Ingres faz

esse movimento em nome do amor pelo ideal de beleza, e assim separa-o da mera

prescrição de verossimilhança anatômica. Manet, na sua Olympia65 [1863], estica ainda mais

o fio do tear de Ingres: a beleza desta vez emerge no plano chapado, não mais em

perspectiva linear. A Olympia não é bela porque se parece com alguma mulher real, ou

porque seu corpo foi deformado para ficar mais bonito: é bela por sua articulação formal,

separada da vida social por sua recusa do realismo, mas testemunha dela nos elementos

64 Jean-Auguste Dominique Ingres, La Baigneuse Valpinçon, 1808, óleo sobre tela, 146 x 97,5 cm. Museu do
Louvre, Paris.
65 Édouard Manet, Olympia, 1863, óleo sobre tela, 130,5 x 190 cm. Museu D’Orsay, Paris.
50

de tensão do quadro - a escrava, signo da desumanidade; o gato preto, tradicionalmente

considerado como arauto da má sorte; e a própria postura lasciva da Olympia. Ao abdicar

da perspectiva linear, e assimilando elementos do real desencantado - causando algum

incômodo - Manet enfrenta a ilusão da verosimilhança e passa para o plano do concreto.

Esse salto é um dos mais importantes da história da pintura.

Figura 8. Ingres, A banhista de Valpinçon, 1808

Fonte: disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Banhista_de_Valpin%C3%A7on#/media/


Ficheiro:Jean-Auguste-Dominique_Ingres_-_La_Baigneuse_Valpin%C3%A7on.jpg> Acesso em 13 dez. 2019

Nos quadros de Manet se esconde sem dúvida uma determinada espécie de


choque, uma determinada espécie de terror, em relação à coisificação do mundo.
É por isso que Manet se diferencia dos impressionistas tardios, pelo fato de que
nele ainda se incorpora o mundo alienado a um continuum do aparato sensual
da percepção, através do qual o mundo se volta de todos os modos a se
reconciliar com o sujeito, quer dizer, ele [Manet] apreende verdadeiramente
esse mundo, em sua estranheza, de maneira precisa. E os objetos que elege por
essa estranheza (sobretudo a imagem da prostituta como um tipo social, que
em sua obra está visto por completo num sentido de crítica social e, de algum
modo, como n’As Flores do Mal, a obra de seu amigo Baudelaire) resultam em
algo extraordinariamente característico para este tipo de alienação social que,
51

ao mesmo tempo, se volta para as pessoas em direção ao mais próximo de tudo,


em direção ao próprio corpo. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 523-4, tradução
nossa66)

Figura 9. Manet, Olympia, 1863

Fonte: disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Olympia_(Manet)#/media/Ficheiro:Manet,_Edouard_-


_Olympia,_1863.jpg> Acesso em 13 dez. 2019

O impressionismo, devedor de Manet, insiste na distorção, com a prevalência da

pincelada perante o traço, criando uma espécie de “impressão” fragmentada da paisagem,

que seria posteriormente reconstruída pelo olhar do espectador. Mesmo com a aparição

nas paisagens impressionistas de elementos não-naturais, como pontes, ferrovias e

plantações – que são importantes indícios do desencantamento do mundo – a pintura

impressionista, ainda que tenha se destacado do realismo, não havia transformado o

próprio horror em forma. Quem opera essa ruptura é Picasso, nas Demoiselles. A distorção

66 “En los cuadros de Manet se esconde sin duda una determinada especie de shock, una determinada
especie de terror, respecto de la cosificación del mundo. Esto por lo que Manet se diferencia de los
impresionistas tardíos es el hecho de que él aún incorpora el mundo alienado a un continuum del aparato
sensual de percepción, a través del cual ese mundo vuelve de todos modos a reconciliarse con el sujeto, es
decir, el verdaderamente aprehende ese mundo, en su extrañeza, de manera precisa. Y los objetos que elige
por esa extrañeza (sobre todo la imagen de la prostituta como un tipo social, que en su obra está visto por
completo en un sentido de crítica social y de algún modo, como en Las flores del mal, la obra de su amigo
Baudelaire) resultan algo extraordinariamente caracteristico para este tipo de alienación social que, al mismo
tiempo, vuelve a las personas hacia lo más cercano de todo, hacia el cuerpo propio.” ADORNO, Estética
1958/9, p. 523-4.
52

não serve mais à pura beleza, e sim à plena fealdade (ou feiura, como se queira). Herança

kantiana: “A bela arte mostra sua preeminência justamente em descrever com beleza coisas

que na natureza seriam feias ou desagradáveis 67”. A distorção não serve mais para

reconstruir mentalmente a paisagem, e sim para aparecer claramente em sua intenção:

enquanto drástica ruptura do sistema de construção pictórico, do ideal ocidental de beleza;

por fim, uma afirmação da deformação como forma. Está aberto o caminho para o

cubismo. De acordo com Freitas:


No início da arte moderna, a espiritualização foi acompanhada de uma espécie
de regressão, de uma busca pela barbárie como um tipo de crítica perante o
próprio espírito. Isso pode ser visto de uma maneira literal no movimento da
pintura denominado fauvismo, em que as cores foram usadas de uma maneira
tão crua e imediata que os críticos disseram que aqueles quadros eram feitos
por bestas selvagens (fauve, em francês), e também no cubismo de Picasso, que
demonstra uma afinidade com máscaras e artefatos produzidos pelas
civilizações indígenas africanas. (FREITAS, Adorno e a arte contemporânea
[2003], p. 51)

Para o nascente cubismo, não importava mais nem a verossimilhança, nem a

“impressão” causada pela imprecisão do traço, mas sim reduzir a paisagem a figuras

geométricas simples, mostrando o objeto não só do ponto de vista do observador, mas dos

mais variados pontos de vista possíveis, inclusive os considerados contraditórios dentro

da construção pictórica tradicional. É esse o espírito do chamado cubismo analítico, no

qual se encontram os experimentos de Picasso e Braque.


Esta nova linguagem proporciona à pintura uma liberdade inédita. Já não está
ligada à imagem ótica mais ou menos “realista” que tão só admite um único
ponto de vista diante do objeto. Com o intento de efetuar uma representação
profunda das qualidades “primárias” do objeto, é capaz de mostrá-lo sobre o
plano como um desenho estereométrico, ou, mediante várias representações do
mesmo, incluir sua descrição analítica, que só será reconduzida novamente ao
objeto na consciência de quem contempla o quadro. A representação tampouco
necessita ser a mesma do desenho estereométrico, sempre fechada, mas
algumas superfícies coloridas podem compor o esquema formal graças à sua
orientação, situação relativa, etc., sem necessidade de agruparem-se em corpos
fechados – e esse foi um grande passo dado em Cadaqués 68. No lugar de uma
descrição analítica, o pintor também pode, se preferir, criar dessa maneira uma
síntese do objeto, quer dizer, segundo Kant, “mesclar entre suas distintas
imagens e compreender sua diversidade em uma única cognição.”

67 KANT, Crítica do Juízo, § 48.


68 Praia catalã e reduto de muitos pintores espanhóis.
53

(KAHNWEILER, O caminho em direção ao cubismo [1920], p. 61-2, tradução


nossa69)

Figura 10. Picasso, Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler, 191070

Fonte: disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/File:Picasso_Portrait_of_Daniel-


Henry_Kahnweiler_1910.jpg> Acesso em 13 dez. 2019

Algum tempo depois, os cubistas foram além em sua revolução. Em vez de somente

representar os objetos na superfície plana, os próprios objetos, até então heterogêneos à

arte, foram tornados constitutivos das obras. Instituiu-se a colagem como método. Em vez

de tinta a óleo sobre a tela, os novos materiais eram recortes de jornal, pedaços de vidro,

serragem de madeira, restos de tecidos, etc. Não mais simplesmente representar, mas fazer

69 “Este nuevo lenguaje proporciona a la pintura una libertad inaudita. Ya no está ligada a la imagen óptica
más o menos «realista» que tan sólo admite un único punto de vista ante un objeto. Con tal de efectuar una
representación profunda de las cualidades «primarias del objeto», es capaz de mostrarlo sobre el plano como
un dibujo estereométrico, o, mediante varias representaciones del mismo, dar incluso su descripción
analítica, que sólo será refundida de nuevo en objeto en la conciencia de quien contempla el cuadro. La
representación tampoco necesita ya ser la propia del dibujo estereométrico, siempre cerrada, sino que - y éste
fue el gran paso dado en Cadaqués - unas superficies coloreadas pueden componer el esquema formal
gracias a su orientación, situación relativa, etc., sin nece sidad de ensamblarse en cuerpos cerrados. En lugar
de una descripción analítica, el pintor también puede, si lo prefiere, crear de esta manera una síntesis del
objeto, es decir, según Kant, «mezclar entre sí sus distintas imágenes y comprender su diversidad em una
única cognición».” KAHNWEILER, El camino hacia el cubismo, p. 61-2.
70 Pablo Picasso, Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler, 1910, óleo sobre tela, 100,4 x 73,4 cm. Art Institute of
Chicago.
54

o objeto mesmo saltar na explosão de sua aparência. Não mais simplesmente representar,

mas reordenar a matéria bruta. Nunca a arte havia sido tão concreta como no cubismo

sintético.

Figura 11. Gris, Café da manhã71, 1914

Fonte: disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e0/1914_Gris_Le_Petit_D


%C3%A9jeuner.jpg > Acesso em 13 dez. 2019. © 2019 Artists Rights Society (ARS), New York / ADAGP, Paris

A montagem apareceu como antítese de toda a arte carregada de atmosfera e,


em primeiro lugar, como antítese do impressionismo. Este decompunha os
objectos em elementos mais pequenos que, depois, ressintetizava, elementos
predominantemente tirados do âmbito da civilização técnica ou da sua
amálgama com a natureza para as atribuir, sem rotura, ao contínuo dinâmico.
Ele queria salvar esteticamente o elemento alienado, heterogêneo, na
reprodução. Esta concepção revelou-se tanto menos sólida quanto mais
aumentava a preponderância do elemento prosaico coisal sobre o sujeito vivo:
a subjectivização da objectividade regrediu em romantismo, tal como foi
sentida flagrantemente não só no Jugendstil, mas também nos produtos tardios
do autêntico impressionismo. Contra tal subjectivização protesta a montagem,
descoberta na colagem dos cortes de jornais e coisas semelhantes, nos anos
heróicos do cubismo. A aparência da arte, mesmo se esta mediante a
configuração da empiria heterogênea com ela está reconciliada, deve romper-
se, enquanto a obra introduz em si as ruínas literais e não fictícias da empiria,
reconhece a rotura e a transforma em efeito estético. (ADORNO, Teoria Estética,
p. 177)

71 Juan Gris, Le Petit déjeuner, 1914, guache, óleo e giz de cera sobre papel impresso e colado sobre tela com
óleo e giz de cera. MoMA, Nova Iorque.
55

O advento do cubismo é mais um passo em direção ao ideal de autonomia da arte.

Uma arte sem autonomia, que prima somente pela comunicabilidade, rende-se sem luta

aos imperativos do sistema; uma arte completamente autônoma em seu idioma subjetivo

deixa de refletir os universais compartilhados, e por isso é tão ingênua quanto as artes

“comunicáveis”. Em Guernica72 ´[1937], um dos poucos quadros citados nominalmente por

Adorno em todo o curso da Teoria Estética, encontramos a recusa da comunicabilidade

imediata – formalmente assinalada pela negação do realismo – e a recusa da arte pela arte,

já que as figuras, ainda que irreais, emergem do real num contexto de violência e

destruição. Num registro de figuração não-realista, emerge a dor social expressada num

amontoado de fragmentos – pedaços – de figuras laceradas pela guerra civil. A Guernica

real, no território basco, foi bombardeada por caças alemães a favor do ditador Franco, e

centenas foram os mortos. A Guernica de Picasso, separada, dá forma - ou melhor, deforma

a catástrofe; a forma da expressão da barbárie consumada não poderia de modo algum ser

positiva. E assim, irreal - e por isso potente, Guernica aparece como representação

paradigmática da dialética entre construção e expressão.

Figura 12. Picasso, Guernica, 1937

Fonte: disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:GUERNICA.jpg> Acesso em 13 dez. 2019.


Crédito: Laura Estefania Lopez

72 Pablo Picasso, Guernica, 1937, óleo sobre tela, 350 x 777 cm. Centro de Arte Reina Sofia, Madri.
56

Eis porque, também no plano social, a situação da arte é hoje aporética. Se


diminui a sua autonomia, entrega-se ao mecanismo da sociedade existente; se
permanece estritamente para si, nem por isso deixa de se integrar como campo
inocente entre outros. Na aporia aparece a totalidade da sociedade que absorve
tudo o que acontece. Que as obras recusem a comunicação é uma condição
necessária, mas de modo algum a condição necessária da sua essência
anideológica. O critério central é a força da expressão, mediante cuja tensão as
obras falam com um gesto sem palavras. Desvelam-se na expressão como
estigma social; a expressão é o fermento social da sua forma autônoma. A
principal testemunha a este propósito seria o quadro de Picasso Guernica que,
por uma rigorosa incompatibilidade com o realismo prescrito, adquire
justamente, graças a uma construção inumana, aquela expressão que acusa o
seu carácter de protesto, para lá de todo o mal-entendido contemplativo.
(ADORNO, Teoria Estética, p. 266)

Em seu texto Engagement [1962], que trata principalmente das peças de Sartre e

Brecht, Adorno conta uma exemplar anedota sobre Picaso e o Guernica durante a ocupação

nazista de Paris:
Quando um oficial alemão da ocupação visitou-o [a Picasso] em seu atelier e
lhe perguntou em frente ao quadro Guernica “o senhor fez isso?”, ele terá
respondido: “não, o senhor”. Também obras de arte autônomas, como esse
quadro, negam com certeza a realidade empírica, destroem a destruidora,
aquilo que aí está simplesmente e como mero existente repete infinitamente a
culpa. (ADORNO, Engagement, p. 65-6)

Ao levar o ideal de deformação a sério, Picasso diz muito mais sobre a realidade

cindida do que o realismo poderia fazer. A expressão fiel da crueldade é a única que dá

conta do sofrimento socialmente compartilhado; afinal, a reconciliação formal depõe

contra a verdade social, enquanto o caráter negativo de expressão da dor, esse sim, carrega

consigo a função de denunciante incessante da barbárie.


Se, nas novas obras de arte, a crueldade levanta sem fingimento a sua cabeça,
ela reconhece assim a verdade segundo a qual, perante a superioridade da
realidade, a arte não mais pode a priori sentir-se capaz da transformação do
terrível na forma. O cruel é um elemento da sua auto-reflexão crítica; duvida
da pretensão ao poder, que ela realiza como reconciliado. O cruel emerge, na
sua nudez, das obras de arte, logo que o seu próprio fascínio é abalado.
(ADORNO, Teoria Estética, p. 65)

A construção adequada é aquela que dá vazão às potencialidades da expressão, sem

subjugá-la a modelos determinados de antemão. Essa fidelidade à mímese, sem


57

concessões, é que traz à tona o momento de verdade da obra. O imperativo mercantil

abdica da maioria das modalidades de prazer sensível, advogando apenas por algumas

delas, as mais facilmente manipuláveis pela indústria, como a predileção pelo harmônico e

pelo positivo. O ascetismo da obra de Picasso 73 torna-se então um elemento de resistência

à ideologia.

Figura 13. Picasso, Massacre na Coréia74, 1951

Fonte: disponível em:


<https://en.wikipedia.org/wiki/Massacre_in_Korea#/media/File:Picasso_Massacre_in_Korea.jpg> Acesso em
13 dez. 2019

A construção não é correcção ou certeza objectivante da expressão, mas deve,


por assim dizer, acomodar-se sem planificação aos impulsos miméticos; aí
reside a superioridade da Erwartung75 de Schönberg sobre muito do que dela
fez um princípio, que, por sua vez, era um princípio de construção. No
expressionismo sobrevivem, como algo de objectivo, os fragmentos que
dispensam o arranjo construtivo. A isso corresponde o facto de que nenhuma
construção, enquanto forma vazia de conteúdo humano, se deve cumular de
expressão. As obras adquirem esta expressão pela frieza. As obras cubistas de
Picasso, e aquilo porque ele mais tarde as remodelou, são muito mais
expressivas pelo ascetismo da expressão do que os produtos estimulados pelo
Cubismo, mas que mendigavam a expressão e se tornaram implorantes.
(ADORNO, Teoria Estética, p. 58)

73 Talvez por uma sensação de dever histórico, Adorno e Horkheimer evocam o grande pintor de sua época
já em sua primeira obra de destaque, a Dialética do Esclarecimento. “Até Schönberg e Picasso, os grandes
artistas conservaram a desconfiança contra o estilo e, nas questões decisivas, se ativeram menos a esse do
que à lógica do tema.” ADORNO & HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 107.
74 Pablo Picasso, Massacre en Corée, 1951, óleo sobre tela, 110 x 210 cm. Museu Picasso, Paris.
75 Monodrama composto por Schönberg em 1909.
58

Capítulo III – Outros modernos

Há somente um único texto de Adorno cujo objeto principal é especificamente a

pintura. Em Rabiscado no Jeu de Paume [1958], trata particularmente do impressionismo, e se

suas observações não são originais, podem ser consideradas no mínimo pertinentes.

“Rabiscado”, talvez pelos principais pontos do texto terem sido escritos ali mesmo,

durante a visita atenta ao museu76. “No Jeu de Paume77” o museu parisiense que abrigava

em seu acervo muitas das obras mais importantes do impressionismo. Sem saber, a

experiência de Adorno naquele museu teria posteriormente valor de memória: com a

fundação do Museu D’Orsay em 1986 e o traslado das obras impressionistas para a nova

casa, o Jeu de Paume hoje é dedicado à fotografia.

Para Adorno, o impressionismo faz parte do processo de desencantamento do

mundo, não só pela ruptura com o realismo, mas também pelo fato de suas paisagens

serem permeadas de objetos artificiais, da técnica humana. Esse movimento já

pressupunha ser impossível alcançar a natureza intocada – talvez tenha sido esse o motivo

da angústia de Paul Gauguin, que foi até a Polinésia procurando pelo primitivo 78.
Se prestarmos atenção não à forma de perceber e à maneira de pintar dos
impressionistas franceses, mas aos seus objetos, vemos que suas paisagens
estão cheias de signos da modernidade, em especial de momentos da técnica.
[...] A realização pictórica quer equiparar o estranhado [pontes e ferrovias, p.
ex.] ao vivo, salvá-lo para a vida. (ADORNO, Rabiscado no Jeu de Paume, p. 281,
tradução nossa79)

76 Adorno possui também uma reflexão importante sobre os museus. “A única relação concebível com a arte,
em nossa realidade catastrófica, seria a que considerasse as obras de arte com a mesma seriedade mortal que
tem caracterizado o mundo de hoje. Só está livre do mal tão bem diagnosticado por Valéry aquele que junto
com a bengala e o guarda-chuva também entregou, na entrada [do museu], a sua ingenuidade; aquele que
sabe exatamente o que quer, escolhe dois ou três quadros e se detém diante deles com enorme concentração,
como se fossem realmente ídolos.” ADORNO, Museu Valéry-Proust [1953], p. 185.
77 Jeu de Paume significa Jogo de Péla, esporte que deu origem ao tênis. O edifício foi originalmente
construído para abrigar a prática desse esporte. Não confundir com um outro e mais antigo prédio dedicado
ao jogo, local de importância histórica no qual os representantes do terceiro estado – burguesia, baixo clero e
sans-cullotes – se reuniram em 1789 e deram início à Revolução Francesa.
78 Para Adorno, porém, a forma encontrada por Gauguin envelheceu rapidamente. “A superioridade dos
grandes impressionistas sobre Gauguin só apareceu quando as inovações deste empalideceram perante
invenções posteriores.” ADORNO, Teoria Estética, p. 221.
79 “Si prestamos atención no a la forma de percibir y a la manera de pintar de los impresionistas franceses,
sino a sus objetos, vemos que sus paisajes están llenos de signos de la modernidad, en especial de momentos
de la técnica. […] La realización pictórica quiere equiparar lo extrañado a lo vivo, salvarlo para la vida.”
59

Esse processo de reconstrução da paisagem na apreensão do espectador, para

Adorno, ruma em direção à reconciliação entre sujeito e objeto: jamais a reconciliação

poderia se dar na mera contemplação do objeto verossímil, e sim na consciência da

liberdade das formas, na ausência de leis para representar os objetos, e na reconstrução

pelo espectador dos elementos esboçados no quadro. Para Adorno, o ímpeto do

impressionismo consiste na “dissolução do mundo dos objetos em seus correlatos

perceptivos80.” A reconciliação, se não existe na vida, só pode existir na arte de maneira

negativa: na negação da aparência realista e, consequentemente, na visão ativa de quem

olha. Quer dizer, alcança-se (ou melhor, almeja-se) a identidade [virtual] por meio da não-

identidade. O realismo, advogado da identidade e inimigo da negação, é incapaz de

oferecer esse “processo mental” que aproxima sujeito e objeto.


À medida que os objetos deixam de dominar o quadro tal como são, em sua
contingência, se tornam mais livres para a construção: o pintado pode se
organizar desde o momento em que nada exterior manda sobre ele. Uma vez
que a coisa passou pelo sujeito, pode voltar a adquirir objetividade. A
reconciliação com o objeto se produz, se é que se produz, mediante a negação
do objeto. Isto passa por alto todas as defesas do realismo. (ADORNO,
Rabiscado no Jeu de Paume, p. 283, tradução nossa81)

Todavia, a partir do momento que o impressionismo deixa de perseguir a forma

adequada da expressão e se transforma em “estilo”, seu espírito fenece. Contra todo

impressionismo canônico, Adorno defende seus precursores. Só uma história da arte que

caminhe não cronologicamente, e sim por negação determinada, é capaz de apontar maior

potência numa obra mais antiga do que nas mais recentes. A história da arte em Adorno é

entendida como se fosse uma imensa rede de fios: alguns foram cortados, alguns esticados

ADORNO, Garabateado en el Jeu de Paume, p. 281.


80 “[…] la dissolución del mundo de los objetos en sus correlatos perceptivos.” ADORNO, Garabateado en el
Jeu de Paume, p. 281.
81 “Pero a la medida que los objetos dejan de dominar el cuadro tal como son, en su contingencia, se vuelven
más libres para la construcción: lo pintado se puede organizar desde el instante en que nada exterior manda
sobre ello. Una vez que la cosa ha pasado por el sujeto, puede volver a adquirir objetividad. La reconciliación
con el objeto se produce, si es que se produce, mediante la negación del objeto. Esto lo pasan por alto todas
las defensas del realismo.” ADORNO, Garabateado en el Jeu de Paume, p. 283.
60

e alguns amarrados. A produção artística, e consequentemente a história da arte, solta os

nós e puxa os fios, até o agora. É assim por exemplo com Manet.
O antigo pode adiantar o novo. Este ato de adiantamento parece ser o que
constitui a sobrevivência das obras de arte: em conjunto. Manet resulta mais
moderno, mais estranho que os impressionistas posteriores, que fazem avançar
mais coerentemente a técnica. Algo similar se pode observar posteriormente
em Van Gogh. (ADORNO, Rabiscado no Jeu de Paume, p. 282, tradução nossa82)

Como já se viu no capítulo sobre Picasso, Adorno dá muita importância à obra de

Manet. Ao que parece, ele entende Manet como o precursor do modernismo nas artes

visuais, da mesma importância de Baudelaire na poesia e Flaubert na literatura, na esteira

da interpretação de Kahnweiler. Já Argan e T. J. Clark 83 parecem situar o germe do

modernismo nas artes visuais no Marat assassinado, de David, primeiro quadro da tradição

europeia de pintura histórica a representar um fato histórico contemporâneo, a saber, o

assassinato do jornalista sans-cullote Marat por uma girondina – mas já havia pintura desse

tipo nos Estados Unidos84. Baudelaire situa o advento do modernismo pictórico no

ilustrador de jornal Constantin Guys 85; tese muito interessante, pois as obras de Guys são

pequenas, são muitas, feitas propriamente para a reprodução, e representam fatos da vida

moderna na metrópole, como bailes e diligências, sem as obrigações prescritivas 86 da

pintura histórica e do realismo. Todavia, faz todo o sentido que Adorno situe em Manet

82 “Lo antiguo puede adelantar a lo nuevo. Este acto de adelantamiento parece sr lo que constituye la
supervivencia de las obras de arte: en conjunto, Manet resulta más moderno, más extraño que los
impresionistas posteriores, que hacen avanzar más coherentemente a la técnica. Algo similar se puede
observar posteriormente en Van Gogh.” ADORNO, Garabateado en el Jeu de Paume, p. 282.
83 Ver: ARGAN, Arte Moderna [1970] e CLARK, A pintura no ano II [1994].
84 E o tema do quadro é a Guerra dos Sete Anos, conflito que criou as tensões e condições para a
Independência dos Estados Unidos e também para a Revolução Francesa, pois envolvia britânicos, franceses,
indígenas e colonos. A essa guerra se deve a existência do Canadá. O autor do quadro, de significativo
sobrenome West, curiosamente foi a Roma antes do próprio Jacques-Louis David. Esse tema é muito
interessante e, ao que parece, ainda não foi profundamente explorado pela crítica de arte. Benjamin West, A
morte do General Wolfe (The Death of General Wolfe), 1770, óleo sobre tela, 151 x 213 cm. Galeria Nacional do
Canadá, Ottawa.
85 Ver: BAUDELAIRE, O pintor da vida moderna [1863].
86“[…] para el arte moderno no existen más ninguna de esas normas de la creación artística que obligan
desde afuera (elementos tradicionales, convencionales, tópicos – como se prodía decir, incorporando un
concepto de la filología clásica-).” [Para a arte moderna não existe mais nenhuma das normas de criação
artística que obrigam desde fora (elementos tradicionais, convencionais, tópicos – como se poderia dizer,
incorporando um conceito da filologia clássica-).] ADORNO, Estética 1958/9, p. 361, tradução nossa.
61

essa transição. O pintor francês rompe com a perspectiva linear, com a verossimilhança

das cores, com a necessidade de dignidade das figuras representadas. Não quero dizer que

a Olympia e sua escrava são indignas, pelo contrário: eram indignas para a sociedade da

época, fato que depõe muito mais contra a sociedade e a época do que contra as figuras do

quadro.
Todos sabem que a arte moderna, num sentido muito amplo, se distancia
demasiado daquilo que satisfaz os sentidos. Isso talvez, de modo retroativo,
possa datar na pintura de Manet, na qual a satisfação da harmonia cromática
foi quebrada por cores extremamente contrastantes. (ADORNO, Estética
1958/9, p. 133, tradução nossa87)

Figura 14. Manet, O suicida88, 1881

Fonte: disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Edouard_Manet_-_Le_Suicid%C3%A9.jpg>


Acesso em 13 dez. 2019. Foto: The Yorck Project

Há ainda outra pista para o fato de Adorno considerar Manet o ponto de abertura

do modernismo nas artes plásticas: a recusa da homeóstase 89, quer dizer, do equilíbrio de

tensão e contentamento com a forma alcançada, mal do qual padeceram muitos dos

87 “Todos ustedes saben que el arte moderno, en un sentido muy amplio, se disntancia una y outra vez de lo
que satisface a los sentidos. Esto quizá ya podría datarse retroactivamente en la pintura de Manet, en la que
la satisfacción de la armonía cromática ha sido quebrantada por colores extremadamente contranstantes.”
ADORNO, Estética 1958/9, p. 133
88 Édouard Manet, Le suicidé, 1881, óleo sobre tela, 38 x 46 cm. Fundação E. G. Bührle, Zurique.
89 Ver: ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 444.
62

impressionistas que vieram depois dele. A isso responde a ânsia pelo novo, que tem sua

origem no imperativo industrial, ao qual a arte também responde.


Tão certo é que o conceito do novo está ligado a características sociais nefastas,
sobretudo ao conceito de nouveauté no mercado, como impossível é, desde
Baudelaire, Manet e o Tristão90, passar sem ele. (ADORNO, Paralipómenos à
Teoria Estética, p. 409-10)

Tanto na evolução técnica quanto na expressão do mundo desencantado, Manet se

mostra avançado. Para Adorno, mais avançado do que seus colegas mais jovens, tal como

Renoir, Sisley, Lautrec91 e Monet.


Artistas como Richard Strauss, talvez mesmo Monet, perderam em qualidade
quando, aparentemente contentes consigo próprios e com as aquisições,
perderam a forma da inervação histórica e da apropriação dos materiais mais
progressistas. (ADORNO, Teoria Estética, p. 218)
*

Para Adorno, Van Gogh é um pintor importante pois pela primeira vez expressa

subjetivamente a catástrofe de sua época. A forma dessa expressão não é a partir da

figuração de temas heroicos de estatuto social elevado; as figuras de Van Gogh são comuns

e rotineiras, e mesmo assim, a constituição dos quadros contém algo de sublime,

principalmente pela dramaticidade cromática, e reforçada quando emergem as espirais,

signos da infinda sublimidade 92, tanto da potência da construção quanto da natureza

representada.
Que obras adquiram a sua dignidade ao ocuparem-se de quaisquer
acontecimentos sublimes - cuja sublimidade é quase sempre apenas fruto de
ideologia, de respeito do poder e da grandeza - é desmascarado desde que Van
Gogh pintou uma cadeira ou alguns girassóis de tal modo que os quadros
ribombam com a tempestade de todas as emoções, em cuja experiência o
indivíduo da sua época registava pela primeira vez a catástrofe histórica.
(ADORNO, Teoria Estética, p. 171)

90 Tristan und Isolde, ópera de Richard Wagner estreada em 1865.


91 A mesma crítica, a saber, do contentamento com a forma alcançada – a homeóstase, que pode se tornar
decorativa e regressiva - é feita por Adorno contra as obras tardias de quase todos os impressionistas. Ver:
ADORNO, Rabiscado no Jeu de Paume.
92 O conceito de sublime possui longa gênese, de Pseudo-Longino a Kant. Todavia, adoto aqui a definição
de Schiller, que recusa a univocidade do conceito. “Um objeto é sublime de modo teórico na medida em que
traz consigo a representação da infinitude, para cuja apresentação a faculdade de imaginação não se sente à
altura. Um objeto é sublime de modo prático na medida em que traz consigo a representação de um perigo
que nossa força física não se sente capaz de vencer.” SCHILLER, Do sublime, p. 25.
63

A catástrofe subjetivamente elaborada e assim expressada: aí está, para Adorno, a

potência de Van Gogh, por vezes maior do que o expressionismo secularizado que proveio

desse ímpeto.
Figura 15. Van Gogh, A igreja de Auvers93, 1890

Fonte: disponível em: <https://www.musee-orsay.fr/en/collections/works-in-focus/painting.html?


no_cache=1&zoom=1&tx_damzoom_pi1%5BshowUid%5D=4060 > Acesso em 13 dez. 2019. ©RMN-Grand
Palais (Musée d'Orsay) / Hervé Lewandowski
*

O ímpeto do surrealismo e do expressionismo, segundo Adorno, era o de contestar

a autoridade e as convenções, ao menos em arte. A magnitude do ímpeto inicial desses

movimentos não pode ser reduzida somente pelo fato de alguns de seus integrantes 94

terem se alinhado com o fascismo.


Correntes como o expressionismo e o surrealismo, cujas irracionalidades
causaram estranheza, lutaram contra a violência, a autoridade e o

93 Vincent Van Gogh, L’église d’Auvers-sur-Oise, 1890, óleo sobre tela, 94 x 74 cm. Museu D’Orsay, Paris.
94 É ilustrativa a história do pintor expressionista Emil Nolde, que declarou apoio ao Terceiro Reich e
mesmo assim teve sua obra censurada pelo regime, tratada como degenerada.
64

obscurantismo. O facto de que no fascismo, para o qual todo o espírito era


apenas meio para um fim e que, por isso mesmo, tudo devorou, tenham
convergido, na Alemanha, correntes expressionistas e, na França, correntes
alimentadas pelo surrealismo, é irrelevante perante a idéia objectiva desses
movimentos. (ADORNO, Teoria Estética, p. 70-71)

Todavia, essa defesa geral do ímpeto surrealista não significa que Adorno admirava

tudo aquilo que proveio desse movimento. O filósofo critica o pintor André Masson por,

nas obras de maturidade, abandonar qualquer possibilidade de tensão e apostar num

equilíbrio entre o elemento escandaloso e a recepção alvoroçada dos espectadores. Pior

ainda é o cenário da crítica a Salvador Dalí, cuja obra é tratada por Adorno como vazia de

verdade histórica e cuja forma fetichizada serve a um público apático para ser consumida

como se fosse algo de sofisticada.

Figura 16. Masson, Pasiphaë95, 1945

Fonte: disponível em: <https://www.wikiart.org/en/andre-masson/pasipha> Acesso em 13 dez. 2019. © 2019


Artists Rights Society (ARS), New York / ADAGP, Paris

A neutralização é o preço social da autonomia estética. Mas se as obras são


enterradas no panteão dos bens culturais, então são elas próprias mutiladas,
juntamente com o seu conteúdo de verdade. No mundo administrado, a

95 Lembremos que Pasífae, na mitologia grega, é quem dá a luz ao monstro Minotauro. André Masson,
Pasiphaë, 1945, pastel sobre papel preto, 69,8 x 96,8 cm. MoMA, Nova Iorque.
65

neutralização é universal. Outrora, o surrealismo protestou contra a


feiticização da arte enquanto esfera particular, mas, enquanto arte, que no
entanto era, foi empurrada muito para lá da pura forma do protesto. Pintores
nos quais, como em André Masson, a qualidade da pintura não era
determinante, estabeleceram uma espécie de equilíbrio entre o escândalo e a
recepção social. Finalmente, Salvador Dali tornou-se um pintor de sociedade
(society-maler) à segunda potência, o Laszlo ou Van Dongen 96 de uma geração
que, no sentimento vago de uma situação de crise estabilizada por séculos, se
lisonjeava de ser sophisticated. Assim foi fundada a falsa sobrevivência do
surrealismo. (ADORNO, Teoria Estética, p. 257)

E assim surgiu o surrealismo administrado, resultado radicalmente oposto às

expectativas do espírito primevo do movimento, cujo exemplar mais formidável é escrita

automática de inspiração onírica na obra de Breton. O pai do surrealismo administrado é

André Masson, inicialmente um pintor que compartilhava do mesmo ímpeto contestador 97

do movimento do qual fazia parte, para depois cristalizar as formas e “abrandar” a tensão,

condição da expressão verdadeira. A crítica de Adorno vai ainda mais além: Masson

seculariza a técnica do “choque” cromático num tal grau que se furta aos objetos e,

consequentemente, à figuração.

Figura 17. Masson, Empregadas da cozinha98, 1962

Fonte: disponível em: <https://www.tate.org.uk/art/artworks/masson-kitchen-maids-t06818> Acesso em 13


dez. 2019. © The estate of André Masson

96 Philip de László, pintor húngaro de retratos da aristocracia europeia, e Kees Van Dongen, retratista
holandês à moda fauve.
97 “O estímulo sensual da arte só se legitima onde, como no Lulu de Berg ou em André Masson, é portador
ou função do conteúdo, não fim em si mesmo.” ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 417.
98 André Masson, Les Filles de cuisine, 1962, óleo sobre tela, 50,2 x 61 cm. Tate Galery, Londres.
66

Na época à volta da I Guerra Mundial ou um pouco mais tarde, a pintura


moderna polarizou-se no cubismo e no surrealismo. Mas o próprio cubismo
revoltou-se conteudalmente contra a representação burguesa da pura
imanência da arte. Inversamente, surrealistas importantes, decididos a não ter
qualquer conivência com o mercado, como Max Ernst e André Masson, que
originalmente protestaram contra a esfera da arte, aproximaram-se dos
princípios formais, e Masson, em grande medida, do desvio do objecto, tanto
mais que a idéia do «choque», que rapidamente se esgota nos materiais, se
tornava por assim dizer um procedimento pictural. Se, mediante a luz do flash,
o mundo habitual deve ser desmascarado como aparência e ilusão, passou-se já
teleologicamente para o não-figurativo. (ADORNO, Teoria Estética, p. 286-7)
*

Ao abandonar o realismo, a pintura tornou-se concreta [e moderna], por

representar os objetos desamarrados das prescrições tradicionais, de modo que saltem aos

olhos devido à sua composição, muito mais do que pela verossimilhança com o real; ao

mesmo tempo, essa pintura separa-se da empiria, e o quadro se transforma numa

possibilidade de realização da liberdade pela livre configuração das formas, liberdade esta

impedida na vida. Essa é a dialética entre concretude e virtualidade. Kandinsky radicaliza

a virtualidade, transformando-a em espiritualidade. Para ele, a autonomia da arte deve ser

utilizada para dar vazão às formas “espirituais”, puramente do intelecto, abandonando de

maneira completa qualquer relação com o concreto. E assim instituiu um programa de

criação artística.
Kandinsky – como todos vocês sabem – escreveu há uns quarenta anos aquele
famoso manifesto – o livro Sobre o espiritual na arte – no qual, pela primeira vez,
frente à representação dominante da arte como algo imediatamente sensível,
transformou a velha tese da filosofia idealista – idealista-especulativa - acerca
do caráter essencialmente espiritual da arte, em um programa de criação
artística, o qual – segundo ele – tão só deve ser expressão de algo espiritual e
abandonar mais ou menos toda a imediatidade sensível. (ADORNO, Estética
1958/9, p. 354, tradução nossa99)

99 “Kandinsky - como todos ustedes saben - ha escrito hace unos cuarenta años aquel famoso manifiesto - el
libro Sobre lo espiritual en el arte - en el que, por primera vez, frente a la representación dominante del arte
como algo inmediatamente sensible, transformó la vieja tesis de la filosofia idealista - idealista-especulativa -
acerca del carácter esencialmente espiritual del arte, en un programa para la creación artística misma, la cual
- según el - tan sólo debe ser expresión de algo espiritual y abandonar más o menos totalmente su
inmediatez sensible.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 354.
67

A espiritualização da arte possui uma faceta progressiva. Ao isolar-se

completamente do mundo dos objetos sensíveis, afasta-se também da necessidade de

nutrir o prazer sensível do espectador; a sensação que provém da contemplação da livre

construção artística é um prazer do intelecto, mediado por este; a indústria cultural molda

o prazer sensível do público amplo ao mesmo tempo em que impele esse público a

abandonar a faculdade de reflexão em prol da contemplação ingênua das formas seculares

da identidade; por isso a arte espiritual em tese não lhe interessa. “Somente como espírito

a arte é contradição à realidade empírica que se movimenta para a negação determinada

da estrutura existente do mundo 100.” Todavia, essa arte separada encontra seu meio de

expressão justamente no campo do sensível, quer dizer, na obra de arte mesma, que é uma

coisa concreta. A mediação entre o momento espiritual e sua expressão sensível é de fato o

desafio da arte orientada nesse sentido.


Precisamente quanto mais aumenta essa espiritualização da obra de arte – e
tem que aumentar, como alergia contra o satisfatório tal como se impõe através
da indústria cultural, as publicidades e, em geral, o sistema comercial do
mundo atual – permanece nela também uma extraordinária dificuldade, que
talvez possa caracterizar-se como a dificuldade de mediação entre o momento
espiritual da arte e os momentos portadores da expressão, os momentos
sensíveis da arte. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 357, tradução nossa101)

A insuficiência dessa mediação pode resultar na autorreferência 102, e a arte que

disso provém, deixando de ser um íman da empiria e se alienando na virtualidade

separada, espiritual, torna-se o oposto de sua intenção: somente uma particularidade

sensível, carente do espírito, e que isolada e desarticulada nada diz sobre o mundo, e

muito pouco sobre a arte.

100 ADORNO, Primeira introdução à Teoria Estética, p. 106.


101 “Porque se ha demostrado que precisamente cuanto más aumenta esa espiritualización de la obra de arte
- y tiene que aumentar , como alergia contra lo satisfactorio tal como se nos impone a través de la industria
cultural, las publicidades y, en general, el sistema comercial del mundo actual -, permanece también en ella
una extraordinaria dificultad, que quizá pueda caracterizarse como la dificultad de la mediación entre el
momento espiritual del arte y los momentos portadores de expresión, los momentos sensibles del arte.”
ADORNO, Estética 1958/9, p. 357
102 “La dignidad de las obras de arte siempre depende de que en ellas mismas viva algo que sea algo más
que mero arte.” [A dignidade das obras de arte sempre depende de que nelas resida algo que seja mais do
que mera arte.] ADORNO, Estética 1958/9, p. 129, tradução nossa.
68

Esse processo inexorável de espiritualização dos momentos sensíveis da arte


[…] nunca pode orientar-se a algo sensivelmente particular. […] Nada
sensivelmente particular é em si algo absolutamente espiritual, um portador
absoluto de expressão, que basta a si mesmo para produzir o espiritual. […]
Todos esses materiais particulares – sejam os mais belos acordes
dodecafônicos, sejam matizes nunca vistas de um vermelho de Nolde ou sejam
contrastes cromáticos nunca vistos – não efetuam sozinhos precisamente essa
espiritualização, mas a força da espiritualização que sem dúvida se exige hoje
de toda arte […] se encontra exclusivamente na configuração desses
momentos, portanto, na importância que esses momentos têm no contexto de
uma obra de arte, e não mais algo isolado deles. (ADORNO, Estética 1958/9, p.
359-60, tradução nossa103)

Figura 18. Kandinsky, Curva dominante104, 1936

Fonte: disponível em: <https://www.guggenheim.org/artwork/1972> Acesso em 13 dez. 2019. © 2018 Artists


Rights Society (ARS), New York / ADAGP, Paris

Adorno nota que a radicalização da ambição espiritual de Kandinsky continha

também algo de metafísico e regressivo. Para o filósofo, as obras de arte contém o espírito -
103 “[…] ese proceso inexorable de espiritualización de los momentos sensibles del arte […] nunca puede
orientarse a algo sensiblemente particular. […] Nada sensiblemente particular en sí es algo absolutamente
espiritual, um portador absoluto de expresión, que se basta a sí mismo para produzir a lo espiritual. […]
Todos estos materiales particulares - sean los más bellos acordes dodecafónicos, sean matices nunca vistos
de un rojo de Nolde o sean contrastes cromáticos nunca vistos - no efectúan precisamente ellos solos esa
espiritualización, sino que la fuerza de la espiritualización que sin duda se exige hoy de todo arte […] se
encuentra exclusivamente en la configuración de estos momentos, por lo tanto, en qué importancia tienen
estos momentos en el contexto de una obra de arte y no más en algo aislado de ellos.” ADORNO, Estética
1958/9, p. 359-60.
104 Wassily Kandinsky, Courbe dominante, 1936, óleo sobre tela, 129, 2 x 194,3 cm. Guggenheim, Nova
Iorque..
69

o momento do universal socialmente compartilhado, no qual as obras de arte são mais do

que uma obra, quer dizer, são também portadoras do espírito 105. O espírito emerge nas

obras nos seus momentos sensíveis.


O espírito é aquilo mediante o qual as obras de arte, ao tornarem-se aparição,
são mais do que são. […] O espírito das obras de arte é a sua mediação
imanente, que sobrevém aos seus instantes sensíveis e à sua configuração
objectiva; mediação no sentido estrito de que cada um destes momentos na
obra de arte se transforma claramente no seu outro. O conceito estético do
espírito é gravemente comprometido, não só pelo idealismo, mas também por
escritos que datam dos inícios do modernismo radical, como os de Kandinsky.
Em revolta motivada contra um sensualismo que, mesmo no Jugendstil, confere
a preponderância à satisfação sensível na arte, ele isolava abstractamente o
oposto deste princípio e reificava-o de tal modo que era difícil distinguir o
«Deves crer no espírito» da superstição e do fanatismo artesanal pelo princípio
supremo. (ADORNO, Teoria Estética, p. 105)

O conceito adorniano de espírito pretende afastar-se justamente do conceito de

Kandinsky, que parece apontar para a teoria de origem platônica das ideias perfeitas: uma

orientação religiosa.

O movimento Jugendstil, o braço germânico da art nouveau - e do qual Klimt é o

artista mais famoso - também foi digno de atenção por parte de Adorno. Para ele, também

era um movimento de inspiração quase religiosa: queria dar vazão à espiritualidade – o

mundo das formas perfeitas - através das obras. Isso é um fator limitante, pois quando o

mundo material não diz mais respeito à arte, as obras perdem em potência. Talvez por isso

a declaração de Adorno de que “como seu nome revela, o Jugendstil é a puberdade

declarada como permanente: utopia que pouco caso faz da impossibilidade da sua

realização106.” Ainda assim, para Adorno, “o significado da riqueza de suas formas [do

Jugendstil], para a arte moderna em seu conjunto, é incomparavelmente muito maior do

que reconhecemos107.” [tradução nossa] O Jugendstil apresentava uma potente expressão do


105 Para Hegel, esse espírito é puramente racional, e sua realização, após as suas diversas formas históricas –
religião, arte, filosofia – se dá no Absoluto, que é quando o espírito se encontra com todas as suas
manifestações sensíveis, sem contradição; assim se daria a reconciliação entre sujeito e objeto, concreto e
abstrato, particular e universal, etc.; o Absoluto é a finalidade e o fim da dialética. Ver: HEGEL,
Fenomenologia do espírito.
106 ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 409.
107 ADORNO, Estética 1958/9, p. 403.
70

sofrimento. Todavia, para Adorno, esse sofrimento ainda era expressado por via de formas

mais ou menos convencionadas; aí reside outra limitação do Jugendstil, que nem por isso

perde sua importância histórica.


O Jugendstil é por completo, de certa forma, também uma arte da expressão, e o
sofrimento dentro da convenção é nele infinitamente forte. A intenção de
impor, frente às convenções, homens autônomos livres, “homens nobres
livres” - como os chama Ibsen – é realmente o motivo mais profundo do
Jugendstil; só que esse motivo da expressão, no Jugendstil, ainda permanece
unido à representação de algumas categorias formais fixas, que se pensam
obrigatórias para todos. (ADORNO, Estética 1958-9, p. 184, tradução nossa108)

Figura 19. Klimt, Morte e Vida109, 1915

Fonte: disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Morte_e_Vida_(Klimt)#/media/Ficheiro:Gustav_Klimt_-


_Death_and_Life_-_Google_Art_Project.jpg> Acesso em 13 dez. 2019
*

108 “El Jugendstil es por completo, en cierta forma, también un arte de la expresión, y el sufrimiento dentro
de la convención es en él infinitamente fuerte. El intento de imponer, frente a las convenciones, a los
hombres autónomos libres, a los " hombres nobles libres " - como los llama Ibsen -, es realmente el motivo
más profundo del Jugendstil; sólo que este motivo de la expresión, en el Jugendstil en sí mismo, aún
permanece unido a la representación de algunas categorías formales fijas, que se piensan obligatorias para
todos.” ADORNO, Estética 1958-9, p. 184.
109 Gustav Klimt, Tod und Leben, 1915, óleo sobre tela, 178 x 198 cm. Leopold Museum, Viena. Foto: Leopold
Museum, Wien/ Manfred Thumberger
71

A partir das linhas adornianas sobre a pintura moderna, encontramos um juízo

padrão: quando os artistas se contentam com a forma encontrada, suas obras perdem

potência. Um juízo que advoga pelo modernismo, indissociável da ideia do novo, em seu

âmago mais profundo. Esse juízo provém da própria concepção de história da arte

compartilhada por Adorno: a que progride por negação determinada, e cuja concretude se

encontra nas obras particulares, muito mais do que na generalidade de movimentos ou

mesmo de todas as fases de um mesmo artista. O fim das preceptivas, ao mesmo tempo

em que abriu as portas para a arte experimental, possibilitou um resgate de artistas até

então renegados pela tradição acadêmica. São trazidos à vida, por exemplo, El Greco, que

em pleno século XVI já deformava suas figuras, e Turner, que no auge do período

neoclassicista já havia feito a escolha da pincelada perante o traço.


A esperança de renascenças dos Pfitzner e Sibelius, dos Carossa e Hans Thoma,
diz mais sobre os que acalentam semelhante esperança do que acerca da
persistência do valor de tais espíritos. Mas, em virtude da evolução histórica, é
possível que obras se actualizem mediante a correspondance com obras
ulteriores: nomes como Gesualdo da Venosa, Greco, Turner, Büchner são
exemplos conhecidos de todos, não redescobertos por acaso após a ruptura
com a continuidade da tradição. (ADORNO, Teoria Estética, p. 55)

Figura 20. El Greco, Laocoonte110, 1614

Fonte: disponível em:


<https://es.wikipedia.org/wiki/Laocoonte_(el_Greco)#/media/Archivo:El_Greco_(Domenikos_Theotokopoulo
s)_-_Laoco%C3%B6n_-_Google_Art_Project.jpg> Acesso em 13 dez. 2019

110 El Greco, Laocoön, 1614, óleo sobre tela, 137,5 x 172,5 cm. Galeria Nacional de Arte, Washington.
72

Figura 21. Turner, Tempestade de neve111, 1842

Fonte: disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Snow_Storm:_Steam-Boat_off_a_Harbour


%27s_Mouth#/media/File:Joseph_Mallord_William_Turner_-_Snow_Storm_-_Steam-
Boat_off_a_Harbour's_Mouth_-_WGA23178.jpg> Acesso em 13 dez. 2019
*

Após o massacre da Comuna de Paris (1871), da qual era o equivalente a Ministro

da Cultura, Gustave Courbet exilou-se na Suíça e lá realizou pinturas bem diferentes das

que havia feito antes. O filósofo João Bernardo levanta uma interessante hipótese 112: os

peixes mortos de Courbet na fase do exílio são os próprios communards. Vou além: em

algumas dessas pinturas, Courbet destrói a perspectiva linear; o espaço é indefinido, e a

figura surge morta em suspenso no espaço, como que uma aparição da destruição e da

morte emergindo do caos. A pergunta que Courbet deve ter se colocado foi: como dar

forma ao horror e ao apagamento da história? É possível representar um horror dessa

magnitude pelas formas tradicionais? Assim, o próprio Courbet, pintor exemplar do

realismo posteriormente negado pelo impressionismo, buscou uma forma diversa da do

111 William Turner, Snow Storm, 1842, óleo sobre tela, 91 x 122 cm. Tate Galery, Londres.
112 Apresentada em comunicação oral na Semana de Comemoração dos 140 anos da Comuna de Paris,
realizada na PUC-SP entre 23 e 27 de maio de 2011. Suponho que João Bernardo estivesse se referindo ao
quadro As três trutas do rio Loue (Les trois truites de la Loue, 1872, óleo sobre tela, 107 x 85,5 cm. Kunstmuseum,
Berna).
73

realismo prescrito para expressar a sombra do genocídio. Mais uma demonstração de que

a história da arte não é um desenvolvimento cronológico, mas sua potência está nos feitos

de cada obra.

Figura 22. Courbet, A truta113, 1873

Fonte: disponível em: <https://www.musee-orsay.fr/fr/collections/oeuvres-commentees/recherche/


commentaire.html?no_cache=1&zoom=1&tx_damzoom_pi1%5BshowUid%5D=108109> Acesso em 13 dez.
2019. © RMN-Grand Palais (Musée d'Orsay) / Hervé Lewandowski

113 Gustave Courbet, La truite, 1873, óleo sobre tela, 65,5 x 98,5 cm. Museu D’Orsay, Paris.
74

Parte II – COM ADORNO, E ALÉM

Capítulo IV – Desafios da abstração: Pollock

Para Adorno, “abstração” é um termo pejorativo, pois a obra de arte, para ser

relevante, deve ter alguma relação com a realidade empírica - concreta - e tirar dela seus

materiais para, separada da empiria por negação determinada, apontar para um outro

mundo possível, um mundo da liberdade. Em suma, deve ser portadora do espírito. “A

expressão pintura abstrata é uma expressão particularmente estúpida, simplesmente

porque uma obra de arte, se é uma obra de arte, é concreta 114”. [tradução nossa] Em pintura,

a tendência radical à figuração não-realista por vezes confunde-se com a tendência à

abstração. O movimento em direção à figuração não-realista é conjugado do movimento

da arte moderna como um todo, desde as primeiras distorções impressionistas até a

chamada pintura informal115. Nesse registro, opera-se no limiar da abstração, mas os

elementos reais do sofrimento ainda emergem em meio à tendência não-figurativa.

Não submeter-se a nenhum sistema exterior e fazer emergir elementos reais do

sofrimento social são predicados da grande arte moderna. Assim sendo, a tendência que

conduz ao limiar da figuração, mas conserva nela elementos do sofrimento concreto, é

uma tendência avançada em pintura. Para Adorno, um artista representativo neste quesito

é Wols, expoente do tachismo.


As obras de arte não são apenas alegorias, mas o seu cumprimento catastrófico.
Os choques que vibram as obras de arte mais recentes são a explosão da sua
aparição, que nelas se dissolve, a priori outrora evidente, provocando uma
catástrofe só através da qual se liberta totalmente a essência do que aparece;
talvez em nenhum lado isso seja tão inequívoco como nos quadros de Wols. A
dissolução da transcendência estética também se torna estética; tão
miticamente as obras de arte se encontram encadeadas na sua antítese. Na

114 ADORNO, Estética 1958/9, p. 399


115 “But following the liquidation of the organic language of music, music once again, thanks to its
immanent organization, has become the very image ofthe organic. There is an analogy here to certain
striking thematic tendencies in contemporary painters like Schultze and Ness.” [Mas depois da liquidação da
linguagem orgânica da música, a música, mais uma vez, graças à sua organização imanente, tornou-se a
própria imagem do orgânico. Há uma analogia aqui com certas tendências temáticas marcantes em pintores
contemporâneos como Schultze e Ness.] ADORNO, Vers une musique informelle [1961], p. 307, tradução nossa.
É provável que o autor quisesse se referir não a “Ness”, e sim a Rolf Nesch, pintor e gravurista norueguês, a
quem evoca também no texto A arte e as artes.
75

combustão da aparência, separam-se violentamente da empiria, instância


antagonista do que a vive; hoje, dificilmente se pode pensar a arte a não ser
como forma de reacção que antecipa o apocalipse. (ADORNO, Teoria Estética,
p. 103)

A crítica responsável ao estado de coisas, que não discerne essencialmente forma e

conteúdo, precisa dissolver qualquer elemento estático da forma, para que a liberdade seja

apontada não somente na representação de um mundo outro, mas também no próprio

fazer do artista em relação a seu material. Essa tendência ao involuntário, que Adorno

identifica no tachismo, é um movimento radical em direção à figuração não-realista, que já

contesta muitos dos limites da figuração; sua energia consiste verdadeiramente na

ausência de regras a priori do fazer artístico. Todavia, como que emanando do material, a

forma se estabelece na dialética entre espontaneidade e construção rigorosa, resultando

numa obra cuja aparência é ao mesmo tempo de absoluto automatismo e máximo rigor às

próprias leis estabelecidas no ato mesmo do fazer artístico.

Figura 23. Wols, Sim, sim, sim116, 1947

Fonte: disponível em: <https://www.wikiart.org/en/wols/oui-oui-oui-1947> Acesso em 13 dez. 2019. © 2008


Artists Rights Society (ARS), New York / ADAGP, Paris

116 Wols (Wolfgang Schulze), Oui, Oui, Oui, 1947, óleo, raspagem e marcas de tubo sobre tela, 80,5 x 64,2 cm.
The Menil Collection, Houston.
76

O progresso da arte enquanto «fazer» e o cepticismo a ela adscrito formam


entre si contraponto. Na realidade, este progresso é acompanhado pela
tendência para o involuntário absoluto desde a escrita automática, de há perto
de cinqüenta anos, até ao tachismo e à música aleatória de hoje. É com razão
que se constatou a convergência da obra de arte tecnicamente integral e
totalmente fabricada com a obra absolutamente fortuita; sem dúvida, o que
aparentemente não parece fabricado é-o com maior razão. (ADORNO, Teoria
Estética, p. 39)

Figura 24. Schultze, Rifrost117, 1958

Fonte: disponível em: <https://www.museum-ludwig.de/en/exhibitions/archive/2015/bernard-schultze.html>


Acesso em 13 dez. 2019. © Museum Ludwig, VG Bild-Kunst Bonn, 2015. Foto: Rheinisches Bildarchiv

Ainda que carente de preceptivas e fruto de relativa autonomia criativa do artista, a

obra de arte relevante continua sendo aquela que refere-se à realidade histórica concreta.

O conceito de écriture118 - ou escritura - refere-se à marca ou inscrição cifrada da dor

histórica e socialmente compartilhada deixada pelo artista na obra, como que uma ferida

aberta numa época de desenvolvimento das formas artísticas que tendem à “abstração”. É

117 Bernard Schultze, Rifrost, 1958, óleo e plástico sobre tela, 120 x 100. Museu Ludwig, Colônia.
118 “Em debates recentes especialmente sobre artes plásticas, o conceito de écriture tornou-se relevante,
debates suscitados por páginas de Klee que se aproximavam de uma escrita gatafunhada. Esta categoria da
modernidade arroja como projector luz sobre o passado; todas as obras de arte são uma escrita, e não apenas
as que aparecem como tais, e certamente hieroglíficas, para as quais se perdeu o código e para cujo conteúdo
contribui acima de tudo a ausência de tal código. As obras de arte são linguagem só enquanto escrita.”
ADORNO, Teoria Estética, p. 145.
77

assim em Paul Klee e em Wols. Por isso, a abstração absoluta, que não se refere à realidade

nem à história, e nas quais os artistas abdicam de deixar sua “escritura”, é uma tendência

retrógrada de nosso tempo. A abstração absoluta é inócua e, por isso, conservadora.


Se a pintura ou a música fossem despojadas do momento expressivo, o de uma
expressão sem algo fixo para expressar; se a obra já não estiver em tensão com
algo que não é seu fenômeno mesmo e que não se oculta nem na unidade
simbólica nela nem em algum outro lugar no exterior, então se perderia o
caráter de escritura. A obra regressaria, como incontáveis vezes se sucede hoje
em dia, [ao momento] pré-artístico. (ADORNO, Algumas relações entre música e
pintura, p. 72119, tradução nossa)

Ao que parece, são as perigosas características da abstração que Adorno enxergava

na action painting - ou expressionismo abstrato estadunidense. A preocupação adorniana é

a de que essa tendência ameaça abdicar da dialética entre construção e espontaneidade,

mediada pela configuração do material contingente. Ao abrir mão de qualquer processo

ordenador e entregando-se à pura espontaneidade, conjugada da abstração absoluta, essas

produções não realizariam mais a mímese negativa, característica central da arte relevante

para Adorno.
A action painting, a pintura informal, a música aleatória gostaram de levar ao
extremo o momento resignativo: o sujeito estético dispensa-se do esforço da
configuração do que lhe surge como contingente, configuração que ele
desespera de suportar durante mais tempo; imputa por assim dizer ao
contingente a responsabilidade da organização. Mas, de novo, o ganho é
falsamente avaliado. A legalidade formal presumivelmente destilada a partir
do contingente e do heterogêneo permanece também heterogênea e não
obrigatória para a arte. (ADORNO, Teoria Estética, p. 249)

Portanto, as objeções de Adorno à obra dos artistas da action painting consistem em

criticar o caráter completamente espontâneo e contingente dessas produções, além de sua

forma absolutamente abstrata, supostamente carente de escrituras, de inscrições

impregnadas nas imagens que contém algo do sofrimento socialmente compartilhado. Por

serem completamente abstratas, abdicariam assim de referências à própria história da arte,

119 “If painting or music were simply lacking the expressive element, the element of an expression without
anything concrete to be expressed, the work would no longer intend toward something that is not its own
phenomenon and that cannot be hidden in symbolic unity, either within it or anywhere outside it. Then its
character as writing would be lost. The work would regress, as innumerable examples do today, to a
preartistic state.” ADORNO, On Some Relationships between Music and Painting, p. 72.
78

que é a gênese dessas formas, e também das tensões provenientes do confronto produtivo

entre obras de arte; e por isso seriam alienadas da história, que é produto de tensões

concretas, não mimetizadas nesse tipo de arte.


A abstração degenera em ideologia e em um ofício vazio onde suas ações
permanecem no plano estético e, portanto, se submetem ao próprio critério do
significado - e a cultura é para o bem ou para o mal a incorporação do
significado - que eles desafiaram. No entanto, isso é ditado pela
impossibilidade hoje da política em que o dadaísmo ainda dependia. 'Action
painting', 'action composing' são criptogramas da ação direta que agora foi
descartada; eles surgiram numa época em que toda ação desse tipo é impedida
pela tecnologia ou recuperada por um mundo administrado. Isso indica até
que ponto a prática política influencia os modos estéticos e o faz precisamente
no ponto em que estes últimos são mais intransigentes e mais afastados da
prática cultural normal. As limitações da arte proclamam os limites da política.
(ADORNO, Vers une musique informelle, p. 316, tradução nossa120)

Entretanto, estou convencido de que esse movimento artístico não se esgota nessas

críticas, e contém algo do desvelamento da verdade histórica recalcada. Tomemos como

exemplo seu maior expoente, ou pelo menos o mais famoso: Jackson Pollock. A obra de

Pollock apresenta a dificuldade em formalizar, que é uma dificuldade advinda do próprio

processo histórico das artes visuais. Radicalmente, contesta o próprio utensílio secular da

pintura, o pincel, como instrumento de dominação do material; Pollock abandona a

mediação do pincel e debruça-se diretamente sobre suas tintas. Como bem explica Naves:
O problema de Jackson Pollock é a rigor criar uma resistência ao próprio ato de
pintar, um método que possibilitasse que as formas daí resultantes fossem a
concretização da própria dificuldade de formalizar – uma recusa portanto a
usar o pincel como um instrumento que domesticasse uma matéria (a tinta)
apropriada a um fim (a pintura, a tela).” (NAVES, Jackson Pollock: o mar e a água
viva [2007], p. 254)

120 “Abstruseness degenerates into ideology and to a vacuous craft where its actions remain on the aesthetic
plane and thereby submit to the very criterion of meaning - and culture is for good or ill the embodiment of
meaning - which they have challenged. However, this is dictated by the impossibility today of that politics
on which Dadaism still relied. 'Action painting', 'action composing' are cryptograms of the direct action that
has now been ruled out; they have arisen in an age in which every such action is either forestalled by
technology, or recuperated by an administered world. This indicates the extent to which political practice
influences aesthetic modes and it does so precisely at the point where the latter are at their most intransigent
and at their furthest remove from normal cultural practice. The limitations of art proclaim the limits of
politics.” ADORNO, Vers une musique informelle, p. 316.
79

O próprio Adorno, mesmo que receoso, ainda via alguma possibilidade ao menos

interessante nessas expressões, apesar de ter evidenciado problemas e preocupações em

suas construções. “Só a teimosia poderia negar a função produtiva de elementos não-

imaginados, «surpreendentes», em muita da arte moderna, na action painting e na música

aleatória121”.

Há um brilhante ensaio de Cláudio R. Duarte chamado Extratos de Pollock [2013] que

é, dentro da pequena literatura desta pesquisa, um dos que melhor clarificam a obra de

Pollock a partir – também - da teoria adorniana. Duarte é convincente ao dizer que Pollock

desvela as estruturas sociais de seu tempo não mais como tema, mas inscrevendo-as à

própria técnica formal. Assim, a divisão social do trabalho e a carência de sentido

orientador são desveladas por Pollock não através de alegorias ou sinais, mas na tensão

formal no limiar da impossibilidade da figuração.


Pollock incorpora e transfigura progressivamente os conflitos da sociedade
industrial avançada – não mais como tema (ao modo da arte de Léger ou
Benton), mas como forma e procedimento técnico radical. Com isso, o artista
eleva e transfigura o trabalho industrial ao seu conteúdo de verdade, como
forma negativa e degradada da experiência social. Como em Wols, seu
precursor, a imagem e a transcendência estéticas saem destruídas,
mergulhando o espectador no crepúsculo do sentido – um processo
estritamente homólogo à divisão do trabalho fabril, que reduz e destrói a
imagem integral do processo e não só ela, é certo, o próprio trabalhador. Por
isso também essa obra se constrói no limiar de se tornar não-obra, uma coisa –
a real thing – entre as coisas do real. E que se mantém de pé somente por um
milagroso tour de force, que a permite apresentar “sensações pictóricas
imediatas e concretas” inigualáveis. (DUARTE, Extratos de Pollock, p. 273)

Duarte realiza uma análise primorosa do desenho Guerra [War122, 1947], de Pollock.

Para o crítico, o artista cria uma massa “informal” no centro do quadro, à qual confronta

com figuras “formais” aparentemente criadas a partir das técnicas tradicionais de desenho,

mas desprovidas de utilidade ou objetivo no quadro, senão o de aparecerem como

contraponto ao “não-figurativo”. Inúteis como escombros de guerra ou a legião de

desempregados no mundo subdesenvolvido, as figuras em sua especificidade caminham

121 ADORNO, Teoria Estética, p. 51


122 Jackson Pollock, War, 1947, tinta e lápis-de-cor sobre papel, 52,4 x 66 cm. Metropolitan Museum of Art,
Nova Iorque.
80

em direção à massa amorfa, de modo análogo ao violento processo de homogeneização

geral operado pela razão instrumental e acentuado no capitalismo avançado, que destrói

os predicados particulares dos indivíduos e coisas em prol da nefasta ambição totalitária

da forma-mercadoria: tudo deve ser mercadoria e abandonar seus demais predicados, ou

será aniquilado. Todavia, a mercadoria já aniquila as coisas e indivíduos no momento em

que as transforma em si mesma. O impasse de nosso tempo é que a forma-mercadoria é

total: ou a tudo e a todos transforma em valor de troca, ou violentamente dá fim à

existência do diverso.

Figura 25. Pollock, Guerra, 1947

Fonte: disponível em: <https://www.metmuseum.org/art/collection/search/482445> Acesso em 13 dez. 2019.


© 2010 The Pollock-Krasner Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York

Embora pouco comentado, nele [um desenho de Pollock chamado War, de


1947] pode-se ver em ato a transição do concreto ao abstrato da produção
pollockiana na massa de matéria acumulada ao centro. Ao hipostasiar as
técnicas do all-over e do dripping, fechando virtualmente todos os poros e
constituindo massas formais-informais, Pollock as inutiliza como processo
criador e construtivo. Tal qual no capitalismo, as forças produtivas invertem-se
em forças automatizadas, virtualmente inúteis, como a arte, e principalmente
destrutivas. As figuras inúteis se acumulam até o céu, a arte aparece como vão
81

dispêndio de material. O posterior bloqueio da objetivação e da expressão do


eu ou do espaço de representação vivido passa a expressar dolorosamente a
ruína do representado. O artista revela a si e à própria sociedade como sujeito-
sujeitado à substância do trabalho abstrato, reduzido ao puro gesto mecânico,
pronto a ser deslocado de lá para cá a soldo do capital, no limite convertível
numa massa descartável em campo de batalha. Exatamente isto em War: a
conversão do vivo em morto ou em massa amorfa. Um homem e um boi
sangrando são aqui lançados numa pilha de escombros putrefatos; outro ser é
crucificado; nenhuma saída à vista. Em certo sentido, uma imagem dialética do
processo de “proletarização do mundo”: a redução prática das qualidades
naturais e humanas à pura substância de valor ou de corpos extermináveis pelo
estado de exceção mundial na era atômica que então se consolidava. É assim
que se pode retomar o aspecto sensível em sua obra, no sentido de uma
resensibilização de seus materiais. (DUARTE, Extratos de Pollock, p. 281-2)

Figura 26. Siqueiros, Suicídio Coletivo, 1936

Fonte: disponível em: <https://cultureinjection.wordpress.com/2016/06/09/david-alfaro-siqueiros-3-


pinturas-alta-resolucao/david-alfaro-siqueiros-collective-suicide/> Acesso em 13 dez. 2019. © 2019 Siqueiros
David Alfaro / Sociedade dos Direitos dos Artistas (ARS), Nova York / SOMAAP, México

Ainda que avançada, a técnica de tensionar massas formais e informais não era

propriamente originalíssima. Professor de Pollock, o grande muralista mexicano David


82

Alfaro Siqueiros já havia feito isso antes. Em sua obra Suicídio Coletivo123 [1936], vemos na

parte inferior do quadro dois blocos opostos com figuras definidas. No bloco do lado

esquerdo, o grupo carrega armas mas está nu, em conflito sobre a pedra, com corpos

caindo do abismo e sangue derramado no chão. No bloco do lado direito, avança em

formação o grupo a cavalo, de corpo coberto e com elmos e lanças. Os blocos estão

separados pelo precipício; é como se as duas civilizações jamais se tocassem - não

compartilham de nenhuma ética ou epistemologia comuns. Essas figuras, mais ou menos

reconhecíveis por alusão, remetem às guerras da colonização. Mas o que mais impressiona

nesta obra de Siqueiros é a indeterminação que perpassa toda a parte superior do quadro.

Os tons de ocre no centro, e mesmo os tons de amarelo e vermelho aparecem numa

atmosfera sombria. É como se fosse impossível qualquer vida ali. Se Siqueiros era em vida

um stalinista, não podemos dizer a mesma coisa em arte, ao menos no Suicídio Coletivo.

Pollock, com seu ímpeto inovador, posteriormente desafiou ainda mais a figuração

estabelecida. Dois dos procedimentos técnicos radicais de Pollock foram o dripping (jogar a

tinta diretamente na tela, abdicando do pincel) e o all-over (pintar com a tela no chão em

vez de pendurada no cavalete); além disso, o artista absorve o material bruto da indústria

como material de sua própria obra. Assim, através da utilização de esmaltes metálicos e

vernizes de automóveis nas obras, e apesar de não-figurativas, elas “estouram” aos olhos

como uma densidade de tensões, mimetizadas das tensões da sociedade tecnológica diante

do capitalismo avançado, e o mais importante: a partir dos materiais característicos da

distopia industrial dessa mesma sociedade. É assim por exemplo no enorme Ritmo de

Outono [Autumn Rhytm124,1950].

123 David Alfaro Siqueiros, Collective Suicide, 1936, laca em madeira com seções aplicadas, 124,5 x 182,9 cm.
MoMA, Nova Iorque.
124 Jackson Pollock, Autumn Rhytmn, 1950, esmalte sobre tela, 266.7 x 525.8 cm. Metropolitan Museum of
Art, Nova Iorque.
83

Figura 27. Pollock, Ritmo de outono, 1950

Fonte: disponível em: <https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/57.92/> Acesso em 13 dez. 2019. ©


2019 Artists Rights Society (ARS), New York

Criadas pelo infinito gotejamento das tintas, as linhas confundem-se, mas


nunca desaparecem: são como a materialização assustadora de trabalhos
enérgicos – sem propriamente criar e figurar nada no detalhe –, em que tudo se
interliga e se antagoniza, formando, porém, uma série de caminhos que levam
a lugar algum nem se resolvem harmonicamente. A tinta alumínio se projeta
para a frente. O que lhe dá um aspecto de teia, nebulosa ou megalópole, com o
mesmo substrato fantasmático de valor... A falta do foco central e da hierarquia
pode ser superada quando se toma o centro como a própria totalidade da obra,
como movimento de mediação, tal como o capital, subordinando tudo ao seu
padrão uniforme, se autorrepele e retorna a si e já não prescinde de nenhuma
parte para se constituir como tal. (DUARTE, Extratos de Pollock, p. 272)

Desta vez o traço não serve nem para delimitar e discriminar, nem para

construtivamente criar movimento, como em Klee: a linha pollockiana é constitutiva do

caos, como as trajetórias erráticas dos sujeitos desorientados em direção ao nada, ao

desnaturado, ao sem-forma, ou cuja forma particular foi violentamente apagada em prol

da homogeneização geral, irrestrita e irrefreável da forma-mercadoria, que é o motor do

processo de globalização que conduz ao mundo completamente administrado. Se as linhas

de Pollock são feridas no tecido social, e sua obra não apresenta delimitações claras, é
84

como se a obra explodisse para fora, e pudesse continuar a registrar as feridas sociais

infinitamente, até o real fim da humanidade.


O movimento do capital é “sem fim” e “desmedido”. Do mesmo modo, o
trabalho aqui não tem começo e muito menos um fim predeterminado.
Ninguém pode dizer que ele não poderia ser continuado ad infinitum – até o
“apocalipse”, que é também a aparência de muitas de suas telas –, tal é a sua
lei. Desse modo, ela tende a se tornar uma work in progress ou uma espécie de
“obra aberta sempre aberta” a uma nova rasura. (DUARTE, Extratos de Pollock,
p. 265)

Portanto, algo da mímese negativa do sofrimento socialmente compartilhado se

mantém na obra pollockiana, e as sensações pictóricas que gera não estão no regime da

arte pela arte, e sim da arte que demonstra em si a ferida social que a sociedade burguesa

se esforça em esconder; outra força que opera nessas obras é a vontade criativa e violenta

provinda da liberdade reprimida no indivíduo, que se realiza virtualmente no ato artístico

de debruçar-se perante o material, e a dificuldade em lidar com essa liberdade e

apresentar uma totalidade ordenada – que é o mesmo problema do sentido da vida,

triturado pelo desencantamento do mundo e pela divisão social do trabalho.


Quanto mais brutalmente as obras tiram consequências do estado de
consciência, mais densamente elas próprias se aproximam da ausência de
sentido. (ADORNO, Primeira introdução à Teoria Estética, p. 95)

Segundo Duarte, “em termos benjaminianos, a arte de Pollock passa a configurar

imagens dialéticas destas dificuldades: saltar fora da rede, parar a locomotiva do

progresso, explodir o continuum vazio e homogêneo da história 125.” Não é isto o exemplo

máximo de “combustão da aparência”, elogiado por Adorno em Wols?


Arte desencantada, quebradora de tabus e convenções, ao mesmo tempo,
aquela espécie de “participação nas trevas” identificada por Adorno na arte
moderna, que incorpora em si a alienação da totalidade, vestindo o “ideal do
negro” e criando uma espécie de “compensação imaginária” utópica diante da
“catástrofe da história do mundo” – eis os dois ou três momentos significativos
que, como tudo em Pollock, se entrelaçam, conferindo-lhe densidade histórica
e tornando o seu trabalho uma referência central do alto modernismo.
(DUARTE, Extratos de Pollock, p. 263)

125 DUARTE, Cláudio R., Extratos de Pollock, p. 287


85

O debruçar-se sobre a obra do artista pode revelar muitas coisas interessantes. Meu

esforço aqui foi o de mostrar como a obra de Pollock não só é interessante, como pensava

Adorno, mas que possui várias características pelas quais primava o filósofo na arte

moderna: apropria-se de materiais industriais, tem preferência pelas cores escuras e expõe

em sua própria forma, levada ao limite da abstração, a fragmentação do sentido da vida

pela divisão social do trabalho.

Adorno criticava a action paiting pela suposta tendência de se afastar

completamente da figuração, extinguindo qualquer traço que remetesse ao real concreto, e

consequentemente à sua história. Pode-se dizer que esse processo de abstração é

gradativo, e determinadas obras de Pollock são mais abstratas do que outras. O Ritmo de

Outono não contém estritamente écritures, signos do real. Todavia, me parece que a própria

obra é uma escritura126 em sua completude: a insígnia do caos desorientador e ao mesmo

tempo da homogeneização da vida no império da mercadoria, que opera como totalidade

e abdica do particular. Portanto, opera no registro da mímese negativa e do desnudamento

da dor social.
Mesmo naquilo que figura vaguement sob o nome de pintura abstracta,
sobrevive algo da tradição, que por ela foi eliminada; ela aplica-se
provavelmente ao que se percebe já na pintura tradicional, na medida em que
os seus produtos se concebem como quadros e não como cópias de alguma
coisa. A arte leva a cabo a decadência da concreção, em que a realidade não
quer consentir e na qual o concreto constitui apenas a máscara do abstracto, o
particular determinado, simplesmente o exemplar representativo e enganador
da universalidade, idêntico com a ubiqüidade do monopólio. A sua ponta
volta-se assim contra toda a arte tradicional. (ADORNO, Teoria Estética, p. 44)

126 “O que Adorno mostra é que a obra se torna signo – isto é, adquire sentido – não simplesmente pela
conexão com um quadro de convenções dadas historicamente, mas sim através da ruptura com qualquer
designação. Música e pintura se aproximam não por pseudomorfose, ou seja, não porque usurpam o medium
específico uma da outra, mas convergem ao levar às últimas consequências a recusa de formas previamente
dadas – tornam-se assim uma “écriture”, uma escrita da experiência da não-identidade.” PATRIOTA,
Theodor Adorno e a construção do modernismo artístico. Tese de doutorado em andamento, IFCH – Unicamp.
86

Capítulo VI - A atualidade dos conceitos de raiz adorniana para a crítica das artes visuais

Como teórico exemplar do modernismo, e irrefreavelmente da superação

consciente dos limites formais, Adorno defende uma pintura que tende a tensionar a

figuração, mas que preserva traços que remontam ao mundo concreto, já que é dele que a

arte retira seus materiais e temas. Esses traços, “escrituras”, para estarem de acordo com a

verdade histórica, devem ser receptáculos da dor socialmente compartilhada. Quero dizer

que a arte que expressa a verdade histórica é aquela que, enquanto expressão adequada da

forma e do conteúdo mais avançados em determinada época, desnuda as estruturas de

dominação ao apresentar a crueldade sem disfarces. Isso não significa que essa arte deva

ser exatamente “séria”, mas decerto é falsa se for alegre.


Onde a arte se pretende por si mesma ser alegre e, com isso, tenta adaptar-se a
um uso que, segundo Hölderlin, nada de sagrado pode mais servir, acaba
reduzida a simples necessidade humana, traindo seu conteúdo de verdade. Sua
vivacidade disciplinada adapta-se ao mecanismo do mundo. Encoraja os seres
a se deixarem levar pelo que é o status quo, a colaborar. […] A arte que penetra
no desconhecido, a única forma agora possível, não é séria nem alegre; a
terceira oportunidade, no entanto, está encoberta como se mergulhada no
nada, cujas figuras são descritas pelas obras de arte de vanguarda. (ADORNO,
A Arte é alegre? [1967], p. 2-3)

Na obra Tracer127 [1963], o pintor estadunidense Robert Rauschenberg traz à tona

elementos característicos da contemporaneidade. Na parte inferior da tela, vemos algo que

parece uma avenida movimentada, nonde figuram um carro, prédios, transeuntes e uma

cafeteria, coloridos de preto e marrom. Mais acima, a superfície branca aparece como

ruptura, no que parece representar a cisão entre ideal e concreto. Nessa parte elevada do

quadro, uma figura chama a atenção: uma mulher “ao estilo clássico” de frente para um

espelho. Essa mulher, deslocada de contexto, está acima do mundo concreto. Todavia,

desnaturada e espelhada, ela parece ameaçada. Na superfície branca estão à espreita uma

127 Robert Rauschenberg, Tracer, 1963, óleo e silk-screen sobre tela, 213,7 x 154,4 cm. The Nelson-Atkins
Museum of Art, Kansas City. O título Tracer parece remeter ao conceito químico de “marcador”, utilizado
para medir a pureza ou o grau de componência de determinadas substâncias nos compostos químicos.
Steinberg defende que a obra de Rauschenberg é um “marcador” distintivo na relação da pintura com o
espaço, instituindo a pintura flatbed. Ver: STEINBERG, Outros critérios [1972].
87

águia, dois helicópteros de guerra e dois poliedros. A águia, ave de rapina, é símbolo

tradicional do império americano, dos barões das grandes multinacionais que estão

sempre à espreita e não poupam esforços para maximizar a margem de lucro à revelia das

vidas humanas e da destruição dos bens naturais. Os helicópteros, as máquinas de guerra

e de vigilância, parecem prontos para despejar bombas que transformam as coisas e as

ideias em escombros. Já os poliedros vazios fazem parte do processo radical de abstração,

que retira as qualidades dos materiais em busca de uma pureza carente de conteúdo. A

águia, os helicópteros e os poliedros são ameaças iminentes à mulher de estilo clássico,

mas também aos prédios e aos transeuntes concretos. A mediação entre o plano concreto e

o abstrato parece se dar pelas figuras de duas aves empoleiradas: quando em uma época

predomina hegemonicamente o uso instrumental dessa razão, transforma a liberdade em

grilhões. O movimento do quadro, reforçado pela seta saindo do paralelepípedo, parece

ser de baixo para cima: primeiro, a matéria urbana bruta da sociedade industrial; depois,

as formas elevadas, criadas pela sociedade, ameaçando a beleza e também o mundo

concreto que as criou.

Figura 28. Rauschenberg, Tracer, 1963

Fonte: disponível em: <https://art.nelson-atkins.org/objects/13700/tracer> Acesso em 13 dez. 2019. Art ©


Estate of Robert Rauschenberg / Licensed by VAGA at Artists Rights Society (ARS), New York
88

A obra de Rauschenberg utiliza-se do silk-screen, método industrial de impressão de

imagens sobre tela; coloca figuras diferentes em tensão; e apresenta a “participação nas

trevas”, com tons escuros e ambiente ameaçador. Conscientemente ou não, o quadro de

Rauschenberg apresenta o processo da razão instrumental e sua tendência destrutiva.

Esses são alguns elementos que, numa visão adorniana, tornam sua obra relevante.

Ainda que Rauschenberg apresente elementos da dor socialmente compartilhada, o

artista contemporâneo que mais levou a sério esse compromisso foi o alemão Anselm

Kiefer. A obra de Kiefer opera como uma arte da memória e portadora da história, pois

está permeada de “escrituras”, inscrições desvelando os perigos do espírito nacionalista

alemão, e a consequência prática desse pensamento, que deu naquilo que nunca deve ser

reduzido e muito menos esquecido: o nazismo. Em Todos estão sob sua própria cúpula no

céu128 [1970], vemos um indivíduo reduzido vestido com trajes militares e fazendo a

saudação nazista; todavia, ele está envolto numa cúpula ou domo, aparentada a uma

bolha. O solo está deteriorado, e as linhas verticais lembram as cercas de um campo de

concentração. O indivíduo fascista há muito está apartado da consciência da realidade,

pois para ele só existe a razão instrumental; faz parte de um mecanismo maior do qual é

mera engrenagem, e trabalha fielmente para obedecer a esse ideal: a nação. O sujeito

completamente apartado da consciência coletiva está também apartado da história, e por

isso é negacionista e adepto das fábulas e grandes feitos, da narrativa nacional falsa,

enquanto a vida real – da qual ele não suporta a consciência - consiste em pessoas de

sangue frio derramarem o sangue de outros seres humanos; é a divisão social do

genocídio, na qual os assassinos são meros apertadores de parafusos, e a dinâmica do

trabalho alienado transforma todos os seres humanos em indivíduos apartados de

qualquer sociabilidade, incluídos no meio social somente enquanto força de trabalho e

mercado consumidor. Na bolha mentirosa da ideologia, uma saudação nazista pode

parecer razoável e ser justificada por qualquer evocação patética da “liberdade de

128 Anselm Kiefer, Everyone Stands Under His Own Dome of Heaven, 1970, aquarela, guache e grafite sobre
papel, 40 x 47,9 cm. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.
89

expressão”; comparada com o mundo à sua volta, ao nos depararmos com os túmulos

daqueles a quem os nazistas não consideravam seres humanos – mas que são pais ou avós

de muitas pessoas vivas - , fica claro que a saudação nazista deve ser motivo de vergonha

eterna.

Figura 29. Kiefer, Todos estão sob sua própria cúpula do céu, 1970

Fonte: disponível em: <https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1995.14.4/> Acesso em 13 dez. 2019.


© Anselm Kiefer

Figura 30. Kiefer, Paisagem de Inverno, 1970

Fonte: disponível em: <https://www.metmuseum.org/pt/art/collection/search/486573> Acesso em 13 dez.


2019. © Anselm Kiefer
90

Ainda sobre o nazismo, Paisagem de Inverno129 [1970] é uma obra potente.

Novamente vê-se o solo remetendo a um campo de concentração no inverno rigoroso, com

o sangue em destaque sobre o branco da neve. Na parte superior, em meios às nuvens,

emerge uma cabeça decapitada. Se existe o espírito alemão e ele é ligado àquela terra, a

Segunda Guerra serviu para manchar o solo sagrado com o sangue do próprio espírito,

derramado por e através dos cidadãos alemães.

Outro tema comum na trajetória de Kiefer é a distopia das megalópoles. Em sua

série Lillith130, inspirada na cidade de São Paulo, apresenta os grandes centros urbanos

sempre envolvidos por uma sombra persistente. É como se a própria sombra tornasse a

cidade inviável, fosse algo impregnado naquela paisagem. A sensação é de que seguimos o

caminho errado em nossa construção enquanto civilização, e estamos próximos de um fim

de linha. Lilith é a imagem de uma história que nos levou à iminência da catástrofe, em

cidades cronicamente inviáveis.

Figura 31. Kiefer, Lillith, 1987-89

Fonte: disponível em: <https://www.flickr.com/photos/41790321@N07/25147943125 > Acesso em 13 dez. 2019.


Crédito: Touristos

129 Anselm Kiefer, Winterlandschaft, 1970, aquarela, guache e grafite sobre papel, 43,2 x 35,9 cm.
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.
130 Anselm Kiefer, Lilith, 1987/1989, óleo, laca, chumbo, cinzas, papoula, cabelo e argila sobre tela, 380 x 560
cm. Coleção Hans Grothe.
91

Os cidadãos do terceiro mundo conhecem muito bem a realidade de cidades

cronicamente inviáveis. Seria impossível se no Brasil nenhum artista plástico de

consciência avançada expressasse essa realidade melancólica e irresoluta. Iberê Camargo

foi um dos artistas recentes que melhor absorveu a ideia de “participação nas trevas” da

mímese negativa, e levou-a consigo por toda a sua obra. Em Tudo te é falso e inútil IV 131

[1992], vemos uma figura mórbida, imersa num ambiente de cores escuras, aparentemente

a conversar com uma sombra. Esse é o indivíduo desorientado, filho das grandes cidades,

sem objetivos, sem verdades, que não é capaz de dar vazão a seus próprios talentos,

vivendo uma solidão involuntária e uma existência sem sentido – falando para a própria

sombra. Iberê apropria-se do feio para fazer emergir na cara do espectador a miséria

humana em sua magnitude titânica.

Figura 32. Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil IV, 1992

Fonte: disponível em: <http://iberecamargo.org.br/obra/p033/> Acesso em 13 dez. 2019. Foto © Fundação


Iberê Camargo

Há um outro trabalho de Iberê Camargo do qual quero falar aqui. Trata-se de um

outdoor feito por encomenda do Jornal Zero Hora, de Porto Alegre. No ano de 1983, o

131 Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil IV, 1992, óleo sobre tela, 200 x 236 cm. Fundação Iberê Camargo,
Porto Alegre.
92

jornal encomendou a artistas eminentes do estado do Rio Grande do Sul que realizassem

obras que seriam reproduzidas em outdoors pela cidade. Em seu outdoor, Iberê imitou o

célebre quadro A criação de Adão (1515), de Michelangelo; todavia, na pintura de Iberê,

Deus mais parece um demiurgo, e sua criação, um amontado de caveiras sobre fundo

vermelho e preto. É como se a civilização, no ato de vir-a-ser, já adviesse natimorta. O

próprio artista explica sua intenção:


Empreguei velhos símbolos como a criação do homem segundo Miguel
Ângelo, quando o Criador toca a mão da criatura com a vida, para lembrar que
agora esse homem tem a capacidade de destruir o que foi criado. Não creio que
essa preocupação com o holocausto nuclear seja coisa para gente do Primeiro
Mundo, apenas. Nós, cidadãos de terceira classe do planeta, também vamos
morrer quando uma das superpotências apertar aquele maldito botão. Aqui no
Brasil somos alienados, ficamos presos no grito de gol. Minha mensagem de
Ano Novo não é de euforia, mas de preocupação. Posso ter sido panfletário,
mas jamais omisso. A hora exige clareza. Não nasci para enfeitar o mundo. A
Arte é para dizer algo profundo, a Arte é a voz do Homem. (IBERÊ
CAMARGO, Entrevista ao Zero Hora, 19/12/1983)

Figura 33. Iberê Camargo, Panfletário talvez, omisso não, 1983

Fonte: disponível em: <http://iberecamargo.org.br/documento/f4864/> Acesso em 13 dez. 2019.


Acervo Documental Fundação Iberê Camargo
93

O quadro de Michelangelo foi feito na época de recuperação da razão grega na

Europa Ocidental, e a física matemática ainda era um saber em busca de consolidação. A

obra de Iberê Camargo mostra como essa razão não só pode gerar, como gerou destruição:

reproduz o processo dialético do esclarecimento, com a hegemonia histórica da razão

instrumental. Panfletária seria se o tema fosse positivo e a forma, agradável. Ao lado da

reprodução da imagem criada por Iberê, acompanha a mensagem do jornal: “Colorimos a

cidade com otimismo. Feliz 1984.” É por levar a sério o desvelamento da crueldade que

Iberê Camargo é um artista cuja obra se mantém relevante.

Lá pelos anos de 1910, havia um artista brasileiro estudando pintura na Suíça

quando travou contato com os desenhos de Alfred Kubin. Esse encontro teve impacto

profundo na arte brasileira. O nome do artista é Oswaldo Goeldi.

Figura 34. Kubin, Medo132, 1903

Fonte: disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/93/Angst_by_Alfred_Kubin.jpg>


Acesso em 13 dez. 2019

132 Alfred Kubin, Angst, 1903. Coleção particular.


94

Os desenhos de Kubin, com suas distorções oníricas, porém fantasmagóricas e

distópicas – uma figuração do pesadelo - são um marco do expressionismo europeu.

Goeldi aprendeu com Kubin a composição de luz e sombra e preto-e-branco, mas não

imitou-o nem no desenho ondulado, nem na figuração onírica, muito menos no meio

artístico: Goeldi optou pela gravura133 como meio de expressão.

Figura 35. Goeldi, Briga de rua134, 1926

Fonte: disponível em: <https://www.artforum.com/print/previews/201205/oswaldo-goeldi-30895> Acesso em


13 dez. 2019

A gravura de Goeldi, predominantemente em preto-e-branco, retrata não mais o

universo dos sonhos, e sim a vida real do trabalhador nas grandes cidades do terceiro

mundo. Não um retrato otimista e heroico, como no realismo socialista 135, mas uma

representação da precariedade do modo de vida das camadas mais baixas. Um elemento

de qualidade na obra de Goeldi é a dissolução da identidade de seus retratados. Está ali

um corpo agindo, o indício de um olhar, mas não uma pessoa propriamente individuada.

133 Para entender melhor a relevância internacional da gravura brasileira até hoje, há uma curta porém
incisiva entrevista com Leon KOSSOVITCH para o SESC-SP em 31/08/2012.
134 Oswaldo Goeldi, Briga de rua, 1926, xilogravura, 14 cm x 20,30 cm.
135 “Em 1953, quando [Carlos] Scliar e Danúbio [Gonçalves] viajaram à URSS, junto com uma delegação de
intelectuais do PCB, e apresentaram aos membros da Academia de Belas Artes da URSS a produção do
Clube de Gravura de Porto Alegre, foram criticados pelo aspecto decorativo relacionado ao regionalismo. De
acordo com a diretriz socialista, o trabalhador deveria ser desenhado em ação, na luta, com expressão
otimista, confiante.” Bianca KNAAK e Talita MOTTER, O real socialismo nas impressões artísticas do Clube de
Gravura de Porto Alegre: engajamento e dispersão [2013], p. 58.
95

Essa desindividuação não é mentirosa: a sociedade da mercadoria, que iguala tudo e todos

ao valor de troca da própria capacidade de trabalho, se esforça por dissolver o indivíduo

em massa; as figuras negras de Goeldi, carentes de futuro, sem heroísmo, sem expectativa

e, formalmente, sem luz, são mais verdadeiras do que as apologias muralescas da classe

trabalhadora. Na minha concepção, dentro da arte nacional, Goeldi, junto de Iberê

Camargo, são artistas paradigmáticos para o que significa, segundo Adorno, a

“participação nas trevas”.

Figura 36. Renina Katz, O tempo e o vento, 1994

Fonte: disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra58114/o-tempo-e-o-vento> Acesso em 13


dez. 2019. Foto: Antonio Saggese/Itaú Cultural

Renina Katz foi outra importante artista que, num primeiro momento de sua

trajetória, retratou o trabalhador desindividuado em sua rotina extenuante. A partir dos

anos 1970, interessa-se por tendências ditas “abstratas”. Na litografia O tempo e o vento136

136 Renina Katz, O tempo e o vento, 1994, litografia sobre papel, 61 cm x 40 cm. Coleção da artista.
96

[1994], encontramos uma expressão muitíssimo forte: eu diria até sublime. As cores

matizadas nos cantos gradativamente misturam-se numa expressão do movimento que

deixaria admirado até o próprio Paul Klee. As linhas das matrizes interpenetram-se,

continuando suas trajetórias, mas em outras cores e volumes. A tensão do quadro parece

nunca resolver-se. Insinuando tempestade, cachoeira, lava ou o que quer que seja, Renina

Katz quer insinuar o movimento primordial, para além de nossa apreensão completa: as

forças subjacentes ao mundo, que podem irromper a qualquer momento. Em tempos de

Antropoceno e catástrofe ambiental, a força da natureza é uma força progressista.


97

Excurso I - Estado da arte: sobre Jay Bernstein

No percurso desta pesquisa, encontrei pouquíssimos textos nos quais os autores

articulam a crítica de artes visuais com conceitos de raiz adorniana, excetuando aqueles

que evocam Adorno rapidamente, de passagem. Um desses textos é o de Claudio R.

Duarte, que acompanhou a reflexão sobre Pollock no capítulo anterior, e cujos méritos já

foram destacados. No entanto, o único autor que parece tomar para si os conceitos

adornianos para versar especificamente sobre pintura, faz deles os fios condutores de suas

reflexões, e cuja produção é repetidamente permeada por esse ímpeto, é o crítico

estadunidense Jay Martin Bernstein. Discutiremos aqui dois de seus textos, nos quais

reivindica a teoria estética de Adorno para ir além do próprio texto: em suma, realizar

propriamente crítica de pintura. São eles: “A demanda pela fealdade”: corpos de Picasso [2010]

e A morte das particularidades sensíveis: Adorno e o expressionismo abstrato [1996].

O primeiro momento importante do texto de Bernstein sobre Picasso é o de situar o

quadro Les Demoiselles D’Avignon como uma virada axial (axial rotation) na arte moderna.

Para Bernstein, o quadro de Picasso, pela primeira vez, deu hegemonia aos objetos, e

consequentemente aos corpos; desse modo, os objetos e corpos emergem nas obras –

também – em toda a sua fealdade. Essa é a virada axial que torna possível as Demoiselles.

Bernstein ainda defende que, em Adorno, a fealdade em sua completude apresenta quatro

características: dissonância, forma avançada, retorno do arcaico reprimido e expressão da

dor; todas essas características reagem contra o sistema de beleza estabelecido – projeção

histórica da repressão sexual, cujo repertório conceitual provém da lógica formal.


Les Demoiselles d'Avignon mobiliza as quatro teses sobre a fealdade -
protestando contra a harmonia repressiva através da dissonância; promovendo
o avanço artístico; o retorno do arcaico reprimido; a expressão do sofrimento -
em sua ambição de expressar a ambiguidade primitiva e irresolúvel da
sexualidade humana, onde a sexualidade humana é levada, através do sistema
de beleza, a ser internamente relacionada com a própria ideia, a lógica formal
98

da pintura moderna. (BERNSTEIN, “A demanda pela fealdade”, p. 225137, tradução


nossa)

Para Bernstein, a fealdade faz aparecer tudo aquilo que o sistema formal quer

esconder. Desse modo, a mímese da fealdade, em algumas obras de Picasso, é conjugada

de uma racionalidade não-instrumental, a ponto de dar voz ao inconsciente reprimido

através de rupturas formais. Esse é o ímpeto do modernismo, plenamente realizado nas

Demoiselles.
O Modernismo é a operação da dialética negativa na arte; é que a prática
artística critica a racionalidade abstrata, permanecendo um repositório para
uma racionalidade - mimética - alternativa. O Modernismo torna-se assim a
voz da particularidade sensível contra a abstrata racionalidade. (BERNSTEIN,
“A demanda pela fealdade”, p. 213138, tradução nossa)

Segundo Bernstein, essa ruptura formal, contra o engessamento da lógica formal na

arte e na sociedade, se dá por meio da parataxe 139. Esse mecanismo consiste em colocar ao

lado, e sem conectivos, duas ou mais coisas diversas. Na pintura, isso se dá na justaposição

de figuras sem mediação entre elas, criando “choques”.


Minha hipótese aqui é que Picasso emprega o que é melhor pensado como o
equivalente pictórico da parataxe, a fim de realizar esse desordenamento
sistemático, um desordenamento em uma nova concepção de ordem pictórica.
Literalmente, parataxe é uma forma de sintaxe em que unidades semânticas -
palavras, cláusulas, frases, parágrafos - são ordenadas por pura justaposição,
ao invés de subordinação lógica/conceptual, que é sinalizada pelos conectivos
familiares da sintaxe hipotática: se x, então y; x porque y; x necessita y; x; e
assim por diante. Com parataxe há apenas os itens definidos ao lado um do
outro -xy - com o caráter de sua relação a ser eliciado através da consideração
reflexiva de seus respectivos conteúdos semânticos/materiais. Adorno defende
que a parataxe é um dos mecanismos centrais do modernismo artístico, porque

137 “Les Demoiselles d’Avignon mobilizes all four theses on ugliness— protesting repressive harmony through
dissonance, promoting artistic advance, the return of the archaic repressed, the expression of suffering—in
its ambition of expressing the primitive and irresolvable ambiguity of human sexuality, where human
sexuality is taken, via the beauty system, to be internally related to the very idea, the formal logic of modern
painting.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p. 225.
138 “Modernism is the operation of negative dialectic in art; it is that art practice that criticizes abstract
rationality by remaining a repository for an alternative—mimetic—rationality. Modernism thereby becomes
the voice of sensuous particularity against abstract rationality.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p.
213.
139 Me parece que a escrita filosófica de Adorno, cujo testemunho exemplar é a Dialética do Esclarecimento,
também se move por parataxe: frases densas de conteúdo que chocam-se entre si, e cuja mediação não é
conectiva, e sim no próprio fluxo do livro e da consciência de quem o acompanha na leitura.
99

abre a possibilidade de uma relação diferente entre conceito e objeto, unidade e


multiplicidade. (BERNSTEIN, “A demanda pela fealdade”, p. 226-7140, tradução
nossa)

A parataxe liberta os objetos de seus lugares e significados tradicionais; portanto,

rompe com o sistema pictórico baseado em mediações: radicalmente, a parataxe é um

mecanismo capaz de dar voz aos objetos, livres de relações anteriormente a eles

imputadas. Bernstein dá um exemplo de parataxe no próprio quadro das Demoiselles:


Uma pequena mas óbvia instância do procedimento paratático de Picasso: a
mão esquerda da figura da extrema esquerda, que parece flutuar desconectada
acima de sua cabeça, sem a mediação - organizadora, sintática - do
comprimento e distância do braço. (BERNSTEIN, “A demanda pela fealdade”, p.
229141, tradução nossa)

Ora, o segundo momento importante do texto de Bernstein é a distinção entre a fase

materialista de Picasso, que se inicia nas Demoiselles e é retomada após o cubismo; e o

próprio cubismo, que seria um interlúdio idealista na trajetória artística do pintor.

Bernstein defende que, nas Demoiselles e após o cubismo, Picasso deixa o objetos

emergirem sem imputar-lhes formas de antemão, dando vazão à potência da fealdade e à

expressão subjetivamente elaborada do sofrimento. Enquanto isso, a fase cubista, segundo

Bernstein, preocupa-se em realizar uma arte objetiva, à revelia da subjetividade, na qual os

objetos supostamente teriam voz própria independentemente do sujeito.


O pretendido divórcio do cubismo das sombras de uma subjetividade sempre
privada é o que chamou a atenção para o fato de que ele deveria ser a

140 “My hypothesis here is that Picasso deploys what is best thought of as the painterly equivalent of
parataxis in order to accomplish this systematic disordering, a disordering into a new conception of pictorial
order. Literally, parataxis is a form of syntax in which semantic units—words, clauses, sentences, paragraphs
—are ordered by sheer juxtaposition rather than through logical/conceptual subordination that is signposted
by the familiar connectives of hypotactic syntax: if x, then y; x because y; x necessitates y; and so on. With
parataxis there are just the items set next to one another—xy—with the character of their relation to be
elicited through reflective consideration of their respective semantic/material contents. Adorno argues for
parataxis being one of the central mechanisms of modernist art since it opens up the possibility of a different
relation between concept and object, unity and multiplicity.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p. 226-
7
141 “Let me begin by considering a small but obvious instance of Picasso’s paratactic procedure: the far left
figure’s left hand, which appears to float disconnected above her head, without the—organizing, syntactical
—mediation of arm length and distance.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p. 229.
100

verdadeira linguagem da pintura, a própria linguagem autônoma da pintura.


(BERNSTEIN, “A demanda pela fealdade”, p. 215142, tradução nossa)

Para Bernstein, após o cubismo, Picasso preocupa-se em salvar sua pintura do

geometrismo puro, e por isso retorna à expressão do horror, cujo resultado mais conhecido

é Guernica. Todavia, como já foi tratado no capítulo sobre Picasso, Adorno notava

importância substancial no cubismo sintético, principalmente por incorporar objetos reais

às obras, dando-as uma concretude inédita. Ao que me parece, Adorno concordaria com a

análise da fealdade nas Demoiselles, mas não poderia concordar com a opinião da

neutralização do cubismo como expressão autêntica, principalmente da parte de seus

precursores.

No entanto, esse movimento de comparar a fonte textual e seus usos serve somente

para demarcar qual é o pensamento estritamente do autor original, e onde começa a obra

autônoma daquele que se deixou influenciar. Bernstein é um crítico emancipado, e seu

trabalho é muito mais inspirado em Adorno do que propriamente adorniano. É interessante

e original, por exemplo, sua hipótese de que as Demoiselles operam no registro hegeliano

da dialética do senhor e do escravo 143, dando vazão à expressão potente do que era

reprimido (o escravo), que faz tremer a estrutura dominante que não permitia a si mesma

a permeabilidade do reprimido (o senhor, que depende do escravo para sua sobrevivência,

e este é sua mediação em relação ao trabalho).


Picasso consegue fazer das Demoiselles um momento de autoconsciência radical
por parte do espectador, porque a pintura opera um desmantelamento
sistemático da imagem do espectador. […] Les Demoiselles D'Avignon é
realmente primitivo, mas primitivo da mesma forma que o estado de natureza
de Hobbes é primitivo, ou mesmo a luta do Hegel pelo reconhecimento é
primitiva, terminando na dialética do senhor e do escravo. Nesta pintura é
revelada a dialética do senhor e do escravo; fonte do poder do escravo sobre o
seu mestre; e aqui, pela primeira vez talvez na pintura moderna, o mestre
balança, treme, desmorona. Então chegamos à autoconsciência na experiência
de uma alteridade absoluta. A pintura pode assim recomeçar. (BERNSTEIN,
“A demanda pela fealdade”, p. 239144, tradução nossa)

142 “Cubism’s intended divorce from the shadows of a forever private subjectivity is what called up the
claim that it was to be the true language of painting, painting’s own autonomous language.” BERNSTEIN,
“The demand for Ugliness”, p. 215.
143 Ver: HEGEL, Fenomenologia do Espírito.
101

Esse ímpeto de partir de um autor para alcançar um objeto outro, ou propor mais

questões do que as originalmente colocadas sobre um mesmo objeto, é um dos méritos do

trabalho de Bernstein, capaz de realizar reflexões oportunas.

O texto de Bernstein que relaciona Adorno e o expressionismo abstrato é, talvez, o

trabalho que até agora levou mais longe os conceitos e a abordagem adornianas para a

análise de objetos que não foram particularmente tratados pelo filósofo, a saber, as obras

do expressionismo abstrato. Mais uma vez, Bernstein realiza uma crítica de inspiração

adorniana, já que não leva em conta as preocupações e críticas que Adorno teceu sobre

essas tendências. No entanto, acredito que ele tenha obtido alguns êxitos, ao defender

hipóteses interessantes falando diretamente sobre as obras.

Num primeiro momento, Bernstein procura fundamentar a importância de seus

objetos, quer dizer, as obras do expressionismo abstrato. Para ele, assim como para

Adorno, a arte moderna faz parte do processo de desencantamento do mundo, e por

operar num registro diverso do da mera empiria, coloca os problemas dessa realidade e,

por isso, serve à autoconsciência do indivíduo, inclusive a autoconsciência de sua clausura

e impotência no sistema fechado. Para Bernstein, todo esse processo de contestação dos

limites formais e pela autonomia da obra particular resulta, em pintura, no expressionismo

abstrato como sua consequência mais avançada. Como Adorno não tratou com

profundidade propriamente do expressionismo abstrato, Bernstein acusa-o de

“europeísmo”. Ora, apesar de não ter formação e prática em advocacia, não posso

concordar com essa acusação. Como tratado no capítulo sobre Pollock, Adorno via sim

algumas possibilidades de avanço na pintura dita “abstrata”; todavia, também lançava-lhe

algumas questões e apontava os perigos de se seguir pelo caminho da apartação absoluta

144 “Picasso manages to make the Demoiselles a moment of radical self-consciousness on the part of the
viewer because the painting operates a systematic dismantling of the viewer’s self-possession [...]. Les
Demoiselles D’Avignon is indeed primitive, but primitive the same way that Hobbes’s state of nature is
primitive, or even the way Hegel’s struggle for recognition is primitive, terminating in the dialectic of master
and slave. In this painting is revealed the source of the slave’s power over her master; and here, for the first
time perhaps in modern painting, the master shudders, quakes, even collapses. So we come to self-
consciousness in the experience of an absolute otherness. Painting can thus begin again.” BERNSTEIN, “The
demand for Ugliness”, p. 239.
102

da realidade. Enquanto as pinturas expressarem as estruturas da realidade, no seu viés

mais terrível e verdadeiro, não correrão o risco da abstração completa; por certo,

continuarão concretas. Tentei demonstrar anteriormente neste mesmo trabalho que é

assim, por exemplo, em Pollock. Ao que parece, Bernstein esperava alguma declaração

heroica sobre expressionismo abstrato por parte de Adorno; é a mesma coisa que esperar

que o filósofo tire Schönberg de seu panteão e coloque John Cage – para falar de um

estadunidense - no lugar; isso não significa que Adorno não estivesse acompanhando

criticamente e com atenção as produções de John Cage145.


Uma das características marcantes da filosofia de Adorno, se não a mais
marcante, é a de que, em vez de um discurso apriorístico sobre seus objetos,
contestou o eterno argumento da auto-suficiência da razão, a pretensão de que
a filosofia poderia ordenar o mundo do pedestal da razão, da universalidade e
do método, e o fez ao tornar sua filosofia explicitamente vinculada ao seu outro
— a arte. Não se trata de que Adorno simplesmente pensasse que os conceitos
filosóficos sejam concretizados, consumados ou evidenciados nas práticas
artísticas, mas sim que tais práticas altamente modernistas fornecem, ainda que
temporariamente, a condição de possibilidade de qualquer filosofia. Dizer que
tais práticas são a condição de possibilidade de filosofia deve ser tomado como
equivalente a dizer que propiciam as condições de possibilidade de sermos ou
de nos tornarmos autoconscientes de quem somos, de como é o mundo onde
vivemos e de como tais coisas se combinam. Se Adorno tivesse voltado sua
atenção para a arte, a pintura e a escultura, teria recorrido — só poderia ter
recorrido — às fontes do expressionismo abstrato para atingir seus objetivos. A
quintessência de seu "europeísmo" não lhe permitiu reconhecer nesta arte tão
tipicamente norte-americana o mesmo tipo de pretensão que encontrou nos
compositores e escritores europeus. (BERNSTEIN, Adorno e o expressionismo
abstrato, p. 82)

Bernstein diz que “o expressionismo abstrato combate a abstração societal com a

abstração artística; o expressionismo abstrato combate o desencantamento societal com o

desencantamento ainda maior da arte146.” Ora, não é exatamente isso que torna essa arte

concreta e não descolada da realidade? Ainda assim, a crítica de pintura realizada por

Bernstein, em outros aspectos, me parece muito convincente. Destaco aqui três quadros

sobre os quais o autor versa, junto das respectivas citações.

145 Ver: ADORNO, Vers une musique informelle. E também SOCHA, Música informal: perspectivas atuais do
conceito adorniano [2018] e DURÃO, Duas formas de se ouvir o silêncio: revisitando 4’33” [2005].
146 BERNSTEIN, Adorno e o expressionismo abstrato, p. 87
103

Ater-se a Excavation, de De Kooning, é descobrir fontes de significação


exauridas pelo que aparece diante dos olhos. A pintura ela mesma é o fim;
busca identidade apenas em si mesma e em seu próprio "sujeito". Estes
motivos particularistas são estabelecidos pela sua estrutura como um todo,
pela sua falta de centro, de ponto de vista ou de perspectiva, e pela
espontaneidade da pintura, que parece escapar à vontade de De Kooning,
encontrando apenas uma integração fragmentada através da tela como um
todo. Uma liberdade e uma ordem superiores convivem em harmonia
compacta. (BERNSTEIN, Adorno e o expressionismo abstrato, p. 88)

Figura 37. De Kooning, Excavation147, 1950

Fonte: disponível em: <https://www.artic.edu/artworks/76244/excavation> Acesso em 13 dez. 2019. © 2018


The Willem de Kooning Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York

Lavender mist number I, de Pollock, contém fragmentos retorcidos de linhas


gotejadas de pintura em preto que se entrelaçam com, que retalham e recortam
a superfície translúcida e no entanto opaca de azul, rosa e branco. A ilusão de
que a superfície do quadro não coincide com a superfície da tela é rompida em
toda parte pela maneira como tal superfície ilusória é consistentemente cortada
e gravada como um escalpelo a recortar a esmo carne inocente. Os
gotejamentos vetoriais dão ao campo, de outro modo apenas óptico, um caráter
táctil que tem o efeito de incorporar o olho do observador, de tornar a
experiência de olhar a pintura uma experiência de ser incorporado, como
condição do olhar, sem que a pintura, em qualquer ponto ou momento,
renegue sua condição de ser uma superfície. O fato de uma superfície sensível,
fragmentada, que rouba ao observador a perspectiva e a orientação com
respeito a ela, como a de De Kooning, poder, apesar disto, segurar o olho
(incorporado) devolve à imediatidade sensível a potencialidade de afirmação
enquanto tal. Na minha opinião, isso — e nada mais — é o que nos fascina

147 Willem de Kooning, Excavation, 1950, óleo sobre tela, 205,7 x 245,6 cm. Art Institute of Chicago.
104

nesta tela: o deleite enigmático de não ser puramente decorativa — embora em


breve virá a sê-lo, sem dúvida. (BERNSTEIN, Adorno e o expressionismo abstrato,
p. 89-90)

Figura 38. Pollock, Lavender mist number I148, 1950

Fonte: disponível em: <https://www.jackson-pollock.org/lavender-mist.jsp> Acesso em 13 dez. 2019.

Figura 39. Newman, Vir heroicus sublimis149, 1951

Fonte: disponível em:


<https://en.wikipedia.org/wiki/Vir_Heroicus_Sublimis#/media/File:Vir_Heroicus_Sublimis.jpg> Acesso em
13 dez. 2019. © 2019 Barnett Newman Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York

148 Jackson Pollock, Lavender mist number I, 1950, óleo, esmalte e alumínio sobre tela, 221 x 299,7 cm. Galeria
Nacional de Arte, Washington.
149 Barnett Newman, Vir heroicus sublimis, 1951, óleo sobre tela, 242,2 x 541,7 cm. MoMA, Nova Iorque.
105

Consideremos uma típica pintura "zip" de Newman — digamos Vir heroicus


sublimis. O que temos é um campo de cor vermelho e os cinco "zips", e no
entanto tudo de que precisamos no caminho de uma semântica (as próprias
cores) e uma sintaxe (o trabalho dos "zips") está aqui: os "zips", os mínimos de
negatividade em um campo, "tornam-se" sintáticos pela sua divisão e assim
"fazem" do campo uma proto-semântica. Evidentemente Newman nos oferece
uma sintaxe geométrica assaz clássica no quadrado central, mas só para
contestá-la com "zips" dissonantes e desequilibrados que quebram os dois
campos laterais. Os "zips" aparentemente dissonantes amplificam a sintaxe
clássica, conferindo-lhe um poder de articulação que é desautorizado por sua
preocupação com a harmonia e o equilíbrio. (BERNSTEIN, Adorno e o
expressionismo abstrato, p. 90)

As críticas de Bernstein mantém-se fiéis ao ímpeto da crítica adorniana, da arte

como reveladora e inimiga, pela sua forma, das estruturas repressivas da sociedade. O

expressionismo abstrato, em sua liberdade de ainda ser arte e não vida, apresenta a

dificuldade do sentido, do polo orientador; a sociedade da qual ele emerge também.

Contestando T. J. Clark, segundo o qual o expressionismo abstrato tornou-se um entrave

ao desenvolvimento da pintura e precisa ser superado para que a arte prossiga, Bernstein

defende que esse tipo de arte protesta em todas as instâncias possíveis a favor do

desencantamento do mundo, levando-o ao limite; desencanta inclusive o próprio fazer

artístico, tornando-o “vulgar”. Por isso, para Bernstein, o expressionismo abstrato não é

um entrave, mas sim o ponto mais avançado de desenvolvimento das tensões e promessas

da pintura moderna. Desse modo, revela a estrutura da sociedade: do capital abstrato e da

desindividuação.
O que está em questão nestes "gestos de negação" [do expressionismo abstrato]
é o próprio significado da abstração, e portanto do custo envolvido na
superação do desencantamento da arte e do mundo pela sua continuação — ou
seja, por um trabalho ainda maior de negações do desencantamento. A arte não
pode evitar o desencantamento progressivo do mundo, ocorrido fora da arte;
se tentasse alcançar autenticidade e autoridade por si própria, invocando
deuses e significados mortos para dentro de seus domínios, seria corretamente
acusada de ingenuidade ou anacronismo. (BERNSTEIN, Adorno e o
expressionismo abstrato, p. 94)

A grande tese de Bernstein é a de que, no expressionismo abstrato, o particular

emancipa-se do universal – por meio da ruptura das formas tradicionais, da perda de


106

centralidade e sentido, a obra basta a si mesma enquanto emanação de um particular

sensível: o rasgo, a espiral, a cor, etc. Com isso concordaria Adorno já nos anos após a

Segunda Guerra:
Emancipando-se, o detalhe tornara-se rebelde e, do romantismo ao
expressionismo, afirmara-se como expressão indômita, como veículo do
protesto contra a organização. O efeito harmônico isolado havia obliterado, na
música, a consciência do todo formal; a cor particular na pintura, a composição
pictórica; a penetração psicológica no romance, a arquitetura. (ADORNO &
HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 104)

Esse particular sensível – que tem uma história, mesmo que seja na negação das

estruturas tradicionais da pintura - é que articula a obra com a própria história da arte, e

consequentemente da sociedade. Todavia, pensando em Pollock por exemplo, dificilmente

podemos identificar nas obras já “abstratas” as suas particularidades sensíveis: a própria

obra é um depósito de sedimentos de particularidades sensíveis indistintas do próprio

todo caótico da totalidade da obra. Por isso, na esteira da interpretação de Claudio Duarte,

acredito que, no expressionismo abstrato, não são as particularidades sensíveis das obras

que se emancipam, mas a própria obra como um todo é uma particularidade sensível

emancipada, e cujo sentido que se apresenta é o eclipse do próprio sentido. O

expressionismo abstrato como expressão da subjetividade retalhada e da sociedade

caótica: eis um momento no qual, mesmo sem ter utilizado o termo, Bernstein concordaria

comigo que o expressionismo abstrato diz respeito ao mais profundo e estrutural do

concreto.
A crueldade da abstração, seu cortar a carne da sensibilidade a fim de
representar tal sensibilidade, remete-nos às bases de nossa mortalidade
corporal, que os universais reinantes eclipsam como condição para o
significado. A inquietude, a angústia, o sofrimento da superfície material — e
apenas isso — que estas telas representam (em e para nós) são uma maneira de
rememorar a realidade sensível e dar-lhe voz em suas espirais mortais, de
rememorar ou inventar uma experiência de profundidade ou transcendência
que se prende a nada mais que ao fato de habitarmos um mundo material em
que todas as coisas perecem. (BERNSTEIN, Adorno e o expressionismo abstrato,
p. 96)
107

Excurso II - Nota sobre crítica, modernismo e indústria da arte hoje

É preciso confrontar
as ideias vagas
com imagens claras
GODARD em La Chinoise

Acredito que o critério de avaliação das obras de arte consiste em, dada a

indistinção entre forma e conteúdo, apontar elementos progressivos e regressivos nas

construções artísticas mesmas. Quero dizer, o crítico deve localizar, em seus objetos de

análise, tendências de interesse, mas também de retrocesso. Para isso, é necessário algum

repertório conceitual, em relação dialética com a observação atenta. “Para ser objecto de

uma experiência total, toda a obra de arte exige o pensamento e, por conseguinte, a

filosofia, a qual nada mais é do que o pensamento que não se deixa travar 150.” Com os

avanços da pintura moderna - cada vez mais cifrada - todavia, essa aproximação objetiva

da crítica se dá muito mais pela tensão entre conhecimento técnico e intuição livre sobre as

obras do que por uma crítica que se almeje científica. É preciso que o crítico, a partir da

obra, possa criar hipóteses. É isso que faz Bernstein, por exemplo. Afinal, o exato nem

sempre é o objetivo – as qualidades do objeto se alcançam por constelação, e não por

definição. Não à toa, Adorno reivindica o procedimento de Valéry:


[Valéry] conhece a obra de arte por seu métier, entende a precisão do processo
de trabalho artístico, mas ao mesmo tempo [é] alguém no qual o processo se
reflete de modo tão feliz, que isso se reverte em intuição teórica, naquela boa
universalidade que não abandona o particular, mas sim o preserva, levando-o a
adquirir um caráter obrigatório, por força de sua própria dinâmica.
(ADORNO, O artista como representante [1953], p. 154-5)

Dar voz ao objeto, ao material, e fazer dele emergir a ideologia e a verdade: eis a

função do crítico social ou de arte, a de ler o livro do mundo. Foi isso que aprendi como

Adorno, aquele que, radicalmente, conduz esse procedimento para a teoria e para a

linguagem mesma da expressão filosófica. Seus escritos são muito mais uma plataforma de

voo para pensar a modernidade, do que a própria aeronave. Rauschenberg e Renina Katz,

150 ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 395.


108

por exemplo, trabalham em regimes completamente distintos de figuração (ou ausência

dela). E as produções desses dois artistas são dignas de interesse. O tempo e o vento, de

Renina Katz, está comemorando 25 anos. Nesse tempo, o que se tem produzido que seja

digno de nota?

O movimento para fora do quadro, talvez, explique parte desse problema. Já no

Renascimento, muitos pintores eram também escultores e arquitetos. Todavia, a divisão

entre esses métiers era clara: por isso eram considerados polímatas. Porém, desde pelo

menos Picasso com suas esculturas, e também os fantoches de Klee, esse movimento de

expansão para fora do quadro acentuou-se. “A pintura, por outro lado, não se contenta

mais em se restringir à superfície. Ao mesmo tempo que evitou a ilusão da perspectiva

espacial, invade o espaço151.” Marcel Duchamp foi pioneiro na arte da instalação, que hoje

em dia muitas vezes confunde-se com a própria arquitetura. Pollock conseguiu confundir

a própria ação de pintar com o resultado final, um work in progress. Happenings e

performances são idiomas artísticos recentes que acentuam o elemento contingente e

instantâneo da sociabilidade contemporânea, que consiste em relações efêmeras e histórias

incompletas, protestando contra a ambição de eternizar um momento na tela, ou seja:

contra o próprio conceito de obra. Entretanto, mesmo que o conceito de obra esteja sob

ataque, o próprio ataque é uma expressão. Analisadas essas expressões individualmente,

podemos notar elementos interessantes ou banais.

Milhares de páginas foram escritas sobre pós-modernismo, tentando situar essa

“coisa” como ruptura abrupta com o paradigma moderno e abertura para novos

caminhos, ou como uma guinada relativista e conservadora orquestrada pela indústria

cultural e pelo imperialismo para bloquear as potencialidades transformadoras das obras

de arte. Não considero lá muito frutífera a discussão sobre o “pós-modernismo”. Uma das

características mais importantes do modernismo é a ambição pela superação das formas

estabelecidas. O aspecto da novidade é inerente ao próprio conceito de moderno. Adorno

notou possibilidades interessantes com o entrelaçamento: artes espaciais e temporais

151ADORNO, A arte e as artes, p. 22.


109

confundem-se não por simples transposição de meios, mas por necessidade intrínseca de

desenvolvimento da própria forma em sua especificidade.


Se a arte se desembaraçasse da ilusão, se integrasse a sua efemeridade por
simpatia para com o vivo efêmero, isso aconteceria segundo uma concepção da
verdade que não a supõe tenazmente como abstracta, mas se torna consciente
do seu núcleo temporal. Se toda a arte é secularização da transcendência, toma
parte na dialéctica da Aufklärung. A arte entregou-se a esta dialéctica com a
concepção estética da anti-arte; mais nenhuma é pensável sem este momento.
Isto apenas diz que a arte deve ir além do seu próprio conceito para lhe
permanecer fiel. (ADORNO, Teoria Estética, p. 41-2)

Como este trabalho limitou-se à análise da pintura, no máximo à gravura e seus

derivados, deixamos muita coisa sem ser dita. Uma análise completa da imagem

contemporânea consistiria numa imersão em searas como arte digital e “arte de rua” –

pensemos em Basquiat ou Banksy - só para começar. Uma análise mais ampla das artes

plásticas em geral incluiria também tudo que sai da tela, como instalações, vídeo-

instalações - Anri Sala é um excelente artista -, happenings152, performances – Beuys..., etc.. O

movimento para fora do quadro, ao que me parece, nunca foi tão intenso como agora.

Figura 40. Rodrigo Andrade, Pequena ponte de pedra com arbusto à noite153, 2011

Fonte: disponível em: <http://www.galeriamillan.com.br/exposicoes/rodrigo-andrade3/imagens?


view=slider#7> Acesso em 12 dez. 2019. Foto: Eduardo Ortega

152 Já há alguma especulação no sentido de uma crítica de inspiração adorniana para o happening. Ver:
HUSSAK, Adorno e o Happening [2013].
153 Rodrigo Andrade, Pequena ponte de pedra com arbustos à noite, 2011, óleo sobre tela sobre mdf, 120 x 180
cm.
110

Há também um outro elemento que advém como condição dessa “crise” da pintura:

o atual estado do mercado de arte. No Brasil, por exemplo, para ter circulação e

vendagem, os artistas precisam se sujeitar a pelo menos alguns critérios das grandes feiras

de arte, que praticamente centralizam esse mercado nesse país. Com o mercado

centralizado, artistas que não se adequam aos critérios dos principais dealers, acabam

produzindo de forma atomizada, por vezes com restrições materiais e, por isso, com maior

dificuldade de circulação. Apesar disso, algumas coisas boas emergem mesmo no meio

das grandes feiras. Entre gravura e pintura, e muitas vezes além disso, Rodrigo Andrade é

um grande artista.

As Universidades, espaço de formação da maioria dos artistas de hoje, já tão

ameaçadas pela rapinagem do mercado, aparecem como últimos redutos de um relativo

financiamento para a produção de uma arte sem fins lucrativos. Não quero romantizar o

passado e diminuir os esforços de quem veio antes: todo artista de vanguarda enfrentou

resistência, e isso por vezes acarretou em miséria material – aqui o alto grau de empatia do

estudante de filosofia. Quero aqui situar o estado das coisas e evidenciar os nossos

problemas de agora. Essencialmente, a arte ainda luta para realizar o seu ideal: o da livre-

associação das formas sem coação154. Na arte e na vida.


Como algo meramente feito, fabricado, as obras de arte […] são regras de
orientação para a práxis a que se furtam: a fabricação da vida propriamente
dita. (ADORNO, Engagement, p. 70)

O imperativo da vendabilidade é uma coação. O paradoxo do crítico anticapitalista:

se porventura sua crítica é vista como algo que traz interessa à obra, ela agrega valor.

154 Sem que se esqueça da história do sofrimento compartilhado. “Mesmo num futuro lendariamente
melhor, a arte não deveria renegar a lembrança dos terrores acumulados, de outro modo, vã seria a sua
forma.” ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 492.
111

CONCLUSÃO

Uma luz se acendeu para mim: é de companheiros de viagem que eu


preciso, e vivos - não de companheiros mortos e cadáveres, que carrego
comigo para onde eu quero ir. Mas é de companheiros vivos que eu
preciso, que me sigam porque querem seguir a si próprios - e para onde eu
quero ir. · Uma luz se acendeu para mim: não é ao povo que deve falar
Zaratustra, mas a companheiros! Não deve Zaratustra tornar-se pastor e
cão de um rebanho. Desgarrar muitos do rebanho - foi para isso que eu
vim. Devem vociferar contra mim povo e rebanho: rapinante quer chamar-
se Zaratustra para os pastores.
NIETZSCHE em Assim Falou Zaratustra

Com esse trabalho, espero ter dado conta de tratar das reflexões adornianas sobre

pintura. Não existem propriamente critérios de análise no discurso adorniano, e sim uma

conjunção entre a abordagem crítico-filosófica e a lógica interna de coesão das próprias

obras de arte. Entretanto, alguns aspectos são destacados por Adorno e aparecem de modo

recorrente: aqueles que situam as obras em seu próprio tempo, e realizam o elo entre o

particular e o universal. A arte, enquanto algo separado do meio social, porém resquício

da liberdade interditada na sociedade, para continuar sendo o reino da utopia, necessita

da mímese negativa: jamais trazer positivamente os elementos da realidade concreta, já que

a felicidade e a liberdade continuam irrealizadas, mas sim expressar os elementos feios e

repugnantes da empiria para, enquanto denúncia, ser portadora da utopia de uma

possibilidade outra de se viver no mundo. Se a obra deve ser tomada como um todo coeso,

não podemos separar forma de conteúdo; desse modo, a expressão artística deve conjugar

a técnica e a ideia mais avançadas de determinada época. É talvez por isso que Adorno

seja considerado um filósofo da modernidade estética: o ímpeto vanguardista, de

inovações incessantes, está no âmago de suas reflexões. A busca pelo novo pode ser

considerada a própria definição do moderno.

Por sua vez, o desejo pelo novo não pode recair em positivismo. Para Adorno, a

história da arte não caminha cronologicamente, mas sim por negação determinada em

relação às obras particulares. Algumas obras de arte mais antigas, dotadas de elementos

que por vezes passaram despercebidos em sua época, podem vir à tona posteriormente,
112

mostrando toda a sua potência e influenciando as criações contemporâneas muito mais do

que obras temporalmente mais próximas das novas. Essa história da arte não-cronológica,

preocupada mais com as próprias obras do que com sua recepção, é uma história dialética

da arte.

Especificamente em pintura, Adorno destaca a predominância da cor negra, da

figuração não-realista, das deformações dos corpos, da fealdade e da assimilação de

técnicas e temas da indústria avançada, como elementos que situam as obras pictóricas em

sua época – a da chamada modernidade “heroica”, cujas experiências mais importantes e

traumáticas foram as duas grandes guerras mundiais. Para o filósofo, os pintores

exemplares dessa época são Paul Klee e Pablo Picasso, frequentemente evocados em

diferentes obras do autor.

Para Adorno, toda obra de arte diz (ou deve dizer) respeito ao concreto, pois é da

realidade objetiva que a arte retira seus temas e materiais; desse modo, a expressão “arte

abstrata” perde validade crítica. Adorno protesta contra a abstração que, para ele, não

conteria “escrituras”, inscrições do sofrimento, e desse modo não teria mais nenhuma

ligação com a realidade. A precaução adorniana em relação ao expressionismo abstrato

assim explica-se. No entanto, tentei mostrar neste trabalho como o expressionismo

abstrato é decorrência do modernismo e responde ao seu espírito, e em suas obras mais

importantes aparecem elementos pelos quais o filósofo primava: a perda de sentido da

vida social, trajetórias individuais errantes, homogeneização dos indivíduos e do mundo

pela forma-mercadoria; em suma, o próprio caos irracional e apocalíptico que é o

capitalismo tardio. Tudo isso está impregnado na própria forma dessa pintura, realizada

por técnicas inovadoras – o dripping e o all-over, por exemplo – e materiais industriais,

como vernizes automotivos.

Em seu importante artigo, Alvaro Valls155 conclui que a teoria estética de Adorno, ao

menos em relação à pintura, está datada no modernismo heroico. Sinto-me inclinado a

discordar dessa afirmação. A crítica de pintura de inspiração adorniana é de fato tão

obsoleta quanto a própria pintura de cavalete; todavia, nos escritos de Adorno

155 Ver: VALLS, A presença/ausência dos artistas plásticos na “teoria estética” de Adorno.
113

encontramos caminhos avançados, para além disso. É preciso entender que a teoria

estética de Adorno não é protocolar. A experiência do autor está situada no modernismo

heroico, de onde retira seu panteão de grandes artistas. No entanto Adorno, ligado ao

espírito do moderno, estava em contato com as inovações de seu tempo. Por exemplo, ao

dizer que a pintura tende a sair do quadro - tendência inaugurada no cubismo sintético – o

autor apresenta a possibilidade de interpretações frutíferas dos novos idiomas artísticos,

como happenings, performances e instalações.

Quando defendo que a crítica de arte de raiz adorniana está alinhada com a teoria

filosófica do autor, não pretendo fechar caminhos críticos, e sim abri-los. Em resumo, a

teoria de Adorno consiste num grande diagnóstico de época, no qual realiza a crítica da

razão instrumental e suas decorrências: no governo, no comércio, na vida pessoal, na

natureza e na arte. Sua filosofia é em prol da liberdade, contra qualquer tipo de coação

exterior. E a arte é um dos únicos âmbitos existentes que, por estar separada da empiria,

ainda pode ser portadora da utopia de um mundo livre. Como Zaratustra, Adorno não

pretendia ser seguido, e sim inspirar a emancipação em seus leitores. Acredito que o

mesmo aconteça com os críticos de arte. Como Cláudio Duarte e Jay Bernstein, o caminho

mais frutífero é o da crítica emancipada, abastecida muito mais pelo espírito adorniano do

que propriamente por sua letra. A teoria de Adorno oferece muitos elementos para

entender o mundo e a arte hoje: não todos. Junto das obras relevantes, é preciso ler o livro

do mundo. Uma atitude propriamente filosófica, do pensamento que não se deixa travar.
114

A cultura é a regra,

a arte é a exceção

GODARD em Je vous salue, Sarajevo


115

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Fonte: Palatino Linotype

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