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Revisitando a Técnica de
Eletroconvulsoterapia no
Contexto da Reforma
Psiquiátrica Brasileira
Rediscussing the technique of electroconvulsotherapy in the
context of the brazilian psychiatric reform movement

Maura Lima Bezerra e Silva


Universidade Vale do Acaraú-PE

Marcus Tulio Caldas


Universidade Católica
de Pernambuco
Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2008, 28 (2), 344-361


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PSICOLOGIA
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Maura Lima Bezerra e Silva & Marcus Tulio Caldas
2008, 28 (2), 344-361

Resumo: A técnica de eletroconvulsoterapia é uma modalidade interventiva da psiquiatria,


inaugurada na década de 30 e utilizada ininterruptamente até hoje. A discussão que envolve
essa técnica é bastante polêmica, e não porta uma reflexão dialógica entre os campos de saberes
afins a ela. Foi proposta do presente estudo realizar uma leitura teórica da técnica, a partir do
conjunto teórico-prático do campo da saúde mental, tendo como referência as orientações
éticas do Movimento de Reforma Psiquiátrica, intencionando discutir a sua coerência para as
práticas de cuidado nesse campo. Problematizar e recomplexificar o tema foi o objetivo geral
deste artigo, alcançado através de uma revisão bibliográfica do assunto. Foram identificadas
pontes entre a proposta da técnica de ECT e as concepções que embasaram a assistência
manicomial/hospitalocêntrica, e, por isso, questionamos a sua coerência para o campo interventivo
contemporâneo da saúde mental, que se propõe a dar seguimento às desconstruções do paradigma
clássico da psiquiatria.
Palavras-chave: Eletroconvulsoterapia. Psiquiatria. Reforma psiquiátrica. Práticas de saúde.

Abstract: The eletroconvulsotherapy technique is a psychiatric intervention modality inaugurated


in the 30’s and used uninterruptedly so far. The discussion related to this technique is very
controversial and does not involve a dialogic reflection among its related areas of knowledge.
The present study intended to undertake a theoretical interpretation of the technique through
mental health theoretical and practical knowledge, based on the ethical orientations of the
Brazilian Psychiatric Reform Movement, in order to discuss its coherence as a care giving practice.
Therefore, the main objective of this paper was to question and to recomplex the subject, what
was achieved through a bibliographical study on the theme. We identified links between the
proposal of the ECT technique and the conceptions that support the asylum/hospital care and,
therefore, we question its coherence in the mental health contemporary intervention area, which
intends to continue the deconstruction of the classic paradigm in psychiatry.
Keywords: Eletroconvulsotherapy. Psychiatry. Psychiatric reform. Care giving practices.

Fa l a r e m e l e t r o c o n v u l s o t e r a p i a o u suposta efetividade e pela segurança de


eletrochoque, como comumente é conhecida seus resultados, alguns questionamentos
a técnica, é envolver-se sempre em uma foram suscitados: é efetiva para quem? Que
discussão bastante polêmica. No âmbito parâmetro é adotado para se dizer que essa
acadêmico, alguns se posicionam em sua técnica traz bons resultados? O que estava se
defesa, alegando ser essa uma técnica efetiva conceituando como benéfico? Por que essa
e de bons resultados no tocante à eliminação técnica, que é tão defendida por um grupo
de sintomas psiquiátricos. Outros trazem de profissionais, é, ao mesmo tempo, alvo
para a discussão elementos de uma ética que de tantas críticas por outro grupo igualmente
parecem problematizar esses argumentos. especializado?

Ao sermos expostos ao primeiro conjunto Possíveis respostas a tais questões nos


de argumentos, ou seja, àqueles que se parecem estar em aberto, uma vez que esse
colocam em defesa dessa técnica por sua debate, além de quase ausente, quando

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viabilizado, é tratado a partir de uma única epistemológicos oferecem subsídios de


perspectiva. Representantes das ciências sustentação para a prática do ECT? Ou ainda,
naturais parecem não considerar outras em que base epistemológica a técnica de ECT
dimensões (psicológicas e sociais) que aludam se apóia? Tomando como base o lastro teórico
à complexidade do sujeito; representantes da saúde mental filiada à proposta da reforma,
das ciências humanas demonstram certa que leitura pode ser feita da técnica?
aversão ao assunto, abordando-o, muitas
vezes, como algo do passado, já extinto, Problematizar e recomplexificar o tema a
pelo menos ideologicamente. Possíveis partir de uma postura dialógica norteada
diálogos entre essas diferentes posturas pelas concepções de base do Movimento de
não costumam ocorrer, de modo que o Reforma Psiquiátrica foi o objetivo geral do
tema tende a continuar ou no silêncio estudo. Através de uma revisão bibliográfica do
ou abordado nos extremos de diferentes assunto, foi aberta uma discussão teórica, uma
posturas epistemológicas. tentativa de diálogo entre diferentes posturas
epistemológicas no que tange, sobretudo, à
A eletroconvulsoterapia, enquanto modalidade concepção de sujeito, ao sofrimento psíquico
interventiva do campo médico psiquiátrico, e à assistência/cuidado.
está, entretanto, bastante viva, sem, no
entanto, ser refletida numa postura de diálogo Tal intenção não se justifica, entretanto, por
“...a pesquisa entre os campos dos saberes científicos afins motivos puramente teóricos, mas sobretudo
vincula
a ela. Há cinco anos, o Conselho Federal de pela dimensão prática e ética na qual estão
pensamento e
ação, ou seja, Medicina a normatizou através da resolução envolvidas pessoas, usuários de ECT. Afinal,
nada pode ser nº 1.640/2002. Quisemos aqui fazer acender como lembra Minayo, “...a pesquisa vincula
intelectualmente
um problema se esse debate nos propondo, à luz do conjunto pensamento e ação, ou seja, nada pode ser
não tiver sido, em de conhecimentos da reforma psiquiátrica, intelectualmente um problema se não tiver
primeiro lugar, um
problema da vida realizar uma leitura da técnica de ECT, sido, em primeiro lugar, um problema da vida
prática” (1994, intencionando, a partir dos questionamentos prática” (1994, p. 17).
p.17).
já levantados, analisar a coerência do uso
Minayo dessa técnica, tendo por base o conjunto A técnica de
teórico-prático acumulado no campo da eletroconvulsoterapia:
saúde mental.
uma apresentação
Sabe-se, todavia, que a área da saúde mental
comporta hoje vários posicionamentos e Histórico
modos de intervenção possíveis. Adotam-se
aqui aqueles que estão vinculados a uma Foi a malarioterapia, método de choque
proposta de questionamento dos paradigmas pela febre proposto por Juareg (1917), que
clássicos da psiquiatria, os que comportam abriu o circuito de tratamentos biológicos em
uma compreensão do humano norteada psiquiatria. A prática de provocar convulsões
pelos princípios ético-epistemológicos da com vistas à melhora de sintomas psiquiátricos
reforma psiquiátrica. teve sua origem no pensamento de Meduna
(1933). Esse autor, ao perceber que era
Para essa reflexão, nós nos colocamos três incomum ocorrer crises convulsivas em
questões norteadoras: quais elementos pacientes esquizofrênicos, ou seja, uma rara

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sobreposição entre psicoses e convulsões, referido momento, nos últimos quinze


e observar que a recuperação desses anos, a prática de ECT voltou a ganhar
esquizofrênicos era facilitada ao apresentarem destaque. “Relatos de pacientes resistentes à
um episódio epiléptico – lançou a hipótese farmacoterapia, na década de 80, levaram os
de que a epilepsia seria capaz de antagonizar médicos a retomarem o uso clínico da ECT”
a esquizofrenia, e sugeriu um antagonismo (Fink, 2007, p. 207). Nesse ínterim, mudanças
biológico entre as convulsões da epilepsia e técnicas haviam aprimorado a segurança e a
os delírios psicóticos. Tal crença tinha apoio eficácia da ECT, fazendo a sua utilização ser
na idéia de que “...uma condição psiquiátrica ampliada para além dos quadros psicóticos.
poderia ser alterada por uma doença Segundo nos informa Fink (2007), atualmente,
sistêmica” (Fink, 2007, p. 206). a ECT é utilizada de forma ampla em todo o
mundo.
A partir dessa premissa, abriu-se uma série
de tratamentos biológicos: a prática de Segundo o artigo 9º da Resolução do Conselho
transfusão de sangue de pessoas epilépticas Federal de Medicina (nº 1.640/2002),
para esquizofrênicas, a administração de “A eletroconvulsoterapia tem indicações
drogas convulsivantes, a insulinoterapia
precisas e específicas, não se tratando, por
1, a lobotomia2, e, finalmente, a
conseguinte, de terapêutica de exceção” (p.
eletroconvulsoterapia.
15, grifos nossos), o que pode ser traduzido
como um incentivo do referido órgão para
Foi em 1938, com Cerletti e Bini, que o
sua utilização.
método de ECT começou a ser utilizado.
Todavia, a teoria de Meduna, que deu Respeitando o devido preparo para a
sustentação às práticas convulsivantes, eletroconvulsoterapia..., pode-se afirmar
foi posteriormente contestada, pois “...a que esse é um tratamento extremamente
seguro para os pacientes, comportando
comunidade científica reconheceu que a
muitas vezes menos risco que a utilização de
teoria da incompatibilidade biológica entre psicotrópicos; mais ainda, em determinadas
as convulsões e a esquizofrenia não era condições, a eletroconvulsoterapia
verdadeira” (Sabbatini, 2001, p. 6). tem eficácia claramente superior aos
medicamentos correntemente utilizados.
(Del Porto, 2006, p. 18)
Embora essa prática tenha sido amplamente
utilizada desde sua origem, nas décadas de
60 e 70, sua popularidade diminuiu bastante.
Principais parâmetros da
Pensa-se em duas razões para tal declínio: técnica
o advento e a utilização de neurolépticos
mais efetivos e a crescente movimentação Pode-se definir a eletroconvulsoterapia (ECT)
antagônica ao ECT em função do uso como “...a utilização de descargas repetitivas
indevido e punitivo da técnica. “Pacientes eletricamente induzidas nos neurônios no
problemáticos e rebeldes recebiam várias sistema nervoso central...” (Hales, 1992,
sessões de choque por dia, muitas vezes, p. 622) para tratamento. Essa técnica está
1 Indução de choques
através de estados sem sedação ou imobilização muscular situada no conjunto de métodos físicos de
hipoglicêmicos.
adequadas” (Sabbatini, 2001, p. 9). tratamento em psiquiatria e tem o objetivo
2 Procedimento
cirúrgico que promove
de produzir alterações no comportamento
uma cisão na conexão Apesar de ter perdido muito de sua ou ainda a finalidade de obter melhora em
entre o tálamo e o
lobo frontal. popularidade e credibilidade durante o sintomas psiquiátricos. De acordo com Fink

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(2007), pode-se dizer que a indução repetida efeitos colaterais em relação aos da ECT e
de convulsões é o evento principal na eficácia deterioração do quadro clínico-psiquiátrico.
do tratamento. Porém, o autor adverte que
as convulsões alteram sintomas individuais No que concerne à indicação da ECT,
ou, no máximo, grupo de sintomas, não verificou-se alguma divergência entre
funcionando como resolutor de transtornos os autores pesquisados. Há, entretanto,
ou doenças (Fink, 2007). concordância entre um grupo de autores
sobre o fato de que o ECT estaria indicado
Existe considerável variabilidade entre os nos casos de: depressão monopolar, na fase
clínicos a respeito da extensão em que o ECT maníaca e depressiva do transtorno afetivo
deve ser utilizado em primeira instância ou ser bipolar e em alguns tipos de esquizofrenia,
considerado apenas quando outros recursos especialmente a forma catatônica (Bastos,
“A rapidez e a já se mostraram ineficazes: “A rapidez e a 2003; Busnello, 1995; Del Porto, 2006;
eficácia da ECT eficácia da ECT podem fazer dela a primeira Lawrence, 1980; Resolução nº 1.640/2002;
podem fazer
dela a primeira indicação para pacientes com depressões Spoerri, 1979; Salzman, 1978). Segundo Fink
indicação para graves e grande risco de suicídio, ou mesmo (2007), a ECT é particularmente efetiva para
pacientes com
depressões graves para certos casos de mania aguda que, aliviar transtornos depressivos, embora aponte
e grande risco pela gravidade dos riscos, requeira pronta que ela promove alívio em estados de humor
de suicídio, ou
mesmo para
intervenção” (Del Porto, 2006, p. 18). não somente depressivos, mas maníacos,
certos casos de em psicoses diversas e transtornos motores
mania aguda que,
Busnello (1995) elege alguns critérios para a catatônicos.
pela gravidade
dos riscos, indicação de ECT como forma de tratamento.
requeira pronta Para o autor, deve-se escolher a ECT como À parte essa concordância, muitos outros
intervenção” (Del
Porto, 2006, p. 18). tratamento de primeira escolha nos casos quadros, que divergem de autor para autor,
em que há necessidade de melhora rápida, são citados: as psicoses atípicas e reativas,
quando os riscos de outros tratamentos puerperais, casos de delirium tremens,
forem maiores comparados aos da ECT, transtornos conversivos, doença de Parkinson,
quando há histórico de boa resposta à síndrome neuroléptica maligna, convulsões
ECT em momentos anteriores ou resposta intratáveis, depressão pós-parto, acinesias,
insatisfatória ao uso de psicofármacos, e pelagra, dor talâmica e dor severa da neuralgia
ainda, quando a pessoa opta por esse tipo do trigêmeo.
de intervenção. A esse respeito, Del Porto
(2006) acrescenta que a ECT pode ser mais Em relação às contra-indicações, tanto se
segura que tratamentos farmacológicos, para encontram informações de que nenhuma
os fisicamente debilitados, os idosos e as condição constitui, por si, uma contra-
gestantes, desde que com os devidos cuidado indicação absoluta (American Psychiatric
e monitoramento. Association, 1990), desde que se tomem
precauções apropriadas, quanto as que
Já como tratamento de segunda escolha, apontam algumas situações contra-indicadas
Busnello (1995) direciona os casos em ao uso do ECT.
que, mesmo na vigência do uso adequado
de psicofármacos (quanto à dose e tempo Para Del Porto (2006), há um conjunto de
de duração), ocorrer ausência de resposta situações clínicas que requerem cuidados
terapêutica satisfatória, severos ou maiores específicos durante a aplicação de ECT, “...

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por implicarem maior risco” (Del Porto, abdominal e do exame neurológico básico
2006, p. 24). Segundo esse autor, constituem ...A avaliação da dentição do paciente é
fator importante... Considerando que a ECT
condições que requerem especial avaliação
poderá induzir a um aumento transitório
e manejo: situações cardiovasculares da pressão intra-ocular, a história prévia
instáveis (infarto recente, angina instável, de glaucoma... fará necessária a medida
doenças coronarianas, insuficiência cardíaca da pressão intra-ocular... Considerando a
importância da oxigenação cerebral durante
congestiva), aneurismas ou malformações
a ECT, a contagem de glóbulos vermelhos,
vasculares que possam se romper devido a dosagem de hemoglobina e hematócrito
ao aumento da pressão arterial, condições devem sempre preceder o tratamento...
que acarretem o aumento da pressão Incluímos na avaliação a dosagem de
glicemia, creatina, uréia, sódio e potássio...
intracraniana (tumores e lesões), acidente
A avaliação da função hepática é sempre
vascular cerebral recente, algumas condições requerida, uma vez que os pacientes serão
pulmonares (doença pulmonar obstrutiva submetidos a anestesia... (Del Porto, 2006,
crônica, pneumonia, asma não controlada) p. 25)

e condições que impliquem aumento do


risco anestésico. Cumpridos esses requisitos e,
complementarmente, realizados uma
Dentro da corrente que defende a existência radiografia do tórax e da espinha dorsal, um
de contra-indicações, a descompensação eletrocardiograma e um eletroencefalograma
cardíaca, a presença de aneurisma aórtico, os e ainda a avaliação pré-anestésica, o usuário
casos de lesões cerebrais e a tuberculose são estaria apto para o procedimento. No
apontados como os principais excludentes à momento anterior à aplicação, o usuário
terapia eletroconvulsiva. deve estar em jejum, as próteses dentárias
e outras devem ser retiradas, a bexiga e o
Uma vez estabelecida a indicação clínica reto devem ser esvaziados e é aplicada ainda
da ECT, os usuários deverão passar por uma uma anestesia, a fim de reduzir a ansiedade
extensa avaliação clínica. Essa avaliação prévia da pessoa durante os preparativos. Na hora
tem, de acordo com Del Porto (2006), tripla da sessão, quando já deitado, busca-se
finalidade: avaliar a gravidade do quadro proteger o paciente de movimentos extremos
psiquiátrico, a fim de que sejam estudados na hora da convulsão, que ocasionariam
os efeitos terapêuticos, avaliar as funções possíveis fraturas, coloca-se na boca um calço
cognitivas através de testes neuropsicológicos, depressor da língua ou uma mordaça para se
em especial a memória, que servirão como prevenirem mordidas e/ou deslocamentos na
ponto de referência para a avaliação dos mandíbula.
efeitos colaterais sobre ela, identificar e
tratar quaisquer condições clínicas que Após a aplicação da corrente e já inconsciente,
possam oferecer riscos de maiores efeitos mesmo quando não apresenta a convulsão, a
colaterais ou mesmo que contra-indiquem pessoa não consegue lembrar-se de ter sido
o tratamento. submetida ao procedimento, e, “...caso o
paciente, após o espasmo elétrico, permaneça
O exame clínico não pode prescindir, além aturdido e experimente uma angústia muito
dos aspectos gerais (registro da pressão
penosa, trata-se da crise frustra devido a
arterial, pulso, avaliação das mucosas,
hidratação, etc) da palpação do crânio, da uma quantidade insuficiente de eletricidade”
ausculta pulmonar e cardíaca, da palpação (Spoerri, 1979, p. 1169).

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No que diz respeito à freqüência de utilização que tal distúrbio pode ir desde uma pequena
do ECT, Lawrence (1980) sustenta que a amnésia, passando pelo esquecimento de
duração do tratamento irá depender dos acontecimentos anteriores ao tratamento
resultados alcançados e da natureza do (que pode se estender até dois anos antes),
distúrbio em questão. Essa é também a esquecimento do período de tratamento,
postura do Conselho Federal de Medicina, até um déficit permanente. Para Lawrence
na última Resolução (nº 1.640/2002). (1980), esse distúrbio ocasionado pela
eletroconvulsoterapia é vivenciado sob forte
Já sobre o mecanismo de ação da ECT, sentimento de angústia, e pode variar desde
observou-se certa escassez na bibliografia uma tendência ao esquecimento de nomes
consultada. A maioria dos autores concorda até uma grande confusão. Salzman (1978)
que ainda pouco se sabe acerca desse ponto. coloca que, quanto maior for o número de
Fink (2007) afirma que não há estudos diretos aplicações, mais tempo leva a recuperação.
sobre o papel das convulsões, por exemplo, Segundo o relatório da Associação Brasileira
embora se continue acreditando que estão de Psiquiatria, no entanto, “...os efeitos da ECT
no efeito convulsivo as respostas satisfatórias sobre a memória são transitórios, reversíveis e
até então obtidas: “A questão de como as mínimos, quando comparados aos benefícios
convulsões podem afetar o comportamento trazidos aos pacientes...” (citado por Bastos,
estimulou muitas percepções que pontuam 2003, p. 3). Fink (2007) ressalta que esses
a literatura... e nenhuma explica a conexão prejuízos, como assim os chamam, quase
entre os eventos cerebrais e o comportamento” sempre são passageiros. “Muito pode ser
(Fink, 2007, p. 211). feito para minimizar esses efeitos, mas parece
impossível evitá-los totalmente” (Fink, 2007,
Supõe-se que o cérebro seja privado de p. 209).
Supõe-se que
o cérebro seja
energia e do metabolismo oxidativo a ponto
privado de energia de tornar-se incapaz de manter sua função; A reforma psiquiátrica como
e do metabolismo entretanto, diz-se que “o uso do choque
oxidativo a propulsora de uma outra forma
eletroconvulsivo é inteiramente empírico”
ponto de tornar- de considerar as ciências e as
se incapaz de (Lawrence, 1980, p. 652).
manter sua suas modalidades interventivas
função; entretanto,
diz-se que “o A esse respeito, pode-se pensar que, se os
uso do choque mecanismos de ação são pouco conhecidos, O movimento da reforma psiquiátrica traz
eletroconvulsivo como tônica a desconstrução e a superação,
as possíveis implicações também o seriam.
é inteiramente
empírico” “Não se sabe por quanto tempo ou com que em termos de teorias e práticas assistenciais,
(Lawrence, 1980, freqüência as convulsões devem ser repetidas do modelo asilar/ hospitalocêntrico – expresso
p. 652). tanto no manicômio quanto no saber sobre
nem qual é a melhor maneira de se utilizar
um protocolo de manutenção para que os a loucura – e oferece, em sua proposta
benefícios sejam mantidos” (Fink, 2007, político-social, subsídios para se encontrar
p.209). outras formas de conceber o humano,
a dita “loucura” ou a doença mental, e,
No que diz respeito aos efeitos colaterais, os em conseqüência, os modelos clínicos de
distúrbios de memória são apontados como intervenção, assistência e cuidado.
o principal, embora sejam citados ainda os
estados confusionais, a cefaléia e as náuseas. A lógica de assistência calcada na filosofia
A leitura feita de tais distúrbios, entretanto, manicomial/hospitalocêntrica repousa na
varia entre os autores. Busnello (1995) explica concepção de um sujeito fundado nos

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parâmetros da razão universal – expressão se refere a um conjunto de práticas que


mais fina da “natureza humana” (Bezerra, possuem como finalidade maior a eliminação
1992). Esse sujeito, por ser dotado da de sintomas. O acervo de recursos utilizados
faculdade da razão, é passível de controle durante a história da Medicina mental para
de seus atos, de sua vida e do mundo que alcançar esse fim inclui desde a internação,
o cerca. É alguém disciplinado que atende passando por técnicas de hidroterapia e
às regras, normas e pactos sociais, sendo, a administração de psicofármacos, até a
portanto, um sujeito com condições de se aplicação de estímulos elétricos ou o uso de
compromissar com a manutenção da ordem procedimentos cirúrgicos. O importante é
social, exatamente através do uso dessa utilizar dispositivos que caminhem na direção
faculdade. da correção daquilo que sinaliza “erros” de
fabricação subjetiva.
Dentro desse panorama de referências
inaugurado com o discurso iluminista do Caracterizados como métodos de exclusão,
século XVIII, a loucura passa a ser vista como segregação e violência, predominam nesses
falha da razão, e o louco como alguém serviços as relações de tutela, disciplina e
alienado daquilo que, ao mesmo tempo, controle, exercidos sob uma modalidade
define o humano e lhe dá condição para a institucional pouco flexível quanto ao poder
vida em sociedade. A razão vai funcionar, de contratualidade dos internos. Aliás,
portanto, como agente da exclusão da autonomia e espaço de contratualização são
loucura. “...Como ser alienado da sua razão, palavras excludentes à gramática asilar.
o louco não era considerado propriamente
um sujeito... e não poderia ter discernimento Marcado pela constituição da Medicina
para se apropriar legitimamente de sua mental enquanto campo de saber teórico-
liberdade” (Birman, 1992, p.74). prático, esse novo desenho de vida para
os loucos indica que, “...na modernidade,
Desse modo representado, o louco, enquanto loucura diga respeito fundamentalmente
um furo no desenho de vida pautado na à psiquiatria” (Birman, 1982, p. 5, citado
razão, deveria ser extinto, e, enquanto por Amarante, 1995, p. 24). Entretanto, ao
erro da razão, corrigido. “A cura significava importar o modelo da Medicina biológica,
resolver o equívoco, voltar a pensar como a psiquiatria adota uma prática que se limita
antes, ou como os outros, os razoáveis” a “...observar e descrever os distúrbios
(Corbisier, 1992, p. 10). Sem espaço no nervosos, intencionando um conhecimento
universo simbólico, o lugar social reservado objetivo do homem” (Amarante, 1995,
para a loucura não poderia ser outro a não p. 2). Com isso, a Medicina mental opta
ser o da exclusão, do encarceramento e da pela naturalização de seu objeto “...através
morte subjetiva. do processo de objetivação, ou seja, o de
fazer surgir a objetividade da doença, com
Essa forma de conceber o sujeito, fundado a exclusão da subjetividade e a construção
numa razão universal, e a loucura, como de generalidades” (Camargo, Guedes, &
o anverso desse protótipo natural, é o Nogueira, 2006, p. 1095).
solo epistemológico para a modalidade de
assistência clássica, denominada ainda de Tal operação vai traduzir a constituição de
manicomial/asilar ou hospitalocêntrica. Nessa um pensamento de natureza organicista e,
perspectiva, a noção de assistência ou cuidado a um só tempo, reducionista. As doenças

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“...não são vistas como construções, ficções Quando se fala em suspender a doença
criadas e categorizadas por homens, mas mental, não se incorre no pensamento de
efetivamente como entidades que existem” negação do adoecimento, mas num “...
(Camargo et al., 2006, p. 1096) e que, pela procedimento epistemológico de suspender
realidade de suas existências, acabam por o conceito de doença mental enquanto saber
virtualizar o paciente. produzido pela psiquiatria...” (Basaglia, 1981,
p. 309, citado por Amarante, 1992, p. 180),
Com a difusão do Movimento de Reforma que reduz a complexa problemática subjetiva
Psiquiátrica contemporânea, essa forma de do sofrimento psíquico a noções categóricas,
conceber a assistência e a dita “loucura” foi,
fruto de seu arranjo epistemológico.
aos poucos, revisitada e redescrita, visando
à confecção de novas práticas de cuidado.
Tal suspensão marca, a um só tempo, tanto
Visava-se a desconstruir os paradigmas
a ruptura com esse saber que se apresenta
de sustentação da prática manicomial de
como obstáculo epistemológico quanto a
exclusão e segregação do louco e de sua
possibilidade da construção de uma outra
subjetividade. A esse respeito, Amarante
(1992) nos lembra que essa desconstrução relação de cuidado com as pessoas enfermas,
não se circunscreve apenas à destruição física uma relação que não seja atravessada
dos hospitais psiquiátricos, mas à promoção primeiramente pelo “...diagnóstico, sintoma
e à superação de seu aparato, com a ruptura ou doença ou ainda pelas... incrustações
do paradigma que fundamenta e autoriza a institucionais, sociais e culturais que são
instituição psiquiátrica clássica: o paradigma impregnadas aos sujeitos objetivados pelo
racionalista. saber e prática psiquiátricas” (Amarante,
1997, p. 180).
Se no tipo de assistência clássica se colocava
o “sujeito entre parênteses” (Basaglia, 1982) No campo da assistência e do cuidado, em
para se enxergar quase que exclusivamente conseqüência dessa reorientação, deixa de ser
a doença, na perspectiva da reforma, busca- importante que se persiga a idéia racionalista
se colocar a “doença entre parênteses”, de tratamento enquanto reparação ou
priorizando o sujeito que adoece e seu devolução de estados de saúde perdidos
sofrimento. O autor comenta que “...o mal para, em seu lugar, baseando-se numa ética
da psiquiatria clássica está em haver separado solidária de inclusão, buscar a emancipação
um objeto fictício – a doença – da existência de condições de vida através da invenção
dos pacientes do corpo social...” (Basaglia,
de processos de singularização que possam
1982, citado por Barros, 1994, p. 191).
promover novas inscrições subjetivas.

A proposta é que o objeto da psiquiatria


No plano epistemológico, a concepção que
não mais se reinscreva na doença, mas
suporta essa quebra de paradigmas é a de um
no sofrimento psíquico ou na “existência-
sujeito que põe em questão toda e qualquer
sofrimento” (Rotelli, 1992). Dessa forma,
lógica de causalidade linear e que perde
o papel dos profissionais se centra na
necessidade de construção de serviços e a primazia da razão e do modo de leitura
modalidades interventivas de cuidado que orgânica. Entende-se que o sujeito tem um
efetivamente superem a lógica manicomial, corpo e que o seu adoecer comporta uma
relacionando o cuidado ao sofrimento, sem dimensão orgânica, mas, além desse corpo,
objetificá-lo. ele é alguém inscrito dentro de um universo

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social que o socializa, que lhe possibilita não dizer, o “sintoma” psíquico, seria uma
trocas, que o situa historicamente e que, a forma de dar sentido a uma experiência
todo tempo, lhe diz quem é e deve ser, a subjetiva conflitiva. O sintoma indica sinais
partir dos parâmetros socioculturais de seu de sofrimento e pode conduzir à enunciação
tempo. do desejo singular daquele que sofre. Nessa
perspectiva, o sofrimento psíquico, do qual
O sujeito, no entanto, não é apenas portador o sintoma se faz porta-voz, pode falar de
de um corpo inserido numa dada sociedade, “...uma estratégia de existência diante de
já que ele dá significado a essas experiências, problemas colocados para um sujeito que
e o faz de modo diferente dos demais talvez não tenha encontrado palavras ou
sujeitos. Esse é, para Corbisier (1992), o ações afirmativas para enfrentá-los... um
“pantanoso terreno da subjetividade”, em sinal de vida aflito e aturdido, mas um índice
que a psiquiatria clássica optou por não de que a condição desejante se mantém...”
adentrar em suas operações objetivadas na (Gondar, 2003, p. 16).
noção de doença mental.
Desse modo, o sintoma psíquico seria o meio
A concepção freudiana de sujeito dividido, encontrado pelo sujeito de comunicar um
descentrado, sem essência, ajuda-nos a pensar estado de dor psíquica, que reflete, ao mesmo
no humano como um ser de contingência, tempo, um corpo e uma dada realidade
ausente de “natureza”, e portador não de social. Amparando-nos no pensamento
igualdade subjetiva, mas de diferenças. freudiano, somos conduzidos a “...uma crítica
Reconhecer a não essência do sujeito fundamental das terapêuticas antidelirantes...,
significa, portanto, fazer ceder o dualismo que representam o delírio como desvio da
cartesiano por compreensões marcadas por razão e como perda da função subjetiva”
uma indissociabilidade biopsicossocial do (Birman, 1992, p. 87).
sujeito, em sua condição de contingência e
possibilidade, sempre plurais. Ao recorrer a esse tipo de leitura do sujeito,
pensa-se que é ampliada a concepção de
Essa perspectiva abre uma outra visão de assistência e cuidado, fazendo relativizar
pathos que, oriundo da psicopatologia, o peso normativo da razão frente a outros
descola-se de uma visão tradicional para valores, como a aceitação da diferença, a
ser lido como experiência de sofrimento, tal inclusão, o respeito à pluralidade de formas
como propõe a psicopatologia fundamental, existenciais e à liberdade, de fato. Com a
que busca compreender e discursar, através reforma, o sofrimento psíquico é entendido
da escuta, sobre esse sofrer. Tal discurso como algo que necessita de cuidado, não de
não se faz pelo viés da descrição e da correção. A noção de existência-sofrimento
sistematização das doenças, pois baseia-se “...reorienta o objetivo da psiquiatria,
“...no pressuposto de que o pathos manifesta passando da ‘cura’ para a produção de vida,
uma subjetividade que é capaz, através de sociabilidade, de subjetividades. A terapia
da narrativa, de transformar a paixão e o deixa de ser entendida como perseguição da
assujeitamento numa experiência...” (Berlink, solução-cura” (Rotelli & Amarante, 1992, p.
2003, p. 5). 52).

Lembra-nos Corbisier (1992) que, na A noção de doença mental, tão cara ao


concepção freudiana, o delírio, e, porque discurso da psiquiatria clássica, ganha para

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a ética da reforma uma outra apresentação. devem visar, além do aspecto sintomatológico,
. “...De doença “...De doença mental para a existência- à inscrição ou reinscrição da pessoa no
mental para sofrimento, o fenômeno psíquico deixa de ser exercício da cidadania e no vínculo com a vida
a existência-
sofrimento, o
um mal obscuro que afeta as pessoas e passa social. Nesse sentido, a crise é um evento de
fenômeno psíquico a ser um fenômeno complexo, histórico, vida, e não mais uma fratura na continuidade
deixa de ser um um estado de não-equilíbrio...” (Rotelli & da existência, e, embora possa se repetir,
mal obscuro que
afeta as pessoas Amarante, 1992, p. 52). pode, a cada novo momento, ser atravessada,
e passa a ser devendo-se procurar colocá-la “...no interior
um fenômeno Todo modo de intervenção é pautado num
complexo, de uma série de nexos que são capazes de torná-
histórico, um campo filosófico-epistemológico, pois se la compreensível...” (Dell´Acqua & Mezzina,
estado de não- sustenta numa visão de mundo, de homem, 2005, p. 164), recebendo-a, acolhendo-a em
equilíbrio...” (Rotelli
de saúde e doença, de assistência e cuidado; sua singularidade e complexidade, a fim de
& Amarante, 1992,
p. 52). ressignificar o sintoma e a experiência estabelecer com ela uma relação de cuidados
de sofrimento implica, portanto, a partir e de compartilhamento, não de supressão ou
dessa ótica, assumir uma outra forma de erradicação.
se intervir, já que o sintoma, na condição
de possibilidade de fazer emergir o desejo
Há, portanto, a urgência de se pensar em
singular, pede um lugar de escuta, de
“...projetos de invenção de novas formas
continência, não de contenção. “Sendo
de cuidado em assistência psiquiátrica”
assim, não há o que ser corrigido... Não há o
(Amarante, 1992, p. 11) que efetivamente
que ser abolido” (Corbisier, 1992, p. 10), mas
substituam a lógica manicomial e assumam o
há o que ser escutado e acolhido como forma
compromisso ético da diferença como meta a
de receber o sofrimento e poder facilitar a sua
ser cotidianamente buscada na superação dos
transformação numa experiência integrada
vícios de intervenções de cunho asilar.
para quem o vivencia. Corbisier (1992)
considera, desse modo, a escuta da diferença
Tais projetos devem ter como preocupação
como um dos modos antimanicomiais de
primária o outro que demanda ajuda, não
lidar com a loucura.
permitindo que filiações e categorias teóricas
Deixa de ser legítima, portanto, a adoção de rígidas passem na frente do contato com
dispositivos voltados apenas para a eliminação esse outro em sua experiência de dor e
de sintomas. As intervenções devem procurar sofrimento. A autonomia deve ser buscada
cuidar do sofrimento do outro, idéia que e estimulada, assim como o respeito às
implica – mais do que atender ou tratar – individualidades em suas diferenças; o
acolher e abrigar a dor psíquico-existencial. controle e a disciplinaridade, enquanto
Essa autora nos sinaliza para a urgência em metas asilares, devem, portanto, ceder lugar à
não se responder rapidamente às queixas expressão do singular, sob pena de outra vez,
sintomatológicas, e sim para a urgência de se em nome de uma suposta normalidade, fazer
mediar crises com perguntas e tentativas de sucumbir diferentes formas subjetivas em
falas que “...muitas vezes, diluem a urgência favor da norma subjetiva padrão. É a demanda
de uma resposta-tampão, transformando-as complexa do usuário o norte pelo qual se deve
em pedido de ajuda...” (Corbisier, 1992, p. percorrer a assistência ao sofrimento. Esses
12). são aspectos aqui adotados como critérios de
validade ou de coerência de um dispositivo
As intervenções, acompanhando a terapêutico dentro da filosofia de assistência
complexidade da experiência do adoecer, da reforma.

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Permanecer com modalidades de assistência cuidar, parece que algumas questões ainda
permeadas pela noção de que cuidar é permanecem: “o que fazer com os loucos”?
apenas produzir a erradicação de sintomas “Como lidar com a ‘loucura’”?
psíquicos tem, para esse novo referencial,
o significado de um desserviço ao usuário, Sabemos que a figura do louco perde, ao
já que se estará combatendo exatamente longo da História, a condição de sujeito-
a estratégia que lhe permitia lidar com sua cidadão, e nós temos, a partir da cartilha da
dor psíquica, denunciar o seu sofrimento reforma, de estar atentos ao modo de exercer
decorrente dessa dor e solicitar ajuda. o cuidado, questionando-nos a respeito do
que estamos fazendo pelo não ofuscamento
Não escutar o sintoma de modo complexo da diversidade subjetiva, pelo resgate da
é, portanto, não permitir que ele encontre cidadania e da autonomia e pela reinscrição
lugar no mundo daquele que sofre, é não social.
permitir que ele possa apontar novos modos
Se, do ponto de vista teórico, percebe-se
de singularização, novas possibilidades de
um avanço na desconstrução do aparato
existência para aquele sujeito; é, ainda,
manicomial clássico, na prática, onde as
contribuir para a sua cristalização e criar
dificuldades acontecem, muitas intervenções
uma situação propícia à sua cronificação; é,
caminham ainda na direção dessa lógica.
em última instância, impossibilitar que esse
Por isso, não podemos afirmar que “...o
sujeito, ao seu modo, possa integrar esse
manicômio esteja morto, ele persiste, às vezes
sofrer para transformá-lo numa experiência.
mais limpo, modernizado ou humanizado”
Isso significa não cuidar do usuário de
(Barros, 1994, p. 175).
acordo com a ética da reforma psiquiátrica,
mas permanecer a repetir o que Birman
Identifica-se, por um lado, uma dificuldade
(1992) chama do incansável mito das
de pôr em prática o discurso antimanicomial
origens, no qual uma prática se apresenta
tão divulgado, e, por outro, um caminhar
modulada de outros instrumentos, sejam
oscilante que, ao mesmo tempo em que
físicos, sejam tecnológicos, sejam humanos, ensaia novas formas de cuidado, tende a
mas ligada, em sua natureza, ao projeto do repetir alguns passos da trilha asilar devido à
alienismo, fundante das práticas asilares. herança cultural que carrega.
“A instituição inventada... passa a ser uma
multiplicidade de serviços e circuitos que E esse tem sido aparentemente o caminho pelo
buscam superar cotidianamente os vícios dos qual propostas de reformulação da assistência
saberes completos, os vícios das instituições psiquiátrica se desfiguram em experiências de
totalitárias, para produzir trocas sociais, miniaturarização e tentaculização do espaço
possibilidades e subjetividades sempre novas asilar. Tal como uma sombra, essas propostas
e plurais” (Amarante, 1992, p. 54). freqüentemente trazem – atrás dos novos
modelos de intervenção – mecanismos mais
O processo de desconstrução a que convida sutis de controle e de regulação normativizante.
a forma de assistência antimanicomial parece (Bezerra, 1992, p. 113).
interminável, e, mesmo tendo avançado
enquanto postura ideológica sociopolítica, É compartilhando esse tipo de preocupação
no campo da assistência, na relação dos que se questiona: seria a técnica de ECT mais
técnicos com a dita “loucura”, na forma de uma das “sombras” do modelo assistencial

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clássico? Será que essa técnica é coerente de utilização dos psicofármacos e das
com a proposta de assistência da reforma? psicoterapias na prática psiquiátrica. Os
Pode-se pensar que tanto a forma de psicofármacos estariam em condições de
concebê-la quanto a sua utilização não mais atualmente funcionar de forma mais eficaz,
atendem a mecanismos, ainda que sutis, e são, ainda, mais econômicos. “Em grande
de controle e regulação? E ainda, tomando número de casos, sua administração (a
como base epistemológica a perspectiva de dos psicofármacos) evita dano temporário
questionamento da lógica hospitalocêntrica, permanente para o tecido cerebral e sua
de que forma se pode fazer uma leitura dessa função” (Lawrence, 1980, p. 649).
técnica? Dentro desse contexto, ela poderia
ser considerada um dispositivo terapêutico Até então, não se pensa em nenhuma
válido? contradição; afinal, espera-se que, no
itinerário de evolução científica, novas
Questões sensíveis e possíveis tecnologias, mais modernas e aprimoradas
lacunas da técnica de ECT e menos bruscas, assumam o cenário das
intervenções. Na Itália, por exemplo, que se
Retomando o debate técnico da ECT a constituiu em berço e fonte de inspiração para
partir da perspectiva dos autores citados, a Reforma Psiquiátrica Brasileira, a técnica de
identificamos algumas problematizações, ECT foi erradicada em alguns setores do país
lacunas e contradições. no campo da assistência em saúde mental.

O primeiro ponto sensível diz respeito à O consenso a esse respeito, entretanto,


percepção de certa imprecisão quanto às parece distante. Para Bastos (2003), a ECT
indicações e contra-indicações. Através do não deveria ser utilizada como terapêutica de
que é explicitado nas indicações, sinaliza- exceção ou como medida de último recurso.
se a possibilidade de que grande parte dos Ao contrário disso, Pitliuk (2001) coloca que:
transtornos psiquiátricos e outras situações “a ECT não é o único método, mesmo para
clínicas sejam, em potencial, passíveis de os casos gravíssimos. É muito raro precisar
recebimento da técnica. Pensa-se que indicá-la” (p. 2). Desse modo, questiona-
tais nuanças de imprecisão falem de uma se: por que uma técnica “consagrada
abrangência que pode remeter a uma mundialmente” é “raramente” utilizada? Por
utilização pouco delimitada e criteriosa da que não pode ser largamente usada, assim
técnica e mais susceptível à obscuridade na como os psicofármacos? E ainda, o que leva
compreensão de sua finalidade. o Ministério da Saúde, por exemplo, a avaliar,
através do Programa Nacional de Avaliação
Um outro ponto sensível, que chega a assumir dos Serviços Hospitalares (PNASH), o uso de
o caráter de uma contradição, diz respeito ao ECT como algo negativo para a instituição
reconhecimento e à defesa da eficácia dessa hospitalar que a realiza ou a prescreve?
técnica, por um lado, e, por outro, ao seu uso
cada vez mais limitado e restrito. Afirma-se A respeito da avaliação do PNASH, que
que, embora a eletroconvulsoterapia tenha tem como meta a proposição de melhorias
sua importância no cenário terapêutico, dirigidas aos serviços hospitalares, a fim de
ela está cada vez mais em desuso nesse que estes possam atender aos padrões de
cenário diante, por exemplo, da freqüência qualidade estabelecidos pelo Ministério

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da Saúde, percebe-se que o recurso da por exemplo, em casos de reanimação de


eletroconvulsoterapia não é considerado alguém com parada cardíaca. Fazendo essa
uma modalidade terapêutica de larga associação, considera injusto que só em
validade. Ao contrário, dentro dos parâmetros relação à psiquiatria o uso dos estímulos
estabelecidos por esse programa (quanto elétricos tenha recebido um estigma social
ao ECT), vê-se que a excelência de uma na comunidade científica. Ao refletirmos
instituição hospitalar é conferida somente sobre o pensamento do autor, pensamos
quando a mesma nem realiza o procedimento, que o que fundamenta a associação feita
entre a cardiologia e a psiquiatria, nesse caso,
nem o prescreve. E, para receber o conceito
parece remeter a uma comparação entre
“bom”, é preciso realizá-la ou prescrevê-
órgãos, entre o coração e o representante
la excepcionalmente, de acordo com
corpóreo do psiquismo: o cérebro. O que
critérios clínicos precisos. Vê-se que, para
fica implícito na colocação é o destaque dado
um grupo de profissionais, a técnica de
ao aparato biológico que legitima e justifica
ECT é considerada um método fácil, eficaz
as intervenções, ao mesmo tempo em que
e seguro, e é, ao mesmo tempo, em sua parece desconsiderar a indissolubilidade entre
prática de utilização, quando não evitada corpo e mente e a conseqüente imersão do
por outro grupo igualmente especializado corpo no universo da subjetividade.
ou pela regulação do Ministério da Saúde,
secundária ao uso dos psicofármacos, ou Não levar esse aspecto em consideração é
ainda utilizada somente como último recurso. não ver que o usuário de ECT recebe tais
É nesse ponto que brota uma contradição. estímulos elétricos porque se apresenta em
Desse modo, pensamos: por que a técnica estado de intenso sofrimento psíquico, e
de ECT é revestida dessa contradição não em razão de um órgão que não está
dentro de seu próprio campo de defesa funcionando bem e que necessita ser corrigido.
médico-psiquiátrico? E mais, como entender Aliás, tamanho é o destaque dado por esse
as orientações do Ministério da Saúde, discurso à dimensão orgânico-cerebral do
como órgão maior, regulador das políticas sujeito que, além de parecer imprimir uma
nesse âmbito, frente ao posicionamento marca organicista, acaba por solicitar não
somente o esvaziamento da bexiga e do
do Conselho Federal de Medicina em
reto (a ser realizado imediatamente antes
defesa da técnica? Na ausência de possíveis
do procedimento de ECT) e a retirada das
considerações que pudessem dar conta
próteses dentárias do usuário, mas também o
desses questionamentos em nosso percurso
esvaziamento e a retirada de algo muito mais
investigativo, os não ditos prevaleceram sobre
peculiar e ao mesmo tempo irremovível – seu
o explicitado, enunciando, como lacuna, uma
universo de subjetividade.
argumentação pouco clara e de natureza
contraditória. Além disso, referir-se a um sentimento de
injustiça parece, ainda, um posicionamento
Lançando as bases para uma que ignora as formas de utilização punitiva,
outra leitura da técnica de controle e ameaça, a serviço das quais a
prática de ECT esteve fortemente vinculada
Busnello (1995), ao abordar a técnica de em um dado momento da História.
ECT, faz um paralelo com a cardiologia,
que também se utiliza de estímulos elétricos Para Busnello (1995), entretanto, tais marcas
em algumas situações emergenciais, como, e preconceitos são fruto de divulgações

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Ao sofrimento equivocadas da imprensa, que, ao lançar Ao sofrimento psíquico, à contenção física,


psíquico, à
a técnica de ECT sob holofotes para a o leito, os psicofármacos e os estímulos
contenção
física, o leito, os sociedade, fez com que alguns aspectos elétricos, ou seja, a forma de assistência, se
psicofármacos e os na relação médico-paciente/familiares, confunde com a idéia de tratamento, que
estímulos elétricos,
ou seja, a forma como a formalização e o fornecimento parece ter um fim comum: conseguir de
de assistência, de esclarecimentos, precisassem ser alguma forma eliminar os sintomas psíquicos,
se confunde modificados. Nesse sentido, supomos que
com a idéia de
expressão de um “descarrilamento”, talvez, do
tratamento, que as questões relativas à contratualidade, eixo da razão e/ou da normalidade orgânico-
parece ter um fim como o procedimento explícito entre cerebral.
comum: conseguir
de alguma
médico e paciente, passam a ser vistas como
forma eliminar os elementos importantes quando pressões Uma vez eleito o corpo e os órgãos como
sintomas psíquicos, externas parecem ameaçar a prática médico-
expressão de um objeto, a doença, enquanto expressão do não
“descarrilamento”, psiquiátrica. funcionamento desse corpo neuroquímico,
talvez, do eixo
da razão e/ou
passa ser o foco para o qual se voltam as
da normalidade
A mesma lógica de raciocínio conduzida intervenções corretivas. A noção adotada
orgânico-cerebral. por noções organicistas foi observada em
de que bom resultado e efetividade são
Fink (2007), que, ao abordar o problema
sinônimos de ausência de sintoma, e a
dos efeitos colaterais ocasionados pela
suposição de que não há sofrimento para
ECT, sugere que devemos considerar “...
aqueles que se submetem ao procedimento
os impactos da ECT sobre a memória
pelo argumento de não se lembrarem, servem
imediata comparáveis à perda de sangue
como exemplos dessa forma de conceber o
em cirurgias...”, afirmando que seria “...tão
sofrimento psíquico e a assistência que aqui
irracional rejeitar a ECT devido aos impactos
se identificou. Assintomáticos, sim, mas,
previstos sobre a memória quanto seria
como questiona Corbisier (1992), melhores
desconsiderar a cirurgia pelo sangramento
do que o quê?
que causa” (Fink, 2007, p. 209). E, nesse
sentido, a estigmatização da ECT constitui,
Tomando-se distância dessa ética da eficácia
para ele, “...episódio de desperdício na
e adotando valores trazidos pela reforma,
história da Medicina” (Fink, 2007, p. 212).
baseados numa ética complexa do humano,
A partir dessas considerações, traçamos um teremos que pensar se a utilização dessa
desenho epistemológico que parece dar técnica se propõe a trabalhar sob a ótica de
suporte ao campo de defesa da técnica de melhor qualidade de vida para o usuário, se
ECT. Do ponto de vista da concepção de estimula sua autonomia, se está preocupada
sujeito, parece que se lida com a idéia de com a reinscrição do usuário em seu contexto
um sujeito essencialmente orgânico, sem social, o que lhe possibilita o exercício de
dimensão subjetiva e social, pelo menos não cidadania, se não tolhe seu movimento
em um sentido relevante para considerar o singular, se está a serviço do bem- estar
sujeito “adoecido” um sujeito epistêmico e biopsicossocial. Entretanto, não foi o que se
perfeito para as intervenções tecnológicas conseguiu ler, como preocupação relevante,
da ciência, que pode deixar de sentir forte nesse passeio bibliográfico.
doses de angústia frente à utilização de
bons psicofármacos e até mesmo tornar-se O grande problema parece que se circunscreve
assintomático através do uso de recursos ao destaque dado à doença, na naturalização
científico-tecnológicos. a ela conferida, enquanto categoria separada

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de quem a vivencia. Entender a experiência Talvez possivelmente do baixo percentual de


de sofrimento psíquico como doença, apenas, morte biológica, embora não consensual (1
e não como uma tentativa de dar sentido a em cada 25.000 casos / 1 em cada 10.000).
uma experiência subjetiva conflitiva é o que Tal assertiva parece desconsiderar os fortes
autoriza a noção de tratamento enquanto via sentimentos de angústia com os quais os
de correção e não de escuta que possa dar usuários de ECT se deparam antes e depois
sentido e possibilidades de integração de tal das aplicações, os quais remetem, entre outras
experiência. coisas, a um estado de medo e insegurança.
E mais, será que podemos falar apenas em
Pensando nas modalidades interventivas como morte biológica? Nesse sentido, ter-se-ia que
tecnologias que devem estar a serviço de seus atentar para a qualidade de morte subjetiva,
usuários, torna-se difícil conceber ajuda e a “mortificação do eu” (Goffman, 1961).
melhor qualidade de vida dentro de uma
perspectiva tradicional, que visa basicamente Diríamos que essa técnica seria válida ou
a alterações ou à eliminação de sintomas coerente, dentro da leitura que aqui se
psiquiátricos. Passar do objetivo da cura propõe, se pudéssemos visualizar em sua
para a produção de vida, de sociabilidades proposta de intervenção a desconstrução em
e de subjetividades plurais e mais livres em relação ao aparato epistemológico-prático
suas expressões de singularidade – meta das manicomial. Isso implicaria não eleger a
práticas de cuidado orientadas pelo discurso da suposta doença como o objeto exclusivo de
reforma – é necessariamente ampliar a forma intervenção, e sim, o sofrimento psíquico
de compreender o humano e a dor psíquica, e sua relação com o social, não conceber
relativizando ou mesmo abandonando um sujeito puramente orgânico, fruto da
os parâmetros da racionalidade, que vê o separação cartesiana, mas lidar com a noção
sintoma como algo a ser erradicado. biopsicossocial em sua perspectiva de não
essência, mas de contingência, de pluralidade
Um outro olhar sobre a ténica subjetiva, entender o sofrimento psíquico não
de ECT (considerações finais) como um sintoma ou disfunção que pede
correção e ajustes, mas como um estado
Diante da proposição desses pontos de que necessita de cuidado (e isso não exclui
reflexão, sugere-se uma leitura da técnica de a utilização de psicofármacos, nem mesmo
ECT na complexidade que ela comporta, que de eletroconvulsoterapia) e de escuta, como
se coloca além de um debate orgânico, com forma de dar sentido a essa experiência
possíveis considerações de natureza histórica, subjetiva, ampliar a noção de cuidado
psicológica, social, política e ética. e assistência na medida em que o peso
normativo da razão fosse relativizado frente
Diz-se que o ECT permanece o baluarte a valores como a aceitação da diferença, a
da psiquiatria moderna: seguro, fácil e inclusão e o respeito à pluralidade existencial,
eficiente. Entretanto, pensando na técnica deixar de percorrer o caminho da suposta cura
com base no lastro teórico da reforma, e da simples eliminação de sintomas, com
levantam-se alguns questionamentos: será suas dimensões, nem sempre explícitas, de
que é possível realmente falar em facilidade controle e disciplina, para a busca da produção
num procedimento como o da ECT? E a de vida, de sociabilidade e de subjetividades
segurança, de qual perspectiva se parte? que possam expressar singularidade.

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Teórica e Teórica e epistemologicamente falando, no Nesse sentido, reconhece-se, desde já, que
istemologicamente
falando, no
entanto, a proposta da técnica em questão um trabalho que pudesse ter como campo
entanto, a parece atender mais a um modelo de de estudo a prática de utilização do ECT
proposta da continuidade do tipo de assistência calcado teria grande valor no sentido de elucidar e
técnica em
questão parece na postura de assistência manicomial do que ampliar a condução do pensamento aqui
atender mais a de questionamento e de desconstrução da traçado. Verificar o uso que hoje é feito
um modelo de
continuidade do mesma. Portanto, se pararmos a nossa reflexão dessa técnica no contexto da saúde mental
tipo de assistência nesse ponto, isto é, apenas no plano teórico, parece ser fundamental, até mesmo para se
calcado na
postura de
somos levados a questionar a coerência da poder tratar com mais segurança da questão
assistência técnica no presente contexto das práticas de da sua validade enquanto modalidade
manicomial cuidado orientadas pela reforma, no sentido terapêutica coerente para o contexto de
do que de
questionamento e de que o desenho epistemológico de suporte práticas orientadas pela filosofia da reforma.
de desconstrução da mesma parece não ser compatível com o
da mesma.
da proposta da reforma psiquiátrica. Pelo reconhecimento que se tem dos aspectos
citados acima e por entender o presente
É válido ressaltar, entretanto, que o que se estudo como um recorte bibliográfico,
afirma no meio psiquiátrico contemporâneo deve ser dito ainda que não se objetivou
de defesa da técnica é que ela, e, portanto, fechar o pensamento ora desenvolvido em
sua prática de intervenção, muito teria uma postura taxativa e de negatividade em
evoluído, sendo inegável o reconhecimento relação à técnica, mas, pelo contrário, abrir
da importância de sua utilização em algumas um debate sinalizador para novas discussões,
situações, como nos quadros de depressões partir de uma outra ótica de discussão,
profundas e em quadros catatônicos, para ficando as novas inclinações investigativas
citar os mais comuns. para estudos futuros.

Maura Lima Bezerra e Silva *


Professora da Universidade Vale do Acaraú (UVA)
Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Mestre em Psicologia clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
Professora da Faculdade Vale do Ipojuca(FAVIP)

Marcus Tulio Caldas


Professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
Psiquiatra graduado pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Doutor em Psicologia pela Universidade de Deusto - Espanha
E-mail: marcus_tulio@uol.com.br

* Endereço para correspondência:


Rua José Bonifácio, nº 1356, bloco D, ap. 601 Torre Cep: 50710-000 - Recife - PE
E-mail: mauralima@ig.com.br

Recebido 10/08/2007 Reformulado 27/11/2007 Aprovado 03/12/2007

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Revisitando a Técnica de Eletroconvulsoterapia no Contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira

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