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SEMINÁRIO NACIONAL POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: Perspectivas e Políticas Públicas

EMINÁRIO NACIONAL PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA:


Perspectivas e Políticas Públicas
14 de novembro de 2008, UFSCar

O processo de organização política da população em situação de rua na


cidade de São Paulo: limites e possibilidades da participação social1

Rosemeire Barboza Silva


Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
rose.bs@uol.com.br

Nosso objetivo é aprofundar o debate sobre os limites e possibilidades da participação social do


coletivo de pessoas em situação de rua.
No presente texto buscaremos, por meio de um panorama teórico demonstrar como a concepção
forjada academicamente sobre a população em situação de rua acaba tendo tanto seus reflexos no
cotidiano dessa população como também originando processos que questionam a eficácia de tais
conceituações.
O estudo em questão busca compreender as articulações entre academia, população de rua e
Igreja desde a década de 70 no Brasil para em seguida discutir a emergente organização coletiva da
população de rua que se apresenta no cenário público brasileiro como uma possibilidade
emancipatória.
O artigo finaliza com uma reflexão sobre as possibilidades e impossibilidades do conhecimento
científico nesse contexto e uma sugestão de agenda que fortaleça a colaboração entre a ciência e seus
informantes.

Palavras-chaves: População em Situação de Rua; Participação Social; Organização Coletiva.

1. O pano de fundo:

Retrato dramático e chocante, a população em situação de rua no Brasil, os homeless nos países
de língua inglesa, os sans domicile fixe (SDF) na França, os vadios em Portugal são hoje expressões
contundentes dos paradoxos da sociedade.
Em um mundo globalizado, onde a ordem política é o neoliberalismo vemos crescer de modo
sem paralelo, o número de pessoas, que sem um emprego fixo entra em um círculo vicioso de
vulnerabilidade social. Vulnerabilidade essa que é caracterizada pela prestação de serviços informais e
dependência dos serviços de assistência promovidos pelo Estado ou então por entidades filantrópicas,
ONG’s etc. As conseqüências desse círculo são fáceis de notar: baixa auto-estima, dificuldade cada vez
maior de inserção no mercado de trabalho formal, ruptura ou perda de vínculos com familiares e
amigos, dependência do álcool e drogas e o estigma de uma identidade negativamente reposta.
Relacionar população de rua com cenário político e questões econômicas e conjunturais é
premente nesse contexto e direciona nossas reflexões justamente no sentido de compreender como esses
matizes se entrecruzam, não só criando, mas também mantendo e ampliando esse fenômeno. Outra
questão que também nos vem a mente é compreender quem é e quem vive nas ruas 2 . Muitos estudiosos

1
Este trabalho é dedicado sobretudo à Cleisa Moreno Maffei Rosa, Alderon Costa, Sebastião Nicomedes, Anderson Lopes,
Paulo Ivan Fonseca e aos demais amigos e amigas do Movimento Nacional da População de Rua e do Fórum de Debates
sobre a População de Rua da cidade de São Paulo, incansáveis lutador@s por um mundo mais justo e que reforçam, cada
um a sua maneira, a minha esperança em utopias possíveis.
2
Neste artigo será usada a expressão população em situação de rua ou população de rua dentro desta concepção de
processo. A rua pode ter pelo menos dois sentidos: o de se constituir num abrigo para os que, sem recurso, dormem
circunstancialmente sob marquises de lojas, viadutos ou bancos de jardim ou pode constituir-se em um modo de vida para
os que já têm na rua o seu habitat e que estabelecem com ela uma complexa rede de relações. “Seria possível identificar

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já se debruçaram sobre essa problemática (STOFFELS, 1977; VIEIRA, 1992; ROSA, 1999 et al), o que
resultou em uma grande produção teórica sobre o tema.
De um lado e de forma preconceituosa, essa população é considerada pela sociedade como
mendigos e com pouca capacidade de se organizar; estão à mercê de organizações socioassistenciais
que desenvolvem no seu dia-a-dia atividades que reiteram a submissão, o preconceito, e reproduzem a
repressão, a humilhação e o desrespeito. Por outro lado, observam-se na atualidade, iniciativas de
mobilização e presença significativa de pessoas em situação de rua em inúmeras formas de participação
na sociedade na busca incessante da conquista de direitos quase sempre negados 3 .
A questão do morar na rua em São Paulo não é recente (STOFFELS, 1977). Este artigo,
entretanto, será focado a partir da década de 1980, conhecida como “a década perdida” para os
economistas brasileiros, devido a pauperização cada vez maior da população, aumento do desemprego,
altos índices inflacionários e o endividamento crescente com o FMI (Fundo Monetário Internacional).
A população em situação de rua é encarada atualmente por meio do discurso da
heterogeneidade, pois segundo pesquisadores, ela é composta de inúmeros segmentos que podem ser
analisados a partir das categorias apontadas por Vieira (1992), como ficar na rua, estar na rua e ser da
rua, que descreve características diversas conforme sua inserção social e tempo de permanência na rua.
Essa heterogeneidade pode, também, ser observada nas inúmeras denominações utilizadas,
como: mendigo (STOFFELS, 1977), sofredor de rua e povo de rua (SILVA, 1988), população de rua
(VIEIRA, 1992; ROSA, 1999; BARROS, 2004). Conforme ROSA “(...) Nas três últimas décadas
observa-se uma variada nomenclatura em relação à população que vive nas ruas (...) carregada de
significados, que, por sua vez, expressa, não apenas as representações que a sociedade tem sobre ela,
mas também a articulação com determinadas conjunturas sociais, econômicas e político-institucionais.
(...). Verifica-se uma tendência de buscar um denominador comum, uma expressão que abarque a
heterogeneidade de situações de rua, tanto no sentido generalizante, de desqualificar a população que
mora e sobrevive nas ruas e em albergues – mendigos – como uma outra expressão que funcione como
contraponto e que atenue preconceitos ou explicite posições – povo de rua”.(ROSA, 1999:18)
De um lado, os números mostram a relevância e a emergência social de se compreender essa
questão, de outro lado, os estudos (STOFFELS, 1977; SILVA, 1988; GOHN, 2003 et al) mostram a
necessidade de se compreender formas organizativas dessa população, sempre tratada de maneira
individualizada e dependente da rede assistencial (NEVES, 1995).
Como, a partir de uma situação de extremo desamparo e fragilidade, ela consegue se unir, e
principalmente a partir do novo século consegue protagonizar em momentos dramáticos 4 uma

situações diferentes em relação à permanência na rua: ficar na rua − circunstancialmente; estar na rua − recentemente; e
ser da rua − permanentemente. (...) Essas situações podem ser dispostas num continuum, tendo como referência o tempo
de rua; à proporção que aumenta o tempo de rua, torna-se estável a condição de morador. O que diferencia essas
situações é o grau maior ou menor de inserção no mundo da rua” (VIEIRA, 1992: 93-94).
3
Na cidade de São Paulo, segundo o último recenseamento realizado em outubro de 2003, há aproximadamente 10.000
pessoas, isto é, (...) “indivíduos que não têm moradia e que pernoitam nos logradouros da cidade – praças, calçadas,
marquises, jardins, baixos de viaduto – ou em casarões abandonados, mocós, cemitérios, carcaças de veículos, terrenos
baldios ou depósitos de papelão e sucata. (...) aquelas pessoas, ou famílias, que, também sem moradia, pernoitam em
albergues ou abrigos, sejam eles mantidos pelo poder público ou privado” (FIPE/SAS, 2003: 7); verifica-se crescimento
progressivo nos últimos 14 anos, época em que estudos quantitativos foram iniciados.
4
Em Agosto de 2004, São Paulo presenciou com horror a chacina de 7 moradores de rua, espancados até a morte. Os
crimes impactantes, por sua natureza violenta, permanecem sem solução até hoje, Maio de 2005. Os delitos tiveram ampla
cobertura da mídia nacional e até mesmo internacional (Jornal O Clarín, The New York Times, Le Monde e no El Pais com
a manchete mais impactante: “Mais rica e excludente cidade do Brasil mata moradores de rua”) e publicizaram de forma
até então nunca vista, o drama do morar na rua, não só do ponto de vista da grande imprensa, mas pela primeira vez houve
um movimento de tentar divulgar quem eram as pessoas que estavam nas ruas, a partir do olhar dessas mesmas pessoas. A
maior emissora de TV do país, em número de espectadores, dedicou um programa em horário nobre, para desmistificar
quem está nas ruas: desempregados da construção civil, químicos com curso superior completo, designers talentosos e
idosos sem vínculos com a família. A meu ver, essa reviravolta traz em seu bojo, a concepção, já apontada pela academia
(ROSA, 1999) que quem está na rua é o trabalhador, pessoas com habilidades em idade produtiva e qualificadas, que foram
expurgadas do sistema por questões muito mais econômicas e conjunturais do quê por questões pessoais.
Como veremos a seguir, esse evento sem precedentes também agiu de forma contundente na futura organização política da
população de rua.

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identidade coletiva? Responder a esta questão central não é trabalho fácil dada a complexidade de seus
aspectos constitutivos e que apontam igualmente outras indagações também complexas. Contudo, para
que se esclareça os objetivos desse artigo, faz-se necessário descrever o pano de fundo histórico, as
mudanças operadas no Brasil a partir da década de 70, tanto no contexto organizativo da população de
rua, como no contexto dos movimentos sociais.
O primeiro trabalho voltado para a população de rua foi escrito, na década de 70 por Marie-
Ghislaine Stoffels, intitulado “Os mendigos na cidade de São Paulo” como resultado da tese de
doutorado da autora. Nesse livro, Stoffels coloca como principal objetivo: “[expor] a complexidade e
especificidade das atividades e ideologias características da mendicância” (STOFFELS, 1977, p.13).
Para nós é importante assinalar que nesse trabalho, pela primeira vez, a academia voltou-se para
a questão organizativa da população de rua, ou dos mendigos, como descreveu a autora. Stoffels (1977)
relacionou a categoria dos mendigos à de lumpemproletariado 5 e baseando-se nas idéias de Marx,
defendeu a idéia de que os mendigos são uma categoria a-política: “Essa camada caracteriza-se, além
da periculosidade, pela irregularidade de remuneração, o caráter a-revolucionário – ausência de
projeto autônomo de transformação social – e uma forte apatia” (STOFFELS, 1977: 248).
É possível ainda apontar no estudo de Marie-Ghislaine Stoffels, o que a autora chama de “grupo
carente de uma organização voltada para a reivindicação e o protesto” (Idem, 1977: 249), os que
sobrevivem da mendicância, para ela estão fadados a uma não-organização, contudo, alguns
questionamentos levantados pela autora, continuam instigantes: “a partir da estruturação existente e do
tipo de protesto que a acompanha, até que ponto de organização os mendigos poderiam chegar, e quais
os fatores que os diferenciam desse ponto?” (Ibidem, 1977: 249). Os itens seguintes apresentados no
livro são uma tentativa de responder a esses questionamentos. Para a autora, alguns fatores intervêem na
organização de um movimento autônomo por parte dessa população, esses fatores estariam ligados à
condição histórica da camada (pois a prática de mendicância não passa pela organização política) e a
posição individual a respeito do próprio destino, que segundo Stoffels, inviabiliza o agrupamento e a
transformação numa coletividade. Para ela, uma das questões capitais que se colocam como impeditivo
dessa organização coletiva é “a possível recusa de auto-identificação através do semelhante” (Ibidem,
1977: 256).
Percebemos, portanto, que a idéia de que a população de rua é historicamente compreendida
como de difícil mobilização é reiterada no discurso acadêmico como também nas práticas caritativas e
assistenciais da Igreja.
Assim a população de rua foi tornando-se aos olhos da sociedade aqueles que sobreviviam da
caridade alheia. Estavam ali, delatavam as ambigüidades da organização social, mas eram
compreendidos como apáticos e sem capacidade de luta, sem possibilidades de reivindicação. De um
lado tinham a caridade da Igreja e de outros serviços sócio-assistenciais 6 que por meio de sua prática
referendavam a dependência e de outro lado, a academia que mesmo voltando-se ao estudo dessa
população era agora responsável por forjar uma identidade a-política, apontando a questão da falta de
uma identidade coletiva, no entanto, sem buscar compreender porque isso não era possível naquele
momento.
Aqui poderíamos pensar na proposta formulada por Santos (2004), as práticas assistenciais da
Igreja e os acadêmicos, dessa época, são responsáveis por produzirem uma não-existência: “Há
produção de não-existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível,
ininteligível ou descartável de um modo irreversível”. (SANTOS, 2004: 787). Negando a possibilidade
de organização dessa população, estão mais uma vez legitimando a supremacia do conhecimento

5
Para Marx, a idéia de lumpemproletariado está ligada às suas categorias de superpopulação relativa: “o último resíduo”
que “mora no inferno do pauperismo” (MARX apud STOFFELS, 1977: 248).
6
Refletir sobre a criação e manutenção dos serviços assistenciais corrobora com a hipótese de que as políticas públicas são
em sua maioria produtores de uma não-existência (SANTOS, 2004). Dessa forma, os programas para essa população
deveriam ser pautados em seus direitos como homens e não apenas na satisfação das necessidades básicas, como comer e
dormir: “Assim é preciso interrogar a montagem dos programas de atendimento à população de rua, seu papel e seus
conteúdos para além da defesa da vida, como produto de reivindicação ancorada no direito natural e na comunidade,
como antídoto para a exceção capitalista que, não só não conseguiu ser absorvida, mas que foi produzida por este mesmo
modo de produção” (BARROS, 2004: 42).

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científico sobre o saber popular. O conhecimento e as práticas da população não são importantes e nem
compreendidas como uma forma de resistência, mas sim como meras estratégias de sobrevivência.
O conhecimento fechado sobre si mesmo, cria para a sociedade a imagem de uma população de
maltrapilhos e caídos (NASSER, 2001), de preguiçosos e desocupados. Dessa forma a academia “fecha
as portas a muitos outros saberes sobre o mundo” (SANTOS, 1987: 53), rende-se à idéia higienista de
que a população de rua é o que, sem uma identidade coletiva não pode ser nomeada e estabelece uma
relação de superioridade e distanciamento, que vai se propagar até os dias atuais em estudos que
demonstram a perplexidade diante do fenômeno da miséria e abandono, mas que não se aproxima do
campo e dos sujeitos, ou ainda, dispensam-lhe a categoria de “objetos”: “Nestes termos, o conhecimento
ganha em rigor o que perde em riqueza (...) esconde os limites de nossa compreensão do mundo e
reprime a pergunta pelo valor humano do afã científico (...) inscrita na própria relação sujeito/objeto
que preside à ciência moderna, uma relação que interioriza o sujeito à custa da exteriorização do
objeto, tornando-os estanques e incomunicáveis” (SANTOS, 1987: 54).
Percebemos, portanto que até a concepção marxista, utilizada por Stoffels (1977), carrega a
crença de que há uma população incompetente para responder ao liberalismo.
Enquanto a academia começa a se voltar para essa população, diversos estudos dão conta que a
população de rua aumenta rapidamente a partir de 1970 (VIEIRA, 1992; ROSA, 1999). A Igreja que já
tinha uma prática social junto a essa população, desde 1955, em parceria com a OAF 7 , começa a rever
seu papel por meio das Pastorais do Povo de Rua e de outros serviços que começaram atender essa
população.
Essa postura tem impacto direto na organização da população: nos anos 80 e a Igreja, marcada
por seus trabalhos junto a movimentos sociais de base é extremamente influenciada pelos teólogos da
então conhecida Teologia da Libertação 8 , e a carta escrita em Puebla 9 também tem um papel
fundamental na revisão do caráter assistencialista dos trabalhos oferecidos.
Não podemos ignorar também o cenário político de mobilização e organização social, que não
acontece só no Brasil 10 mas em toda a América Latina (SADER, 1988). São movimentos sociais,
associações de moradores e campesinos, movimentos rurais e urbanos que reivindicam direitos e maior
participação política.
Durante os anos 80, a idéia de organização política entra na pauta da re-democratização do país,
e partidos de esquerda, chegam ao poder no final da década, em capitais importantes como Porto
Alegre, Belo Horizonte e São Paulo.
A OAF-SP que continua seu trabalho, agora revisto, voltou-se especificamente para a população
adulta em situação de rua e chegou no final dos anos 80 defendendo a idéia que seu trabalho deveria ser
muito mais denominado como “movimento da rua” (DOMINGUES JR., 2003: 45).
Contudo, apenas um trabalho faz menção, ainda que de maneira rápida a uma organização da
população de rua, na década de 80: “houve ainda o surgimento de um movimento inédito entre as
classes populares, o dos Moradores de Rua. Seus atores são uma categoria social que antes era vista
de forma individual, através da filantropia, como mendigos, e que agora assume caráter coletivo, pois
são famílias inteiras que passaram a morar debaixo das pontes, viadutos e outros espaços públicos,
devido ao empobrecimento, desemprego (...)” (GOHN, 1997: 138).

7
A OAF. (Organização de Auxílio Fraterno) foi fundada em 1955 por um grupo de religiosas e de leigos com o objetivo de
agir no centro de São Paulo: “voltada para o centro urbano, tinha como missão a busca de soluções para o problema da
pobreza nas regiões centrais” (DOMINGUES JR., 2003: 43).
8
A teologia da libertação é um movimento teológico que quer mostrar aos cristãos que a fé deve ser vivida numa práxis
libertadora e que ela pode contribuir para tornar esta práxis mais autenticamente libertadora. O termo libertação foi
cunhado a partir da realidade cultural, social, econômica e política sob a qual se encontrava a América Latina, a partir das
décadas de 60/70 do último século.
9
Alusão a Carta escrita na cidade de Puebla no México. Essa carta contém os desígnios da “igreja popular” e como essa
igreja deveria se voltar aos movimentos sociais de base, e caminhar sempre ao lado do povo excluído.
10
A década de 80 é marcada no Brasil especificamente por momentos de participação popular de grande envergadura como
o movimento pelas “Diretas Já” e a queda de um governo militar, os movimentos sindicais, a criação e articulação nacional
do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) entre outros.
A Carta constituinte brasileira de 1988 também é um importante marco na história da democracia brasileira e como um
exercício de poder político, já que alguns artigos garantem a iniciativa popular como iniciadora de processos legislativos
(ver artigos 14 e 29).

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Nessa década, são escritos trabalhos importantes sobre a população como: De lixo também se
vive de Idalina Farias Costa e o livro de Marilene Cabello Di Flora, chamado: Mendigos: por que
surgem, por onde circulam, como são tratados. Embora, o trabalho de José Roberval Freire Silva: A
Igreja dos Excluídos: vida e morte do povo que mora na rua, publicado em 1988 seja, o que melhor
expõe o retrato do trabalho dessa década, estudando o papel da Igreja como articuladora, defensora e
organizadora dos movimentos sociais e conquistas da população de rua.
Após esses trabalhos, veremos, na década seguinte, que a Igreja e a Assistência Social serão os
grandes responsáveis pela produção escrita sobre o tema. Os trabalhos falam, sobretudo, da relação
entre rua e casa, assistência e “exclusão”, mas continuam estudando quem é a figura do mendigo. É
também na década de 80, que começam as primeiras críticas sobre a denominação da população de rua:
o termo “mendigos” começa a ser abandonado e será paulatinamente substituído por “povo de rua”.
A emergência dos movimentos sociais e populares na sociedade brasileira nos anos 70 e 80
possibilitou a entrada de novos atores na cena política e, por conseguinte, criou novos sujeitos coletivos
(SADER, 1988). “Esse processo de experiência demarcou um novo campo de atuação da sociedade
civil, relativo à participação dos cidadãos na vida pública (...) as ONG’s se preocupavam em fortalecer
a representatividade das organizações populares, ajudavam a própria organização a se estruturar, e
muitas delas trabalhavam numa linha de conscientização dos grupos organizados” (GOHN, 2005,
p.88-89).
Nesse contexto, a década de 90 traz uma nova configuração em vários setores, tanto na vida
política, como na vida cotidiana da população. Os reflexos das mudanças políticas no Brasil
influenciam diretamente o trabalho dos pesquisadores. O cenário político que já exigia os direitos
sociais básicos da Revolução Francesa (GOHN, 2005), começa também a exigir os direitos sociais
modernos e a palavra cidadania passa a ser incorporada aos discursos militante, político e acadêmico.
Com esse clima de inquietação, ampliação e re-democratização do país, algumas experiências
são implantadas no campo político como os Fóruns e Conselhos (GOHN, 2003).
Agora na pauta das discussões, cidadania, autonomia e emancipação são compreendidas a partir
de uma perspectiva qualitativa e antipositivista de ciência. O novo paradigma que vigora nas ciências
humanas busca a escuta, a compreensão do fenômeno in loco, o aprofundamento das questões e a
compreensão dos modos de vida da população (HAGUETTE, 2003) em detrimento da perspectiva
positivista, que não dava conta de apreender a complexidade do sujeito histórico.
São trabalhos escritos nessa perspectiva que iniciaram na década de 90, estudos exploratórios
importantes para compreendermos quem está nas ruas. Esse pano de fundo dos anos 90 fomenta uma
produção científica diversificada, trabalhos importantes como Sair para o mundo - Trabalho, família e
lazer: relação e representação na vida dos excluídos de Ana Cristina Nasser são publicados.
Nessa década, também são escritos dois importantes livros, que continuam sendo um guia
dialógico para a compreensão da população em situação de rua, não só de São Paulo, mas de outras
grandes cidades do Brasil: População de Rua, Quem é, Como vive e Como é vista, resultante de uma
parceria entre diversas entidades e o poder público e População de Rua: Brasil e Canadá, publicação
bastante heterogênea, no formato de artigos escrito após o I Seminário Nacional sobre a População de
Rua realizado em São Paulo em 1992.
A contribuição da dissertação de Cleisa M.M. Rosa Vidas de Rua, Destino de Muitos no ano de
1999 é fundamental, pois nele a autora expôs, por meio de um trabalho meticuloso de estudos de
trajetórias individuais, que quem estava nas ruas eram os trabalhadores.
É importante ressaltar que, para nosso tema: os limites e possibilidades do processo de
organização política da população de rua e a participação social, esses trabalhos são um marco
importante na compreensão da problemática da rua, não só do ponto de vista acadêmico, como político.
As autoras, por meio de um posicionamento político levam o tema da rua para a universidade e dentro
dela rompem com a idéia até então reiterada pela academia e as organizações que trabalham com a
população de rua, que essa é tradicionalmente a-política, um grupo “carente” e que necessita de
“cuidados” e atenção integral.
Na mesma década podemos citar outros trabalhos, mas é importante assinalar que a principal
força desse período é a diversidade e a sensibilização das autoridades e universidades para as questões
concernentes à população de rua. Algumas vitórias importantes marcam esse período como a Lei

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Nº12.316/97 11 , o que tem impacto também não só na produção teórica sobre a população, como
também na articulação política.
Nessa década a população irá protagonizar, mesmo que algumas vezes de forma “controlada” 12
pelas organizações, reivindicações e passeatas em ruas e avenidas, sendo que podemos assinalar que os
anos 90 são definitivamente o período gestacional dos movimentos que ecoarão a partir da década
seguinte.
Em 1989, por iniciativa da SEBES (Secretaria do Bem Estar Social) se estabelece o Fórum das
Organizações que Trabalham com a População de Rua. Esse espaço se constituiu uma parceria entre o
poder Executivo e a sociedade civil, e que segundo DOMINGUES JR (2003: 98): “fez emergir [em suas
discussões] a população de rua como pessoas de direitos”.
O trabalho conjunto de entidades que lidam com a população de rua procurou estabelecer um
espaço que rompe com a idéia de sujeitos que não se liberaram de um imaginário tutelar. Buscou ao
contrário novas formas de emancipação dessa população e a mobilização social é a saída que
encontraram.
Algumas iniciativas, como a criação por parte da Pastoral de Rua de São Paulo do Fórum da
População de Rua e o Dia de Luta da População de Rua (que teve início em maio de 1991) representam
maneiras de publicizar e dar visibilidade pública a essa população. Ambos, tanto o Fórum, como o “Dia
de Luta” representam também a necessidade da população se mobilizar em torno de reivindicações
exigindo das autoridades acesso a moradias coletivas, atendimento médico sem discriminação e
alojamento durante o inverno. E ainda, que a questão do morar na rua não é uma questão de fracasso
pessoal, mas um processo resultante de uma lógica que apesar de ter sua gênese na constituição do
sistema capitalista, apresenta-se de forma muito mais pungente a partir da globalização hegemônica
consolidada na década de 90, com o aumento dramático dos índices de desemprego.
Percebemos, portanto que juntamente com o cenário político dos anos 90, as transformações
recentes ocorridas nas relações de trabalho e nas formas de sociabilidade demonstram uma relação
explícita com o fenômeno da rua e mais implicitamente com a questão da mobilização social. Segundo
Castel (1998: 27 e 33): “há homologia de posição entre, por exemplo, os ‘inúteis do mundo’ e
diferentes categorias de ‘inempregáveis’ de hoje. (...) São supérfluos. Também é difícil ver como
poderiam representar uma força de pressão, um potencial de luta, se não atuam diretamente sobre
nenhum setor nevrálgico da vida social. Assim inauguram sem dúvida uma problemática teórica e uma
prática nova. Se, no sentido próprio do termo não são mais atores porque não fazem nada de
socialmente útil, como poderiam existir socialmente? No sentido, é claro, de que existir socialmente
equivaleria a ter, efetivamente, um lugar na sociedade. Porque, ao mesmo tempo, eles são bem
presentes – e isso é o problema, pois são numerosos demais”.
Curioso, é que Castel (1998) irá apontar de forma diferente, duas décadas depois a mesma
questão apresentada por Stoffels (1977): a população de rua é ainda vista como uma população sem
força de pressão, sem força política e incapaz, portanto de protagonizar a criação de um movimento
social reivindicatório de direitos.
Entretanto, a partir dos anos 2000, percebemos movimentos que questionam, por sua natureza
eminentemente política o que foi produzido até então sobre a impossibilidade de organização dessa

11
Lei de Atenção à População em Situação de Rua, que “cria política de atenção à população de rua”. Essa lei é resultado
de uma intensa disputa entre o Fórum de Entidades e Fórum da População de Rua, ao longo dos anos 90 como parte da
reivindicação por direitos da população de rua. Contudo, alguns autores (BARROS, 2004) levantam questões importantes
sobre essa lei, que na verdade será regulamentada apenas em 2001 pelo decreto 40.232. Essas questões dizem respeito à
não-nomeação da população a quem a lei e o decreto se referem. No texto podemos ler apenas: “população em estado de
abandono e marginalidade na sociedade”. “Tal fato pode parecer não ter grande importância para o desenvolvimento do
programa, mas demonstra a incapacidade de nomear publicamente, através de um instrumento jurídico, quem são os
‘objetos’ de uma lei como esta. O ato de nomeação dos destinatários e sujeitos de direitos desta ‘política’ constitui mais
do que uma descrição, poderia constituir-se numa nova maneira de nomear a pobreza urbana e sua origem na
desigualdade constitutiva do capitalismo”(BARROS, 2004: 50).
12
Esse não é o objetivo principal, do artigo, contudo para se compreender as relações estabelecidas entre entidades, poder
público e população de rua a que se refletir necessariamente sobre questões de dominação, controle social e
disciplinarização, além do espírito tutelar dos trabalhos, que embora digam buscar a autonomia da população,
ambiguamente decidem por eles, retirando a possibilidade emancipatória de tais decisões, perpetuando assim um ciclo de
subordinação e opressão.

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população: os catadores de materiais recicláveis (parte dessa população) sugerem para as entidades que
trabalham com a população adulta em situação de rua e organizam um encontro nacional, no mês de
junho de 2001 13 ; dois acampamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)
iniciam uma experiência conhecida como “rururbano” e promovem o que é conhecido em São Paulo
como o programa: “Da rua para a terra”, onde a população de rua é o foco principal. Também em São
Paulo, a experiência dos Conselhos e dos Fóruns, a eleição de delegados, representantes da população
de rua, para o programa de Orçamento Participativo na capital paulista entre outros dão notícias de uma
organização que se consolida cada vez mais em iniciativas contra-hegemônicas e emancipatórias, numa
luta contra a opressão, o preconceito e a discriminação.
Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que desenvolve seu trabalho por meio de uma
teoria crítica influenciada pelos recentes desdobramentos da teoria dos estudos culturais pós-coloniais,
tal dinâmica emancipatória é possível, pois segundo ele: “diferentes formas de opressão ou de
dominação geram formas de resistência, de mobilização, de subjetividade e de identidade coletivas
também distintas (...) Nessas resistências e em suas articulações locais/globais reside o impulso da
globalização contra-hegemônica”. (SANTOS, 2003: 61).
Duas dessas iniciativas se relacionam diretamente aos objetivos deste artigo. O primeiro é a
criação em setembro de 2003, de um Fórum de Estudantes Universitários sobre a População em
Situação de Rua (que em 2004 iria se tornar: o Fórum de Debates sobre a População em Situação de
Rua da cidade de São Paulo) e o segundo, a retomada e ampliação nos anos 2004 do Fórum da
População de Rua, que mais tarde em 2005 irá originar o Movimento da População em Situação de Rua
da cidade de São Paulo, empreendido pela própria população.
Um fórum de estudos não era uma proposta nova (já havia sido criado em 1993 um fórum
intitulado Fórum de Estudos sobre a População de Rua, contudo esse era um fórum fechado onde só
participavam alguns profissionais). A originalidade desse novo Fórum residiu não nos estudos, mas no
fato de ser um espaço aberto: estudiosos, professores, profissionais e população em situação de rua se
encontram quinzenalmente para discutirem e debaterem questões ligadas às ruas. Temas como
estratégias de lutas, metodologia e formação no MST, conjuntura político-institucional da cidade,
direitos dos cidadãos e o papel dos conselhos são debatidos por técnicos e usuários dos serviços. As
reuniões ocorrem em um espaço cedido e o Fórum apesar de uma iniciativa da sociedade civil, não tem
nenhum vínculo institucional, a não ser, alguns apoiadores que cedem o espaço para a realização das
reuniões como é o caso do Centro de Formação do MST e a rede de comunicação Rede Rua, que cede
um espaço num jornal voltado a essa população para a divulgação das atividades do Fórum.
Esse diferencial que reside justamente no fato de aproximar o lado de lá (a população de rua) do
lado de cá (estudiosos, estudantes, profissionais etc.), tem demonstrado que a formação e acesso ao
conhecimento se configuram ainda como uma dos maiores potenciais revolucionários. As reuniões, de
acordo com a avaliação dos participantes têm fomentado discussões cada vez mais conscientes e menos
ideologizadas, favorecendo a percepção da população de um estar e fazer no mundo. Detentora de um
papel político, passível de mobilização autônoma e participação social.
Dessa forma, percebemos o fórum como um espaço provocador que ampliando o conhecimento
científico, busca torná-lo senso comum (SANTOS, 1987), levando-o até os sujeitos acerca dos quais
esse conhecimento foi feito. Esses sujeitos por sua vez, num espaço de igualdade de posições
questionam a verdade científica, refletem sobre ela e se apropriam dela para mais tarde também
construírem possibilidades dentro da “impossibilidade” que lhes fora outorgada anteriormente.
Estão realizando em seu cotidiano a “experiência de reconhecimento” de que fala Santos (2004),
e procedendo a uma lógica inversa da não-existência e da classificação social, pois se essa reside no

13
Passados 4 anos do 1º encontro nacional ocorrido em Brasília, os catadores organizados já tiveram vitórias significativas
em seu percurso, como o reconhecimento da ocupação de catador e inclusão no C.B.O. (Cadastro Brasileiro de
Ocupações), a organização e realização de dois congressos latino-americanos, entre outros e mais recentemente no governo
Lula, a criação de um comitê interministerial para atenção e qualificação dos catadores filiados ao M.N.C.R. (Movimento
Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis).
É emblemático observar que os catadores relacionam superação de preconceitos e desafios a organização quando se
referem ao 1º encontro nacional dos catadores: “O encontro marcou a superação dos velhos preconceitos em torno do
catador que, além do respeito por parte da sociedade, está conquistando força política e social”. (Catadores de Vida,
publicação do M.N.C.R. e Fórum Nacional de Estudos sobre a População em Situação de Rua – Edição 1/2002)

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fato de se naturalizar hierarquias, numa lógica assentada sobre o fato da naturalização das diferenças, o
Fórum de Debates busca desconstruir essas verdades com a participação efetiva da população na
construção do conhecimento.
Em consonância com a proposta de uma “sociologia das emergências” proposta por Santos que:
“consiste em proceder a uma ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes de modo a
identificar neles as tendências de futuro” (SANTOS, 2004: 796). O conhecimento sobre a população é
legitimado pela própria população e transformado por ela. Profissionais, estudiosos, estudantes e
população de rua, vivenciam assim um ciclo contínuo de formação e reflexão política de suas práticas e
produções científicas, disseminando conhecimento “com” a população de rua, com o objetivo não só de
compreender, mas de criar possibilidades efetivas de saídas das ruas.
A outra iniciativa, contudo, resume em si, o próprio percurso de quem está nas ruas: o Fórum da
População de Rua criado nos anos 90 também sofreu o desmantelamento e os efeitos do desmonte das
políticas sociais pelas políticas neoliberais levadas a cabo nessa década. A fragmentação da sociedade e
a globalização (GOHN, 2005) são importantes sinais do enfraquecimento do Fórum e também da
paulatina não-mobilização da população.
No ano de 2004, meses antes do Dia de Luta da população, alguns ex e atuais participantes do
Fórum, que também freqüentam as reuniões do Fórum de Debates, articularam-se e reivindicaram a
organização autônoma desse dia. As entidades, até então responsáveis pela formatação das
reivindicações mostraram resistência e em 2004, o Dia de Luta demonstrou na quase não participação
da população em situação de rua, que ocorreu uma fissura na relação assistência/população e que a
autonomia e o protagonismo por parte dessa população é uma questão emergencial.
O tom das reivindicações também divergiu: enquanto as entidades lutavam por programas de
moradias provisórias, a população lutou por moradia própria; enquanto as entidades lutavam por mais
vagas em albergues, a população lutou por acesso à educação. E o descompasso segue, agora não só nos
discursos reivindicatórios, mas também cresceu o questionamento e a cobrança por melhores serviços
prestados pelas entidades, transparência na prestação de contas e os mecanismos de governança de que
lançavam mão o poder público, imbuído da lógica do controle social, para manter essa população à
margem.
Ainda em 2004, uma chacina perpetrada contra a população que dormia nas ruas, com grande
repercussão internacional mobilizou mais de 2000 pessoas numa passeata no centro de São Paulo. Os
assassinatos, não só chocaram a sociedade, como também pareceram ter sido um dos pontos cruciais
para a organização posterior da população de rua. O discurso da heterogeneidade da rua, que sempre
esteve entre a questão da igualdade e da diferença: quem é a população de rua? Quem é o
desempregado? É aprofundada e a população busca mudar a natureza de suas reivindicações: políticas
públicas sim, mas qual o teor dessas políticas? Como elas são organizadas? Eles exigem
reconhecimento social e começam a penetrar espaços hegemônicos como o poder público. São eleitos
representantes da população para um conselho, que o governo municipal da cidade de São Paulo dá o
nome de “Conselho de Monitoramento dos Serviços que atuam com a População em Situação de Rua”.
Essas vitórias, e essas possibilidades de perfurar o sistema hegemônico agem, a nosso ver,
positivamente na organização da população que de forma criativa e autônoma, comemorou em
dezembro de 2004, em plena Praça da Sé (conhecida como palco de várias mobilizações populares em
São Paulo) um Natal com shows, música, teatro, venda de artesanatos entre outras atividades. A
tradicional distribuição de alimentos e donativos foram substituídos pelo microfone aberto que delatou
impiedosamente a realidade das ruas, a ineficiência das políticas públicas e as contradições do sistema
econômico.
Inaugurando o ano de 2005, mais uma vez a população se uniu em torno de problemáticas
comuns, a heterogeneidade, que em alguns momentos serviu para reforçar uma identidade negativa, um
não querer identificar-se, é respeitada, mas é questionada: até que ponto somos desiguais? Até que
ponto somos diferentes?
Se, de um lado, a afirmação da igualdade, com pressupostos universalistas pode reforçar e
conduzir “à descaracterização e negação das identidades, das culturas e das experiências históricas
diferenciadas, especialmente à recusa do reconhecimento coletivo”. (SANTOS, 2003: 63). Por outro

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lado, o movimento da população de se pensar por meio de um grupo de pertença (PRADO, 2002),
também corrobora com a idéia que é possível um movimento social surgir da própria população.
Os dois fóruns iniciam, portanto, desde o Natal de 2004, uma forte colaboração entre si, a
população vai aos poucos internalizando e aprofundando no seu Fórum as problemáticas surgidas no
Fórum de Debates, por outro lado, o Fórum de Debates utiliza o saber da população de rua para
direcionar os temas de suas discussões.
Em maio de 2005, um novo momento: a população que já amadurecia a idéia, por meio de
alguns representantes, mobiliza mais de 200 pessoas para uma votação dos delegados do Conselho de
Monitoramento, 3 titulares e 3 suplentes e divulga a criação de um movimento social da população em
situação de rua, que com penetração em instâncias do poder público, Ong’s, cooperativas e
universidades lutará pelos direitos da população.

2. Refletindo sobre o processo de organização política da população em situação de rua

Este artigo propôs compreender as manifestações e formas de organização existentes desde 1980
até os dias de hoje na cidade de São Paulo e verificar como elas se articulam com os dois Fóruns e o
Movimento destacados anteriormente: o Fórum da População de Rua, o Fórum de Debates sobre a
População em Situação de Rua e o Movimento da População e apontar limites e possibilidades de
organização política deste segmento populacional.
Buscou compreender como uma população, considerada historicamente a-política e sem
possibilidades de mobilização autônoma (STOFFELS, 1977; CASTEL, 1998; GOHN, 2003), vem nos
últimos anos se constituindo como um grupo que reivindica direitos, busca inserção em atividades
diversas, participa ativamente de Conselhos e Fóruns e se declara, recentemente em maio de 2005 como
movimento social.
Nesse contexto, gostaríamos de direcionar nossas reflexões por meio de algumas questões: É
possível falarmos em identidade coletiva? Quais são as estratégias de luta? Qual é a natureza das
reivindicações dessa população? A organização dessa população significa um enfrentamento ao estigma
de uma identidade negativa? O que essa organização tem a nos ensinar? Será que o acesso à informação
por meio da internet, dos fóruns de debates, jornais e revistas especializadas funciona como mediadores
na constituição de uma identidade coletiva? Quais são as relações estabelecidas por essa população com
instâncias antagônicas (MOUFFE, 2001) que se configuram numa diversidade de atores e instituições
políticas?
Além disso, é necessário pensarmos aqui que a situação de rua, por sua condição dada como
histórica, foi por muito tempo considerada estrutural, ou seja, aceitando-se algumas explicações
produzidas pelos saberes científicos, começamos a olhar a população em situação de rua como apática e
visceralmente incapaz de lutar por seus direitos.
Aqui novamente somos remetidos à idéia de “lógica da classificação social”: “a não-existência
é produzida sob a forma de inferioridade insuperável porque natural” (SANTOS, 2004: 788). Porque
considera a situação de rua natural, a ciência não busca compreendê-la, aproximando-a, mas sim efetuar
uma análise rigorosa de seus motivos ocultos e a “amargura” que é ser da rua, sem se voltar para
movimentos como esse, que dão conta de possibilidades, até então, inimagináveis de organização,
mobilização e resistência.
Como percebemos, tanto no cenário político como no cenário assistencial, esses valores foram
sendo incutidos à própria população e não nos surpreende o fato de que no decorrer dos anos a
iniciativa de organização de atos públicos e mobilização da população tenha passado pela organização,
não só da Igreja (que ainda hoje reivindica o direito por essa organização) como também das entidades
que trabalham com essa população e inclusive pelo poder público.
Essa mobilização, que é compreendida de forma ampla, como proposto por PRADO (2002),
levando-se em conta o processo de desenvolvimento de condições materiais, psicossociais e políticas,
são capazes de articuladas com outros mecanismos possibilitarem a formação de uma identidade
política. Contudo nessa perspectiva, a identidade política só emerge num cenário antagônico.
Para Chantal Mouffe (2001): o antagonismo é “constitutivo e irreduzível” nas relações sociais,
ou seja, a população de rua, que sempre esteve sobre a égide e a tutela de organizações e do poder

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público, para se constituir como um movimento social na arena política, precisa nomear um antagonista,
instalando assim um conflito, saber quem é diferente do NÓS estabelecido por ELES (PRADO, 2002) e
nesse movimento criar um grupo de pertença. Será isso possível? Como se identificar por meio de uma
identidade já tão estigmatizada (CASTEL, 1998; ROSA, 1999; STOFFELS, 1977; et al)?
Acreditamos que dada à complexidade do tema, a emergência de se estudar e compreender essas
relações apresentam alguns desafios, tanto à academia como a sociedade. De um lado, não temos até
hoje uma sistematização das lutas e conquistas dessa população, o conhecimento criado por meio dessas
organizações encontra-se fragmentado e por outro lado, compreendermos essa possibilidade de
organização autônoma nos traz pistas sobre como superar “impossibilidades” naturalizadas, não só para
a população de rua, mas para outros grupos vulneráveis socialmente.
Essa necessidade de compreensão de práticas plurais de organização política aliada ao
conhecimento acadêmico, motiva não só por seu caráter inédito14 , mas também por seu caráter
emblemático das relações sociais e culturais estabelecidas em nosso tempo.
Aliado a isso, o a ampliação das formas de “conhecimento formal” e acesso à informação parece
ter um lugar privilegiado na articulação e criação do movimento social da população de rua, sendo que
sua disseminação possibilita que esses atores tenham acesso a informações globais, visitem chats de
bate-papo em tempo real e se organizem em redes que ultrapassam os limites de cidade, estado e país o
que era totalmente impossível há alguns anos.

3. Para aprofundar o debate: entre a organização política e a emancipação

Na perspectiva da Psicologia social sociológica, que busca não sendo essencialista compreender
o homem inserido no mundo em que vive e como atua nas relações que estabelece, o pluralismo teórico
e o intercâmbio são agentes fomentadores de debates mais consistentes e amplos. Nesse sentido,
concordo com Santos (1987), quando ele afirma que: “a ciência do paradigma emergente (...), sendo,
analógica, é também assumidamente tradutora, ou seja, incentiva os conceitos e as teorias
desenvolvidos localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a poderem ser
utilizados fora do seu contexto de origem” (SANTOS, 1987:77). Desse modo, a quebra da idéia de
disciplina estanque e formação diversa favorece o conhecer científico e a troca de saberes.
Nesse sentido, o envolvimento que tenho com o tema proposto, desde 2000, as observações e
inserções no campo, demonstram que conhecimento e produto do conhecimento são inseparáveis, assim
o respeito aos sujeitos corrobora com a idéia de que o conhecimento militante e ativo só tem a
contribuir com a universidade e possibilitar a construção de novos saberes por meio da práxis. Essa
“crença”, está embasada num dos postulados da sociologia da ausência e das emergências, propostas
por Boaventura de Sousa Santos, em que o autor afirma que “todo conhecimento é autoconhecimento”
(Santos, 1987).
Contudo, fomentar discussões a respeito do papel da ciência no mundo moderno, seus impactos
e a serviço de quem ela está é um dos eixos centrais que buscamos abordar no decorrer de nosso artigo.
Além disso, se a governança das sociedades no capitalismo tardio e as relações entre ciência e
sociedade alterou o padrão e o modo de pensar a gestão dos bens públicos, criando novos mecanismos
de participação como os conselhos, esses por sua vez, têm por meio da experiência de participação,
desempenhado um papel educativo. Papel esse que também pode ser questionado, uma vez que a
governança local é responsável pelo engajamento popular como recurso produtivo central, a
participação dos cidadãos nas informações e diagnóstico de problemas sociais é fundamental.
Aprofundar essas questões articulando-as com a mobilização recente de uma população
considerada até então lúmpen (STOFFELS, 1977), parece apontar para pontos importantes na
perspectiva da governança, do conhecimento e inovação.

14
A bibliografia disponível sobre população em situação de rua, não só no Brasil, como no mundo é bastante ampla e
diversificada, contudo como apontam os próprios estudiosos, a população em situação de rua, sempre foi encarada por
meio de estudos individuais, de enfrentamento de questões pessoais e pouco se tem falado sobre a questão de políticas
públicas (BARROS, 2004; ANDERSON & SNOW, 1998 e ARAPOGLOU, 2004), e até onde conhecemos pouco se
estudou sobre as formas de organização dessa população.

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A participação da população em Conselhos, Orçamento Participativo e outras formas de


governança são importantes para se compreender se esse tipo de atividade abarca uma possibilidade
emancipatória ou se configura apenas um modo diverso de controle social. O caráter público desses
novos experimentos políticos tanto pode resultar em cidadãos críticos, mais politizados como em
cidadãos tarefeiros. (GOHN, 2003)
Daí a importância da criação de instrumentos interdisciplinares que possibilitem uma crítica
consistente, trabalhando em prol de uma ciência que busca traduzir suas experiências e conferir sentido
à transformação social.

4. Bibliografia

ANDERSON, Leon & SNOW, David. Down on their Luck – A Study of Homeless Street People. California, University of
California Press, 1992.
ARAPOGLOU, Vassilis. The governance of homelessness in Greece : discourse and power in the study of philantropic
networks. Athens, Urban studies forthcoming, 2004.
BARROS, Joana da Silva. Moradores de rua – Pobreza e Trabalho: interrogações sobre a exceção e a experiência
política brasileira. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade São Paulo, 2004.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998.
DI FLORA, Marilene Cabello. Mendigos: por que surgem, por onde circulam, como são tratados. Petrópolis: Vozes, 1987.
DOMINGUES JR., Paulo Lourenço. Cooperativa e construção da cidadania da população de rua. São Paulo: Edições
Loyola/Editora Universitária Leopoldianum, 2003.
GOHN, Maria da Glória. O protagonismo da sociedade civil: Movimentos sociais, ONG’s e Redes Solidárias. São Paulo,
Cortez, 2005.
_____. Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica. São Paulo, Cortez, 2003.
_____. Os sem-terra, ONG’s e cidadania. São Paulo, Cortez, 1997.
HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Metodologias Qualitativas na Sociologia. Petrópolis: Vozes, 1987.
MOUFFE, Chantal. Identidade Democrática e Política Pluralista. In: MENDES, Candido (Coord.) Pluralismo Cultura,
Identidade e Globalização. Rio de Janeiro, Record, p. 410-430, 2001.
NASSER, Ana Cristina Arantes. Sair para o mundo – Trabalho, família e lazer: relação e representação na vida dos
excluídos. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2001.
PRADO, Marco Aurélio Máximo Prado. Da mobilidade social à constituição da identidade política: reflexões em torno
dos aspectos psicossociais das ações coletivas. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v.8, n.11, p.59-71, 2002.
ROSA, Cleisa Moreno Maffei. (Org). População de Rua – Brasil e Canadá. São Paulo: Hucitec, 1995.
_____. Vidas de Rua, Destino de Muitos. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Pós-
Graduados em Serviço Social – Puc-SP. São Paulo: 1999.
SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo - 1970 –
1980. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: Um discurso sobre as ciências
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________. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
2003.
________. Um discurso sobre as ciências. Lisboa, Edições Afrontamento, 1987.
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STOFFELS, Marie-Ghislaine. Os Mendigos na Cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
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de Rua: Quem é, Como Vive, Como é Vista. São Paulo: Hucitec, 3a. edição, 2004.

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