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A saúde e a doença na perspectiva histórica e filosófica de Georges Canguilhem.

Discente: Marcos Bruno Silva

Orientador: Fábio Ferreira de Almeida

À primeira vista, falar de saúde e doença num campo das ciências humanas,
a história, pode soar estranho aos ouvidos da maioria das pessoas. Elas estão
acostumadas a ouvir falar desses fenômenos em ambientes específicos, como hospitais,
postos de saúde, etc, e em situações limites, quando o organismo ou o corpo apresentam
sinais que levam a preocupação, dizendo de outro modo, quando a doença começa a se
instalar e causar problemas à vida do vivente humano. Assim, falar de doença e saúde é
falar de temas caros á existência humana, que tematizam no fundo, questões sobre a
vida e morte presentes em uma história e numa cultura.

Sabe-se, antes de tudo, que a vida humana se desenvolve não em um


território absolutamente natural, mas sim em uma determinada sociedade com uma
cultura específica. De acordo com Canguilhem, “a despeito da utilização, pela geografia
e pela ecologia, do termo habitat, o homem habita uma cultura, não um planeta”
(Canguilhem, 2012, p.11). Deste modo, é antes em torno de sentidos que de uma
natureza que gravitam as questões humanas. Vida e morte, saúde e doença, são
fenômenos naturais marcados cabalmente de simbolismo e racionalidade. Podem-se
levantar questões sobre o alcance das especulações e reflexões filosóficas acerca de
temas que na atualidade parecem pertencer irredutivelmente ao domínio das ciências
empíricas; mas a presença da razão para o bem viver sempre esteve presente na história
da filosofia.

Considerando a presença de uma racionalidade para se alcançar uma boa


vida, a filosofia em seu desenvolvimento histórico também fora e é considerada em um
de seus traços, como sabedoria. Ora, e o que vem a ser a sabedoria, se não a ajuda da
reflexão racional, do conhecimento verdadeiro, para um viver seguro, reto, qualificado?
Sobre isso, Canguilhem problematiza jocosamente as relações entre conhecimento e
vida: “para dizer tudo, não se vive de saber. Vulgaridade? Talvez. Blasfêmia? Mas em
quê? Pelo fato de alguns homens se terem votado a viver para o saber, devemos crer que
o homem só vive verdadeiramente na ciência e por ela?” (Canguilhem, 2012, p.1).
Além de estar presente na sabedoria, a racionalidade também aparece nas
ciências. A racionalidade, pelo menos para a História das ciências, é o marca a
constituição dos discursos científicos historicamente. Para Machado, “a ciência é
essencialmente discurso, um conjunto de proposições articuladas sistematicamente.
Mas, além disso, é um tipo específico de discurso: um discurso que tem pretensão de
verdade” (Machado, 2006, p.18).

Considerando, então, que a saúde e a doença são discursos historicamente


produzidos acerca de condições orgânicas consideradas desejadas ou indesejadas aos
indivíduos por suas sociedades é que se torna possível a reflexão por meio da história
das ciências de Canguilhem sobre esses discursos produzidos pelas ciências da vida.
Estando eles submetidos à história e também a vida concreta das pessoas, lembremos a
reflexão de Foucault acerca da relação entre razão e existência: “a questão do
fundamento da racionalidade” não pode ser “dissociada da interrogação sobre as
condições atuais de sua existência” (Foucault, 1985, p. 371).

Segundo essa perspectiva de situar os discursos sobre a saúde e doença na


história, tentaremos apresentar brevemente as reflexões sobre esses conceitos analisados
por Georges Canguilhem, considerando suas ideias acerca do normal e do patológico,
presentes em sua obra O normal e o Patológico. Nesta obra Canguilhem, adentra ao
problema geral do normal e do patológico, delimitando-o a problemas de nosologia
somática, ou de fisiologia patológica. Buscando a confirmação de resultados ou de
elucidação de alguma descoberta durante a investigação desse problema, ele buscou na
psicopatologia e na teratologia um ou outro dado, noção ou solução para tentar
responder as seguintes questões: “o conceito de patológico é idêntico ao de normal? Ele
é o contrário ou o contraditório de normal? E normal é idêntico a são? Anomalia é a
mesma coisa que anormalidade?” (Canguilhem, 1966, p. 169).

Além dos objetivos almejados acima, Canguilhem buscou relacioná-los à


um exame crítico de uma ideia, bastante difundida no século XIX, no seu tempo e, até
os dias de hoje sobre esse problema. A ideia em questão diz o seguinte: “os fenômenos
patológicos são idênticos aos fenômenos normais correspondentes, salvo pelas variações
quantitativas” (Canguilhem, 1966, p. 8). A reflexão sobre essa tese possibilitaria a
elucidação sobre o problema geral do normal e do patológico como delimitado pelo
filósofo, assim como algumas possíveis respostas visando o esclarecimento das questões
levantadas por ele envolvendo essa relação.

O normal e o patológico são duas faces distintas de uma mesma moeda.


Apesar das diferenças entre esses conceitos, algo os unifica: a normatividade da vida. A
vida é o que faz com que o considerado normal e patológico tenham sentido. O normal e
o patológico se identificam com a vida por meio da vivência do organismo com o meio,
assim como do conhecimento produzido para a promoção da saúde pelas ciências da
vida. De acordo com Canguilhem, “a atribuição de um valor de “normal” às constantes
cujo conteúdo é determinado cientificamente pela fisiologia reflete a relação da ciência
da vida com a atividade normativa da vida” (Canguilhem, 1966, p.166).

A fisiologia busca acompanhar a vida em sua relação com o organismo


quanto com o meio a qual está inserido. Ela a preserva em sua originalidade, tanto em
seu poder de instauração de normas, capaz de modificar e variar conforme as
instabilidades do meio que a provoca, quanto de não se deixar reduzir a nenhuma outra
explicação, seja matemática, física ou química, preservando sua singularidade frente aos
outros fenômenos presentes no ambiente. No que tange ao vivente humano, os valores
normais são estabelecidos por uma “ciência da vida humana, com as técnicas biológicas
de produção e de instauração do normal, mais especificamente com a medicina”
(Canguilhem, 1966, p.166).

Assim, as ciências da vida possuem em sua constituição a mesma


capacidade que a própria vida, pois longe de serem extremamente rigorosas e exatas
como as ciências físico-matemáticas, a fisiologia e a medicina são capazes de uma
maior flexibilidade, pois ao considerarem a variação, a imprevisibilidade e a
irredutibilidade da vida constituem seus conhecimentos de acordo com a relação do
vivente com sua própria vida e com a sua interação com o meio em que está inserido,
seja ele natural ou social. As ciências da vida tentam animar seus conceitos
reproduzindo o pensamento do vivente em sua vida e não relações abstratas e numéricas
determinadas por relações entre abcissas e coordenadas em gráficos.

O normal e o patológico não são fenômenos idênticos; em comum possuem


a relação com a normatividade vital, que é a capacidade de produzir valores frente ao
próprio organismo e em relação ao meio. Resumindo, tanto o primeiro quanto o
segundo dependem da capacidade de produzir alguma norma e manter o organismo
mais ou menos estável para dar conta dos desafios, impostos tanto pelo meio interno
quanto pelo externo. Segundo Canguilhem, “o conceito de norma é um conceito
original que não pode ser reduzido – e menos ainda em fisiologia – a um conceito
objetivamente determinável por métodos científicos” (Canguilhem, 1966, p. 166).

Então, a produção de normas tem a ver mais com liberdade, invenção e


criação de um ser vivo, do que uma construção instrumental de algo determinado, como
um resultado de uma equação matemática. Para Canguilhem, a normatividade vital, isto
é, a capacidade de o vivente instaurar normas decorre fundamentalmente de uma
“atividade que tem raízes no esforço espontâneo do ser vivo para dominar o meio e
organizá-lo segundo seus valores de ser vivo” (Canguilhem, 1966, p. 166). É tentando
acompanhar esse esforço do vivo, que o vivente humano busca compreender suas
relações com o meio social e natural para criar conhecimentos e assim garantirem sua
saúde, aumentando sua longevidade, e afastando de si o quanto puder a doença.

Depois de levar em consideração as relações entre o normal e o patológico


com os conceitos de norma, assim como do processo de normalização que se
desenvolve a partir deles é possível falar de saúde e doença. O processo vital de
normalização é resultante da relação entre o organismo e o meio que possibilita o
vivente a buscar as condições favoráveis, para a sua permanência, desenvolvimento e
realização enquanto ser vivo. Talvez essa perspectiva de Canguilhem faça eco a uma
sentença proferida por Nietzsche: “a vida mesma nos coage a estabelecer valores, a vida
mesma valora através de nós quando estabelecemos valores” (Nietzsche, p. 34, 2014).

Canguilhem, embora utilize mais o termo norma para se referir à autonomia


do organismo na produção de seu viver, reconhece o valor inerente à própria vida.
Conforme salienta Portocarrero, a consideração singular do filósofo pela vida se deve a
seu controle inexorável sobre o organismo, por meio dos valores vitais, como a
preservação, regulação, adaptação e normalidade (Portocarrero, p. 132, 2012). A vida,
portanto, se afirma como valor fundamental sobre o vivente, quando o obriga a criar as
condições (normas) para a sua preservação e sobre o meio quando o adequa aos valores
do vivente em questão.

Mas, não é uma tarefa fácil para o vivente, apesar de possuir a capacidade
de criar normas, estabelecer uma relação menos danosa com o seu meio vital
adequando-o aos seus valores. Segundo Portocarrero, a dificuldade resulta da tensa
relação entre vivente e meio: o organismo institui normas escapando de uma
estabilidade plena, pois a capacidade de inventar é um de seus atributos; por outro lado,
a vida é variação de formas e está imbricada com as exigências do meio (Portocarrero,
p. 134, 2012). Desse modo, para obter êxito nessa empreitada o vivente tem à sua
disposição uma capacidade singular de inventar maneiras de lidar com as novidades
oriundas do meio; assim, a instituição de normas pelo vivente vai ao encontro da
necessidade de atenuar o impacto do meio sobre seu organismo, buscando de forma
perene, o equilíbrio com ele.

De acordo com Portocarrero, “o organismo é um ser vivo que não tem uma
harmonia preestabelecida com o meio. A normatividade – a instituição de novas normas
– é própria do ser vivo, é constitutiva da vida” (Portocarrero, p. 130, 2012). A vida,
portanto, seria então a provocação do vivente, por meio de desafios e situações limites,
para que este manifeste a sua possibilidade de criação e invenção de um viver adequado.
Este parece ocorrer por meio da harmonização das necessidades e demandas do vivente
com a imprevisibilidade do meio em que está inserido. Assim, a harmonia entre
demandas do organismo e os desafios impostos pelo meio é o objetivo do vivente para
levar uma vida saudável.

A saúde, então, pode ser pensada como a ação do organismo de lidar com as
mudanças e incertezas que o meio lhe coloca se valendo de sua capacidade de instaurar
normas e não sendo gravemente afetado pelos desafios impostos pela vida. Isso é
possível quando o corpo do vivente se encontra em perfeitas condições orgânicas, pois
de acordo com Canguilhem “o estado fisiológico identifica-se com o estado são”, pois é
este estado que “pode admitir uma mudança para novas normas”; neste sentido, “o
homem é são, na medida em que é normativo em relação às flutuações de seu meio”
(Canguilhem, 1966, p.165-166).

A saúde é considerada a resultante de uma normatividade biológica que


permite o organismo se relacionar com o meio, instaurando valores para si mesmo,
assim como adequando o meio às suas necessidades. De acordo com Portocarrero “o
que caracteriza a saúde”, para Canguilhem, “é a possibilidade de transcender a norma
que define a normalidade momentânea; é a possibilidade de tolerar as infrações da
norma habitual e instituir novas normas em situações novas” (Portocarrero, p. 131,
2012). A saúde, portanto, seria a capacidade de um organismo com condições
biológicas favoráveis acompanhar as flutuações do meio, resistindo a elas, seja pela
invenção de valores para sua satisfação, seja para transformar o meio de acordo como
suas demandas.

A doença, por sua vez, está associada à limitação do organismo do vivente


de produzir normas com vistas a atenuar o impacto do meio sobre si, uma vez que essa
instauração encontra-se estreitada pelo novo modo de vida imposta pela doença.
Segundo Canguilhem, “o estado patológico expressa a redução das normas de vida
toleradas pelo ser vivo, a precariedade do normal estabelecido pela doença. As
constantes patológicas têm valor repulsivo e estritamente conservador” (Canguilhem,
1966, p. 166). Assim, o organismo acometido por uma doença está afetado por um
“valor vital negativo, quando seus efeitos são apreciados em relação a um meio definido
no qual alguns deveres do vivente se tornam inelutáveis” (Canguilhem, 1966, p. 178).

Comparando-se um organismo saudável, pleno, vivendo em seu meio com


sua capacidade de instaurar normas intactas e de gozar ao máximo todas as
possibilidades que o ambiente pode lhe proporcionar, e depois voltando a esse mesmo
organismo devido a um grave acontecimento, ou em seu próprio organismo, ou em sua
relação com o meio, colocando em risco a sua própria existência, tenho se tornado
estranho e nocivo o que antes lhe era familiar e aprazível estamos em uma situação onde
há o prevalecimento de uma morbidade, de uma doença. A doença não é apenas algo
relacionado ao organismo, mas sim uma mudança drástica neste enquanto uma entidade
existencial.

“Quando um indivíduo começa a se sentir doente, a se dizer doente, a se


comportar como doente”, afirma Canguilhem, “ele passou para um outro universo,
tornou-se um outro homem” (Canguilhem, 1966, p.181). Há a perda da capacidade de
resistir do vivente quando se encontra doente frente aos desafios da vida, deixando-o a
mercê de menos possibilidades como quando possuía saúde. É claro que o meio humano
sempre abriga as doenças e “compensa, por meio de seus artifícios, o déficit manifesto
que elas representam em relação às formas “normais” correspondentes”, contudo, o que
a doença quer dizer cruamente não é a impossibilidade absoluta de usufruir e gozar uma
vida boa em seu meio, mas sim que ela representa uma normatividade inferior em
relação à vida.
De acordo com Canguilhem, “a doença, o estado patológico não são perda
de uma norma, mas comportamento da vida regulado por normas vitalmente inferiores
ou depreciadas, pelo fato de proibirem o vivente a participação ativa e fácil, geradora de
confiança e de garantia, em um gênero de vida que anteriormente era o seu e que
permanece permitido a outros” (Canguilhem, 1966, p. 182). Assim, a doença é o estado
de um organismo impedido de fruir plenamente a vida devido ao predomínio de normas
inferiores, comparadas a outros organismos regulados por normas superiores quando em
suas relações com o meio.

Canguilhem se referindo a Goldstein, afirma que:

as normas de vida patológica são aquelas que, doravante, obrigam o


organismo a viver num meio “estreitado”, diferindo qualitativamente, em sua
estrutura, do meio anterior de vida, e, nesse meio estreitado exclusivamente,
devido à impossibilidade em que o organismo se encontra de enfrentar as
exigências dos novos meios, sob a forma de reações ou empreitadas ditadas
pelas situações novas (Canguilhem, 1966, p. 183).

Doença, então, na perspectiva de Canguilhem não é uma alteração


quantitativa, mas sim qualitativa: o organismo tem sua existência alterada radicalmente
sob a regulação de normas vitais inferiores que diminui as possibilidades limitando seus
horizontes. É obrigado a viver de forma restrita devido a um estreitamento de sua
capacidade de instaurar normas e viver de forma menos drástica com as flutuações do
meio.

A comunicação objetivou apresentar a perspectiva de Canguilhem sobre a


saúde e a doença em suas relações com a questão do normal e do patológico. O normal e
o patológico possuem relação com uma normatividade vital. O organismo produz
normas de acordo com as exigências da vida: quando se encontram normalizados
conseguem lidar com as variações do meio interno e externo e obtém destes a satisfação
necessária de suas demandas para seguir em frente, não sucumbindo aos desafios, pode-
se dizer que a saúde se assemelha a essa capacidade normativa de resistir as intempéries
do meio.

Se, ao contrário, encontram-se afastados da possibilidade de produzir


normas e fazer com que o meio não lhe ofereça riscos, o organismo estará correndo
riscos devido a sua dificuldade de lidar com a hostilidade advinda do meio, pode-se
dizer que esse vivente encontra-se adoecido, pois devido à depreciação vital ocasionada
pela doença, o transforma, retirando dele o poder de lidar com várias normas, advindas
tanto do meio orgânico quando do meio externo. Desse modo, a doença retira o vivente
de uma existência e o coloca em outra, só que ao invés de marcada por potência e
possibilidades é regulada por redução e ameaças.

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