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1. Identificação do Projeto
Orientador
Pedro Rodolfo Fernandes da Silva
Aluno
Frank Wyllys Cabral Lira
SIM X NÃO
SIM X NÃO
X SIM NÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE PESQUISA
PROGRAMA INSTITUCIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
RELATÓRIO PARCIAL
PIB-H/0098/2018
MANAUS
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE PESQUISA
PROGRAMA INSTITUCIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
RELATÓRIO PARCIAL
PIB-H/0098/2018
MANAUS
2019
RESUMO DO RELATÓRIO
6
SUMÁRIO
SUMÁRIO .................................................................................................................................. 7
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9
1. Noções básicas...................................................................................................................... 11
DESENVOLVIMENTO ........................................................................................................... 17
2.5. A filosofia pode vir a ser feita por todo ser humano ..................................................... 19
7
6. Sobre uma definição de filosofia .......................................................................................... 43
CONCLUSÕES ........................................................................................................................ 47
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 48
8
INTRODUÇÃO
9
vir a ser feita por todo ser humano, (6) serve para muitas coisas, (7) trabalha sob um alto nível
de justificação e (8) é desenvolvida principalmente via texto. Terminada a caracterização da
filosofia, parte-se para a busca de uma definição de elemento essencial do filosofar. Obtida esta
definição, apresenta-se e defende quais seriam os elementos essenciais – são quatro: problema
filosófico, argumento, alegação e conceito. Por fim, define-se o filosofar a partir de um esboço
de método filosófico obtido dos elementos essenciais propostos e defendidos, assim como
arrisca-se definir a filosofia.
10
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1. Noções básicas
1.1. Caracterização
O primeiro desses conceitos é o de caracterização: é a apresentação de algumas
propriedades informativas importantes de algo - geralmente essas propriedades informativas de
algo são conhecidas por todas as pessoas ou, em caso de algo em particular, as que mais
desvelariam informações sobre o mesmo. Usamos a caracterização quando (1) não somos
competentes para definir algo - explícita ou implicitamente -, quando (2) queremos
complementar uma definição e quando (3) a caracterização é melhor que a definição caso nosso
objetivo seja informar sobre algo da melhor maneira possível. No fim, a caracterização serve
em ambos os casos para nos auxiliar numa maior compreensão de algo. Um exemplo? Imagine
que você está numa situação onde você foi questionado por uma criança de 3 anos sobre o que
é água. Sua tarefa, nessa situação, é responder com sucesso a questão de modo que a criança
entenda. Você poderia falar da água dando a sua definição explícita, isto é, água é H 2O. No
entanto, a explicitude da definição de água praticamente não informa nada da mesma,
requerendo, para a sua precisa compreensão, um conhecimento básico de química - algo que é
bem possível essa criança não ter. Uma maneira de contornar esse problema estaria na
apresentação de uma ou mais definições implícitas de água: é aquela coisa que está no copo ou
aquilo que sai da mangueira que usamos para regar as plantas ou lavar a calçada da frente da
nossa casa. Contudo, a implicitude da definição de água, mesmo já apresentando vantagens com
relação a definição explícita, ainda não é efetivamente informativa se levarmos em conta que
estamos a responder uma criança. Por fim, quando nos propomos a caracterizar a água,
conseguimos ser bastante informativos sobre a mesma - basta ler a caracterização de água feita
no livro A Arte de Pensar para perceber isso: “[...] a água é um líquido incolor, que serve para
11
matar a sede, enche os lagos, os rios e os oceanos, e é o que cai do céu quando chove. Podemos
ainda dizer-lhe que a água é indispensável à vida das plantas e dos animais”1.
Dado esta análise dos três modos possíveis de responder à pergunta sobre o que é água
para a criança de 3 anos, julgo que a sua caracterização seja o melhor modo de responder à
pergunta da mesma.
1.2. Explicação
O segundo desses conceitos é o de explicação2. Uma explicação é uma clarificação de
alguma coisa visando a sua plena compreensão. De modo mais formal, dado uma proposição p
qualquer e uma pessoa Y pedir a X uma explicação sobre p, uma explicação é X clarificar p
para Y e Y compreender p - clarificação e compreensão são duas condições necessárias que,
em conjunto, são condição suficiente para a definição de explicação. Tal clarificação é feita (1)
em termos mais simples ou familiares ou (2) com base em outras proposições mais simples ou
familiares. A compreensão de Y sobre p ocorre quando Y toma por verdadeiro a explicação
dada por X. Com relação à compreensão, pode ser que esta não seja vista imediatamente como
condição necessária para a explicação da mesma forma que a clarificação. Suspeito que isto
advenha da visão de que apenas o critério da clarificação seria suficiente para a definição de
explicação. Todavia, não é escandaloso afirmar que quando alguém pede uma explicação sobre
algo, aquele que aguarda receber a explicação espera, através da explicação, compreender o que
não compreende. Logo, por existir de forma implícita na explicação o objetivo de fazer alguém
compreender algo que antes não compreendia, a compreensão surge como algo necessário para
se obter sucesso numa explicação. Por conseguinte, quando se está a dizer que alguém tentou
explicar algo a outro alguém, se quer dizer que este clarificou sobre algo, mas, ainda sim, não
conseguiu fazer com que o outro alguém tenha compreendido o que se clarificou. Tal falha na
compreensão pode ocorrer tanto pela má clarificação do que se deseja explicar quanto pela falta
de competência da pessoa que pediu/espera a explicação para entender a mesma.
1
ALMEIDA, 2007, p. 22.
2
Tomarei aqui por base o texto Argumentos e explicações do Douglas Walton (2018).
12
Condicionais são absurdamente comuns e as pessoas, no geral, as articulam relativamente bem
- seja afirmando sobre o passado, o presente ou o futuro. Um exemplo seria uma pessoa dizer
algo do tipo “se Deus existe, então a vida tem sentido”. Além disso, uma condicional é
composta de um antecedente - P - e um consequente - Q. Vale destacar a importância das
condicionais na filosofia:
As condicionais tipicamente usadas em filosofia exprimem conexões conceptuais.
Uma condicional como ‘Se Kant vivia numa ilha, era um ilhéu’ é intuitivamente
verdadeira, porque há uma conexão conceptual entre viver numa ilha e ser ilhéu que
garante a verdade da seguinte condicional: ‘Se alguém vive numa ilha, é um ilhéu’.
Assim, para negar uma condicional filosófica como ‘Se Deus existe, a vida faz
sentido’, não é necessário provar que é verdadeiro que Deus existe e falso que a vida
faz sentido; basta mostrar que não há conexão conceptual entre a antecedente e a
consequente da condicional — isto é, que seria conceptualmente possível existir Deus
apesar de a vida não ter sentido.3
Considerando que existe uma boa quantidade de tipos de condicionais, deve aqui ser
levado em conta apenas as condicionais assertivas, aquelas onde se pode verificar se são
verdadeiras ou falsas4. Explicado o que é uma condicional, volto a questão das condições
necessárias e/ou suficientes.
Uma condição necessária - que é a consequente de uma condicional - é aquela onde,
numa afirmação do tipo “se P, então Q”, Q é uma condição necessária de P. Definindo-a de
maneira expressa, se obtém o seguinte:
3
CONDICIONAL, 2018.
4
Para um entendimento um pouco mais aprofundado sobre isso, recomendo a leitura do texto O que é uma
condição necessária? (MURCHO, 2018)
13
Uma condição suficiente - que é a antecedente de uma condicional - é aquela onde,
numa afirmação do tipo “se P, então Q”, P é uma condição suficiente de Q. Definindo-a de
maneira expressa, se obtém o seguinte:
Ainda considerando o exemplo (a), estar em Manaus é suficiente para se estar no Brasil,
mas não é necessário, pois é possível estar no Brasil sem estar em Manaus - poderia ser
Fortaleza, por exemplo. Por fim, novamente, a figura abaixo ilustra o que se explicou sobre a
referida condição.
Uma condição necessária e suficiente é aquela onde, numa afirmação do tipo “se P,
então Q”, Q é uma condição necessária de P e P é uma condição suficiente de Q - tal condição
é conhecida por bicondicional. Definindo-a de maneira expressa, se obtém o seguinte:
14
P se, e só se, Q.
1.4. Definição
O terceiro desses conceitos é o de definição. Definição é uma explicação ou
especificação do sentido de um termo, dizendo o que este é. A definição, na maioria dos casos,
é uma resposta informativa para uma pergunta feita na forma “O que é x?”. Quando alguém
pergunta “O que é a verdade?”, posso responder que “A verdade é uma propriedade que uma
sentença recebe quando esta corresponde ao fato” – posso, para clarificar essa definição,
apresentar o seguinte exemplo de verdade: “água é H2O” é uma sentença verdadeira devido a
água ser apenas composta por H2O. Para ser ainda mais preciso, uma definição é composta por
definiendum e definiens: o definiendum é aquilo que se quer definir; o definiens é o significado
do definiendum. A moeda, por exemplo, enquanto definiendum, tem por definiens "peça de
metal geralmente circular e cunhada por instituição governamental para ser usada como meio
de pagamento".
definiendum Conhecimento
15
A definição é dividida principalmente em dois tipos: explícita e implícita. A explícita
concerne a uma definição de algo por meio de condições necessárias e suficientes - melhor
dizendo: esta teria a forma “definiendum é definiens”. Quando digo “água é H2O”, estou a
definir água de maneira explícita. A implícita concerne a uma definição de algo que não recorre
a condições necessárias e suficientes. Quando digo, de maneira ostensiva, que a água “é aquela
coisa que está no copo ou aquilo que sai da mangueira que usamos para regar as plantas ou
lavar a calçada da frente da nossa casa”, estou a definir água de maneira implícita. Com relação
a definição implícita, salienta-se o seguinte:
A incapacidade para definir explicitamente algo não significa que não se sabe do que
se está a falar, pois a maior parte das pessoas não sabe definir explicitamente as cores,
mas não se pode dizer que não conhecem as cores. 5
5
MURCHO, 2006, p. 231.
6
Idem, ibidem.
16
DESENVOLVIMENTO
2. Caracterização da Filosofia
Ter uma visão clara da filosofia é preciso para melhor abordarmos os elementos que
poderiam ser ditos como essenciais para o filosofar. Logo, ter uma definição de filosofia e
clarifica-la seria a melhor opção. Todavia, após certa reflexão, apresentar uma definição de
filosofia mostra-se um trabalho hercúleo. Uma definição de filosofia precisaria dizer o conteúdo
que esta disciplina estuda – ou seja: precisa abarcar os mais de 2 mil anos de produção filosófica
- e a forma como se estuda essa disciplina – ou seja: apresentar um método que permita o estudo
de qualquer conteúdo dessa disciplina. Considerando essa dificuldade, será aplicado a seguir
uma outra abordagem: a de caracterizar a filosofia. Com isso, ainda é possível ter uma visão
clara e ampla de filosofia sem recorrer necessariamente a sua definição.
17
ideias, declarando-as verdadeiras ou falsas sem boas razões para isso”7; ser preconceituoso é
ter ideias que julgamos ser verdadeiras sem existir razões para isso.
7
ALMEIDA, 2007, p. 23.
8
Idem, p. 25
18
alegações como as respostas definitivas para os problemas filosóficos que buscam responder.
Tal fenômeno ocorre devido a filosofia não ter um procedimento geral de decisão que permita
fixar as alegações produzidas pelos filósofos como as respostas definitivas para os problemas
filosóficos. No fim, é a ausência de um procedimento geral de decisão que gera a falta de acordo
- falta essa quase que onipresente na filosofia.
2.5. A filosofia pode vir a ser feita por todo ser humano
Quando se diz que a filosofia pode vir a ser feita por todo ser humano, se está a dizer
que todos os seres humanos tem o potencial de ser filósofos. Dizendo de forma mais clara: todo
ser humano é filósofo. Será? Antonio Gramsci, precisamente no início de Concepção Dialética
de História, nos diz o seguinte:
Deve-se destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia seja algo muito
difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de
cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. Deve-se,
portanto, demonstrar, preliminarmente, que todos os homens são 'filósofos', definindo
os limites e as características desta 'filosofia espontânea' peculiar a 'todo o mundo',
isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, de que é um conjunto de
noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras
gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom-senso; 3) na
religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições,
opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que se conhece
geralmente por 'folclore'. 9
Gramsci parece defender que a filosofia está principalmente presente nos conceitos que
usamos em nossa linguagem, no senso comum e em outras coisas que identifica como
“folclore”. Enfim: a filosofia não seria apenas aquela intensa e difícil atividade intelectual e
todo o seu conjunto de textos produzidos principalmente por filósofos, mas também muito
daquilo que está presente no nosso dia a dia. Isto é: “todos os homens são ‘filósofos’” devido a
filosofia ser algo muitíssimo comum a todos nós - na qual ele a chama de “filosofia espontânea”.
Mas a conclusão desse raciocínio é pedida por ele para ser demonstrada, ou seja, o que ele
escreveu é apenas uma suposição - feita de forma muito confiante, até. Sendo essa uma
suposição, ele aponta onde é possível encontrá-la, mas não nos explica porque ele acha que essa
“filosofia espontânea” está lá.
Seguindo essa dica do Gramsci, esboço a seguir uma possível explicação que vise
demonstrar aquilo que ele supõe, podendo com isso verificar se é possível sustentar a tese de
que todo ser humano é filósofo. No texto O nascimento da filosofia de William Jordan, este
defende que
9
GRAMSCI, 1978, p. 11.
19
[…] fazer perguntas filosóficas faz parte da condição humana e que o questionamento
filosófico emerge naturalmente no contexto da vida quotidiana. Porém, o que é
próprio de um filósofo não é, ou não é apenas, as perguntas que faz, mas antes a
natureza da sua resposta a essas perguntas.10
A pergunta filosófica seria natural no ser humano desde criança - isto é defendido por
Matthews -, também aparecendo na adolescência - isto é defendido por Nagel. Mas o que faz
surgir a filosofia é não apenas as perguntas filosóficas às quais os seres humanos naturalmente
chegam, mas os tipos de respostas dadas a estes problemas - especificamente falando, respostas
a priori e fundadas em argumentos.
Jordan (2018) nos conta que Popper afirma que todos os seres humanos são filósofos,
mas ressalta que Popper considera existir uma variação sobre um ser mais filósofo do que o
outro. Isso implicaria que uns teriam, por exemplo, mais problemas filosóficos que outros.
Todavia, mesmo com essa diferença de problemas entre as pessoas, nós todos teríamos
preconceitos filosóficos. Preconceito filosófico aparece aqui, dentro do contexto de explicação
da posição de Popper, como as posições filosóficas que as pessoas têm, mas não sabem que as
têm por falta de competência para identificá-las.
Entendo que o ensaio Uma defesa do senso comum do Moore12 pode nos ajudar a
rastrear e entender um pouco mais do que Popper categoriza como preconceito filosófico.
Moore assenta sua defesa do senso comum em duas alegações: a primeira é uma lista de outras
alegações vista por ele como truísmos, fatos do e sobre o mundo que entendemos como auto-
evidentes - exemplos: eu existo, eu tenho um corpo, existe um mundo exterior, conheço outras
pessoas, vivo no planeta terra, tenho contato com outras coisas no mundo, mantenho distâncias
variadas das coisas no mundo, etc; a segunda é uma alegação baseada na lista de alegações
feitas na primeira alegação: nós sabemos que as alegações listadas anteriormente são
verdadeiras13. Se o senso comum é um conjunto de truísmos, então o senso comum é um
10
JORDAN, 2018.
11
Idem, ibidem.
12
MOORE, 1980, p. 81-102.
13
Uma das intenções de Moore com esse ensaio é usar o conhecimento do senso comum como resposta ao
ceticismo - resposta esta que não está livre de falhas. Todavia, gostaria de comentar os truísmos que Moore elenca
em lista na primeira alegação. A segunda alegação que ele apresenta nos diz que sabemos tais truísmos. Entretanto,
20
conhecimento prima facie. O senso comum de Moore é uma lista de truísmos que (1) são juízos
de fato que revelam uma fiabilidade do ser humano no mundo e que (2) tais juízos de fato
correspondam a posições filosóficas. É provável, dado (2), que pelo menos parte do senso
comum seja composto de posições filosóficas depreendidas da relação de dependência direta
de um sujeito perante o funcionamento das coisas no mundo, sendo a lista de truísmos de Moore
uma amostra disso.
O ser humano, portanto, naturalmente chega a problemas filosóficos, variando a
emergência da quantidade desses problemas de pessoa para pessoa. O ser humano, via certos
truísmos concernentes ao senso comum advindos da nossa fiabilidade em nós e no mundo,
também detém um conjunto de posições filosóficas - mas, devido à falta de competências e
literatura filosófica, não as identifica como tal. Por conseguinte, por mais que tenhamos por
padrão certa tendência a sermos filósofos, isso não é o suficiente para afirmarmos que somos
filósofos. No momento, minha conclusão provisória é essa: os seres humanos tem o potencial
de ser filósofos. Os truísmos que aqui tirei de Moore são, provavelmente, um aperitivo do
potencial filosófico do ser humano, sendo a filosofia uma atividade distinta da nossa espécie
em comparação a outras. Além disso, não se deve esquecer que tais truísmos devam ser apenas
as posições pré-filosóficas mais acessíveis aos humanos devido a sua relação direta com a
realidade - no caso, em um sentido mais metafísico, mas também epistêmico -, mas tais,
suspeito, estão bem longe de constituírem o total de posições mínimas pré-filosóficas, pois
estamos cercados de situações onde podemos articular questões filosóficas relacionadas a
moral, ética, estética, política, ação, religião, linguagem, mente, etc.
ele não explica como viemos a saber os truísmos que lista. Uma maneira de sair dessa dificuldade está em fundá-
la numa epistemologia naturalista moderada, onde a ciência e a filosofia trabalham juntas afim de tornar claro o
nosso processo de conhecimento - isto é: a epistemologia não seria integralmente a priori, podendo ter sua
discussão informada pelas descobertas da ciência. Consideração a lista de truísmos, nosso sentidos seriam
diretamente responsáveis pela sua formação direta, bastando apenas isso - isso poderia explicar porque Moore
entende como dado sabermos tais truísmos: tal conhecimento é adquirido de forma natural. Para saber mais sobre
epistemologia naturalizada, ver SOUZA, 2016; TEIXEIRA, 2013; KORNBLITH, 2012; O’BRIEN, 2013 e
MOSER; MULDER; TROUT, 2008.
21
apresenta aqui dois sentidos: o primeiro é que a filosofia serviria para examinar a nossa
existência no sentido existencial, usada, portanto, para empreender um extenso e cuidadoso
exame da nossa vida e da maneira como a vivemos; o segundo é que a filosofia serviria para
examinar a nossa existência no sentido de alargar a nossa compreensão do mundo. De certa
forma, o primeiro sentido está contido no segundo, mas cada um destes aponta para caminhos
distintos de estudo e uso da filosofia. O primeiro sentido advém de Sócrates. Sócrates, diferente
dos filósofos anteriores a ele14, filosofa de forma metodologicamente diferente: a natureza, que
até seu tempo era o centro de gravidade da emergente disciplina, é substituída pelo ser humano.
Tal substituição permitiu o estabelecimento de outras questões não contempladas pelos pré-
socráticos - em especial os problemas morais e éticos. Nigel Warbuton, citando indiretamente
Sócrates, é preciso ao descrever esse sentido mais ético-existencial que a filosofia tem:
A maior parte das pessoas que estuda filosofia acha importante que cada um de nós
examine estas questões. Algumas até defendem que não vale a pena viver a vida sem
a examinar. Persistir numa existência rotineira sem jamais examinar os princípios na
qual esta se baseia pode ser como conduzir um automóvel que nunca foi à revisão.
Podemos justificadamente confiar nos travões, na direcção e no motor, uma vez que
sempre funcionaram suficientemente bem até agora; mas esta confiança pode ser
completamente injustificada: os travões podem ter uma deficiência e falharem
precisamente quando mais precisarmos deles. Analogamente, os princípios nos quais
a nossa vida se baseia podem ser inteiramente sólidos; mas, até os termos examinado,
não podemos ter a certeza disso.15
Um problema que esse primeiro sentido de filosofia carrega é a de tornar propício uma
associação entre filosofia e autoajuda - deve-se entender aqui a autoajuda como aquele gênero
literário dedicado ao desenvolvimento espiritual ou ao autoconhecimento de si próprio. A
crítica aqui não é feita sobre a autoajuda em si, perguntando por exemplo se esta é boa ou não,
mas sim na associação entre ela e a filosofia - ou seja: a filosofia é autoajuda? Por mais que
muitas das alegações, teses e teorias empreendidas em filosofia também possam ser lidas como
autoajuda, isso está longe de significar que aquela implica necessariamente nessa. O máximo
que se pode aqui afirmar é (1) de uma coincidência entre os problemas filosóficos e os de
autoajuda, (2) que é do interesse daqueles que escrevem autoajuda recorrer a conhecimentos
filosóficos ou (3) que pode ser uma consequência não prevista, até certo ponto, a filosofia ser
autoajuda - em outras palavras, a filosofia seria uma contribuição e condição suficiente da
14
De um ponto de vista da história da filosofia, se faz uma separação entre Sócrates e os filósofos anteriores a eles.
Estes filósofos anteriores são chamados de pré-socráticos. Tal alcunha lhes é dada devido o filosofar deles está em
ter a natureza como alvo de suas reflexões. Sócrates não segue o paradigma dos filósofos anteriores a ele, mas
estabelece um novo paradigma: refletir sobre o ser humano. Tal separação é apenas metodológica, pois alguns pré-
socráticos foram contemporâneos de Sócrates.
15
WARBUTON, 1998, p. 23-24.
22
autoajuda, principalmente devido (2). Como se constatará em páginas posteriores, a filosofia,
principalmente em seu método, está muitíssimo longe de ser autoajuda.
Com relação ao segundo sentido - a filosofia como exame da nossa vida no sentido de
alargar a nossa compreensão do mundo -, este advoga um uso da filosofia com preocupações
principalmente epistêmicas e metafísicas, mas já tomando em consideração as questões ético-
existenciais explicitamente inauguradas na disciplina por Sócrates. A preocupação aqui está em
nós, no mundo, na relação entre nós e o mundo e na nossa capacidade de compreender estes de
forma distinta e relacionada. Tal sentido parece não apenas se adequar com a generalidade da
filosofia - bastando um estudo da sua história para perceber isso - como é mais forte que o
primeiro, também englobando-o.
Uma segunda razão a ser dada para estudar filosofia está nela nos fazer pensar melhor
sobre uma grande variedade de assuntos. Isto é: dado a maneira como essa disciplina analisa os
argumentos contra e a favor de variadas posições frente a variados problemas, as competências
requeridas para assim filosofar são bem visadas com relação aos problemas do nosso cotidiano.
Entretanto, Neven Sesardic defende que aprender filosofia não nos ajuda a pensar melhor16. De
um ponto de vista psicológico, o autor cita alguns testes que investigam isso, indicando
resultados inconclusivos ou que não apoiam tal afirmação com a mesma força que os filósofos
argumentam. Na verdade, Sesardic nos diz que o pensamento para defender que a filosofia
ajuda a pensar melhor se baseia numa falácia17.
O autor nos apresenta três critérios para verificar se estudar filosofia ajuda a pensar
melhor: “1) tem de haver alguma melhoria, 2) esta melhoria tem de persistir ao longo do tempo,
e 3) o pensamento aprimorado tem de ser transferível para contextos exteriores ao ambiente
educativo”18. Quem sabe, após considerar as razões de Sesardic sobre a filosofia não nos ajudar
a pensar melhor, devamos refazer a alegação: aprender filosofia provavelmente nos ajuda a
pensar melhor e de maneira crítica. Uma razão a ser dada para esse provável está no artigo de
Luke Cuddy para a Areo Magazine19, onde este defende a filosofia - em específico o filosofar
- como a melhor opção existente para reduzir nosso viés de confirmação - e quem sabe outros
vieses20. Ou seja: por mais que não haja provas fortes ou conclusivas de que a filosofia nos
16
SESARDIC, 2018.
17
“Note-se a ironia. Na própria tentativa de promover a filosofia como uma maneira maravilhosa de melhorar o
pensamento crítico e a lógica, os filósofos caíram em bloco numa das falácias lógicas mais comuns e facilmente
detectáveis — post hoc, ergo propter hoc (ou seja, a A seguiu-se B, logo A causou B). Isto deve fazer-nos abrandar
antes de nos apressarmos a aceitar a ideia de que a filosofia faz pensar melhor.” (SESARDIC, 2018).
18
SESARDIC, 2018.
19
CUDDY, 2018.
20
Logo, o que se coloca aqui é a capacidade de pensar melhor como aquela que burla tais vieses por eles serem
problemáticos para o nosso bem pensar.
23
ajude a pensar melhor, é provável que esta seja a melhor forma ou até mesmo a nossa única boa
opção para tal.
Uma terceira razão para estudar filosofia está nesta atividade nos dar prazer. Para muitas
pessoas esse é o caso. Todavia, jogar RPG ou vôlei também nos dão prazer. Mas,
aparentemente, quem assume que a filosofia os causa imenso prazer está a imaginar um prazer
distinto destas e de muitas outras atividades. O prazer que a filosofia desperta em nós é distinto
dos tantos prazeres que potencialmente obtemos. Sentimos prazer ao fazer sexo, por exemplo.
O mesmo para nos alimentar. O que torna, então, a filosofia um prazer distinto desses e de
muitos outros? Tomando por base um artigo do Julian Baggini sobre a distinção entre os
prazeres superiores e inferiores - onde o autor toma por base tal distinção de Stuart Mill21 -, a
filosofia é prazerosa (1) por envolver habilidades humanas complexas e (2) por tais habilidades
visarem como fim último a sua apreciação.
21
“Mill defende em cinco capítulos uma versão mais sofisticada de utilitarismo, que se baseia no hedonismo
qualitativo: durante a avaliação de uma ação, além da intensidade e duração dos prazeres, devemos levar em conta
a qualidade dos prazeres gerados por ela. Mill os distingue como superiores ou inferiores, de acordo com a sua
natureza intrínseca. São superiores os prazeres do intelecto, das emoções, da imaginação e dos sentimentos morais
e são inferiores os prazeres corporais. Confrontados por indivíduos que tenham experiência de ambos, os do tipo
superior sobressaem-se como preferíveis, sendo então considerados melhores (superiores) do que os outros.”
(GONTIJO, 2018).
24
discutir e produzir filosofia em um nível de justificação acima do que é exigido no nosso
cotidiano. O que resta precisar é em que nível de justificação está o conhecimento filosófico.
Para atingir a referida precisão, é imprescindível ter uma noção filosófica básica sobre
conhecimento. Conhecimento é tradicionalmente definido por crença verdadeira justificada 22 –
deve-se ter em mente que está sendo aqui considerado apenas o conhecimento proposicional,
isto é, o conhecimento de uma proposição verdadeira23. Melhor dizendo: para um sujeito saber
algo - S sabe que p, formalmente -, esse algo (1) tem de ser verdadeiro, (2) deve-se crer nesse
algo e (3) é preciso estar justificado na crença desse algo. Apresentando o conhecimento através
de uma definição recursiva, ele fica da seguinte maneira:
22
Ver SOBER, 2002; RODRIGUES, 2013.
23
Ver NUNES, 2015.
24
Ver GETTIER, 1963, p. 121-123.
25
“Pode argumentar-se que para haver conhecimento temos de ter razões conclusivas a sustentar as nossas crenças,
razões que não poderíamos possuir se essas crenças fossem falsas; estas razões implicariam, portanto, que as nossas
crenças fossem infalíveis. […]. Se as razões conclusivas forem uma condição necessária para o conhecimento,
então, este cenário deixará de constituir um contraexemplo à análise tradicional, pois não configura um caso de
crença verdadeira justificada sem conhecimento.” (O’BRIEN, 2013, p. 42).
25
Para que não se caia num dilema epistêmico – conhecemos muitas coisas por sorte ou
estamos conclusivamente justificados de que conhecemos pouco -, atualmente se defende o
falibilismo26: as razões que temos para a justificação não são conclusivas, ou seja, dispomos de
motivos para defender o que sabemos apesar de ainda ser possível estarmos errados com
relação a isso. Essa outra perspectiva sobre a justificação permite que ela possa variar de nível,
começando da mais fraca razão até a mais forte. Além disso, essa saída nos permite salvar tudo
que atualmente julgamos saber apesar de tudo isso que sabemos estar justificado nos mais
variados níveis.
Essa variação de nível que o falibilismo imprime na justificação do conhecimento nos
permite chegar a uma espécie de contextualismo. Se contexto é “o cenário ou situação em que
uma sentença é pronunciada”27 – deve-se aqui entender sentença como sinônimo de proposição
-, o contextualismo sobre justificação28 consiste no nível de uma ou mais razões dadas como
justificativa para a crença numa proposição verdadeira variar de acordo com o contexto. Isso
significa que (1) “S está justificado em acreditar que p” num contexto e (2) “S não está
justificado em acreditar que p” em outro, sendo que em (1) e (2) estamos a falar do mesmo S e
do mesmo p e o contexto para satisfação da condição de justificação em (1) ser de baixo nível
e em (2) ser de alto nível.
Se, por exemplo, sendo p algo como “ter mãos” e uma vez que perguntem a S se p, (1)
ocorre quando quem pergunta é uma pessoa comum e (2) ocorre quando quem pergunta é um
cético – após este, claro, colocar S em xeque com seus argumentos. Essa variação de nível de
justificação usando o exemplo envolvendo (1) e (2) nos permite entender que, além de ambos
serem compatíveis em S de acordo com o contextualismo sobre justificação29 – o cético eleva
26
“Um dos problemas de uma perspectiva [falibilista] da justificação deste tipo é que torna o conhecimento algo
muito difícil de alcançar. Não é claro que alguma das nossas crenças empíricas seja infalível. […]. Para permitir
que uma pretensão ao conhecimento tão banal como esta possa estar correta, a concepção moderna do
conhecimento tornou-se falibilista. Devemos ser cuidadosos, no entanto, na forma como exprimimos esta posição:
o que se afirma não é que podemos conhecer coisas que são falsas; a posição falibilista é que podemos ter
conhecimento sem termos razões conclusivas. Assim, podemos afirmar saber algo ainda que as provas de que
dispomos presentemente não excluam a possibilidade de estarmos errados. A ciência constitui um bom exemplo
de falibilismo.” (O’BRIEN, 2013, p. 42-43).
27
“A context is the setting or situation in which a sentence is uttered.” (FELDMAN, 2010, p. 12).
28
“De acordo com o contextualismo (sobre a justificação), os padrões para as crenças justificadas que um sujeito
deve satisfazer para que exprima uma sentença verdadeira ao descrever uma crença variam de acordo com o
contexto.” (DEROSE, 2012, p. 302).
29
“O que conseguimos perceber, de acordo com a solução contextualista, é que as negações que o cético faz com
relação ao fato de que conhecemos várias coisas são perfeitamente compatíveis com nossas atribuições de
conhecimento comuns a essas mesmas proposições. Logo que percebemos esse fato, conseguimos ver quanto
podem estar corretas tanto as negações de conhecimento do cético como nossas atribuições de conhecimento
comuns.” (DEROSE, 2012, p. 310).
26
seu nível de justificação em comparação com uma pessoa comum 30 -, isso pode ser estendido
para algo essencial na filosofia: conceitos. Como bem diz O’Brien: “Os critérios que usamos
para avaliar se uma superfície é lisa diferem consoante estejamos a considerar um campo de
críquete, o solo de um vale em forma de U, ou a face de um diamante”31. O exemplo do O’Brien
pode ser plenamente manipulável por uma pessoa comum, de modo que ela pode afirmar que
conhece tal conceito por ter a posse de alguma forma de definição sua. Porém, quando tal é
defrontada com conceitos abstratos e centrais para a nossa rede conceitual – o conceito de
conhecimento seria um exemplo desse tipo -, o nível de justificação para afirmar que se possui
a definição desses e de muitos outros conceitos aumenta consideravelmente.
A pessoa comum, no seu dia a dia e em boa parte de suas conversas, faz um uso intuitivo
de conceitos32 e trabalha com um baixo contexto de justificação33. Todavia e até certo ponto,
um praticante da filosofia faz as mesmas coisas que uma pessoa comum faz nas suas conversas
cotidianas, mas com um maior rigor – melhor dizendo: um uso articulado e rigoroso de
conceitos num alto contexto de justificação em comparação com o baixo contexto tomado como
dado no cotidiano. Uma possível objeção está na noção de que uma pessoa comum, frente a
determinados problemas envolvendo conceitos, conversa ou discute também num alto contexto
de justificação - ou chega a se aproximar gradualmente disso com o avançar da conversa ou
discussão. Ou seja: um alto contexto de justificação não é uma exclusividade dos praticantes da
filosofia. Logo, até mesmos pessoas comuns, com algum esforço, podem sobrepor no debate
alguém com uma formação competente em filosofia. Um contra-argumento a objeção
apresentada está num praticante da filosofia ter uma formação especializada para o
argumentação - além de toda uma outra série de competências. Do contrário, uma pessoa
comum, apenas com seu equipamento conceitual de base, pode (1) não ser capaz de trabalhar
nuances ou finas distinções esperadas num argumentar filosoficamente competente e (2) não
conseguir se desvencilhar - ou ao menos diminuir - certos vieses que as pessoas com nenhuma
formação argumentativa são capazes de fazer.
30
“Espera-se que, desse modo, nossas afirmações de conhecimento comuns possam ser protegidas do ataque
aparentemente poderoso do cético, ao mesmo tempo, a persuasão do argumento cético é explicada. Pois o fato de
que o cético pode estabelecer padrões muito elevados que não estão ao nosso alcance não mostra que não
satisfazemos os padrões mais brandos que se encontram em vigor em debates e conversas mais comuns.”
(DEROSE, 2012, p. 310-311).
31
(O’BRIEN, 2013, p. 211).
32
A articulação que as pessoas geralmente fazem dos conceitos é com base em definições implícitas e muitos
exemplos, sem tanto rigor.
33
Seu contexto conversacional é menos rigoroso, ou seja, estão mais próximas do falibilismo do que do
infalibilismo.
27
A filosofia trabalha sob um alto nível de justificação devido certos problemas e suas
respectivas respostas com estes envolverem conceitos abstratos e centrais para a nossa rede
conceitual – e isso requer uma formação sólida em um amplo conjuntos de competências
cognitivas e aquisição de literatura na área, sendo tudo isso articulado de forma argumentativa.
Isso não quer dizer que uma pessoa comum não possa vir a filosofar, mas se chegar a tal, no
mínimo o fará de forma ineficiente e deselegante por causa do seu equipamento conceitual de
base não ser suficiente para trabalhar nesse nível de justificação. Pedir para uma pessoa comum
vir a filosofar é o mesmo que esperar de um adulto que anda desde a infância somente numa
bicicleta com o auxílio de rodinhas, após a retirada das rodinhas, vir a imediatamente andar de
bicicleta com sólido equilíbrio.
34
"A filosofia, assim como a maioria das disciplinas de humanas, baseia-se muito em textos, e uma grande parte
do tempo que você dedicará a ela será usada na leitura de textos filosóficos." (SAUNDERS et al, 2009, p. 22).
35
MARCONDES, 2011, p. 32.
36
"É uma questão genuinamente filosófica perguntarmo-nos se é possível escrever filosofia através de qualquer
estilo literário. ou se algum deles se presta mais do que os outros para esse fim. Trata-se aqui, sem dúvida, da
antiga discussão acerca das implicações sobre forma e conteúdo: a forma é determinante na expressão do conteúdo,
ou este se expressa independente dela?" (MARCONDES, 2011, p. 32).
37
Conferir a seção 4.3.
28
ela terá de acessar certa literatura38 sobre a disciplina. Uma segunda razão - com base na
primeira - refere-se as pessoas lerem filosofia caso queiram ter acesso ao conteúdo produzido
na área. Isso é tão comum que uma das formas de estudar filosofia é lendo-a39. Uma terceira
razão - também com base na primeira - está nas pessoas escreverem textos de filosofia caso
queiram ser lidas e terem suas ideias circulando e em discussão. Se tivermos em mente um
estudante de filosofia do ensino superior, este provavelmente aprenderá a escrever ensaios 40 -
pelo menos é esse estilo de texto filosófico que se espera que tais estudantes dominem,
publicando-os nos mais diversos livros e revistas caso estes sejam aprovados.
Mas a resposta para esse problema pode ser negativa. Isso significa que é possível
expressar as alegações desenvolvidas pelos que praticam a filosofia de outras formas que não
apenas a escrita. Quais seriam essas outras formas além do texto? O áudio e o vídeo,
respectivamente. Com relação ao áudio, para o rádio, temos o In Our Time: Philosophy41, sendo
que ele também é um podcast igual o Philosophize This!42, Philosophy Bites43, Filosofia Pop44
e Ficções45. Com relação ao vídeo, para a TV tivemos o Das Philosophische Quartett46 e
atualmente podemos citar o Precht47 e Café Filosófico48, enquanto que para o Youtube temos
o curso Crash Course: Philosophy49 e grande parte dos vídeos do canal Wisecrack50. É possível
encontrar outros vídeos de filosofia no Youtube, mas nunca com alguma consistência em
relação a uma playlist ou ao canal em si, apenas como algo individual51, sendo por isso que não
os considero aqui devido ser necessário fazer uma lista exaustiva para citá-los. Tantos exemplos
38
Certa literatura devido ela variar de acordo com o nível de filosofia da pessoa. Por exemplo: alguém que está
num nível básico deverá acessar manuais ou livros de introdução, enquanto que alguém de nível avançado deverá
acessar livros dedicados a especialistas.
39
Dentre os livros didáticos disponíveis em português e direcionados a leitura de textos filosóficos por estudantes
de filosofia do ensino superior, o que recomendo é capítulo 2 do "Como estudar filosofia: guia prático para
estudantes" (SAUNDERS et al, 2009, p. 22-66).
40
Posso listar pelo menos três boas referências relacionadas a escrita de ensaios filosóficos. Um deles é um guia
curto escrito por Michael Tooley (TOOLEY, 2019). Um outro é o capítulo 5 do "Como estudar filosofia: guia
prático para estudantes" (SAUNDERS et al, 2009, p. 97-151). O último é o livro "Ensaio filosófico: o que é, como
se faz" (MARTINICH, 2002). Ambas são traduções de obras escritas originalmente em língua inglesa, mas ainda
sim podem ser consideradas sem problemas no contexto brasileiro.
41
BRAGG, 2019.
42
WEST, 2019.
43
EDMONDS, WARBURTON, 2019.
44
FERRAZ, CARVALHO, 2019.
45
RAMON, 2019.
46
DAS PHILOSOPHICHE QUARTETT, 2019.
47
PRECHT, 2019.
48
Café Filosófico, 2019.
49
CRASHCOURSE, 2019.
50
WISECRACK, 2019.
51
Um exemplo de vídeo no Youtube sobre um conteúdo filosófico, mas que de certa maneira não é o tipo de vídeo
que se espera o canal publique e o produza, é o "Do Robots Deserve Rights? What if Machines Become
Conscious?"(KURZGESAGT, 2019).
29
acima - sendo que fiz apenas a citação dos mais conhecidos - nos indica o seguinte: é
plenamente possível, além do texto, expressar alegações em áudio e vídeo. Uma conclusão
preliminar dessa não deveria ser um espanto, pois é normal até mesmo encontrar um conteúdo
que está ao mesmo tempo expresso tanto em texto, áudio e vídeo. Um exemplo seria um ensaio
curto publicado em um blog sobre filosofia, onde se discute as alegações concernentes a
epistemologia do testemunho. Mas esse blog tem a cultura de aprofundar mais seus textos em
seu podcast e divulgar o conteúdo do ensaio para um público mais amplo através de um vídeo
em seu canal do Youtube.
Partindo, portanto, da resposta negativa à pergunta sobre se a escrita é a única maneira
de expressar o conteúdo filosófico, percebe-se o conteúdo filosófico como transmeio, ou seja,
ele pode ser expresso através de uma ou mais alegações e elas ocorrem tanto em texto, áudio
ou vídeo, de modo que quem as recebe as entende de forma individual - vindo de um dos meios
de expressão - ou interligadamente - quando se percebe que o mesmo conteúdo está ocorrendo
em dois ou até todos os meio de expressão. Se podemos, portanto, expressar uma ou mais
alegações em mais de um meio, conclui-se que a escrita não é a única maneira de expressar o
conteúdo filosófico, pois, independentemente dessa ser a forma onde a produção filosófica mais
importante é publicada, não é necessário que esta vá para lá. Atualmente o texto – artigo, ensaio,
tese ou tratado – é visto como a maneira mais comum de expressar o conteúdo filosófico, sendo
através do áudio e do vídeo – principalmente via podcasts e canais do Youtube – os meios onde
se divulga a filosofia – blogs, que trabalham principalmente na produção de textos, também
usados para divulgar a área.
Será aqui defendido que o filosofar é uma forma muito distinta de pensar composto pela
articulação ordenada de um conjunto muito específico de elementos essenciais. Estando essa
defesa intrinsecamente relacionada a reflexões relacionadas a metafísica da filosofia da filosofia
– tratarei da constituição metafísica do método filosófico -, para o pleno entendimento dessa
defesa, uma rápida introdução a metafísica se mostra necessária, sendo isso feito a seguir.
A metafísica pode ser definida como (1) o estudo das causas primeiras, (2) o estudo do
ser enquanto ser e (3) uma teoria das categorias 52. Será trabalhado a (3). Portanto, a metafísica
é a disciplina filosófica que classifica tudo o que existe em suas categorias mais gerais - sendo
52
Para saber mais sobre a metafísica não apenas como teoria categorial, ver LOUX, 2019.
30
um aspecto distintivo dessa definição ela não pressupor o seu objeto de estudo, mas sim buscar
prová-lo. Uma categoria metafísica, para assim sê-la, deve satisfazer as seguintes condições53:
• Trans-domínio: deve ser aplicável a todos os domínios da realidade e do conhecimento;
• Exaustão: tudo o que existe deve cair sob uma das categorias assumidas pela teoria
metafísica;
• Exclusão: nada pode satisfazer mais de uma das categorias.
Apresento a seguir uma teoria das categorias similar à de Loux como aquela que satisfaz
as condições de categoria metafísica anteriormente explicitadas54. Todas as entidades podem
ser divididas em duas grandes categorias: particulares e universais. No tocante aos particulares,
estes dividem-se em concretos e abstratos - o primeiro se refere as entidades com localização
espaço-temporal, enquanto que o segundo não tem essa localização; um livro seria um exemplo
de particular concreto, enquanto que números e proposições seriam exemplos de particulares
abstratos. Com relação aos particulares concretos, estes podem ser divididos em substâncias e
não-substâncias - a primeira concerne as entidades onde a sua existência independe de outras,
tratando a segunda das que dependem continuamente de outras entidades para existir; um ser
humano seria um exemplo de substância, enquanto as sombras e os buracos seriam exemplos
de não-substância. No tocante aos universais, estes dividem-se em propriedades e relações -
ser redondo ou vermelho seriam exemplos de propriedade, sendo a amizade ou a paternidade
exemplos de relação. Para os propósitos desta pesquisa, os universais serão mais desenvolvidos
que os particulares.
Guido Imaguire descreve bem a articulação das entidades divididas entre particulares e
universais:
Para o sendo comum, a realidade parece ser composta de objetos (ou coisas), que têm
certas propriedades e que estão em relações uns com os outros. Esta maçã é uma coisa
que tem a propriedade de ser vermelha e está numa relação com a mesa, ela está sobre
a mesa. O objeto Sócrates tem a propriedade de ser mortal e uma relação com Platão,
ele é seu mestre.55
O que torna tão intuitivo distinguir um particular de um universal? Isso acontece devido
a nossa linguagem permitir localizá-los facilmente: dado uma proposição qualquer, um
particular é aquilo que é representado pelo seu sujeito, sendo o universal aquilo que é
53
Explicação retirada de um slide da aula de Metafísica I dada pelo Dr. André Nascimento Pontes no dia 26 de
março de 2019.
54
LOUX, 2019.
55
IMAGUIRE, 2007, p. 271.
31
representado pelo seu predicado56. Foquemos a partir daqui nas propriedades e nos objetos
como particulares concretos, ou seja: coisas espaço-temporalmente não repetíveis que existem
independentemente de outras coisas - como árvores, panelas e seres humanos. O mundo tende
a ser bastante monótono: a ocorrência de propriedades nos objetos atende uma alta
regularidade57. Mas essa constância não é algo que os objetos detém integralmente: eles
ganham, perdem ou trocam de propriedades com o passar do tempo - ou seja: tais mudanças
advindas dessa movimentação de propriedades não fazem com que o objeto deixe de ser ele
mesmo. Tal observação parece encontrar fundamentação na realidade: de certa forma, não
deixei de ser o mesmo que fui quando criança só porque me tornei um adulto - crescer, nesse
caso em específico, envolve uma gigantesca quantidade de mudanças de propriedades
biopsicossociais.
Para dar suporte a essas e outras constatações que se desenvolveu a categoria de
substância. Substância é o objeto que somente instancia propriedades - entenda por instanciação
a importação de n propriedades realizada por um objeto. Uma substância detém as seguintes
características: individualidade, independência ontológica, identidade transtemporal e
identidade transmundada58. A individualidade diz respeito a uma substância em particular ter
uma única ocorrência na realidade - em outras palavras: ela é uma entidade unívoca. A
independência ontológica refere-se à existência de uma substância não depender de suas
próprias propriedades e de outras substâncias. A identidade transtemporal corresponde a
manutenção da identidade e individualidade de uma substância apesar das mudanças de
propriedades que esta realiza no decorrer do tempo. A identidade transmundada refere-se à
possibilidade de reidentificar uma substância em situações contrafactuais - ou seja: tal pode ser
encontrado em outros mundos possíveis.
Por mais que substâncias possam existir sem recorrer a nenhuma propriedade,
geralmente encontramos no mundo o contrário: somos e interagimos com várias substâncias
detentoras de todo um conjunto de propriedades. Mas o que é uma propriedade? Propriedade é
uma característica instanciável por entidades - sejam elas particulares abstratos, substâncias ou
outras propriedades (são esses os casos das propriedades de propriedades). Das várias
56
"[...], dada uma entidade qualquer, como decidir se ela é um particular ou um universal? Intuitivamente, parece
que particular é aquilo que é representado pelo sujeito de uma sentença, enquanto propriedade é aquilo expresso
pelo predicado." (IMAGUIRE, 2014, p. 3).
57
"A ocorrência de propriedades no mundo segue estruturas bastante regradas; [...]. Mas justamente essa
regularidade é que nos permite compreender o mundo, captá-lo com nossa estrutura conceitual: bananas são em
geral compridas, curvas, amarelas, penduradas em cachos. Um mundo no qual os tipos naturais mudassem
constantemente de propriedades tornaria nossa sobrevivência improvável. Existe uma relativa constância no
mundo." (IMAGUIRE, 2007, p. 272).
58
Para mais detalhes sobre as características da substância, conferir IMAGUIRE, 2007, p. 273-281.
32
características que as propriedades tem, entendo que três lhe são fundamentais e serão
explanadas a seguir 59. A primeira característica está nela ser ubíqua: isso significa que está a
ocorrer uma ou mais vezes em diferentes lugares do espaço, onde muitas dessas ocorrências se
realizam simultaneamente. A segunda característica está nela ter aridade: isso significa que
uma propriedade, quando instanciada, é aplicada através da ligação de uma quantidade n de
entidades - onde n começa a partir de 1. Tal característica nos permite estabelecer a seguinte
distinção: uma propriedade tem aridade 1, enquanto que uma relação tem no mínimo aridade 2.
A aridade, portanto, nos permite fundar uma nova categoria dentro dos universais como
extensão da propriedade: a relação60. Uma relação é uma propriedade aplicada em duas ou mais
entidades, ligando-as. Exemplos de relação seriam “Maria amar João” e o “verde ser uma cor
mais bonita que azul”. A terceira característica está nela ter ordem: isso significa que as
propriedades são distribuídas em níveis de instanciação. Propriedades de primeira ordem são
instanciadas exclusivamente por particulares e nunca por outras propriedades. Cinza seria a
propriedade de primeira ordem da proposição "O carro é da cor cinza" – ela está sendo
instanciada pela substância carro. Propriedades de segunda ordem são instanciadas tanto por
particulares quanto por outras propriedades. Cor seria a propriedade de segunda ordem da
proposição "O carro é da cor cinza" – ela está sendo instanciada pela propriedade cinza. Não
existe limite para a ordem das propriedades. O que se pode perceber, portanto, é que
propriedades de propriedades começam a partir de propriedades de segunda ordem – é o caso
de cinza ser uma cor.
Uma outra característica das propriedades é que elas podem ser essencial para algo. Para
melhor entendermos isso, será preciso falar um pouco sobre mundos possíveis. A teoria dos
mundos possíveis trabalha com a ideia de que o mundo poderia ser diferente do que ele é, ou
seja: projetamos um ou mais cenários onde as coisas poderiam ser diferentes do que são. Mais
especificamente, tal teoria trata do modo como o mundo (1) é, (2) poderia ter sido e (3) não
poderia ter sido. É possível, portanto, trabalhar os mundos possíveis através do mundo atual e
de contrafactuais. O primeiro concerne ao modo como as coisas efetivamente são – sendo o
nosso mundo, por conseguinte, um dos mundos possíveis; o segundo se refere aos estados-de-
coisas que não ocorrem, isto é, de uma certa disposição do mundo que não está em ato.
Algo a se destacar sobre os contrafactuais diz respeito ao caminho que geralmente
usamos para pensar dessa forma: por meio de uma suposta troca de propriedades que um certo
indivíduo atualmente não satisfaz, sendo isso possível devido este ter propriedades acidentais
59
O estado da arte sobre propriedades pode ser encontrado em IMAGUIRE, 2014, p. 1-20.
60
O estado da arte sobre relações pode ser encontrado em IMAGUIRE, 2014, p. 1-17.
33
– Sócrates poderia ter sido arquiteto em vez de filósofo. Todavia, a existência do pensar
contrafactual tem como limite o indivíduo deixa de satisfazer uma propriedade que lhe é
essencial. Logo, para o preciso entendimento do que é uma propriedade essencial, será preciso
introduzir as seguintes noções modais usadas perante o tratamento de mundos possíveis:
necessidade, contingência, possibilidade e impossibilidade.
Um ser necessário é um ser que existe em todos os mundos possíveis – Deus e o número
2 seriam exemplos disso. Um ser contingente é um ser que existe em pelo menos um mundo
possível e não existe em pelo menos um mundo possível – eu, Pelé, o Teatro Amazonas e a
cidade de Fortaleza seriam exemplos disso. Um ser possível é um ser que existe em pelo menos
um mundo possível – sendo um possibilia um ser possível que não existe em ato. Um ser
impossível é um ser que não existe em nenhum mundo possível.
Uma propriedade essencial é a propriedade que um ser contingente tem em todos os
mundos possíveis em que ele existe. De modo mais formal, F é uma propriedade essencial de
um particular a se, e só se, a exemplifica F em todos os mundos possíveis nas quais a existe.
Sócrates, por exemplo, é um ser contingente – poderia ter sido o caso de ele não ter existido –
que tem a propriedade essencial de ser um humano. À vista disso, não é possível pensar
contrafactualmente que Sócrates é um Fusca devido este ter como propriedade essencial ser um
ser humano.
É possível realizar duas distinções diante das propriedades essenciais. A primeira é que
ela não é o mesmo que propriedades necessárias, pois estas concernem a propriedade que um
ser necessário tem em todos os mundos possíveis – são os casos de ser par para o 2 e ser
onisciente para Deus. A segunda é que ela não é o mesmo que essência, pois essência é uma
propriedade não somente essencial como também individuadora de um ser – de modo mais
formal, uma propriedade individuadora de a é uma propriedade que apenas a satisfaz. Melhor
dizendo: a essência de a é a interseção entre as propriedades essenciais e individuadoras de a.
Por último, pontua-se que (1) a existência é uma propriedade essencial de todos os particulares,
sejam eles existentes necessários ou não, (2) nem toda propriedade individuadora de a é a
essência de a e (3) nem toda propriedade essencial de a é a essência de a.
Mas não somente substâncias podem ter propriedades essenciais: propriedades também
podem ter propriedades essenciais. Isso significa que determinadas propriedades de segunda
ordem só podem ser instanciadas por substâncias quando são necessariamente instanciadas por
um conjunto de propriedades de primeira ordem – em outras palavras: determinadas
propriedades de segunda ordem só existem e podem ao mesmo tempo serem instanciadas
devido serem necessariamente compostas por um certo número de propriedades. Portanto,
34
propriedades essenciais de propriedades são propriedades de segunda ordem que, através de
condições necessárias ou suficientes – condições necessárias e suficientes ou condições
suficientes e necessárias -, devem instanciar um certo conjunto de propriedades de primeira
ordem. Seria esse o caso do filosofar, por exemplo: para que uma substância possa instanciar
essa propriedade de segunda ordem, a propriedade precisa necessariamente instanciar uma ou
mais propriedades de primeira ordem que, a princípio, a substância em questão poderia também
instanciá-las – mas isso seria feito individualmente. Por conseguinte, quando uma pessoa está
a filosofar, está a pensar por meio de um conjunto de propriedades essenciais, sendo que a partir
daqui os chamarei apenas de elementos essenciais do filosofar.
Outrossim, com relação a sua natureza, o problema filosófico é o que se pode chamar
de problema aberto62. Explico: um problema é fechado quando sabemos como solucioná-lo, ou
seja, ou já temos uma resposta direta para seu problema ou temos pelo menos o conhecimento
61
ALMEIDA et al, 2007, p. 20.
62
Levo aqui em consideração HOLLIS, 2019.
35
para apresentarmos uma resposta a este problema - isto é: tal resposta se dá indiretamente; um
problema é aberto quando não sabemos como solucioná-lo definitivamente. Melhor dizendo:
uma problema aberto diz respeito aquilo que não é passível de solução dentro das formas de
conhecimento atualmente existentes, onde se apresenta a única e verdadeira solução. O
problema filosófico ser um problema aberto significa dizer que é um problema sem solução
única – ou seja: duas ou mais respostas são disputadas como a mais adequada para respondê-
lo. Um modo de sustentar essa ideia está na questão de não existir acordo entre os filósofos
sobre as respostas dadas aos seus respectivos problemas filosóficos: tais problemas ficariam
sem solução definitiva em razão de faltar na filosofia um procedimento de decisão – pois, se
houvesse um, seria possível apresentar uma resposta definitiva -, apenas ocorrendo uma
incessante disputa entre os candidatos a resposta.
A definição de problema filosófico por meio do modo como o respondemos permite, de
uma só vez, não somente identificar um problema filosófico como distingui-lo de um problema
não filosófico. Um exemplo: descobrir se as pessoas religiosas são mais felizes do que as outras
é um problema distinto de descobrir se, caso a religião faça as pessoas mais felizes, isso
constitui uma boa razão para ser religioso. O primeiro problema pode ser respondido de forma
empírica - “fazendo entrevistas, recolhendo dados e dando-lhes um tratamento estatístico
adequado”63 -, enquanto que o segundo não pode ser respondido adequadamente de forma
empírica, mas apenas através de uma intensa e crítica reflexão sobre o problema - ou seja: tal
problema só é adequadamente respondido de forma filosófica. Claro: existe problemas que são
ao mesmo tempo filosóficos e não-filosóficos ou tem grande proximidade a ponto de não
sabermos o que os torna claramente distintos, como a natureza do tempo – conceito estudado
tanto pela física quanto pela filosofia -, mas tais problemas não serão aqui considerados por
questões de simplicidade.
Algo desejável com relação a distinguir problemas filosóficos de não-filosóficos é um
certo nível de conhecimento de outras áreas importantes do saber - por exemplo: física, ciências
sociais, história, biologia, química, etc -, com destaque para os seus problemas e métodos de
investigação. Com o tempo, após muito se aprender sobre filosofia, ficará intuitivo fazer essa
distinção de problemas - ou seja: tal distinção se tornará automática. Entretanto, saber tais coisas
sobre outras áreas de conhecimento permitirá uma distinção ainda mais refinada entre os
problemas que são e não são filosóficos. Uma outra vantagem acarretada por esse maior
conhecimento das outras áreas do saber está em poder discutir com mais clareza os problemas
63
MURCHO, 2013, p. 41.
36
filosóficos dessas e de outras áreas do saber. Um dos vários exemplos a favor desse ponto está
na definição de arte: sendo este um problema filosófico, podemos respondê-lo tanto (1)
apresentando um definiens que revele as características ou critérios mais fundamentais do
conceito de arte quanto (2) apontando quais obras podemos considerar arte. De uma forma ou
de outra, ter um bom conhecimento de arte – seja da sua história ou das suas obras – permite
uma discussão mais informada do problema, permitindo também suportes ou refutações as
alegações defendidas sobre esse problema.
Por fim, as razão que torna o problema filosófico um EEF é a sua necessidade via
estatuto de disciplina. Melhor dizendo, o problema filosófico é um EEF devido ser necessária
para definir a filosofia como disciplina. Toda disciplina detém um objeto de estudo e um
método: o primeiro diz respeito “àquilo que a disciplina estuda”64; o segundo “é o modo como
[se] leva a cabo esse estudo”65. Ora: pode-se dizer que tanto o objeto de estudo da filosofia são
os “problemas fundamentais acerca da natureza da realidade, do conhecimento e do valor” 66
quanto o seu método ser a investigação e discussão crítica de alegações sobre conceitos.
Percebe-se, havendo agora clareza do objeto e método da filosofia, o quão essencial o problema
filosófico é: sem ele, não se teria o que estudar – isto é: ela não deteria um corpo de
conhecimento próprio – e como estudar essa disciplina – ou seja: não haveriam problemas
passíveis de se resolver através de alegações.
4.2. Argumento
Argumento é uma sequência finita de sentenças assertivas - afirmações – pela qual se
pretende justificar ou defender uma - a conclusão - com base em outras - as premissas.
Para que tenhamos uma compreensão mais precisa de argumento, alguns
esclarecimentos precisam ser feitos. O primeiro delas diz respeito a diferença entre argumento
e explicação67. Como anteriormente definido, uma explicação é “X clarificar p para Y e Y
compreender p”68. Logo, uma explicação aparenta ser claramente distinta de um argumento.
Contudo, durante a leitura de um texto filosófico, pode ser que não seja tão claro assim a
diferença entre um argumento e uma explicação. Isso é algo que deve ser evitado, pois, no texto
filosófico, ao não saber como se diferencia um do outro, podemos incorrer na errônea acusação
de que um certo raciocínio é um mal argumento ou um argumento falacioso, sendo que nem
64
ALMEIDA et al, 2007, p. 18.
65
Idem, ibidem.
66
Idem, ibidem.
67
Além do WALTON, 2018, também considero o MURCHO, 2019.
68
Cf. p. 10. (POR ENQUANTO)
37
um argumento ele é. Saímos dessa situação - fazendo a distinção entre uma explicação e um
argumento - através do propósito que um determinado raciocínio detém. Se o que se quer é
defender algo, então o raciocínio é objeto de disputa, sendo assim um argumento. Se o que se
quer é que o raciocínio seja prontamente aceito como verdadeiro, logo, se está a explicar. Vale
destacar que, após cuidadoso exame, apenas o contexto onde o raciocínio está inserido nos
permitirá distingui-lo entre um argumento ou uma explicação.
Um outro esclarecimento está na relação entre argumento e raciocínio. Raciocínio pode
aqui ser definido69 como o processo onde se chega a uma afirmação a partir de uma ou mais
afirmações que inicialmente dispomos. Em outras palavras, o raciocínio trata da consequência
que se alcança a partir de um determinado conjunto de informações. De certa forma, em
filosofia, costuma-se tratar o raciocínio e o argumento como sinônimos. Na verdade, dada as
suas definições, percebe-se que ambos muito se assemelham. Não obstante, essa semelhança
não deve ser considerada como o caso: por mais que todo argumento seja um raciocínio, nem
todo raciocínio é um argumento. A explicação, por exemplo, é um raciocínio: quando Y
compreendeu a explicação de X sobre p, Y na verdade precisou das mínimas informações
necessária que X apresentou sobre p para, através do que se seguiu dessas informações, concluir
que p.
Algumas outras coisas podem ser ditas com relação a argumentos. Um argumento é
válido quando não é possível a sua conclusão ser falsa em decorrência de suas premissas serem
verdadeiras. Os argumentos dedutivos são aqueles que atendem bem essa definição de
argumento válido. Além do argumento dedutivo, temos o indutivo: este tem por forma a sua
conclusão ser verdadeira com base em premissas muitíssimo verdadeiras, por mais que seja
possível – mas geralmente improvável – elas ainda serem falsas. De uma forma ou de outra, ao
sabermos o que é validade e um argumento dedutivo e indutivo, se destaca a importância do
argumento ser válido e ao menos as premissas serem verdadeiras. Isso é o que se deve entender
por argumento sólido. Mas um argumento sólido ainda não é um bom argumento. Um
argumento cogente – o mesmo que um bom argumento – é aquele argumento sólido onde suas
premissas são mais plausíveis do que a sua conclusão. A ideia por trás da plausibilidade das
premissas está no objetivo de ser persuasivo, pois, se convencermos uma ou mais pessoas das
premissas de nosso argumento, consequentemente restará aceitar a sua conclusão.
Os motivos que fundamentam o argumento como um EEF são o que apresento a seguir.
Já que lançamos alegações frente a problemas filosóficos, como se dá esse lançamento?
69
Tal definição por mim apresentada foi inspirada na definição de raciocínio do Paulo Ruas (ver RUAS, 2019) e
na definição de inferência presente no Dicionário escolar de filosofia (ver INFERÊNCIA, 2019).
38
Argumentando. Além disso, com relação ao argumento ser composto de sentenças assertivas,
se sentença declarativa é o mesmo que sentença assertiva - isto é: são sinônimos por se referirem
a mesma coisa -, consequentemente, um argumento é constituído de alegações. Lançar uma
alegação como resposta a um problema filosófico significa persuadir racionalmente que esta
determinada alegação é tal resposta para aquela com base em outras alegações - onde essas
outras alegações constituem as minhas razões para defendê-la. Em virtude do problema
filosófico e da alegação serem elementos fundamentais do filosofar e dado que o argumento é
a maneira de lançar uma ou mais alegações como respostas a um ou mais problemas filosóficos,
pode-se inferir que o argumento é um elemento essencial do filosofar. Não basta apenas
apresentar uma alegação frente a um problema filosófico: é preciso defender que essa alegação
é verdadeira através de uma ou mais razões. Visto que apresentamos alegações para sustentar a
verdade de uma outra alegação e sabendo-se que justificar uma alegação é fornecer uma ou
mais razões para crermos que uma alegação é verdadeira, conclui-se que o argumentar é o modo
de justificar uma alegação.
4.3. Alegação
Uma alegação70 (claim) é uma proposição verdadeira ou falsa que é dada como resposta
a um problema filosófico. Portanto, a pessoa que está a filosofar está a pensar não apenas em
problemas filosóficos, mas também em uma ou mais alegações como as suas respectivas
respostas. Ademais, uma alegação pode ser clarificada ou justificada. Clarificar uma alegação
é o mesmo que explicar ou expressar em detalhes o que uma alegação ou parte dela significa.
A razão por trás da clarificação está em poder avaliar e debater uma alegação tendo absoluta
clareza do que ela significa - melhor dizendo: a clarificação visa precisar uma alegação. Em
filosofia, isso é requerido quando estamos diante de alegações que não são literais ou que um
ou mais de seus termos não são imediatamente claros. Para além da clarificação depender do
contexto - ou seja: do quão vaga ou obscura uma alegação está -, esta pode ser feita sem que se
defenda que esta seja verdadeira ou falsa. Justificar uma alegação é o mesmo que dar uma ou
mais razões para crer nela. A razão por trás da justificação está em apresentar um ou mais
motivos para tornar justificável a aceitação de dada alegação como a verdadeira resposta para
um problema filosófico - em outras palavras, a justificação trata do suporte ou defesa de uma
70
O conceito de alegação aqui explicado é exatamente o mesmo introduzido pela Ann Baker em Introdução ao
Pensamento Filosófico (ver Baker, 2010).
39
alegação. Caso não haja ao menos um único motivo para tomar a alegação como verdadeira,
logo, simplesmente não se pode aceitar tal alegação.
Defendo que a alegação é um EEF, justificando-me do modo que aqui se segue. Através
de um dos critérios a serem atendidos relativamente a tomada de posição exigida pela filosofia,
concluímos que estudar a história da filosofia é aprender a compreender e formular as alegações
dos filósofos - estudar filosofia, desta maneira, seria aprender a fazer filosofia tal como os
filósofos fazem. Se estudar filosofia é igual a aprender a filosofar e se julgarmos desejável, para
filosofar, a pessoa já ter algum prévio conhecimento sobre história da filosofia, então deve-se
aprender a filosofar ao invés de aprender a história da filosofia, pois ao se aprender a filosofar
também é requerido aprender a história da filosofia - em outras palavras, deve-se aprender a
pensar através do método filosófico ao invés de aprender apenas o conteúdo, pois estudar o
primeiro já implica em necessariamente estudar o segundo. Sucessivamente, visto a alegação
ser boa parte do que constitui a filosofia - ela está simultaneamente no seu conteúdo e método
- e dado que aprender a filosofar implica tanto em pensar a clarificação ou justificação de
alegações quanto compreender e formular as alegações já produzidas pelos filósofos, portanto,
é a alegação um elemento essencial do filosofar por ser impossível filosofar sem alegações.
4.4 Conceito
O quarto e último desses conceitos é o sobre conceito. Um conceito é um termo geral
utilizado pelo pensamento para representar uma parte específica da realidade. Melhor dizendo:
os conceitos são os constituintes do pensamento71. Quando penso no desejo de beber água, vou
em busca de ir em algum lugar que contenha essa coisa de nome água - caso você esteja na sua
casa, vai no bebedouro, na torneira com filtro da pia, pega uma garrafa cheia dela na geladeira,
etc. Caso alguém viesse a perguntar o que é isso que desejo beber, poderei dar uma definição
explícita ou implícita, assim como caracterizá-la. No fim, o que se explicita aqui é que a pessoa
só tem a posse de um conceito caso saiba usá-lo - no exemplo sobre beber água, só é possível
pedir água de alguém se sabemos o que significa água. De uma forma ou de outra, esse exemplo
nos fornece a seguinte pista: os conceitos são os constituintes do pensamento.
71
Estou pressupondo, com relação ao que desenvolverei sobre conceitos, que a linguagem é necessário para o
pensamento. Todavia, tal posição está longe de ser a consensual. Para uma introdução ao estado da arte sobre a
relação entre pensamento e linguagem, especificamente na filosofia analítica, ver SILVA, 2014.
40
Um conceito pode ser tanto aberto ou fechado72 quanto deter uma extensão73 ou
intensão74. Com relação a um conceito ser aberto ou fechado, este será um ou outro dependendo
do conjunto de características fixas advindos das condições necessárias e suficientes requeridas
na definição de um ou outro: se o conceito for fechado, isso significa que este detém tal conjunto
de características fixas advindos das condições necessárias e suficientes; se for aberto, este não
terá isso, ou seja, o conceito aberto é corrigível ou ajustável - o conceito de arte seria um
exemplo de conceito aberto. Além de fechado ou aberto, um conceito possui tanto extensão
quanto intensão. A extensão de um conceito é o total de objetos que este se refere. A extensão
do conceito de roda, por exemplo, são todas as rodas ou são todos aqueles objetos que tem as
intensões de uma roda. A intensão de um conceito são as propriedades que o caracterizam ou
identificam. A intensão de uma roda, por exemplo, seriam a sua forma circular e sua capacidade
de rotacionar - geralmente essa rotação se dá tendo como eixo seu próprio centro.
Se tomarmos a definição inicialmente apresentada quando introduzi o conceito de
conceito, dela pode-se notar que é indispensável – ou até mesmo impossível – pensarmos ou
agirmos sem conceitos. De certa forma, aprendemos conceitos de forma integralmente prática,
onde, frente a erros na sua aplicação, somos corrigidos, refinando o que sabemos deles. Além
disso, dentro do contexto do nosso cotidiano, não sentimos a necessidade de exercer uma
reflexão mais apurada desses conceitos por simplesmente serem os mais básicos, os tomando
como dados. Todavia, muitos desses conceitos – destaque para os conceitos mais básicos - são
tratados em um nível filosófico – ou ao menos tem alguma relação. Como exemplo, é possível
listar os conceitos de realidade, existência, maldade, acontecimentos, sublime, justiça, verdade,
conhecimento, felicidade, raiva, crença, experiência, animais, objetos, natureza, instituições,
etc. O que justifica a filosofia estudar esses conceitos mais básicos – assim como esta é também
uma razão a ser dada para se estudar filosofia - é que esta, ao tratar dos problemas mais
fundamentais da realidade, do conhecimento e do valor, acaba por tratar – e produzir – uma
análise da nossa estrutura conceitual mais geral. Em termos mais práticos, quando nos
deparamos com um problema filosófico do tipo “O que é X?”, X concerne a algum desses
conceitos mais centrais. O conceito é um elemento essencial do filosofar por isso: é inviável –
ou inevitável - trabalhar como problemas filosóficos, alegações ou argumentos sem recorrer a
um ou mais conceitos.
72
CONCEITO ABERTO/CONCEITO FECHADO, 2018.
73
EXTENSÃO, 2018.
74
INTENSÃO, 2018.
41
5. Sobre uma definição de filosofar
Partindo do que aqui se sabe sobre os Elementos Essenciais do Filosofar – tanto da sua
constituição metafísica quanto dos que o satisfazem -, estou em condições de apresentar uma
resposta para o seguinte problema: o que é o filosofar? Sendo o filosofar composto por quatro
elementos essenciais – problema filosófico, argumento, alegação e conceito -, é possível
oferecer um modelo que represente de forma geral a articulação desses elementos. Tal modelo
de filosofar pode ser representado através da seguinte definição recursiva:
Esse modelo em forma de definição recursiva não é conclusivo, ou seja: não descreve
com precisão universal o que sempre ocorre quando uma pessoa está a filosofar. Por mais que,
provavelmente, seja esse o passo a passo do filosofar que pode vir a mente de um praticante da
filosofia, é possível vir a mente do respectivo praticante uma outra ordem de articulação dos
elementos essenciais. Um praticante da filosofia, por exemplo, ao ler um texto filosófico, pode
primeiramente entrar em contato com uma ou mais alegações, depois os argumentos que
justificam as alegações e a partir daí ser apresentado aos conceitos em discussão e ao problema
filosófico que as alegações visam responder. Entretanto, por mais que seja possível desenhar
outros modelos de articulação dos elementos essenciais do filosofar, estes, de alguma maneira,
sempre chegam ao modelo proposto na definição recursiva anteriormente apresentada – e por
isso este foi o modelo apresentado. Por conseguinte, tendo por base o modelo de filosofar
apresentado, apresento a minha definição de filosofar:
75
Explico isso depois no item 6.
42
Por mais que já haja condições de prontamente entender a definição apresentada,
algumas clarificações adicionais precisam ser feitas para o seu pleno entendimento. Por mais
que o argumento não esteja explícito na definição de filosofar, este está implícito como a
resposta de uma alegação frente a um problema filosófico. Logo, quando respondemos um
problema filosófico por meio de uma alegação, esta é justificada por mais outras alegações. A
sustentação dessa alegação a torna a conclusão de um argumento. De uma forma ou de outra,
fornecer uma boa resposta a um problema filosófico incorre necessariamente em argumentar.
Com relação a reflexão, esta é feita não apenas individualmente, mas sobretudo coletivamente.
Isso significa que, além das competências esperadas pelos praticantes da filosofia em sua forma
e aplicação individual, a filosofia é uma atividade coletiva, principalmente pública: cada um
dos praticantes compartilha os resultados de suas investigações com os outros em prol de uma
ampla discussão, onde o consenso de todos deferirá se a alegação apresentada como resposta
ao problema filosófico é a melhor resposta – ou ao menos uma resposta relevante frente a outras
respostas apresentadas.
A filosofia é, de certa forma, uma atividade: quando um praticante seu está a filosofar,
está a pensar de uma forma muito específica. Entender a filosofia dessa forma significa que
grande parte da mesma pode ser descrita quando houver clareza sobre a sua prática. Sendo esse
o caso – pois esbocei um método filosófico e, a partir disso, apresentei uma definição de
filosofar -, arrisco apresentar uma definição de filosofia a partir da clareza conceitual obtida até
esse ponto da pesquisa. Também explico aqui o que entendo por rede conceitual e seus
conceitos nucleares – dois termo que deixei de esclarecer na seção anterior.
A filosofia é um conceito aberto: seja qual for sua definição, ainda existe disputa sobre
as suas condições necessárias ou suficientes que permitam fixar sua intensão e revelar sua
extensão76. Assim sendo, se o problema é "o que é a filosofia?", podemos discuti-la e respondê-
la de duas maneiras: como uma questão descritiva ou como uma questão normativa. A primeira
maneira compete a dizer o que a filosofia (atualmente) é. A segunda maneira compete a dizer
o que a filosofia deveria ser. Aqui se pretende responder esse problema dando uma resposta
normativa - e ao se responder o problema dessa forma, também será ofertado uma descrição da
natureza da disciplina.
76
Para uma compreensão introdutória e ainda sim competente relacionada a definição de filosofia, ver
OVERGAARD; GILBERT; BURWOOD, 2013, p. 17-44.
43
Uma definição de filosofia deve atender os seguintes critérios: (1) descriminar qual
modalidade epistêmica lhe é mais adequada, (2) abarcar todo o conhecimento filosófico e (3)
fornecer uma descrição geral e apropriada sobre o que fazem aquelas pessoas que a praticam.
Mais detalhes sobre esses critérios é necessário para a apresentação de uma boa definição de
filosofia – e é isso que será discutido a seguir.
O critério (1) concerne ao modo de conhecer que a filosofia tem por base. Existem duas
modalidades epistêmicas: a priori e a posteriori. A primeira pode ser definida da seguinte
forma: “Uma dada proposição é conhecível a priori por um dado agente cognitivo se, e só se,
esse agente pode conhecer essa proposição sem recorrer à experiência empírica” – melhor
dizendo: se conhece apenas através do pensamento. A segunda, seguindo o modelo da primeira,
pode ser definida da seguinte forma: uma dada proposição é conhecível a posteriori por um
dado agente cognitivo se, e só se, esse agente pode conhecer essa proposição através da
experiência empírica.
Sabido de tudo isso, satisfazer esse critério requer apontar qual das duas modalidades
pode ser defendida como a mais apropriada para a filosofia. Um indício apresentado como
conclusivo para essa questão está nela ser “realizada a partir da poltrona”. Tal expressão
significa que a prática dessa disciplina – o filosofar – opera apenas pelo pensamento. Os
praticantes da filosofia, se os observarmos com atenção enquanto filosofam, não parecem estar
fazendo algo parecido com o que um cientista faz: para eles, basta terem e articularem
mentalmente um grande conjunto de competências conceituais enquanto envolvidos na
resolução de algum problema filosófico – e, se disponível, uma poltrona para sentarem
enquanto estão a refletir.
À vista disso, foi tradicionalmente tomado por dado a filosofia ser conhecível e produzir
conhecimento a priori, sendo isso considerado não somente a sua modalidade epistêmica mais
adequada como também aquela que a aproxima de outras disciplinas que também operam desse
modo – a lógica e a matemática seriam exemplos disso. Todavia, surgiu recentemente um
movimento metafilosófico de nome filosofia experimental77, onde aqueles que encampam essa
abordagem defendem o uso da modalidade epistêmica a posteriori. Ou seja: a filosofia operaria
inicialmente pelo pensamento, mas teria os seus resultados daí originados testados através de
experimentos – adicionando em seu método as abordagens geralmente usadas nas ciências
sociais e cognitivas.
77
Para uma introdução a referida abordagem, ver WYKSTRA (2019) e KNOBE; NICHOLS (2019).
44
O critério (2) se refere a todo o saber geralmente reconhecido como filosófico pelos seus
praticantes – principalmente os já produzidos, mas também se leva aqui em conta aqueles em
produção e a serem produzidos. Tal saber foi expresso principalmente através das mais variadas
formas de textos – poemas, ensaios, diálogos, tratados, aforismos, etc. Mais recentemente, tal
expressão se estendeu para o áudio e o vídeo – programas de café filosófico na TV, canais de
divulgação filosófica no Youtube, podcasts específicos sobre filosofia e programas de rádio no
formato de entrevista, etc. Satisfazer esse critério, por conseguinte, requer englobar uma certa
prática realizada por mais de 2 mil e 800 anos – iniciada no século VII a.C por Tales de Mileto.
O critério (3) trata sobre a definição de filosofia ter em sua formulação algum indício
claro do que se faz quando se diz que está a filosofar. Para a definição não ficar muito longa, o
mínimo que se pede é uma indicação bastante geral, de preferência implícita, de modo a dar
alguma boa ideia sobre como procede um praticante da filosofia. Assim sendo, satisfazer esse
critério requer não apenas certa sutileza como também uma cristalina concepção de filosofar.
Após a clarificação de tais critérios e visando satisfazê-los, resta apresentar a minha
definição de filosofia:
78
Para saber mais sobre externismo, ver O'BRIEN, 2013, p. 173-193.
45
mundo, constatar - descrever um certo estado-de-coisas - ou performar - executar uma certa
ação79. Em outras palavras: ter a posse de um conceito implica em saber usá-lo.
O que afirmo ser o núcleo é o conjunto de conceitos localizados no centro de nossa rede
conceitual que criam e gerenciam as suas funções mais básicas. Por mais que outras áreas do
conhecimento também tratem de certos conceitos centrais, a filosofia seria aquela disciplina
que prioritariamente trabalharia sobre o referido conjunto de conceitos nucleares. Logo, quase
todos os conceitos mais abrangentes e abstratos que pressupomos e usamos durante o cotidiano
são o objeto de estudo da filosofia - por exemplo: realidade, conhecimento, ação, crença,
verdade, justiça, fé, lei, objeto, linguagem, significado, estado, poder, vida, beleza, arte,
emoção, mente, intenção, etc. No fim, são esses os conceitos que sempre importamos durante
as nossas ações do nosso dia a dia.
Uma análise cautelosa é o esclarecimento sistemático e a priori de todos os conceitos
nucleares por intermédio de suas respectivas definições, sendo isso feito pelo estudo e
estabelecimento das especificações dos referidos conceitos. Isto posto, esse processo de
decomposição conceitual é responsável pela elucidação dos conceitos em questão e posto em
funcionamento por meio de alegações, argumentos e problemas filosóficos. A análise de nossos
conceitos nucleares realizada pelos praticantes da filosofia, portanto, tem alto valor cognitivo
em virtude da clareza conceitual que estes nos fornecem, sendo consequência disso um ganho
qualitativo pessoal e coletivo em uma quantidade incalculável de ações diárias - em outras
palavras: acorre um ganho em nossa saúde conceitual. Por fim, o uso pleno da análise
conceitual80 implica (1) em uma maior precisão e clareza de nossos conceitos nucleares - graças
ao recurso sistemático a argumentação e outras ferramentas conceituais advindos da filosofia -
, (2) e a possibilidade de discutir pública e objetivamente os seus resultados, refinando-os ou
descartando-os, permitindo o progresso da filosofia.
79
Para saber mais sobre nossas ações linguísticos, ver PENCO, 2006, p. 152-164.
80
Uma introdução a análise conceitual pode ser encontrada em MARCONDES, 2004. Para uma caracterização
competente da metafilosofia que faz uso da análise conceitual – filosofia analítica -, ver RECANNATI, 2019.
46
CONCLUSÕES
47
REFERÊNCIAS
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