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AULA 1
Exposição geral do tema da disciplina
Não é de hoje que os teóricos da história vêm buscando reformular as bases que
fundamentaram a constituição da ciência histórica desde o século XIX.
Em termos gerais, essas reflexões partem da percepção de que a realidade histórico-social
da contemporaneidade já não se adequa mais aos padrões de representação estabelecidos
pela historiografia oitocentista, incluindo as noções de acontecimento, agência,
temporalidade, subjetividade, narrativa e autoria.
O deslocamento dessas noções é um dos fatores daquilo que muitos autores vêm
chamando de “crise da história” – a historiografia parece não mais responder aos dilemas
e necessidades de seu próprio tempo.
Nesse quadro, uma saída possível seria repensar qual a relação entre história e a
existência humana.
Existência e tempo
Henri Marrou: “O passado só pode ser conhecido se de alguma maneira se encontra em
relação com a nossa existência” (Do conhecimento histórico, S./D., p.225).
Existência é um conceito específico da história da filosofia, e não se confunde com as
noções de “sujeito”, “subjetividade”, “indivíduo”, “ego”, etc.
Existência refere-se antes de tudo ao Ser. Ela não se reduz a uma entidade objetiva e
identificável (“indivíduo”), nem mesmo às funções corporais, psíquicas e afetivas que a
compõem (“subjetividade”). A existência não é uma simples propriedade entre outras do
humano, mas conforma a sua própria essência.
Nicola Abbagnano: “Em geral, qualquer delimitação ou definição do ser, ou seja, um
modo de ser de algum modo delimitado e definido. Este, que é o significado mais geral,
também pode ser considerado um dos significados particulares do termo, do qual é
possível, então, enunciar três significados: 1) o modo de ser determinado ou
determinável; 2) o modo de ser real ou de fato; 3) o modo de ser próprio do homem”
(Dicionário de filosofia, p.398).
o 1- Esse sentido está presente tanto na linguagem comum quanto nas diversas
linguagens científicas (matemática: uma entidade existe quando sua solução não
admite nenhuma contradição; direito: uma lei existe quando é definida pelo
Estado).
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Por isso que as mudanças históricas sobre a experiência do tempo implica sempre a
abertura de novos questionamentos sobre a existência humana
O que nos importa é menos avaliar se esse prognóstico poderá ser ou não realizado, mas
de perceber como as noções de existência, temporalidade e finitude são mutuamente
implicados. A suspensão de uma delas implica a suspensão das demais.
A temporalidade é originária ao ser do humano, e a finitude é o horizonte de possibilidade
de sua temporalização. O ser é temporal porque é finito.
Mas esse fim não é apenas a morte; o seu outro “fim” é o seu “começo”. Em seu existir, o
humano encontra-se estendido entre nascimento e morte, e essa ex-tensão indica um certo
modo de constância do si mesmo – o que não deve ser compreendido como a mera
mesmidade de uma “essência” simplesmente dada.
A essa constância de si, Heidegger chamou de historicidade (Geschichtelichkeit).
Corresponde ao ser-para-a-morte não simplesmente “ter” objetivamente uma história, mas
de ser ele mesmo a sua história, o seu passado.
A historicidade indica o ser-histórico do humano. O passado não é o que não é mais, mas
o que ainda vigora por ter sido, inseparável de um movimento dinâmico com o porvir e a
atualidade.
Temporalidade, finitude e historicidade são estruturas existenciais convenientes ao
Dasein, e a suspensão de uma delas implica a suspensão das demais – como podemos ver
na fala de FM-2030.
Historicidade e memória
Essa noção de historicidade será central para o nosso curso.
Historicidade, neste sentido, indica primeiramente um modo de ser próprio do homem.
Vamos também nos referir a essa dimensão como “ser-histórico”.
Ora, em relação ao ser-histórico, como podemos nos abrir para ele? Como a historiografia
poderia tematizar e investigar o ser-histórico de maneira própria?
A hipótese geral que iremos desenvolver no curso consiste em pensar a memória como
uma forma privilegiada de abertura para o ser-histórico.
A abertura para o ser-histórico pode se dar de diversas maneiras, o que inclui tanto a
variedade de abordagens disciplinares (história, filosofia, literatura, psicologia,
neurociências), como também em relação às formas (cognitiva, afetiva, pessoal, coletiva,
etc.) de realizar essa abertura.
Essa pluralidade coaduna-se com a pluralidade do próprio fenômeno da memória.
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Podemos então ampliar a noção de historiografia para abarcar aquelas produções culturais
que tematizaram de maneira privilegiada a existência humana em seu ser-histórico.
Dentre essas produções, destaca-se a literatura de memórias, um campo discursivo vasto e
que, em anos recentes, vêm chamando cada vez mais atenção entre estudiosos de
diferentes áreas – ao ponto de muitos autores falarem em um “boom memorial” na cultura
contemporânea.
O memorialismo possui um estatuto epistêmico e literário próprio, irredutível à tradicional
dicotomia entre história e ficção.
Considerar essa especificidade e decorrer suas implicações para a analítica da
historicidade será uma questão fundamental ao longo do curso.
Isso exige, em primeiro lugar, perceber que o estudo crítico desse tipo de escrita exige
procedimentos específicos, em função de características como a posição do narrador e do
personagem, o lugar e a natureza da verdade e da referencialidade do relato, entre outros.
Nos termos de uma analítica da historicidade, o foco principal na interpretação das obras
memorialísticas reside não na estrita verificação das informações apresentadas , mas antes
nas maneiras pelas quais o autor-narrador-personagem abre-se para o seu ter sido e
representa-o na forma de um relato.
E que, ao fazê-lo, toca numa questão que diz respeito não apenas a sua pessoa, mas da
própria existência temporal humana – as maneiras com que o passado, presente e futuro se
entrelaçam na compreensão de si mesmo e do mundo.
Nesse sentido, a tradição memorialística constitui um grande e precioso acervo
documental para uma história das sensibilidades temporais – isto é, as maneiras como os
humanos compreenderam o seu próprio ser-histórico.
O passado que se elabora nessas obras não se esgota no registro da verdade factual, mas
da verdade como experiência, que escapa aos grilhões da metodologia científica moderna.
Essa expansão traz também os seus riscos, como a subjetivação excessiva dos processos
de verdade – o que se faz notar hoje com a expressão “pós-verdade”.
Ora, confrontar esse debate é também crucial para que a historiografia, como campo
acadêmico, possa reafirmar-se como saber importante para a contemporaneidade.
Referências bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 5ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
MARROU, Henri. Do conhecimento histórico. Lisboa: Editorial 233Aster, S/D.
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HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 10ª edição. Petropólis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP:
Editora Universitária São Francisco, 2015.
ARAUJO, Valdei Lopes de. História da historiografia como analítica da historicidade. História
da Historiografia, Ouro Preto, v. 12, n. 3, p. 34-44, 2013.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007.
BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge (UK) Polity Press: 2013.
FM-2030. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Wikimedia, 2017. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/FM-2030>. Acesso em: 29 ago. 2017.
FUKUYMA, Francis. Nosso Futuro Pós Humano: consequências da revolução da
biotecnologia. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultura, 2000.