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1)
Ele permanecia ali – ele, o único átomo de vida em meio aos colossais
monumentos de desolação e decadência. Nem mesmo um urubu, tal qual
um ponto negro, salpicava a vasta abóbada azul do céu, que o sol
esmaltava com seu calor.
Mas, de repente, ele encontrou a voz num grito medonho, que ecoou o
pavor sob as arcadas do domo. Depois, o silêncio dos milênios voltou a
tomar conta das ruínas da misteriosa Kuthchemes.
2)
Além disso, uma voz saía da sombra — uma sibilância grave, tênue,
fantasmagórica, que parecia mais o silvo abominável e suave de uma
serpente do que qualquer coisa que pudesse ser produzida em lábios
humanos. O som e as palavras enchiam Yasmela de um terror tão
intolerável, que ela encolhia e contorcia o corpo esguio como se
estivesse sendo açoitada, como se a contorção física pudesse livrar sua
mente da torpeza insinuante daquela voz.
— Oh, Vateesa, ele veio de novo! Eu o vi, ouvi sua voz! Ele disse que
seu nome é... Natohk! É Natohk! Não é um pesadelo. Ele ficou aqui me
apavorando enquanto as meninas dormiam como se estivessem
drogadas. O que eu devo fazer?
— Princesa, é evidente que nenhum poder mortal poderá lidar com ele,
e o talismã que os sacerdotes de Ishtar lhe deram não será útil. Portanto,
procure o oráculo esquecido de Mitra.
— Que bobagem! — Vateesa não tinha muito respeito pelo que julgava
ser um modo falso de culto. — Mitra certamente prefere ver as pessoas
de pé à sua frente, e não rastejando como vermes ou derramando o
sangue de animais sobre seus altares.
Deixando-se convencer, Yasmela permitiu que a moça a ajudasse a
colocar o vestido leve de seda sem mangas, sobre o qual vestiu uma
túnica do mesmo tecido, amarrada na cintura por uma faixa larga de
veludo. Chinelos de cetim foram calçados em seus pés delicados, e
alguns toques hábeis dos dedos rosados de Vateesa arrumaram seus
cabelos escuros e cacheados. Em seguida, a princesa seguiu a moça,
que puxou para o lado a pesada tapeçaria bordada com fios de ouro e
abriu o ferrolho da porta que ela escondia. Isso as levou para um
corredor estreito e tortuoso, que as duas percorreram depressa até uma
outra porta, desembocando num grande saguão. Lá, encontraram um
guarda com elmo e colete dourados, e uma longa lança nas mãos.
— Antes que você fale, Mitra já sabe o que está na sua mente... —
começou Vateesa.
— Minha filha, não fale; sei do que você precisa — disse a voz, como
ondas musicais batendo ritmicamente em uma praia dourada. — De uma
maneira única você salvará seu reino e, salvando-o, libertará o mundo
todo das presas da serpente renascida das trevas de muitas eras. Vá às
ruas sozinha e coloque seu reino nas mãos do primeiro homem com quem
se encontrar.
Logo à primeira vista, Yasmela percebeu que ele não era kothiano;
quando ele falou, soube que não era sequer hiboriano. Estava vestido
como um capitão dos mercenários e, nesse grupo, havia homens de
muitas terras, tanto bárbaros quanto estrangeiros civilizados. Havia algo
rude naquele guerreiro de sina bárbara. Os olhos do homem da
civilização, seja ele louco ou criminoso, jamais emanariam tal fogo.
Havia odor de vinho no ar que respirava, mas não cambaleava nem
gaguejava.
— Para onde? — O sangue poderia ter lhe subido à cabeça, mas ele
continuava alerta como uma raposa. — Está me levando para algum covil
de ladrões?
Antes que Yasmela pudesse evitar, o homem lhe puxou o manto e ela
ouviu um assobio baixo sair por entre seus dentes. Ele ficou ali parado a
observá-la, como se a visão do traje luxuoso lhe trouxesse subitamente à
sobriedade. Ela notou o ar de desconfiança em seus olhos.
— Princesa!
— Não tenha medo — disse ela. — Sou Yasmela, mas não há razão
para me temer.
— Bem, qualquer homem pode ver isso. O rei, seu irmão, está em uma
prisão ophiriana; Koth trama para escravizar você; aquele feiticeiro
espalha morte e destruição por Shem; e, o que é pior, seus soldados
desertam dia após dia.
— Ele poderia nos pagar com o quê? Com ídolos barrigudos de bronze
que roubou das cidades shemitas? Enquanto você estiver lutando contra
Natohk, pode confiar em nós.
— Como assim?
Ele parou com o copo nos lábios e sorriu. Havia uma nova luz em seus
olhos:
— Servirei sob o comando dele. Uma vida curta e feliz, digo eu. E com
Conan, o cortador de pescoços, no comando, é bem provável que a vida
seja mesmo feliz e curta. Mitra! Eu como meu chapéu se esse sujeito
alguma vez já comandou mais do que um bando de criminosos. Meu
chapéu, minha armadura e tudo o mais!
— E você, Shupras?
3)
— A princesa quis vir conosco. Ela é ágil, mas muito delicada para
este trabalho. De qualquer forma, ela terá que dispensar essas roupas de
seda.
— Não. Uma de suas damas de companhia falou sobre algo que entrou
no palácio à noite e aterrorizou Yasmela. Não duvido de que seja alguma
das feitiçarias de Natohk. Conan, nós lutamos contra mais do que carne
e osso!
— Bem — grunhiu o bárbaro —, é melhor irmos ao encontro do inimigo
do que esperarmos por ele. Ele fitou a longa linha de homens, segurou as
rédeas de seu cavalo e pronunciou, por hábito, a frase dos mercenários
em campanha:
Ela não era mais uma princesa; apenas uma menina cheia de pavor.
Deixara seu orgulho despudoradamente de lado. O terror a fizera procurar
quem lhe parecera mais forte. A potência quase animal que antes a
repelira, agora a atraía.
— Que Bel seque meu braço se eu não estiver falando a verdade! Por
Derketo, Conan, sou um príncipe dos mentirosos, mas não minto para um
velho companheiro. Juro pelos dias em que fomos ladrões juntos na terra
de Zamora, antes de você usar armaduras! Eu vi Natohk; com os outros,
ajoelhei-me diante dele enquanto pronunciava encantamentos para Set.
Mas não afundei meu nariz na areia como os demais. Sou um ladrão de
Shumir, e minha vista é mais aguçada que a de uma doninha. Espiei com
cuidado e vi o véu esvoaçando ao vento; eu olhava quando seu rosto se
descobriu. Eu vi. Que Bel me ajude, Conan, mas eu vi! Meu sangue
congelou nas veias, meus cabelos se eriçaram. O que eu vi queimou
minha alma como ferro em brasa. Não pude descansar até ter certeza.
Viajei até as ruínas de Kuthchemes. A porta do domo de marfim estava
aberta; à entrada, havia uma grande serpente, atravessada por uma
espada. Dentro do domo, vi o corpo de um homem, tão enrolado e
distorcido que, a princípio, foi difícil reconhecê-lo. Era Shevatas, o
zamoriano, o único ladrão do mundo que eu reconheceria superior a mim.
O tesouro estava intocado, em pilhas reluzentes ao redor do corpo. E só.
4)
— Eles nos superam em número. Além disso, não há água lá. Vamos
acampar no platô...
— Idiotas! Seus cantis logo estarão vazios, e eles terão que subir
novamente até o poço, para dar água aos cavalos.
Na frente, havia uma longa fila de carros puxados por grandes cavalos
stígios com plumas na cabeça, resfolegando e empinando, agitados. Os
guerreiros nos carros eram homens altos; seus elmos de bronze vinham
adornados com o símbolo de uma lua crescente, que dava suporte a uma
bola dourada. Havia pesados arcos em suas mãos. Não eram arqueiros
comuns, mas nobres do sul, criados para a guerra e para a caça,
acostumados a derrubar leões com suas flechas.
Depois destes, vinha uma horda que parecia cobrir todo o deserto.
Milhares sobre milhares de filhos guerreiros de Shem: tropas de
cavaleiros com coletes de escamas e elmos cilíndricos, os asshuri de
Nippr, Shumir, Eruk e suas cidades irmãs; multidões de clãs nômades
vestidos de branco.
— Você não devia tê-lo deixado voltar, Conan. Eu... ei, olhe ali!
— Meu senhor, a princesa pergunta por que não segue e apóia o conde
Thespides!
— Porque não sou tão tolo quanto ele — resmungou Conan, que voltou
a se sentar em sua pedra e começou a morder um enorme pedaço de
carne.
Conan olhou com desgosto para a carnificina que seguia o avanço das
fileiras. As bordas da cunha invasora pareciam estar se diluindo e o vale
já surgia salpicado de cadáveres. No entanto, os sobreviventes
prosseguiam como loucos, indiferentes ao fim. Os homens nas colinas já
não davam conta do número imenso de arqueiros inimigos, e procuravam
desesperadamente abrigo. Tomados de pânico com o avanço infatigável
dos invasores, puxavam seus arcos insanamente, com os olhos febris de
lobos encurralados.
— Amalric! — chamou. — Siga este homem! Ele vai conduzir você até o
outro lado do vale. Desça até lá, circunde os rochedos e ataque a horda
por trás. Não fale nada; aja depressa! Sei que é loucura, mas estamos
condenados de qualquer forma; causaremos tanto prejuízo quanto
pudermos antes de morrer! Apresse-se!
Conan deu seu grito inumano, pegou no chão a espada e pulou diante
da carruagem. Mas, assim que ergueu a espada, as patas dianteiras da
besta negra atingiram-no como um raio e o atiraram a vários metros de
distância. O grito apavorado de Yasmela chegou a seus ouvidos enquanto
o carro se afastava em velocidade.
Um urro, que nada tinha de humano, saiu dos lábios de Conan quando
ele se levantou da terra sangrenta, agarrou as rédeas de um cavalo sem
cavaleiro que passava correndo, e pulou na sela sem fazer o animal
parar. Galopando alucinadamente, saiu em perseguição à carruagem de
Natohk. Passou como um furacão pelo acampamento dos shemitas e
seguiu pelo deserto, deixando para trás grupos de seus próprios
guerreiros e de apressados homens do deserto.
Ele atirou seu bastão aos pés de Conan, que recuou com um grito
involuntário. Isso porque, quando o bastão caiu, mudou terrivelmente de
forma; seu contorno desfez-se e contorceu-se, e uma cobra sibilante
apareceu diante do cimério horrorizado. Conan exclamou furiosamente e
golpeou o réptil com a espada, cortando-o em dois. E, ali aos seus pés,
viu apenas os dois pedaços de um bastão quebrado.
FIM