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Entrevista de John Ashbery a

Henri Michaux (1961)


Helena Bento

Henri Michaux não é exactamente um pintor, e também não é


um escritor. É uma consciência: a mais sensível substância já
descoberta para registar a angústia flutuante do dia-a-dia,
minuto a minuto.

Michaux vive em Paris, na rua Séguier, no coração de um


pequeno distrito de mansões aristocráticas em ruínas
misteriosamente silencioso e apagado, apesar da proximidade
de St. Germain-des-Prés e do Bairro Latino. Para evitar que se
desmoronem, foi instalado um andaime de madeira nas escadas
do hôtel particulier do século XVII, em que vive. O apartamento
de Michaux parece ter sido separado de outro maior e, pese
embora a arquitectura e a presença de móveis antigos e
ilustres, que lhe conferem um traço distintivo, o ambiente é
neutro. As paredes não têm cor, e o jardim exterior tem algo de
fantasmagórico.

Há apenas quadros: uma obra de Zao Wou-ki e um quadro


chinês, que representa, se quisermos, um cavalo. Tanto um
como outro parecem estar ali por casualidade: «Não vale a pena
tirar conclusões a partir deles». O único objecto digno de
referência é um enorme e sofisticado rádio: assim como muitos
poetas e pintores, Michaux prefere a música.

Detesta entrevistas, e parecia incapaz de se lembrar por que


aceitou responder a esta. «Mas já que está aqui, pode
começar». Sentou-se de costas para a luz, de modo que se
tornava difícil vê-lo; protegia o rosto com a mão e observava-me
pelo canto do olho. Nada de fotografias. Nem de retratos seus
para publicar com a entrevista. Para si, os rostos exercem uma
fascinação atroz. Foi, aliás, Michaux quem escreveu: «Um
homem e o seu rosto é um pouco como se estivessem a
devorar-se mutuamente sem parar». Numa ocasião, quando um
editor lhe pediu uma fotografia para publicar num catálogo com
a de outros autores, respondeu: «Escrevo com a finalidade de
dar a conhecer uma pessoa que, aos olhos dos outros, nunca
poderia ter existido». Em vez da fotografia, foi publicada a frase.

No entanto, o rosto de Michaux é doce e agradável. Belga,


nascido em Namur, em 1899, exibe a tez pálida típica das
gentes do norte, e também algo da sua brandura, a que se
opõe, por vezes, um semblante iluminado por um largo sorriso
flamenco e uma inesperada e encantadora gargalhada.

Para Michaux, a pintura suplantou a escrita como meio de


expressão?

Absolutamente. Nos últimos anos realizei três ou quatro


exposições e publiquei três ou quatro livros. Desde que
assumi a pintura faço um pouco mais de tudo, mas não ao
mesmo tempo. Escrevo e pinto em períodos alternados.
Comecei a pintar em meados da década de 1930, em parte
como consequência de uma exposição de Klee a que
assisti, e em parte por causa de uma viagem ao Oriente.
Numa ocasião, quando estava em Osaka, pedi indicações a
uma prostituta e ela respondeu com um desenho
encantador. Toda a gente desenha no Oriente.

 
A viagem foi uma experiência capital na vida de Michaux: dela
resultou Um bárbaro na Ásia [Un barbare en Asie, 1933], além
de todo um novo ritmo de vida e criação.

Sempre soube que havia outra forma de expressão para


mim, embora jamais tivesse imaginado que fosse a pintura.
Mas, enfim, estou sempre enganado em relação a mim
mesmo. Quando eu era novo queria ser marinheiro, e tentei
sê-lo durante algum tempo; mas depois descobri que não
tinha força física necessária. Também nunca pensei em
escrever. C’est excellent, il faut se tromper un peu.

Além disso, irritava-me tudo o que era acessório na pintura.


Os artistas agem como primas-donas; levam-se demasiado
a sério, e têm todos esses acessórios: as telas, os
cavaletes, os tubos de pintura. Se eu pudesse escolher,
teria preferido ser compositor. Mas para isso é preciso
estudo. Se houvesse, no entanto, alguma forma de entrar
directamente num teclado… A música desperta a minha
insatisfação. Os meus desenhos a tinta não são mais do
que ritmo. A poesia não me satisfaz tanto como a pintura,
mas é possível que existam outras formas.

Quais são os artistas mais importantes para si?

Admiro a obra de Ernst e de Klee, mas isso, por si só, não


me faria querer começar a pintar. Não aprecio tanto os
estadunidenses, como Pollock e Tobey, mas é certo que
criaram um certo ambiente em que podia expressar-me.
São instigadores. Deram-me a grande permissão (la grande
permission). Assim também com os surrealistas, que
apreciamos não tanto pelo que escreveram, mas por terem
permitido que toda a gente escrevesse o vai na cabeça. E,
como é evidente, os pintores clássicos chineses, que me
ensinaram aquilo que podia fazer apenas com alguns traços
e signos. Mas, no geral, não acredito muito em influências.
Podemos ter o prazer de ouvir as vozes das pessoas na rua,
mas não é isso que vai resolver os problemas. Quando algo
é bom, fica-se distraído do problema.

Alguma vez sentiu que a sua poesia e pintura eram duas formas
diferentes de expressão de uma única coisa?

Ambas pretendem expressar uma música. Mas a poesia


também trata de expressar uma verdade não lógica; uma
verdade diferente da que se lê nos livros. A pintura é
distinta; não tem nada que ver com a verdade. Nos quadros
crio ritmos, como se dançasse. Isso não é uma
verdade (vérité).

Perguntei a Michaux se considerava que a experiência com a


mescalina havia influenciado a sua arte, para além dos
desenhos que fez sob o efeito da mesma, reunidos num
conjunto intitulado dessins mescaliniens, e que, pela
concentração hipersensível de linhas insubstanciais, como
filamentos, apresentam em determinadas zonas um aspecto
muito diferente do que apresenta a obra abrupta e dinâmica que
realiza em condições normais. «A mescalina aumenta a tua
atenção por tudo; pelos detalhes, pelas sucessões terrivelmente
rápidas.»

Ao descrever uma destas experiências, no seu recém-vindo Paix


dans les brisements, escreveu: 

O meu desassossego era grande. A devastação, maior. A


velocidade, ainda maior… Uma mão duzentas vezes mais
ágill do que a mão humana não seria suficiente para seguir
o curso acelerado daquele inextinguível espectáculo. E
tínhamos de segui-lo. Não se pode conceber um
pensamento, um final, uma figura, para depois os explorar
e fazer com que sirvam de ponto de partida ou inspiração
ao improviso. Todo o poder se esgota neles. É esse o preço
da sua velocidade: a independência.

Também falou sobre a distância sobre-humana que


percepcionou ao estar sob o efeito da mescalina, como se
pudesse observar o mecanismo da sua própria mente a partir de
uma certa distância. Esta distância pode ser terrível, mas numa
ocasião traduziu-se numa visão de beatitude, a única em toda a
sua vida, que descreve em L'Infini turbulent: «Vi milhares de
deuses (…). Tudo era perfeito (…). Afinal, não tinha vivido em
vão (…). A minha existência fútil e errante entrava, finalmente,
na estrada milagrosa.

Este momento de paz e satisfação nunca lhe acontecera. Não o


repetiu. «Já basta ter sucedido uma vez». Foi uma experiência
que não se prolongou para além de um ano; pelo menos que ele
saiba. «Talvez tome outra vez quando voltar a ser virgem»,
disse. «Mas isto são coisas para fazer apenas de vez em quando.
Os índios fumavam o cachimbo da paz nas grandes ocasiões.
Hoje em dia as pessoas fumam cinco ou seis maços de cigarros
por dia. Como se pode experimentar alguma coisa assim?»

 A casa começara a ficar escura e, no exterior, as árvores do


jardim pareciam fazer parte do lodoso território metafísico que
descreve em Mes propriétés. Insinuei que na sua obra aparece
apenas a natureza. «Isso não é certo», disse. «No caso dos
animais, sim. Gosto dos animais. Se alguma vez for ao seu país,
será sem dúvida para visitar os jardins zoológicos» (a única vez
que visitou os Estados Unidos foi em 1920, era ainda
marinheiro, e esteve apenas em Norfolk, Savannah e Newport
News).

Numa ocasião, em Frankfurt, deixei escandalizado o


director do museu onde estavam, por esses dias, expostos
alguns trabalhos meus, porque lhe pedi que, nas duas
horas que tinha livres, me falasse sobre o jardim botânico,
e não sobre o museu. Na verdade, era um jardim
encantador. Mas desde que tive a experiência com a
mescalina, os animais já não me inspiram qualquer
sentimento de fraternidade. O espectáculo da minha mente
a trabalhar de algum modo me tornou mais consciente da
minha própria mente. Já não sinto empatia com um cão,
porque ele não tem mente. É triste…

Falámos sobre os meios que utiliza. Trabalha com óleo e


aguarela, mas prefere a tinta da china. Serve-se com frequência
de grandes folhas brancas de desenho que, ora nos chegam
preenchidas de pequenos nus negros, ora surgem com figuras
vagamente humanas, dispersas, que evocam alguma batalha ou
peregrinação desesperada. «Com a tinta da china posso fazer
pequenas formas muito intensas», dizia. «Mas tenho outros
planos. Entre outras coisas, tenho estado a pintar quadros com
tinta chinesa sobre tela. É entusiasmante, porque com uma
mesma pincelada, num mesmo instante, posso ser ao mesmo
tempo preciso e difuso. A tinta é directa; não se corre qualquer
risco. Não tens de lutar contra a rapidez do óleo com todos os
acessórios da pintura.»

É nessas telas que Michaux costuma pintar três largas franjas


verticais, utilizando pouca tinta para conseguir produzir um
efeito de desvanecimento. Nesse meio difuso, flutuam dezenas
de figurinhas desesperadamente articuladas: aves, homens,
caules, animadas pela mesma energia intensa dos desenhos,
mas delineados de forma mais deliberada.

Estes óleos parecem cumprir, melhor do que as demais obras,


as suas intenções pictóricas, tal como as formulava
recentemente na revista Quadrum:

Em vez de uma imagem que exclui as outras, eu gostaria


de ter desenhado os momentos que, postos lado a lado,
fazem a vida. Expor a frase interior, uma frase que não tem
palavras, para que vejamos uma corda que se desenrola
sinuosamente e que acompanha intimamente tudo o que
nos afecta, seja desde o exterior ou desde o interior. Queria
desenhar a consciência da existência e o fluxo do tempo.
Como quando medes a pulsação.

Publicada originalmente na revista ArtNews, em Março de 1961

http://www.enfermaria6.com/blog/2013/11/25/entrevista-de-
john-ashbery-a-henri-michaux-1961

acesso em 11 06 2017

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