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O CÓDIGO CIVIL DA ALEMANHA (BGB) E A LEI

FUNDAMENTAL *

Jörg Neuner

Doutor e Livre-Docente em Direito

Professor Titular de Direito Privado, Filosofia do Direito e Direito do Trabalho na Universidade


de Augsburg, Alemanha

SUMÁRIO:  I. Introdução.  II. A relação hierárquica.  1. A hierarquia das normas.  2. A concorrência das
normas.  a) A tese da disparidade.  b) A tese da identidade.  III. A ordem fundamental formal.  1. Os
titulares de competências.  2. A relação concorrencial.  IV. A ordem fundamental material.  1. A proteção
da dignidade humana em conformidade com o artigo 1º da LF  **.  a) A eficácia externa imediata.  b) Os
limites da desistência.  aa) Interesses de terceiros.  bb) Interesses de bem-estar da coletividade.  cc)
Interesses próprios.  2. A proteção da liberdade de acordo com os artigos 2º e seguintes da LF.  a) Os
direitos fundamentais como direitos de defesa.  b) Os destinatários dos direitos fundamentais.  aa) O
legislador jusprivatista.  bb) A jurisprudência jusprivatista.  c) Os direitos fundamentais como deveres de
proteção.  aa) A fundamentação.  bb) A estrutura dos deveres de proteção.  3. A tutela de interesses
sociais em conformidade com o artigo 1º, inciso II, da LF.  a) A norma contida no artigo 1º, inciso II, da
LF.  b) A legitimação dos direitos humanos sociais.  c) O sistema dos direitos humanos sociais.  d) A
autonomia dos direitos sociais.  V. A posição do Tribunal Constitucional Federal.  1. O controle de atos
legislativos.  2. O controle de atos judiciários.  VI. Consideração conclusiva.

I. INTRODUÇÃO

 
 

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Em 1950 Gustav Böhmer afirmou: "O Direito público passa, o Direito


Privado permanece." 1 A partir dessa perspectiva uma palestra sobre o
tema "O BGB sob a LF" parece ser relativamente infecunda, importando
essencialmente mostrar que a Constituição assegura os valores
tradicionais, alegadamente apolíticos do Direito Privado 2. O mesmo
autor, todavia, escreveu também a seguinte frase em 1941: "Desde que a
visão de mundo do nacional-socialismo passou a orientar o sentimento
popular, o teor dos 'bons costumes' também é determinado por
ela." 3 Entrementes deveria fazer parte do conhecimento consolidado que
o Direito Privado no passado não foi a rocha inamovível em meio à
tempestade deflagrada pelos diversos regimes, mas esteve exposto em
todos os lugares a implementações ideológicas, tendo sido
codeterminado por projetos políticos. 4 Por isso a relação entre o BGB e a
LF é extremamente complexa e constitui atualmente um fórum central de
desenvolvimento e reformulação de controvérsias sobre os fundamentos
da ciência jurídica. 5 A complexidade já inicia no plano hermenêutico, na
medida em que a LF emprega diversos conceitos tradicionais de Direito
Privado, ao passo que inversamente também algumas normas mais
recentes do Direito Privado só podem ser compreendidas diante do pano
de fundo da Constituição. Além disso, é característico que a LF, por um
lado, estabelece critérios de aferição no tocante a conteúdos, mas
constitui, por outro lado e simultaneamente, também uma ordem de
competências que assegura espaços concorrentes de liberdade aos
atores do Direito Privado, a saber, aos sujeitos jusprivatistas individuais,
bem como ao legislador jusprivatista. A tudo isso se sobrepõe ainda, no
plano do Judiciário, a questão sobre até que ponto o Tribunal
Constitucional Federal ou os Tribunais especializados estão
vocacionados para serem guardiães do Direito Privado e do Direito
Constitucional. Nas reflexões subseqüentes esse problema deverá ser
analisado em passos distintos.

II. A RELAÇÃO HIERÁRQUICA

O ponto de partida é a constatação de que a LF antecede, na condição


de "lex fundamentalis" 6, o Direito Privado como direito "ordinário".

1. A hierarquia das normas

 
 

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A idéia de uma tal estrutura do ordenamento jurídico em vários degraus,


encimada pela Constituição, baseia-se na suposição de um caráter
vinculante ao menos presumido das leis estatais. É certo que em termos
de teoria das fontes do direito podemos imaginar também modelos
jusnaturalistas de ordenamento ou modelos derivados da história, mas o
seu primado não produziria apenas perdas maciças de segurança
jurídica, mas seria, sobretudo, também incompatível com os princípios
fundamentais, genericamente consensuais, do Estado definido pela
soberania popular e divisão dos poderes. Se, por conseguinte, partirmos
de um primado prima facie de normas estatais, a posição da Constituição
como lex superior resulta, já em termos de imanência sistêmica, dos
artigos. 1º, inciso III, 20 inciso III, e 100, inciso I, todos da LF, bem como
de toda a pretensão de validade da LF. 7 Além disso, é também
novamente uma conseqüência do princípio da divisão dos poderes, bem
como dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, que decisões
do pouvoir constituant enquanto atos de autovinculação fundamental-
democrática erigem barreiras à maioria parlamentar simples. 8

2. A concorrência das normas

Contra o modelo de uma supremacia da Constituição costumam ser


apresentadas sobretudo duas objeções de ordem metódico-construtiva.

a) A tese da
disparidade

O núcleo dessa antítese pode ser formulado nos seguintes termos: os


direitos fundamentais e o Direito Civil não possuem nenhum objeto
comum de regulamentação, encontrando-se, portanto, justapostos sem
nenhuma relação; daí a inexistência liminar de problemas de
concorrência. 9 De acordo com essa antítese, o Direito Privado
representa um sistema autárquico e assegura os valores decisivamente
importantes já a partir de si mesmo. Do ponto de vista da crítica da
ideologia essa perspectiva suscita, no entanto, imediatamente a pergunta
de como os valores fundamentais podem ser derivados isoladamente do
Direito Privado, pois o conceito de Direito Privado afirma, em delimitação
ao de Direito Público, tão-somente que nenhum titular de soberania na
sua qualidade de titular do poder público participa de uma relação
jurídica. 10 Tal descrição formal não equivale a duvidar da autonomia da
qual, em princípio, goza o Direito Privado, mas o Direito Público e o
Direito Privado assentam num pedestal comum de princípios jurídicos
fundamentais, aos quais pertence, nomeadamente, o mandamento do
respeito recíproco. 11 Esse fundamento genérico é necessário devido à
simples razão de o Direito Privado ser definido apenas negativamente
pela ausência de titulares de soberania, não podendo, por conseguinte,
nem definir a priori a partir de si mesmo quem detém o status de sujeito
jusprivatista. Só assim se pode, e.g., explicar que em períodos
obscurantistas do Direito Privado tenha sido discutida a possibilidade de
restringir a capacidade jurídica em conformidade com BGB § 1 aos
„companheiros de etnia" [Volksgenossen] *. 12

 
 

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Acresce que o valor central da autonomia privada somente se desenvolve


efetivamente por meio da legislação estatal na forma de normas de
competência. Mesmo se consideramos a autonomia privada como
possibilidade de formatacao (Gestaltung) que precede o direito positivo,
ela carece do reconhecimento em princípio e de um detalhamento maior
por parte do ordenamento jurídico. 13 De resto, a garantia mais ampla
possível de espaços de liberdade individual não pode ser efetivada sem
justiça distributiva. 14 Conseqüentemente, a autonomia privada é um valor
categorialmente autônomo, mas simultaneamente vinculado (o valor) a
essa autonomia coletiva exercida em conjunto pelos cidadãos no âmbito
da legislação. De resto, é historicamente característico que o legislador
jusprivatista exerceu múltiplas vezes a função de constituinte
propriamente dito, 15 mas isso por sua vez não altera em nada a ordem
hierárquica constituída pelo soberano atual, segundo a qual princípios
constitucionais divergentes têm primazia sobre a lei ordinária.

b) A tese da identidade
Na argumentação subseqüente uma concorrência de normas é
contestada também inversamente com o argumento de que os valores
fundamentais do ordenamento jusprivatista burguês foram absorvidos
pela LF, existindo assim uma congruência em larga escala. 16 Essa tese é
correta na medida em que diferentes conceitos de direito constitucional,
como "propriedade" ou "família", só são explicáveis se considerarmos a
prévia definição jusprivatista do seu conteúdo. Por outro lado, essa
inelutabilidade hermenêutica não pode conduzir a uma contestação da
autonomia da Constituição ou da relatividade dos conceitos jurídicos.
Assim a visão orientadora [Leitbild] do Constituinte justamente não foi
apenas o Direito Privado tradicional, mas nomeadamente também a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. 17 Por essa razão o povo
alemão assume os direitos humanos expressis verbis tal como estatuído
no artigo 1º, inciso II, da LF. Acresce, de uma perspectiva histórica, que a
LF de Bonn constitui, de certo modo, uma "anticonstituição" 18 e com isso,
ao mesmo tempo, um "anti-Direito Privado" em relação à ausência de
Direito [Unrecht] característica do nacional-socialismo.

 
 

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Considerando esses objetivos bem concretos, a LF contém, em parte,


valorações essencialmente mais precisas do que o Direito Privado
"simples". Assim é necessário apenas referir, em caráter meramente
argumentativo, a típica legislação nacional-socialista para que possamos
demonstrar o que é definitivamente incompatível com o atual
ordenamento jusprivatista. Em outros campos, os enunciados da
Constituição também são às vezes nitidamente mais precisos em
comparação com o arcabouço conceitual abstrato do BGB. Para verificar
isso exemplificativamente, só precisamos questionar se circunstância de
um turista ser compelido a ver (e tolerar) um deficiente por ocasião de
uma viagem representa, ou não, uma violação do contrato firmado com a
agência de turismo, em conformidade com o parágrafo 651c, do
BGB. ** Este, por sua vez, não fornece orientações prévias concretas a
respeito desta hipótese, mas apenas um conceito abstrato de falha que
não define mais de perto a qualidade a ser apresentada pela prestação
em pauta. Em contrapartida, o artigo 3º, inciso III, frase 2, da LF,
determina por assim dizer more geometrico, que a qualidade da
deficiência, enquanto tal, não pode ser aduzida como critério para uma
prestação deficiente. 19 Tudo somado, nem o argumento da identidade
nem o da disparidade logram abalar o primado da Constituição sobre o
Direito Privado.

III. A ORDEM FUNDAMENTAL


FORMAL

Se assumirmos uma perspectiva primacialmente constitucionalista com


base na posição de primazia, imanente ao sistema, deveremos atentar
inicialmente para a ordem de competências 20 estabelecida pela LF.

1. Os titulares de
competências

 
 

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Por um lado, a LF atribui ao legislador democrático a competência de


editar normas no âmbito do Direito Privado. Em conformidade com o
artigo 74, inciso I, nº 1, da LF o Direito Civil está sujeito aqui à legislação
concorrente. Por outro lado, reconhece-se, no quadro do catálogo dos
direitos fundamentais, também a competência dos sujeitos jusprivatistas
para configurar relações jurídicas com autonomia, isto é, celebrar
contratos, 21 estabelecer disposições testamentárias ou contrair
matrimônio. 22

2. A relação
concorrencial

A relação concorrencial existente entre o legislador e os sujeitos


jusprivatistas é dissolvida pela Constituição mediante recurso a princípios
do Estado de Direito, especialmente mediante recurso aos direitos
fundamentais, porque (e à medida que) estes representam normas
negativas de competência para o Legislativo. Mas nesse tocante não se
pode extrair da Constituição um primado ou uma presunção de
competência em benefício do cidadão individual. Mesmo se
compreendermos a autonomia privada como direito de liberdade a
priori e reconhecermos a autonomia de entidades sociais menores, não
se vincula a isso nem um primado do homo singularis nem uma
preponderância típica de direitos de liberdade, 23 pois a LF parte da idéia
de uma Constituição de uma sociedade aberta e inclui no artigo 79, inciso
III, da LF ***, entre os princípios fundamentais do Estado (especialmente o
do Estado democrático e social de Direito: nota do revisor), a soberania
popular, bem como, em termos iguais, a liberdade do indivíduo. Por isso
a autonomia privada mantém uma relação potencialmente tensa com a
soberania popular, mas simultaneamente significa uma relação de
complementação recíproca, pois o direito à autodeterminação, na sua
dimensão coletiva, também constitui um direito humano.

IV. A ORDEM FUNDAMENTAL MATERIAL

A Constituição não se restringe a regulamentar formalmente uma série de


competências, mas estabelece, paralelamente, uma ordem de princípios
materiais.

 
 

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1. A proteção da dignidade humana em conformidade com o artigo


1º da LF

Se reconstruirmos a decisão dos Constituintes em prol da dignidade da


pessoa humana e de sua proteção, duas diretrizes adquirem
significância: por um lado, a dignidade da pessoa não pode ser violada
apenas por atos contrários à lei, mas também pela injustiça [Unrecht,
literalmente: não-direito] na forma da lei.  24 Um exemplo negativo na área
do Direito Privado é o "Decreto sobre o Emprego de Judeus" do ano
1941. 25 Por outro lado, a dignidade da pessoa não pode ser violada
apenas pela ação do Estado, mas também por cidadãos individuais. Nos
trabalhos preparatórios da Constituição menciona-se o exemplo de um
empresário privado que participa da escravização de trabalhadores. 26 É,
nesse sentido, característico que a LF rechaça um pensamento jurídico
puramente formal, rejeitando assim um positivismo legal rigoroso tanto
quanto uma separação hipertrófica de Estado e sociedade. À guisa de
restrição, devemos acrescentar imediatamente que o artigo 1º, da LF
apenas tutela padrões existenciais mínimos e não pode ser
instrumentalizado para neutralizar estruturas jusprivatistas. Sem essa
base, o Direito Privado naturalmente perderia a sua legitimidade, de
modo que agora importa determinar no detalhe a eficácia do artigo 1º da
LF.

a) A eficácia externa
imediata

De acordo com a doutrina dominante e, no nosso sentir, correta, o artigo


1º da LF produz uma eficácia externa imediata. 27 Para além da intenção
reguladora do Constituinte essa tese encontra respaldo na expressão
literal do artigo 1º, incisos I e II, da LF, assim como no fato de ter sido
incluída no elenco das cláusulas de imutabilidade previstas no artigo 79,
inciso III, da LF. Além disso, também é possível argumentar com base
numa leitura a contrariu sensu do artigo 1, inciso III, da Lei Fundamental,
de acordo com o qual as normas de direitos fundamentais (e a própria
dignidade da pessoa) vinculam todos os órgãos estatais. Em se
considerando uma perspectiva teleológica, é igualmente patente que a
dignidade da pessoa não pode ser violada apenas por medidas do
Estado, mas também por desmandos de sujeitos privados, sendo, neste
contexto, igualmente carente de tutela. 28

 
 

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A eficácia externa imediata do artigo 1º, da LF, significa que também
sujeitos jusprivatistas devem respeitar a vida humana, a integridade
física, bem como o núcleo absoluto da personalidade. Esse último valor
abrange, mais especificamente, a proibição da discriminação em
conformidade com o artigo. 3º, inciso III, da LF, uma vez que justamente
também a concepção de uma sociedade jusprivatista se baseia na idéia
da liberdade e igualdade jurídicas de todos os cidadãos. Assim, para citar
apenas um exemplo, Franz Böhm neutraliza a objeção de que uma
sociedade de Direito Privado encarnaria um mero jogo lotérico,
coerentemente com a referência ao lucro de informação para o agente:
"Agora ele sabe ao menos como as outras pessoas [seine Mitmenschen]
reagiram e tentará extrair as suas inferências dessas reações e organizar
correspondentemente o seu comportamento futuro." 29 Mas justamente
isso é impossível para ele, se ocorre uma fundamentação com base em
fatores objetivos, previamente dados pela natureza, como raça ou
gênero. Muito pelo contrário, a pessoa afetada corre o risco - como a
história documenta de modo impressionante - de perder
sistematicamente seu status de membro da "sociedade de Direito
Privado" com base em uma regra geral. Por isso, a intenção expressa do
legislador constituinte foi, mediante a introdução do artigo 3º, inciso III,
frase 2, da LF, fortalecer não apenas a posição de pessoas portadoras de
deficiências na relação entre Estado e cidadãos, mas, de modo genérico,
na esfera de toda a ordem jurídica e na sociedade. 30 Disso segue, por
exemplo, que um operador de viagens turísticas ou o dono de um
restaurante ou hotel, que rejeita sem razão objetiva [sachlichen Grund]
um deficiente como parte contratante unicamente em virtude da sua
deficiência, está sujeito, por forca da Constituição, a uma contratação
compulsória (Kontrahierungszwang). 31

b) Os limites da desistência

Ao lado da eficácia externa imediata, o artigo 1º da LF ainda apresenta


uma outra especificidade de relevância jusprivatista, subtraindo o cerne
absoluto da dignidade da pessoa e dos direitos humanos também à
disponibilidade irrestrita por parte do próprio titular do direito.

aa) Interesses de terceiros


 
 

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De início, importa distinguir as constelações, nas quais simultaneamente


interesses de terceiros são afetados, da problemática da desistência de
um direito fundamental.  32 Podemos pensar aqui, e.g., na desistência por
parte do pai ao direito de ter contato com seu(s) filho (s) por razões de
cunho patrimonial. A ineficácia de tal negócio 33, em princípio, não
decorre apenas de ponderações de ordem tutelar, em benefício do pai,
mas já advém do interesse da criança em ter contato com ambos os pais,
em conformidade com o parágrafo 1684, inciso I, do BGB, em
combinação com o artigo 6º, inciso II, da LF. Como esse exemplo revela
simultaneamente, existem, tanto no plano cível quanto no plano
constitucional, direitos prestacionais originários diante de terceiros. Por
isso, a própria dignidade da pessoa humana não se deixa reduzir a um
puro direito à autodeterminação, mas é co-definida por componentes
sociais. Um outro exemplo disso é o direito de uma criança de receber da
mãe a informação sobre o seu pai biológico. É certo que esse direito deve
ser ponderado com direitos fundamentais colidentes da mãe 34, mas
ocorre uma violação do artigo 1º da LF quando (e se) uma ponderação é
impossibilitada liminarmente, quando, e.g, por ocasião de uma
inseminação heteróloga, a documentação acerca da pessoa do doador
do sêmen não é desde logo elaborada. 35

bb) Interesses de bem-estar da


coletividade

Além de interesses de terceiros merecedores de tutela, devemos excluir


do conceito da desistência de um direito fundamental restrições de
direitos fundamentais em virtude de interesses legítimos da coletividade.
Neste conceito enquadram-se, e.g., regulamentações que visam proteger
a saúde pública, impedir o desemprego ou ainda garantir a segurança
jurídica e a segurança do tráfego. 36 Mesmo encargos puramente
financeiros podem entrar em cogitação, pois um Estado de Bem-Estar
Social, obrigado em conformidade com o artigo 1º, da LF, a garantir o
mínimo necessário para a subsistência a pessoas carentes deve estar
legitimado a impedir já a limine solicitações desproporcionais de auxílio
material, e.g. por parte de vítimas de acidentes. 37

cc) Interesses
próprios

 
 

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Se nas explanações subseqüentes nos limitarmos à pergunta se a


dignidade da pessoa, por si só, legitima a proteção do titular do direito,
devemos ressaltar, de antemão, que a desistência de um direito
fundamental só entra em cogitação se a pessoa afetada decide em
regime de livre autodeterminação. Esse pressuposto 38 é problemático,
nomeadamente em relações trabalhistas e locativas, pois a pessoa
afetada se vê inserida na relação de um modo existencial. Dúvidas ainda
mais relevantes no concernente ao caráter voluntário de uma desistência
surgem quando alguém aliena, e.g., um órgão do seu corpo. 39 De direito,
sabemos que o Estado assegura o mínimo necessário para a
subsistência, mas no caso de uma análise realista e incluindo o
significado do bem jurídico em pauta devemos supor que a decisão
regularmente sofrerá o influxo de uma forte pressão econômica e social.
Assim, à medida que, com base no disposto no parágrafo 17 da lei sobre
os transplantes de órgãos (Transplantationsgesetz) em combinação com
o parágrafo 134, do BGB, existem aqueles que criticam especialmente a
proibição do tráfico de órgãos como constituindo um paternalismo
ilegítimo 40, acaba por ser ignorado o cunho igualitário deveras majestoso
da lei, já que esta proíbe tanto aos pobres quanto aos ricos o uso
comercial dos órgãos do seu corpo.

Se, contudo, partirmos da premissa de uma livre elaboração da decisão,


mesmo uma tal desistência de um direito fundamental estará sujeita a
restrições objetivas externas, no sentido de que direitos fundamentais
sociais não podem ser disponibilizados integralmente. 41 Isso já se
justifica pelo fato de que, a partir de um critério sistêmico-imanente,
também o regime democrático, de lege lata, igualmente não está à
disposição irrestrita dos envolvidos na relação jurídica. 42 De resto, do
artigo. 1º, inciso II, da LF, também decorre diretamente que uma auto-
interdição no contexto de um negócio jurídico ou outra disposição sobre
atributos humanos elementares não é deixada ao bel-prazer do titular do
direito. Se por um lado, a dignidade humana consiste, de modo expresso,
na sua maior parte, na capacidade de definir tais atributos em regime de
autodeterminação, não há como olvidar que o artigo 1º, inciso II, da LF,
expressamente declara inalienáveis os direitos humanos e não reduz o
indivíduo a "uma acumulação de bens comercializáveis, permutável a
qualquer tempo". 43

 
 

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A Constituição, de tal sorte, repudia toda e qualquer forma de


totalitarismo, razão pela qual podemos ler o artigo 1º, 1ª frase, do
anteprojeto à LF, elaborado em Herrenchiemsee, também no seguinte
sentido: "A economia de mercado existe com vistas ao ser humano e não
este em função do mercado." Conseqüentemente a inalienabilidade dos
direitos humanos também não se fundamenta unicamente na idéia da
maximização da liberdade; 44 muito pelo contrário, ela deriva
abrangentemente da personalidade do titular do direito e implica mais
especificamente uma proteção contra a ausência de esperança. Disso
seguem, em primeiro lugar, barreiras contra a desistência de um direito
fundamental no tocante ao tempo. Um exemplo disso é o princípio
segundo o qual relações de endividamento permanente são denunciáveis
depois de transcorrido um determinado lapso temporal, para evitar uma
vinculação por toda a eternidade. 45 A atual legislação sobre a insolvência
tem um telos similar, na medida em que concede ao devedor depois de
um determinado período de tempo, a perspectiva de um recomeço. Ao
lado dessas restrições na dimensão temporal, diversos atributos
humanos de antemão só se prestam de modo restrito como objetos das
relações jurídicas, 46 o que se aplica, nomeadamente, ao próprio corpo, à
religião, bem como às relações familiares. No caso individual deve-se
respeitar o quanto possível o direito à autodeterminação, de modo que
em vez da ineficácia do negócio jurídico poder-se-ia cogitar também, a
título de intervenção mais suave, de um direito à retratação do negócio ou
a constatação da inexistência dos pressupostos de sua exeqüibilidade. 47
À guisa de resumo, devemos registrar que o artigo 1º, da LF, na condição
de fundamento do ordenamento jurídico, desenvolve uma eficácia erga
omnes obrigando, por conseguinte, também os sujeitos jusprivatistas de
tal sorte que, em parte, também não está à disposição dos mesmos.

2. A proteção da liberdade de acordo com os artigos 2º e seguintes


da LF

Se analisarmos, no próximo passo, a influência dos direitos fundamentais


no Direito Privado, em conformidade com os artigos 2º e seguintes, da
LF, 48 impõe-se distinguir três complexos distintos: cabe identificar, em
primeiro lugar, a finalidade da norma; depois, importa identificar os
destinatários do direito fundamental; por fim, cabe esclarecer se os
dispositivos referidos representam uma regulamentação conclusiva ou se
ainda existem outras influências por parte do Direito Constitucional sobre
o Direito Privado.

a) Os Direitos fundamentais como direitos de


defesa

 
 

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Se formos interpretar os direitos fundamentais segundo os princípios


gerais da metodologia jurídica, todos os canones apontam para uma
função primacialmente defensiva.. A partir de uma exegese literal, bem
como considerando a intenção do legislador e as inferências sistemáticas
decorrentes de regulamentações especiais, tal como o artigo 6º, incisos II
e IV, da LF, segue que os direitos fundamentais objetivam, em primeira
linha, assegurar ao indivíduo uma abrangente margem de liberdade de
ação em regime de autodeterminação e responsabilidade perante si
mesmo. Inversamente isso significa que os artigos 2º e seguintes da LF
em princípio não possuem uma dimensão prestacional e não podem ser
interpretados como direitos fundamentais sociais. 49 No entanto, sob
ponto de vista teleológico, pode-se objetar que a liberdade não subsiste
sem a presença de certos pressupostos e que o gozo dos direitos de
defesa assenta numa dimensão prestacional. Por isso Peter
Häberleinsistiu na necessidade de uma compreensão "realista" dos
direitos fundamentais e considera que os mesmos encontram-se sob uma
"reserva social", mediada pelo princípio do Estado de Bem-Estar Social,
em combinação com o artigo 3º, da LF (que consagra o princípio da
isonomia e o direito geral de igualdade-nota do revisor) 50 Exigências
dogmáticas análogas encontramos significativamente também no Direito
Privado. Assim, sobretudo Manfred Wolf expôs, no seu estudo sobre
"liberdade de decisão em negócios jurídicos e compensação contratual
de interesses", que ao lado de critérios formais também as possibilidades
fático-econômicas da ação pertencem aos pressupostos de validade de
uma declaração de vontade. 51

Tais doutrinas, porém, encontram-se expostas a uma objeção, que é a de


conduzir a uma mistura de princípios divergentes, incorrendo assim
simultaneamente no risco de não considerar suficientemente a lex lata.
De resto, também o discurso científico subseqüente é pouco diferenciado,
se nomeadamente a teoria dos deveres de tutela é enriquecida
automaticamente mediante a adição de componentes sociais, tanto pelos
seus defensores quanto pelos seus críticos. Do ponto de vista do método,
tal constatação de modo nenhum exclui o reconhecimento de direitos
constitucionais sociais. Trata-se, todavia, de um direito constitucional em
larga escala não-escrito, sujeito, portanto, a correspondentes exigências
de fundamentação. 52

b) Os destinatários dos direitos


fundamentais

 
 

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Se, por conseguinte, considerarmos os artigos 2º e ss. da LF


preponderantemente como direitos de defesa, quer dizer, formalmente no
sentido de direitos de liberdade, colocase desde logo a pergunta em torno
de qual o destinatário desses direitos fundamentais.

aa) O legislador jusprivatista

Segundo o teor literal do artigo 1º, inciso III, da LF, o destinatário dos
direitos fundamentais é, em primeira linha, o legislador jusprivatista. O
argumento material em favor da vinculação deste aos direitos
fundamentais está no fato do cidadão individual ser restringido nos seus
direitos de liberdade por normas do Direito Privado de modo similar ao
que ocorre com as normas do Direito Público. 53 Basta mencionar, como
exemplos, as determinações atinentes ao direito que regulamenta as
relações de vizinhança ou ao direito que regulamenta as demissões. No
fundo, o critério de aferição, no sentido da proibição do excesso
[Übermassverbot], também é adequado. Pensemos e.g. em
regulamentações do direito de proteção ao consumidor, que, pelo prisma
da necessidade, devem preservar a autonomia privada no grau máximo
possível, de modo que os direitos de esclarecimento e revogação do
negócio gozam, em princípio, de uma primazia em relação às
intervenções de conteúdo. Além disso, é significativo que medidas
redistributivas mediante o Direito Privado podem atingir cidadãos
individuais de modo puramente acidental, ao passo que o legislador
tributário logra distribuir os ônus sociais de modo justo, de acordo com a
capacidade contributiva do indivíduo. Imaginemos como exemplo que em
vez de um aumento das contribuições de assistência social, financiadas
por impostos, sejam proibidos aumentos dos aluguéis a expensas dos
beneficiários da assistência social. Por essa razão o legislador
jusprivatista chega a estar vinculado aos direitos fundamentais por uma
inferência do tipo 'justamente em virtude disso'.

Ainda que alguns críticos apontem para um esvaziamento e uma perda


de função do Direito Privado, 54 deve-se contestar que o artigo 1º, inciso
III, da LF, somente implementa coerentemente a idéia da liberdade no
âmbito dos direitos fundamentais, um interesse que corresponde
justamente também à compreensão tradicional do Direito Privado. De
resto a problemática da vinculação é precedida pela pergunta se uma
norma jusprivatista contém genericamente uma intervenção em um direito
fundamental.

 
 
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     DOUTRINA ESTRANGEIRA

Assim há diversas normas que apenas detalham um direito fundamental


em benefício de uma pessoa privada, 55 sem restringi-lo às suas
expensas. 56 Deve-se pensar, aqui, e.g., na pretensão de entrega do bem
por parte do proprietário, em consonância com o parágrafo 985 do BGB.
Mas aqui poderíamos ver ao mesmo tempo também uma intervenção em
direitos do possuidor não-legitimado, hipótese que, no entanto, é
eliminada de antemão, se rejeitamos a idéia de um direito fundamental ao
roubo, desfalque ou ocupação de prédios e assumirmos, nessa medida,
uma exclusão de tais condutas do suporte fático. 57 Mas mesmo se
defendermos uma teoria ampla do suporte fático, trata-se apenas de um
„caso potencial de direito fundamental" 58, pois a liberdade de ação do
possuidor evidentemente é limitada pela garantia da propriedade e a
argumentação, em termos de direitos fundamentais, restringe-se, quando
muito, a um mínimo, para que não ocorra uma desestabilização do
sistema jusprivatista.

bb) A jurisprudência jusprivatista

Além disso, ao lado do legislador jusprivatista, também a jurisprudência


está vinculada aos direitos fundamentais, em conformidade com os
artigos 1º, inciso III, e 20, inciso II, ambos da LF 59, ficando sujeita ao
imperativo da interpretação e do desenvolvimento judicial do direito em
conformidade com a Constituição. Tal aplicação do direito deverá,
contudo, observar a ordem de competências fixada na Constituição e
pressupõe, por conseguinte, déficits de regulamentação no plano
infraconstitucional. 60 De resto, relativamente às leis que um tribunal
considera inconstitucionais, deve-se realizar um procedimento de controle
de normas, tal como prevê o artigo 100, inciso I, da LF.

c) Os direitos fundamentais como deveres de


proteção
Diversamente dos órgãos estatais, os sujeitos jusprivatistas não estão
vinculados aos direitos fundamentais, consoante o artigo 1º, inciso III, da
LF. 61 É, no entanto, uma questão problemática se os direitos
fundamentais (para além do seu cerne de dignidade humana) obrigam os
órgãos estatais a proteger um cidadão contra os desmandos de outro. 62

aa) A fundamentação

 
 

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O CÓDIGO CIVIL DA ALEMANHA (BGB) E A LEI
FUNDAMENTAL

Contra uma compreensão dos artigos 2º e ss., da LF, como deveres de


proteção, podemos aduzir, de início, uma inferência inversa
[Umkehrschluss] a partir do artigo 1º, inciso I, frase 2, da LF, segundo o
qual só é possível assegurar uma tutela mínima contra os delitos contra a
vida, bem como contra outros ataques frontais à dignidade humana. A
partir de uma interpretação teleológica, podemos ainda chamar a atenção
ao fato da decisão constituinte não poder ser neutralizada contra uma
eficácia externa imediata por meio da teoria dos deveres de
proteção. 63 Não obstante, as razões mais fortes recomendam interpretar
os artigos 2º e ss. da LF também no sentido de deveres de proteção.
Assim, num primeiro momento, não é possível documentar
geneticamente que o artigo 1º, inciso II, alínea 2, da LF, tenha sido
concebido como regulamentação taxativa. 64 Muito pelo contrário, do
ponto de vista genético é característico que uma garantia abrangente da
paz pertence desde sempre às funções centrais do Estado. 65 Também a
partir do seu teor literal os direitos fundamentais não excluem uma
interpretação como deveres de proteção, quando sempre se fala de
"assegurar" e dos "direitos de outros". 66

Outrossim, é significativo, do ponto de vista das competências, que sem a


existência de deveres de proteção, a margem de ação do legislador
ordinário seria idêntica à do legislador que emenda a Constituição, o que
não seria congruente com a força hierárquica superior do princípio da
soberania popular. Além disso, chegar-se-ia, a partir da perspectiva dos
sujeitos jusprivatistas, também a uma assimetria nada justa, se o
atacante pudesse fazer controlar constitucionalmente normas restritivas
da liberdade, ao passo que a seus oponentes não assistiriam direitos
análogos. 67 Assim, e.g., não se pode compreender porque o perturbador
pode-se defender contra leis jusprivatistas de proteção contra imissões
prejudiciais, ao passo que as medidas contrárias por parte do vizinho
prejudicado, nas hipóteses de inação do legislador, devem ser tidas como
vedadas. Na seqüência dessa argumentação também não é coerente
supor, em conformidade com os artigos 2º e ss. da LF, que deveres de
proteção apresentem uma tendência ameaçadora da liberdade, já que
aqui só está em pauta a delimitação de esferas colidentes de liberdade,
não se cuidando de intervenções sociais, especificamente na área dos
negócios jurídicos. 68

bb) A estrutura dos deveres de


proteção

 
 

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     DOUTRINA ESTRANGEIRA

A existência de um dever de proteção pressupõe, de modo mais


detalhado, que um direito fundamental efetivamente tenha sido afetado
em seu correspondente suporte fático por terceiros, o que também pode
ocorrer em caso de meras ameaças. 69Diferentemente de uma eficácia
externa imediata, não devemos examinar aqui a intervenção do terceiro
com base na proibição de excesso [Übermassgebot]; isto é, o terceiro
não necessita justificar o seu comportamento, mas os órgãos estatais
devem observar os deveres de proteção conexos aos direitos
fundamentais de acordo com as exigências do dever de
proporcionalidade. 70

Diante disso, as violações de direitos fundamentais são também


qualificadas como omissões por parte do Estado, para as quais vale uma
proibição especial de déficit (Untermass). 71 Essa categorização, todavia,
esbarra, pelo menos no Direito Privado, em dificuldades, especialmente
em se considerando que nesta esfera devem ser compensados tão-
somente interesses divergentes de liberdade e que não existe nenhuma
reserva legal. Partindo de uma apreciação mais aproximada, há que
distinguir entre duas alternativas: caso o legislador jusprivatista negue a
proteção estatal, declarando, e.g., expressamente admissíveis
determinadas imissões em conformidade com o parágrafo 906 do BGB,
ele faz uso aqui da liberdade de configuração legislativa, de tal sorte que
a respectiva norma - tal como outros atos legislativos - poderá ser
controlada com base no dever de proporcionalidade. 72 O mesmo vale se
o legislador nega uma proteção por meio de uma proibição de analogia
ou indução, quando, exemplificativamente, concede, em conformidade
com o parágrafo 253 do BGB, uma indenização por danos imateriais
apenas nos casos determinados por lei. Todavia, mesmo se o legislador
não tiver tomado nenhuma decisão definitiva, por não ter identificado a
problemática ou mesmo por não tê-la querido regulamentar, o juiz estará
legitimado, em conformidade com o artigo 20, inciso III, da LF, a arbitrar o
conflito pela via do livre desenvolvimento judicial do direito. Um dos
numerosos casos que aqui poderiam ser colacionados, é a assim
chamada „Decisão sobre os fornos de nitração" 73, na qual o Superior
Tribunal Federal rejeitou a aceitação de um contrato com deveres de
tutela em benefício de outros comitentes. Também uma tal negação
judicial da tutela não significa, em termos qualitativos, uma omissão, mas
representa um ato criador de direito cuja ratio decidendi  74 - pensada
como norma - por sua vez não pode negligenciar desproporcionalmente
deveres de tutela constitucionalmente prescritos.

 
 

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O CÓDIGO CIVIL DA ALEMANHA (BGB) E A LEI
FUNDAMENTAL

Ao lado de ponderações de ordem ontológico-funcional contesta-se,


adicionalmente e do ponto de vista teleológico, a necessidade de uma
tutela simétrica de bens jurídicos entre agente e prejudicado 75, com
fundamento na máxima „in dubio pro libertate", bem como com
fundamento em uma interpretação extensiva do princípio da
subsidiaridade. 76 No entanto, uma correspondente suspeição em
benefício da liberdade de ação não é compatível com a pretensão
abrangente dos direitos fundamentais, com o princípio da democracia,
bem como com a idéia de uma constituição aberta da sociedade. 77 Assim
resta, ainda, a objeção do ponto de vista do direito das competências,
segundo o qual o legislador jusprivatista, por força da doutrina dos
deveres de proteção, encontra-se limitado pelas exigências das
proibições de excesso e de déficit, deixando, nesse sentido, de existir
uma margem de configuração democrática. 78 Importa, porém, contra-
arrestar esse perigo não pela modificação da doutrina do Untermass, mas
mantendo aberto esse mecanismo aparentemente constrangedor, no
sentido de que um controle judicial da proporcionalidade essencialmente
se restringe a um exame negativo da evidência dr uma violação. 79

3. A tutela de interesses sociais em conformidade com o artigo 1º,


inciso II, da LF

Considerando que a explanação efetuada até o presente momento


concentrou-se no telos libertário dos artigos 2º e ss. da LF, devemos
discutir agora a até que ponto a Constituição também reconhece direitos
sociais. Há nesse tocante essencialmente duas correntes. Ao passo que
um grupo nega, em princípio, a existência de direitos constitucionais
sociais, atribuindo, portanto, à LF substancialmente uma função de
ordenamento liberal, 80 a doutrina dominante tenta definir os artigos 2º e
ss. da LF também como direitos sociais. 81 Afastando-se destas duas
acepções, a própria Constituição indicia uma terceira via, mais
especificamente, apontando para a dimensão que o artigo 1º, inciso II, da
LF, possui em termos de direitos humanos. 82

 
 

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a) A norma contida no artigo 1º, inciso II, da


LF

O ponto de partida dogmático para o reconhecimento de direitos sociais é


o próprio texto do artigo 1º, inciso II, da LF, que afirma que a norma
fundamental nele contida não se reduz à mera norma definidora dos
objetivos do Estado 83, mas que os direitos humanos são incorporados à
Constituição "na condição de fundamento de toda e qualquer comunidade
humana". Também a posição sistemática no título dos direitos humanos
sustenta a eficácia jurídico-subjetiva desses direitos cardeais. De resto,
os protocolos da Constituinte igualmente testemunham que os autores da
LF quiseram recepcionar os direitos humanos in toto, isto é, inclusive nas
suas dimensões subjetiva e social. 84 Acresce que tal recepção
abrangente não constitui nenhuma singularidade em termos de Direito
Comparado, mas encontra numerosos paralelos internacionais. 85 Por
isso os direitos fundamentais sociais devem ser derivados e
fundamentados em primeiro lugar pela via da remissão ao artigo 1, inciso
II, da LF. Isso exige a prova de que os direitos humanos gerais possuem
um componente social e são suficientemente determinados no que diz
com os seus conteúdos.

b) A legitimação dos direitos humanos


sociais

Os direitos humanos em geral podem ser divididos em duas categorias.


Por um lado, em direitos humanos liberais, que corporificam direitos
puros de defesa em face do Estado, objetivando a proteção da liberdade;
por outro, em direitos humanos sociais, destinados a criar os
pressupostos fáticos da liberdade e democracia, produzir a igualdade
material e a paz jurídica, bem como servir abrangentemente a dignidade
da pessoa. Por essa razão os direitos humanos sociais formam,
justamente em épocas da "globalização", a resposta jurídica
imprescindível à concentração transfronteiriça do poder econômico. Além
disso, o reconhecimento de direitos fundamentais sociais baseia-se num
amplo consenso internacional 86, enraizado também no ordenamento
jurídico nacional. 87 Por isso os direitos humanos sociais estão hoje
vinculados inseparavelmente à idéia geral dos direitos humanos e
constituem o correlato necessário dos direitos humanos liberais. 88

 
 

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FUNDAMENTAL

c) O sistema dos direitos humanos sociais


Se considerarmos as convenções internacionais de direitos humanos, as
estruturas do Estado de Bem-Estar Social herdadas da tradição, bem
como seu respectivo telos, os direitos humanos sociais podem ser
subdivididos em quatro grupos de casos: em primeiro lugar, em direitos
prestacionais materiais que servem sobretudo à garantia do mínimo
necessário para a subsistência; em segundo lugar, em direitos
prestacionais de cunho informacional, aos quais pertence, e.g., o direito a
receber informações; em terceiro lugar, em direitos ideais de proteção
que asseguram e.g. a assalariados o seu entorno existencial, protegendo-
os num sentido bem genérico contra situações para as quais não se
vislumbram perspectivas de saída; e em quarto e último lugar, em direitos
coletivos para a proteção da família, bem como de coalizões
justrabalhistas.

Em homenagem à coerência, essa categorização não se restringe


apenas ao plano constitucional, mas adentra profundamente o Direito
Privado e abre ao legislador opções para uma configuração jusprivatista
da sociedade. 89 Mencionemos, à guisa de ilustração, dentre os direitos
prestacionais materiais, apenas os direitos a pensões de natureza
alimentícia e cogente celebração de contratos, dentre os direitos
prestacionais informacionais apenas as pretensões derivadas e
originárias de recebimento de informações, dentre os direitos ideais de
tutela apenas a indisponibilidade de direitos extremamente pessoais, bem
como, de resto, as numerosas determinações de proteção em benefício
das famílias e das coalizões justrabalhistas.

d) A autonomia dos direitos


sociais

 
 

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     DOUTRINA ESTRANGEIRA

A distinção categorial entre direitos sociais e liberais apresenta as


vantagens de não mesclar interesses divergentes e de que o ônus da
argumentação recai sobre quem deduz direitos sociais do texto aberto da
norma do artigo 1º, inciso II, da LF. Além disso, o dever de proteção
estatal alcança apenas os já mencionados padrões sociais mínimos. Por
outro lado, a desistência de um direito fundamental só é parcialmente
possível em se tratando de direitos fundamentais sociais, pois, no que diz
com os direitos de liberdade, é de competência exclusiva do titular do
direito fundamental definir para si o conceito de liberdade. 90

Tendo em conta que os direitos sociais não são abertamente


caracterizados, mas que, e.g., se deriva um direito possessório do
locatário sobre a moradia a partir do artigo 14, inciso I, da LF, 91 verifica-
se que, ao lado do distanciamento em relação às máximas tradicionais de
interpretação e da dogmática juscivilista costumeira, assume relevância o
risco de decisões subseqüentes substancialmente incorretas, como, e.g.,
a proteção de um herdeiro que não vive na moradia do locatário. 92 Por
esse motivo, os direitos fundamentais liberais e sociais são distinguidos
regularmente no plano internacional em diversas convenções. 93 Além
disso, essa idéia deve ser transferida com plena abrangência para o
Direito Privado, pois ela legitima apenas intervenções sociais tópicas e,
em princípio, não questiona uma situação de equilíbrio entre pessoas
privadas, mas, muito pelo contrário, a tem como premissa.

V. A POSIÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL FEDERAL

Se observarmos, por fim, a posição do Tribunal Constitucional Federal,


devemos distinguir principalmente dois conflitos de competência: 94

1. O controle de atos
legislativos

Em se tratando de examinar leis, o objeto da ação será uma decisão


parlamentar. Por isso, uma rejeição de normas jusprivatistas em princípio
só entra em cogitação se ela se puder apoiar na autoridade superior do
Constituinte. Por outro lado, o Tribunal Constitucional Federal não tem
competência para substituir decisões do legislador democrático por
decisões próprias, mas encarna um órgão da aplicação do direito. Mesmo
se defendermos no plano da teoria jurídica uma "one right answer
thesis", 95tal posição não permitirá compreender princípios constitucionais
fora do seu âmbito nuclear como diretivas concretas e totalmente
abrangentes direcionadas ao legislador. Por isso, exigências de uma
interpretação restritiva da constituição ou de um "judicial self-restraint"
são justificadas à medida que querem ver preservado o princípio da
soberania popular. Mas, no cerne, a defesa de uma atitude contida por
parte do Judiciário constitui um enfoque falho, pois já no estágio
preliminar importa legitimar genericamente o poder judicial que anula a
lei. 96

 
 

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FUNDAMENTAL

2. O controle de atos
judiciários

No exame de sentenças dos órgãos judiciários, a preservação da sua


competência em relação aos atos do legislador democraticamente
legitimado igualmente ocupa o primeiro plano. Por essa razão, o Tribunal
Constitucional Federal deve controlar decisões dos tribunais
especializados com vistas à sua legalidade e constitucionalidade strictiore
sensu  ****. Mas se um ato do Judiciário não é determinado por uma
orientação prévia do legislador, se conseqüentemente a sentença é
prolatada no âmbito livre da lei, surge tão-somente um conflito
competencial com os tribunais especializados, que se processa dentro do
Poder Judiciário. É de considerar, ainda, que os órgãos judiciários
especializados dispõem de uma proximidade essencialmente maior com
a matéria, constituindo, por conseguinte, também a instância mais
adequada para o desenvolvimento judicial do direito. 97 Mas uma restrição
dessa prerrogativa só é cogitada para tutelar direitos pessoais muito
estreitamente referidos à dignidade da pessoa, como,
exemplificativamente, o direito geral de personalidade, bem como sob o
aspecto da unidade do ordenamento jurídico. Em tais casos excepcionais
especiais a sentença de um tribunal especializado deve ser cassada,
mesmo se ela, concebida como decisão legislativa, ainda não violar a
constituição. Inversamente isso significa que o legislador pode "intervir"
contra sentenças do Tribunal Constitucional Federal e e.g. revogar
parcialmente uma determinada proteção social.
 
 

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VI. CONSIDERAÇÃO CONCLUSIVA

Em retrospectiva, constatamos que a descrição do primado da


Constituição restringe, num primeiro momento, a percepção da
autonomia do Direito Privado. Essa impressão resta enrobustecida
quando os direitos fundamentais são considerados abrangentemente
como mandamentos de otimização. Do ponto de vista do método, porém,
vale para o Judiciário o primado do plano das regras sobre o plano dos
princípios, de modo que só é possível recorrer à Constituição
excepcionalmentesupplendi ou corrigendi causa  *****. Além disso a
interpretação da Constituição deve, em princípio, ser orientada para uma
reconstrução da vontade legislativa. 98 Por essa razão, o risco de que a
democracia parlamentar venha a transformar-se num Estado Judicial
[Jurisdiktionsstaat] não deve ser enfrentado por meio de uma redução
unilateral dos direitos fundamentais e humanos à função de direitos de
defesa contra o Estado, mas já no grau anterior da metódica
constitucional, por meio de um fortalecimento renovado geral do princípio
da soberania popular. Isso significa, sobretudo, que os direitos
fundamentais só podem ser compreendidos, com vistas ao seu objetivo
de regulamentação mínima, como diretivas constituintes definitivas,
restringindo por assim dizer apenas e negativo a margem de ação do
legislador jusprivatista. 99 À essa constatação de natureza metodológica
corresponde a descoberta gnoseológica, segundo a qual é
substancialmente mais seguro dizer o que é injusto do que o que é
justo. 100 Não em último lugar, isso também diz respeito aos abismos
históricos que radicam na base do artigo 1º, da LF, e que sujeitaram todo
o pensamento jurídico, inclusive a compreensão do Direito Privado atual,
a uma mudança negativa de paradigma. 1 101

Traduzido por Peter Naumann

Tradução revista por Ingo Wolfgang Sarlet

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