Você está na página 1de 29

A ESCOLA ENQUANTO SISTEMA DE ENSINO: UM ESBOÇO SOBRE A

RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E TRABALHO NA HISTÓRIA DA


EDUCAÇÃO DO BRASIL

Leonardo Freitas Sacramento


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo.

Introdução
O objetivo do presente trabalho é o de analisar historicamente, de acordo com as
limitações dadas, o modo em que a educação escolar brasileira relacionou-se com o
sistema de trabalho capitalista, compreendo a educação escolar a partir de dois eixos
principais: a relação entre capital produtivo e capital improdutivo (falsos custos) e a
função da escola enquanto sistema de ensino.
Dessa forma, tenta-se afastar de análises que se pautam em temas em detrimento
de categorias, cujo esforço é o de entender o funcionamento da escola como sistema e,
conseqüentemente, negar conceitos de cunho liberal que se pretendem universal.
Quando se pontua pela afirmação da relação entre sistema produtivo e escola, para em
seguida compreender o trabalho improdutivo dentro da escola estatal, passa-se a
relacionar as diversas formas de educação, dentre elas a escolar, como um dos
instrumentos de hegemonia da burguesia sobre o proletariado. E vice-versa, apesar do
Estado ser burguês, o acúmulo de forças para a mudança mais geral da correlação de
forças faz parte da perspectiva tática do proletariado.
Tentar-se-á demonstra que atualmente as intervenções na educação são baseadas
na crença da cidadania, desconexas de um projeto de poder que procure revolucionar a
sociedade para a construção de um novo modo de produção. Tais intervenções políticas
negam a principal categoria de análise existente: o trabalho enquanto instrumento de
transformação da natureza por parte do homem. Se o trabalho deixa de ser a categoria
central, a exploração de uma sociedade de classes sociais desaparece no plano
ideológico, pois se não é o trabalho que gera valor, não há exploração do homem pelo
homem. Temas como democracia, professor reflexivo, aluno crítico, cidadania são
alçadas à categorias analíticas na educação, o que traz o prejuízo para o entendimento
2

da funcionalidade da escola e de uma prática política que mude a correlação de forças


da sociedade capitalista.

Trabalho e sistema de ensino: desdobramentos da educação escolar na reprodução


simples e ampliada do capital
Para fugir das perspectivas que se baseiam em temas que negam a centralidade
do trabalho, não se pode incorrer no equívoco de analisar a escola a partir dos temas
presentes no sistema de ensino, mas sim analisá-la por categorias. Portanto, democracia,
professor, aluno, etc., não são categorias analíticas, mas temas que perpassam as
práticas educativas escolares. Caso incorra-se no equívoco de analisar a escola por ela
mesma, a pergunta inicial deverá ser o que é a escola, pois a visão focalizada da
educação calcada na universalidade dos preceitos liberais faz com que se caia em
considerações idealistas ou materialistas mecanicistas de falsa universalidade.1 Assim
sendo, a pergunta não é o que a escola é, mas o que ela produz, já que ela é
condicionada pelas relações de produção a qual está submetida. E se a pergunta é esta,
deve-se perguntar da seguinte forma: qual é a mercadoria (produto) da escola? Somente
assim, em seguida, poder-se-á indagar qual é o objeto da educação, do professor etc.
A pergunta deve ser esta justamente porque o trabalho é meio pelo qual o
homem produz e reproduz a sua sobrevivência. Quando o homem produz sua
sobrevivência, produz de acordo com as forças de produção existentes, formando
relações especificas com tais forças. O homem, ao produzir e reproduzir suas vida,
produz mercadorias no modo de produção que vive, uma vez que quando produz
mercadorias reproduz o modo de produção ao mesmo tempo em que atua no
desenvolvimento das forças produtivas e na mudança objetiva das relações de produção
existentes, assim, na contradição entre as relações de produção e as forças produtivas,
podendo antagonizá-la. Em uma sociedade baseada em classes sociais, as relações de
classe que os indivíduos têm com a produção determinam as suas relações sociais e sua
subjetividade. E se o modo de produção existente determina o que é produtivo e o que é
improdutivo, determina também o funcionamento da escola e o trabalho na escola, que é
empreendida pelo professor, além de moldar a subjetividade através da via institucional,
desde de que o modo de produção para se reproduzir exija a existência da escola.
3

Portanto, a escola somente tem sentido a partir dos mecanismos que a relacionam com
as relações de produção existentes e o desenvolvimento das forças produtivas.
Diante disto, a mercadoria da escola produzida pelo professor, em síntese, é o
conhecimento, que é constantemente produzido no seio do processo educativo, portanto,
é uma produção social, mas tem sua apropriação feita de forma privada, diferente e
desigual, dependendo do lugar de classe que o indivíduo ocupa. A escola somente tem
sentindo na reprodução do modo de produção, entendida sob dois aspectos: a
reprodução da força de trabalho e das forças produtivas, o que significa coadunar-se
com as mudanças e as transformações das forças produtivas e submeter à força de
trabalho a tais transformações; e a reprodução ideológica, que incidi na inculcação da
ideologia da classe dominante às classes dominadas. Entretanto, o conhecimento não se
separa do professor, e portanto não ocorre o processo de alienação que produz o
feitichismo da mercadoria,2 pois não se pode comparar o professor a um trabalhador em
sentido formal, como a um operário. 3 Por conseguinte, o único mecanismo (produto)
que liga a escola e o professor aos aspectos do modo de produção existente é o
conhecimento, e não o aluno, o professor, a didática, a aula etc., como é colocado por
teorias de cunho iluminista ou liberal-conservador, que tem como objetivo a
mistificação pedagógica da escola e do próprio capitalismo.
Como o modo de produção vigente é o capitalista, a escola tem o intuito de
reproduzir o modo de produção capitalista através da reprodução da força de trabalho
submetida ao desenvolvimento das forças produtivas correspondentes com o atual
estágio do capitalismo, e de persuadir ideologicamente os indivíduos sob uma dada
representação superestrutural da estrutura capitalista, que é a burguesa. Segundo
Althusser (1985, p. 58)
a reprodução da força de trabalho não exige somente uma reprodução
de sua qualificação mas ao mesmo tempo uma reprodução de sua
submissão às normas da ordem vigente, isto é, uma reprodução da
submissão dos operários à ideologia dominante por parte dos
operários e uma reprodução da capacidade de perfeito domínio da
ideologia dominante por parte dos agentes da exploração e repressão,
de modo a que eles assegurem também ‘pela palavra’ o predomínio da
classe dominante.
4

Disso se segue que a escola é um instrumento, um meio da produção capitalista,


que na atual fase – a imperialista e monopolista – atende à acumulação do capital e sua
reprodução ampliada.
Contudo, a escola reprodutora não é especificidade da sociedade burguesa e
capitalista; a escola sempre, e em qualquer modo de produção, apresentou este mote: a
reprodução do modo de produção vigente, independente de qual se esteja falando, a
saber, modos de produção asiático, escravista feudal, capitalista e socialista.
O Estado é um instrumento de exploração e dominação de uma classe sobre a
outra, e somente passa a existir em uma sociedade de classes. Exatamente por isso o
Estado não pode ser um instrumento de conciliação de classes, porque somente existe
em uma sociedade de classes, cujo objetivo é o de corporificar a exploração e a
dominação em um conjunto de mecanismos e instrumentos institucionais ou não. Esses
mecanismos e instrumentos são aparelhados pela classe dominante, que os utilizam para
a reprodução das relações sociais e de produção que condizem com seus objetivos de
poder.
A educação escolar faz parte do Estado e, portanto, é instrumento de uma classe
sobre a outra, e somente existe em uma sociedade de classes. A educação escolar atende
sempre aos anseios da classe dominante e perpetua o modo de produção existente, e
somente pode ser entendido dentro da compreensão ampliada de Estado. Como escreve
Engels, citado por Lênin em O Estado e a Revolução, o Estado “é um produto da
sociedade numa certa fase de seu desenvolvimento”. Lênin, por sua vez, em luta
constante contra a social-democracia e seus oportunismos que buscavam sepultar um
projeto de poder revolucionário no seio do movimento operário, relegando o Estado à
uma esfera conciliativa entre burguesia e proletariado, a partir da fala de Engels, diz:
o Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável
das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os
antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E,
reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de
classes são inconciliáveis das classes (p. 3). 4

Na sociedade comunista primitiva, a educação funcionava em moldes diferentes


da sociedade capitalista, uma vez que não era institucionalizada e/ou estatal. Como em
uma sociedade comunista primitiva não havia Estado em virtude da inexistência de
classes sociais, por conseguinte, não havia mecanismos e instrumentos estatais de
coação e inculcação ideológica. A educação, empreendida no âmbito da sociedade, era
5

geral e universal. Mesmo muito tempo após a Revolução Neolítica, responsável pela
fixação do homem na terra, necessitou-se de um amplo desenvolvimento das forças
produtivas posterior ao elementar controle da produção de alimentos para que surgissem
no seio da estrutura classes sociais.
Esse amplo desenvolvimento resultou no que Marx chamou de sociedades
asiáticas, do qual resulta do elo entre comunidade abstrata e comunidades locais,
abrindo espaço para a formação de um governo central sob uma produção também
centralizada. Em tal modo de produção, necessitou-se de funcionários especializados,
pois se passou a fazer obras públicas que ligassem a comunidade abstrata a
comunidades locais, o que só foi possível devido a um desenvolvimento das forças
produtivas que significou a criação de excedentes e a não existência da propriedade
privada, uma vez que era monopólio do Estado. Com o tempo a sociedade abstrata
sobrepôs-se às comunidades locais, formando estrutura apta à propriedade privada,
como a posse particular da terra e posteriormente a apropriação desigual da renda.
Assim sendo, a passagem de uma sociedade que criou uma casta de funcionários para o
Estado para uma sociedade baseada na propriedade privada designou os fundamentos do
modo de produção escravista.
A educação nada mais fez do que acompanhar o desenvolvimento das forças
produtivas, criando uma força de trabalho apta a realizar o trabalho que produzisse e
reproduzisse o modo de produção. Na sociedade comunista primitiva a educação era
geral e universal, cuja especificidade visava à universalidade da produção. Com a
formação de uma casta de funcionários, a educação antes fundamentada no específico
de uma universalidade passou ao particularismo de uma educação não mais universal.
Com o modo de produção escravista a passagem é completada, e do específico da
universalidade, passou-se ao particularismo da apropriação privada. A produção do
conhecimento continuava sendo universal, mas sua apropriação tornou-se privada,
relacionada à perpetuação de um estado de sociedade dividida em classes sociais.
Na Grécia o trabalho escravo foi o alicerce da produção, o que possibilitou a
criação de uma aristocracia desvinculada do trabalho manual. Nessa sociedade já havia
uma clara divisão entre trabalho manual e intelectual. Enquanto que aos escravos era
reservado o trabalho manual e produtivo, a aristocracia ligava-se somente ao trabalho
intelectual e ao ócio. A aristocracia vinculava-se à ciência e à filosofia, o que era
6

proibido aos escravos. Proibido em termos, pois o interessante é analisar o aporte


ideológico que surgiu para explicar a divisão de classes existente.
Platão e Aristóteles, apesar de diferenças teóricas, convergiam no principal, que
é a que interessa aqui, a saber, a inferioridade e a subordinação do trabalho manual ao
trabalho intelectual. Como extensão dessa asserção, os escravos e os artífices não
possuíam atributos para o trabalho intelectual, o que explicava a desigualdade social e
econômica. Enquanto que para Platão o escravo e os artífices não possuíam a Razão
transcendental do mundo das Idéias, Aristóteles era claro que os indivíduos pertencentes
à base social escravista não tinham virtude para adquirir a Razão, e por isso não podiam
participar da política da pólis. Em suma, o trabalho manual afastava o indivíduo da
Razão (trabalho intelectual). Os dois, bem como todos os filósofos gregos clássicos,
representavam as aspirações da aristocracia a qual pertenciam. Está aí a proibição da
educação formal aos escravos e artífices em Atenas: a proibição sobrenatural da Razão.
Escolas foram criadas para formar ideologicamente a aristocracia, voltadas para
o ensino de lógica, filosofia, metafísica, matemática, física, retórica, etc., vinculadas aos
filósofos. Os conteúdos refletiam os anseios desta classe, o que a faz contemplativa e
desconexa da realidade prática – o que não significa desconexa da realidade social e
política, como muitos afirmam de forma pragmática. Formou-se um sistema de ensino
que tinha por objetivo reproduzir as relações de produção escravista da sociedade
ateniense. Em Roma, por sua vez, se em forma não seguiu totalmente as diretrizes dadas
pelo sistema de ensino ateniense, apesar de tê-lo como exemplo, em conteúdo assumiu,
apoiando-se nos mesmos mecanismos reprodutores. Comparando os dois sistemas de
ensino, pode-se concluir que o sistema de ensino romano é mais formado, construído e
delineado enquanto sistema, dividindo-se em aparatos que dão noção sistêmica ao
ensino, a saber, a divisão entre ludimagister, gramáticos e retores – educação primária,
secundária e superior, respectivamente, sendo que o ensino primário normalmente era
oferecido por um escravo. Enquanto Roma foi um Estado de pequeno porte, os romanos
contentavam-se com esta educação. Com o desenvolvimento do comércio e da
produção, os gramáticos passaram a oferecer uma educação mais “enciclopédica”
(PONCE, 2005, p. 69) e os retores proporcionavam uma educação mais especializada e
condizente com os altos cargos de um grande Estado. Não obstante, não se pode deixar
de averiguar que, apesar de algumas diferenças organizativas, o sistema de ensino
7

romano foi uma extensão e um aprofundamento do grego e serviu de modelo para o


atual sistema de ensino burguês, pois todos se baseiam na reprodução de uma sociedade
de classes.
Contudo, para compreender corretamente como se formou o sistema de ensino
burguês é necessário aprofundar a análise através do entendimento do modo de
produção feudal e do sistema de ensino formado sob suas relações, baseado nas relações
de servidão entre a nobreza (e clero) e os servos da gleba. É justamente no modo de
produção feudal que nasceu o sistema burguês, seja como espelho a ser seguido, seja na
crítica a aspectos do seu funcionamento que foram contrários aos interesses da
burguesia enquanto classe revolucionária.
A burguesia nasceu e desenvolveu-se criticando radicalmente o sistema de
ensino feudal, pois era ligado somente a um segmento (clero) e esporadicamente aos
filhos dos senhores feudais que queriam estudar. A inserção de um indivíduo ao sistema
de ensino feudal significava sua inserção em um monopólio ligado à Igreja, a principal
Instituição da época. Portanto, o ensino voltava-se principalmente à religiosidade,
fundamentada em preceitos pré-deterministas relacionados com a ausência de
mobilidade social próprio do modo de produção feudal. Se uma pessoa nascesse serva,
morreria serva.
Não à toa a burguesia travou uma luta constante contra o sistema de ensino
feudal, culminando na separação da Igreja do Estado, que teve seu auge na supressão do
ensino religioso. A educação deveria pautar-se não mais no predeterminismo religioso,
mas em uma suposta hierarquia das capacidades e no esforço em adquiri-las, assim, em
palavras mais curtas, em predeterminismo individual que se respaldava no
predeterminismo econômico. Nunca houve crítica à reprodução por parte da burguesia,
mas sim a crítica ao sistema de ensino que não a incluía.
Dois momentos podem ser categorizados no que se refere à burguesia e à
educação: um diz respeito a algo mais amplo, da burguesia enquanto classe
revolucionária, que visava o acirramento da luta de classes por ser classe subordinada
aos interesses de outras classes; e outro diz respeito à burguesia enquanto classe
reacionária, preocupada em reproduzir um modo de produção em que atua como classe
dominante.
8

O primeiro momento tratou-se de uma fase em que a burguesia direcionou um


bloco histórico formado por outras classes, dentre eles o nascente proletariado e as
massas populares. Daí encampou-se um projeto revolucionário e amplo contra as classes
dominantes e os grupos que as compunham. A correlação de forças fez com que a
burguesia se projetasse em um plano que abarcava alguns anseios das massas populares,
dentre eles a instrução universal. É importante salientar que a instrução universal se por
um lado atendia os interesses das massas populares que em conjunto com a burguesia
revolucionaram a sociedade feudal, por outro também atendia os interesses imediatos e
mediatos da burguesia, na medida em que atacavam a influência da Igreja sobre as
massas populares ao mesmo tempo em que formatava um poderoso mecanismo de
reprodução da nova sociedade, em substituição à Igreja para o modo de produção
feudal. Assim, a educação escolar, ou instrução pública, promovia a desvinculação da
educação à Igreja concomitante à apropriação do sistema escolar enquanto mecanismo
de reprodução das relações de produção capitalista.
Após a primeira revolução industrial (e entenda-se também pelo advento do
capital industrial) e a consolidação da burguesia como classe dominante mudaram-se
radicalmente as premissas da educação, em sentido mais amplo. O indivíduo tornou-se o
norte de toda a educação, inclusive a escolar. Não obstante, essa formação não foi de
imediato, uma vez que o público confundia-se com a arregimentação da iniciativa
privada por parte do Estado. Obrigavam-se os patrões mediante leis, muitas delas
ligadas a relatórios dos inquéritos ingleses sobre as relações de trabalho, o oferecimento
de ensino mínimo às crianças que trabalhavam – obviamente que ao mesmo tempo
legalizava-se e expandia-se o trabalho infantil, pois o ensino era oferecido pelo próprio
patrão na fábrica. Nesse momento não há ainda um sistema de ensino orgânico. Isto
somente tem explicação no fato de que o trabalho ainda era subordinado formalmente,
ou seja, utilizavam-se amplamente os métodos de coação extra-econômica, como os
cerceamentos dos artesãos e dos pequenos produtores. A própria educação escolar
refletiu o momento, em que o aparato ideológico ainda não estava consolidado. O
sistema de ensino somente consolidou-se a partir do momento em que se iniciou a
subordinação real do trabalho ao capital, no qual houve um grande desenvolvimento
das forças produtivas que resultou na conversão do trabalho materializado em
acumulação de mais-valia por parte da burguesia.
9

Têm-se duas conseqüências a indicar com esse processo, uma de ordem política,
outra de ordem econômica: a primeira foi a necessidade de remodelação do projeto
iluminista de hierarquia das capacidades independente da origem de classe, o que não
significou abandoná-lo, projetando um sistema de ensino reprodutor para o conjunto da
sociedade embasado na individualização constante, tanto do “sucesso” quanto do
“fracasso” individual e social; a segunda é que agora existia capital suficiente para
construir um Estado condizente com as necessidades de acumulação ampliada do
capital, imobilizando capital produtivo para formar capital improdutivo, cujo objetivo
não foi outro senão o de formar um aparato repressor e ideológico para o modo de
produção capitalista, em nível cada vez mais internacional, amparado na divisão
internacional do trabalho. No capitalismo concorrencial, à época de Marx e Engels, o
primeiro movimento foi o de imobilizar capital produtivo em improdutivo em virtude
das necessidades oriundas da luta de classes entre burguesia e proletariado. Se a policia
e o exercito nacional foi o eixo repressor, a escola foi o principal eixo ideológico. Marx
(1983, p. 97) sobre isto diz:
O próprio processo de reprodução implica funções improdutivas.
Trabalha tão bem quanto outro, mas o conteúdo de seu trabalho não
gera valor nem produto.5 Ele mesmo pertence ao faux fais 6 da
produção. Sua utilidade não consiste em transformar uma função
improdutiva em produtiva, ou trabalho improdutivo em produtivo.
Seria um milagre se semelhante transformação pudesse ser efetuada
mediante tal transferência de função. Sua utilidade consiste muito
mais em que uma parte maior da força de trabalho e do tempo de
trabalho da sociedade seja imobilizada nessa função improdutiva. 7

A escola estatal é um aparato improdutivo que reproduz as relações de produção.


Porém, não é a escola por si só que reproduz as relações de produção capitalista, mas é
a escola como sistema de ensino, que trabalha constantemente com o conhecimento de
forma diversa e desigual e que resulta na apropriação desigual do conhecimento por
parte dos estudantes. Esta forma diversa não quer dizer que o professor é o responsável
(seria a mesma coisa dizer que a apropriação desigual das mercadorias deve-se ao
operário que as produziu, e não ao sistema de produção e circulação das mercadorias),
mas sim o modo em que o sistema de ensino burguês relaciona-se com o modo de
produção capitalista. Dentro do sistema de ensino têm os indivíduos que conseguem
superar determinadas etapas burocráticas que outros não conseguem, o que se deve à
relação que os indivíduos (lugar de classe) têm com as determinações econômicas
10

dadas e com a burocracia estatal. Tal divisão, por sua vez, somente pode ser explicada
pelo fato do sistema de ensino fundamentar-se na divisão social do trabalho, cuja lógica
é o aumento da produtividade a partir da coesão entre desenvolvimento das forças
produtivas, capital produtivo-processo de trabalho e mercado industrial de reserva de
mão de obra. A divisão social do trabalho, bem como a coesão citada, são as
determinantes do sistema de ensino burguês. Achar que é possível superá-la pelo
próprio sistema de ensino, recorrendo a aspectos essencialmente pedagógicos, é uma
crassa ilusão iluminista que em nada corresponde com a realidade. Como diz Freitag
(2005, p. 54),
os investimentos educacionais vistos no contexto da reprodução
ampliada precisam ser compreendidos como investimentos em capital
variável, que tornará mais eficiente investimentos em capital
constante, aumentando com isso a produtividade do processo de
produção e reprodução capitalista.

Assim, o sistema de ensino deve voltar-se ao aumento da produtividade do


capital, dosando-se pela relação entre as necessidades produtivas oriundas do
desenvolvimento das forças produtivas (novas tecnologias que revolucionam a
capacidade produtiva), a formação de mão(s) de obra para empreender a produção
decorrente, bem como a formação de um mercado de reserva desta mão(s) de obra.
Quando se necessita de engenheiros, por exemplo, há uma dada reorganização do
sistema de ensino, não automática, para formar estes engenheiros e um mercado de
reserva de engenheiros. O que ocorre é que este processo não é automático (precisa-se
de 1.000 engenheiros e forma-se, portanto, 2.000, respeitando o mercado de reserva de
mão de obra), tampouco simplista desta forma. Quando há uma reorganização (tal como
ocorre agora), há uma correlação de forças entre todas as partes: empresários da
educação, industriais, operariado, Estado, em suma, com todos os elementos das
contradições da reprodução ampliada do capital. Somado a isso, normalmente, em razão
da divisão internacional do trabalho, há uma reorganização muitas vezes local do
sistema de ensino e não global, ligado às necessidades da burguesia internacional com a
burguesia local, atendendo os interesses da burguesia enquanto classe orgânica e única,
na qual tal correlação é mais flagrante quando do advento do capital monopolista. Nesse
sentido, se o capital produtivo foi imobilizado para capital improdutivo, agora o sistema
improdutivo do ensino volta-se objetivamente ao capital produtivo, o que não significa
11

torná-lo propriamente produtivo. Em suma, “a escola não é uma fábrica caracterizada


pela apropriação da mais-valia e pelas relações capitalistas no sentido clássico, e além
disso os professores não são proletários, eles são trabalhadores ‘improdutivos’” (FINN;
GRANT; JOHNSON, 1980, p. 217).
Quando se volta ao aumento da produtividade capitalista, onerando milhares
senão milhões de pessoas que nunca entraram na escola, o sistema de ensino volta-se
também a reprodução capitalista em sentido ideológico para essas pessoas, uma vez que,
mesmo aqueles que não participam do sistema de ensino que visa à qualificação da
produção, como um analfabeto que nunca se sentou em uma cadeira escolar ou que
passou por uma escola, mas desistiu para trabalhar, não podem ser considerados fora do
mercado industrial de reserva de mão de obra. Eles são pertencentes e eficazes para o
rebaixamento do salário dos trabalhadores. Quando o capital necessita, essas pessoas
são alocadas para o trabalho produtivo, mesmo que conjunturalmente seus trabalhos
sejam improdutivos por estarem na miserabilidade. Portanto, a escola como sistema de
ensino tem sua funcionalidade tanto no sentido de aumento da produtividade, quanto na
explicação ideológica da desigualdade social, mesmo para aqueles que nunca
participaram do sistema de ensino. Ideologicamente, muitas vezes, a escola assume
papel de centralidade nas relações sociais, explicando as desigualdades sociais pelas
individuais (orgânicas, afetivas, raciais e intelectuais).
Mas como se dá a reprodução do sistema de ensino burguês pela divisão entre
trabalho manual e intelectual? Nas diferentes esferas do sistema há apropriações
desiguais do produto da escola, que ao formar desigualmente a mão de obra equilibra o
sistema produtivo capitalista. O professor da escola burguesa é um agente reprodutor, e
não libertador, na medida em que transmite os conhecimentos que cabem aos estudantes
daquela esfera – ensino médio, por exemplo. Esse é um dos motivos pelos quais o
sistema de ensino tem que ser em cadeia, isto é, um determinado ensino, por exemplo, o
ensino fundamental, tem que ser preparatório para o ensino médio, e vice-versa, o
ensino médio tem que ser a etapa após o ensino fundamental não somente em sentido
burocrático, mas nas gradações dos conhecimentos. Os indivíduos que pararem no
ensino fundamental por determinações estruturais, portanto econômicas, terão funções
nas reproduções simples e ampliada do capital ligadas a sua formação, então ao trabalho
manual.
12

A divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual existente dentro do


sistema de ensino deve ver vista de um modo mais amplo, a partir da divisão entre
educação e trabalho. No modo de produção comunista primitivo, a educação era
trabalho, pois como a sociedade baseava-se na ausência de classes sociais, a apropriação
era tão universal quanto a produção. Com o surgimento de classes sociais, a educação
desvinculou-se do trabalho, uma vez que, se não houvesse tal desvinculação, não
haveria possibilidade da existência da divisão entre trabalho intelectual e trabalho
manual na própria educação. Segundo Saviani (2007) não havia separação entre
trabalho e educação na sociedade comunista primitiva, pois não havia classes sociais e a
educação era empreendida pelo trabalho para o trabalho. Na sociedade de classes
(Aristóteles é exemplo disto), a educação desvincula-se do trabalho (e não é o trabalho
que se desvincula da educação, pois isto significaria afirmar que a educação possui
papel de centralidade). Passa a existir uma educação voltada para os interesses de uma
determinada classe.
No modo de produção capitalista, essa divisão recrudesceu-se. Isso não significa,
porém, que a escola não tem relação com o trabalho produtivo, aliás, somente tem
sentido hoje à luz dos delineamentos do processo de trabalho produtivo, mas sim que a
escola enquanto sistema fundamenta-se na divisão entre trabalho manual e intelectual
somente porque, ao longo da história da luta de classes, a educação desvinculou-se do
trabalho.
Disso se segue que o sistema de ensino burguês é uma síntese dos diversos
sistemas de ensino dos modos de produção que existiram ao longo da história, pois a
história dos sistemas de ensino é a história da desvinculação da educação do trabalho.
Porém, após a consolidação da revolução burguesa, diferentemente do que havia
ocorrido, consolidou-se o projeto de universalização do ensino através da instrução
pública. Ao contrário dos outros sistemas de ensino, na sociedade capitalista a educação
institucional foi amparada pela máquina estatal, literalmente. Construiu-se por
intermédio de impostos diretos e principalmente indiretos um Estado nunca antes visto,
o que somente pode ser compreendido sob o prisma da necessidade de instrumentalizar
através dos mecanismos estatais a luta de classes própria do modo de produção
capitalista: a luta entre burguesia e proletariado. Exatamente em razão da
instrumentalização dada à educação, a educação escolar na sociedade capitalista é
13

colocada como um dos nortes principais quando se pensa em reorganização produtiva.


Quando se reorganiza o processo de produção, reorganiza-se o sistema de ensino, assim
como se reorganiza o Estado como um todo.

O atual sistema brasileiro de ensino burguês: diretrizes gerais do ensino dadas pela
imobilização do capital improdutivo em favor do capital produtivo
Nos primórdios da instrução pública ainda em meio a Revolução Burguesa, a
educação pretendia-se universal, baseada na crença das capacidades naturais dos
indivíduos, harmonizando a sociedade entre os que têm capacidade para a
intelectualidade e os que têm para o trabalho manual, independente da classe social a
qual pertencia, e não entre os que detêm os meios de produção e os que não detêm
restando vender sua força de trabalho para poderem reproduzir suas vidas. Como se viu
essa perspectiva compreendia a reprodução do novo modo de produção e o
derrocamento do antigo modo de produção feudal, fundamentada ideologicamente na
predestinação sobrenatural dos indivíduos. Assim, a educação burguesa rompeu com o
predeterminismo religioso, mas não com o predeterminismo solipsista e individualista
fechado no próprio indivíduo. Portanto, a igualdade burguesa é antagônica à igualdade
feudal, e por isso não é universal, pois não ataca a apropriação privada da produção.
O que os teóricos burgueses formularam foi uma sistematização cuja lógica é a
do realinhamento ideológico do que é escola e indivíduo. Na filosofia burguesa, o
indivíduo está em primeiro plano, no qual é o que é devido a ele próprio. Contudo, o
indivíduo é condicionado pelas suas relações sociais e pelo modo que está inserido no
processo de trabalho existente. O indivíduo “obtém” somente o que as relações que o
condicionam o permitem, inclusive o referido “sucesso” escolar.
Mas convém analisar o modo que se deu à criação e o desenvolvimento do
sistema de ensino no Brasil e como tal sistema sempre atendeu os interesses da
burguesia brasileira no primeiro momento e da burguesia internacional no segundo
momento, a fim de pontuarmos sucintamente as atuais diretrizes do sistema de ensino
brasileiro.
O Brasil colonial fundamentava-se em um modelo exportador de matérias-
primas para a metrópole portuguesa. Isso fez com que o Brasil não criasse um parque
industrial, acompanhando mecanicamente, de acordo com os interesses da metrópole, o
14

desenvolvimento econômico, social e político que ocorria na Europa. Esse fato histórico
marcou não somente a história das políticas governamentais brasileiras em fomento à
industrialização, mas também as políticas de educação e as discussões de teóricos da
área.
No Brasil colônia a educação de forma sistematizada deu-se com os jesuítas. Foi
uma educação estatal, pois refletia os interesses da metrópole e dos dirigentes da coroa
portuguesa no Brasil. Exemplo disto é a forma em que ocorreu a educação jesuítica, que
se focava nos índios em detrimento dos negros. Após a consideração por parte da Igreja
Católica que os negros não possuíam alma e os índios sim, cabendo catequizá-los, os
jesuítas no Brasil refletiram tal decisão (obviamente com exceções). Não se pode deixar
de citar que a decisão da Igreja refletia os interesses econômicos de comercialização das
companhias de uma nova mercadoria (o escravo) e de produção dos senhores de escravo
(trabalho escravo). Para isso, o escravo para ser mercadoria deveria ser coisificado, caso
contrário não poderia participar do mercado de troca de mercadorias.
Conseqüentemente, os jesuítas no Brasil apenas estenderam seus entendimentos do
caso, não os educando, afinal se os escravos se apropriassem dos conteúdos que faziam
com que um ser humano deixasse de ser animal (de acordo com a filosofia cristã, a
hegemônica na época), como que os escravos continuariam a ser coisas e, portanto
mercadorias? 8
O que se pode referendar é que a educação jesuítica preocupava-se fortemente
com a reprodução ideológica, até porque o nível técnico exigido para o trabalho na
monocultura era mínimo. Com o desenvolvimento tecnológico e das forças produtivas
no Brasil a preocupação com a técnica nos próprios conteúdos ministrados aumentaram.
O fato é que no Brasil colônia a técnica foi secundária, uma vez que a preocupação
sempre foi a formação da classe dirigente, inclusive dos futuros jesuítas.
O quadro mudou com a reforma pombalina e posteriormente com a abertura dos
portos e a queda do decreto que proibia o Brasil de possuir máquinas, que o impedia de
construir um parque industrial e tecnológico. A mudança do trabalho escravo para o
trabalho assalariado foi outro fator importante, senão o preponderante, o que fez com
que surgissem instituições e fortalecesse o Estado como um todo. Essa mudança
corroborou-se pelo advento do capital industrial baseado em novos processos de
produção e circulação de mercadorias que, frutos da acumulação após a primeira
15

Revolução Industrial, obrigou os capitalistas a exportarem capitais para continuar o


processo de acumulação em busca de novos mercados, mão de obra barata e matérias-
primas em abundância. A exportação de capitais consistiu no derrocamento do modelo
colonial enquanto mecanismo de acumulação primitiva do capital e na mundialização
do capitalismo enquanto formação econômica hegemônica.9 Todos os elementos citados
impediam a continuação da mão de obra escrava como base produtiva, o que significa
dizer que o Brasil adentrou ao capitalismo quando a concorrência levou ao monopólio e
as grandes potências necessitaram exportar capitais:
o desenvolvimento do capitalismo chegou a um ponto tal que,
ainda que a produção mercantil continue ‘reinando’ como antes,
e seja considerada a base de toda a economia, na realidade
encontra-se já minada e os lucros principais vão parar aos
“gênios” das maquinações financeiras. (Lênin, s.d., p. 13). 10

Como projeto de nação, a educação passou a ser vista pela elite aristocrática e
pela nascente burguesia brasileira como algo fundamental e até mesmo em alguns
momentos fundante do desenvolvimento da sociedade brasileira, da passagem de um
país rural para um país urbano, de um país agrário para um país industrial. Nesse
sentido na década de 20 do século passado passou a ocorrer uma grande discussão
acerca da educação escolar e da forma que se poderia impulsionar através dela o
desenvolvimento da sociedade brasileira. É o contexto em que foi produzido em 1932
por alguns intelectuais o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova: a reconstrução
educacional no Brasil, ao povo e ao governo, manifesto em que se consubstanciaram os
anseios da nascente burguesia industrial brasileira. Princípios postos na Revolução
Burguesa foram contemplados, como laicidade da educação e do Estado,
obrigatoriedade do ensino, universalidade, etc.
Apesar de refletir os interesses da burguesia industrial foi um documento
importante, pois ainda neste momento a educação, além de atender poucas pessoas,
sendo que as poucas escolas estatais atendiam somente os filhos das elites agrária e
industrial, era em grande parte empreendida pela Igreja através das escolas filantrópicas
e confessionais, pois a instituição da república fez somente com que os filhos da
burguesia saíssem do raio de atuação da Igreja, mas não fez com que a Igreja perdesse
sua influência na função de reprodução ideológica no âmbito da sociedade brasileira
pós-colonial. Pode-se dizer que o processo pelo qual a burguesia européia passou em
relação ao binômio Estado e Igreja iniciou-se no Brasil quase cem anos depois. O
16

problema é que a impressão é que ainda não terminou, como atesta a atual LDB, que
ainda declara o ensino religioso obrigatório para o Estado e optativo para a criança.
O documento teve desdobramentos políticos importantes, dentre eles a
construção da Universidade de São Paulo em 1934 para a formação também de
professores e a inclusão na ordem do dia da educação ser abarcada pela maquina estatal
propriamente dita, isto é, financiada pelo Estado. Não obstante, princípios pré-
deterministas postos do corolário burguês estão contidos, como a construção de uma
sociedade baseada na hierarquia das capacidades. Se o objetivo era a universalidade, há
a necessidade de compreender que a universalidade ali discutida era a burguesa,
portanto, a universalidade de condições de uma sociedade de classes, uma
universalidade que no fundo objetivava a reprodução da apropriação privada. Prova
disto foi a inserção dos testes psicológicos, “atestando” quem tinha “condições”
cognitivas para o trabalho manual e quem tinha para o trabalho intelectual.
Após a tomada de poder de Vargas em 1930 e após o Manifesto em 1932 – aliás,
a pedido do próprio Vargas em uma reunião da ABE (Associação Brasileira de
Educação) – foi estabelecida na Constituição de 1934 a necessidade de formar um Plano
Nacional de Educação, dando caráter nacional à educação escolar. Também foi posto o
sistema de financiamento nos moldes atuais de repartição entre os entes federativos
(União, Estados e Municípios), a obrigatoriedade na instrução primária “e o ensino
religioso” tornou-se “facultativo” (FREITAG, 2005, p. 90).
Em 1937, em pleno Estado Novo, houve mais dois pontos importantes para a
constituição da educação brasileira enquanto sistema direcionado para a reprodução do
modo de produção capitalista, que é a introdução do ensino profissionalizante e a
obrigatoriedade “das indústrias e dos sindicatos criarem escolas de aprendizagem na
área de sua especialização para os filhos de seus empregados e membros” (FREITAG,
2005, p. 90). Vargas e Gustavo Capanema (ministro da educação) de fato foram os que
iniciaram a formação em nível nacional do sistema de ensino brasileiro propriamente
burguês, pois além de ter atendido a necessidade de reprodução ideológica através das
aulas de moral e civismo, colocou-o para formar a força de trabalho à luz do
desenvolvimento das forças produtivas. Não havia espaços de formação de mão de obra,
cabendo a escola fazê-la. O sistema de ensino tornou-se no Estado Novo mais
sistematizado e orgânico ao modo de produção capitalista.
17

Entre o Estado Novo e o Regime Militar promulgou-se a LDB 4.024 (Leis de


Diretrizes e Bases da Educação). O que é digno de nota é que na LDB houve a anuência
para o setor privado de livre exercício e a sua equivalência com o setor estatal.11
Essa formatação foi desenvolvida pelo regime militar, aprofundando os
mecanismos sistêmicos da educação escolar. A inserção legal da população (o que não
significa inserção efetiva e prática) através da obrigatoriedade do ensino primário
consistiu na iniciativa mais orgânica da burguesia brasileira em ligar a formação da mão
de obra e de um mercado de reserva de mão de obra (força de trabalho) com as forças de
produção existentes a partir de um dado projeto de nação – sociedade urbana, industrial
e desenvolvida, aprofundando, assim, o que já havia sido construído. O aperfeiçoamento
do sistema de ensino (bem como do Estado como um todo) na ditadura militar veio no
sentido de redirecioná-lo para o capital internacional monopolista. Celebrou-se os
acordos entre o MEC e a USAID, criada em 1961 pelo presidente Kennedy com o
objetivo de fomentar políticas para os países capitalistas periféricos. Uma das políticas
era a educacional. As reformas universitária em 1968 e do ensino médio em 1971 foram
frutos destes acordos, sendo que ambos atendiam os interesses mais gerais da burguesia
nacional e internacional.
A reforma universitária foi promulgada em meio a uma reorganização do
sistema produtivo em função do amplo incentivo estatal ao capital estrangeiro. A
universidade foi moldada nos marcos da acumulação do capital. Formou-se uma
universidade pautada em dois aspectos: em critérios produtivistas e na necessidade de
criar uma determinada burocracia que não permitisse a atuação de movimentos
organizados antagônicos à ditadura militar. Na prática, a Lei 5.540/68 (reforma
universitária) introduziu a relação custo-benefício na educação, direcionando a
universidade para o mercado de trabalho brasileiro, ampliando o acesso da classe média
ao ensino superior e cerceando a autonomia universitária. A reforma universitária de 68
acabou com a cátedra, tornou o vestibular classificatório, aglutinou as faculdades em
universidade e criou os departamentos, visando uma maior produtividade com
concentração de recursos, criou o sistema de créditos, permitindo a matrícula por
disciplina, criou o sistema de nomeação de reitores por Governador ou Presidente da
República e de diretores por reitores, dentre outros mecanismos.
18

Se por um lado formou-se uma instituição mais emoldurada nos objetivos


políticos do regime, por outro se vinculou a universidade brasileira com o capital
produtivo em outros aspectos decorrentes dos critérios produtivistas: o incentivo às
universidades privadas e a formação de uma indústria cuja mercadoria de troca é o
conhecimento e a diplomação; e a vinculação de cursos e pesquisas com a própria
iniciativa privada (capital produtivo). Cabe lembrar que a universidade estatal é calcada
no trabalho improdutivo, pois o capital que a sustenta é também improdutivo;
entretanto, a pesquisa, como lembrou Gorender na apresentação do Capital, é produtiva,
12
pois pode consistir em pesquisa tecnológica baseada, por exemplo, no aumento da
produtividade e da produção (desenvolvimento das forças produtivas). Obviamente,
quando a pesquisa é alocada para os objetivos do capital produtivo em sua reprodução
simples e ampliada ela tende a subordinar a própria estruturação dos cursos, pois se por
um lado as relações de trabalho do professor passa a ser formada pelo próprio capital
produtivo e pelo processo de trabalho propriamente capitalista (pois na prática torna-se
um trabalho assalariado que gera mais-valia), apesar de ainda ser um trabalhador
improdutivo quando ministra aulas (o que acaba sendo subordinado pelo trabalho
produtivo), por outro a própria formação da mão de obra (os estudantes) tende a se
vincular ainda mais às demandas de reprodução da reserva industrial de mão de obra,
pois os conteúdos trabalhados relacionam-se imediatamente e mediatamente com a
pesquisa do professor-pesquisador – já que o conhecimento científico não é isento. 13
Este é um processo que começou nas universidades por iniciativa do regime ditatorial e
estende-se aos dias atuais no atual anteprojeto da reforma universitária.
Todos os mecanismos postos na reforma universitária apontavam para o
crescimento da produtividade dentro de uma lógica da relação entre universidade e
capital. Nesse momento passaram a proliferar as Instituições Particulares de Ensino,
com grande apoio do governo. A renúncia fiscal foi legalizada por intermédio das
instituições filantrópicas, bastando apenas aos empresários da educação mudar no papel
a função social de sua instituição, mesmo auferindo lucro. Este é o modelo que foi
aprofundado no governo FHC, denotando desde a ditadura militar um projeto de
expansão de vagas através das universidades privadas. E é preciso dizer que quando se
fala em iniciativa privada na educação, está-se falando de capital produtivo, e, portanto
de trabalho produtivo, logo há mais-valia e acumulação de capital, mesmo que do ponto
19

de vista da forma não seja nos moldes de outras mercadorias diferentes da mercadoria
conhecimento. Marx chama estas mercadorias de “formas de transição”.14
Também é importante apontar que a Lei 5.540/68 somente pode ser analisada a
partir do que se chama de acordos MEC/USAID, que também teve seus desdobramentos
em outros níveis de ensino. Os acordos MEC/USAID não ficaram na reforma no ensino
superior, mas se estenderam em reformas no ensino fundamental e médio. Em 1971 foi
promulgada a Lei 5.692, que modificou estruturalmente o ensino até então, pois
determinou, por exemplo, a extinção das disciplinas de Geografia e de História, que
foram substituídas pelo ensino de Estudos Sociais e a transformação do então ensino de
2º grau em ensino profissionalizante. A conseqüência foi a diminuição da qualidade do
ensino fundamental estatal, com a respectiva valorização do ensino particular, e a
conseqüente elitização do ensino universitário através do vestibular e do rebaixamento
dos conteúdos ministrados no ensino estatal, 15 que impedem até hoje o acesso de grande
parte da população à universidade estatal. Mas o fio norteador das políticas oriundas dos
acordos MEC/USAID e da lei especificamente foi o da massificação de técnicos
formados no ensino médio, objetivando tanto a formação da força de trabalho
minimamente qualificada para as forças produtivas dadas pelos equipamentos de
segunda mão importados dos grandes Estados imperialistas, quanto a formação de um
amplo mercado de reserva para as indústrias brasileiras e internacionais. Convém
salientar que foi nesta lei, de forma mais definida, que se promulgou a constituição de
uma instituição para a busca de recursos não estatais para escola, que é, a saber, a APM
(Associação de Pais e Mestres). A intenção é tão clara que a formação desta instituição
vem na seção de financiamento da lei. Pode-se dizer que a APM foi a primeira fundação
de direito privado na educação escolar, e esta experiência é fundamental para os futuros
projetos empreendidos pelos mais diferentes governos burgueses nas diferentes esferas
do sistema de ensino, pois foi algo projetado nacionalmente.
Outra coisa importante que norteou nesse período as políticas educacionais e que
se estende aos dias atuais foi a necessidade de rebaixamento do nível dos
conhecimentos ministrados, o que faz parte de uma lógica mais ampla do que a mera
discussão pedagógica na academia, secretarias e professorado. Isso sempre acontece
quando a população quebra uma barreira burocrática dada pela divisão entre trabalho
manual e intelectual no sistema de ensino, pois em seguida criam-se reformas baseadas
20

teoricamente na ciência (ou seja, é referendado pela academia) a fim de reestruturar a


divisão profunda existente no sistema de ensino. Se a população de uma forma geral
passou a se inserir fisicamente na escola, por outro passou a existir um conjunto de
preceitos que dificultam a apropriação do conhecimento, e portanto, corroboram a
própria existência do sistema de ensino. Assim foi com a introdução do ensino
profissionalizante na reforma de 71, assim é com as mais diversas pedagogias liberais
que procuram deslocar para o proletariado o problema fundamental da educação
burguesa: a reprodução das relações de produção capitalista, o que inclui o aspecto
ideológico e o aspecto produtivo; além de rebaixar o próprio conhecimento científico
para o nível da particularidade e do localismo.
Os anos 90 significaram a abertura completa do Brasil ao mercado mundial. A
desregulamentação do setor privado e a privatização de empresas estatais tornaram-se
marca da década, iniciada por Collor e continuada por Fernando Henrique Cardoso. A
retirada de investimentos em políticas públicas básicas como a educação e a saúde era
uma política alinhada com a privatização, cujo argumento era a ineficiência da máquina
estatal. A privatização do ensino superior intensificou-se de forma a garantir a
reprodução do modelo neoliberal do sistema capitalista brasileiro, seja pela ampliação
da rede das instituições privadas de ensino superior, seja pela própria privatização do
conhecimento em pesquisas voltadas para o mercado, principalmente em instituições
estatais.
A educação fundamental passou por um amplo investimento do governo por este
se basear em políticas focalizadoras. Em outras palavras, em razão de ingerências de
organismos multilaterais, que além de darem a linha programática dos governos
burgueses brasileiros na área econômica, direcionaram os investimentos na educação
somente no ensino fundamental em detrimento de outras esferas do sistema de ensino,
que deveriam ficar a cargo da iniciativa privada. Essa lógica entra em um contexto mais
amplo que agora é aprofundado no governo Lula e do PT que é a diminuição ainda
maior da retenção de capital improdutivo e o progressivo aumento do capital produtivo,
o que significa a diminuição de políticas sociais de longo prazo e de objetivos mais
definitivos. Iniciou-se na ditadura com o amplo incentivo fiscal e tributário para os
empresários da educação, que se deu em certas áreas como no ensino superior, escolas
filantrópicas e confessionais, salário-educação e de certa forma no supletivo – de certa
21

forma, pois, segundo Freitag (2005, p. 202), se o objetivo foi o de treinar e inserir de
forma mais orgânica um segmento do proletariado no processo produtivo, por outro
encontrou a competição desenfreada dos empresários da educação na busca de
“clientes”, o que acabou se traduzindo em cursos abaixo do que governo e burguesia
esperavam, já que na busca de alunos novos os cursos não tinham pudor em eliminar
matérias, diminuir bruscamente a carga horária etc., algo muito próximo ao que ocorre
hoje com os cursos à distância. Por isso toda reforma é uma correlação de forças, não
somente entre burguesia e proletariado, mas entre as frações da burguesia e do próprio
proletariado.
O fato de no começo do século XX os objetivos da burguesia serem o
financiamento estatal e no começo do século XXI a privatização não é uma contradição.
Pelo contrário, é explicada pela conjuntura da reprodução ampliada em seus devidos
contextos. Se no início do século passado o objetivo da burguesia brasileira era o de
formar uma superestrutura ideológica, agora o intuito é o de reorganizar o Estado em
meio à reorganização produtiva do capital sob o neoliberalismo, o que implica na
diminuição das políticas sociais de longo prazo e de objetivos mais definitivos em
virtude da necessidade de “transformar” trabalho improdutivo em produtivo.
Exatamente por isso as políticas compensatórias não são uma contradição, pois em
algum momento a renda recebida entrará no processo de circulação e de produção
através do consumo de meios de subsistência. 16
Justamente, as políticas de focalização em detrimento daquelas de
universalização passaram a dar as diretrizes ideológicas e práticas da educação
brasileira, como a LDB 9.394/96, e a Lei 9.424/96, o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério. A Lei
9.424/96 caracterizou-se pela focalização dos investimentos no ensino fundamental de
1ª a 8ª séries em detrimento de investimentos em educação infantil, ensino médio,
supletivo, ensino profissionalizante e ensino universitário (graduação e pós-graduação).
É com esta diretriz que o ensino médio avançou rumo ao sucateamento, provocando em
alguns Estados reformas curriculares drásticas, que retiraram conteúdos de ensino
científico para inserir conteúdos não científicos, muitas vezes ministrados por ONGs. O
ensino universitário, principalmente o federal, foi sufocado pela retirada constante de
financiamento, enquanto que a rede particular de ensino superior expandia-se e se
22

expande através de isenções fiscais e políticas de repasse de dinheiro estatal, como o


FIES e o PROUNI.

A relação entre ONGs e escolas influi decisivamente para a manutenção


orgânica do sistema de ensino, pois há relativização do conhecimento nas mais
diferentes esferas, o que foi iniciado nas décadas anteriores. As ONGs – bem como as
diversas secretarias de educação – efetivam os aportes teóricos pretensamente
científicos utilizados para que os conhecimentos científicos não sejam transmitidos e/ou
que não sejam apropriados pelos estudantes. Como exemplo, têm-se teorias que buscam
explicar o desenvolvimento cognitivo através da maturação biológica do indivíduo, já
que cada idade tem seu famoso “tempo”, cabendo ao professor “compreender” tal
desenvolvimento no qual o resta na maioria das vezes aguardar a famosa “elaboração da
hipótese” por parte do aluno, não importando se o sujeito é analfabeto aos 15 anos de
idade, até porque a teoria acadêmica tem de ser mais importante do que a prática
pedagógica dos professores; ou ainda teorias que afirmam que cabe a escola respeitar a
linguagem “popular”, não impondo a linguagem formal das “elites”. A grande
elaboradora é a academia, já que é um dos principais mecanismos postos a serviço da
reprodução das relações de produção capitalista, uma vez que além de formular políticas
e um conjunto de preceitos que intencionam dar uma falsa apreensão da realidade,
disfarçar a divisão entre trabalho manual e intelectual e o modo como o sistema de
ensino atua na reprodução capitalista, age no desenvolvimento das forças produtivas
através de pesquisas tecnológicas para o capital industrial e forma os funcionários
fundamentais para a reprodução do capital, a saber: os funcionários públicos,
responsáveis pela efetivação do Estado enquanto instrumento de exploração e
dominação de uma classe sobre a outra; a mão de obra especializada e qualificada,
responsável pelo aumento da produtividade; e, por fim, as pessoas que dirigem o capital,
como os presidentes das empresas e indústrias, administradores, gerentes etc.

Considerações finais
Há algumas conclusões sobre a educação escolar de uma forma geral e o modo
como atua em uma sociedade capitalista monopolista como a brasileira:
A primeira conclusão é que a relação da educação com a existência de classes
sociais está na separação cada vez maior da relação ontológica entre educação e
23

trabalho. Quanto mais se avança em uma sociedade baseada em classes sociais, mais a
educação desvincula-se do trabalho, o que faz com que a educação seja algo existente
para explicar e dar organicidade ao que é condicionado pelo modo de produção.
Segundo, há uma relação entre capital produtivo e capital improdutivo que se dá
não somente pela formação de uma estrutura improdutiva, mas necessária à reprodução
simples e ampliada do capital produtivo, porém também pela “transformação” do capital
improdutivo em produtivo – capital produtivo e capital improdutivo são contrários mas
não necessariamente antagônicos.17 Isto faz parte da reorganização do sistema produtivo
e conseqüentemente do Estado que se iniciou nos fins dos anos 70 e que perdura aos
dias atuais, conhecido como neoliberalismo.18
Terceiro, na fase de monopólio do capital, diferentemente do capitalismo
concorrencial, a educação escolar modifica seus conteúdos na reprodução ampliada,
pois além de seguir a lógica da menor imobilização do capital improdutivo em favor do
produtivo através do aumento de trabalho produtivo em detrimento do improdutivo,
atende a outro, que é obviamente sua funcionalidade ideológica. Se antes tal
funcionalidade era dada pelas relações de trabalho taylorista-fordista compreendida pelo
processo de trabalho capitalista, agora a funcionalidade ideológica concorre por
intermédio das relações de trabalho toyotistas, que se fundamentam em outros
mecanismos de regulação das relações de trabalho (just in time, por exemplo). O eixo
central da reprodução ideológica mudou. Agora, a centralidade do processo educativo
na escola se dá pela educação da empregabilidade, no qual o empreendedorismo, a
resolução de problemas pelo voluntarismo e a idéia de participação popular através da
cidadania perpassam os trabalhos nos documentos oficiais do MEC e das diversas
secretarias estaduais e municipais de educação, e logicamente, da academia.19
Surgem modismos pedagógicos que atendem essas premissas, como a pedagogia
do empreendedorismo, ou pedagogias voltadas para a criação de uma ideologia de
resolução de problemas nos moldes das fábricas centradas no indivíduo, mesmo
possuindo o trabalho coletivo como fundamento. Inúmeros são os exemplos de atuação
de ONGs que oferecem cursos com dinheiro estatal voltados a essa perspectiva.
Também inúmeras iniciativas surgem nas instâncias governamentais em diversas
secretarias no sentido de implementar tais pedagogias, no qual o objetivo é a
flexibilização através da relativização dos conhecimentos.
24

O produto (mercadoria) da escola não deixa de ser produto em função da


relativização do conhecimento, uma vez que ainda é produzido por um trabalhador, que
é o professor. O que ocorre é que o valor de uso é modificado, pois o conhecimento é
apropriado com outra noção de utilidade. Se já há diferentes valores de uso sobre o
conhecimento em virtude das diferentes esferas do sistema de ensino burguês, agora há
uma reorganização prática do conhecimento ministrado para o proletariado, portanto,
uma reorganização de seu valor de uso. Isso se deve às mudanças ocorridas no processo
de trabalho capitalista, o que inclui a reorganização produtiva. A escola, não de forma
imediata, mas sim mediata, acompanha as transformações do capital monopolista.
Quarto, todas as políticas já ditas assim como todas as pedagogias encampadas
pelo Estado fundamentam-se em preceitos liberais. Parece óbvio, mas o óbvio sempre
traz pecados. Um conjunto de militantes e intelectuais pauta-se na “democratização” das
instâncias do Estado. Não há problema propriamente nisto, pois a luta institucional deve
ser feita. A grande questão é que tais práticas referenciam-se na democracia como
instrumento de análise e intervenção política em detrimento do trabalho, o que faz com
que o trabalho deixe de possuir centralidade na prática política. Como conseqüência, as
relações de produção capitalista deixam também de possuir centralidade e, portanto um
projeto de transformação é deixado a segundo plano. Assim, cabe à população – e não
mais operários e proletariado – a democratização do Estado. A educação é vista como a
grande ponte para a cidadania, uma vez que ela inseriria o individuo no mundo dos
direitos, tornando-o um cidadão. A conseqüência dessas análises é uma visão otimista
da educação escolar, caindo em um projeto iluminista, cujo sentido é a educação escolar
como processo de transformação social.
Não existe mais o proletariado como categoria, mas o cidadão, ou seja, um
conceito abstrato de cunho liberal que assume a centralidade estratégica. Estas vertentes
prejudicam qualquer análise razoável da escola, pois ignoram a relação entre escola e
modo de produção capitalista, na qual a relação entre sociedade civil e escola
desvinculada da perspectiva do Estado como instrumento de poder de uma classe sobre
a outra tiram-nas do eixo estatal.
O conceito de democracia é visto como algo universal, independente do modo
em que é instrumentalizado pela classe dominante, portanto, deixa de ser uma variação
de dominação de uma classe sobre a outra, variação que é Estado, para ser algo
25

universal, impossível de ser instrumentalizado, que somente precisa ser aprofundado em


um processo constante de democratização. E a educação (a escola) desenvolve-se à luz
da cidadania plena, mesmo que a cidadania seja exercida em um modo de produção
baseado na desigualdade social e econômica própria de uma sociedade de classes. Aliás,
a cidadania está dentro dos marcos da legalidade burguesa, pois “a aplicação prática do
direito humano de liberdade é o direito humano à propriedade privada” (MARX, 2005,
p. 35).
Como conseqüência, surgiram categorias fomentadas pela militância social-
democrata entendida como esquerda na década de 80 e desenvolvidas ao longo da
década de 90 que não se embasam no trabalho enquanto categoria. O irônico é que tais
categorias são assumidas por quase a totalidade dos partidos burgueses, inclusive o
PSDB (Partido Social-Democrata Brasileiro). No documento Um novo Estado para
uma nova Sociedade, programa do governo FHC para o segundo mandato, há uma
aplicação da categoria cidadania que como conseqüência formula um conceito: a
inclusão social. Este conceito é assumido pela esquerda sob os auspícios de palavras de
ordem como: “o sentido geral da mudança – o grande objetivo com o qual os demais se
alinham – é a inclusão dos excluídos” (p. 6).20 Alguns poderão dizer que o PSDB
utiliza o conceito de forma oportunista. Contudo, quando se analisa o documento, vê-se
que a extensão do conceito é justamente o que o governo petista tem de forte, a saber, as
políticas focalizadas a determinados segmentos da sociedade e as políticas
compensatórias de erradicação da miserabilidade, combinadas com a minimização do
Estado.
Entretanto, a argumentação correta a ser feita é que, independente da forma
como a categoria e o conceito são apropriados, o resultado somente pode ser o de
políticas focalizadas e compensatórias, pois a categoria democracia e o conceito
inclusão social esquecem e/ou disfarçam uma das principais contradições antagônicas
do capitalismo mundial: por mais que o indivíduo esteja alheio ao processo produtivo
devido a sua situação de miserabilidade, isto de forma alguma significa que ele não
participa do processo produtivo enquanto mercado industrial de reserva de mão de obra.
Um catador de papelão ou de latinhas é também mercado industrial de reserva de mão
de obra, e que caso o capital necessite, e por mais que se viva sob a subsunção real do
trabalho ao capital, não restam dúvidas que o Estado o coagirá a fim de que se torne
26

trabalhador produtivo. É esta a lógica atual do sistema produtivo, e conseqüentemente é


a lógica do sistema de ensino – e do Estado como um todo – na medida em que
acompanham a reorganização produtiva, pois sua ligação com as forças produtivas e as
relações de produção capitalista é inegável, sendo sua negação apenas um aspecto da
luta de classes no âmbito ideológico.

Referências
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos
ideológicos de estado (AIE). 9ª Ed. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura
Viveiros de Castro: introdução crítica de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1985.
CORNFORTH, M. Introdução ao materialismo dialético: o materialismo dialético..
Tradução de Maria Helena Lopes. Lisboa, Estampa, 1976.
FILHO, C. Imperialismo. Tomo III. Rio de janeiro: Calvino Filho Editor, 1952.
FINN, D.; GRANT, N.; JOHNSON, R. Democracia Social, Educação e Crise. In: Da
ideologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores S.A., 1980.
FREITAG, B. Escola, Estado e Sociedade.7ª Ed. São Paulo: Centauro, 2005.
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 4 ed. rev. e ampl. São Paulo: Ática, 1985.
_________________. Apresentação. In: O Capital: crítica da economia política.
Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. Livro. I. Vol. I. Tomo I. São Paulo:
Nova Cultural, 1996.
LENINE, V. I. Materialismo e Empiriocritismo: notas críticas sobre uma filosofia
reacionária. Edições Avante! – Edições Progresso: Lisboa – Moscou, 1982.
____________. Imperialismo, etapa superior do capitalismo. Disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ma000022.pdf
____________. O Estado e a Revolução. Disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ma000019.pdf
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Tradução de Regis Barbosa e
Flávio R. Kothe. Livro. I. Vol. I. Tomo I. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
27

________. O Capital: crítica da economia política. Tradução de Regis Barbosa e Flávio


R. Kothe. Livro I. Vol. I. Tomo II. São Paulo, Abril Cultural, 1984a.
________. O Capital: crítica da economia política. Tradução de Regis Barbosa e Flávio
R. Kothe. Livro II. Volume II. São Paulo: Abril Cultural, 1984b.
________. Trabalho produtivo e trabalho improdutivo. In: A dialética do trabalho.
Ricardo Antunes (org.). São Paulo, Editora Popular, 2004.
________. A questão judaica. Tradução de Silvio Donizete Chagas. 5ª Ed. São Paulo:
Centauro, 2005.
PONCE, A. Educação e luta de classes. 21ª Ed. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira. São Paulo: Cortez, 2005.
SAVIANI, D. Trabalho e Educação: fundamentos ontológicos e históricos. Revista
Brasileira de Educação. v.12. n.34. p. 152-180, jan./abr. 2007
SUCHODOLSKI, B. A pedagogia e as grandes correntes filosóficas: a pedagogia da
essência e a pedagogia da existência. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2002.
1
Sobre idealismo e materialismo mecanicista ver Lênin (1982) e Cornforth (1976). Também é interessante ver o modo em
que Suchodolski (2002) parte destas premissas para categorizar determinadas correntes pedagógicas em pedagogia da
essência e pedagogia da existência. Suchodolski é coerente com a obra de Lênin quando afirma que somente será possível
existir uma pedagogia que vise o humano quando existir uma “via que permitirá resolver s conflitos seculares que existem
entre a pedagogia da essência e a pedagogia da existência e superar as tentativas falhadas de conciliação dessas duas
pedagogias”.
2
A alienação é um processo próprio das relações de produção, portanto, estrutural, que termina na superestrutura e na
subjetividade humana, e não o contrário. A alienação da mercadoria ocorre onde há valor de troca, na qual a conseqüência é
a dissociação entre valor de uso e valor de troca, o que não é o caso do conhecimento em uma escola estatal, pois o
conhecimento é apropriado pelo estudante e nem por isso o produto separa-se do professor (produtor): “O que lhes confirma
isso” (atribuição do valor enquanto coisas, independente de suas propriedades) “é a estranha circunstância que o valor de
uso das coisas se realiza para o homem sem troca, portanto, na relação direta entre coisa e homem, mas seu valor, ao
contrário, se realiza apenas na troca, isto é, num processo social” (MARX, 1996, p. 208).
3
Segundo Marx, quando “o produto não é separável do ato de produção”, tal trabalho tem uma atuação no modo de
produção “limitada”, pois devido à “própria natureza da coisa”, o modo formal de produção “não se dá em algumas esferas”
da produção e circulação. Como exemplo têm-se as “instituições de ensino”, em que “os docentes podem ser meros
assalariados para o empresário da fábrica de conhecimentos”, não devendo “considerar o mesmo para o conjunto da
produção capitalista” (MARX, 2004, p.170). Pode parecer contraditório, mas o tudo indica, Marx não resolveu
satisfatoriamente o que ele chama de formas de transição. Ver nota 13.
4
O Estado e a Revolução, de Lênin, disponível em www.dominiopublico.gov.br
5
Acredita-se que quando Marx fala que uma função improdutiva não gera produto, esteja objetivando produto como valor
de troca e não como valor de uso, pois não há possibilidade de existir produto que não possui valor de troca no processo de
circulação de mercadorias. Apesar de ser um livro consagrado à circulação, Marx é claro neste trecho que se referencia em
funções improdutivas na reprodução, e não necessariamente na circulação, apesar da reprodução incluí-la.
6
Custos falsos.
7
Cabe um parêntese que o termo falsos custos é utilizado por Marx para exemplificar o que é improdutivo no processo de
circulação. É obvio que o professor (a escola estatal) não produz nada que entra no processo de circulação, pois isto
significaria dizer que ele produz mercadorias com valor de troca.
8
Interessante analisar o modo que se deu a coisificação do escravo negro no período colonial. Gorender (1985) diz que, em
meio a reificação do negro como ser humano, os crimes praticados pelos escravos consistiam justamente na ampliação da
luta dos escravos contra a coisificação, uma vez que os crimes obrigavam os senhores e a colônia a admitir que os escravos
eram humanos, pois eram puníveis.
9
Sobre a forma como a colonização participou da acumulação primitiva do capital, ver Marx (1984a), especialmente o
capítulo XXV, A teoria moderna da colonização.
10
Imperialismo, etapa superior do capitalismo, de Lênin, retirado do site www.dominiopublico.gov.br
11
Em virtude dos limites dados no presente texto, não ocorrerá uma análise, nem mesmo sucinta, da LDB 4.024. Para uma
visão mínima da lei, ver Bárbara Freitag (2005), em especial o capítulo A fase de 1945-1964.
12
“No capitalismo avançado dos dias atuais seria errôneo deixar de qualificar a pesquisa científica e o desenvolvimento de
projetos como trabalho produtivo, ao passo que o marketing e a propaganda entram, sem dúvida, no âmbito do trabalho
improdutivo, pois sua utilização não é suscitada senão pela natureza mercantil e concorrencial do modo de produção
capitalista” (GORENDER, 1996, p. 40).
13
“Como é sabido, a ciência atual praticamente resolveu o problema da desintegração do núcleo atômico. Mas, o
imperialismo, interessado somente em utilizar a energia atômica para os seus objetivos militares, transforma-a numa arma
de chantagem e de luta pelo domínio mundial. Entretanto, a perspectiva de aplicação da energia atômica, em condições
pacíficas, abre possibilidades sem precedentes para o aumento do poder do homem sobre a natureza” (LEONTIEV apud
CALVINO FILHO, 1952, p. 157).
14
Segundo Marx, “o mestre-escola que é contratado com outros para valorizar, mediante seu trabalho, o dinheiro do
empresário (entrepreneur) da instituição que trafica o conhecimento (knowledge mongering instituion) é trabalhador
produtivo”. Contudo, “a maior parte desses trabalhos, do ponto de vista da forma, mal se subsumem [incluem] formalmente
no capital: pertencem às formas de transição” (MARX, 2004, p. 165).
15
O vestibular com o rebaixamento da qualidade do ensino foram os fatores da formação de uma grande indústria hoje, é a
dos cursinhos preparatórios.
16
Marx analisa o modo em que o salário do trabalhador pertence inerentemente ao processo de circulação da mercadoria,
chamado de subdepartamento a (meios de subsistência) do departamento I (meios de consumo), nos capítulos XX e XI,
consagrados à Reprodução Simples e Acumulação e Reprodução Ampliada, respectivamente (MARX, 1984b). É claro que
as pessoas que recebem qualquer quantia proveniente do Estado não trabalharam, mas tão claro quanto isto é o fato de que o
dinheiro recebido entra na circulação no momento da compra dos meios de subsistência.
17
Quando se utiliza o termo “transformação” o objetivo não é outro senão o de pontuar que capital produtivo e improdutivo
hoje, nas políticas estatais, estão em razão inversamente proporcional: quanto menos se investe em políticas sociais (funções
improdutivas), mais espaço há dentro da máquina estatal para o capital produtivo. Logicamente, não há transformação de
capital improdutivo em produtivo, mas a imobilização de capital improdutivo no neoliberalismo é menor do que em um
Estado de bem-estar social. Contudo, não se pode deixar de pontuar que há hoje uma espécie de transformação de capital
improdutivo em produtivo na medida em que a iniciativa privada passa a abarcar a funcionalidade da maquina estatal, como
a própria educação. O capital oriundo dos impostos, improdutivo nas mãos do Estado, torna-se produtivo quando é lançado
para uma empresa, pois é de certa forma, no mínimo, reposição de capital adiantado pelo capitalista.

18
A terceirização é um exemplo dos atuais mecanismos de acumulação no neoliberalismo, que é uma empresa formada para
trabalhos normalmente improdutivos, mas que por ser uma empresa, que é paga com dinheiro estatal que em algum
momento saiu do capital produtivo em seu processo de produção e de circulação, há a transformação do serviço de um
faxineiro, por exemplo, em mercadoria. A transformação de trabalho improdutivo em produtivo é direcionada e amplamente
incentivada pelos mais diferentes mecanismos estatais. É um processo que acontece em toda a máquina estatal, inclusive a
educação. Nas universidades isto se dá pelo advento das fundações de direito privado, que passam a cobrar mensalidades e
assim auferem lucros com o capital fixo dado pelo próprio Estado, pois normalmente os cursos são dados nas próprias
instalações das universidades estatais.
19
Infelizmente devido aos limites do presente trabalho, não há possibilidade de se adentrar de forma mais detida na relação
entre relações de trabalho do processo de trabalho capitalista atual com as mudanças teóricas no âmbito da Pedagogia.
Fazem-se necessárias pesquisas que tenham por objeto tal relação, pois a hipótese aqui defendida é que há uma relação
intrínseca. Tal relação é subsidiada na análise da relação na história da educação, particularmente o exposto sobre as
políticas da educação na ditadura militar pautadas no tecnicismo pedagógico.
20
Disponível no site oficial www.psdb.org.br

Você também pode gostar