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ARTAUD
Monólogo de Wilson Coêlho

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I – EPISÓDIO: A ESTADIA DE ARTAUD EM SAINT DIZIER

ARTAUD
Eu não tenho vida
Eu não tenho vida
Minha efervescência interna está morta
Asseguro-te que não há nada em mim
Nada daquilo que constitui a minha pessoa
Que não seja produzido pela existência de um mal
Anterior a mim mesmo
Anterior a minha vontade
Nada em nenhuma de minhas hediondas reações
Que não venha unicamente da doença
E que não lhe seja em qualquer dos casos imputável.

II – EPISÓDIO: ARTAUD E OS DUPLOS EM LE CHANET

ARTAUD (SENTADO NA PRIMEIRA CADEIRA)


Senhores
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O que é um autêntico louco


Senão um homem que preferiu enlouquecer
No sentido em que a sociedade entende a palavra
A trair uma certa idéia de honra superior humana
Eis porque a sociedade condenou
Ao estrangulamento
Em seus manicômios
Todos aqueles dos quais queria se livrar
Contra os quais queria se defender
Porque eles se haviam recusado a se cumpliciar
Em certos atos de suprema sujeira
Pois um louco é também um homem
A quem a sociedade não quis ouvir
E a quem deseja impedir a expressão
De verdades insuportáveis

ARTAUD (SENTANDO-SE NA SEGUNDA CADEIRA)


Você pode ter tudo
Artaud
Salvo o domínio de seu espírito

ARTAUD (SENTA-SE NA PRIMEIRA CADEIRA)


Eu não estou louco Dr. Toulouse
Não estou louco
E digo que não estou louco

ARTAUD (SENTA-SE NA SEGUNDA CADEIRA)


Você não é sempre senhor de seu espírito
E se a gente pudesse apenas ser senhor

ARTAUD (SENTA-SE NA TERCEIRA CADEIRA)


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Possuir todos os meios


E poder fazer tudo com as próprias mãos
Com o próprio corpo
E sermos donos de nosso corpo

ARTAUD (SENTA-SE NA SEGUNDA CADEIRA)


Eu e meu colega de trabalho
Queremos saber a sua opinião sobre os psiquiatras

ARTAUD (SENTA-SE NA PRIMEIRA CADEIRA)


Após nove anos em diversos hospícios
Tenho sólidas concepções sobre o assunto
É quase impossível ser psiquiatra e homem honesto
Ao mesmo tempo
Mas é escandalosamente impossível ser psiquiatra
Sem ser ao mesmo tempo afetado pela loucura mais indiscutível
A de ser incapaz de lutar
Contra aquele reflexo plebeu antigo
E atávico que faz de qualquer médico nas garras da plebe
Um inimigo nato
Congênito de todo gênio

ARTAUD (SENTA-SE NA SEGUNDA CADEIRA)


Você está louco senhor Artaud

ARTAUD LEVANTA-SE TRANSTORNADO E COMEÇA A CAMINHAR EM


CÍRCULOS, CABEÇA ERGUIDA E BRAÇOS ABERTOS.

ARTAUD (À PLATÉIA)
Quando a lua se lança sobre o campo de caça
Como nos cruéis sonhos sem fim
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Surge o cão do inferno cuja presença ultrapassa


O pavor do pesadelo e a morte ruim

Quando a lua se lança sobre o campo de caça


Ele deseja almas tenras para o sono da morte
E saltando do inferno como uma ameaça
Traz entre os dentes a chama rubra da má-sorte

Quando a lua se lança sobre o campo de caça


Quem se atreve a perseguir o fantasma indomável
Misteriosamente gerado de um cão de raça
Não caia vítima de sua fúria implacável

ARTAUD (SENTA-SE NA SEGUNDA CADEIRA)


Ele estava exorcizando seus demônios interiores
Por meio de cabalas negras
Com certos rituais e às vezes cartas tarot

ARTAUD (SENTA-SE NA TERCEIRA CADEIRA)


Essa mania que ele tem de ficar rodando feito uma barata
Sem nunca sair do mesmo lugar
Enquanto declara palavras de encantamento
Me parece que é puro charlatanismo
Para nos impressionar Dr. Toulouse

ARTAUD (SENTA-SE NA SEGUNDA CADEIRA)


Você está louco senhor Artaud

ARTAUD (SENTA-SE NA PRIMEIRA CADEIRA)


Eu não estou louco Dr. Eduard Toulouse
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ARTAUD (SENTA-SE NA TERCEIRA CADEIRA)


Você está louco senhor Artaud

ARTAUD (SENTA-SE NA PRIMEIRA CADEIRA)


Eu não estou louco Dr. Soulié de Morant

ARTAUD (SENTA-SE NA SEGUNDA CADEIRA)


Garanto-lhe que o senhor está louco

ARTAUD (SENTA-SE NA PRIMEIRA CADEIRA)


Eu próprio passei nove anos em manicômios
E nunca sofri da obsessão de querer me suicidar
Mas sei que a cada conversa com um psiquiatra pela manhã
Dava vontade de me enforcar
Por não saber que podia estrangula-lo

ARTAUD (SENTA-SE NA TERCEIRA CADEIRA)


O senhor está delirando senhor Artaud

ARTAUD (SENTA-SE NA PRIMEIRA CADEIRA)


Eu não estou delirando e não estou louco

ARTAUD (SENTA-SE NA TERCEIRA CADEIRA)


Agora, Dr. Toulouse
É preciso que o homem se decida sobre sua castração

ARTAUD (SENTA-SE NA PRIMEIRA CADEIRA)


Como assim

ARTAUD (SENTA-SE NA SEGUNDA CADEIRA)


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Como assim

ARTAUD (SENTA-SE NA TERCEIRA CADEIRA)


Sob todos os aspectos o senhor está louco
E louco varrido

ARTAUD
Eu estava no Gólgota há dois mil anos atrás
E meu nome era como sempre foi
E eu estava lá no monte
No Gólgota
E eu detestava os padres e Deus
Razão pela qual fui crucificado
Por ser poeta e iluminado
Depois fui atirado a um monte de esterco
Eu conheço aquele patifezinho imundo
Aquele terrível judeu enfeitiçadorzinho
A quem toda a cristandade adora
E que se faz passar e ser aceito
À luz de hoje sob o nome de Jesus Cristo
O Ressuscitado

(LEVANTANDO-SE, À PLATÉIA)
Ponham-me na camisa de força se quiserem
Mas não há nada mais inútil que um órgão
Não admito
Não admitirei nunca
E não perdoarei a ninguém
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Por me esfolarem vivo


Durante toda esta minha existência

III – EPISÓDIO: ARTAUD NUMA SESSÃO DE ANÁLISE COM O DR.


TOULOUSE

ARTAUD
Sinto espasmos dolorosos no lado direito do pescoço
Que cortam a respiração e os membros ficam frios
Insensíveis e começam a formigar aí uma comichão
Violenta que muda repentinamente das pernas
Para os braços, a coluna vertebral que estala em vários pontos

Dolorida na extremidade superior


Uma fraqueza terrível que me deixa a ponto de cair
De repente uma ampliação terrível
E insuportável compressão no crânio e nas omoplatas
Às vezes uma câimbra generalizada que vai e vem
Em outras todos os sintomas de febre alta
Calor/calafrios
Zumbidos nos ouvidos/dor causada pela luz
Somente com as drogas eu me sinto bem
Elas me restituem uma certa tranqüilidade
Me dão a ilusão de ter alcançado
Um certo equilíbrio
Me lembro de um homem num sonho julgando haver
Um problema resolvido enquanto sonhava
E na manhã seguinte ao despertar
Seu problema continuava sem solução

O que afinal de contas é um poeta?


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Senão um homem que visualiza e concretiza


Suas idéias e imagens intensas
Com mais propriedade de expressão do que os outros
E lhes dá através da linguagem o caráter de fato
Desenvolve através de uma ruptura social
Uma luta consigo mesmo
Porque a expressão dos antagonismos constitui
A meu modo de ver
O princípio de todo o teatro moderno
E também uma esperança de destravá-lo
Somente vivendo o conflito poderá o poeta
projetá-lo para fora de si mesmo

pois esta sociedade que me reprime me pagará


brevemente
irei desmoroná-la completamente
apenas ficando entre os escombros o vento
limpando o pó e as sujeiras

Eu só concebo o drama em mim mesmo perenemente


Não existe o drama fora da minha personalidade aflita
Sinto que forças demoníacas que não controlo
De todo jeito conspiram para me destruir o espírito
Querem aniquilar a minha alma de poeta

O teatro parece um meio adequado para me ajudar


A ter um novo corpo / um novo espírito
Será o suporte em que subirei bem alto
Para cuspir na cara do mundo
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É preciso acreditar num sentido da vida renovado


Pelo teatro

Onde o homem impavidamente torna-se senhor daquilo


Que ainda não existe
E o faz nascer
E tudo que ainda não nasceu vir a nascer
Contanto que não nos contentemos em ser
Simples órgãos de registro

IV – CARTA AOS REITORES

ARTAUD:
Na cisterna estreita que vocês chamam de pensamento
Os raios espirituais apodrecem como a palha
Quero dizer que a Europa se cristaliza e lentamente se mumifica
Sob grilhões de suas fronteiras
Suas fábricas
Seus tribunais
Suas universidades
O espírito congelado fende-se sob as lajes
Lajes que o prensam
A culpa é de vossos sistemas embolorados
Da vossa lógica de dois e dois são quatro
É vossa culpa
Reitores universitários
Presos nas malhas de vossos silogismos
Produzis engenheiros
Juízes
Médicos incapazes de aprender
Os verdadeiros mistérios do corpo
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As leis cósmicas do ser


Falsos cientistas
Cegos para o mundo além da terra
Filósofos que pretendem possuir
A capacidade de reconstruir o espírito
Deixai-nos sozinhos senhores
Não passais de usurpadores
Com que direito pretendeis
Canalizar a inteligência e diplomar o espírito

V – EPISÓDIO: CARTAS PARA JACQUES RIVIÊRE

GRITOS EM OFF
Me recuso a tomar essas drogas seus
Filhos-de-uma-puta

ARTAUD (Sentindo dores)


Meu caro Jacques Riviêre
Aqui os outros loucos derrubam tinta em meus papéis
Meus livros e meus escritos
Todas as manhãs meu trabalho deve ser refeito pois
Os loucos com ciúme de minha felicidade se sentem
Infelizes e comprazem-se em destruir-me a imagem

GRITOS EM OFF
Se você não tomar esses remédios
Vou enfiar essa vassoura no seu cu

ARTAUD (Escrevendo)
Sinto dores terríveis Jacque Riviêre
A horrível compressão da cabeça e do alto da vertebral
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O peito opresso
As visões de sangue e de morte
Os torpores
O horror geral em que me encontro mergulhado
Com um espírito no fundo intacto
Tornam inútil esse espírito

GRITOS EM OFF
Está bem já que você não toma o remédio
Tomará o chá-da-meia-noite

ARTAUD (Escrevendo)
Meu caro Jacques Riviêre
A opressão sobre a nuca é sempre arrasadora
Cada vez que me ponho a trabalhar calmo
Minhas lutas não são as de um cérebro que vai bem
Mas de quem vai mal

CAI DE JOELHOS GRITANDO DE DOR E NO MESMO INSTANTE


GARGALHADAS SE INTENSIFICAM FORA DE CENA

VI – EPISÓDIO: TEATRO DE VANGUARDA

ARTAUD:
Temos que formular a idéia de um teatro de vanguarda
Voltado para a exploração das idéias dramáticas
Ligadas à concepção surrealista
Um teatro do fantástico e do grotesco
Do sonho e da obsessão
O teatro tradicional serve aos idiotas/loucos
Invertidos/indivíduos com instrução primária
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E antipoetas positivistas ocidentais pois este


Teatro fede e inacreditavelmente
A homem provisório, material e eu diria até que
Fede a carne putrefata de homem
O teatro tradicional está num adiantado estado
De decadência
Imita uma sinistra realidade e ao realizar peças
Estórias de interesse humano
Cenas íntimas das vidas de alguns títeres converte
O público em fantoches bisbilhoteiros
E agora eu quero dizer uma coisa
Que talvez cause espanto a muita gente
Eu sou inimigo do teatro
E sempre fui
Tanto mais amo o teatro por isso mesmo o odeio
Quero um teatro cruel
Porque o teatro da crueldade significa acima de tudo
Um teatro difícil e cruel para mim mesmo
E ao nível da interpretação
Não se trata da crueldade que infligimos um no outro
Cortando mutuamente nossos corpos à faca
Serrando nossas anatomias pessoais
Ou como os imperadores assírios
Mandando pelo correio pacotes de orelhas, narizes
E pernas humanas à perfeição cortados
Mas daquela crueldade muito mais terrível e necessária
Que as coisas podem exercer a todos
O teatro deve ser semelhante à peste
Porque a peste é um mal necessário
A peste é superior porque é uma crise completa
Após a qual nada resta exceto a morte
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Ou a purificação absoluta
O teatro é o estado / o local / o ponto
O teatro morreu / Viva! E viva o teatro!
O teatro em si mesmo não existe
Depredação dos clássicos
Negar a propriedade, mostrar o que deve dividir
Lição de realismo / convidar á luta,
Mudar a relação texto-cena-participação ativa
Exaltação de grupo, festa
Explosão física, exuberância, vitória possível
Prática violenta, consígnas, ação!

VII – EPISÓDIO: ARTAUD COSPE NO MUNDO

ARTAUD
Tenho lutado para existir e para experimentar
Consentir nas formas com as quais a delirante
Ilusão de estar no mundo impregnou a realidade
Não desejo continuar enganado por ilusões
Estou morto para o mundo
Para aquilo que a todos constitui ilusão
Do mundo finalmente tombado
Morto e tombado
Erguido dentro do vazio que eu havia rejeitado
Tenho um corpo que experimenta o mundo e vomita
Um corpo que vomita a realidade
Aquele que vos fala é alguém que verdadeiramente
Desesperou e conheceu a felicidade do mundo
Somente agora quando deixou o mundo
Quando absolutamente separado do mundo se desesperou
E conheceu o mundo
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Estamos mortos
Sorrindo enquanto apodrecemos
Os demais não estão separados
Continuam a circular em torno de seus próprios
Cadáveres ambulantes
Eu sofro não somente no espírito
Mas na carne e na minha alma de todos os dias
O desmoronamento central da alma
Essa espécie de erosão essencial do espírito
Sempre senti essa desordem mental
Esse aniquilamento do corpo e da alma
Essa espécie de contração de todos os meus nervos
Em períodos mais ou menos aproximados
Eu sinto sob meus pensamentos um chão
Sob meus pensamentos um chão que desmorona

ARTAUD PÕE O GLOBO TERRESTRE NUM CANTO E MIJA SOBRE ELE

ARTAUD
Eu sujeito o mundo
Eu sujeito o mundo
Eu não aceito o mundo

VIII - EPISÓDIO: DIÁRIO DE ANAIS NIN OU SONHO DE AMOR DE


ARTAUD

ANAIS NIN (OFF)


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Artaud
Magro
Tenso
Rosto enxuto com olhos visionários
Um jeito sardônico
Ora deprimido
Ora deprimido e vibrante
Para ele o teatro é um lugar para se gritar a dor
A raiva
O ódio
Para representar a violência que há em nós

Ele é o ser drogado / contraído / que anda sempre só


Em busca de peças que são como cenas de tortura
Seus olhos são azuis e langorosos / negros de dor
É todo nervos
No entanto era belo ao representar o monge louco
Apaixonado por Joana D`arc no filme de Carl T. D.
Os olhos fundos de místico / como se brilhassem
De dentro das cavernas
Profundo / sombrio / misterioso
Eu tentei libertar Artaud do vício da droga
Como você aconselhou Dr. Allendy

ARTAUD
As pessoas pensam que eu sou louco Anais Nin e você
Acha que eu o seja?
É disso que você tem medo?
A minha ligação amorosa com Gênica Athanasiou
Que após uma briga em Portage de Midi
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Apaixonei-me desesperadamente por ela


E o nosso tempestuoso caso durou uns sete anos
Por entre uma série de crises
Meu amor por Gênica era tão intenso e tão cheio de fervor
Metafísico pela totalidade mas ela apesar de bonita
Era mentalmente lerda e até certo ponto superficial
Só se preocupava com sua carreira teatral e me queria
Apenas como amante que a satisfizesse (Pausa)
Sexualmente
Agora já não existe mais nada entre nós
Posso te garantir minha noiva

ANAIS NIN (OFF)


Eu tinha uma pena enorme de Artaud porque estava
Sempre sofrendo / fisicamente seria incapaz de toca-lo
Mas amava a flama do gênio que ele tinha
Quando me perguntou se era louco
Eu vira nos seus olhos que era
Soube naquele momento pelos olhos dele que o era
E eu adorava sua loucura
Fitei-lhe a boca com os cantos escurecidos pelo láudano
Boca que eu não desejava beijar
Ser beijada por Artaud era ser atraída para a morte
Para a insanidade
Ele se sentava no Coupole jorrando poesias
Falando de magias
Afastava os cabelos do rosto devastado
E a beleza do dia de verão
Não o tocava
E abrindo os braços apontou para a rua apinhada de gente
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ARTAUD

A revolução não tardará tudo isso vai ser destruído


Ele é corrupto e cheio de maldade
O mundo será afirmo
Destruído
Ele é corrupto e cheio de feiúra e está repleto de
Múmias
É o que digo / decadência romana / morta
Eu queria um teatro que fosse como um tratamento de
Choque e que galvanizasse e
Pelo choque obrigasse as pessoas a sentir

ANAIS NIN (OFF)


Pela primeira vez me pareceu que Artaud vivia
Num tal mundo de fantasias que era para si próprio que
Desejava um choque violento para sentir-lhe a vida
A realidade ou a força encarnadora de uma grande paixão

IX – EPISÓDIO: O SONHO DE CURA NO MÉXICO

ARTAUD (Completamente trêmulo, agitado, limpando as mãos constantemente em si


mesmo)
Talvez este estado de fraqueza seja devido ao fato
De ter abandonado o uso de drogas
E ter preparado o meu corpo
Para receber o peiote
Já há muito tempo que não comando mais o meu
Espírito atormentado
E todo impulso que vem do fundo dos meus acessos
Nervosos e do fervilhamento do meu sangue
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E eu me conheço porque me assisto


Eu assisto a Antonin Artaud
E lá no México além deles tem meios certos
De obter cura
Por meio do teatro
Eles tem recursos terapêuticos que se dirige
Ao organismo através de recursos precisos
É uma prática que remonta a uma velha tradição mítica
Pela qual o teatro é considerado terapia
Estou desgostoso com a corrupção
Na sociedade e na arte européia e francesas
Anseio pelo frescor e pureza das culturas extra-européias
A balineza, a chinesa, a tibetana
Com essa bengala de São Patrício eu irei para o México
Possuo a espada que me foi dada por um negro da África
A bengala me veio de deus
Empunho o próprio bastão de Jesus Cristo
E é Jesus Cristo que me comanda em tudo o que fazer
Ficará claro que seu ensinamento destinava-se
Aos heróis metafísicos e não aos idiotas

X – EPISÓDIO: ARTAUD ENTRE OS INDIOS TARAHUMARAS

CORO/INDIOS TARAHUMARAS (Música produzida pelo grupo)

ARTAUD
Louvai a Deus / Irmãos e irmãs / Louvai a Deus
Esposas / Filhos / Amantes
Era uma vez / Fora de todo o tempo
Um grande homem que tinha um sonho
Os homens com sonhos são loucos e perigosos
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Contestam grandes verdades dos noticiários das dez horas


Dos comentários das onze / E patati-patatá
Dos anúncios de chocolate
De coronéis que comem galinha
E lambendo os dedos depois
Porque lamber os dedos pegajosos

VOZ EM OFF:
Está me acompanhando?

ARTAUD
Estou sim, irmão!

CORO/INDIOS TARAHUMARAS (Novamente a música)

ARTAUD
O homem que é professor aqui na missão
Disse: venham comigo pelo mar para descobrir
Uma linha que não existe

VOZ EM OFF:
Está me acompanhando?

ARTAUD
Estou sim, irmão!

CORO/ÍNDIOS TARAHUMARAS (Novamente a música)

ARTAUD
E nós embarcamos / ele era dono
Do navio em que saímos
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Mas naufragou com ele e nos jogou aqui


Na Sierra Madre / zona dos Tarahumaras
Somos todos náufragos, irmãos e irmãs
Ele nos juntou, uniu a todos
Brigou conosco, separou a todos, lutou conosco

VOZ EM OFF:
Está me acompanhando?

ARTAUD
Estou sim, irmão!

CORO/ÍNDIOS TARAHUMARAS (Novamente a música)

ARTAUD
Pediu-nos coisas, insistiu e reclamou
Quase sempre amolou e por fim nos levou
A amar e querer – ou gosta ou morre
Este grão de areia arrancado da água
Do poço sem fundo para ser específico
Do velho pacífico
E ninguém sabe de nós aqui

VOZ EM OFF:
Que Deus tenha pena de você Artaud!
Que Deus tenha pena de você Artaud!
Que Deus tenha pena de você Artaud!

CORO/INDIOS TARAHUMARAS (Novamente a música)

XI – EPISÓDIO: CARTAS PARA JACQUES HÉBERTOT


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ARTAUD
Deverei escrever relatando a minha viagem ao México
Acho que o Sr. Jacques Hébertot não irá se tocar
Se interessar
Senhor Jacques Hébertot / eu sou um fantasma
E o senhor um homem de negócios
O senhor será perpetuamente um diretor teatral
E eu um pobre ator que não teve sucesso apesar
De algum talento que me queira os críticos
Sr. Jacques Hébertot eu preciso ganhar o meu pão
Eu preciso comer eis a minha situação
Invoco eu a amizade que me testemunhou e que já
Passou para o limbo de suas antigas preocupações
Lhe peço apenas trabalho
Dê-me qualquer coisa para fazer não importa o quê
Um papel um lugar no escritório até mesmo um
Emprego de varredor público pois cuspo no meu espírito
As preocupações da fome talvez
Provoquem maus sonhos

XII – EPISÓDIO: A SENTENÇA FINAL CONTRA ARTAUD

ARTAUD
Como alguém que tropeça e dorme nas trevas
De um sonho mais atroz que a própria morte
E hesita antes de abrir os olhos porque
Sabe que aceitar viver é renunciar a despertar
Assim com a minha vida e alma
Marcadas com as taras que a vida me marcou
Eu envio a Deus que me fez esta alma em incêndio
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E que a trate de curar


Deixa-me beijar tuas mãos quentes senhor
Antes que o fogo que a tudo destrói
Não destrua estas pétalas macias
Antes que tudo se acabe
Como um grande vento
CAI O PANO

Monólogo de Wilson Coêlho

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