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ARTAUD
Monólogo de Wilson Coêlho
ARTAUD
Eu não tenho vida
Eu não tenho vida
Minha efervescência interna está morta
Asseguro-te que não há nada em mim
Nada daquilo que constitui a minha pessoa
Que não seja produzido pela existência de um mal
Anterior a mim mesmo
Anterior a minha vontade
Nada em nenhuma de minhas hediondas reações
Que não venha unicamente da doença
E que não lhe seja em qualquer dos casos imputável.
ARTAUD (À PLATÉIA)
Quando a lua se lança sobre o campo de caça
Como nos cruéis sonhos sem fim
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Como assim
ARTAUD
Eu estava no Gólgota há dois mil anos atrás
E meu nome era como sempre foi
E eu estava lá no monte
No Gólgota
E eu detestava os padres e Deus
Razão pela qual fui crucificado
Por ser poeta e iluminado
Depois fui atirado a um monte de esterco
Eu conheço aquele patifezinho imundo
Aquele terrível judeu enfeitiçadorzinho
A quem toda a cristandade adora
E que se faz passar e ser aceito
À luz de hoje sob o nome de Jesus Cristo
O Ressuscitado
(LEVANTANDO-SE, À PLATÉIA)
Ponham-me na camisa de força se quiserem
Mas não há nada mais inútil que um órgão
Não admito
Não admitirei nunca
E não perdoarei a ninguém
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ARTAUD
Sinto espasmos dolorosos no lado direito do pescoço
Que cortam a respiração e os membros ficam frios
Insensíveis e começam a formigar aí uma comichão
Violenta que muda repentinamente das pernas
Para os braços, a coluna vertebral que estala em vários pontos
ARTAUD:
Na cisterna estreita que vocês chamam de pensamento
Os raios espirituais apodrecem como a palha
Quero dizer que a Europa se cristaliza e lentamente se mumifica
Sob grilhões de suas fronteiras
Suas fábricas
Seus tribunais
Suas universidades
O espírito congelado fende-se sob as lajes
Lajes que o prensam
A culpa é de vossos sistemas embolorados
Da vossa lógica de dois e dois são quatro
É vossa culpa
Reitores universitários
Presos nas malhas de vossos silogismos
Produzis engenheiros
Juízes
Médicos incapazes de aprender
Os verdadeiros mistérios do corpo
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GRITOS EM OFF
Me recuso a tomar essas drogas seus
Filhos-de-uma-puta
GRITOS EM OFF
Se você não tomar esses remédios
Vou enfiar essa vassoura no seu cu
ARTAUD (Escrevendo)
Sinto dores terríveis Jacque Riviêre
A horrível compressão da cabeça e do alto da vertebral
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O peito opresso
As visões de sangue e de morte
Os torpores
O horror geral em que me encontro mergulhado
Com um espírito no fundo intacto
Tornam inútil esse espírito
GRITOS EM OFF
Está bem já que você não toma o remédio
Tomará o chá-da-meia-noite
ARTAUD (Escrevendo)
Meu caro Jacques Riviêre
A opressão sobre a nuca é sempre arrasadora
Cada vez que me ponho a trabalhar calmo
Minhas lutas não são as de um cérebro que vai bem
Mas de quem vai mal
ARTAUD:
Temos que formular a idéia de um teatro de vanguarda
Voltado para a exploração das idéias dramáticas
Ligadas à concepção surrealista
Um teatro do fantástico e do grotesco
Do sonho e da obsessão
O teatro tradicional serve aos idiotas/loucos
Invertidos/indivíduos com instrução primária
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Ou a purificação absoluta
O teatro é o estado / o local / o ponto
O teatro morreu / Viva! E viva o teatro!
O teatro em si mesmo não existe
Depredação dos clássicos
Negar a propriedade, mostrar o que deve dividir
Lição de realismo / convidar á luta,
Mudar a relação texto-cena-participação ativa
Exaltação de grupo, festa
Explosão física, exuberância, vitória possível
Prática violenta, consígnas, ação!
ARTAUD
Tenho lutado para existir e para experimentar
Consentir nas formas com as quais a delirante
Ilusão de estar no mundo impregnou a realidade
Não desejo continuar enganado por ilusões
Estou morto para o mundo
Para aquilo que a todos constitui ilusão
Do mundo finalmente tombado
Morto e tombado
Erguido dentro do vazio que eu havia rejeitado
Tenho um corpo que experimenta o mundo e vomita
Um corpo que vomita a realidade
Aquele que vos fala é alguém que verdadeiramente
Desesperou e conheceu a felicidade do mundo
Somente agora quando deixou o mundo
Quando absolutamente separado do mundo se desesperou
E conheceu o mundo
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Estamos mortos
Sorrindo enquanto apodrecemos
Os demais não estão separados
Continuam a circular em torno de seus próprios
Cadáveres ambulantes
Eu sofro não somente no espírito
Mas na carne e na minha alma de todos os dias
O desmoronamento central da alma
Essa espécie de erosão essencial do espírito
Sempre senti essa desordem mental
Esse aniquilamento do corpo e da alma
Essa espécie de contração de todos os meus nervos
Em períodos mais ou menos aproximados
Eu sinto sob meus pensamentos um chão
Sob meus pensamentos um chão que desmorona
ARTAUD
Eu sujeito o mundo
Eu sujeito o mundo
Eu não aceito o mundo
Artaud
Magro
Tenso
Rosto enxuto com olhos visionários
Um jeito sardônico
Ora deprimido
Ora deprimido e vibrante
Para ele o teatro é um lugar para se gritar a dor
A raiva
O ódio
Para representar a violência que há em nós
ARTAUD
As pessoas pensam que eu sou louco Anais Nin e você
Acha que eu o seja?
É disso que você tem medo?
A minha ligação amorosa com Gênica Athanasiou
Que após uma briga em Portage de Midi
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ARTAUD
ARTAUD
Louvai a Deus / Irmãos e irmãs / Louvai a Deus
Esposas / Filhos / Amantes
Era uma vez / Fora de todo o tempo
Um grande homem que tinha um sonho
Os homens com sonhos são loucos e perigosos
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VOZ EM OFF:
Está me acompanhando?
ARTAUD
Estou sim, irmão!
ARTAUD
O homem que é professor aqui na missão
Disse: venham comigo pelo mar para descobrir
Uma linha que não existe
VOZ EM OFF:
Está me acompanhando?
ARTAUD
Estou sim, irmão!
ARTAUD
E nós embarcamos / ele era dono
Do navio em que saímos
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VOZ EM OFF:
Está me acompanhando?
ARTAUD
Estou sim, irmão!
ARTAUD
Pediu-nos coisas, insistiu e reclamou
Quase sempre amolou e por fim nos levou
A amar e querer – ou gosta ou morre
Este grão de areia arrancado da água
Do poço sem fundo para ser específico
Do velho pacífico
E ninguém sabe de nós aqui
VOZ EM OFF:
Que Deus tenha pena de você Artaud!
Que Deus tenha pena de você Artaud!
Que Deus tenha pena de você Artaud!
ARTAUD
Deverei escrever relatando a minha viagem ao México
Acho que o Sr. Jacques Hébertot não irá se tocar
Se interessar
Senhor Jacques Hébertot / eu sou um fantasma
E o senhor um homem de negócios
O senhor será perpetuamente um diretor teatral
E eu um pobre ator que não teve sucesso apesar
De algum talento que me queira os críticos
Sr. Jacques Hébertot eu preciso ganhar o meu pão
Eu preciso comer eis a minha situação
Invoco eu a amizade que me testemunhou e que já
Passou para o limbo de suas antigas preocupações
Lhe peço apenas trabalho
Dê-me qualquer coisa para fazer não importa o quê
Um papel um lugar no escritório até mesmo um
Emprego de varredor público pois cuspo no meu espírito
As preocupações da fome talvez
Provoquem maus sonhos
ARTAUD
Como alguém que tropeça e dorme nas trevas
De um sonho mais atroz que a própria morte
E hesita antes de abrir os olhos porque
Sabe que aceitar viver é renunciar a despertar
Assim com a minha vida e alma
Marcadas com as taras que a vida me marcou
Eu envio a Deus que me fez esta alma em incêndio
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