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LITERATURA DE FORA

Literatura de Fora – Olivier


Morel
by CASa • 5 de agosto de 2015 • 0 Comments

Berlim légendes

A identidade é
sempre reacionária.
Ela prende,
aprisiona o desejo:
padroniza, torna
tudo estéril, velho
desde o momento
da concepção.
Identitária, por exemplo, foi a reprodução da lógica da escravidão
na “República dos Palmares”.

Considero Vasco Pratolini, realista italiano do século passado,


um autor identitário (Via de’ Magazzini, Il quartiere etc.). Pratolini
estreou com menos de trinta anos. Mas é possível imagina-lo
jovem? Mesmo com vinte anos, e mesmo sem querer, Pratolini
se apresentava logo como um senhor, como um idoso, em
virtude da sua escrita.

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A identidade é sempre reacionária. Assim escrevemos no


primeiro artigo dessa nossa coluna, falando da
Europa. Houve pessoas que concordaram, outras que
fizeram cara de nojo. Nada mais apropriado, portanto, do que
retomar o assunto com alguns apontamentos que iremos fazer a
partir do extraordinário Berlin légendes ou la Mémoire des
décombres, de Olivier Morel (Paris, Presses Universitaires de
Vincennes, 2014), volume em francês de rara finura intelectual.

Morel é uma daquelas personalidades criativas de difícil


definição. Intelectual? Acadêmico? Cineasta? O autor de Berlin
légendes é professor de Film Studies na Notre Dame University,
mas é também diretor de cinema – o seu On the Bridge foi
apresentado aqui no Brasil no Festival do Rio 2012 –, além de
ser um fotógrafo reconhecido e um ativo public intellectual, como
testemunham as suas contribuições para “Le Monde
Diplomatique”. A criatividade de Morel prefere, então, caminhos
plurais. Nisso o autor de Berlin légendes lembra Pier Paolo
Pasolini, outro artista que também acabou sendo seduzido pelo
fascínio da multiplicidade. Pasolini era mais diretor de cinema ou
mais polemista? Era mais dramaturgo ou mais romancista?
Pasolini, Morel, mas também Jean Cocteau, Gordon Parks e
assim por diante: todos “vastos”, todos que “contêm multidões”,
para evocar o que (“I am large, I contain multitudes”) o poeta
americano Walt Whitman escrevia em Folhas de relva.

Em Berlin légendes, Morel tece uma ode a Berlim de excepcional


beleza. Excepcional no sentido literal da palavra: não é, de fato,
uma a regra, mas uma exceção encontrar um olhar, como nesse
caso, capaz de transformar uma Cidade (em letras maiúsculas)
numa cidade (em letras minúsculas): ou seja, capaz de tornar
visível – graças a um deslize epistemológico – o que não permite
a uma identidade de se estruturar, de participar de uma lógica,
qualquer seja, de territorialização. Eis um trecho de Berlin
légendes: “Não que seja impossível reconstruir a história ou

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nomear os traumas que estão ligados a ela: o fato é que assim


que houver choque, há um certo regime de restos: um resto não-
dito, impossível de entender através das categorias comuns, um
resíduo de brilho, um gosto de ruína quase agramático” (p. 17).
As ruinas, as décombres do subtítulo estão explicadas. Como
podemos – nós, leitores com pés fixamente plantados em solo
latino-americano – deixar de pensar no Brasil?

Pensamos nos dois principais paradigmas territorializantes que


acompanharam a narração do Brasil, do ponto de vista
urbanístico, no decorrer da sequência modernidade/pós-
modernidade: o modelo Gilberto Freyre e modelo Roberto
DaMatta; o primeiro, moderno, o segundo, pós-moderno. O Brasil
de Gilberto Freyre é feito de sínteses, de encontros, de unidades:
cultura europeia e cultura africana, agenciamentos constantes
entre oligarquias e subalternos. Marilena Chauí, entre os outros,
uns quinze anos atrás, mostrou com inalcançável nitidez como
nesta identidade a proposta cultural e política do “Estado Novo”
de Getúlio Vargas encontrou uma consistência ideológica
determinante.

Na versão de um brilhante antropólogo como Roberto DaMatta,


ao invés, a síntese torna-se algo de estratificado, plural, não
unitário em perpétuo devir. E uma coisa é certa: pode ser
moderna ou pós-moderna, congelada nas dobras da história ou
“em trânsito”, compacta ou fragmentada, pode ser hierárquica ou
reticular, mas a identidade continua sendo uma ideologia, um
“discurso”.

Voltamos a Morel para apreciar melhor a especificidade de Berlin


légendes. Morel interpreta Berlim de forma oposta às
modalidades Freyre ou DaMatta, escapando da ideologia,
achando uma saída do discurso. Quem assistiu dois anos atrás
no Rio ao filme de Morel On the Bridge pode entender facilmente
o que estamos querendo dizer: a película-documentário

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representa a figura mais identitária dos EUA: os veteranos de


guerra. Todavia, a perspectiva – na reconstrução da vida pós-
guerra de alguns desses soldados – é outra. On the Bridge é
quanto mais longe do heroísmo prevísível e estereotipado seja
possível imaginar. Ao contrário, os veteranos são representados
na condição de feridos, de traumatizados (a doença é a PTSD, o
post-traumatic stress disorder).

Porém, é justamente essa condição “residual”, o status de


doentes desses veteranos que, longe dos campos de batalha e
das armas, os inspira a contar histórias, a compor músicas. O
processo é o mesmo para Stéphane Hessel, George Tabori, Inge
Deutschkron, Ilse Rewald, Wladimir Kaminer, Inka Parei, Zafer
Senocak, Martin Walser, Christoph Hein, ou seja, os autores que
Morel indaga no livro publicado pelas Presses Universitaires de
Vincennes, escolhendo uma abordagem de cunho pós-
estruturalista, mas não pós-moderno. Os autores analisados por
Morel em Berlin légendes, de fato, de Berlin não valorizam a
identidade, mas a “diferença”, o seu potencial de corpo urbano
“sem órgãos”. A residualidade da literatura considerada por Morel
é uma residualidade “do fora”, inacessível, “suplementar” (dá
para ver que Morel é um dos melhores discípulos, dos discípulos
diretos, de Derrida).

Atenção, porém: citando o “corpo sem órgãos”, nós não estamos


pensando em Deleuze, mas em quem primeiro pensou nessa
expressão: Antonin Artaud. A dimensão que permeia a cidade
deleuziana é feita de “matéria vibrante” (vibrant matter), enquanto
a Berlim de Hessel, Tabori, Deutschkron, Rewald, Kaminer, Parei,
Senocak, Walser e Hein é um espaço vazio de desejos.

Pode-se pensar em algo mais magmático de uma cidade que foi


a ponta de lança do americanismo na Europa na década de
Vinte, que foi nazista até o fim da Segunda Guerra Mundial, que
foi dividida e que se tornou – uma parte de Berlim pelo menos, a

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oriental – organicamente comunista, antes da cidade, novamente


unificada, se apresentar hoje como o ápice neoliberal da
austerity?

Prof. Yuri Brunello

e-mail: ybrunelloomatic@gmail.com

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