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Modernidade e reflexividade:

considerações à luz do pensamento de Anthony Giddens


GEILSON FERNANDES DE OLIVEIRA*
MARCÍLIA LUZIA COSTA MENDES**

Resumo: O presente ensaio teórico tem como objetivo discutir o conceito de


reflexividade na obra do sociólogo inglês Anthony Giddens. Para tanto, por meio de
uma revisão de literatura, tomamos como ponto de análise as condições de
possibilidade desta ação reflexiva indicada pelo autor, considerando-se as suas
perspectivas no que se refere à concepção de uma radicalização da modernidade,
opondo-se ao sentido de uma pós-modernidade, analisando assim os seus reflexos,
entre os quais podem ser explicitados o sentido de desencaixe ou deslocamento. Pelo
viés da modernidade reflexiva, apontada por Giddens, identifica-se uma teoria da
ação social na qual o papel do indivíduo não é visto como mero apêndice das
estruturas que compõem a sociedade, mas compatível com a reflexão e
recomposição das subjetividades e dos sujeitos.
Palavras-chave: Reflexividade; Modernidade; Ação reflexiva.
Abstract: This essay aims to discuss the concept of reflexivity in the work of the
English sociologist Anthony Giddens. To this end, through a literature review, the
starting point for analyzing the conditions of possibility of this reflexive action
indicated by the author, considering their perspectives regarding the design of a
radicalization of modernity, opposing direction a post-modernity, thus analyzing
their reflections, among which may be explained the sense of disengagement or
dislocation. By reflexive modernity, Giddens pointed by bias, we identify a theory
of action in which the role of the individual is not seen as a mere appendage of the
structures, but compatible with reflection and restoration of subjectivities and
subjects.
Key words: Reflexivity; Modernity; Reflexive Action.

*
GEILSON FERNANDES DE OLIVEIRA é Mestre em Ciências Sociais e Humanas pelo
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

**
MARCÍLIA LUZIA GOMES DA COSTA MENDES é Doutora em Ciências Sociais pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Docente do Departamento de Comunicação
Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN.

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Introdução colocando em questão se estaríamos
inseridos em algo posterior à
Na contemporaneidade, definições das modernidade, ou em seu momento de
mais distintas tem buscado enquadrar o transição.
momento corrente no qual estamos
imersos. Modernidade, sociedade pós- Modernidade e reflexividade
industrial, pós-modernidade, seria A concepção de modernidade vem
algum desses o melhor termo para sendo debatida já há bastante tempo.
caracterizar a atualidade, ou nenhum Como eixo principal para estas
deles? E quais as características que discussões, explicita-se que a partir do
poderíamos destacar como expressões seu entendimento, poderemos por
deste momento histórico? consequência compreender as
No presente ensaio, são realizadas sociedades contemporâneas das quais
discussões sobre esta problemática, em somos parte. O sociólogo inglês
específico, sobre a noção de reflexidade Anthony Giddens é um dos autores que
apresentada nas obras do sociólogo tem se dedicado ao estudo da
inglês Anthony Giddens, considerando modernidade, analisando tanto o seu
as condições de possibilidades para que sentido como os seus reflexos nas mais
possamos pensar nesta ação reflexiva, diversas esferas da vida e contextos,
se moderna, pós-moderna, etc. Para passando desde a análise de classes, dos
tanto, são analisados aspectos referentes nacionalismos, questões referentes à
ao que Giddens denomina como sexualidade até as identidades pessoais.
radicalização da modernidade ou alta Como definição para este período
modernidade, termos utilizados para histórico, Giddens (1991, p. 11) afirma
denominar o período contemporâneo, que a modernidade trata-se de uma
em contraposição aos expressos no organização social que teve sua
parágrafo anterior. emergência na Europa a partir do século
Assim, o texto é dividido em duas XVII, a qual tornou-se ulteriormente
partes. Na primeira, discutimos sobre as mais ou menos mundial em sua
noções de modernidade, considerando a influência, proporcionando outros
distinção desta com a tradição, bem costumes e estilos de vida.
como levando em conta os seus reflexos Com a modernidade, é pressuposto o
ou efeitos na vida social e humana. É sentido de deslocamento de um período
neste ponto que são analisadas questões histórico para outro, isto é, da tradição
concernentes a ideia de reflexidade, das sociedades medievais ou pré-
postulada por Giddens como sendo modernas para a modernidade. Tais
“uma conversa do sujeito consigo mudanças, é válido reforçar, não
mesmo”, dando-lhe, por conseguinte as ocorreram de uma hora para outra, mas
possibilidades de autoconstrução em a partir de condições de possibilidades
relação aos conceitos de sujeito e históricas e sociais dadas, a partir das
subjetividades. quais fez emergir a percepção de
modernidade.
Em um segundo momento, buscando
caracterizar o contemporâneo para A análise destas mudanças nos indica a
assim podermos entender a ação partir da leitura de Giddens que os
reflexiva, temos uma breve discussão modos de vida produzidos pela
sobre os sentidos da concepção de alta modernidade desvencilharam-se de
modernidade ou de sua radicalização, modo incisivo dos tipos tradicionais da
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ordem social de forma até então ainda O deslocamento ou desencaixe pode ser
não vista. Segundo o autor, tais entendido pela ideia de separação da
alterações foram mais profundas do que interação das particularidades do lugar
a maioria das formas de mudança que em que ocorrem. A interação efetivada
caracterizaram a passagem dos períodos por telefone ou pela internet são
precedentes. Tanto no que se refere a exemplos deste tipo de interação em que
extensionalidade como a há a diferença entre o tempo e o lugar,
intensionalidade, as transformações podendo ocasionar o sentido de
foram efetivas (1991, p. 14). No que se deslocamento, seja com relação ao
refere ao plano extensional, as local, ao tempo, ou até de si mesmo.
alterações estabeleceram para aquele Além deste, Giddens (1991, 1993)
momento novas formas de interconexão apresenta outros mecanismos de
do meio social entre todas as partes do desencaixe, entre os quais destacam-se
globo terrestre. Já em termos as fichas simbólicas e os sistemas
intensionais, houve mudanças não só peritos (ou sistemas especializados),
nos níveis gerais, mas também nas mais que juntos, compõem os sistemas
íntimas esferas pessoais da nossa abstratos
existência.
As fichas simbólicas são os “meios de
A separação entre tempo e espaço é intercâmbio que podem ser “circulados”
outra mudança advinda com a sem ter em vista as características
modernidade, que insere as relações e específicas dos indivíduos ou grupos
ações sociais em intervalos de espaço e que lidam com eles em qualquer
tempo distintos, incluindo aí não só as conjuntura particular” (GIDDENS,
esferas globais, mas também as 1991, p. 32). Tipos diversos de fichas
particulares, gerando um sentido de simbólicas podem ser distinguidas,
deslocamento, ou como coloca o autor, principalmente aquelas que versam
de desencaixe. O advento dos meios de sobre os meios de legitimação política,
comunicação, que emergem neste no entanto, o dinheiro é um dos
cenário histórico, é outro exemplo do exemplos mais esclarecedores desse
estabelecimento de novas relações que tipo de ficha.
modificaram as noções de tempo e
espaço, como apontado por Giddens. Já os sistemas peritos, referem-se aos
O jornal e a sequência de sistemas de excelência técnica ou
programas de televisão durante o competência profissional que organizam
dia são os exemplos concretos mais as áreas sociais nas quais os indivíduos
óbvios deste fenômeno, mas ele é vivem. Estes oferecem considerável
genérico à organização tempo- grau de confiança aos agentes sociais,
espaço da modernidade. Estamos que pode ser justificada principalmente
todos familiarizados com eventos, pelo alto grau de segurança e conforto
com ações, e com a aparência
que ofertam. Por exemplo, graças a
visível de cenários físicos a
milhares de quilômetros de onde competências desses sistemas, existem
vivemos. O advento da mídia inúmeros remédios para tratamentos que
eletrônica sem dúvida acentuou salvam vidas, o número de acidentes
estes aspectos de deslocamento, na aéreos é pequeno, andamos em carros
medida em que enfatiza a presença sem preocupações quanto às
tão instantaneamente e a tanta possibilidades de risco, ou seja, graças à
distância (GIDDENS, 1991, p. 154- relação de confiança promovida por
155). estes sistemas peritos, os quais
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proporcionam a superação dos complexa e variada de relações, as quais
desconfortos. ainda não foram debatidas de forma
ampla, seja devido às diversas nuances
Estes sistemas, assim como as fichas
que comporta, seja ao seu movimento
simbólicas são mecanismos de
intenso de novidades e mudanças.
desencaixe por removerem as relações
sociais das imediações de seu contexto, O movimento é uma das características
promovendo o sentido de deslocamento sumárias da modernidade, defendem
ou distanciamento entre o tempo e o Bauman (1998) e Giddens (1991).
espaço. Ressalta-se que alguns Diferentemente do período da tradição,
mecanismos de desencaixe, ao invés de quando havia segundo os autores certa
induzirem a insegurança, implicam na permanência e solidez nos
maioria das vezes a atitude de acontecimentos e movimentações do
confiança. É tomando por base esta social, na modernidade, há um
constatação que Giddens afirma que “os movimento frenético de mudanças,
sistemas abstratos propiciaram uma boa impulsionadas desde o advento da
dose de segurança na vida cotidiana que Revolução Industrial, no século XVIII e
estava ausente nas ordens pré- com o desenvolvimento dos meios
modernas” (GIDDENS, 1991, p. 125). técnicos de comunicação, que tornam
ainda mais rápidas e intensas as relações
Pode-se dizer que tais mecanismos têm sociais e os seus movimentos. Com
como fator negativo o fato de tirar as efeito, tais questões são concernentes a
relações sociais ou as trocas e interações todas as instâncias da vida moderna,
de seu tempo e espaço particulares, no principalmente com relação aos
entanto, Giddens (1991, p. 155) indivíduos que a compõem, isto é, aos
assegura que ao mesmo tempo em que sujeitos, bem como aos seus modos de
isto pode ocorrer, outras novas ação e subjetividades. Conforme
oportunidades para a reinserção ao Bauman,
tempo e espaço são apresentadas. O
desenvolvimento dos transportes e o Em outras palavras, a modernidade
auxílio propiciado na dissolução das é a impossibilidade de permanecer
distâncias entre localidades é um fixo. Ser moderno significa estar
exemplo de mecanismo de reencaixe, em movimento. Não se resolve
necessariamente estar em
pois, facilita a percepção de reinserção
movimento – como não se resolve
em contraposição a um deslocamento ser moderno. É-se colocado em
espaço-temporal. movimento ao se ser lançado na
Apesar de reconhecer a ocorrência de espécie de mundo dilacerado entre
a beleza da visão e a feiura da
variados estudos sobre a modernidade,
realidade – realidade que se
Giddens enfatiza que ainda há a enfeitou pela beleza da visão. Nesse
necessidade de uma reflexão mais mundo, todos os habitantes são
apurada sobre ela, baseando-se na nômades, mas nômades que
abrangência insuficiente dos estudos perambulam a fim de se fixar. Além
realizados e, sobretudo, pelo fato das da curva existe, deve existir, tem de
próprias ciências sociais não terem existir uma terra hospitaleira em
refletido sobre ela de forma suficiente. que se fixar, mas depois de cada
Entre os fatores possíveis para este curva surgem novas curvas, com
quadro, pode ser identificado que apesar novas frustrações e novas
de ser um fenômeno específico, a esperanças ainda não destroçadas
(BAUMAN, 1998, p. 92).
modernidade carrega em si uma gama
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Neste movimento de alta velocidade e aspectos da vida humana, desde a
de grande complexidade, Giddens relação com os outros sujeitos até as
(1991) explicita uma atitude de relações entre a intervenção tecnológica
pensamento que põe em questão as no mundo material.
relações entre as estruturas da
No período moderno, a reflexividade
modernidade e os indivíduos. De acordo
passa a ser inserida na própria base de
com ele, ao passo em que há uma
reprodução do sistema, estabelecendo o
distinção entre os antigos referenciais
ponto de vista de que a ação e o
vistos como sólidos e estáveis em
pensamento estão refratados, de forma
relação aos atuais, nos quais a atividade
constante, um com o outro. Esta visão
social é comumente desencaixada dos
pressupõe o fato de que todas as
contextos de copresença, torna-se
práticas sociais da vida social moderna
possível a liberdade de restrições
são examinadas e reformadas
anteriores referentes às práticas e
constantemente, tanto por parte das
hábitos dos sujeitos. Com isto, emerge a
instituições, como também dos sujeitos,
noção de reflexividade.
que adquirem por meio deste exame das
A concepção de reflexividade ou de um próprias ações informações renovadas
sujeito reflexivo é compreendido pela sobre as suas práticas, podendo, neste
premissa de que há por parte dos sentido, modificá-las. Na ideia de
indivíduos um autoexame das suas reflexividade, inclui-se uma “[...]
próprias ações e através dele a reflexão sobre a natureza da própria
possibilidade de reformulação das mais reflexão” (GIDDENS, 1991, p. 49).
diversas práticas sociais e do próprio Em uma sociedade reflexiva, são
sujeito, tendo em vista a percepção de consideravelmente modificadas as
acesso ao pensamento e às informações, relações existentes até então com a
formuladas e reformuladas tradição. Conforme Giddens, estas
continuamente durante toda a existência mudanças expressivas demonstram que
do indivíduo. o mundo contemporâneo superou o seu
passado, isto é, o ultrapassou,
É enfatizado por Giddens que a
abandonando como consequência os
reflexividade não é algo inerente
costumes, hábitos, crenças e rotinas que
somente à modernidade, de modo que
caracterizavam a tradição. Analisando
sua presença pode ser observada nas
os sentidos e reflexos da modernidade,
sociedades pré-modernas, no entanto,
na obra Conversas com Anthony
está “[...] limitada à reinterpretação e
Giddens (GIDDENS; PIERSON, 2000),
esclarecimento da tradição”
os autores apontam que a reflexidade
(GIDDENS, 1991, p. 48),
possui duas percepções: uma que é
diferentemente do que acontece na
bastante ampla e outra que se refere de
modernidade, quando a reflexividade se
forma mais direta à moderna vida
estende para outros domínios, logo,
social.
assumindo um caráter distinto. Afirma-
se que em todas as culturas, as De um ponto de visão mais amplo,
mudanças por meio do acesso às “todo ser humano é reflexivo no sentido
informações são existentes, mas que é de que pensar a respeito do que se faz é
somente nas sociedades modernas que parte integrante do ato de fazer, seja
esta revisão ou reflexão toma conscientemente ou no plano da
proporções maiores, sugerindo a sua consciência prática” (GIDDENS;
aplicação no que se refere a todos os PIERSON, 2000). Ao mesmo tempo, a
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reflexividade social é considerada Com o objetivo de explicitar a
aquela produzida em um mundo que concepção de reflexividade com base
cada vez mais é atravessado e nas ideias de Giddens, pode-se afirmar
constituído pelos sistemas de que a reflexividade está presente
informação, e não mais pelos modelos quando o sujeito ou um agrupamento
anteriormente preestabelecidos de passa a constituir conselhos
conduta, portanto, da ação. comunitários para discutir e refletir
questões referentes ao seu bairro ou
A perspectiva de Giddens propõe que ao
cidade, quando diante de situações
nos afastarmos da natureza e da
econômicas difíceis buscam
tradição, passamos a ter de tomar
desenvolver estratégias para lidar com
decisões diversas, cada vez mais
este quadro, ao fazer as suas próprias
prospectivas. Neste sentido, é defendido
escolhas de forma independente
pelo autor que temos vivido em um
conscientemente, tanto em níveis
mundo muito mais reflexivo do que
amplos, até os mais particulares, como
aquele das nossas gerações precedentes.
nas escolhas sexuais e construção da
A modernidade, afirma, reconstruiu a
identidade. Percebe-se, dessa forma, a
tradição ao mesmo tempo em que a
rejeição ao ponto de vista de que o
dissolvia.
comportamento humano seria resultado
A tradição, pode-se afirmar, perdeu o somente das forças exteriores ao próprio
seu lugar até então privilegiado dando sujeito, tidas como deterministas da
espaço para a noção de “reflexividade ação.
institucional”, termo entendido pela
explicação de que é institucional por ser Ao contrário, graças à renovação
parte de todas as atividades sociais do constante das informações apreendidas,
momento corrente, e reflexiva por poder há também uma reforma das práticas
propiciar modificações no sujeito, reflexivas, tidas como sociais. Constrói-
levando-se em conta a possibilidade de se o entendimento de que os sujeitos
escolha e decisão, seja com relação ao possuem uma história própria, a qual é
consumo, a sexualidade, enfim, nas constituída pela constante ação
mais corriqueiras e diversas ações. reflexiva, autônoma e fora de vieses
deterministas, podendo ser significada,
Nas sociedades tradicionais, os sujeitos
resignificada e modificado por meio da
possuíam uma dependência das forças
reflexão durante toda a existência do
exteriores, explicita Giddens, o que
sujeito, implicando a possibilidade de
limitava as suas possibilidades de ação e
mobilidade e em um sentido mais
era perpetuado pela experiência entre
amplo, a alteração da ordem social.
gerações. Nestas discussões entre
tradição e modernidade reflexiva, é Com o alto grau de reflexividade da
importante destacar que esta última é modernidade, há a proposta de crescente
um processo em andamento, e é através autonomia frente às expectativas do
dele que os sujeitos passam a poder meio social. Formas e opções de levar a
escolher e refletir sobre as suas ações, vida são então libertadas da tradição e
assim como aos seus próprios destinos e abrem-se espaços outros para
escolhas, todavia, ainda convivendo exploração e experiências pessoais. No
com algumas das velhas tradições e os que diz respeito à questão das
seus discursos que vão aos poucos identidades, conforme Giddens estas
sendo reconfiguradas de acordo com os também são perpassadas pelas ações
preceitos da modernidade. reflexivas, passando a ter um caráter
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aberto, não sendo mais “uma passagem da modernidade para algo
identidade”, mas “autoidentidade”, ou posterior – sociedade industrial, pós-
seja, maior recorrência de reflexões moderna, hiper-moderna, etc. É sobre
sobre quem se é e/ou quem se pode ou esta questão que trataremos no tópico
poderá ser o sujeito (GIDDENS, 1993; seguinte.
2002, p. 41).
Modernidade: já estamos em um
Com os momentos de reflexividade, depois?
identificados pelo autor como “uma
conversa consigo mesmo” (GIDDENS, Desde o final do século XX, alguns
1993, p. 103), as identidades são estudiosos (LYOTARD, 1990;
igualmente tornadas reflexivas. A JAMESON, 1996; LIPOVETSKY e
proposta do teórico é que há uma nova CHARLES, 2004, et al) tem
identidade, ou novas identidades para o argumentado que o mundo como o
“eu” da modernidade, sendo esta conhecemos estaria no limiar de uma
passível de revisões e monitoramentos nova era, a qual estaria nos levando para
recorrentes realizados pelo próprio caminhos além da modernidade. Tais
sujeito. O eu torna-se “um projeto perspectivas atravessaram a passagem
reflexivo”, assim como a concepção de do século XX para o XXI e, neste
identidade, vista como algo cenário, uma grande diversidade de
“autoconstruída” pelos processos termos emergem buscando definir tanto
reflexivos individuais e coletivos. este momento de transição quanto o que
vem depois dele, pois, alguns teóricos
Mais uma vez, destaca-se que este “eu” postulam que já estamos vivendo nesse
reflexivo não se trata de uma entidade novo período ou nova ordem social.
estabilizada e muito menos passiva ou Alguns a definem como sociedade da
determinada, isto é, identificada informação ou de consumo, enquanto
somente pelas influências sociais outros alegam a necessidade de
determinantemente externas. Em pensarmos no sentido de uma ruptura ou
oposição, é um “eu” que trama e encerramento da modernidade,
desenvolve a sua autoidentidade, propondo que vivemos em tempos pós-
pautado na sua autonomia conduzida modernos, pós-industriais e até
pelos processos de reflexão e pelas hipermodernos.
condições históricas e sociais dadas de
De acordo com Giddens (1991), o
que fazem parte.
primeiro autor responsável pela noção
Sumariando, a reflexividade representa de pós-modernidade, foi Jean-François
a possibilidade de reinvenções na Lyotard. Mas o que seria essa pós-
modernidade, especialmente por parte modernidade na visão deste último
dos próprios sujeitos, propondo a autor? Segundo Giddens,
existência de múltiplas formas de ser e
Como ele a representa, a pós-
agir, em contraposição a algumas visões modernidade se refere a um
unívocas e universais de uma pretensa deslocamento das tentativas de
unicidade determinista, tanto no que fundamentar a epistemologia, e da
remete as ações dos sujeitos, quanto aos fé no progresso planejado
seus modos de ser. humanamente. A condição da pós-
modernidade é caracterizada por
Considerando as movimentações uma evaporação da grand narrative
intensas e constituintes da modernidade, — o "enredo" dominante por meio
há alguns estudiosos que defendem a do qual somos inseridos na história
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como seres tendo um passado os principais pressupostos desta
definitivo e um futuro previzível. A liquidez, na qual há preponderante
perspectiva pós-moderna vê uma incerteza, planejamentos em curto
pluralidade de reivindicações prazo, enfraquecimento das instituições
heterogêneas de conhecimento, na
da tradição, etc.
qual a ciência não tem um lugar
privilegiado (GIDDENS, 1991, p. Em Giddens, pode ser observado certo
12). desconforto nos pontos de vista que
As demais denominações também têm reivindicam ou atestam o fim da
sido amplamente propagadas e modernidade, pois, apesar de admitir as
defendidas, enquanto outras têm alterações e complexidades do tempo
perdido seu potencial de representação. presente, o autor discorda fortemente
A sociedade pós-industrial apresentada que a modernidade tenha sido superada
por David Bell (1973), pressupõe algo por algo posterior. É reconhecido que
além da modernidade, assim como a alterações decisivas tem se efetivado na
pós-modernidade em Lyotard (1990) e sociedade e na sua complexidade de
Harvey (1992). Lipovetsky e Charles relações, influenciando as formas de
(2004), afirmam que o período no qual vida de homens e mulheres que tem
vivemos já ultrapassou e muito a passado cada vez mais a experimentar a
modernidade. Na percepção desses ordem vigente de modos diferentes, os
autores, nossa sociedade é quais são cotidianamente renovados.
hipermoderna. No entanto, ao afirmarmos que estamos
Fredric Jameson, norte americano que vivendo em algo diferente da
tem se dedicado a construção do modernidade, isto é, na pós-
conceito de pós-modernidade, a define modernidade, denota-se que
como uma revolução, tanto cultural, caminhamos para uma outra ordem, e
quanto no modo de produção do sistema “[...] isto significa que a trajetória do
capitalista, segundo ele, agora mais desenvolvimento social está nos tirando
focada na “especialização flexível” de das instituições da modernidade rumo a
produção de mercadorias, além, um novo e diferente tipo de ordem
destacadamente, de produzir a social” (GIDDENS, 1991, p. 56). No
fragmentação das grandes narrativas e entanto, na contemporaneidade,
dos sujeitos. inúmeras instituições da modernidade
ainda permanecem, desvalidando assim
Durante certo tempo, Bauman também
o sentido de pós-modernidade.
fez uso do termo pós-moderno, no
entanto, observando-se a sua obra, Nos contornos da modernidade, são
percebem-se algumas mudanças percebidas características de algo novo,
referentes a esta concepção, de modo mas ainda insuficientes ao ponto de
que o autor passa a fazer o uso do podermos assegurar que a sociedade
sentido de sociedades líquidas. Tal tenha superado a modernidade. Com
mudança explicita um viés da falta de uma visão menos radical e tomando por
superação dos aspectos da modernidade. base as pressuposições já elencadas,
Para Bauman, a pós-modernidade passa Giddens sugere que “nós não nos
a ser considerada como uma deslocamos para além da modernidade,
modernidade sem modernismos. Por porém estamos vivendo precisamente
sua vez, a ideia de liquidez, não estaria através de uma fase de sua
em oposição ao sólido, mas sim na sua radicalização” (1991, p. 62). As
busca. Os efeitos da modernidade serão características desta “modernidade
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radicalizada” possuem maior produzir e reproduzir formas de ser e
correspondência com o momento estar na sociedade, destacando-se como
histórico-contemporâneo, o qual até marca deste período, o potencial
pode ser visto como de uma transição reflexivo dos sujeitos, visto como uma
em andamento, mas não já efetivada, refração da reflexão em si mesma.
propondo ainda, que na era moderna,
Com relação ao sentido de reflexidade,
diversas modernidades são possíveis de
por meio de sua teoria da estruturação,
conviver.
Giddens argumenta sobre a necessidade
É justamente nesta fase de radicalização das ciências sociais reverem o papel do
que a reflexividade é ainda mais sujeito na sociedade, considerado pelo
solicitada e recorrente, uma vez que a teórico não como um mero
partir das relações estabelecidas e das complemento dos modelos e estruturas.
constantes e intensas mudanças, o Por este viés é concebida a perspectiva
sentido de si mesmo obtido por meio de de recomposição constante das
uma conversa consigo tornam-se subjetividades moderno-
indispensáveis para o desenvolvimento contemporâneas, corroborando para um
e constituição dos sujeitos. sentido de desalienação e emancipação
reflexiva dos sujeitos, através do
Radicalização da modernidade e estímulo a um modo de ação cada vez
reflexividade: algumas considerações mais reflexivo, típico da radicalização
da modernidade, no qual a autocrítica e
Na passagem de uma de suas obras,
autoconfrontação tornam-se recorrentes,
Giddens afirma que nunca seremos
promovendo processos múltiplos de
capazes de nos sentirmos inteiramente
individualização bem como de
seguros, seja com relação à definição da
destradicionalização do pensamento.
era em que vivemos, às suas relações e
até com nós mesmos, porque o terreno Todavia, algumas críticas são apontadas
por onde viajamos – ou vivemos – não é ao autor quando da ideia de
mais aquele da tradição, mas outro, reflexividade. Por exemplo, Alexander
instável e fadado às mudanças, como (1987) crê que houve uma subestimação
bem enfatiza, da radicalização da das estruturas sociais concomitante a
modernidade, sendo esta amplamente uma superestima no que se refere ao
reflexiva. potencial reflexivo dos sujeitos. Sobre
isto, Lash (1997) vai mais adiante e faz
Ao se contrapor a um sentido de algo alguns questionamentos:
posterior a modernidade, Giddens
demonstra que isto é algo polêmico e Fora da esfera da produção
imediata, como é possível uma mãe
necessário de discussões, uma vez que
solteira, que vive em um gueto
não ocorreram ainda rupturas urbano, ser ‘reflexiva’? Ulrich Beck
expressivas a tal ponto que pudessem e Anthony Giddens escreveram
demarcar a passagem da modernidade com profundidade sobre a
para algo posterior, como a pós- autoconstrução das narrativas de
modernidade, postulando uma visão vida. Mas, partindo da
menos radical com relação as mudanças ‘necessidade’ da ‘estrutura’ e da
que são percebidas na pobreza estrutural, quanta liberdade
contemporaneidade. Trata-se, segundo o esta mãe do gueto possui para
autor, de um período de radicalização autoconstruir sua própria ‘narrativa
da modernidade, no qual diversas de vida’? (LASH, 1997, p. 146-
147).
modernidades podem conviver e
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Conforme as visões de Lash (1997) e GIDDENS, Anthony. Modernidade e
Alexander (1987), há a necessidade de Identidade. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.
revisões acerca da ideia de
reflexividade, no sentido de poder GIDDENS, Anthony, PIERSON, Christopher.
Conversas com Anthony Giddens: o sentido
incorporar outras questões não tão bem
da modernidade. Tradução: Luiz Alberto
explicitadas por Giddens, como a Monjardim. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
referente à situação econômica entre
GIDDENS, Anthony. A transformação da
outras condições estruturais. intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas
A guisa de considerações finais, vemos sociedades modernas. Tradução de Magda
Lopes. São Paulo: Editora da Universidade
as críticas como fatores positivos e
Estadual Paulista, 1993.
possuidoras de sentido, pois elas não
visam desqualificar as ideias GIDDENS, Anthony. As consequências da
modernidade. Tradução: Raul Fiker. São
desenvolvidas por Giddens, mas Paulo: Editora UNESP, 1991.
estimular uma melhor formação dela,
além de ser um convite para pesquisas e HARVEY, David. Condição pós-moderna:
uma pesquisa sobre as origens da mudança
ensaios posteriores, os quais poderão, é estrutural. Tradução: Adail Ubirajara Sobral e
válido ressaltar, trazer não consensos, Maria Stela Gonçalves. São Paulo, Edições
mas possibilidades de problematizar Loyola, 1992.
ainda mais a complexidade do mundo JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. A
contemporâneo. lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo,
Ática, 1996.
LASH, Scott. A reflexividade e seus duplos:
Referências Estrutura, estética, comunidade. In: BECK,
ALEXANDER, J. C. O Novo Movimento Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott.
Teórico. In: Revista Brasileira de Ciências Modernização reflexiva: política, tradição e
Sociais. N. 4, vol. 2, pp. 5-25, 1987. estética na ordem social moderna. Tradução de
Magda Lopes. - São Paulo: Editora da
BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar da pós- Universidade Estadual Paulista, 1997.
modernidade. Tradução Mauro Gama, Cláudia
Martinelli Gama. Rio de Janeiro, Jorge Zahar LIPOVETSKY, G. & CHARLES, S. Os
Ed, 1998. tempos hipermodernos. São Paulo, Barcarolla,
2004.
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH,
Scott. Modernização reflexiva: política, LYOTARD, J. F. O pós-moderno. Tradução:
tradição e estética na ordem social moderna. Ricardo Correira Barbosa. 3ª ed. Rio de Janeiro,
Tradução de Magda Lopes. - São Paulo: Editora José Olympio, 1990.
da Universidade Estadual Paulista, 1997.
BELL, Daniel. O advento da sociedade pós- Recebido em 2015-03-16
industrial. Uma tentativa de previsão social. Publicado em 2015-07-09
São Paulo, Cultrix, 1973.

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