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Ivia Minelli
Pensar o lugar indígena num todo chamado "América" é uma proposta, se não
impossível, no mínimo audaciosa. Desde o período pré-colonial, passando pelos longos
séculos de contato com os colonizadores até os dias de hoje, a experiência na relação
com o indígena revela-se bastante divergente em cada canto do continente. Em alguns
pontos, no entanto, a presença dos europeus foi ecoada: genocídio, escravização,
catequização, etc., motivos que acabam aproximando as diversas narrativas sobre o ser
autóctone latino-americano. No caso da América Hispânica, cujo legado indígena talvez
seja paralelo ao dos africanos na região de ocupação portuguesa, a visão colonizadora
deixou marcas difíceis de serem suplantadas sobre os habitantes locais e sua cultura,
reparação histórica a que muito têm se dedicado os debates historiográficos.
Muito se deve ter contribuído para produzir esse resultado infeliz [a baixa instrução
dos homens interioranos argentinos] a incorporação de indígenas feita pela
Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas.
1
GUERRA, François-Xavier. "Las mutaciones de la identidad en la América Hispánica". In: ANNINO,
Antonio; GUERRA, F. Inventando la nación. Iberoamérica, siglo XIX. México: FCE, 2003.
2
Sarmiento também foi presidente da Argentina entre 1868 e 1874.
3
SARMIENTO, Domingo F. Facundo: civilização e barbárie. Rio de Janeiro: Vozes, 1996 [1a edição
1845], p. 192.
colonização. As raças americanas vivem na ociosidade e se mostram incapazes,
mesmo pela coação, de se dedicarem a um trabalho duro e contínuo. 4
É possível notar a força alcançada por esse discurso nas diferentes formas com que
os indígenas foram preteridos nos diversos episódios de guerras civis5, por exemplo, do
final do XIX. Na Argentina, a perspectiva do "vazio" sobre as regiões ocupadas pelos
agrupamentos indígenas justificaram o massacre da Campanha do Deserto em 1880, que
dizimou a maior parte da população da Patagônia. Na Bolívia, entre 1870 e 1899, os
indígenas eram redefinidos em seu papel de cidadãos, ou não, segundo articulações
legais que embasavam apenas os interesses governamentais nos processos de ocupação
territorial. Esses e outros tantos episódios nos falam da acepção de um outro que
precisava ser exterminado, não apenas fisicamente, mas também na sua presença
cultural.
4
Idem, p. 71-72.
5
As guerras civis marcaram as disputas internas dos novos países por motivos de governança, expansão
territorial e proteção das fronteiras, acabando por redefinir o contorno interno do continente.
6
Os impasses políticos vividos entre os países europeus na virada do século XIX para o XX
distanciavam-se do modelo proposto pela elite política dos países hispano-americanos. Assim como ficou
abalada a confiança interna de um futuro próspero, por conta das numerosas e custosas disputas locais.
balançava o tom nacionalista cobiçado pela elite ilustrada que, num afã pelo progresso,
acreditou no controle sobre a multidão. Ou seja, a historiografia do século XX precisou
revisar o elemento indígena, ainda que repleto de estigmas, marcando uma guinada na
base analítica sobre a história latino-americana. O índio deixaria de ser um outro
indomável para assumir o lugar de representante da originalidade, sendo ele a tradição
(particular) de que tanto se precisava mediante o categórico discurso da modernidade
(universal).7
Para que a historiografia lograsse incorporar o indígena em seu discurso, foi preciso
toda uma operação simbólica de pensar a nação sob uma forma etnicamente homogênea
e monocromática. A historiadora Patrícia Funes marca na consolidação de dois
conceitos bastante complexos parte do desenrolar desses processos, que nos revelam
continuidades e rupturas em relação ao pensamento oitocentista: a mestiçagem e o
indigenismo.
7
Ver: FUNES, Patrícia. "Leer versos con los ojos de la historia. Literatura y nación en Ricardo Rojas y
Jorge Luis Borges". História, vol.22, nº2, Franca, 2003. "La construcción de una tradición impone forjar
un abolengo, un linaje que revele espesuras, honduras e inmemorialidades (que el acto “original” de la
construcción vuelve precisamente recordable e historiable) para conjurar las inestabilidades e
incertidumbres del futuro. En este sentido, tradición y modernidad no se oponen, se complementan. Es la
modernidad la que necesita de tradiciones. Aunque secularizadas y laicas, también elabora sus panteones
y rituales", p. 99.
8
FUNES, Patrícia. Salvar la nación. Intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos.
Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006, p. 146-147.
José Carlos Mariátegui, Víctor Andrés Belaúnde, José Vasconcelos e, mais tarde, com
José Luis Romero, por exemplo.9 O campo, lugar do indígena por excelência, em
oposição aos desmandos da cidade moderna, cosmopolita e segregadora, reverberava o
já antigo papel de vítimas, passivos e selvagens dos índios, sendo eles também velhos
coadjuvantes da construção histórica nacional. O binarismo que implantara Sarmiento
em outros tempos - civilização e barbárie - vestia novas roupagens, embora reafirmasse
a marginalidade indígena.
Com a chegada da história cultural nos anos 1970 e 1980, parte da historiografia
latino-americana empenhou-se em lançar luz nessa ausência histórica, procurando
fontes e abordagens próprias da vida e do cotidiano indígena a partir de numa
perspectiva antropológica. Nesse cenário, vários conceitos caros à disciplina ganham
força, como aculturação, relativismo e alteridade, que surgem numa proposta de refletir
as particularidades da população indígena e seu espaço de atuação na história do
continente. As diferentes e numerosas etnias passam a ser consideradas e, no olhar sobre
esse outro, os estudiosos necessitaram pensar o arbitrariedade do seu próprio discurso.
Segundo Mary Louise Pratt,
9
Na apresentação do livro de José Romero para a edição brasileira de 2004, Afonso Carlos Marques dos
Santos indica uma leitura de cunho marxista existente na obra, indicando a importância de o autor ter
iniciado um debate de base mais ampla, latino-americana, pouco comum antes dos anos 1970. Ver:
ROMERO, José Luis. América Latina: a cidade e as idéias. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004,
10
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauro, SP: EDUSC,
1999 [1a edição 1992], p. 17.
11
A Argentina sempre apresentou um discurso diferente em relação aos seus indígenas dentro da
América, os quais teriam ficado reduzidos ao longínquo passado da colonização.
valorizar os aspectos de sociabilidade indígena no que se referisse aos meios sociais,
políticos e econômicos de suas organizações internas.12
Vale ressaltar que tal esforço de aproximação com o mundo indígena não resolve o
déficit historiográfico. No próprio movimento de pensar esse contato, a historiadora
foca sua análise na sociedade pós-independentista e acaba sobrepondo sentidos crioulos
às distintas organizações sociais recém observadas. Não há dúvidas do ganho teórico,
conceitual e social dessas propostas, sendo que a própria ideia de cultura estava
ampliada. No entanto, em termos historiográficos, ao circunscrever as relações
históricas entre indígenas e crioulos às problemáticas da construção do Estado, Quijada
esmorece o protagonismo indígena e perpetua uma expectativa tutelar sobre ele.13
12
QUIJADA, Mónica. “De mitos nacionales, definiciones cívicas, y clasificaciones grupales. Los
indígenas en la construcción nacional argentina, siglos XIX a XXI”. In: ANSALDI, Waldo (coord.).
Calidoscopio latinoamericano: imágenes históricas para un debate vigente. Buenos Aires: Ariel, 2004
[1a edição 1994], p. 433.
13 MINELLI, Ivia. "Debate historiográfico argentino e a construção da questão indígena". Revista
Num dos artigos que compõem esse dossiê, Guillaume Boccara, antropólogo
dedicado à história mapuche do período colonial no Chile, chama-nos atenção para o
perigo de essas novas abordagens essencializar a cultura indígena, tratando-a como
algo puro e que apenas se transformaria pela contaminação de outrem. Essa forma de
análise estaria presa, ainda, ao discurso colonial, uma vez que realoca o índio num
marco ideológico evolucionista e estato-nacional.
15
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. "Os índios na história: abordagens interdisciplinares".
Tempo, vol.12, no.23, Niterói, 2007, p. 1.
16
BOCCARA, Guillaume. "Poder colonial e etnicidade no Chile: territorialização e reestruturação entre
os Mapuche da época colonial". Tempo, vol.12, no.23, Niterói, 2007, p. 58-59.
17
GRUZINSKI, Serge. "História dos índios na América: abordagens interdisciplinares e comparativas
Entrevista com Serge Gruzinski". Tempo, vol.12, no.23, Niterói, 2007, p. 198.
complexidade do discurso sobre o indígena permanece até os dias de hoje, pois, embora
ele já não seja visto como simples vítima ou selvagem passivo, sua perspectiva da
história incomoda porque abala clássicos marcos explicativos.
Bibliografia
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. "Os índios na história: abordagens interdisciplinares".
Tempo, vol.12, no.23, Niterói, 2007
FUNES, Patrícia. "Leer versos con los ojos de la historia. Literatura y nación en Ricardo Rojas
y Jorge Luis Borges". História, vol.22, nº2, Franca, 2003.
FUNES, Patrícia. Salvar la nación. Intelectuales, cultura y política en los años veinte
latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006.
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauro, SP:
EDUSC, 1999.
QUIJADA, Mónica. “De mitos nacionales, definiciones cívicas, y clasificaciones grupales. Los
indígenas en la construcción nacional argentina, siglos XIX a XXI”. In: ANSALDI, Waldo
(coord.). Calidoscopio latinoamericano: imágenes históricas para un debate vigente. Buenos
Aires: Ariel, 2004.