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resenha

“Consciência Moral e Agir Comunicativo”


“Moral Consciousness and Communicative Action”
v.3, n.2, jul./ dez. 2012
“Conciencia Moral y Acción Comunicativa”
ISSN: 1982-5447
www.cgs.ufba.br
Revista do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento
e Gestão Social - CIAGS & Rede de Pesquisadores em
Marcos Luís Procópio (UNEMAT – Campus de Sinop)*
Gestão Social - RGS
*Doutor em Administração pela Universidade Federal de Lavras
(UFLA), Professor Adjunto do Departamento de Administração da
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT – Campus de
Sinop).
Endereço: UNEMAT, Campus Universitário de Sinop, Departamento
de Administração, Avenida dos Ingás, 3001, Jardim Imperial, CEP:
78555-000, Sinop/MT
E-mail: marcos_procopio@yahoo.com.br

Resenha demonstrar a utilidade e a pertinência da sua


Teoria da Ação Comunicativa no que se refere aos
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir aspectos morais da vida social. Trata-se, então,
comunicativo. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Tempo de uma tentativa de explorar os aspectos morais
Brasileiro, 2003. da vida social a partir da ação comunicativa. Mais
especificamente, trata-se de uma tentativa de
construir uma “teoria discursiva da ética”.
A obra ora em apreço, Consciência Moral O livro encontra-se dividido em quatro
e Agir Comunicativo, de Jürgen Habermas, foi capítulos, sendo que os dois primeiros são
inicialmente publicada em alemão em 1983, transcrições de conferências proferidas pelo
ou seja, no mesmo ano em que foi publicado autor em diferentes ocasiões. Os quatro capítulos
o Discurso Filosófico da Modernidade (1983), e seus respectivos argumentos estão ordenados
dois anos após a publicação da obra referencial em uma sequência lógica que parte das questões
Teoria da Ação Comunicativa (1981) e pouco mais amplas, como o papel da Filosofia e,
antes da publicação dos Estudos Preliminares e particularmente, da Filosofia Hermenêutica frente
Complementares à Teoria da Ação Comunicativa às Ciências Sociais nos dias de hoje, na direção do
(1984). A posição cronológica que a obra em tema mais específico da relação entre consciência
apreço ocupa dentro do vasto e influente moral e agir comunicativo, objeto central do livro.
repertório de Habermas é importante, uma vez
que nela o autor procura rearticular inúmeros
aspectos da já então discutida Teoria da Ação
Capítulo 1. A Filosofia como Guardador de Lugar
Comunicativa, rearticulação esta que pressupõe a
e como Intérprete
crítica à “filosofia do sujeito”.
Em linhas gerais, em Consciência O autor inicia o capítulo com uma
Moral e Agir Comunicativo, Habermas procura contundente crítica à Filosofia:

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os mestres-pensadores caíram em Pragmatismo (Pierce; Dilthey) e na Hermenêutica


descrédito. Para Hegel, isso é verdade há
muito tempo. Popper desmascarou-o na (Wittgenstein; Rorty),
década dos Quarenta como inimigo da
pois elas abandonam o horizonte no qual
sociedade aberta. O mesmo vale, uma
se move a filosofia da consciência com
vez mais, para Marx. Os últimos a abjurá-
seu modo de conhecimento baseado
lo como um falso profeta na década de
na percepção e na representação de
Setenta foram os Novos Filósofos. Hoje
objetos. No lugar do sujeito solitário,
até mesmo Kant vê-se colhido por essa
que se volta para objetos e que, na
fatalidade. (HABERMAS, 2003, p. 17).
reflexão, se toma a si mesmo por
Então, Habermas se concentra em objeto, entra não somente a idéia de
um conhecimento linguisticamente
sua crítica à Kant, mais especificamente a seu
mediatizado e relacionado com o
transcendentalismo (condições a priori da agir, mas também o nexo da prática e
possibilidade de existência) que, de acordo com o da comunicação cotidianas, no qual
autor, colocou a Filosofia na posição de uma juíza estão inseridas as operações cognitivas
da ciência: que têm desde a origem um caráter
intersubjetivo e ao mesmo tempo
quando a filosofia se presume capaz cooperativo. (HABERMAS, 2003, p. 24-
de um conhecimento antes do 25).
conhecimento, ela abre entre si e as
ciências um domínio próprio, do qual Uma vez “superada” a filosofia da
se vale para passar a exercer funções de consciência e, por conseguinte, desarticulado o
dominação. Ao pretender aclarar de uma papel de juiz da Filosofia dos “grandes mestres”,
vez por todas os fundamentos da ciência Habermas retoma a questão da “divisão de
e de vez por todas definir os limites trabalho” entre Filosofia e Ciência. O autor
do experienciável, a filosofia indica às
ciências o seu lugar. (HABERMAS, 2003, argumenta que uma divisão radical entre Filosofia
p. 18). e Ciência não é viável para efeito de produção de
conhecimento e ação social. Utilizando-se dos
Habermas se mostra contrário a uma exemplos de grandes sociólogos, como Durkheim,
Filosofia “juíza” da Ciência e advoga por uma Weber e Marx, bem como de grandes psicólogos,
filosofia capaz não de julgar a Ciência, mas sim de como Freud e Piaget, explica que na obra de
interpretá-la, ou melhor, ajudá-la a interpretar as todos eles há uma profunda cooperação entre
coisas do mundo, cooperativamente. Para tanto, elementos filosóficos e científicos. Sendo assim,
continua sua crítica aos “mestres-pensadores”, argumenta Habermas, caberia, então, à ciência
agora se utilizando das críticas de Hegel ao o papel de obter dados e registrar fatos, e à
apriorismo de Kant e, mais adiante, das críticas da filosofia, o papel de apoiar epistemologicamente
Filosofia Pragmatista e da Filosofia Hermenêutica essas atividades, atuando como “interprete”
ao pensamento tanto de Kant quanto de Hegel. desta realidade e não como juíza das atividades
Grosso modo, o que Habermas quer científicas, ou mesmo guardiã incondicional da
fazer aqui é uma crítica sagaz contra aquilo que razão.
ele denomina de “filosofia da consciência”, a
saber, a suposição epistemológica segundo a
qual o conhecimento e a ação dependem de Capítulo 2. Ciências Sociais Reconstrutivas versus
sujeitos que, deslocados em relação a um objeto Ciências Sociais Compreensivas
de estudo, podem, com base em algum tipo de
saber preliminar, analisar tal objeto e concluir Tomando impulso na discussão realizada no
sobre ele. Nesse sentido, Habermas aposta no capítulo anterior, sobre a cooperação entre

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Ciências e Filosofia, Habermas mergulha agora abstrata e não necessariamente universal, ou seja,
no debate acerca da natureza das Ciências Sociais uma verdade que depende das circunstâncias nas
propriamente ditas. Para tanto, utiliza-se da quais se encontra a produção do saber. Nesse
polaridade “Ciências Sociais reconstrutivas” – sentido, Habermas explica que a imparcialidade
“Ciências Sociais compreensivas”. no âmbito da Ciência compreensiva é uma
“imparcialidade negociada”.
De acordo com o autor, a Ciência Tudo isso leva Habermas à discussão
reconstrutiva restringe-se à descrição, à acerca do papel do discurso nas Ciências e,
teorização objetivante sobre algo, teorização mais particularmente, à discussão sobre a
esta que pretende “reconstruir”, a uma certa Hermenêutica na linguagem científica:
distância, o objeto estudado. Trata-se, pois, da
perspectiva “tradicional” de Ciência Social, tal a hermenêutica considera a linguagem,
por assim dizer, em ação, a saber, da
como herdada das Ciências Naturais. Já a Ciência maneira como é empregada pelos
compreensiva refere-se à Ciência traspassada participantes com objetivo de chegar à
pela Filosofia Hermenêutica, ou seja, uma Ciência compreensão conjunta de uma coisa ou
que se permite compreender o mundo de uma a uma maneira de ver comum. Contudo,
forma mais participativa do que objetivante. a metáfora visual do observador
que “vê” algo não deve obscurecer
Toda a argumentação apresentada no o fato de que a linguagem utilizada
capítulo quer nos levar a crer que a Ciência Social performativamente está inserida em
reconstrutiva fracassou ou está fracassando e que relações mais complicadas do que a
a Ciência Social compreensiva é mais adequada simples relação “sobre” (e do que o tipo
à realidade complexa do mundo moderno. de intenção correlacionado com ela).
(HABERMAS, 2003, p. 41).
Todavia, a contribuição do autor reside, aqui,
em demonstrar que uma Ciência Social atual De acordo com Habermas, a adoção de
eficaz não pode se privar de uma Filosofia uma perspectiva discursiva e hermenêutica traz,
(Hermenêutica) que está nela imbricada. ao menos, três grandes implicações às Ciências
Habermas ainda traça outras Sociais, a saber:
comparações entre ambas as Ciências. Enquanto
na Ciência reconstrutiva a postura do observador 1) os intérpretes [cientistas] renunciam
à superioridade da posição privilegiada
consiste em tratar o fenômeno estudado como do observador, porque eles próprios
objeto minimamente distante (objetividade), na se vêem envolvidos nas negociações
compreensiva, a atitude do observador deve ser sobre o sentido e a validez dos
“performativa”, ou seja, ele só pode conhecer o proferimentos. Ao tomarem parte
em ações comunicativas, aceitam por
fenômeno na sua interação e participação direta princípio o mesmo status daqueles cujos
junto a ele. Assim sendo, a palavra de ordem proferimentos querem compreender.
para a Ciência reconstrutiva seria a “observação”, (HABERMAS, 2003, p. 43).
enquanto que para a Ciência compreensiva tal
2) ao assumir uma atitude performativa,
palavra seria a “participação”. Especificamente os interpretes não apenas renunciam
no que se refere à questão da imparcialidade, à posição de superioridade em face
Habermas reconhece que ela sempre foi objeto de seu domínio de objetos, mas
confrontam-se além disso com a
de crítica contra a Ciência compreensiva. Porém, questão de como superar a dependência
explica o autor, diferentemente do que pretende de sua interpretação relativamente ao
a Ciência reconstrutiva com sua busca pela contexto. Eles não podem estar seguros
“verdade”, a Ciência compreensiva busca uma de antemão de que eles próprios e
verdade contextualizada, uma verdade real, não seus sujeitos de experiência partem do
mesmo fundo de suposições e práticas.

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(HABERMAS, 2003, p. 43). capítulo do seu livro, para efeito de confirmação


De acordo com Habermas, o conhecimento da sua Teoria Discursiva da Ética (que será, por
prévio de todas as influências contextuais nunca sua vez, propriamente desenvolvida no terceiro
é plenamente possível. Além de tudo isso, explica capítulo do livro), faremos sua síntese na ocasião
Habermas, 3) “a linguagem quotidiana se estende da resenha desse capítulo.
a proferimentos não-descritivos e a pretensões
de validez não cognitivas” (HABERMAS, 2003, p.
43). Com isso, o autor quer dizer que, quando Capítulo 3. Notas Programáticas para a
alguém entra em acordo sobre algo com outra Fundamentação de uma Ética do Discurso
pessoa, este entendimento tem muito mais a ver
Este é o capítulo mais importante do livro.
com a justeza dos argumentos utilizados, lógica
É aqui que Habermas, efetivamente, esboça sua
das ideias colocadas e correção das normas e
Teoria Discursiva da Ética, dando a ela sua forma
regras utilizadas do que com a própria veracidade
“introdutória”. O capítulo é extenso e é marcado
das proposições trocadas no discurso. Por isso,
pela retomada e aprofundamento de argumentos
esclarece Habermas, “o saber que empregamos
já apresentados anteriormente, bem como pela
quando dizemos algo a alguém é mais abrangente discussão da Teoria da Ação Comunicativa, base
do que o saber estritamente proposicional ou da Ética Discursiva.
relativo à verdade” (HABERMAS, 2003, p. 43). Por Habermas inicia o capítulo com uma
isso, conclui o autor, “uma interpretação correta breve discussão acerca das limitações da razão
não é simplesmente verdadeira” (HABERMAS, instrumental, típica do iluminismo e que se
2003, p. 43). pretende livre da metafísica e da religião, frente
Por trás dessas três grandes implicações aos problemas éticos. Citando Horkheimer, diz
que surgem ao se tentar adotar uma perspectiva ele que “a razão é calculadora. Ela pode avaliar
hermenêutica e discursiva de Ciência Social, verdades de fato e relações matemáticas e nada
Habermas aponta, ainda, dois grandes problemas mais. No âmbito da prática, só pode falar de meios.
ou limitações desse empreendimento. São Sobre os fins, ela tem que se calar” (HABERMAS,
eles: 1) as expressões simbólicas não podem 2003, p. 62). Nesse sentido, “questões moral-
ser “medidas” de maneira tão confiável quanto práticas do tipo: “O que devo fazer?” são afastadas
os fatos físicos, dado que dependem de uma da discussão racional na medida em que não
atitude performativa; 2) juízos de valor se fazem podem ser respondidas do ponto de vista da
presentes nos discursos que relatam fatos, o que racionalidade meio-fim” (HABERMAS, 2003, p. 63).
compromete a neutralidade axiológica da Ciência. Isso posto, Habermas irá consultar outros
A despeito desses problemas, Habermas explica filósofos no intuito de encontrar os fundamentos
que toda e qualquer tentativa de reconstrução do agir moral que a razão iluminista não pode
científica está sujeita a desvios e, também, fornecer.
limitada por seu caráter hipotético, por mais Inicialmente, esbarra na fenomenologia
racional que seja. do fato moral de P. F. Strawson:
O autor conclui o capítulo utilizando-se da
Strawson parte de uma reação emotiva
Teoria do Desenvolvimento Moral desenvolvida que, por causa de seu caráter insistente,
pelo psicólogo norte-americano Lawrence é adequada para demonstrar até mesmo
Kohlberg, para ilustrar a posição de que, embora ao mais empedernido dos homens, por
a Ciência deva reconhecer sua dimensão assim dizer, o teor de realidade das
experiências morais; ele parte, a saber,
hermenêutica, nem por isso ela deve deixar de da indignação com que reagimos a
tentar produzir saberes teóricos. Entretanto, injúrias. (HABERMAS, 2003, p. 64).
como Habermas irá retomar essa Teoria no último

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Habermas nos lembra que estamos aqui têm, relativamente à justificação moral das
diante de uma tese fenomenológica. Logo, o maneiras de agir, um significado semelhante ao
conteúdo moral (emotivo) das ações sociais só que as percepções têm para a explicação teórica
pode ser devidamente apreendido na própria de fatos” (HABERMAS, 2003, p. 70). No que diz
experiência performativa daqueles que interagem respeito a esta última constatação em particular,
socialmente. Assim, Habermas abre duas novas linha de discussão
em seu texto: 1) sobre a questão da cognição
as reações pessoais do ofendido, por
moral, ou seja, até que ponto os sentimentos
exemplo, os ressentimentos, só são
possíveis na atitude performativa de podem ser aprendidos socialmente; e 2) sobre a
um participante da interação. A atitude possibilidade de se avaliar as posições deônticas
objetivante de um não-participante como “verdadeiras ou falsas”.
suprime os papéis comunicacionais No que diz respeito à questão da cognição
da primeira e da segunda pessoas e
moral, Habermas recorre a pensadores como
neutraliza o âmbito dos fenômenos
morais em geral. A atitude da terceira Toulmin para afirmar que o conteúdo ético não
pessoa faz desaparecer esse âmbito é apenas aprendido socialmente, como, também,
fenomenal. (HABERMAS, 2003, p. 65). pode ser alterado pela razão de modo a promover
Habermas ira extrair desses argumentos juízos mais precisos. Para provar, estabelece um
um dos alicerces para sua Ética Discursiva, a paralelo entre o saber prático (moral) e o saber
saber, o fato de que ela precisa ser performativa. teórico (factual). Ao final da sua exposição,
Porém, ainda fica uma dúvida em relação a argumenta que “ao passo que a crítica teórica às
fenomenologia emotivista de Strawson: será experiências quotidianas enganosas serve para
que os sentimentos que os atores experimentam corrigir opiniões e expectativas, a crítica moral
em suas relações sociais e que dão base moral serve para modificar maneiras de agir ou corrigir
para sua interação não são muito particulares juízos sobre elas” (HABERMAS, 2003, p. 71).
ou subjetivos? Habermas responde esta questão No que diz respeito à possibilidade de se
argumentando que tais sentimentos são avaliar as posições deônticas como verdadeiras
relativamente impessoais. Em suas palavras: ou falsas, Habermas recorre a pensadores como
White e Moore para demonstrar que “a tese
os sentimentos de culpa e de obrigação de que as questões práticas são ‘passíveis de
remetem além do particularismo verdade’ sugere uma assimilação dos enunciados
daquilo que concerne a um indivíduo normativos aos enunciados descritivos”
em uma situação determinada. Se
as reações afetivas, dirigidas em (HABERMAS, 2003, p. 73). Ou seja, Habermas
situações determinadas contra pessoas partilha da convicção de que as posições
particulares, não estivessem associadas deônticas, assim como as posições teóricas,
a essa forma impessoal de indignação, podem ser verdadeiras ou falsas. Isso tudo,
dirigida contra a violação de expectativas certamente, desafia aqueles que partilham do
de comportamento generalizadas ou
normas, elas seriam destituídas de ceticismo moral.
caráter moral. (HABERMAS, 2003, p. 68). Porém, a noção de “correção” das posições
deônticas não é idêntica à noção de “correção” das
Habermas resume as contribuições de posições teóricas, dado que, segundo Habermas,
Strawson extraindo delas aquilo que lhe interessa não temos como colher dados diretamente do
para efeito da proposição da sua Ética Discursiva, mundo físico. Então, como podemos sustentar
a saber: que o conteúdo moral, para que seja que tais posições são verdadeiramente
devidamente apreendido, deve ser apreendido verificáveis? A resposta mais precisa identificada
em relações performativas e que “os sentimentos por Habermas coube à argumentação de

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Toulimin e dizia respeito à validade ou falsidade Trocando em miúdos, observamos que


de uma proposição moral com base nas “razões” na Ação Comunicativa os interlocutores estão
(argumentos, motivos) do agente que a colocava. dispostos a abrir mão de seus planos de ação que,
Nesse sentido, seria “verdadeira” uma proposição inicialmente, poderiam justificar sua interação
moral se houvessem “boas razões” para defendê- social, e se deixam influenciar por argumentos
la diante de outras. Todavia, Habermas observa e razões proferidos por outros, razões estas que
que esse argumento ainda estava exposto à crítica reivindicam validez e são capazes de convencê-los
cética de que “razões” poderiam ser subjetivas a adotar outras ações. Naturalmente, para que os
e idiossincráticas, o que invalidaria a avaliação planos prévios de ação possam ser postos de lado
da proposição moral. Então, Habermas recorre pelos agentes frente ao efeito ilocucionário do
a outra solução para o problema da avaliação discurso, é necessário que não exista coerção social
das proposições morais: recorre à veracidade no sentido estrito. Assim, a distribuição escalar do
ou falsidade delas diante de enunciados poder, por exemplo, tal como ocorre na hierarquia,
discursivamente aceitos e que se “materializam” é condição desfavorável para o agir comunicativo,
em normas e regras sociais “universalizáveis” uma vez que, em uma hierarquia, o princípio de
dentro de um grupo. comando subentende objetivos fixados a priori
Aqui Habermas chega ao ponto culminante por alguém – uma administração – que devem
da sua exposição. Adentra, propriamente, no ser implementados por outros - os executores.
debate da Ética Discursiva e passa a resgatar os Com efeito, os interlocutores envolvidos nos atos
fundamentos da sua Ação Comunicativa, base de fala que requerem legitimidade discursiva para
para sua elaboração. suas ações apresentam “razões” (argumentos) e
Segundo Habermas, são comunicativas não necessariamente recursos de poder para
todas as interações sociais “nas quais as pessoas persuadir os demais. De acordo com Habermas,
envolvidas se põem de acordo para ordenar seus é exatamente na legitimidade dessas “razões” (ou
planos de ação” (HABERMAS, 2003, p. 79). Tal argumentos) que reside a força motivadora do
acordo, completa o autor, é alcançado sempre discurso. Tal como resume Habermas,
em que há reconhecimento intersubjetivo das
pretensões de validez dentro do grupo social os participantes de uma argumentação
em questão. Assim, verificamos que a Ação não podem se esquivar à pressuposição
Comunicativa, ou seja, o processo interativo e de que a estrutura de sua comunicação,
em razão de características a se
dialógico de se chegar livremente a acordos sobre
descreverem formalmente, exclui toda
o que se deve fazer socialmente, é a estrutura coerção atuando do exterior sobre o
básica da Ética Discursiva proposta por Habermas. processo de entendimento mútuo ou
Comparada com a Ação Estratégica, procedendo dele próprio, com exceção
a Ação Comunicativa praticada pelos agentes da coerção do argumento melhor, e que
ela assim neutraliza todos os motivos,
sociais apresenta diferenças substanciais: com exceção do motivo da busca
enquanto que no agir estratégico um cooperativa da verdade. (HABERMAS,
atua sobre o outro para ensejar a 2003, p. 111-112).
continuação desejada de uma interação,
Mas, afinal, quais seriam essas
no agir comunicativo, um é motivado
racionalmente pelo outro para uma ação características formais do discurso, ou melhor,
de adesão – e isso em virtude do efeito quais seriam as regras desse discurso ideal?
ilocucionário de comprometimento Apoiando-se em Alexy, Habermas apresenta três
que a oferta de um ato de fala suscita”. regras:
(HABERMAS, 2003, p. 79).
1) é lícito a todo sujeito capaz de falar e

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agir participar de Discursos. entenderem uns com os outros no mundo,


também se orientam por pretensões de validez
2.1) é lícito a qualquer um problematizar
qualquer asserção. assertórias e normativas” (HABERMAS, 2003, p.
123). Sendo assim, atos de fala que reivindicam
2.2) é lícito a qualquer um introduzir somente validade factual são insuficientes para
qualquer asserção no Discurso. compreensão da Ética Discursiva. O autor nos
2.3) é lícito a qualquer um manifestar
explica que existe uma grande diferença entre
suas atitudes, desejos e necessidades. proposições assertórias, empregadas em atos
de fala meramente constatativos, e proposições
3) não é lícito impedir falante algum, por normativas empregadas em atos de falas
uma coerção exercida dentro ou fora do regulativos. Em suas palavras:
Discurso, de valer-se de seus direitos
estabelecidos em 1 e 2. (HABERMAS, à primeira vista, as proposições
2003, p. 112) assertórias empregadas em atos de fala
constatativos parecem estar para os
Ciente de que as regras do discurso acima fatos numa relação análoga à maneira
mencionadas representam situações ideais que pela qual as proposições normativas
nem sempre podem existir por si mesmas no empregadas em atos de fala regulativos
contexto social, Habermas defende a utilização se relacionam a relações interpessoais
legitimamente ordenadas. (HABERMAS,
prática de “dispositivos institucionais” a fim 2003, p. 80).
de “compensar” os eventuais desequilíbrios
existentes na Ação Comunicativa: Porém, elas não são idênticas. É
característica peculiar das proposições normativas
visto que os Discursos estão submetidos reivindicarem validez não em fatos, mas sim em
às limitações do espaço e do tempo e normas sociais prescritivas da conduta humana.
têm lugar em contextos sociais; visto
que os participantes de argumentações Assim, continua o autor, a “objetividade” das
não são caracteres inteligíveis e também pretensões de validez normativas não encontra
são movidos por outros motivos além paralelo na objetividade das pretensões de
do único aceitável, que é o da busca validez constatativas, embora ambas possam ser
cooperativa da verdade; visto que os colocadas à prova: a primeira frente às regras
temas e as contribuições têm que ser
ordenados, as relevâncias asseguradas, e normas sociais que prescrevem a conduta
as competências avaliadas; é preciso humana, e a segunda frente a fatos e dados
dispositivos institucionais a fim de postos. Eis, segundo Habermas, a principal
neutralizar as limitações empíricas diferença entre o discurso teórico (ou científico)
inevitáveis e as influências externas e e o discurso prático (ou moral).
internas inevitáveis, de tal sorte que
as condições idealizadas, já sempre Vemos, então, que as normas e regras
pressupostas pelos participantes da sociais de conduta são a base de sustentação
argumentação, possam ser preenchidas das pretensões de validez movimentadas no
pelo menos numa aproximação discurso. Dito de outra forma, são as referências
suficiente. (HABERMAS, 2003, p. 115). elementares a partir das quais a ação comunicativa
Evidentemente, dado o caráter pragmático é legitimada ou não no discurso regulativo.
da Ética Discursiva que Habermas está tentado Servem, segundo Habermas, como fonte de
edificar nesse capítulo, nem todos os atos de fala indução para a obtenção do entendimento e para
interessam aqui ao autor, mas somente aqueles a validação das ações nesse discurso, em analogia
que sustentam a normatização das ações. “Os aos fatos, dados e fenômenos físicos que servem
sujeitos que agem comunicativamente, ao se como fonte de indução para os entendimentos

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e ações encontrados no discurso constatativo. mesmo quando nossas ações buscam apenas
Todavia, Habermas enfatiza, e a este ponto retorna nossos interesses mais individuais, possam ser
ao quarto capítulo de seu livro, que o discurso não aceitas e toleradas por todos de forma livre. Por
produz regras e normas de conduta social por si certo, aqui, a principal diferença entre Kant e
mesmo, mas sim, é o espaço onde essas normas e Habermas se encontra no fato de que a adesão
regras, bem como as ações que hipoteticamente às regras que darão apoio à conduta moral não
inspiram, são validadas e testadas coletivamente. provêm da razão transcendental (Kant), mas
Se uma regra de conduta é movimentada sim, da Razão Comunicativa (Habermas). Fica
em um discurso regulativo e é aceita sem que haja evidente, mais uma vez, a opção de Habermas
coerção externa ou interna dos participantes, pela filosofia da linguagem em oposição à filosofia
então, Habermas demonstra que o princípio “U”, da consciência.
o princípio da universalização, foi respeitado, e Isso posto, Habermas lança mão de
tal regra goza de validez e pode, por conseguinte, sua Ética Discursiva propriamente dita. Na
orientar a ação dentro do grupo social em Ética Discursiva, as normas e regras de conduta
questão. De acordo com Habermas, é o princípio moral, ou seja, as normas e regras que balizam
“U” que garante que houve realmente acordo a boa ou má ação, a ação justa ou injusta, a ação
quanto às regras que devem orientar a conduta certa ou errada do ponto de vista moral, são
dos participantes do discurso. Em suas palavras, validadas e acatadas socialmente a partir da Ação
Comunicativa, mais especificamente, a partir
das mencionadas regras do Discurso do princípio “U”. A Ética do Discurso remete e
resulta que uma norma controversa só depende da Teoria do Agir Comunicativo. Tal
pode encontrar assentimento entre os como resume Habermas,
participantes de um Discurso prático, se
“U” é aceito, isto é: se as consequências
e efeitos colaterais, que previamente a fundamentação da ética do Discurso
resultam de uma obediência geral da exige, de acordo com o programa
regra controversa para a satisfação dos apresentado: 1) a indicação de um
interesses de cada indivíduo, podem princípio de universalização que
ser aceitos sem coação por todos. funcione como regra da argumentação;
(HABERMAS, 2003, p. 116). 2) a identificação de pressupostos
pragmáticos da argumentação que
Faz-se importante observar que, a sejam inevitáveis e tenham um conteúdo
despeito das inúmeras críticas e ataques à filosofia normativo; 3) a exposição explícita desse
kantiana realizados em capítulos anteriores, o conteúdo normativo, por exemplo, sob
a forma de regras do Discurso; e 4) a
que Habermas faz, nesse momento em especial, é comprovação de que há uma relação
uma espécie de resgate e apropriação modificada de implicação material entre 3 e 1 em
do Imperativo Categórico kantiano. Enquanto conexão com a ideia de justificação da
Kant propunha que as obrigações e as respectivas normas. (HABERMAS, 2003, p. 120).
regras que regem a conduta moral deviam Uma vez que, diferentemente de outros
ser obtidas pela razão, a partir da apreciação filósofos, porém de modo semelhante a Kant,
singular da sua possível generalização social (aja Habermas não discute diretamente nenhum
de maneira que sua conduta possa ser adotada conteúdo moral específico em sua Ética
por todos os outros membros da sociedade), Discursiva, sua proposta teórica está sujeita a
Habermas “coletiviza” o Imperativo Categórico, crítica do formalismo. Na verdade, Habermas
a partir da submissão das ações e normas de pretende edificar uma teoria moral ampla e
conduta ao princípio “U”, propondo: ajamos de abrangente que não depende de nenhuma
modo que as consequências das nossas ações, fixação de conteúdo para que possa ser aplicada

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à análise da vida moral. Assim sendo, o autor


procura se defender da crítica do formalismo
Capítulo 4. Consciência Moral e Agir
argumentando que o conteúdo moral da Ética
Comunicativo
Discursiva deve ser encontrado no contexto social
no qual se pretende a análise. Como observa o Este é o quarto e último capítulo da obra
próprio autor, de Habermas em apreço. A despeito do título
desse capítulo, a preocupação central do autor
o princípio da ética do Discurso refere- aqui não é a de “lançar” uma teoria moral do agir
se a um procedimento, a saber, o resgate comunicativo, coisa que já foi feita no terceiro
discursivo de pretensões de validez
normativas; nessa medida, a ética capítulo, mas sim buscar apoio e confirmação
do Discurso pode ser corretamente teórica para sua Ética Discursiva em outros
caracterizada como formal. Ela não autores. Naturalmente, na busca por tal apoio e
indica orientações conteudísticas, mas confirmação, Habermas se vê diante não apenas
um processo: o Discurso prático (...) Os da necessidade de retomar alguns dos seus
Discursos práticos têm que fazer com
que seus conteúdos lhes sejam dados. principais argumentos, como, também, diante
Sem o horizonte do mundo da vida de um da necessidade de aprofundá-los. Nesse sentido,
determinado grupo social e sem conflitos podemos entender esse quarto capítulo como
de ação numa determinada situação, uma tentativa de síntese e consolidação da teoria
na qual os participantes considerassem discursiva da ética de Habermas.
como sua tarefa a regulação consensual
de uma matéria social controversa, não Habermas escolhe o psicólogo norte-
teria sentido querer empreender um americano Laurence Kohlberg e sua Teoria do
Discurso prático. (HABERMAS, 2003, p. Desenvolvimento da Consciência Moral, cuja base
126). é piagetiana, como seu interlocutor. De maneira
Finalmente, interessa notarmos o caráter diferente dos capítulos anteriores, Habermas se
“secular” ou, mais corretamente, “iluminista” debruça, então, sobre uma teoria psicológica e
do projeto da Ética do Discurso de Habermas. não, necessariamente, sobre outros filósofos.
Certamente, ela serve para a compreensão da Naturalmente, esse movimento se justifica dado
vida moral em tempos quando as normas e regras ao fato de que, nesse capítulo, Habermas está
“estáveis” da tradição e do costume não precisam à procura de apoio e confirmação “científicos”
se fazer mais tão presentes. Dado o caráter para a ética discursiva e não mais de referenciais
processual da Ética Discursiva, torna-se evidente filosóficos. Não obstante, Habermas justifica a
a aposta que Habermas faz nas interações sociais escolha da teoria de Kohlberg argumentando que:
comunicativas e, mais especificamente, na 1) o trabalho de Kohlberg é altamente significativo
capacidade de entendimento e harmonização no que se refere ao estudo do fenômeno da
da ação humana diante da validação de regras moralidade. 2) as ideias de Kohlberg gozam de
e normas morais que inspirem a conduta social. um estatuto filosófico consistente e consonante
Assim, não são necessariamente as regras morais com seus propósitos, e sua “teoria” não está
tradicionais ou costumeiras que são validadas no solta e “independente” da filosofia. 3) Habermas
discurso, embora elas possam servir como base retoma, assim, o debate sobre a “divisão de
indutora para a edificação dialógica e cooperativa trabalho” entre Filosofia e Ciência (vide capítulo
de novas regras que pretendem regular a ação 1), reforçando seu argumento de que essa divisão
humana. Isso tudo demonstra a versatilidade da deve dar espaço a cooperação.
proposta habermasiana. Habermas inicia a discussão sobre a
teoria de Kohlberg procurando justamente
destacar suas características ou bases filosóficas.

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A primeira delas é o cognitivismo. Segundo convencional e pós-convencional. O quadro,


Habermas (2003, p. 147), “os juízos morais têm abaixo, procura sintetizar o modelo de Kohlberg:
um conteúdo cognitivo; eles não se limitam a dar
expressão às atitudes afetivas, preferências ou Nível A Pré-convencional
decisões contingentes de cada falante ou ator”. A O estágio do castigo e da obediência:
segunda delas é o universalismo. Para Habermas, Estágio 1 As razões para fazer o que é direito são o
desejo de evitar castigo e o poder superior das
o universalismo está tão presente na teoria de autoridades.
Kohlberg quanto o princípio “U” está em sua Ética O estágio de objetivo instrumental individual e
Discursiva. Finalmente, Habermas aponta para da troca:
Estágio 2 A razão para fazer o que é direito é servir às
o formalismo. De acordo com o autor, tanto sua necessidades e interesses próprios num mundo
ética quanto a teoria de Kohlberg são formalistas. em que é preciso reconhecer que as outras
pessoas também têm seus interesses.
Isso significa, explica Habermas, que nenhuma Nível B Convencional
delas discorre sobre conteúdos, mas sim, sobre O estágio das expectativas interpessoais
processos que universalizam conteúdos. Nesse mútuas, dos relacionamentos e da
conformidade:
sentido, Habermas (2003, p. 148) reforça que As razões para fazer o que é direito são: ter
“o Discurso prático é um processo, não para Estágio 3 necessidade de ser bom a seus próprios olhos e
aos olhos dos outros, importar-se com os outros
a produção de normas justificadas, mas para e porque, a gente se pusesse no lugar do outro,
o exame da validade de normas consideradas a gente ira querer um bom comportamento de
si próprio (regra de ouro).
hipoteticamente”. Evidentemente, ao discorrer O estágio da preservação do sistema social e da
sobre as bases filosóficas da teoria de Kohlberg, consciência:
As razões para fazer o que é direito são: manter
Habermas está à procura de uma aproximação. em funcionamento a instituição como um todo,
Estágio 4
Nesse sentido, o autor entende que a Ética do o auto-respeito ou a consciência compreendida
como o cumprimento das obrigações definidas
Discurso pode complementar a teoria de Kohlberg para si próprio ou a consideração das
devido ao fato de ambas estarem apoiadas consequências: “e se todos fizessem o mesmo?”
Nível C Pós-convencional
em uma teoria do agir comunicativo, muito
O estágio dos direitos originários e do contrato
embora, segundo Habermas, Kohlberg não tenha social ou da utilidade:
construído seus conceitos deliberadamente sobre As razões para fazer o que é direito são em
geral: sentir-se obrigado a obedecer à lei
a Teoria da Ação Comunicativa. porque a gente fez um contrato social de
Dando sequência à sua análise fazer e respeitar leis, para o bem de todos
e para proteger seus próprios direitos e os
Estágio 5
comprovatória, Habermas apresenta, então, os direitos dos outros. As obrigações de família,
amizade, confiança e trabalho, também,
seis estágios do juízo moral que são a base mais são compromissos ou contratos assumidos
elementar da teoria de Kohlberg. Para Kohlberg, livremente e implicam o respeito pelos direitos
dos outros. Importa que as leis e deveres sejam
a passagem da pessoa de um estágio para outro baseados num cálculo racional de utilidade
geral: “o maior bem para o maior número”.
é uma questão de aprendizagem e, por isso, o
O estágio de princípios éticos universais:
desenvolvimento do juízo moral se dá no indivíduo
As leis ou acordos sociais particulares são,
desde a infância, não estando dissociado do seu em geral, válidos porque se apoiam em
desenvolvimento intelectual e psicomotor. Nesse tais princípios. Quando as leis violam esses
princípios, a gente age de acordo com
itinerário, o indivíduo sai de uma posição em que o princípio. Os princípios são princípios
universais de justiça: a igualdade de direitos
é incapaz de realizar juízos morais, rumo a uma Estágio 6 humanos e o respeito pela dignidade dos seres
situação na qual tem consciência plena sobre e humanos enquanto indivíduos. Estes não são
meramente valores reconhecidos, mas também
existência de regras e normas morais, bem como são princípios usados para gerar decisões
particulares. A razão para fazer o que é direito é
sobre a necessidade (ou não) de obedecê-las. que a gente, enquanto pessoa racional, percebe
Na proposta de Kohlberg, os seis estágios a validade dos princípios e comprometeu-se
com eles.
do desenvolvimento moral se agrupam em pares
em três grandes níveis, a saber: pré-convencional, Fonte: extraído de Habermas (2003, p. 152-154).

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A relação que Habermas faz entre a Ética coletivamente a partir da Ação Comunicativa.
do Discurso e a teoria de Kohlberg é complexa e se Nesse sentido, Habermas entende que “o conceito
estende por praticamente todo o quarto capítulo do agir comunicativo presta-se como ponto de
de seu livro. Todavia, um dos principais pontos de referência para uma reconstrução dos estágios
aproximação entre as ideias desses dois autores de interação” (HABERMAS, 2003, p. 163). Aqui
resume-se à questão da heteronomia versus percebemos, também, como Habermas pretende
autonomia moral. Habermas observa que o último “complementar” a teria de Kohlberg: agregando-
nível de desenvolvimento da consciência moral lhe sua razão comunicativa.
elaborado por Kohlberg, especialmente o seu Nesse itinerário, Habermas retoma a
sexto estágio, exige um distanciamento ou uma comparação entre a Ação Comunicativa e Ação
certa “emancipação” do indivíduo em relação às Estratégica iniciada nos capítulos anteriores:
regras e normas de conduta socialmente impostas
(heternonomia), o que significa que tal indivíduo na medida em que os atores estão
seja capaz, por ele mesmo, de encontrar “razão” exclusivamente orientados para o
sucesso, isto é, para as consequências
para proceder segundo a referida regra ou não. do seu agir, eles tentam alcançar
Dito de outra forma, o sexto estágio de Kohlberg os objetivos de sua ação influindo
prevê reflexividade moral e não meramente externamente, por meio de armas ou
conformação da ação com as regras e normas bens, ameaças ou seduções, sobre
de conduta. Exige que o indivíduo se distancie a definição da situação ou sobre as
decisões ou motivos de seus adversários.
criticamente da sociedade, avalie racionalmente A coordenação das ações de sujeitos
as regras e normas de conduta moral lá existentes que se relacionam dessa maneira, isto é,
e retorne à ação amparado em uma razão madura. estrategicamente, depende da maneira
Trata-se, pois, do rompimento do determinismo como se entrosam os cálculos de ganhos
social. Assim, analisa Habermas, para que possa egocêntricos. O grau de cooperação e
estabilidade resulta então das faixas
haver desenvolvimento moral até o sexto estágio, de interesses dos participantes. Ao
é necessário que o indivíduo que evolui deixe para contrário, falo em agir comunicativo
trás a sociedade concreta e examine a validade quando os atores tratam de harmonizar
das normas sociais existentes. Por conseguinte, internamente seus planos de ação e
seu comportamento deixa de ser heterônomo e de só perseguir suas respectivas metas
sob condição de um acordo existente
passa a ser autônomo. ou a se negociar sobre a situação e as
A discussão da heteronomia versus consequências esperadas. Em ambos os
autonomia moral ainda não esgota a análise casos, a estrutura teleológica da ação
comparativa e aproximativa que Habermas faz é pressuposta na medida em que se
acerca da teoria de Kohlberg. Ainda falta o mais atribui aos atores a capacidade de agir
em vista de um objetivo e o interesse
importante: uma vez que Habermas procura em executar seus planos de ação. Mas
“avaliar” a teoria de Kohlberg através da lente o modelo estratégico da ação pode se
da Teoria da Ação Comunicativa, esse autor não satisfazer com a descrição de estruturas
apenas entende que a autonomia é o caminho do agir imediatamente orientado para o
para o sexto estágio de desenvolvimento moral, sucesso, ao passo que o modelo do agir
orientado para o entendimento mútuo
como dá a essa autonomia um caráter discursivo. É tem que especificar condições para um
precisamente aqui que Habermas, efetivamente, acordo alcançado comunicativamente
aproxima sua Ética do Discurso da teoria de sob as quais Alter pode anexar suas
Kohlberg, ou seja, a partir do momento em que ações às do Ego. (HABERMAS, 2003, p.
entende que, para haver autonomia moral, as 164-165).
regras e normas sociais devem ser legitimadas Entendemos, assim, que, embora tanto

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a Ação Comunicativa quanto a Ação Estratégica fornece os recursos para os processos


possam resultar em uma ação teleologicamente de interpretação com os quais os
participantes da comunicação procuram
orientada, no caso da Ação Comunicativa, o acordo
suprir a carência de entendimento
é condição preliminar para a busca dos objetivos mútuo que surgiu em cada situação de
almejados pelos atores, condição esta que está ação. ((HABERMAS, 2003, p. 166-167).
acima e além da simples negociação, persuasão
Então, no mundo da vida são encontradas
e/ou coerção, uma vez que a partir desse acordo
as regras e normas sociais de conduta a partir
tais objetivos podem ser renegociados.
das quais a legitimidade moral das ações será
Ao retomar a comparação entre Ação
apreciada. É o mundo da vida que fornece todo
Estratégica e Ação Comunicativa, Habermas
o estofo para a Ética Discursiva uma vez que
pretende enfatizar que a construção da
esta não existe para criar novas normas e regras
autonomia moral não é uma atribuição do
morais, mas sim, para apreciar dinamicamente
indivíduo, mas sim, de todo o coletivo. O
sua validez e, assim, orientar cooperativamente a
autor quer apenas reforçar, uma vez que já se
conduta social.
posicionou assim anteriormente, que os atores
Nesse ponto, Habermas retoma, também,
sociais, ao distanciarem-se reflexivamente das
o debate entre o discurso constatativo e o discurso
normas e regras sociais para validá-las ou não, não
regulativo na intenção de chamar a atenção para
podem fazê-lo sem abrir mão de seus objetivos e
o caráter efetivamente moral dos atos de fala.
interesses fixados a priori. Assim sendo,
Afirma ele que
os processos de entendimento mútuo
visam um acordo que depende do os atos de fala não servem apenas para
assentimento racionalmente motivado a representação (ou pressuposição)
ao conteúdo de um proferimento. O de estados e acontecimentos, quando
acordo não pode ser imposto à outra o falante se refere a algo no mundo
parte, não pode ser extorquido ao objetivo. Eles servem ao mesmo tempo
adversário por meio de manipulações: para a produção (ou renovação) de
o que manifestamente advém graças relações interpessoais, quando o falante
a uma intervenção externa não pode se refere a algo no mundo social das
ser tido na conta de um acordo. Este interações legitimamente reguladas,
assenta-se sempre em convicções bem como para a manifestação
comuns. (HABERMAS, 2003, p. 165). de vivências, isto é, para a auto-
representação, quando o falante se
É nesse ponto que entra em cena o refere a algo no mundo subjetivo
“mundo da vida”, a saber, como ponto de partida a que tem um acesso privilegiado.
(HABERMAS, 2003, p. 167).
comum para a Ação Comunicativa e para a Ética
Discursiva. Grosso modo, o mundo da vida pode Mas, afinal, quais são as condições
ser entendido com o senso-comum a partir necessárias para que a comunicação figure
do qual qualquer ação dialógica toma corpo. efetivamente como um processo do discurso,
Segundo Habermas, em que o acordo para a validação das normas
éticas e para a ação pode ser encontrado
o mundo da vida comum em cada caso cooperativamente? Habermas expõe três
oferece uma provisão de obviedades
condições:
culturais donde os participantes da
numa atitude orientada para o
comunicação tiram seus esforços de
entendimento mútuo, o falante ergue
interpretação, os modelos de exegese
com todo proferimento inteligível
consentidos (...) O mundo da vida
as seguintes pretensões: 1) que o
constitui, pois, o contexto da situação
enunciado formulado é verdadeiro (ou,
de ação; ao mesmo tempo, ele

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conforme o caso, que as pressuposições compreendem aquilo sobre o que se


de existência de um conteúdo entendem como algo em um mundo,
proposicional mencionado são como algo que se desprendeu do
acertadas); 2) que o ato de fala é correto pano de fundo do mundo da vida
relativamente a um contexto normativo para se ressaltar em face dele, o que
existente (ou, conforme o caso, que o é explicitamente sabido separa-se das
contexto normativo que ele realiza, é ele certezas que permanecem implícitas,
próprio legítimo); e 3) que a intenção os conteúdos comunicados assumem o
manifesta do falante é visada do modo caráter de um saber que vincula a um
como é proferida. (HABERMAS, 2003, p. potencial de razões, pretende validade
167-168). e pode ser criticado, isto é, contestado
com base em razões. (HABERMAS, 2003,
Assim, explica Habermas, quem rejeita p. 169).
um argumento em uma relação comunicativa
ideal está contestando pelo menos um desses Esse é o princípio coletivista e dialógico da
três aspectos do discurso: validade, correção ou autonomia que dá, segundo Habermas, condições
sinceridade. para que os indivíduos adentrem o sexto estágio
Habermas parte para as conclusões do de consciência moral de Kohlberg. Frente a essa
seu quarto capítulo (e do livro como um todo) capacidade dialógica de agir coletivamente, “fica
explorando a aproximação da Teoria da Ação claro que o agir moral representa aquele caso
Comunicativa com a Teoria dos Estágios do do agir regulado por normas no qual o agente se
Desenvolvimento Moral de Kohlberg por meio de orienta por pretensões de validez reflexivamente
uma análise detalhada e sistemática de todos os orientadas (...). Esse conceito preciso de
seis estágios desta Teoria. Todavia, é no último moralidade só pode vir a se desenvolver no estágio
estágio que as ideias de Habermas sobre o Agir pós-convencional” (HABERMAS, 2003, p. 196).
Comunicativo e sobre a Ética Discursiva mostram Eis, em linhas gerais, a validação e a aproximação
maior aderência. Com efeito, a condição para que bem-sucedidas entre a Ética Discursiva de
os participantes de um discurso cheguem ao sexto Habermas e a Teoria do Desenvolvimento da
estágio de consciência moral é a descentração, ou Consciência Moral de Kohlberg.
seja, sua capacidade para analisar criticamente as
normas e regras sociais até então heterônomas e,
assim, optar pela sua adesão ou troca por outras
mais compatíveis com as razões coletivas. Trata-
se de se “distanciar” da moralidade enraizada
do mundo da vida e analisar tal moralidade de
modo diferenciado, autônomo e, acima de tudo,
dialógico.

Quanto mais avança essa diferenciação,


tanto mais claramente podem-se separar
as duas coisas: por um lado, o horizonte
de obviedades inquestionadas,
compartilhadas intersubjetivamente e
não tematizadas, que os participantes
conservam às costas; por outro lado,
aquilo que tem defronte como conteúdos
intramundamente constituídos de
sua comunicação (...) Na medida em
que os participantes da comunicação

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