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Ciências e Filosofia, Habermas mergulha agora abstrata e não necessariamente universal, ou seja,
no debate acerca da natureza das Ciências Sociais uma verdade que depende das circunstâncias nas
propriamente ditas. Para tanto, utiliza-se da quais se encontra a produção do saber. Nesse
polaridade “Ciências Sociais reconstrutivas” – sentido, Habermas explica que a imparcialidade
“Ciências Sociais compreensivas”. no âmbito da Ciência compreensiva é uma
“imparcialidade negociada”.
De acordo com o autor, a Ciência Tudo isso leva Habermas à discussão
reconstrutiva restringe-se à descrição, à acerca do papel do discurso nas Ciências e,
teorização objetivante sobre algo, teorização mais particularmente, à discussão sobre a
esta que pretende “reconstruir”, a uma certa Hermenêutica na linguagem científica:
distância, o objeto estudado. Trata-se, pois, da
perspectiva “tradicional” de Ciência Social, tal a hermenêutica considera a linguagem,
por assim dizer, em ação, a saber, da
como herdada das Ciências Naturais. Já a Ciência maneira como é empregada pelos
compreensiva refere-se à Ciência traspassada participantes com objetivo de chegar à
pela Filosofia Hermenêutica, ou seja, uma Ciência compreensão conjunta de uma coisa ou
que se permite compreender o mundo de uma a uma maneira de ver comum. Contudo,
forma mais participativa do que objetivante. a metáfora visual do observador
que “vê” algo não deve obscurecer
Toda a argumentação apresentada no o fato de que a linguagem utilizada
capítulo quer nos levar a crer que a Ciência Social performativamente está inserida em
reconstrutiva fracassou ou está fracassando e que relações mais complicadas do que a
a Ciência Social compreensiva é mais adequada simples relação “sobre” (e do que o tipo
à realidade complexa do mundo moderno. de intenção correlacionado com ela).
(HABERMAS, 2003, p. 41).
Todavia, a contribuição do autor reside, aqui,
em demonstrar que uma Ciência Social atual De acordo com Habermas, a adoção de
eficaz não pode se privar de uma Filosofia uma perspectiva discursiva e hermenêutica traz,
(Hermenêutica) que está nela imbricada. ao menos, três grandes implicações às Ciências
Habermas ainda traça outras Sociais, a saber:
comparações entre ambas as Ciências. Enquanto
na Ciência reconstrutiva a postura do observador 1) os intérpretes [cientistas] renunciam
à superioridade da posição privilegiada
consiste em tratar o fenômeno estudado como do observador, porque eles próprios
objeto minimamente distante (objetividade), na se vêem envolvidos nas negociações
compreensiva, a atitude do observador deve ser sobre o sentido e a validez dos
“performativa”, ou seja, ele só pode conhecer o proferimentos. Ao tomarem parte
em ações comunicativas, aceitam por
fenômeno na sua interação e participação direta princípio o mesmo status daqueles cujos
junto a ele. Assim sendo, a palavra de ordem proferimentos querem compreender.
para a Ciência reconstrutiva seria a “observação”, (HABERMAS, 2003, p. 43).
enquanto que para a Ciência compreensiva tal
2) ao assumir uma atitude performativa,
palavra seria a “participação”. Especificamente os interpretes não apenas renunciam
no que se refere à questão da imparcialidade, à posição de superioridade em face
Habermas reconhece que ela sempre foi objeto de seu domínio de objetos, mas
confrontam-se além disso com a
de crítica contra a Ciência compreensiva. Porém, questão de como superar a dependência
explica o autor, diferentemente do que pretende de sua interpretação relativamente ao
a Ciência reconstrutiva com sua busca pela contexto. Eles não podem estar seguros
“verdade”, a Ciência compreensiva busca uma de antemão de que eles próprios e
verdade contextualizada, uma verdade real, não seus sujeitos de experiência partem do
mesmo fundo de suposições e práticas.
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Habermas nos lembra que estamos aqui têm, relativamente à justificação moral das
diante de uma tese fenomenológica. Logo, o maneiras de agir, um significado semelhante ao
conteúdo moral (emotivo) das ações sociais só que as percepções têm para a explicação teórica
pode ser devidamente apreendido na própria de fatos” (HABERMAS, 2003, p. 70). No que diz
experiência performativa daqueles que interagem respeito a esta última constatação em particular,
socialmente. Assim, Habermas abre duas novas linha de discussão
em seu texto: 1) sobre a questão da cognição
as reações pessoais do ofendido, por
moral, ou seja, até que ponto os sentimentos
exemplo, os ressentimentos, só são
possíveis na atitude performativa de podem ser aprendidos socialmente; e 2) sobre a
um participante da interação. A atitude possibilidade de se avaliar as posições deônticas
objetivante de um não-participante como “verdadeiras ou falsas”.
suprime os papéis comunicacionais No que diz respeito à questão da cognição
da primeira e da segunda pessoas e
moral, Habermas recorre a pensadores como
neutraliza o âmbito dos fenômenos
morais em geral. A atitude da terceira Toulmin para afirmar que o conteúdo ético não
pessoa faz desaparecer esse âmbito é apenas aprendido socialmente, como, também,
fenomenal. (HABERMAS, 2003, p. 65). pode ser alterado pela razão de modo a promover
Habermas ira extrair desses argumentos juízos mais precisos. Para provar, estabelece um
um dos alicerces para sua Ética Discursiva, a paralelo entre o saber prático (moral) e o saber
saber, o fato de que ela precisa ser performativa. teórico (factual). Ao final da sua exposição,
Porém, ainda fica uma dúvida em relação a argumenta que “ao passo que a crítica teórica às
fenomenologia emotivista de Strawson: será experiências quotidianas enganosas serve para
que os sentimentos que os atores experimentam corrigir opiniões e expectativas, a crítica moral
em suas relações sociais e que dão base moral serve para modificar maneiras de agir ou corrigir
para sua interação não são muito particulares juízos sobre elas” (HABERMAS, 2003, p. 71).
ou subjetivos? Habermas responde esta questão No que diz respeito à possibilidade de se
argumentando que tais sentimentos são avaliar as posições deônticas como verdadeiras
relativamente impessoais. Em suas palavras: ou falsas, Habermas recorre a pensadores como
White e Moore para demonstrar que “a tese
os sentimentos de culpa e de obrigação de que as questões práticas são ‘passíveis de
remetem além do particularismo verdade’ sugere uma assimilação dos enunciados
daquilo que concerne a um indivíduo normativos aos enunciados descritivos”
em uma situação determinada. Se
as reações afetivas, dirigidas em (HABERMAS, 2003, p. 73). Ou seja, Habermas
situações determinadas contra pessoas partilha da convicção de que as posições
particulares, não estivessem associadas deônticas, assim como as posições teóricas,
a essa forma impessoal de indignação, podem ser verdadeiras ou falsas. Isso tudo,
dirigida contra a violação de expectativas certamente, desafia aqueles que partilham do
de comportamento generalizadas ou
normas, elas seriam destituídas de ceticismo moral.
caráter moral. (HABERMAS, 2003, p. 68). Porém, a noção de “correção” das posições
deônticas não é idêntica à noção de “correção” das
Habermas resume as contribuições de posições teóricas, dado que, segundo Habermas,
Strawson extraindo delas aquilo que lhe interessa não temos como colher dados diretamente do
para efeito da proposição da sua Ética Discursiva, mundo físico. Então, como podemos sustentar
a saber: que o conteúdo moral, para que seja que tais posições são verdadeiramente
devidamente apreendido, deve ser apreendido verificáveis? A resposta mais precisa identificada
em relações performativas e que “os sentimentos por Habermas coube à argumentação de
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e ações encontrados no discurso constatativo. mesmo quando nossas ações buscam apenas
Todavia, Habermas enfatiza, e a este ponto retorna nossos interesses mais individuais, possam ser
ao quarto capítulo de seu livro, que o discurso não aceitas e toleradas por todos de forma livre. Por
produz regras e normas de conduta social por si certo, aqui, a principal diferença entre Kant e
mesmo, mas sim, é o espaço onde essas normas e Habermas se encontra no fato de que a adesão
regras, bem como as ações que hipoteticamente às regras que darão apoio à conduta moral não
inspiram, são validadas e testadas coletivamente. provêm da razão transcendental (Kant), mas
Se uma regra de conduta é movimentada sim, da Razão Comunicativa (Habermas). Fica
em um discurso regulativo e é aceita sem que haja evidente, mais uma vez, a opção de Habermas
coerção externa ou interna dos participantes, pela filosofia da linguagem em oposição à filosofia
então, Habermas demonstra que o princípio “U”, da consciência.
o princípio da universalização, foi respeitado, e Isso posto, Habermas lança mão de
tal regra goza de validez e pode, por conseguinte, sua Ética Discursiva propriamente dita. Na
orientar a ação dentro do grupo social em Ética Discursiva, as normas e regras de conduta
questão. De acordo com Habermas, é o princípio moral, ou seja, as normas e regras que balizam
“U” que garante que houve realmente acordo a boa ou má ação, a ação justa ou injusta, a ação
quanto às regras que devem orientar a conduta certa ou errada do ponto de vista moral, são
dos participantes do discurso. Em suas palavras, validadas e acatadas socialmente a partir da Ação
Comunicativa, mais especificamente, a partir
das mencionadas regras do Discurso do princípio “U”. A Ética do Discurso remete e
resulta que uma norma controversa só depende da Teoria do Agir Comunicativo. Tal
pode encontrar assentimento entre os como resume Habermas,
participantes de um Discurso prático, se
“U” é aceito, isto é: se as consequências
e efeitos colaterais, que previamente a fundamentação da ética do Discurso
resultam de uma obediência geral da exige, de acordo com o programa
regra controversa para a satisfação dos apresentado: 1) a indicação de um
interesses de cada indivíduo, podem princípio de universalização que
ser aceitos sem coação por todos. funcione como regra da argumentação;
(HABERMAS, 2003, p. 116). 2) a identificação de pressupostos
pragmáticos da argumentação que
Faz-se importante observar que, a sejam inevitáveis e tenham um conteúdo
despeito das inúmeras críticas e ataques à filosofia normativo; 3) a exposição explícita desse
kantiana realizados em capítulos anteriores, o conteúdo normativo, por exemplo, sob
a forma de regras do Discurso; e 4) a
que Habermas faz, nesse momento em especial, é comprovação de que há uma relação
uma espécie de resgate e apropriação modificada de implicação material entre 3 e 1 em
do Imperativo Categórico kantiano. Enquanto conexão com a ideia de justificação da
Kant propunha que as obrigações e as respectivas normas. (HABERMAS, 2003, p. 120).
regras que regem a conduta moral deviam Uma vez que, diferentemente de outros
ser obtidas pela razão, a partir da apreciação filósofos, porém de modo semelhante a Kant,
singular da sua possível generalização social (aja Habermas não discute diretamente nenhum
de maneira que sua conduta possa ser adotada conteúdo moral específico em sua Ética
por todos os outros membros da sociedade), Discursiva, sua proposta teórica está sujeita a
Habermas “coletiviza” o Imperativo Categórico, crítica do formalismo. Na verdade, Habermas
a partir da submissão das ações e normas de pretende edificar uma teoria moral ampla e
conduta ao princípio “U”, propondo: ajamos de abrangente que não depende de nenhuma
modo que as consequências das nossas ações, fixação de conteúdo para que possa ser aplicada
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A relação que Habermas faz entre a Ética coletivamente a partir da Ação Comunicativa.
do Discurso e a teoria de Kohlberg é complexa e se Nesse sentido, Habermas entende que “o conceito
estende por praticamente todo o quarto capítulo do agir comunicativo presta-se como ponto de
de seu livro. Todavia, um dos principais pontos de referência para uma reconstrução dos estágios
aproximação entre as ideias desses dois autores de interação” (HABERMAS, 2003, p. 163). Aqui
resume-se à questão da heteronomia versus percebemos, também, como Habermas pretende
autonomia moral. Habermas observa que o último “complementar” a teria de Kohlberg: agregando-
nível de desenvolvimento da consciência moral lhe sua razão comunicativa.
elaborado por Kohlberg, especialmente o seu Nesse itinerário, Habermas retoma a
sexto estágio, exige um distanciamento ou uma comparação entre a Ação Comunicativa e Ação
certa “emancipação” do indivíduo em relação às Estratégica iniciada nos capítulos anteriores:
regras e normas de conduta socialmente impostas
(heternonomia), o que significa que tal indivíduo na medida em que os atores estão
seja capaz, por ele mesmo, de encontrar “razão” exclusivamente orientados para o
sucesso, isto é, para as consequências
para proceder segundo a referida regra ou não. do seu agir, eles tentam alcançar
Dito de outra forma, o sexto estágio de Kohlberg os objetivos de sua ação influindo
prevê reflexividade moral e não meramente externamente, por meio de armas ou
conformação da ação com as regras e normas bens, ameaças ou seduções, sobre
de conduta. Exige que o indivíduo se distancie a definição da situação ou sobre as
decisões ou motivos de seus adversários.
criticamente da sociedade, avalie racionalmente A coordenação das ações de sujeitos
as regras e normas de conduta moral lá existentes que se relacionam dessa maneira, isto é,
e retorne à ação amparado em uma razão madura. estrategicamente, depende da maneira
Trata-se, pois, do rompimento do determinismo como se entrosam os cálculos de ganhos
social. Assim, analisa Habermas, para que possa egocêntricos. O grau de cooperação e
estabilidade resulta então das faixas
haver desenvolvimento moral até o sexto estágio, de interesses dos participantes. Ao
é necessário que o indivíduo que evolui deixe para contrário, falo em agir comunicativo
trás a sociedade concreta e examine a validade quando os atores tratam de harmonizar
das normas sociais existentes. Por conseguinte, internamente seus planos de ação e
seu comportamento deixa de ser heterônomo e de só perseguir suas respectivas metas
sob condição de um acordo existente
passa a ser autônomo. ou a se negociar sobre a situação e as
A discussão da heteronomia versus consequências esperadas. Em ambos os
autonomia moral ainda não esgota a análise casos, a estrutura teleológica da ação
comparativa e aproximativa que Habermas faz é pressuposta na medida em que se
acerca da teoria de Kohlberg. Ainda falta o mais atribui aos atores a capacidade de agir
em vista de um objetivo e o interesse
importante: uma vez que Habermas procura em executar seus planos de ação. Mas
“avaliar” a teoria de Kohlberg através da lente o modelo estratégico da ação pode se
da Teoria da Ação Comunicativa, esse autor não satisfazer com a descrição de estruturas
apenas entende que a autonomia é o caminho do agir imediatamente orientado para o
para o sexto estágio de desenvolvimento moral, sucesso, ao passo que o modelo do agir
orientado para o entendimento mútuo
como dá a essa autonomia um caráter discursivo. É tem que especificar condições para um
precisamente aqui que Habermas, efetivamente, acordo alcançado comunicativamente
aproxima sua Ética do Discurso da teoria de sob as quais Alter pode anexar suas
Kohlberg, ou seja, a partir do momento em que ações às do Ego. (HABERMAS, 2003, p.
entende que, para haver autonomia moral, as 164-165).
regras e normas sociais devem ser legitimadas Entendemos, assim, que, embora tanto
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