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AS RUNAS

“Primeiro sentir os símbolos, sentir que os símbolos têm vida e alma,


que os símbolos são gente. Mais tarde virá a interpretação,
mas sem esse sentir, a interpretação não vem.”
Fernando Pessoa

Nestes últimos anos temos acompanhado um crescimento lento, porém


significativo, no interesse pelos mitos e tradições dos povos do Norte. Ele está refletido
no lançamento de novos livros, no surgimento de novos grupos de estudos (acadêmicos
ou independentes), no crescente movimento religioso reconstrucionista da fé nórdica,
como também em inúmeras outras áreas. Nunca se ouviu falar tanto em mitologia nórdica
como agora. Esse desenvolvimento permitiu as runas, que por um dado período foram
ignoradas e/ou vítimas de preconceito (devido a sua antiga associação com a Campanha
Nazista), a ganharem novamente destaque e terem o seu valor sagrado resgatado.
As runas são antigos símbolos que compunham os primeiros alfabetos germânicos.
São inicialmente caracteres angulares com uma característica bastante peculiar:
possuíam tanto um valor gráfico e fonético quanto simbólico – o que as difere das letras
de nosso e muitos outros sistema de escrita.

Registro de 1899. Uma runestone caída em Jursta, Suécia.

Além de letras, definição primária e sistema o veem e o compreendem de uma


consensual as mais diversas linhas de forma própria, distinta. Talvez, para os
pesquisa, as runas também podem ser povos antigos, as runas fossem um misto
percebidas como símbolos, arquétipos ou de todos estes elementos: o espírito de um
ainda, espíritos. Como cada experiência é arquétipo, codificado num símbolo, dotado
única, os mais diversos estudantes deste de um valor fonético. Independentemente
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de seu significado original, as runas hoje dividem um ramo de árvore


podem facilmente serem interpretadas sob frutífera em pequenos pedaços que,
várias e diferentes perspectivas não depois de marcados com certos
excludentes. sinais, são lançados a esmo sobre
Elas são mistérios ocultos por uma veste branca. A seguir, o
metáforas e enigmas, são símbolos sacerdote da cidade, se trata de
arquetípicos, espíritos sagrados que usam negócio público, ou pai de família,
de uma linguagem sutil, despertando em se trata de assunto doméstico, após
seus amantes uma percepção instintiva e haver deprecado os deuses,
intuitiva. erguendo os olhos ao céu, toma de
Como quase tudo no tocante as três fragmentos da haste, um de
runas, suas origens e significados são cada vez, e faz a interpretação de
incertos. Estudos apontam que todos os acordo com os sinais previamente
prováveis radicais da palavra “runa” estão impressos. Se as decisões são
associados a “mistério”, “sussurro”, contrárias aos que se esperava,
“segredo”, o que nos sugere a ideia de um naquele dia não se realizam mais
conhecimento sagrado transmitido consultas a respeito. Se, porém, são
oralmente, talvez em uma iniciação, favoráveis, requer-se a confirmação
embora esta última possibilidade não seja dos auspícios. É uso ali, também,
comumente aceita pela academia. consultar-se o canto e o voo das
Elas povoaram quase que toda a aves.”
antiga Europa, de forma mais evidente ao
norte, e foram utilizadas das mais Gêrmania, Caio Cornélio Tácito.
diferentes formas pelos antigos povos Tradução de Sadi Garibaldi. Rio de Janeiro:
germânicos. Por meio de evidências, Editora Livraria Para Todos, 1943.
antigos artefatos, sabemos que elas eram
entalhadas de forma costumeira em Portanto podemos observar que
diversos materiais. Elas foram encontradas além de serem entalhadas em objetos –
gravadas em lanças, espadas e escudos, provavelmente, em alguns casos, a fim de
também em pentes, caixas, chifres e lhes conferir algum poder, o que as atribui
pedras. um caráter mágico – as runas também
O historiador romano Tacitus, em foram utilizadas como um instrumento
sua obra Germânia, relata como um divinatório, profético, embora sejam
homem cortava o galho de uma árvore desconhecidos outros e mais detalhados
para entalhar símbolos, que se supõe ser antigos métodos de leitura em que o
runas, e as lançava em um pano branco, em alfabeto rúnico era exatamente utilizado
uma previsão. para esse propósito.
Foram também amplamente
“Nenhum outro povo leva mais a utilizadas para registros solenes em pedras,
sério os augures e as adivinhações. onde podemos encontrar passagens
A prática de tirar as sortes é simples: diversas como demarcação de

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propriedades, evocação de nomes, amorosas, situações do cotidiano, curas de


homenagens, recordações de viagens, doenças, etc.
elegias a líderes, etc. Poucas pedras rúnicas Somente na Dinamarca são
contêm textos mágicos ou religiosos, encontradas cerca de 250 inscrições em
diferentemente das inscrições em objetos pedras, enquanto estima-se que haja um
móveis (ossos, pedaços de madeira, total aproximado de 3.000 delas, e mais de
pequenos metais, etc), onde encontramos 6.000 inscrições entre pedras e objetos
mais facilmente não somente este tipo de distribuídos pelo Velho Continente.
referência, como também passagens

O Caixão dos Francos - Peça do Museu Britânico

Contudo, as runas a princípio não foram utilizadas para registro de forma


sistemática – não por serem inapropriadas, mas devido principalmente à forma oral pela
qual o conhecimento era transmitido dentro daquelas sociedades. Não havia o costume
de se escrever em suportes longos, como manuscritos e livros, costume este que surgiu
somente quando da chegada dos monges e intelectuais após a Era Viking – as próprias
sagas são um exemplo disto: contos baseados na oralidade dos tempos pagãos, mas
preservados num suporte tipicamente euro continental cristão.
As runas permaneceram amplamente sendo utilizadas de diversas maneiras até
mesmo após a conversão do norte-europeu. Elas foram encontradas em sinos de igrejas,
pias batismais, em pedras nas proximidades dos templos ou em suas paredes, etc. Elas
conviviam lado a lado a imagens e textos cristãos, evidenciando um período de
convivência pacífica e até mesmo, um meio para conversão.
Embora seu uso tenha se estendido por um longo período de tempo, chegando
até mesmo a Idade Moderna em algumas localidades, muito pouco sobreviveu nos
registros históricos. Talvez, os dois mais detalhados escritos sobre o uso das runas sejam
o Rúnatal, uma seção do Hávamál, e o Galdrabók, um antigo grimório islandês sobre

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magia rúnica – embora de um período bem já tardio e com muitas influências externas.
Embora também possamos encontrar referência sobre as runas nas sagas, estes relatos
já não são tão comuns e numerosos.
Os estudos acerca das runas renasceram por volta de 1900, a partir dos
ensinamentos de Guildo Von List, renomado ocultista austríaco que devotou sua vida ao
estudo de antigas tradições e especialmente das runas. A partir de seus estudos e escritos,
muito foi posteriormente elaborado, desenvolvido e difundido, e com a popularização
deste conhecimento na contemporaneidade, as runas passaram a ser ainda mais
exploradas, associadas a outros elementos e em alguns momentos acabaram por vezes
se afastando um tanto quanto das suas origens.
Seja como for, atualmente é um tema bastante explorado, tanto por esotéricos
quanto por praticantes neopagãos e estudiosos acadêmicos. Está presente na literatura,
nas artes e na música. Símbolos vivos e em constante expansão.

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