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UMA REFLEXÃO SOBRE A MUSEALIZAÇÃO DE COLEÇÕES TÉCNICAS

CINEMATOGRÁFICAS

Amanda Rangel Iorio


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Um Breve Histórico da Formação dos Museus

Desde a Antiguidade era possível encontrar espaços para guarda de objetos


que significavam mais do que suas possibilidades de uso, como troféus, medalhas,
esculturas e outros trabalhos de arte, que ficavam ao lado de grandes templos, mas
para fazer um breve histórico da formação dos museus, voltaremos à época das
grandes explorações marítimas dos países europeus, nos séculos XVI e XVII, onde
havia grande interesse no colecionismo de objetos considerados raros, ou exóticos,
normalmente animais, vegetais ou minerais, mas também objetos de produção
humana.

Essas coleções deram origem aos Gabinetes de Curiosidades, espaços


privados que tinham como fim expor estes objetos trazidos de viagem, como
curiosidades, eram espaços caracterizados por acúmulos e não havia qualquer tipo
de setorização das peças expostas, mas ainda assim eram produzidos catálogos com
ilustrações e pesquisadores tinham acesso a isso. Podemos dizer que esses espaços
foram os antecessores do que hoje entendemos como museu.

Entre os séculos XVII e XVIII, famílias muito ricas e com coleções substanciais
fazem doações para as cidades onde vivem, há também o caso de estatização de
coleções como o caso dos Médici em Florença. Mas o primeiro museu de fato passa
a existir a partir de uma doação feita à Universidade de Oxford por Elias Ashmole,
dando origem ao Ashmolean Museum no ano de 1683. Na França, com o aumento da
democracia a partir da Revolução Francesa é criado em 1793 um museu público, o
Louvre.

No final do século XIX há uma explosão de criação de museus com temáticas


mais específicas, enquanto até então os acervos eram constituídos de coleções de
diversas tipologias, como museus históricos, de arte, de história natural, arqueologia
ou tecnologia. Museu como tentativa de compreensão do mundo a partir de recortes.

Outro fenômeno da mesma época é o cinema, a produção artística que melhor


reflete seu tempo e continua a se desenvolver pelo século seguinte, e junto da
produção, há também o desenvolvimento tecnológico relacionado a ela. Neste
contexto de museus com coleções específicas existe também, é claro, a criação de
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museus de cinema pelo mundo. Em 1936 é fundada a Cinemateca Francesa, e junto


dela, um museu de cinema. A existência dessas duas modalidades de instituição
dentro de uma só, nos dá uma prévia do problema metodológico que será discutido
aqui. Afinal de contas, qual a diferença entre um museu e uma cinemateca?

Primeiro pensando nas funções essenciais de um museu, Dominique Poulot


cita três em Museu e Museologia (2005, p.22): Conservação; Estudo e Pesquisa;
Comunicação. Sendo a Conservação compreendida como “determinante para a
emergência e o desenvolvimento da instituição.”, nesse caso a conservação não é só
o conjunto de práticas técnicas que visam preservar o objeto em si, mas também a
manutenção desses objetos enquanto conjunto que compõe uma coleção. Estudo e
pesquisa que estão sempre relacionados ao acervo da instituição. Comunicação ou
exposição, que são as funções de difusão desse acervo.

Já para definir Arquivo, Ray Edmondson cita a constituição do SEAPAVAA,


1996 “[...]refere-se a uma organização ou unidade de uma organização que é
vocacionada para colecionar, administrar, preservar e garantir acesso a ou fazer uso
de uma coleção de materiais audiovisuais e relacionados.” (EDMONDSON, 1998,
p.8).

Existe um conflito direto entre as práticas de arquivos de filmes e as práticas


museológicas, que é a da politica de aquisição e descarte, indispensável para a
sustentabilidade de qualquer instituição de memória e ignorada pelos preservadores
audiovisuais, principalmente a partir dos métodos de Henri Langlois, que foi um dos
principais modelos inspiradores da experiencia brasileira, segundo Fausto Correa
Junior (2007), que coletava filmes e objetos para o acervo da Cinemateca Francesa
com o critério de, basicamente aceitar tudo.

Nesse sentido, é possível encontrar muitas diferenças e muitas semelhanças


nas funções de ambos os tipos de instituição, mas mesmo as Cinematecas tendo
aderido à tipologia Arquivo, é no Museu que se encontra uma de suas funções mais
importantes: a comunicação, exposição, ou seja, a exibição de filmes.
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A Importância da Musealização dos Equipamentos e Outros Documentos do


Universo Cinematográfico

Na área da Preservação Audiovisual, a prioridade é sempre dos filmes, claro.


Mas será que é tão óbvio?

Acervos audiovisuais são mais complexos do que podem parecer à primeira


vista, e é urgente a compreensão de que artefatos de toda a cadeia de produção
cinematográfica devem ser incluídos na prática de preservação dessa área.
Normalmente, além dos filmes, também existe a conservação de documentos de
texto, fotografias, cartazes e todos os formatos existentes de mídia, nos arquivos de
filmes e cinematecas pelo mundo. As coleções de equipamentos são encontradas em
sua maioria, nos museus de cinema, como se essas coleções estivessem à parte de
todo o contexto da preservação audiovisual, já que os museus de cinema são
instituições outras que não os arquivos ou cinematecas.

Em seu texto Inventing Cinema: Machines, Gestures and Media History,


Turquety fala sobre a História do Cinema ser contada através da história da tecnologia
em um primeiro momento, e só depois disso, com a compreensão do cinema como
arte, a narrativa passa a ser os próprios filmes.

“Although film history was, initially and until the mid-1920s, the
history of its technics, cinema’s legitimation as na art went hand in
hand with a downplaying of these issues as questions shifted
towards the films themselves, towards movements and currents,
artists and ‘auteurs’.” (TURQUETY, 2014, p.13)

Partindo do entendimento de que o cinema é uma produção artística que


necessariamente depende de algum equipamento para ser exibido, não faz sentido
preservar apenas o produto final. Por estar em um limbo metodológico, os acervos
audiovisuais que recebem menos atenção, como os equipamentos, não só deixam de
receber tratamento adequado do ponto de vista da conservação, mas também são
ignorados na produção de conhecimento, que é necessária para legitimação e
construção de práticas relacionadas à tipologia. Os equipamentos técnicos
cinematográficos não recebem destaque nem nos arquivos de filmes, e nem nos
museus de ciência e tecnologia, grande parte das coleções é privada e nem mesmo
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catalogada. Muitas instituições entendem os equipamentos como peças de reposição


para os outros que estão em uso.

É um fato que as práticas museológicas atuais também não dão conta da


complexidade destes acervos. Se faz necessária a construção de uma metodologia
que compreenda essas peças não só como objetos de pesquisa que estão bem
acondicionados em uma reserva técnica, mas também como ferramenta para a
preservação dos próprios filmes. Segundo Giovana Fossati em seu livro From Grain
to Pixel: The Archival Life of Film in Transition, a preservação das práticas de projeção
é tão importante quanto a preservação do próprio filme.

“If preserving films as such is one of the film archives’ primary task,
preserving the practice of film projection, and its related viewing
experience, is perceived as an equally important task.” (FOSSATI,
2018, p.139)

As coleções de equipamentos técnicos cinematográficos têm um caráter


orgânico muito diferente de outros tipos de coleções de ciência e tecnologia, que
normalmente são coleções de museus tradicionais e sofreram o processo clássico de
musealização, que desloca o objeto de suas funções primárias e o transforma em
documento, objeto de pesquisa. É do interesse da preservação audiovisual que os
equipamentos estejam até onde é possível, em funcionamento, e que, além disso,
haja documentação dos processos de uso, ou manuais, para que não sejam apenas
máquinas inoperáveis. Essas coleções têm vida própria, mas também dão vida a
outras, e essa característica não pode ser ignorada.

Outra característica relevante dos acervos de equipamentos é a importância da


documentação das diferentes formas de manuseio, da performance aplicada àquelas
máquinas, já que independente de um manual, cada usuário dá o tratamento que lhe
interessa e dessa forma amplifica as potencialidades de cada equipamento que saiu
da fábrica com um manual básico, mesmo que também seja necessário coletar esses
manuais, é urgente registrar os gestuais, na medida do possível.

A urgência é pelo fato de que, infelizmente, não é mais tão fácil encontrar
operadores dessas máquinas. Segundo Turquety (2014), tudo o que sabemos vem da
descrição de quem participou, e na maioria das vezes esses participantes são
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espectadores que não conhecem todos os processos existentes naquele contexto.


Nesse sentido, ele vai chamar as máquinas de “Arquivos de Gestos”: “Machinhes, as
solid and durable by nature as performance is ephemeral, thus constitute in
themselves archives of gestures. They record the memory of uses in objects.”
(TURQUETY, 2014, p.51).

A dificuldade que se apresenta para a prática de preservação mais completa


de equipamentos técnicos cinematográficos pode ter uma saída na produção de
memória oral acerca dos objetos, ou documentação de registros audiovisuais de
técnicos operando essas máquinas.

“Performance is, precisely, the most evanescent and elusive


dimension of the film medium, the one that, by definition, leaves the
fewest traces. What we can know about it comes from the
description of participants; in most cases, these descriptions are
those of viewers and thus oriented towards what They came to see,
i.e. the screening, the films, and the attractions, not the venue or the
overall setting. There are no archives of performances as such, of
the concrete operating practices and protocols of film projection or of
shooting a film.” (TURQUETY, 2014, p.51)

A demanda por um tratamento mais complexo de coleções não fílmicas dos


acervos audiovisuais não existe só no cenário brasileiro, falta produção de
conhecimento sobre o assunto em todo o mundo e, de maneira geral, o que existe é
uma identificação do problema, ainda não é possível encontrar sugestões
metodológicas nas áreas que pensam a salvaguarda do patrimônio.

Essa transição do campo é muito valiosa pois amplia o leque de possibilidades


de criação de uma nova metodologia tanto para o tratamento quanto para a difusão
dessas coleções que passaram anos escondidas em algumas instituições. O campo
dos estudos cinematográficos passou de ser apenas tecnológico, pra ser estético,
narrativo, e hoje está novamente em transição, como diz Fossati

“It should be noted here that I do not intend do draw an exhaustive


map of the film archival field. On the contrary, beacuse I am looking
at a field in transition, focusing on the transition itself from a
perspective that is inevitably also positioned within the same
transition, my goal is primarly that of creating a snapshot, rather than
a map.” (FOSSATI, 2018, p.199)

Além das questões técnicas e metodológicas, a transição do campo também


traz a questão mercadológica da tecnologia, que é importante já que a sociedade
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capitalista tende a inutilizar tudo aquilo que não pode mais ser vendido, afinal, vivemos
a era da obsolescência programada. Parte da resistência do público leigo se dá
exatamente nesse estigma do “velho”, daquilo que não serve mais. Será que as coisas
que não são mais comercializadas deixaram de existir? Normalmente a questão da
função do objeto de um acervo não é relevante, uma vez que a peça foi musealizada
e essa agora é sua função, mas no contexto dos equipamentos de cinema é possível
que seja uma discussão válida, essas peças de museu foram escolhidas para além
dos motivos históricos e estéticos, foram escolhidas também por todas as
possibilidades de uso que ainda carregam.

Considerações Finais

As máquinas são arquivos de gestos e performances de seus operários e


devem receber atenção das instituições de salvaguarda do patrimônio audiovisual,
são uma outra forma de ler a história do cinema, e possibilitam novas escritas também.
Tanto Giovana Fossati quanto Benoit Turquety estão pensando as potencialidades
destes acervos, de forma introdutória, pavimentando o caminho para quem tiver
interesse em dar o segundo passo, que é trabalhar esses equipamentos de forma
técnica, agora que já existe campo para isso.

É necessária a transdisciplinaridade principalmente entre as áreas da


Arquivologia, Museologia e História do Cinema, sem isso não será possível alcançar
o tratamento ideal para os acervos audiovisuais de forma geral, que se encontram em
cinematecas, museus de cinema e arquivos de filmes.

Mesmo que já existam museus de cinema de grande relevância no mundo


como o francês, o italiano e o alemão, ou mesmo o que está para ser inaugurado com
o acervo da Academia do Oscar nos Estados Unidos, nós ainda não temos o
representante brasileiro que vai contar a história do cinema nacional através, também,
da tecnologia. Hoje já se tem notícia de algumas tentativas de criação de um museu
de cinema durante o começo da segunda metade do século XX, a última e mais
importante sendo o Museu Nacional de Cinema de Jurandyr Noronha, mas nenhuma
foi bem-sucedida.
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Pensar a criação de um museu de cinema hoje, deve necessariamente passar


pelas questões contemporâneas, mas sem correr o risco de se transformar em um
museu-espetáculo, armadilha fácil de cair já que atualmente é a forma mais comum
de financiamento. Existem no Brasil, coleções consistentes e de extrema relevância
que merecem estar em espaços de acesso público, para esse novo componente
narrativo da história do cinema brasileiro estar à disposição de todos os tipos de
usuários.

Um museu de cinema hoje, deve ser uma instituição híbrida, composta por
reservas técnicas que comportem as mais diversas tipologias de acervo encontradas
nessas instituições, ou seja, filmes de todos os formatos, documentos em papel e
equipamentos, de forma geral. Também é importante ressaltar que por definição,
museus são instituições sem fins lucrativos.

Se no passado, apenas uma coleção e um espaço expositivo já foram o


suficiente, hoje a compreensão é de que podemos fazer muito mais pelas peças que
nós, enquanto profissionais de memória, selecionamos para preservar. Também
podemos oferecer muito mais informação aos usuários, tanto pesquisadores quanto
visitantes. É urgente que as coleções de equipamentos parem de ser negligenciadas
e comecem a receber tratamento adequado, e o aumento da produção acadêmica
nesse sentido desenha um horizonte promissor para que isso se concretize.
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Bibliografia citada

__CORREA, JR. Fausto Douglas. Cinematecas e cineclubes: política e cinema no


projeto da Cinemateca Brasileira (1952/ 1973). Assis: UNESP, 2007

__EDMONDSON, Ray; Membros do AVAPIN. Uma Filosofia de Arquivos


Audiovisuais. Paris: UNESCO, 1998

__FOSSATI, Giovanna. From Grain to Pixel: The Archival Life of Film in Transition. 3
ed. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2018

__POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013

__TURQUETY, Benoît. Inventing Cinema: Machines, Gestures, and Media History.


Amsterdam: Amsterdam University Press, 2019

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