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NIHIL OBSTAT:
Insulis, die 18 Septembris 1910.
H. QUILLIET,
librorum censor.
IMPRIMATUR:
Cameraci, die 19 Septembris 1910.
A. MASSART,
vic. Gen.
Domus Pontificiae Antistes.
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PREFÁCIO
"Está próxima, com efeito, a hora em que a força brutal e a tirania cesariana
serão devoradas pelo socialismo que ronda as sociedades modernas. Nessa
hora, quando todos os poderes que vêm de Deus tiverem sido esmagados pela
Revolução, e que a seita, filha de Satã, quiser reinar no mundo, os povos cristãos,
forçados a defender seus altares e seus lares, poderão reagir livremente contra as
leis que se interpõem entre eles e as leis da Igreja de Deus... Então virá a
inevitável reação e a revolta contra a impiedade e a anarquia. Então a juventude
de cada região onde a Revolução tiver posto o pé, exclamará com os Macabeus:
"É melhor morrer combatendo do que ver a desolação do santuário"; e jogando ao
vento todos os cálculos humanos, ela formará em cada país uma falange de
homens pronta a defender até a morte as liberdades conquistadas pela Cruz,
pronta a se unir sob esse símbolo a seus irmãos de todas as raças e todas as
nacionalidades. Então as mulheres enviarão seus filhos e seus esposos ao
combate. Então os pais empunharão a espada para defender a fé de seus filhos
e a liberdade de seus altares".
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CAPÍTULO I
1
Platão escreveu com muito acerto que nascemos homens não somente por termos sido gerados por
homens, mas também para que possamos ser úteis uns aos outros. (N. do T.)
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Cada anjo forma por si mesmo uma espécie distinta dos outros. A espécie humana, partindo da
unidade, decompõe-se em pessoas e recompõe-se em famílias ou em nações, pelo parentesco ou pela
afinidade.
"Uma nação é um conjunto de indivíduos provindos de diferentes raças, mas unidos por liames
complexos de família, cujos ancestrais historicamente agiram uns sobre os outros, submetidos às
seleções comuns. Ela compreende os vivos, e mortos em maior número, e a posteridade até o fim dos
séculos, porque a nação, de uma maneira necessária, tende à eternidade e à universalidade, isto é, a
permanecer só e a cobrir o globo inteiro com a sua descendência.
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Deus criou Adão; depois tirou do corpo de Adão a carne da qual fez o corpo de
Eva. Então abençoou o homem e a mulher e disse-lhes: "Sede fecundos,
multiplicai-vos, povoai a terra e submetei-a".
Deus criou assim a família; fez dela uma sociedade, e constituiu-a sobre um
plano bem diverso do da igualdade social: a mulher submissa ao homem e os
filhos submissos aos pais.
Encontramos, pois, nas próprias origens do gênero humano as três grandes
leis sociais: a autoridade, a hierarquia e a união; a autoridade, que pertence aos
autores da vida; a hierarquia, que torna o homem superior à mulher e os pais
superiores aos filhos; a união, que entre si devem conservar os que são vivificados
por um mesmo sangue.
Os Estados saíram dessa sociedade primeira.
"A família, diz Cícero, é o princípio da cidade e de alguma forma a semente
da República. A família divide-se, mesmo permanecendo unida; os irmãos, seus
filhos e os filhos destes, não tendo mais lugar na casa paterna, saem para ir
fundar, como tantas colônias, novas casas. Eles formam alianças; daí as
afinidades e o crescimento das famílias. Pouco a pouco as casas se multiplicam,
tudo cresce, tudo se desenvolve e nasce a República".3
Bodin (século XVI), na sua obra Les Six Livres de la République, consagra,
no livro III, o capítulo VII à demonstração de "como a origem das corporações e
das comunidades veio da família". E Savigny, no seu Traité du Droit Roman,
também diz: "As famílias formam o germe do Estado".
"A nação que começa a se formar compreende raças diversas, em proporção diferente, repartidas de
uma certa maneira na hierarquia social. Desses indivíduos sai pouco a pouco um grupo mais
compacto. De geração em geração as descendências se conjugam, se ramificam e se conjugam ainda
ao infinito. A comunidade de sangue estabelece-se em toda a massa e não há indivíduo que não seja
um pouco parente de todos.
"Após quinze séculos, por exemplo, de existência da França, isto é, após quarenta e cinco
gerações, o número teórico dos ancestrais de cada contemporâneo é prodigioso, e o dos parentes
colaterais inconcebível. A partir da vigésima geração, isto é, a partir de 1200, o número de autores
diretos de cada indivíduo elevar-se-ia a mais de dois milhões, a metade dos quais para essa
vigésima geração. Para a quadragésima quinta chega-se a cerca de setenta milhões, cuja metade
representa os ancestrais de quadragésimo quinto grau. Esses números impossíveis provam a prodigiosa
repetição das mesmas pessoas nas diversas descendências do mesmo indivíduo, e a mais prodigiosa
quantidade de famílias nas quais ele teve antecessores. E se se leva em conta os parentescos em linha
colateral, para cada um dos ancestrais, os números tornam-se tão grandes que não somente não
significam mais nada, como também não se pode escrevê-los!
"Ora, essa composição infinita de aparentados feita pela obra de gerações, não se estendeu muito
além de certos limites no espaço. O parentesco é muito intenso entre indivíduos da mesma região,
menor fora da província, e muito fraco com os estrangeiros. As barreiras políticas, cada vez mais
altas até a fronteira da nação, impediram o estabelecimento de relações.
"A nação aparece assim como uma imensa família complexa, limitada por fronteiras. Os vivos são
solidários com os mortos e estes com o futuro. Seguramente esses laços são infinitamente tênues,
ameaçados sem cessar e rompidos pelo trabalho da reversão, mas são tão entrecruzados que a trama
permanece forte, no espaço e no tempo" (Vacher de Lapouge, L'Aryen, son Rôle Social. Paris, 1899,
in-8, p. 366-367).
3
A República , Livro I, 7.
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Fustel de Coulanges, no seu célebre livro La Cité Antique, demonstrou como
em Hellas, assim como na Itália dos romanos, o Estado nasceu da casa
4
doméstica. A fratria dos gregos (sociedade de irmãos), como a gens dos
romanos (sociedades de famílias saídas do mesmo tronco), não eram senão uma
família mais vasta, reunida sob um mesmo chefe que, em Roma, usava o nome
de pai, pater, em Atenas o nome de eupátrida, pai bom.
Na origem das civilizações assíria, egípcia e outras, encontra-se também
uma família ou algumas famílias que, inicialmente, se desenvolvem elas mesmas e
que vêem em seguida outras famílias virem se agrupar ao seu redor para formar a
tribo, depois, aglomerando-se, as tribos formarem as nações.
A fratria entre os gregos, a gens entre os romanos, não eram, como as
palavras aliás dão a entender, uma associação de famílias; era a própria família,
que reunia num feixe todas as famílias brotadas do seu tronco, que tinha
alcançado, através de sucessivas gerações, pela força das tradições, um
desenvolvimento que dela fazia um grupo social já numeroso. O que não impedia
que certo número de famílias estrangeiras viesse colocar-se sob a proteção
dessas famílias principais, tornar-se clientes destas e entrar na fratria ou na gens
por acessão. "Por aí se vê, diz Fustel de Coulanges, que a família dos tempos mais
antigos, com o seu ramo primogênito e seus ramos mais novos, seus servidores
e seus clientes, podia formar com o tempo uma sociedade muito grande". Ela era
mantida na unidade pela autoridade do chefe hereditário do ramo primogênito.
Nos primeiros tempos da civilização helênica, algumas famílias importantes
dividem o país e o governo. Seus chefes usam o nome de reis. Esses reis são
agricultores. Ulisses, rei de Itaque, vangloria-se de ser hábil em ceifar a erva, em
traçar um sulco nos campos. Suas filhas vão quarar a roupa à beira do mar
Jônico. As ligações mais íntimas ligam esses chefes aos que os rodeiam.
É de um número indefinido de sociedades dessa natureza que a raça ariana
parece ter sido composta durante uma longa seqüência de séculos.
Vemos os grupos sociais se constituírem da mesma maneira nas origens de
nosso mundo moderno.
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A família, expandindo-se, formou entre nós a mesnada assim como ela tinha
formado a fratria entre os gregos e a gens entre os romanos. Os parentes
agrupados em torno de seu chefe, diz Flach6 formam o núcleo de uma
corporação ampliada, a mesnada. Os textos da Idade Média, crônicas e canções
de gesta, mostram-nos a mesnada acrescida do patronato e da clientela, como
correspondendo exatamente à gens dos romanos". Em seguida, Flach mostra
como a mesnada, desenvolvendo-se por seu turno, produziu o feudo, família mais
ampliada, cujo suserano ainda é o pai; tanto que, para designar o conjunto de
pessoas reunidas sob a suserania de um chefe feudal, encontra-se
freqüentemente nos textos dos séculos XII e XIII, época em que o regime feudal
teve seu pleno desabrochamento, a palavra "família". "O barão, diz Flach, é antes
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Nome dado em Roma a um grupo de várias famílias descendentes de um mesmo ancestral. A gens
romana assemelhava-se ao clã primitivo. Seus membros usavam o nome gentilício, que era o indício
dos seus direitos políticos. Os chefes das gentes, na época primitiva, eram os patres ("pais"),
membros natos do senado. As gentes cresceram, passaram a compreender milhares de pessoas e,
em conseqüência dessa evolução, dissociaram-se a partir do fim da época real, permanecendo o
gentilício como único indício do antigo parentesco. As velhas gentes romanas formavam o
patriciado, distinguindo-se das gentes plebéias, que também chegaram a exercer importantes funções
públicas. (Grande Enciclopédia Delta Larousse, ed. 1978, vol. 7, p. 3038, verbete "gens" — N. do T.).
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Mesnie, Magnie: casa, família, como ainda hoje se diz "a casa de França".
6
Les Origines de l'Ancienne France.
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de tudo um chefe de família". E o historiador cita textos nos quais o pai é
expressamente considerado como semelhante ao barão, o filho ao vassalo.
"Um maior desenvolvimento da família dá origem ao barão de categoria mais
elevada". Do pequeno feudo brota o grande feudo. A aglomeração dos grandes
feudos formará os reinos.
Foi assim que se formou nossa França. Tanto a língua como a História o
atestam.
O conjunto de pessoas colocadas sob a autoridade do pai de família é
chamado: família. A partir do século X, o conjunto de pessoas reunidas sob a
autoridade do senhor, chefe da mesnada, é chamado: família. O conjunto de
pessoas reunidas sob a autoridade do barão, chefe do feudo, é chamado: família.
E veremos que o conjunto das famílias francesas foi governado como uma família.
O território sobre o qual se exerciam essas diversas autoridades, quer se tratasse
de um chefe de família, do chefe da mesnada, do barão feudal ou do rei, chama-
se, uniformemente, nos documentos: pátria, o domínio do pai. "A pátria, diz Franz
Funck-Brentano, foi na origem o território da família, a terra do pai. A palavra
estendeu-se ao senhorio e ao reino inteiro, sendo o rei o pai do povo. O conjunto
dos territórios sobre os quais se exercia a autoridade do rei chamava-se, pois,
"Pátria".
"Uma senhoria, escreve Seignobes, é um Estado em miniatura, com seu
exército, seus costumes, seu ban, que é a lei do senhor, seu tribunal. A França foi,
mais do que qualquer outro país, sobretudo no século X, dividida em soberanias
desse gênero. Não foi feito o cálculo: ele alcançaria certamente uma dezena de
milhar".
Entre nós, em meio às ruínas acumuladas pelas invasões dos bárbaros, não
havia mais ordem, porque não havia mais autoridade. Sob a ação dos santos,
famílias elevaram-se, animadas pelos sentimentos que o cristianismo começava a
espalhar pelo mundo: sentimentos de abnegação pelos pequenos e pelos fracos,
sentimentos de concórdia e de amor entre todos, sentimentos de reconhecimento e
de fidelidade entre os protegidos. A hagiografia dessa época permite-nos assistir
por toda a parte a esse espetáculo de famílias que se projetam assim sobre outras
pela força de suas virtudes.
Acima de todas surge, no século X, a família de Hugo Capeto, que construiu
a França pela paciência do seu gênio, pela perseverança de seu devotamento, pela
continuidade de seus serviços. É necessário acrescentar: "E pela vontade e pela
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graça de Deus". Tão logo o conde de Maistre assinalou esta expressão da
Escritura: "Sou Eu que faço os reis", não deixou de acrescentar: "Isto não é uma
metáfora, mas uma lei do mundo político. Deus faz os reis ao pé da letra. Ele
prepara as raças reais; Ele as amadurece no meio de uma nuvem que esconde sua
origem. Elas aparecem assim coroadas de glória e de honra".
E Blanc de Saint-Bonnet: "Quando Aquele que sonda os corações e as
entranhas escolhe uma família entre todas as outras, Sua escolha é real e divina.
Essa família logo comprova a escolha (ainda que lhe reste a liberdade para
recolher ou dissipar seus dons), fornecendo mais legisladores, guerreiros e santos
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As monarquias cristãs da Europa, diz Dom Besse, são todas obra de uma família. A França deve sua
existência política à família de Hugo Capeto. Hugo e seus ancestrais haviam fornecido múltiplas
provas de seu valor e de sua capacidade. Eles mereciam confiança. Sob sua proteção, as famílias
gozavam da paz necessária à sua conservação e ao seu desenvolvimento. Foi concluído um pacto
entre a casa dos Capetos e as casas que tinham autoridade sobre terras e famílias. Desse pacto resultou
o núcleo primitivo, que, com acréscimos regulares, devia atingir os limites do grande reino de França.
Note-se bem: o pacto real não ligava a França a seus simples soberanos. A França estava unida à
família de Hugo Capeto, à dinastia capetíngea; e, como garantia de união, ela deu a essa augusta
dinastia o direito de usar seu nome; ela é para sempre a Casa de França.
O desenvolvimento extraordinário que sofreu o governo da França, sobretudo a partir do século
XVI, e a organização da vida de Corte diminuíram a ação direta da família real sobre a França. No
entanto, ela permaneceu considerável; mesmo sob Luís XIV e sob Luís XVI, a França tinha uma
família à sua frente. Isto é tão verdadeiro que Napoleão não hesitou um instante em entrar nessa
via. Ele carregou na sua ascensão todos os Bonapartes. Na Áustria, na Alemanha, na Bélgica, na
Inglaterra, ainda em outros lugares, uma família preside os destinos da nação. Essa família é amada e
respeitada como a primeira do país. Ela personifica suas tradições e suas glórias. Sua prosperidade
e a do país são uma só. Ela carrega em si as esperanças do futuro. Todos sabem disso e vivem em paz.
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do que as famílias mais nobres, se bem que, neste aspecto, estas últimas já levem
vantagem sobre as outras numa proporção prodigiosa".8
A obra que ela realiza atesta que a mão que a escolheu a sustenta e a guia.
"Partindo do nada, disse Taine, o Rei de França constrói um Estado
compacto que (no momento em que estoura a Revolução) abriga vinte e seis
milhões de habitantes e QUE É ENTÃO O MAIS PODEROSO DA EUROPA. Em
todo esse tempo ele foi o chefe da defesa pública, o libertador do país contra os
estrangeiros.
"Internamente, desde o século XII, com o elmo na cabeça e sempre pelos
caminhos, ele é o grande justiceiro, demole as torres dos malfeitores feudais,
reprime os excessos dos fortes, protege os oprimidos, abole as guerras
particulares, estabelece a ordem e a paz: obra imensa que, de Luís, o Gordo, a
São Luís; de Filipe, o Belo, a Carlos VII e Luís XI; de Henrique IV a Luís XIII e a
Luís XIV, continua sem interrupção.
"Durante esse tempo, todas as coisas úteis executadas por ordem sua ou
desenvolvidas sob seu patrocínio, estradas, portos, canais, asilos, universidades,
academias, estabelecimentos de piedade, de refúgio, de educação, de ciência, de
indústria e de comércio, levam sua marca e o proclamam benfeitor público".9
Mignet, apesar da singular indulgência que mostra na sua Histoire de la
Révolution para com os homens que derrubaram a realeza, faz, de sua parte, esta
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observação:
"A França foi obra da dinastia capetíngea, que trabalhou, durante sete
séculos, pelo estabelecimento desta preciosa unidade de território, de espírito, de
língua, de governo. Foi do próprio centro do país que a dinastia capetíngea partiu
para essa conquista de reunião. Paris, às margens do Sena, e Orleans, às
margens do Loire, foram seus pontos de partida; o Oceano, os Pirineus, o
Mediterrâneo, os Alpes, o Reno, seus pontos de chegada... Mas, sempre
marchando em direção a seu objetivo, a unidade de território e a unidade de
poder, a dinastia mostrou uma hábil moderação. Ela incorporou as províncias sem
as destruir, deixando-lhes os costumes civis sobre os quais repousavam suas
existências e uma parte dos privilégios de que gozavam".11
8
No que diz respeito à santidade, basta, para convencermo-nos disto, percorrer qualquer Vida dos
Santos. Limitando-nos ao breviário, percebemos — a observação é de Blanc de Saint-Bonnet — que
as famílias nobres, reunidas, produziram mais de trinta e sete por cento dos santos, e apenas as
famílias reais seis, isto é, mais de vinte por cento! Mesmo no século XVIII, em que a nobreza estava
tão decaída, as filhas de nossos reis eram santas e seus netos heróis.
Admitindo-se uma família nobre em cem famílias e uma família real ou principesca em duzentas
mil, teríamos esta proporção: o mesmo número de famílias produziu, na nobreza, cinqüenta vezes
mais santos do que no povo, e, nas casas reais, quatrocentas vezes mais do que na nobreza, ou vinte
mil vezes mais do que no povo.
O que são, diante desses fatos, as declamações da democracia, mesmo cristã, sobre as virtudes do
povo e os vícios dos grandes! Os néscios buscam argumento contra a instituição monárquica nas
desordens de Luís XV. Eles não pensam nas seduções das quais não cessou de estar cercado, e diante
das quais eles não teriam feito, eles, sem dúvida, melhor figura. Eles também não pensam na
inacreditável força de virtude que foi necessária a uma família, mergulhada durante oito séculos no
banho dissolvente das maiores prosperidades, para não cair no egoísmo, e para produzir ainda, no
fim desse período, a santidade.
9
Taine, L'Ancien Régime , p. 14 e 15.
10
Essai sur la Formation Territoriale et Politique de la France.
11
A propósito do nascimento de Filipe Augusto em 21 de abril de 1165, Luchaire notou com muita
precisão a que ponto o sentimento de unidade moral se traduzia desde aquela época na pessoa do rei.
Um estudante parisiense, Pierre Riga, contou a cena; ele mostrou a Casa do rei, no lugar do atual
Palácio da Justiça, rodeada de palacianos e de burgueses que aguardam febrilmente o parto da rainha.
13
Quando se se refere à época do desmembramento do império de Carlos
Magno, vê-se sair do tratado de Verdum três Estados de importância mais ou
menos igual, formados cada um por elementos díspares, que se tornaram, com
o tempo, a França, a Alemanha e a Itália. Destes três Estados, somente um
chegou muito rapidamente à constituição de sua unidade; foi a França. No começo
do século XIII, a França, com Filipe Augusto, está na posse de sua unidade
nacional, existe como corpo de nação uno e homogêneo. Desde o fim do século
XIII, um século e meio antes de Joana d'Arc, Filipe, o Belo, deu uma bela definição
da idéia de pátria. As armas francesas acabavam de experimentar, no dia 11 de
julho de 1302, o terrível desastre de Courtrai. No dia 29 de agosto, de Paris,
dirigindo-se ao clero da França, Filipe, o Belo, pinta-lhe a situação do país,
pedindo-lhe que contribua com subsídios para a defesa da pátria: "Refleti bem, diz
o rei aos prelados de seu reino, que se trata das vossas conveniências, de cada
um dentre vós, nas quais cada um de vós tem interesse; assim, aplicando toda a
vossa afeição, todos os vossos esforços na defesa desta pátria que vos viu nascer
— desta pátria pela qual a tradição venerada dos ancestrais nos ensinou que era
preciso combater, preferindo o amor a ela ao amor de nossos próprios filhos —
nós vos pedimos que venhais em auxílio com os mais fortes subsídios de que
possais dispor..."
Izoulet, professor no Colégio de França, expôs esta concepção do amor da
pátria: "O amor da pátria não é um sentimento simples e superficial, fácil de
improvisar. Não é um cogumelo que cresce em uma noite. É uma planta de raízes
profundas e lentas. O amor da pátria é uma complexa resultante de obscuros
componentes. A pátria mergulha sua tríplice raiz nas secretas profundezas dos
hábitos terrenos, das piedades domésticas e das emoções religiosas. Deus, o
solo e o lar são o tríplice ingrediente desse ditame.
"Que se pode, pois, esperar do patriotismo de um povo em que muitas
pessoas não pensam senão em abandonar a terra, em quebrar o lar, em renegar a
Deus? Quando a tríplice raiz seca, como poderia a planta deixar de definhar e de
morrer?"
De onde vem essa diferença? Do fato de que na França foi melhor seguida a
lei da natureza. Foi a família capetíngea, foi a fixidez da dinastia real, fundada
É um filho! A rainha chora de alegria: a notícia voa de boca em boca; ela corre de uma extremidade
a outra da França com uma rapidez surpreendente, "porque, se bem que o quarto real estivesse
fechado, diz Riga, pessoas impacientes acharam um meio de olhar por uma fresta e de ver o menino".
Paris desperta na alegria; as ruas e as praças se iluminam. Trompetes soam nas esquinas dos
cruzamentos; os sinos repicam à toda força nas altas torres das igrejas. Um estudante inglês, o
futuro historiador Giraud de Barri, dormia profundamente quando foi acordado pelos ruídos e pelas
luzes da rua.
"Pulo de minha cama, escreve ele, corro à janela e vejo duas pobres velhas que, carregando cada
qual uma tocha acesa, gesticulavam e corriam como loucas. Pergunto-lhes o que há com elas:
"— Nós temos um rei que Deus nos deu, responde uma delas; um soberbo herdeiro real, pela mão
do qual vosso rei, o vosso, receberá um dia opróbrio e infelicidade!..."
Luchaire acrescenta: "As populações mais afastadas de Paris já tinham o sentimento — por vago
que fosse — da unidade moral do país francês; elas sentiam que faziam parte de um corpo cuja
cabeça era o rei de França. A correspondência de Luís VII está repleta de testemunhos dessa
solidariedade mais forte do que o liame feudal".
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sobre a lei sálica, que formou e manteve a unidade nacional. Foi graças a esse
princípio de hereditariedade, que em nenhuma outra parte se exerceu com tanta
continuidade e regularidade, que a realeza francesa pôde adquirir, no curso dos
séculos, as condições de força e de duração necessárias à realização da grande
obra nacional.12
12
O fato reveste-se de um caráter providencial, que os verdadeiros historiadores não deixaram de
notar. Foi Deus, com efeito, nos Seus desígnios sobre a França, que permitiu que, nessa grande
linhagem capetíngea, na qual não se conta, durante mais de três séculos, um só príncipe adulterino,
não faltasse jamais o herdeiro direto do trono, de sorte que se viu, sem interrupção, desde Hugo
Capeto até Filipe, o Longo, o filho primogênito do rei defunto suceder regularmente seu pai.
Quando foi preciso, pela primeira vez, à falta de um herdeiro direto, impedir o acesso das mulheres
ao trono, que teriam podido, casando-se, levar a coroa da França para uma família estrangeira e
comprometer a unidade nacional, teve-se apenas que verificar a tradição e transformar o fato
providencial em lei positiva.
Uma vez bem estabelecido o modo de sucessão, o princípio de hereditariedade funciona por si
mesmo, provendo sempre o trono de um titular e mantendo na dinastia a grande tradição monárquica.
Como observou muito bem o abade de Pascal, um dos principais objetivos da missão de Joana
d'Arc foi consagrar, da parte do céu, em Carlos VII, esse princípio salvador da hereditariedade real:
"Gentil príncipe, eu te digo da parte do Senhor que és o verdadeiro herdeiro de França. Eu te digo
que Deus tem piedade de vós, de vosso reino e de vosso povo". (A última frase, no original francês:
"Je te dis que Dieu a pitié de vous, de votre royaume et de votre peuple").
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CAPÍTULO II
1
Essa sociedade, cuidadosa e santamente respeitada, mistura os homens aos homens, e indica ser algo
comum a lei do gênero humano. (N. do T.).
16
sua vida, é torná-la impotente para cumprir seu papel na constituição do ser social,
como sucederia com o ser vivo a dissociação dos elementos da célula vegetal ou
animal.
Isto era tão bem compreendido em Roma, que o Estado romano primitivo
reconhecia apenas as gentes e que para se ter uma situação legal era preciso ser
membro de uma dessas corporações. "O filho de família emancipado, diz Flach, o
escravo liberto, os estrangeiros vindos a Roma em busca de asilo, deviam
submeter-se a um chefe de família".
Do mesmo modo na França, na alta Idade Média: "Nenhum lugar para o
homem isolado, diz o mesmo autor; se uma família vem a decair ou a dissolver-se,
os elementos que a compõem deverão agregar-se a uma outra. Não encontrar
semelhante asilo equivale à morte". Em todos os lugares a família é, nas boas
épocas da história dos povos, aquilo que, entre nós, a democracia, para nossa
infelicidade, fez o indivíduo ser: a unidade social.
Tanto no corpo social quanto no corpo vivo, para retomar a comparação de
Buisson, as células elementares não estão na mesma categoria, ainda que
igualmente provindas de uma célula primitiva. Há células primeiras, elementares,
que dão origem às células do sangue e às células dos tecidos. Assim também na
sociedade; as famílias, posto que oriundas de um mesmo ponto, são de condição
diversa e estão repartidas em três classes: o povo, a burguesia e a nobreza. Para
maior semelhança, a burguesia realiza, na sociedade, o papel do sangue no corpo
humano: ela sai do povo e alimenta a nobreza. Contrariamente ao que quer a
democracia, em toda a parte em que o progresso moral, intelectual, material
germina e se desenvolve, as desigualdades aparecem, acentuam-se, fixam-se nas
famílias e pouco a pouco constituem uma hierarquia, não de funcionários, mas de
casas.
2
Opuscules I , p. 292.
17
Leão XIII diz a mesma coisa: "A família é o berço da sociedade civil e é em
grande parte no recinto do lar doméstico que se prepara o destino dos Estados.3
Alhures: "A sociedade doméstica contém e fortifica os princípios e, por assim dizer,
os melhores elementos da vida social: assim é que dela depende em grande parte
a condição tranqüila e próspera das nações".4 É, pois, com razão que Bonald diz:
"Quando as leis da sociedade dos homens são esquecidas pela sociedade política,
elas podem ser reencontradas na sociedade doméstica".
Na nossa França, a sociedade conservou o modelo familiar até a Revolução.
No século XVIII, em 14 de fevereiro de 1774, o Parlamento de Provence podia
ainda escrever ao rei: "Entre nós cada comuna é uma família que governa a si
mesma, que se impõe suas leis, que vela por seus interesses. O oficial municipal
é o pai da comuna".
3
Encíclica Sapientiae Christianae.
4
Encíclica Quod Multum.
5
O senescal era o escudeiro que, na guerra, seguia seu mestre nas expedições, velando pela instalação
da tenda real. Na ausência do rei, ele comandava o exército. Essas funções derivam hereditariamente
das Casas de Rochefort e de Giuerlande; Luís VI diminuiu-lhes o alcance, Filipe-Augusto suprimiu-
as.
Quando Filipe-Augusto fez desaparecer o ofício de senescal, o condestável tornou-se o chefe do
exército, e o rei acrescentou-lhe dois marechais. O ofício foi suprimido por Richelieu.
O despenseiro velava pelo cozimento do pão. O ofício teve como titulares os maiores nomes da
França, entre outros o de Montmorency.
O copeiro tinha a administração dos vinhedos reais, e deles gerava os rendimentos. Ele teve a
intendência do tesouro real e a presidência da Câmara dos Condes. A partir do século XII essas
funções tornaram-se hereditárias na Casa de la Tour. Foram suprimidas por Carlos VII.
O camareiro dirigia o serviço dos quartos privados. Ele tornou-se o tesoureiro do reino, e nessa
qualidade estava colocado, como dissemos, sob as ordens da rainha. O encargo foi suprimido em
1445.
A origem do grande chanceler é religiosa e ao mesmo tempo doméstica. Os reis merovíngios
conservavam entre suas relíquias a pequena capa (chape) de São Martinho. Daí o nome de capela
(chapelle) dado aos lugares onde eram guardadas as relíquias dos reis. Os arquivos eram conservados
junto às relíquias. O chefe dos capelães foi o grande chanceler, que carregava constantemente no
pescoço o grande sinete real.
18
Viollet, na sua Histoire des Constitutions de la France, definiu assim o caráter
de nossa antiga monarquia: "A autoridade do rei era semelhante à do pai de
família; assim, o poder patriarcal e o poder real são por suas origens parentes
muito próximos". E mais adiante, voltando à mesma idéia, diz ainda: "É manifesto
que o rei desempenha o papel de um chefe de família patriarcal".
Como o pai de família, o rei era a fonte de toda a justiça no reino. Summum
justitiae caput foi assim que Fulbert de Chartres definiu o rei no século XI. Cada
grupo natural, local ou profissional tinha organização e autoridade próprias: a
família tem seu chefe, a oficina seu mestre, a comuna seus magistrados, as
corporações seus síndicos, a Igreja seus bispos. A idéia de uma regra comum
estabelecida por um poder qualquer para o conjunto dos habitantes teria então
parecido uma monstruosidade. Cada grupo administra a si mesmo. Mas entre
essas liberdades e franquias locais, entre esses pequenos estados múltiplos e
independentes é preciso manter a harmonia, a paz, assegurar o respeito aos bons
costumes. É o papel mais importante do rei: ele é o justiceiro pacificador, o
apaziguador de discórdias, o guardião das liberdades e da paz pública, a qual veio
a ser chamada de paz do rei. Na origem esse papel foi exercido a fortes golpes de
espada. Harnulf chama Luís, o Gordo, de batalhador infatigável: "Luís, agora o
pacífico, com o cetro à mão, dá a cada um o seu direito". Mas logo o rei distribuiu
a justiça de maneira diferente. O rei escutava os queixosos como um senhor a
seus vassalos, como um pai aos seus filhos. Ele tratava seus súditos com inteira
familiaridade. "Todos os dias, diz Joinville, falando de São Luís, ele dava de comer
com abundância aos pobres, no seu quarto, e freqüentes vezes vi que ele próprio
cortava-lhes o pão e dava-lhes de beber". Seria um erro crer que esses traços
tenham sido particulares à magnífica bondade de São Luís; Roberto, o Piedoso,
entre outros, agia do mesmo modo. Foi uma tradição, entre nossos antigos reis,
mostrarem-se acolhedores e benfeitores, sobretudo em relação aos pequenos e
aos humildes".6
No século XIII o rei passeava a pé pelas ruas de Paris, e cada qual se
acercava dele e lhe falava sem cerimônia.
6
Eis o que Francisco I, no início de seu reinado, escrevia no cabeçalho da ordenação de 23 de
setembro de 1523:
"Como prouve a Deus chamar-nos, na flor de nossa idade, como um dos seus principais mestres do
governo desse belo, nobre e digno reino de França, divina e miraculosamente instituído para a direção
e proteção de todas as suas classes: Especialmente para a conservação, elevação e defesa da classe
comum e popular, que é a mais fraca, e por isso a mais fácil de oprimir, e naturalmente tem maior
necessidade do que todas as outras de boa guarda e defesa, e singularmente o pobre comum homem da
França, que sempre tem sido doce, simples e gracioso em todas as coisas, e obsequioso para com o
seu príncipe, e senhor natural, que ele sempre tem reconhecido, tendo-o servido e obedecido sem
mudar, nem variar, preferindo sofrer a receber a dominação de outro príncipe. De tal maneira que
entre os reis da França e seus súditos tem havido sempre a maior aglutinação, liame e conjunção de
verdadeiro amor, natural devoção, cordial concórdia e íntima afeição do que em qualquer outra
monarquia ou nação cristã.
Os quais amor, devoção e concórdia bem conservados entre o rei e seus súditos sob o temor e o
amor de Deus (que sempre tem sido servido devotadamente na França) tornaram o reino florescente,
triunfante, temido e estimado por toda a terra... Ora, o verdadeiro meio pelo qual os reis podem e
devem perpetuar e aumentar esse amor consiste na justiça e na paz: na justiça, fazendo-a distribuir e
administrar pura, boa, igual e concisa, sem nenhuma acepção de pessoa e sem suspeita de avareza a
nossos súditos; em paz fora e dentro do reino: sobretudo na paz intrínseca fazendo viver o homem de
bem sob a ajuda e proteção de seu rei, em boa e amorosa paz comer seu pão e viver na sua
propriedade em repouso , sem ser humilhado nem atormentado sem propósito, que é a maior
felicidade, contentamento e tesouro que um rei pode conquistar para seu povo..."
19
O florentino Francesco da Barberino registra sua surpresa de ver Filipe, o
Belo — cujo poder se fazia sentir até no fundo da Itália — passear assim em Paris
e cumprimentar com simplicidade as pessoas que passavam. É desnecessário
contrapor essa bonomia à arrogância dos senhores florentinos.
Segundo o testemunho do cronista Chastellan, Carlos VII "despendia dias e
horas a cuidar de homens de todas as condições, e assistia pessoa por pessoa,
cada qual distintamente".
Os embaixadores venezianos do século XVI atestam, em suas célebres
correspondências, que "ninguém é excluído da presença do rei e que as pessoas
da classe mais vil penetram ousadamente e à vontade no quarto íntimo". O rei
comia diante de seus súditos, em família. Cada qual podia entrar na sala durante
as refeições.
"Se há um característico singular nesta monarquia, escreve o próprio Luís XIV,
é o acesso livre e fácil dos súditos ao príncipe".
E de fato, apesar da multiplicação dos meios de transporte e do prodigioso
crescimento de uma cidade como Paris nas proximidades da residência real,
vemos o grande rei receber cada semana todos os pedintes que se apresentam,
por pobres e mal vestidos que sejam.
"Eu ia ao Louvre, escreve Locatelle em 1665, e aí passeava com toda a
liberdade, e, passando pelos diversos corpos da guarda, chegava a esta porta que
é aberta logo que nela se toca, e o mais freqüentemente pelo próprio rei. Basta
tocar levemente e em seguida se vos introduz. O rei quer que os súditos entrem
livremente".
Os acontecimentos que concerniam diretamente ao rei e à rainha eram para a
França inteira acontecimentos de família. A casa do rei era, no sentido próprio, "a
casa de França".
As Lettres d'un Voyageur Anglais sur la France, la Suisse et l'Allemagne
oferecem os mesmos testemunhos referidos acima. Eis algumas linhas da citação
que dela faz J. de Maistre em um de seus opúsculos:
"O amor e o apego dos franceses pela pessoa de seus reis é uma parte
essencial e tocante do caráter nacional... A palavra rei excita, no espírito dos
franceses, idéias de beneficência, de reconhecimento e de amor, simultaneamente
com aquelas de poder, de grandeza e de felicidade... Os franceses acorrem em
multidão a Versalhes, nos domingos e dias de festa, olhando o rei com uma avidez
sempre nova, e o vêem pela vigésima vez com tanto prazer quanto da primeira.
Eles o encaram como seu amigo, como seu protetor, como seu benfeitor".
"Antes da Revolução, diz também o general de Marmont, tinha-se pela pessoa
do rei um sentimento difícil de definir, um sentimento de devoção com um caráter
quase religioso. A palavra "rei" tinha então uma magia e um poder que nada
havia alterado. Esse amor redundava numa espécie de culto".
"Lembrai-vos de amar com ternura a pessoa sagrada de nosso rei, dizia em
7
1681 a seus filhos no seu livro de razão, um modesto habitante de Puy-Michel
(Baixos Alpes), de ser-lhe obedientes, submissos e cheios de respeito às suas
ordens". Recomendações semelhantes encontram-se em outros livros de razão,
publicados por Charles de Ribbes; e as divisas das famílias senhoriais exprimem
freqüentemente os mesmos sentimentos.
Tais sentimentos jamais se manifestaram de maneira tão ruidosa como por
ocasião do nascimento de Luís XVI.
7
O livro de razão, como era chamado na França o livro de família, era uma espécie de diário familiar,
mantido e atualizado pelas sucessivas gerações. O autor trata da matéria em detalhes no capítulo IX,
pp. 75 e 76. (N. do T.).
20
"Os gritos de Viva o Rei!, que começaram às seis horas da manhã, não foram
interrompidos até o pôr-do-sol. Quando nasceu o Delfim, a alegria da França foi a
de uma família. As pessoas paravam nas ruas, falando umas com as outras, sem
se conhecerem, e os conhecidos se abraçavam".8
8
Campan, I, p. 89; III, p. 215.
9
Os "cahiers de doléance", literalmente "cadernos de queixas", constituíram um dos elementos
utilizados pela Revolução, em 1789, com a finalidade de depreciar a monarquia. Nesses cadernos, os
franceses deveriam anotar as queixas que tinham contra seus governantes. O resultado foi o inverso do
esperado, tantas as manifestações de amor pela Casa Real, não obstante todas as falsificações
produzidas pelos agentes da Revolução. (N. do T.).
21
"A nação, diz Augustin Thierry, não havia sofrido por causa desse regime
(monárquico); ela mesma o quis resolutamente e com perseverança. Ele não
estava fundado nem na força nem na fraude, mas, ao contrário, era aceito pela
consciência de todos".10 Assim, não se pode dizer que a nação quis libertar-se da
monarquia. A multidão de abstenções nas eleições durante todo o período
revolucionário, no qual de cem mil inscritos somente dez mil votavam, mostra bem
que a parte da nação desejosa da substituição do regime monárquico pelo regime
republicano foi insignificante. Sabe-se, ademais, que a maioria da Convenção não
se comprometeu com o voto que condenava Luís XVI à morte. Um dos votantes
não tinha vinte e cinco anos, um outro não era francês, cinco outros não eram
válidos ou inscritos, enfim, sete deputados votaram duas vezes, como deputados e
como suplentes de seus colegas. Ao invés de um voto de maioria, o veredicto tinha
11
uma minoria de treze votos.
Na Réforme Sociale de 1° de novembro de 1904, Funck-Brentano, falando da
função da realeza francesa, disse: "Saído do pai de família, o rei tinha permanecido
na alma popular, vagamente e sem que ela se desse conta disso, como o pai junto
ao qual vinham buscar proteção e abrigo. Em sua direção, através dos séculos,
tinham instintivamente dirigido os olhares em caso de aflição ou de necessidade. E
eis que, bruscamente, essa grande autoridade paternal é derrubada. E corre no
meio do povo da França um mal-estar, um pavor, vago, irrefletido. Ó, os rumores
sinistros! Eis os bandidos! e o pai não está mais presente! O "grande medo" é a
última página da história da realeza na França. Não há nada de mais tocante, de
mais glorioso para ela, não há nada onde apareça melhor o caráter das relações
que, tradicionalmente, instintivamente, tinham-se estabelecido entre o rei e a
nação...12
10
Augustin Thierry, Essai sur la Formation du Tiers-Etat, p. 89.
11
Depois dessa data fatal de 21 de janeiro de 1793, não houve nenhum fracasso nacional que não
tenha sancionado alguma ruína, se não definitiva, pelo menos muito durável, pois o dano dessa data
subsistiu até nossos dias. E não houve nenhum sucesso, nenhuma glória, nenhuma conquista, nenhuma
alegria nacional que não tenha tido os mais dolorosos dias seguintes. A seqüência de nossos reis
representa a mais admirável continuidade de um crescimento histórico, e o assassinato de um deles dá
o sinal dos movimentos inversos, os quais, apesar da multidão das compensações provisórias, tomam,
no seu conjunto, a forma de uma regressão. Para o progresso social, assim como para os costumes,
para a ordem política, assim como para a extensão territorial ou o número de habitantes relativamente
a outras nações da Europa, a França caiu abaixo do que era em 1793. Primeiro fato! Segundo fato:
com recursos admiráveis e incomparáveis meios, a França tende a perseverar nessa queda, em razão
dos mesmos princípios que a determinaram, faz cento e dezesseis anos, ao regicídio. É, pois,
verdadeiro, que cortando a cabeça de seu Rei, a França cometeu suicídio.
12
Os mesmos sentimentos manifestaram-se na Restauração. Madame de Marigny, irmã de
Chateaubriand, estava em Paris em 1814, no momento da entrada dos Aliados. Ela anotava, dia a dia,
em finos cadernos, as notícias e os boatos da cidade . Assim que um caderno era completado, ela o
enviava a seus pais, na Bretanha. Esses cadernos acabam de ser publicados por M. J. Ladreit de
Lacharrière. Eis o relato que ela faz da entrada do conde d'Artois:
Terça-feira, 12 de abril — Levantei-me muito doente, mas decidida a fazer o impossível para ver o
Príncipe tão querido dos franceses. Tomei café para reanimar-me e, como guia das senhoritas Verpier,
cuja mãe estava muito indisposta, pus-me a caminho, com a esperança de poder entrar em Notre-
Dame; coisa que tentei inutilmente, mesmo com dinheiro que ofereci a um pobre homem que vigiava
uma pequena porta pela qual entravam os cônegos. Não sabendo que decisão tomar, sentindo-me
incapaz de permanecer de pé na rua durante cinco ou seis horas, retornei com minhas companheiras,
muito triste. Passando diante do estabelecimento de um comerciante de vinho, perguntei-lhe se ele
tinha uma janela sobre a rua e se ele queria alugá-la; ele ficou maravilhado. O negócio foi logo
concluído.
O afluxo de pessoas e de carros que iam a Notre-Dame era tão prodigioso que nele não se podia fixar
o olhar por muito tempo; fui obrigada a retirar-me da janela várias vezes; eu estava aturdida. Entre as
22
Foi ao espírito familiar da monarquia que a França em muito boa parte deveu
sua prosperidade. E essa prosperidade foi tal que a França era, sem contestação,
a primeira nação da Europa. O grande orador inglês Fox reconhecia-o, não sem
amargor, na Câmara dos Comuns, quando exclamava, em 1787:
"De Petersburgo à Lisboa, se se excetua a Corte de Viena, a influência da
França predomina em todos os Gabinetes da Europa. O Gabinete de Versalhes
apresenta ao mundo o mais incompreensível paradoxo: é o mais estável, o mais
constante e o mais inflexível que há na Europa. Após vários séculos, ele segue
invariavelmente o mesmo sistema, e, no entanto, a nação francesa prossegue
como a mais ágil da Europa".
Dá-se que, com efeito, toda sociedade que conserva o espírito familiar, uma
vez que permanece submissa à lei natural, progride, por assim dizer,
necessariamente. "Nada na história, diz Frantz Funck-Brentano, jamais negou
essa lei geral: tanto quanto uma nação é governada segundo os princípios
constitutivos da família, tanto ela é florescente; no dia em que ela se afasta dessas
senhoras que não puderam encontrar lugar, percebi Mme. de Gois; chamei-a. Ela veio com suas
amigas ocupar uma janela que ainda estava por alugar e pagou-a. Notava-se, dentro dos carros,
belíssimos trajes, e mesmo mulheres a pé que estavam muito bem vestidas; quase todas portavam
flores de lis sobre os chapéus, ou em buquês que carregavam diante de si. Algumas tinham três flores
de lis bordadas em ouro sobre as mangas fofas.
O pavilhão branco drapejava sobre as torres de Notre-Dame, com o escudo da França. Enfim, ao
meio-dia soou o grande sino e soube-se que Monsieur estava na porta do bairro Saint-Denis. Um
numeroso destacamento da guarda nacional aguardava-o lá; a guarda atirou as armas aos pés do
príncipe, num transporte de respeito e de amor. Ele pareceu sensibilizar-se. Sua Alteza abraçou alguns
que ele reconheceu...
No meio dessa multidão de penachos brancos e de senhores de seu séquito, o conde d'Artois pôs-se a
caminho para Notre-Dame, mas a quantidade de pessoas que o interceptavam e as igrejas onde se lhe
ofereceu incenso entravaram e retardaram de tal forma sua passagem que eram duas horas e meia
quando ele chegou na rua onde eu estava, e que conduz à catedral.
À sua passagem sob o arco do triunfo da porta Saint-Denis, o grande sino soou de novo; mas à sua
aproximação da metrópole, todos os sinos repicaram; eles não podiam abafar as aclamações, a música
misturava-se-lhes. Não, jamais se poderá pintar esse entusiasmo. Poder-se-ia dizer que a alegria havia
transbordado, chorava-se, gritava-se pela sua felicidade; temia-se não ter forças de suster-se para vê-lo
passar, e eu me incluía entre estes. Mme. de Gois repreendeu-me fortemente por minha sensibilidade;
ela fez-me bem; eu resisti contra o mal-estar que experimentava, e lancei-me irrefletidamente à sacada,
tão feliz em lhe dar meu derradeiro suspiro. Deixei escapar a felicidade do meu coração, meus votos
por ele, meu enternecimento pela lembrança de seus infortúnios, ou melhor, eu lançava todos esses
sentimentos, porque estava fora de mim...
A santidade do lugar não pôde estancar os transportes das pessoas que estavam na igreja; as abóbadas
tremiam com as aclamações. Mas esse Príncipe religioso, logo que se começou a cantar o Te Deum,
voltou-se e fez sinais reclamando silêncio. Ao Domine salvum fac regem viram-se grossas lágrimas
correr de seus olhos.
Enfim, o cortejo retomou seu caminho, e, para nossa satisfação, fez ainda S.A. passar sob nossas
janelas, onde de novo estávamos com meio-corpo para fora, apaixonadas, gritando num derradeiro
esforço: "Viva Monsieur! Faça o céu que seja sempre feliz!" Nossos chapéus ornados de lis, nossa
ação, nossos lenços no ar foram fixados um momento pelos olhares do Príncipe, que nos
cumprimentou com aquela graça e aquele sorriso amável que não pertencem senão a ele.
Então, no cúmulo da alegria, não sabendo mais o que fazia, pareceu-me que eu não devia olhar para
mais ninguém, que nenhum outro objeto era mais digno de ser observado. Sentei-me para respirar, eu
sufocava, minha voz se extinguia, eu respondia apenas através de sinais.
Foi preciso pensar na volta para meu colégio. Propus às companheiras irmos a Notre-Dame e darmos
graças a Deus por nos ter conservado a família de São Luís... Entrei em casa extenuada de calor e de
fadiga, mas sobretudo sobrecarregada de felicidade e de alegria, tanto que não dormi.
23
tradições que a criaram, a ruína está próxima. O que dá fundamento às nações
serve também para mantê-las".
Edmond Burke, nas suas Réflexions sur la Révolution Française, dirigia aos
franceses de 1789 sábias palavras. Quão pouca atenção se lhes deu! "Quereis
corrigir os abusos de vosso governo; mas por que criar novidades? Por que não
vos reatais a vossas antigas tradições?"
24
25
CAPÍTULO III
Quae domus tam stabilis, quae tam firma est civitas quae non
dissidiis funditus possit everti.1
CICERO, De amicitia.
1
Quão estável seja o lar, assim é firme o Estado, de modo que as discórdias não podem destruir seus
fundamentos. (N. do T.).
2
Liv. III, cap. VII.
26
Pátria, nomes todos que lembram que essas entidades sociais tiveram seu
princípio na família. A entidade social suprema, a nação, não é verdadeiramente
viva e vigorosa senão durante o tempo em que conserva e mantém em seu seio o
fogo sagrado, como aconteceu na antiga França.
3
Tinha que ser assim, desde que a França ficou sem rei. A Review of Review (agosto de 1907, p.
120) fazia esta observação: "Todo o sistema de nosso governo de partidos tem por efeito aumentar e
avivar, de alguma maneira, aquilo que nos divide; daí a imperiosa necessidade de achar, como
corretivo e contrapeso, um órgão para exprimir e reforçar o que nos une. Eis a função que nobremente
preenche nosso monarca. Ele restaura os compromissos acerca dos quais todos os homens de bem
estão de acordo, mas dos quais se desviam facilmente as lutas de partido. A Grã-Bretanha e a Irlanda
são, pelo menos com seu rei, um reino unido".
27
mais semelhante, em suas divisões, a um navio cujas pranchas se descolam4 e se
destacam, do que a um povo de irmãos; contemplando com estupefação "a religião
expulsa da escola, a cruz arrancada dos cemitérios, os socorros espirituais
negados aos soldados e aos doentes, os religiosos expulsos e dispersos, as
finanças malbaratadas, o exército desorganizado, a magistratura reduzida à
servidão, a indústria insuficientemente protegida, a agricultura empobrecida e sem
apoio, a propaganda anarquista tolerada, os funcionários cristãos destituídos ou em
desgraça; em resumo: no interior, a França tiranizada pelo espírito de facção; no
exterior, a França impotente e rebaixada";5 na presença de tal espetáculo podemos
dizer, com a mão na consciência, que o Cabo das Tormentas transformou-se em
Cabo da Boa Esperança?
"Não, a esperança está em outro lugar! Está no retorno nacional, necessário,
ao antigo princípio que, tendo criado a França, pode, apenas ele, reconstruí-la".
"Sim, é lá que se encontra refugiada a esperança! Porque onde se encontra o
princípio gerador da unidade, lá se encontra a renovação da pátria francesa!"
"Nada, com efeito, é tão forte na história de um povo quanto o princípio
gerador que foi sua fonte; nada é tão abençoado por Deus quanto a fidelidade no
conservar esse princípio. A nação judia deu disso memorável exemplo. Todos
sabem que na sucessão ilustre de seus reis encontra-se um que, filho degenerado
de David, tomou a peito, ao que parece, merecer o título de opróbrio e de carrasco
de seu povo, tanto ele se mostrou ímpio e cruel. Foi Manassés, o Nero do povo
hebreu. Ora, aconteceu que Deus, tendo pena dos gemidos das vítimas, interveio,
por um desses golpes de justiça que reboam na história. Ele abandonou o mau rei
a Assurbanípal e a seus assírios. Estes, tendo-o atado a duas correntes, levaram-
no cativo para a Babilônia. Não era o caso de aproveitar um fato tão oportuno para
modificar o governo hebraico, ou mudar a dinastia, ao menos para substituir o rei
ímpio, tornado cativo, proclamando o filho dele? Nada disso se fez. Fiel ao
princípio gerador de sua nacionalidade, o povo hebreu não julgou ter o direito de
modificar-lhe a essência: limitou-se a estabelecer um governo provisório; e assim
que, após longos meses de um duro cativeiro, passado nas lágrimas e no
arrependimento, Manassés, libertado pela mesma mão divina que o havia
precipitado nos ferros, reapareceu em Jerusalém, seu trono o aguardava, intacto; a
fidelidade de seu povo não havia mudado!"
"Então, Deus, o Qual também não muda, teve prazer em recompensar
magnificamente tão admirável fidelidade. Fê-lo mediante dois acontecimentos
particularmente providenciais. O primeiro foi a aparição de Judite, uma das
heroínas judias. Já senhores do rei, os assírios haviam-se vangloriado de se
tornarem incontinenti senhores do reino. Foi quando Judite, suscitada por Deus,
barrou-lhes a passagem. O segundo fato, não menos providencial, foi a ascensão
de Josias ao trono de David. Neto e segundo sucessor de Manassés, Josias foi
sem contestação um dos melhores reis de Judá, uma de suas glórias mais puras,
aquele de quem a Escritura fez este belo elogio: "A memória de Josias é como um
perfume de suave odor".
"Eis o que pode em favor da unidade, e para a felicidade de um povo, a
fidelidade ao princípio gerador de sua existência!"
"Perseverança na oração. Aceitação da penitência. Retorno à unidade. Tais
são, de acordo com a Bíblia e no domínio da ordem moral, as três condições
indicadas por Deus para a cura das nações".
4
A expressão, como se sabe, é de Gambetta.
5
Esse quadro foi traçado em 20 de outubro de 1883 por G. de la Tour, no Univers . Quantos traços
poder-lhe-iam ser acrescentados em 1910, e como todos os traços primitivos poderiam ser
exasperados!
28
"Cumprindo-as, a cura da França é moralmente certa. E se a cura se opera,
ver-se-á reaparecerem, com o retorno às crenças religiosas, o respeito por todos
os direitos, o desabrochar da honra, a prática de uma verdadeira liberdade, a nobre
ambição da glória, a proteção dos fracos, a segurança do comércio, o entusiasmo
da prosperidade, a busca de nossa união, numa palavra, tudo o que contribuiu para
fazer da França, durante séculos, desejados neste momento, o mais belo reino
6
depois do reino do céu".
Para que a coesão exista no corpo social e lhe dê vida e prosperidade, não
basta que o amor ligue o soberano aos súditos e os súditos ao soberano; ele deve
unir os súditos entre eles pela dedicação das classes superiores às classes
inferiores e pelo serviço das inferiores às superiores.
A antiguidade não ignorou completamente esse dever, ou pelo menos
concordou que era necessário. Cícero diz que Rômulo deu aos senadores o nome
de "pais" para marcar a afeição paternal que eles tinham pelo povo.
Conhecemos a posição que ocupou na organização de Roma a clientela.
Essa instituição estabelecia relações determinadas e constantes entre um certo
número de pessoas do povo e uma gens dos patrícios. O chefe dessa gens , nas
relações com seus clientes, usava o nome de "patrão", criado para ressaltar os
sentimentos de paternidade relativamente a eles. Por seu turno, a qualificação de
cliente marcava naquele que a usava uma disposição habitual de estar pronto para
o serviço (cluere, ouvir, ter o ouvido aberto). As obrigações recíprocas
correspondiam às palavras. O patrão tinha o dever, a obrigação de ajudar seu
cliente com conselhos e crédito, de defendê-lo perante os tribunais, de sustentá-lo
com sua influência nos processos e litígios, e mesmo com armas, a fim de prover
às suas necessidades em caso de miséria. De sua parte, o cliente devia ao patrão
o respeito, obsequium , e a dedicação pessoal: dando-lhe o voto nos comícios,
armando-se e combatendo por ele, contribuindo no pagamento de seu resgate, no
dote de sua filha etc. Existia nisso, em uma palavra, uma troca regrada e contínua
de serviços. Estivesse ou não sempre presente essas relações a afeição, do ponto
de vista social o resultado era o mesmo.
Quando o feudalismo nasceu, a clientela havia desaparecido há séculos.
Como por efeito de um instinto natural, este encontrou-se baseado no mesmo
princípio da assistência mútua. O suserano devia prestar socorro e proteção a
seus vassalos, como o pai a seus filhos, assegurar-lhes justiça, manter a ordem e a
segurança no feudo, providenciar a subsistência dos necessitados. Em troca,
vassalos e proprietários deviam fidelidade e assistência a seu suserano na paz e
na guerra, e também em circunstâncias idênticas àquelas em que o cliente tinha
deveres para com seu patrão, por exemplo, no caso do casamento da filha do
suserano.
"A experiência quotidiana que o homem faz da exigüidade de suas forças, diz
Leão XIII, obriga-o e leva-o a associar-se a uma cooperação estrangeira. Lemos
nas Santas Escrituras esta máxima: "É melhor que dois estejam juntos do que
estarem sós, porque então eles tiram proveito de sua sociedade. Se um cai, o
outro o sustenta. Infeliz do homem só! porque cairá e não haverá ninguém para
levantá-lo". E estoutra: "O irmão que é ajudado por seu irmão é como uma cidade
7
forte". Desta propensão natural nascem as sociedades". Antes de escrever estas
máximas nos santos Livros, Deus gravou-as no coração do homem; e é o que
6
Dieu a fait la France guérissable , pelo abade Augustin Lémann.
7
Encíclica Rerum Novarum.
29
explica como as instituições, repousando sobre os mesmos princípios, puderam
nascer espontaneamente na antiguidade pagã assim como no seio do cristianismo.
Entre nós, desde a época merovíngia vê-se um certo número de pequenos
proprietários, chamados vassi, recomendarem-se a homens mais poderosos e mais
ricos, chamados seniores . Ao seu senior, que lhe dá um presente em terras, o
vassus promete assistência e fidelidade. Pela metade do século IX o movimento
se precipita, uma multidão de famílias suplica à família senhorial de tomá-las sob
sua proteção: Defendei-nos, defendei a terra que possuímos e aquela que ireis
conceder-nos, e nós vos prestaremos todos os serviços de um fiel vassalo. Foi no
século XIII que essa organização social, fundada na dedicação e nos serviços
recíprocos, atingiu seu apogeu. E foi também naquela época que a nação francesa
alcançou o mais alto grau de prosperidade, que ela pôde exercer sobre todas as
nações da Europa uma ascendência que não mais reencontrou.
A maioria dos historiadores assinalou que o regime feudal estabeleceu-se
entre quase todos os povos da Europa, sem que nenhum deles o tivesse tomado
emprestado de outro. E achou-se tão resistente que Le Play pôde observá-lo ainda
cheio de vida nas planícies orientais da Rússia. Eis o que ele diz: "As relações da
família com o senhor têm simultaneamente o respeito e a familiaridade que reinam
entre os filhos e o pai. Sua autoridade fornece ao camponês um ponto de apoio
para a conservação da propriedade. O senhor exerce a autoridade, como fazia o
suserano da Idade Média, pela manutenção do regime de comunhão em família.
Ele a protege contra a deterioração... O senhor concede recursos à família em
todas as circunstâncias em que seus meios de existência se achem
comprometidos, por exemplo, em caso de incêndio, de fome, de epizootia e de
doenças epidêmicas. E o senhor pode contar com o trabalho dos camponeses
para o sucesso de sua própria atividade".
Esse patronato que vemos estabelecer-se assim sob formas muito parecidas,
em tempos tão distantes e em tantos lugares, saiu evidentemente da família, é uma
extensão do seu espírito. A prosperidade da família, dissemos, tem seu princípio
na união, união proveniente da comunhão de afeições e de esforços. Foi a visão
dos felizes efeitos que produz essa união, que levou-a a espraiar-se além dos
limites da família e que fez nascer a clientela entre os romanos, o feudalismo entre
nós. Da família embrionária, se posso assim dizer, o espírito familiar ampliou-se
com o desenvolvimento que teve a família patriarcal, e daí ganhou e animou a
fraternidade, a gens , o feudo, e enfim as nações, que não podem, elas também,
viver e prosperar senão na união e pela comunhão dos esforços.
A Idade Média estava plenamente convencida disso. O espírito de proteção
penetrava-a tão perfeitamente que, ao mesmo tempo em que realizava o
feudalismo no campo, criava nas cidades mesnies urbanas, depois estabelecia
entre as cidades vizinhas as lignages das cidades francesas, as paraiges das
cidades lorenas, as geslachten das cidades flamengas etc., todos nomes que, por
si sós, bastam para mostrar o princípio de onde esses grupos saíram, o espírito
que lhes deu luz, posto que todas essas palavras são tomadas do vocabulário da
família. Cada um desses grupos tinha uma organização comum, de caráter familiar
e ao mesmo tempo militar, como o grupo feudal.É necessário conhecer esses
fatos, se se quer ter a exata dimensão do mal que ronda a sociedade atual e do
remédio que se lhe deve aplicar.
30
31
CAPITULO IV
1
A amizade torna agradáveis as coisas propícias e abranda, pela mútua participação, as adversas,
deixando-as mais suportáveis. (N. do T.).
2
La famille fait l'Etat. Grandeur et décadence des aristocraties. Grandeur et décadence des classes
moyennes. Da coleção "Sience et Religion", editada por Bloud & Cia.
32
qualidades morais, de onde emanam as obrigações recíprocas, foram bastante
difundidas e entraram muito profundamente nos caracteres para penetrarem
também nos usos e costumes, constitui o tempo em que o povo mais brilhou na
sua força e no seu esplendor. Com o esquecimento dessas obrigações veio a
decadência. Sempre e em toda a parte, o princípio dessa decadência é encontrado
primeiramente na aristocracia. No momento em que ela negligenciou seus
deveres relativamente a seus clientes; no momento em que ela deixou de levar-
lhes afeição aos seus corações, e em conseqüência deixou de dar-lhes assistência
e proteção, os sentimentos que constituíam a autoridade dos patrões se
enfraqueceram e acabaram por extinguir-se no coração de seus inferiores. Então
uma aristocracia menos nobre sucedeu a uma aristocracia mais nobre, porque os
povos não ficam jamais sem aristocracia. Na França, como na Grécia, como na
Itália antiga, vimos a aristocracia feudal, em conseqüência do esquecimento de
seus deveres, ceder lugar a uma aristocracia imobiliária e esta a uma aristocracia
de dinheiro. As mesmas épocas históricas sucederam-se na mesma ordem na
antiguidade e nos tempos modernos: à medida que as tradições cederam à ação
do tempo e das paixões humanas, o regime patriarcal deu lugar ao regime
agrário, e este ao regime administrativo, logo dominado pelo dinheiro.
Na Grécia, desde que os Eupátridas vieram a olvidar seus deveres
relativamente a seus clientes, as crenças antigas, que constituíam a autoridade
deles na alma dos inferiores, extinguiram-se progressivamente. Restou como fonte
de influência apenas a propriedade imobiliária, que pôde pertencer tanto aos
plebeus quanto aos nobres. A legislação de Solon veio então dizer que os direitos,
as honras, as funções e as obrigações dos cidadãos seriam medidas segundo a
importância de suas propriedades imobiliárias. De sorte que a uma aristocracia de
sangue sucedeu uma aristocracia de proprietários.
Produziu-se logo uma outra revolução. Desde o tempo de Solon, o comércio
ateniense tomou impulso e logo estendeu-se longe. O proprietário do solo viu sua
importância decrescer diante da importância do negociante, para o qual os navios
traziam as riquezas longínquas.
Em Roma, essas transformações foram as mesmas. A classe dos
cavalheiros, homens de negócio, substituiu a antiga aristocracia, que desapareceu.
Veremos as mesmas mudanças se produzirem na França.
Mas, antes, devemos descobrir quais foram as conseqüências disto entre os
povos antigos.
3
Pro Murena.
33
Mas os pobres opuseram resistência. Eles organizaram uma guerra regular
contra os ricos. Usaram o direito de sufrágio para sobrecarregá-los de impostos,
para decretar a abolição das dívidas ou para operar confiscos gerais.
Plutarco conta que em Megare, depois de uma insurreição, decretou-se que
as dívidas seriam abolidas, e que os credores, além da perda do capital, seriam
obrigados a reembolsar os juros já pagos.
Em 412, a população de Samos massacrou duzentos ricos, exilou outros
quatrocentos e repartiu suas terras e casas. Em Corcyre, o partido dos ricos foi
quase inteiramente exterminado. Os que se tinham refugiado nos templos foram
emparedados e deixaram-nos morrer de fome. "Por toda a parte, como diz
Tucídide, foram vistas todas as crueldades, todas as barbáries, naturais a
pessoas que, impelidas por um sentimento cego de igualdade, encarniçam-se
impiedosamente contra os rivais". "Em cada cidade, escreve Fustel de Coulanges,
o rico e o pobre eram dois inimigos. Nenhuma relação, nenhum serviço, nenhum
trabalho os une. O pobre não podia adquirir a riqueza senão despojando o rico; o
rico não podia defender seus bens senão mediante extrema habilidade ou pela
força. Eles se encaram com olhar raivoso; havia em cada cidade uma dupla
conspiração; os pobres conspiravam por cupidez, os ricos por medo. Não é
possível dizer qual dos dois partidos cometeu mais crueldades e crimes. Os
ódios apagavam nos corações todo sentimento de humanidade. Houve, em
Milet, uma guerra entre ricos e pobres; estes tiveram vantagem inicialmente e
forçaram os ricos a fugir da cidade; mas, em seguida, lamentando não ter podido
degolá-los, pegaram os filhos deles, reuniram-nos em granjas e esmagaram-nos
sob as patas dos bois. Os ricos reentraram em seguida na vila e tornaram a ser
os patrões. Pegaram os filhos dos pobres, untaram-nos com resina e queimaram-
nos todos vivos".
Que acontece com a Grécia, outrora tão grande, nessa luta pavorosa? O
historiador Políbio no-lo diz: "Nos campos, a cultura das terras; nas cidades, os
tribunais, os sacrifícios, as cerimônias religiosas são abandonados. Os gregos
vivem em guerra civil há seis gerações. Ela tornou-se o estado habitual, regular,
normal do povo, no qual se nasce, vive-se e morre-se. Vêem-se cidades
permanecer desertas, e, para cúmulo da dor, os gregos não podem atribuir senão à
própria loucura as calamidades pelas quais são castigados".
A história da democracia romana oferece o mesmo ensinamento da história da
democracia grega. E se a luta não foi acompanhada de crises tão sangrentas, é
preciso atribui-lo a uma dupla causa. Em primeiro lugar, às conquistas de
territórios imensos feitas pelos romanos, cujas terras davam à plebe; em segundo
lugar, aos exércitos que, destacados nas fronteiras e em contínua luta contra os
bárbaros, devoravam boa parte de plebeus.
4
Bourdaloue lembrava assim aos senhores do grande século seus deveres.
"Aristóteles, o Príncipe dos Filósofos, não possuía nenhum princípio de cristianismo, no entanto
compreendia essa obrigação quando dizia que os reis, nesse alto grau de elevação que nos faz olhá-los
como divindades da terra, não são mais do que homens feitos para os outros homens, e que não é
para eles mesmos que são reis, mas para os povos.
"Ora, se isto é verdadeiro em relação à realeza, ninguém poderá acusar-me de levar, a esse respeito,
a coisa longe demais, se adianto que não se pode ser nada no mundo, nem se elevar, ainda que pelas
vias retas e legítimas, às honras do mundo, senão pela disposição de empregar-se, interessar-se e
consagrar-se e mesmo de devotar-se ao bem daqueles que a Providência faz depender de nós; que um
homem, por exemplo, revestido de uma dignidade, não é senão um súdito destinado por Deus e
escolhido para o serviço de um certo número de pessoas às quais ele deve suas preocupações; que
um particular que toma um encargo, desde então não existe mais para si, mas para o público; que um
superior, que um professor, não tem a autoridade à disposição senão porque deve ser útil a toda uma
36
Perefixe, que queria que cada qual se acostumasse a viver de seus bens, e que
para esse efeito ele estava bem à vontade, visto como gozavam de paz, que
fossem ver suas casas e dessem ordem de valorizar suas terras. Assim, ele os
aliviava de grandes e ruinosas despesas na corte, reenviando-os às províncias, e
ensinava-lhes que o melhor fundo que se pode construir é o de uma boa família.
Com isto, sabendo que a nobreza francesa era melindrosa no imitar o Rei em
todas as coisas, ele lhes indicava, por seu próprio exemplo, a supressão da
superfluidade nos trajes; porque ele ia ordinariamente vestido de tecido cinza, com
um gibão de cetim ou de tafetá sem cortes, passamanes ou enfeites. Ele louvava
os que se vestiam dessa maneira e ria-se dos outros, que carregavam, dizia, seus
moinhos e suas ramarias de árvores altíssimas nas costas ".
Sob Luís XIV, a nobreza recebeu outras lições e infelizmente deixou-se levar
por outros exemplos; sabemos quais foram as conseqüências.
"O afastamento físico, diz Tocqueville, produziu pouco a pouco entre os
senhores um afastamento de coração. Quando o gentil-homem reaparecia no meio
dos seus, ele revelava os desígnios e os sentimentos que tivera seu intendente na
sua ausência. Ele não via mais em seus arrendatários senão os devedores dos
quais ele exigia com rigor o que lhe cabia segundo a lei ou o costume. Daí os
sentimentos de rancor e de ódio. Além disso, por efeito desse mesmo
afastamento, toda a direção geral falhava, as terras caíam em deplorável
abandono. A nobreza logo formou uma casta, ciosa de seus títulos, ciumenta de
seus privilégios, e que não mais se justificavam, nem uns nem outros, em razão da
direção imprimida à vida da nação".
Quando estourou a Revolução, fazia já um século que cada classe vinha
caminhando à parte, entretendo e avolumando seus preconceitos e seus ódios
contra a classe que, antes aliada, se tornara rival.
É isto que explica, pelo menos em parte, o que aconteceu no campo.
Podemos observar que por toda a parte onde os proprietários imobiliários tinham
conservado o contato com seus arrendatários, o antagonismo de classes não se
manifestou. Testemunha isto o que se fez na Vandéia, em Anjou, em Poitou, na
Bretanha e na Normandia. Ao contrário, em toda a parte em que os senhores
administraram seus bens pelo intermédio de intendentes e onde, em
conseqüência, eram desconhecidos de seus arrendatários, em toda a parte, em
uma palavra, em que se perdeu o contato entre ricos e pobres, o antagonismo
social revelou-se com grande violência. Taine estabeleceu esse fato em várias
passagens de seus escritos.
A aristocracia imobiliária, assim caída, deu lugar, como em Atenas e em
Roma, à aristocracia de dinheiro, que a Revolução nos legou.
5
Segundo o visconde d'Avenel, os riquíssimos de hoje, na França, o são doze
vezes mais do que os mais ricos personagens do Ancien Régime; eles são dez
vezes mais ricos ou vinte vezes mais numerosos do que os mais opulentos
príncipes dos tempos feudais. Há hoje na França 1.000 pessoas que têm 200.000
francos de rendas mobiliárias ou imobiliárias. Entre essas 1.000, há 350 que têm
500.000 francos de rendimentos. Dessas 350 podemos citar 120 que dispõem
anualmente de mais de um milhão de francos de receitas; 50 dentre elas têm um
orçamento normal de 3 milhões de francos; e dessas 50, há uma dezena que tira
nação, posto que, sem autoridade, ele não pode sê-lo. Praes, dizia São Bernardo, escrevendo a um
grande do mundo, pondo diante dos olhos deste a idéia que ele devia ter de sua condição, praes
non ut de subditis crescas, sed ut ipsi de te. Estais no lugar de comando, e é justo que se vos
obedeça. Lembrai-vos, porém, que essa obediência vos é dada a título oneroso e que sereis
prevaricador se não a fizerdes servir inteiramente em benefício dos que vo-la prestam".
5
Revue des Deux-Mondes
37
de seus capitais uma soma superior a 5 milhões por ano. Não se conhece
ninguém da Idade Média que possa ser comparado aos 50 particulares que
formam as duas categorias mais altas. Há coisa pior para um povo do que a
destruição de seus exércitos e de suas frotas, a bancarrota de suas finanças e a
invasão de seu território; é o abandono de suas tradições e a perda de seu ideal.
A história de todos os povos aí está para no-lo atestar.
38
39
CAPÍTULO V
Nos nossos dias a suserania pertence ao ouro. Esse metal coloca aos pés
de seu possuidor todas as forças, não somente da França, mas do mundo.
Havia, sem dúvida, um grande poder nos séculos que precederam a Revolução,
mas ele encontrava uma rivalidade na aristocracia, que numerosas vezes o
suplantou. Hoje, o ouro quase passou ao estado de divindade; em toda a parte
ele comanda, em toda a parte é adorado.
Esse novo poder tomou dos poderes que o precederam apenas os abusos
nos quais tinham-se deixado levar.
"Os homens da Revolução, diz Vogue,2 não duvidavam de que iriam abolir
todos os privilégios e assegurar o reino da igualdade.
"Na pressa do seu otimismo, não refletiam sobre uma lei da história: cada vez
que uma sociedade se desembaraça de antigas dignidades, de antigos poderes
espirituais e temporais, um senhor permanece, inexpugnável, o mais duro e o mais
sutil dos senhores, o dinheiro.
"Ele se insinua nas elevadas posições deixadas vazias, recolhe toda a
autoridade tirada de seus rivais, restabelece em seu benefício, sob outras formas,
1
A avareza não é satisfeita, mas sim estimulada, pelo lucro. Tem como que algo da condição da
cobiça, pela qual, quanto mais cresce, por isso mesmo mais corre para o alto: por onde produz grave
destruição, em razão da qual há de cair. (N. do T.).
2
Un siècle, mouvement du monde de 1800 à 1900.
40
dignidades e privilégios. Todos lhe obedecem, porque só ele concede tudo o que
dá valor à vida".
A aristocracia francesa deveu sua grandeza àquilo que havia feito a
grandeza das aristocracias antigas: a dedicação das classes dirigentes pelas
classes dirigidas, a afeição das classes dirigidas pelas classes dirigentes, a união
dos esforços para o maior bem de todos. Entre nós, como nas antigas
civilizações, a decadência foi a conseqüência natural da separação que se deu
entre a nobreza e o povo, que viviam cada qual sua vida, não mais se amando,
não mais se auxiliando mutuamente, não mais se conhecendo. A nobreza havia
desertado dos campos para ir perder-se na corte dos reis, e aí gastar em prazeres
e em luxo o dinheiro que o trabalho dos lavradores lhe obtinha. "Pode-se
permanecer ligado e afeiçoado, pergunta Tocqueville, a pessoas que não
significam nada pelos laços da natureza e que não mais são vistas? É sobretudo
nos tempos de privação que se percebe que os laços de proteção e de
dependência que outrora ligavam o proprietário rural aos camponeses estão
frouxos ou rompidos. Nesses momentos de crise, o governo central assusta-se
com seu isolamento e sua fraqueza; ele quereria fazer renascer para o momento
as influências individuais que ele destruiu; ele as chama em seu socorro: ninguém
vem, e ele se espanta em encontrar mortas as pessoas às quais ele próprio tirou
a vida". Alguns anos antes da Revolução, a nobreza quis reaproximar-se do povo;
era tarde demais. Fazia um século que cada classe vinha percorrendo seu próprio
caminho, aumentando, de geração em geração, os ódios e preconceitos contra a
classe rival que não mais conhecia, que não mais compreendia. Sabemos o que
resultou disso. A sociedade desmoronou em ruínas e em sangue.
O conde de Chambord quis persuadir ao que restava da aristocracia, de
retomar, tanto quanto as circunstâncias permitiam, seu papel providencial. "Não
cessarei, dizia, de recomendar a todos aqueles que permaneceram fiéis à nossa
causa, de habitar suas terras o mais possível, e de dar o exemplo de todas as
melhorias possíveis. É o verdadeiro e o único meio de destruir as prevenções
injustas, e de dar à propriedade imobiliária a parte de influência que lhe pertence,
e que seria tão útil que ela alcançasse na administração e na condução dos
negócios do país". Ele felicitava os que tinham "conservado, com a fé de seus
pais, o culto do lar e o amor ao solo natal". "As seduções revolucionárias, dizia,
exercem seus estragos sobretudo sobre as populações desamparadas por seus
protetores naturais. Rápidas aparições não substituirão jamais a afeição no
relacionamento, o desinteresse nos serviços, a adesão aos conselhos". Não foi
escutado tanto quanto deveria ter sido.
3
Em nenhum lugar a mentira da liberdade se revelou mais abertamente do que na ordem econômica.
Sua miragem evanesce como um sonho tão logo a vida põe em contato indivíduos isolados. O
operário tem diante de si um patrão que lhe propõe um determinado salário. É louvável que o
operário o recuse? Não, as necessidades da existência, talvez uma família da qual cuidar, obrigam-
no a aceitar as condições que lhe são oferecidas.
42
À falta de freio junta-se a falta de escrúpulos. A continuidade do trabalho e da
parcimônia, durante numerosas gerações, transmite a cada uma delas as
virtudes que começaram a prosperidade da família. Mas essas tradições não se
formam nas famílias que, ocupando-se da indústria, do comércio, dos bancos,
chegam rapidamente ao cume, mediante golpes de sorte. Vemo-las, como
acaba de observar Funck-Brentano — falando de maneira genérica, e salvo as
exceções que a virtude do cristianismo pôde produzir —, pouco desinteressadas,
pouco sensíveis à honra, pouco aplicadas aos nobres pensamentos que inspiram a
fé e a caridade cristãs; e, em conseqüência, mais hábeis em seus negócios do
que devotadas ao bem, aspirando a abandonar-se cada vez mais ao bem-estar, ao
luxo, aos prazeres que o dinheiro lhes permite obter.
Nessas condições, as boas relações sociais com aqueles cujo trabalho
serviu para elevá-los e continua a mantê-los em sua posição ou a nela crescerem,
são muito raras e muito fracas, para não dizer nulas.
Elas o são ainda por um outro motivo. Tocados pelo desejo de se enriquecer
sempre mais, os grandes industriais multiplicam suas indústrias ou desenvolvem-
nas em imensas proporções. Atraem para lá, ao redor deles, populações cada vez
mais numerosas. O contato do patrão com os operários torna-se quase
impossível: entre eles são encontrados mestres e contramestres, e acima de todos,
os acionistas, pois essas grandes empresas não podem prosseguir sem grandes
capitais tirados de numerosas bolsas. Pode-se pôr a questão da proteção e
sobretudo de paternidade para esses homens cujas ações repousam no fundo de
um cofre forte, e que de nenhum modo conhecem os trabalhadores cujo labor dá
valor a seus papéis?
Por todas essas razões, o burguês opulento também acabou por viver
separado do povo, como o gentil-homem dos últimos tempos. Ele terá
necessariamente a mesma sorte. Podemos mesmo dizer uma sorte pior: porque
em todas as épocas e entre todos os povos, a queda da aristocracia financeira,
industrial e comercial foi acompanhada de desordens mais violentas e mais
sangrentas do que as causadas pela suplantação da aristocracia feudal pela
aristocracia imobiliária.
O patrão também não é livre. Ele apreciaria, na maioria dos casos, retribuir convenientemente seus
empregados e operários. Apenas ele não pode, sendo prisioneiro de uma concorrência sem limites. E
ele se esforça em vão para ter acesso a toda sorte de expedientes para escapar aos efeitos dessa
concorrência, e ele não é menos constrangido em sofrer os efeitos de sua lei. Lei implacável que o
coloca na impossibilidade material de dar a seus colaboradores uma remuneração condizente com as
condições da existência.
Assim, não é a independência, nem a liberdade, que o estado individualista engendra: é a servidão, é
a dependência: dependência do empregado relativamente ao patrão, dependência do patrão
relativamente à concorrência, dependência de todos relativamente às condições econômicas.
43
domínio impunha, para que pudesse surgir a idéia de despojar o proprietário de
suas terras.
A aristocracia de dinheiro não teve entre os antigos povos tão longa duração.
O rápido crescimento das fortunas adquiridas pela indústria, pelo comércio e pela
especulação, assim como sua instabilidade, não as recomendam ao respeito dos
povos; menos ainda a fonte impura na qual várias se abeberaram. Enfim, a
desigualdade das condições que elas criam na mesma classe desencadeia as
cobiças e os apetites.
De maneira geral, o burguês pouco faz para apaziguá-las, não procura
aproximar-se da classe inferior, conhecer-lhe as aspirações e as necessidades;
ele foge do contato com suas misérias, longe de unir-se a ela para procurar
abrandar-lhe os sofrimentos, afastar o vício, restringir a pobreza.
Certamente, nesses últimos tempos um certo número de patrões deu ouvido
à voz da humanidade e da religião e fez grandes sacrifícios para a melhoria da
condição física e moral de seus operários. Encontram-se mesmo acionistas que,
nas assembléias, tomam a peito e em suas mãos seus interesses.
Todavia, não passam ainda de exceções.
O estado atual é este. Ao redor das fábricas amontoam-se multidões vindas
de todas as partes, desenraizadas dos campos que as viram nascer, arrancadas
dessa forma a todas as influências da família, da vizinhança, da paróquia. Todos
os laços que as retinham no bem, a honra da família, o respeito próprio em
relação aos que nos conhecem, a ação da religião através de suas instruções e
sacramentos, tudo isto é quebrado e logo substituído por outras influências: a
taberna, o jornal, o sindicato; a taberna, que corrompe o coração; o jornal, que
corrompe o espírito; o sindicato que acorrenta a vontade. O operário torna-se
assim muito facilmente e muito prontamente presa dos ambiciosos que adulam
seus piores instintos, dos escritores que espalham as idéias mais falsas, dos
camaradas através dos quais todas as sãs tradições são combatidas e
derrubadas, uma a uma. Os cérebros são invadidos pela dominação cega das
palavras: progresso, igualdade, liberdade, democracia; e as mãos seguram a arma
invencível do sufrágio universal.
Tudo isso não anda sem carregar consigo uma profunda desmoralização e a
desmoralização não tarda a produzir seu fruto: a pobreza. Os apetites devoram o
salário todos os dias; mais ele cresce, mais alimenta os apetites, e mais a
miséria se desenvolve.
Ela se abate sobre essas massas que, não mais tendo fé, nem lei, nem fogo,
nem lugar, não são contidas por mais nada, e estão dispostas a tudo para
alcançarem os gozos nos quais vêem seus patrões se fartarem.
Tocqueville escreveu: "É sempre com grande dificuldade que as classes altas
chegam a discernir claramente o que se passa na alma do povo. Quando o pobre
e o rico não têm praticamente mais interesses comuns, dificuldades comuns e
negócios comuns, essa obscuridade que esconde ao espírito de um o espírito do
outro torna-se insondável, e esses dois homens poderiam viver eternamente lado
a lado, sem jamais se compreenderem. É curioso ver em que estranha segurança
viviam todos os que ocupavam os estágios superiores e médios do edifício social
no exato momento em que a Revolução começava, e de ouvi-los discorrer
habilmente entre eles sobre as virtudes do povo, sobre sua candura, quando 1893
já estava sob seus pés".
Hoje a ilusão não é mais tão fácil. Para estar esclarecido, basta abrir os
jornais populares e os livros daqueles que são os únicos doutores ouvidos pelo
povo. Eles convencem que a condição do operário, na nossa sociedade, é pior do
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que a do antigo escravo. Eles vão bem longe. "A propriedade, eis o roubo",
escreveu Proudhon. "O capital não passa de trabalho morto, escreveu Karl Marx,
e que, semelhante ao vampiro, só se anima sugando do trabalho vivo, e sua vida é
tanto mais alegre quanto mais ele sorve". "À medida que diminui o número dos
potentados do trabalho, escreve ainda, pela concorrência que fazem entre si,
aumentam as misérias, a opressão, a escravidão, a degradação, a exploração,
mas também a resistência da classe operária, sempre crescente e cada vez mais
disciplinada, organizada, unida pelo próprio mecanismo da produção capitalista.
Socialização do trabalho e centralização que chegam a um ponto que, não
podendo mais ser mantidas dentro do invólucro capitalista, rompem esse invólucro
em estilhaços. Soou a última hora da propriedade; os expropriadores serão por
sua vez expropriados".
E de que maneira se operará essa expropriação? Marc Stirmer di-lo: "Se
alguém se opõe à nossa marcha, como uma pedra no caminho, nós o faremos ir
pelos ares".
Essa catástrofe foi anunciada há muito tempo pelos clarividentes. Basta que
sejam lembradas as palavras de Le Play, Blanc de Saint-Bonnet, Donoso Cortez
etc.
Mas, ao lado dos clarividentes, quantos outros parecem tocados por essa
cegueira de que fala Pierre Leroux:
"Há homens verdadeiramente cegos, que não vêem nada nem pelo coração
nem pelo pensamento, que não vêem senão com os olhos do corpo. Se lhes
perguntardes: Babilônia ou Palmíria existiram e foram destruídas? Eles vos
responderão: sim; porque eles podem vos mostrar ruínas materiais, escombros
de edifícios enterrados nas areias do deserto..., mas se vós lhes disserdes que a
sociedade social está destruída, eles não vos compreenderão e rirão de vós,
porque eles vêem por todos os lados campos cultivados, casas e cidades cheias de
homens. Que dizer a esses cegos, senão o que Jesus dizia a seus semelhantes:
Oculos habentes, non vident”.
E no entanto, a Providência não lhes poupa os avisos.
"Quando uma sociedade não vê mais ou não quer ver o que deve fazer, diz
Alexandre Dumas Filho, essa Providência indica-lhe o caminho inicialmente
através de pequenos acidentes sintomáticos e facilmente remediáveis; depois,
persistindo a indiferença ou a cegueira, Ela renova Seus indicativos mediante
fenômenos periódicos, aproximando-os um dos outros cada vez mais,
acentuando-os cada vez mais, até alguma catástrofe de uma demonstração de tal
maneira clara que ela não deixa nenhuma dúvida sobre a vontade da dita
Providência. É então que a sociedade imprevidente se assusta, se amedronta,
grita contra a fatalidade, contra a injustiça das coisas".
Não é pouco provável que assistamos novamente às cenas horríveis que
desolaram a Grécia nos seus últimos tempos. Já temos o prólogo disso nas
greves que se multiplicam, que se alastram, que preparam a greve universal, à qual
o mundo operário todo se dispõe, e para a qual se organiza.
Mas toda a greve aumenta a miséria e toda a miséria maior atiça os ódios.
Em que abismo a greve geral fará cair a sociedade! E em que estado ela colocará
os espíritos e os corações! O judeu Henri Heine não profetizava às cegas quando
dizia: "Não está longe o dia em que toda a comédia burguesa na França terá um
fim terrível e em que se representará um epílogo intitulado: o reino dos
comunistas. Em Paris podem então passar-se cenas perto das quais as da antiga
Revolução pareceriam serenos sonhos de uma noite de verão".
Isto não seria apenas a ruína da burguesia, mas da pátria e da sociedade
inteira.
45
Por quê? Porque a lei das sociedades humanas terá cessado de ser
observada. Suspendei a lei da atração e o mundo cairá num terrível caos, os
astros se chocarão e se despedaçarão uns contra os outros. Suspendei no mundo
social a lei da harmonia entre as classes, e elas também se devorarão.
Nada pode salvar nossa sociedade de uma ruína irremediável, se não for o
restabelecimento dessa harmonia que Leão XIII mostrou como devendo ser a
salvação e à qual muito pouco numerosos patrões se têm dedicado. Afora isso,
todo outro meio é insuficiente. "Um, diz Monsenhor Ketteler, quer nos curar por
uma melhor divisão dos impostos, outro por diferentes categorias de caixas de
poupança, o terceiro pela organização do trabalho, o quarto pela emigração, este
pelo protecionismo, aquele pelo livre comércio, este outro pela liberdade das
associações de classe ou pela divisão do solo e da fortuna, este outro
precisamente pelos opostos, e outros ainda pela proclamação da República que
suprimiria toda a miséria e realizaria o paraíso sobre a terra. Esses meios têm,
certamente, maior ou menor valor, e alguns podem agir eficazmente; mas, para
curar nossas chagas sociais, eles não são mais do que uma gota de água no
oceano. A reforma interior de nosso coração, eis o que nos salvará. As duas
poderosas doenças do nosso coração são, de um lado, a sede insaciável de
gozar e de possuir, de outro lado, o egoísmo que matou em nós o amor ao
próximo. Essa doença atingiu tanto os ricos como os pobres. Que podem contra
isso uma nova divisão do imposto, ou das caixas de poupança..., enquanto viverem
esses sentimentos em nossos corações"?4
4
L'un des six sermons prononcés à Mayence. Tradução de Decurtins.
46
47
CAPÍTULO VI
1
O espírito humano jamais dá vida aos membros do corpo se não estiverem unidos; assim o Espírito
Santo nunca dá vida aos membros da Igreja, se não estiverem unidos na paz. (N. do T.).
2
Encíclica Rerum novarum.
48
Foi assim que nasceu o regime administrativo inaugurado por Luís XIV,
constituído pela Revolução, consolidado e fixado por Napoleão I.
"Esta nação, dizia o imperador, está toda dispersa e sem coerência; é preciso
refazer alguma coisa; é preciso lançar no solo alguma base de granito". As bases
que ele lançou foram as instituições administrativas. Não há nada de granítico
nelas. As instituições sólidas e duráveis são aquelas que reúnem os homens que
comungam as mesmas idéias, os mesmos sentimentos, os mesmos interesses.
O regime administrativo não tem nenhuma raiz nas almas; ele é inteiramente
feito de regulamentos rígidos, aplicados por homens que têm a inflexibilidade da
máquina da qual são apenas as engrenagens. A máquina administrativa rebaixa
tudo, tritura tudo, mesmo as consciências; mas não pode deixar de lhe acontecer
o que acontece a toda máquina: um dia ou outro ela voará em estilhaços. Já se
fazem ouvir de todas as partes e em todas as coisas sinistras explosões,
precursoras da catástrofe final.
Teremos a sorte das antigas sociedades? Desapareceremos nesse desastre?
Ou poderemos nos reconstituir? O cristianismo oferece-nos recursos que o
paganismo não conhecia.
Ele soube recolher os destroços das civilizações antigas, e animando-os com
seu espírito, fez surgir dessas ruínas a civilização moderna. Poderá ele restaurá-la
e nos dar a vida? Certamente pode, se nós quisermos.
Ele é a fonte pura da caridade, quer dizer, do mais poderoso princípio
gerador das afeições recíprocas, da dedicação, do respeito, da fidelidade, de tudo
que garante a estabilidade, de tudo que nossos antepassados tinham encerrado
nesta palavra: "A PAZ".
São Denis, o Areopagita, cujas idéias tiveram tão grande influência sobre a
Idade Média, no seu livro Des Noms Divers, cantou a caridade nestes termos:
"E agora honremos, pelo louvor de suas obras harmônicas, a paz divina, que
preside toda aliança. Porque é ela que une os seres; que os concilia e produz
entre eles uma concórdia perfeita; assim, todos a desejam, e ela restaura na
unidade a multidão tão diversificada deles; combinando suas forças naturalmente
opostas, ela coloca o universo num estado de regularidade pacífica.
"É por sua participação na paz divina que os primeiros dentre os espíritos
conciliadores estão unidos, primeiramente entre eles mesmos, depois uns aos
outros, enfim ao soberano autor da paz universal; e que, por um efeito ulterior,
unem as naturezas subalternas a elas mesmas, e entre elas, e com a causa
única da harmonia geral... Dessa causa sublime e universal, a paz desce sobre
todas as criaturas, está presente entre elas, e penetra-as, guardando a
simplicidade e a pureza de sua força; ela as ordena, ela aproxima os extremos
com a ajuda das melhores, e as une assim como pelos vínculos de uma mútua
3
concórdia".
Esses pensamentos tão elevados haviam penetrado as almas. Citemos como
exemplo o preâmbulo da "caridade" com a qual o conde de Flandres, Balduíno III,
dotou, em 1114, a cidade de Valenciennes.
"Em nome da Santa Trindade, paz a Deus, paz aos bons e aos maus. Falamos
de paz, meus caríssimos irmãos, para vosso proveito. A paz deve ser desejada,
deve ser procurada, deve ser guardada, pois nenhuma outra coisa é mais doce,
nem mais gloriosa. A paz enriquece os pobres e honra os ricos; a paz dissipa
todo o medo, traz saúde e confiança. Quem poderia enumerar todos os seus
benefícios? As divinas Escrituras dizem em seu louvor: "Ó Deus, como são belos
os pés do mensageiro que anuncia paz e boa nova!" E posto que a paz é tão
3
Cap. XI, tradução de Monsenhor Darboy.
49
louvável e que produz bens em abundância, amai-a, meus caros irmãos, de todo o
vosso coração, mantende-a em vosso pensamento, guardai-a com toda a vossa
força, a fim de que, por ela, possais viver em honra e chegar à paz eterna, da
qual disse Nosso Senhor: "Eu vos dou a minha paz".
Na mesma época, a "confraria" dos comerciantes de tecidos da mesma
cidade publicava suas ordenações, que começavam assim: "Irmãos, nós somos
imagens de Deus, porque está dito no Gênese: "Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança". Nós nos unimos nesse pensamento e, com a ajuda de
Deus, poderemos realizar nossa obra, se a dileção fraterna estiver difundida entre
nós; porque pela dileção do próximo, elevamo-nos àquela de Deus. Por isso,
irmãos, que nenhuma discórdia haja entre nós, segundo a palavra do Evangelho:
"Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros, como vos
tenho amado, e conhecerei que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos
4
outros".
Reproduzindo esses documentos — que foram atos, e atos que produziram
durante séculos a razão de terem sido emitidos — queremos dizer que seja
necessário retornar ao feudalismo ou aos quadros estreitos das corporações de
outrora? Certamente não. Não se pode retornar às formas sociais do passado; é
coisa impossível, e nada há para lamentar. Mas o que é necessário, e o que
basta, é restaurar nos corações os nobres sentimentos que inspiraram as
instituições do passado, e na sociedade as relações que esses sentimentos
produziram. Desses sentimentos e dessas relações nascerão novas instituições,
conformes ao estado presente da sociedade.
Leão XIII não cessou de exortar a esse propósito. Comentando a palavra de
São Paulo aos Colossenses: "Mas sobretudo tende a caridade, que é o vínculo da
perfeição", ele disse: "Sim, na verdade, a caridade é o vínculo da perfeição...
Ninguém ignora qual foi a força desse preceito da caridade, e com que
profundidade, desde o começo, ela se implantou no coração dos cristãos, e com
que abundância ela produziu frutos de concórdia, de mútuo bem-querer, de
piedade, de paciência, de coragem! Por que não nos aplicaríamos em imitar os
exemplos de nossos pais? O próprio tempo em que vivemos não deve excitar-
nos mediocremente à caridade".5
"Nós vos recomendamos, acima de tudo, a caridade sob suas formas variadas,
a caridade que dá, a caridade que une, a caridade que restaura, a caridade que
esclarece, a caridade que faz o bem pelas palavras, pelos escritos, pelas
reuniões, pelas sociedades, pelos socorros mútuos. Se essa soberana virtude
fosse praticada segundo as regras evangélicas, a sociedade civil se conduziria
bem melhor".6
"Para conjurar o perigo que ameaça a sociedade, nem as leis humanas, nem
a repressão dos juízes, nem as armas dos soldados seriam suficientes; o que
importa acima de tudo, o que é indispensável, é que se deixe à Igreja a liberdade
4
O espírito de caridade, diz Luchaine, era muito desenvolvido em todas as corporações industriais e
comerciais, com mais forte razão quando elas se constituíam em confrarias. Não somente as confrarias
são, sob todos os pontos de vista, sociedades de socorro mútuo, mas uma parte de seu tesouro comum
é geralmente consagrada ao alívio dos infelizes. Grandes esmolas feitas no dia da festa do patrono,
convite a um certo número de pobres para a refeição da corporação, dinheiro fornecido aos hospitais e
leprosários, fundação de hospícios: tais são os usos beneméritos que estão em prática na maior parte
dessas associações (Manuel des Institutions Françaises, período dos Capetos diretos, p. 368).
5
Encíclica Sapientiae Christianae.
6
Discurso ao Patriciado romano, maio de 1893.
50
de ressuscitar nas almas os preceitos divinos e de estender sobre todas as classes
da sociedade sua salutar influência".7
"Da mesma forma como no passado nenhuma força material pôde
prevalecer contra as hordas bárbaras, mas, bem ao contrário, foi a virtude da
religião cristã que, penetrando seus espíritos, fez desaparecer sua ferocidade,
abrandou seus costumes e tornou-os dóceis à voz da verdade e da fé evangélica;
assim, contra os furores de multidões desenfreadas, não haveria proteção segura
sem a virtude salutar da religião, que, difundindo nos espíritos a luz da verdade,
insinuando nos costumes os preceitos da moral de Jesus Cristo, far-lhes-á ouvir a
voz da consciência e do dever, e porá um freio às concupiscências antes mesmo
8
que se ponham em ação e amortecerá a impetuosidade das más paixões".
Conjurar o perigo da situação presente é apenas o primeiro serviço que o
retorno à caridade cristã pode nos conceder. Pertence-lhe ainda o
restabelecimento da sociedade na sua verdadeira constituição.
Ainda uma vez, não dizemos que seja necessário voltar aos sistemas das
castas do Egito ou da Índia, nem reconstituir o feudalismo, nem seguir os métodos
do Ancien Régime, mas é necessário compenetrar-se bem desta idéia: que para
escapar dos funestos efeitos do individualismo que, transformando tudo em
migalhas, reduz tudo à impotência, é absolutamente necessário refazer as
associações e organizá-las segundo a diversidade de seus fins e das funções
exigidas pela sociedade. Para alcançar esse objetivo basta a constituição de um
bom e saudável regime corporativo.
"Da mesma forma que no corpo humano os membros, apesar de sua
diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo a formar um
todo exatamente proporcionado e que poderíamos chamar de simétrico, assim, na
sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a se unirem
harmoniosamente e a se manterem mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm
imperiosa necessidade uma da outra: não pode existir capital sem trabalho, nem
trabalho sem capital. A concórdia engendra a ordem e a beleza; ao contrário, de
um conflito perpétuo só pode resultar a confusão das lutas selvagens”.9
"Fazer cessar o antagonismo entre os ricos e os pobres, não é o único
objetivo perseguido pela Igreja; instruída e dirigida por Jesus Cristo, Ela dirige Suas
vistas para mais alto. Ela propõe um corpo de preceitos mais completo, porque Ela
ambiciona restaurar a união das duas classes até uni-las uma à outra pelos
vínculos de uma verdadeira amizade".10
"A simples amizade será muito pouco; se se obedecem os preceitos do
cristianismo, é no amor fraterno que se opera a união de todos, ricos e pobres".11
Reintegrada nos corações, essa caridade fixar-se-á por ela mesma nas
instituições, por pouco que se deseje isto.
"O que pedimos é que se cimente de novo o edifício social, pelo retorno às
doutrinas e ao espírito do cristianismo, fazendo reviver, pelo menos quanto à
7
Discurso aos operários franceses, 20 de outubro de 1889.
8
Carta aos italianos.
9
Encíclica Rerum novarum. Na fábrica, como no ambiente doméstico, a matéria do contrato que
intervém entre o empregador e o empregado não é somente o trabalho a produzir, mas a pessoa
chamada a produzir. De onde segue que o contrato liga essas duas pessoas uma à outra. De onde segue
ainda que o vínculo formado é um vínculo moral que coloca um numa posição superior e o outro
numa posição inferior. Ora, justamente por existir um vínculo de superioridade, há obrigação de
proteção, de paternidade, de um lado, e de deveres filiais de outro, e aí está a razão pela qual as
questões que dizem respeito ao trabalho interessam simultaneamente à religião, à moral e à política.
10
Encíclica Rerum novarum.
11
Encíclica Rerum novarum.
51
substância , na sua virtude benfazeja e múltipla, e de tal forma que possam
permitir-lhe as novas condições do tempo, essas corporações de artes e de
ofícios que outrora, informadas pelo pensamento cristão, e inspirando-se na
solicitude maternal da Igreja, proviam as necessidades materiais e religiosas dos
operários, facilitavam-lhes o trabalho, cuidavam de suas poupanças e economias,
defendiam seus direitos e apoiavam, na medida desejada, suas justas
12
reivindicações".
Restabelecidas as corporações, não na sua antiga constituição, mas no seu
espírito, nesse espírito que Leão XIII acaba de descrever, elas muito
contribuiriam para o restabelecimento da "paz".
Um ilustre naturalista julgou poder dar a suas estudiosas observações esta
conclusão: A luta pela existência é a lei do reino animal. O estudo da história
permite afirmar com mais certeza que uma das principais leis da humanidade é o
"acordo pela vida".
Nosso Senhor Jesus Cristo impôs a prática desse acordo nestes termos:
"Tudo que quereis que os homens vos façam, fazei a eles". "Esta fórmula, diz o
Padre Gratry, tão curta e mais simples que a da atração, parece ser, como a lei dos
astros, um princípio completo, o princípio de uma ciência mais rica, mais bela,
mais importante que aquela do céu estrelado. Eis a lei primeira, a lei moral, causa
única de todos os progressos humanos".13 De fato, a prosperidade se estabelece e
se desenvolve em toda a parte onde esta lei é observada, assim nas nações como
nas tribos, e nas corporações assim como nas famílias. Ao contrário, a discórdia,
a guerra, a ruína, fixam-se em toda a parte em que essa lei deixa de ser
respeitada.
O acordo pela vida tem sua primeira sede na família. É aí que ele
primeiramente se impõe com as mais evidentes razões e pelos mais fortes
sentimentos. "O amor provocado pelo vínculo do sangue, diz Jacques Flach,14 a
comunhão de vida e de perigo, a necessidade de proteção em comum sob a égide
de um chefe, engendram a solidariedade familiar". As tribos se formaram somente
onde os mesmos sentimentos produziram o mesmo efeito, somente onde a
necessidade de se porem de acordo pela vida, irradiando-se além do lar
doméstico, atraiu as forças vizinhas e fe-las concorrer para um maior
desenvolvimento de ação e de vida. As nações não se formam de outra maneira.
Se tal é a lei da formação das sociedades, se o acordo pela vida é
exatamente a lei da humanidade, e se é exatamente na família que esta lei tem seu
início, assim que uma sociedade começa a se dissolver, que é necessário para
parar essa dissolução? Retornar ao princípio; fazer reviver a lei; e para acender
essa chama, retomar a fagulha do seu fogo, da morada familiar.15
Os franceses eram felizes e prósperos quando a família estava solidamente
constituída entre eles, quando o espírito de família animava a sociedade inteira, o
governo do país, da província e da cidade, e presidia as relações das classes entre
si.
Hoje, a família existe entre nós somente no estado elementar. Reconstituí-la
é obra fundamental, sem a qual toda tentativa de renovação será estéril. Jamais
a sociedade será regenerada, se a família não o for em primeiro lugar. "Ninguém
12
Aos operários franceses, 20 de outubro de 1889.
13
La Loi Morale et la Loi de l'Histoire , t. I, p. 11.
14
Les Organes de l'Ancienne France.
15
O autor vale-se aqui dos diversos sentidos da mesma palavra para tornar sua conclusão mais precisa
e literariamente mais bela, nela aglutinando a argumentação que vem desenvolvendo desde o início da
obra e a que acaba de expor neste capítulo. Em francês, foyer significa lar, lareira, foco de luz, casa,
morada, família , e em sentido figurado, centro, sede. (N. do T.).
52
ignora, disse Leão XIII, que a prosperidade privada e pública depende
principalmente da constituição da família".16
Balzac também disse: "Nada é sólido e durável se não for natural, e a coisa
natural em política é a família. A família deve ser o ponto de partida de todas as
instituições".
16
Carta sobre a família cristã, 14 de julho de 1892.
53
CAPITULO VII
"Não são as vitórias dos militares, diz Funck-Brentano, nem os sucessos dos
diplomatas, nem mesmo as concepções dos estadistas que conservam a
prosperidade e a grandeza das nações e sobretudo que podem devolvê-las
quando perdidas ; é a força de suas virtudes morais". Essa convicção, formada
no seu espírito pelo estudo aprofundado das diversas civilizações, é a conclusão
do seu livro La Civilisation et ses lois.
É ilusão perigosa crer que um homem, seja ele um gênio, possa, da noite para
o dia, tirar-nos da situação em que nos encontramos e devolver à França sua
antiga grandeza. A queda é profunda demais, e data de muito tempo: começou há
vários séculos. Esse homem poderia apenas levantar-nos e recolocar-nos no
caminho. Ora, não há outra via de salvação senão aquela das virtudes, das
virtudes morais e sociais, que se encontram na origem de todas as sociedades,
propiciando-lhes o nascimento e, em seguida, construindo sua prosperidade
através da concórdia e do auxílio mútuo.
Também não é suficiente que se obtenha dos indivíduos, por mais
numerosos que sejam, a prática dessas virtudes; é preciso que elas sejam
incorporadas às instituições. As virtudes particulares passam com os homens que
1
Desconheces que tudo quanto existe costuma durar e subsistir enquanto é uno, mas costuma
igualmente perecer e se dissipar quando a unidade se desfaz? (N. do T.).
54
as praticam. As nações são seres permanentes. Se as virtudes são o seu
sustentáculo e fundamento, devem ser perpétuas; e essa perpetuidade só pode
ser encontrada nas instituições estáveis.
A primeira dessas instituições, a mais fundamental, aquela que é de criação
divina, é a família. A família, dissemos, é a célula orgânica do corpo social. É nela
que se encontra o centro das virtudes morais e sociais; é dela que as vimos
espraiar-se e penetrar com sua força todos os organismos sociais e o próprio
Estado.
Passou-se dessa maneira com todos os povos que chegaram a uma
civilização.
Ora, a família não existe mais na França. Esta afirmação poderá surpreender;
mas ela espanta apenas aqueles que, vendo nosso país no seu estado atual,
jamais tiveram idéia do que ele era outrora e do que ele deve ser.
Em tempos idos, a família francesa, como a família da sociedade antiga,
constituía um todo denso e homogêneo, que se governava com inteira
independência relativamente ao Estado, sob a autoridade absoluta de seu chefe
natural, o pai, e na via das tradições e dos costumes legados por seus ancestrais.
Atualmente, a família está a tal ponto dependente do Estado que o pai não
tem mais nem mesmo a liberdade de educar seus filhos como sua consciência e as
tradições de família dizem que deve ser. O Estado se apodera deles, com a
vontade legalmente proclamada de fazer desses meninos crianças sem-Deus e,
conseqüentemente, sem-costumes. E os pais de família perderam de tal maneira o
sentimento do que eles são, que deixam acontecer!
É que não temos mais na França, acerca da família, a idéia que dela se tinha
outrora, a idéia que dela tiveram todos os povos que vivem e que progridem. Nós
não a percebemos mais senão como ela é na presente geração. Ela não forma
mais em nosso pensamento, e mesmo na realidade, com as gerações precedentes
e as gerações subseqüentes, esse todo homogêneo e solidário que atravessava
os tempos com sua viva unidade.
Em uma das conferências que proferiu no Oratório, monsenhor Isoard disse
acertadamente:
"A vida do indivíduo é una, mas a análise descobre nela três elementos, as
forças diversas de três tempos distintos. Esse homem já viveu em outras
existências. Ele tem o sentimento de ter vivido em seu avô, em seu bisavô. O que
eles pensaram, ele reencontra dentro de si mesmo. A vida de seus ancestrais é o
começo da sua, é sua primeira época. A segunda, a presente, a vida individual,
é como uma eflorescência da primeira. Eu continuo a obra do meu bisavô,
acrescento ao seu pensamento; o que ele desejaria fazer, eu faço, eu prolongo sua
ação neste mundo. Ah! viverei longamente sobre esta terra, na qual já conto
tantos anos de infância pelos meus antepassados, de adolescência pelo meu
pai, de maturidade por minha própria existência! É esta terceira vida que ele ama,
que ele contempla incessantemente. Ele viverá no filho, no neto, no bisneto. Seu
bisavô percebia-o de bem longe, na bruma, quando trabalhava, conservava,
entesourava. E ele, ele olha desse mesmo ponto de vista para a frente: ele pensa,
deseja, edifica para o bisneto, para aqueles que estão lá, tão distantes, nos limites
do horizonte. E, dessa forma, todo o homem que vive em um tempo no qual reina
o espírito de tradição é um em meio a numerosas gerações. Ele vive nelas. Ele
tem esse sentimento, de preparar sua própria vida naqueles que o precederam,
2
que ele continuará a viver por muito tempo naqueles que virão após ele".
2
O japonês Naomi Tamura, voltando de uma viagem aos Estados Unidos, publicou um livro sobre a
família. Ele explica que no seu país o casamento repousa sobretudo sobre a idéia de estirpe. "A vida
de um homem, diz ele, tem menos importância que a vida de uma família. Sob o regime feudal, o
55
Em seguida ele relata um colóquio que tinha ouvido um mês antes entre
nosso Monsieur e seu capataz. Este dizia: "No último mês de dezembro fez
trezentos e quarenta e sete anos que nós estamos com Monsieur, e o outro
respondia: Nós , nós estávamos aqui antes de você; não sei exatamente o número
de anos, sei apenas que faz mais de seiscentos anos". Monsenhor Isoard
assinala: "Eis aí dois homens nos quais ainda não foi esmagado, torturado, um dos
mais profundos, dos mais poderosos sentimentos do homem. É este sentimento
que faz o espírito de tradição, espírito que pode ser contrariado na sua expansão,
cujo esforço, por um momento, pode ser quebrado, mas que é indestrutível,
porque o homem é feito para a vida".
O Estado, nascido da Revolução que retirou da família francesa sua
independência, também elaborou leis para tirar-lhe essa coesão e essa
estabilidade.3
Entre os numerosos sofismas que J. J. Rousseau, o doutor do Estado
revolucionário, o evangelista da sociedade moderna, tirou da pretendida bondade
inata do homem, encontra-se este: "Os filhos não permanecem ligados aos pais
senão pelo tempo em que têm necessidade dele para se conservarem. Logo que
essa necessidade desaparece, o vínculo natural se dissolve. Os filhos, livres da
obediência que devem ao pai, o pai, livre dos cuidados que devia aos filhos,
retornam todos igualmente à sua independência; se continuam a permanecer
unidos, não é mais naturalmente, é voluntariamente, e a própria família só se
mantém por convenção".4
Essas palavras rebaixam o homem ao nível dos animais. Aí, com efeito, o
vínculo se dissolve assim que cessa a necessidade. A Revolução, que quis fazer
entrar nos costumes, por suas leis, todas as idéias de Jean-Jacques, não deixou
de apoderar-se desta e dela tirou a lei do divórcio. Abolida pela Restauração,
essa lei antifamiliar foi promulgada de novo pela atual República, que a agrava a
cada dia.
A lei de 18845 fez esta restrição, que o artigo 298 do Código Civil, que proibia
em caso de adultério o casamento entre os cúmplices, tinha conservado.
A lei de 15 de dezembro de 1904 ab-rogou o artigo 298.
No dia 13 de julho de 1907, o interstício imposto aos divorciados para que
pudessem contratar novo casamento, foi abreviado, com antecipação do seu início.
No dia 5 de junho de 1908 uma nova lei tornou automática a conversão das
separações de corpos em divórcio, que, até então, era facultativa. Ao mesmo
tempo foi autorizada a legitimação dos filhos adulterinos e incestuosos.
Um projeto de lei que estabelece o divórcio por mútuo consentimento é objeto
de um parecer muito favorável na Câmara dos Deputados.6
castigo mais terrível era a extinção de uma família que existia há centenas de anos; e ainda nos nossos
dias todo japonês instruído crê que a extinção de sua estirpe é a maior calamidade que pode tocar um
ser humano.
3
Não somente as leis, mas quantas instituições parecem feitas para contribuir para o deslocamento da
família! Tomemos por exemplo as sociedades de auxílio mútuo; elas são certamente dignas de
encorajamento e de elogio. Elas põem em comum os riscos,para tornar seu peso mais leve, e as
economias, para aumentar-lhes a eficácia pela segurança. Mas é a individualidade que lhes serve de
base; elas ignoram a família. Nós temos sociedades de homens, sociedades de mulheres, e mesmo
sociedades de crianças. Elas não vêem na família uma sociedade indissolúvel, um todo compacto.
Elas quebram-lhe a coesão.
4
O Contrato Social , cap. II.
5
O promotor do divórcio é o judeu Naquet. Ele recebeu em 1884 as felicitações da Maçonaria. A
Loja de Bar-le-Duc escreveu-lhe: "É uma desforra do Estado sobre a Igreja, e um caminho para a
separação desses dois velhos aliados".
56
A lei de 13 de julho de 1907 trouxe um outro atentado à família,
enfraquecendo-lhe de novo a autoridade. Sem dúvida é necessário um chefe em
toda sociedade. O chefe da família é o homem; o apóstolo São Paulo limita-se a
lembrar, sobre esse ponto, a instituição divina. A nova lei decidiu que, qualquer
que seja o regime adotado pelos esposos, a mulher poderá administrar os produtos
do seu trabalho pessoal e as economias daí decorrentes, sem autorização do seu
marido.
Sem dúvida, havia mulheres que sofriam com isso; mas não se remediam as
desordens particulares mediante atentados contra os princípios.
Um dos órgãos da democracia cristã, o Le Peuple Français, felicitou os
legisladores por esse "retorno ao princípio superior do nosso direito, que é o
respeito à dignidade e à independência da pessoa humana", quer dizer, felicitava o
legislador pela introdução da democracia na família.
A Restauração, que havia anulado a lei do divórcio, tinha feito o trabalho
pela metade. Ela tinha deixado subsistir o casamento civil, outra invenção
revolucionária, cujo objetivo era retirar do casamento a sanção divina, e cujo
efeito era de retirar da família a coesão que lhe dão os vínculos selados pelo
próprio Deus.
Para rematar a desorganização da família, o Código Civil prescreveu a
partilha igual e em natureza, entre os filhos, dos bens móveis e imóveis deixados
pela morte do pai.7 Os efeitos dessa lei são desastrosos, tanto para o Estado
quanto para a família; ela vem juntar-se ao divórcio e ao casamento civil para
obter que a família francesa não tenha mais, não possa mais ter a estabilidade que
6
"A lei do divórcio, disse Paul Bourget, foi feita em nome dos direitos do indivíduo, contra o vínculo
da família. É inevitável que ela tenda cada vez mais a desatar esse vínculo até que acabe por rompê-
lo inteiramente. Todas as razões que foram válidas para autorizar o divórcio, são igualmente válidas
para sua indefinida extensão, e asseguro jamais ter compreendido que objeção os partidários do
princípio individualista, do qual falam os autores de Duas Vidas , puderam encontrar na lógica desse
memorável escrito. (No romance Duas Vidas, Paul e Victor Margueritte acabavam de fazer-se os
apóstolos do "alargamento do divórcio").
"Esses romancistas tiveram o mérito não somente de corporificar suas teorias numa fábula
emocionante e forte, mas também de tirar as conclusões com uma singular nitidez. Estou persuadido
de que o essencial de seu projeto não tardará a entrar no Código, posto que num intervalo de tempo
muito curto será ultrapassado, e que essa oferta extra de facilidade irá assim se agravando até o dia em
que a lei do divórcio tiver manifestado a conseqüência que realmente traz consigo: a substituição da
Família pela União livre".
7
Os laços de família, tais como o Código os deixou subsistirem, são ainda estreitos demais para o
gosto da democracia. O relator do projeto de lei sobre a aposentadoria dos trabalhadores, Colin,
professor de direito em uma faculdade do Estado, pensa que é chegada a hora de dar à constituição
da família um novo golpe de picareta.
"Quanto à preocupação, diz em seu relatório, de manter os vínculos nas mesmas famílias,
preocupação que era dominante no nosso antigo direito, e da qual não souberam talvez libertar-se os
redatores do Código Civil, é evidente que ela não deveria ter nenhum peso nas preocupações de um
legislador que estabelece normas para uma sociedade na qual o triunfo das idéias democráticas não se
discute mais..."
Após considerações de ordem moral, ou melhor, imoral, Colin chega às conclusões práticas de seu
projeto, que são:
"1ª A supressão da herança colateral, a partir do quarto grau;
"2ª A redução dos direitos do cônjuge sobrevivente à metade da sucessão de seu consorte, devendo
a outra metade retornar ao Estado;
"3ª A proibição de qualquer devolução de linha paterna à linha materna, e reciprocamente, nas
sucessões deferidas aos ascendentes e aos colaterais..."
Assim, o Código Civil, que já havia desenraizado a família francesa, não realiza com suficiente
pressa sua obra de destruição.
57
lhe permitia outrora atravessar os séculos. E no entanto, essa estabilidade se
coaduna tão bem com a ordem desejada por Deus, que a encontramos ensinada
em toda a Bíblia.
8
Disposição testamentária pela qual o testador institui dois ou mais herdeiros ou legatários, impondo
a um (ou alguns) deles a obrigação de, por sua morte, transmitir ao(s) outro(s), a certo tempo e sob
certa condição, a herança ou o legado. (N. do T.).
59
"Eu me vanglorio, escreve, no seu Livro de família, Pierre de Fresse de
Morival, que meus filhos se lembrarão com reconhecimento e jamais esquecerão
que sempre usei, relativamente a mim e para minhas necessidades pessoais, a
mais rigorosa economia; que, juntamente com minha cara e bem-amada esposa,
trabalhamos constantemente e sem descanso, durante todo o curso de nossa vida,
para a conservação de nossa pequena fortuna, e que, a nosso exemplo, para
reconhecer o que fizemos por eles e para secundar nossos desejos, eles viverão
em paz, cooperando mutuamente para o bem-estar recíproco deles".
"Cada família de Judá e de Israel, diz a Sagrada Escritura, vivia em paz sob
9
sua vinha e sua figueira". Era assim na nossa França, e para que assim fosse, os
filhos eram criados no pensamento de que, após a morte dos pais, o patrimônio
não podia ser dividido, e a casa paterna, asilo de paz consagrado por tantas
lembranças e virtudes, não podia ser vendido sem crime. O que podia ser
partilhado era o produto líquido do trabalho comum, para o qual tinham concorrido
os diversos membros da sociedade doméstica atual; mas a obra dos ascendentes
devia ser conservada intacta, para ser recolocada fielmente nas mãos daqueles
que, amanhã, nos séculos seguintes, continuariam a manter a família que os
primeiros autores tinham fundado. Se um de seus descendentes violasse o pacto
e dissipasse o bem comum, carregaria diante de sua posteridade a vergonha de
haver feito decair a família. "Nosso pequeno bem, diz Pierre-César de Cadenet de
Charleval, cresceu pouco a pouco pela boa administração de nossos fundadores.
É preciso reconhecer que o luxo não estava tão difundido como no presente. O
primeiro que se afastou desse uso foi meu avô. Ele quis ir a Paris, e em um ano
gastou 14.000 libras... Pouco a pouco o luxo imperou, e não se fizeram mais
capitais; hoje temos muita dificuldade de nos manter com o que resta".
E Antoine de Courtois, que já citamos: "Enquanto este domínio estiver com a
família, ela sempre terá uma existência honrada. Não me detenho no pensamento
de que meus descendentes possam se ver na necessidade de vendê-lo. Vender
os campos paternos é renegar o nome dos pais e deserdar seus filhos".
Charles de Ribbe, que estudou numerosas famílias antigas nos documentos
que elas deixaram, e particularmente nos livros de razão, diz: "Na sua maioria
humildes na origem, elas se elevaram degrau a degrau; cada geração acrescenta
uma nova pedra ao edifício de sua fortuna. Elas trabalham energicamente, elas se
empenham em bem pensar e em bem agir, elas constróem boas casas (era o
nome então consagrado), casas paternas, honradas, e que são o centro de uma
dignidade respeitada por todos".
Com sua estabilidade, seu espírito de união, suas tradições de trabalho e de
vida austera, a casa paterna de outrora, na qual se formava uma longa série de
gerações de pessoas de bem, foi uma instituição eminentemente social e
verdadeiramente cristã. Assim, ela era objeto da veneração dos homens.
Hoje, a casa paterna não merece mais esse nome, porque ela não é mais a
sede permanente e durável da paternidade. Com a morte dos pais, ela é vendida
a preço que será dividido, como se ela não pertencesse à família, como se nada
fosse além de um hotel momentaneamente alugado. Com ela é vendido o
patrimônio. Por pequeno que seja, ele é objeto de reivindicações que se apegam
às menores parcelas; seus fragmentos se dispersam, como uma poeira
infecunda. Quanto mais filhos há, quer dizer, quanto mais moral é a família, mais
é impossível de fugir às conseqüências dessa irresistível liquidação. A família
fica condenada ao estado nômade, ela fatalmente perece. A cada trinta anos, em
9
Livro dos Reis, III, cap. IV, 25.
60
média, uma liquidação forçada é executada. "Funcionando, diz Ribbe, à maneira
de uma foice, ela [a partilha obrigatória] corta a cepa do tronco doméstico".
61
CAPITULO VIII
FAMÍLIAS-TRONCOS
1
Depois da morte de sua mãe, Tobias partiu de Nínive com sua mulher, seus filhos e seus netos, e
voltou parar a casa de seus sogros. Encontrou-os em perfeita saúde, numa ditosa velhice. Teve para
com eles todas as atenções, e fechou-lhes os olhos. Tomou posse da herança da casa de Raguel, e viu
os filhos de seus filhos até a quinta geração. Morreu com alegria, tendo vivido noventa e nove anos no
temor do Senhor, e seus filhos sepultaram-no. Toda a sua parentela e toda a sua descendência
perseverou numa vida íntegra e santo procedimento, de modo que foram amados tanto por Deus
quanto pelos homens e por todos os seus compatriotas.
62
A família-tronco mantém-se através das gerações como a família patriarcal,
mas ela tem mais flexibilidade e se presta melhor ao aperfeiçoamento.
Ela tem, como a família patriarcal, um duplo elemento de estabilidade e de
perpetuidade: um, material, o lar; outro, moral, a tradição.
O interesse que a família-tronco considera como maior e que ela coloca antes
de todos os outros é a conservação do bem patrimonial transmitido pelos
antepassados. A família é semelhante a uma colméia: novos enxames de abelhas
aí nascem e dali partem, mas a colméia não deve perecer.
Para mantê-la, os pais, a cada geração, associam à sua autoridade aquele de
seus filhos que julgam mais apto para trabalhar segundo o propósito deles, e a
continuar após sua morte a obra da família: o cultivo da propriedade familiar ou o
funcionamento da indústria. Este filho não é de direito o primogênito, ele o é
quase sempre de fato. O primogênito parece designado pela Providência, ele se
presta melhor a dar seu apoio ao pai, ele pode melhor cuidar da educação de seus
irmãos e irmãs. Ele se prepara desde cedo para as obrigações que lhe são de
alguma forma impostas pela vontade divina. No momento de seu casamento ele é
instituído herdeiro da casa e do domínio ou da oficina; ou melhor, ele é constituído
depositário para transmitir esses bens, após tê-los feito valorizar, à geração
seguinte. Em Provence, ele é chamado o sustentáculo da casa.2
2
Te voilà fort et grand garçon Eis-te homem quase feito,
Tu vas rentrer dans la jeunesse Vais entrar na puberdade;
Reçois ma dernière leçon Recebe minha última lição:
Apprends quel est ton droit d’ainesse. Saibas qual é teu direito de primogenitura.
Ainsi que mon père l’a fait Assim como meu pai procedeu,
Un brave aîné de notre race Um bravo primogênito da nossa estirpe
Se montre fier et satisfait Mostra-se orgulhoso e satisfeito
En prenant la plus dure place. Em tomar o lugar mais difícil.
Du poste où le bon Dieu l’a mis Do posto no qual o bom Deus o colocou
Il ne s’écarte pas une heure; Ele não se afasta um só momento;
Il y fait tête aux ennemis, Aí ele enfrenta os inimigos,
Il y mourra s’íl faut qu’il meure! Aí ele morrerá se for preciso!
Nos chers petits seront heureux, Nossos queridos filhos serão felizes,
Mas il faut qu’en toi je renaisse. Mas é preciso que eu renasça em ti.
Veiller, lutter, souffrir pour eux... Vigiar, lutar, sofrer por eles...
Voilà, mon fils, ton droit d’aînesse! Eis aí, meu filho, teu direito de primogenitura!
Victor de Laprade
63
Essa qualidade impõe-lhe os encargos de chefe da família. Ele tem a
obrigação de criar os irmãos mais jovens, de dar-lhes uma educação de acordo
com a condição da família, de dotá-los e de estabelecê-los com a economia
realizada ano após ano pelo trabalho de todos. Se o herdeiro morre sem deixar
filhos, um dos membros estabelecidos fora do lar deixa sua casa e retorna para
assumir os deveres de chefe. Esses deveres compreendem, além dos que já
mencionamos, a manutenção do lar e de suas dependências, a guarda do jazigo
dos ancestrais, a celebração dos aniversários religiosos etc. Tudo isso impõe-lhe
uma existência severa e frugal cujo exemplo é bom para iniciar as gerações jovens
3
na virtude.
"Não se é digno de governar os homens, diz Bonald, quando não se percebe a
influência sobre os hábitos de um povo, quer dizer, sobre suas virtudes, de uma lei
que, constituindo cada família como a própria sociedade, aí estabelece de
alguma maneira a realeza pelo direito de primogenitura, e a indivisibilidade e
quase inalienabilidade do patrimônio pela necessidade de conveniência em que
estão os irmãos de pegar em dinheiro sua porção legítima, e de deixar na casa
paterna a integridade das posses. Essa casa foi a residência de meus pais, ela
será o berço dos meus descendentes. Aí vi a velhice sorrir para meus primeiros
trabalhos, e verei eu mesmo a infância ensaiar suas formas nascentes. Esses
campos foram cultivados por meus pais e eu mesmo os cultivo para meus filhos.
Lembranças assim caras, sentimentos tão doces ligam-se ao mais poderoso
gosto do coração do homem, o gosto da propriedade, e faz a felicidade do
3
Edmond Demolins viajava um dia a bordo de um navio norueguês. Ele sabia que a propriedade do
camponês da Noruega é um pequeno reino que o pai transmite integralmente a um de seus filhos.
"Eu quis, conta Demolins, saber o que o capitão do navio pensava da partilha das sucessões no seu
país. Sua opinião me interessava tanto mais quanto nosso homem, não tendo sido designado herdeiro
por seu pai, parecia não possuir nenhuma razão pessoal para ser favorável à transmissão integral.
"No que concerne à sua sucessão, o pai, disse-me textualmente, faz o que lhe dá na cabeça . Ele
escolhe sozinho e sem controle aquele de seus filhos ao qual quer deixar seu barco de pesca e sua
propriedade rural.
Nessas condições, disse-lhe eu, qual é o destino dos filhos que não herdam da propriedade?
O pai ajuda-os a se estabelecerem, dando-lhes somas de dinheiro de que pode dispor.
Ele dá a cada um deles uma soma igual?
Fiz essa pergunta a fim de saber se as idéias de partilha igual, tão caras aos franceses, excitariam
alguma simpatia no espírito de meu interlocutor.
Ele me olhou com espanto, depois respondeu: "Mas isso não seria justo. Os filhos não são todos
iguais: uns têm mais sorte ou mais qualidades do que os outros, e logram rapidamente obter uma
posição; para esses o pai dá pouco ou não dá nada, a fim de poder ajudar mais eficazmente os outros.
"Ademais, acrescentou, o sucesso na vida não provém do dinheiro de que se dispõe, mas das
qualidades pessoais. Tanto vemos ricos que se arruínam por sua incapacidade, quanto pobres que se
elevam à riqueza pelo trabalho. Um homem deve saber prover a si próprio".
Essa resposta me surpreendeu: ela coloca a questão no seu verdadeiro terreno. Com sua brutalidade,
nossa partilha igual não é, em cada família, senão uma fonte permanente de desigualdades. A
apreciação do pai é mais justa, porque ela pesa, para cada filho, as desigualdades da natureza. Ela
restabelece o equilíbrio e disso resulta dar a cada um o socorro proporcionado à sua necessidade. Ela
não rebaixa o pai ao papel de um simples caixa, mas eleva-o à dignidade de juiz e de eqüitativo
despenseiro da fortuna que soube ganhar ou conservar.
Nessas condições, o pai não é levado a limitar o número de filhos, porque ele não considera cada
recém-nascido como um credor que deve reclamar sua parte do domínio ou diminuir aquela de seus
irmãos e irmãs.
Interroguei o capitão a propósito da situação dessas últimas.
Elas não têm dote. "Em semelhantes condições, observo, uma francesa dificilmente encontraria um
marido. Não conheço nenhum norueguês, respondeu o capitão, que se tenha detido por essa
consideração. Nós pensamos que um marido deve ser capaz de sustentar sua família".
64
homem, assegurando-lhe o repouso da sociedade; digo mais, asseguram a
perpetuidade. No país onde, pela igualdade das partilhas, a lei força os filhos a
venderem tudo o que poderia lembrar-lhes os pais, jamais há família; direi mais,
jamais há sociedade, porque a cada geração a sociedade termina e recomeça.
"Aí, nenhum dos filhos tem interesse em permanecer perto de seus pais para
trabalhar gratuitamente para melhorar um bem do qual os irmãos, por ocasião da
morte do pai, retirarão tanto quanto ele. Os filhos, quando estão com idade de
trabalhar, deixam a casa paterna para procurar salários mais altos em outras
explorações agrícolas ou em estabelecimentos industriais. Os pais, entretanto,
avançam em idade e logo a velhice ou as enfermidades não mais lhes permitem
cultivar seu bem. Eles o vendem, pedaço a pedaço, na medida de suas
necessidades, ou o deixam depreciar; e desde que não mais estão nesta terra, os
filhos vêm partilhar o que resta, algumas vezes amaldiçoam seu pai pelo que ele
deteriorou do patrimônio, ou mais freqüentemente brigam entre si por essa partilha;
e os corações ficam ainda mais divididos do que retalhadas as propriedades.
"E a mãe, se sobrevive ao esposo, a mãe, única autoridade que a infância
reconhece e que a juventude ainda respeita, que se tornará? Viúva de seu marido,
viúva de seus filhos, os quais, sem ponto de referência que os una, vão cada qual
para seu lado; ela vê o leito nupcial ser vendido, o berço no qual ela tinha aleitado
seus filhos, a casa pela qual ela deixou a casa paterna e na qual ela acreditava
terminar seus dias; ela fica isolada, sem consideração e sem dignidade,
abandonada ao mesmo tempo pela família à qual ela deu a vida, e por aquela da
qual ela a havia recebido.
"E os mais moços têm motivo para se felicitarem, tanto quanto se tem para
crer na igualdade das partilhas? Sem dúvida, em algumas famílias opulentas e
pouco numerosas, as primeiras partes são maiores; mas cada filho quer constituir
uma família; e esse bem inicialmente dividido em pequeno número, divide-se de
novo entre um número maior, e cedo ou tarde esse desmembramento cresce em
proporção geométrica. Entre os pequenos proprietários esse mal faz-se sentir na
primeira geração; cada qual, no entanto, permanece ligado à sua pequena fração
de propriedade, atormenta-se e extenua-se para dela retirar uma subsistência
medíocre, que teria obtido com menos esforço e mais proveito numa outra
profissão.
"A igualdade das partilhas dá um golpe mortal na propriedade. Que interesse
pode colocar um proprietário na aquisição e na melhoria de uma propriedade que
lhe causa tanto embaraço durante sua vida, e que deve, com sua morte,
desaparecer em frações imperceptíveis e ir engordar o patrimônio de uma família
estranha? Como ousaria ele se dedicar a especulações para melhorias que ele
pode não concluir e que ninguém depois dele continuará?"
6
Celebrou-se pomposamente nestes tempos o centenário da promulgação do Código Civil. É o
mesmo que dizer que se celebrou o mais seguro elemento de dissociação de um povo, jamais
inventado.
Esse código foi feito para destruir as famílias, abolir a hierarquia, aniquilar as tradições locais e
isolar os indivíduos; aniquilar e destruir progressivamente todas as influências territoriais e industriais
em favor do capital anônimo e cosmopolita, quer dizer, do capital judeu. Ele carrega hoje suas
plenas conseqüências. Elas se traduzem por um enfraquecimento universal da moralidade pública e
pela ruína da nação.
67
geração, as famílias burguesas foram colocadas na impossibilidade de se
elevarem, e mesmo de se manterem durante muito tempo no ponto em que o
esforço de seus membros as havia feito chegar. As famílias operárias estão
encerradas na sua condição.7 "Suponhamos, diz Le Play, que ao preço de uma
economia longa e laboriosa, e graças à cooperação de um patrão benevolente, o
pai de família camponês, operário ou empregado, tenha chegado à plena
propriedade de sua habitação; a morte o atinge, e eis que logo os homens da lei
e do fisco intervêm, em nome da legislação que prescreve a partilha igual e em
natureza de todos os bens móveis e imóveis. Eles se introduzem no lar doméstico,
fazem o inventário; enfim, a própria casa é posta à venda. Tudo deve ser
recomeçado. A quem aproveita a venda? Aos filhos? De modo nenhum. Ao
8
fisco; aos homens da lei.
"O Código, diz About, desfez talvez um milhão de fortunas no momento em
que elas começavam a ser construídas. O pai funda uma indústria e morre; tudo é
vendido e partilhado; a casa não sobrevive ao seu dono. Um filho tem coragem e
talento: com sua pequena parte do capital paterno, funda outra casa, é bem
sucedido, torna-se quase rico e morre; nova partilha, nova destruição; tudo deve
recomeçar, com novas taxas".
7
Pode-se dizer que isto foi previsto por Napoleão. Em 6 de junho de 1806, ele escrevia ao seu irmão
Joseph, o rei de Nápoles: "Quero ter em Paris cem famílias, que tenham sido todas elevadas com o
trono e que permaneçam como as únicas consideradas. O que não for elas vai se dispersar por efeito
do Código Civil. Estabeleça o Código Civil em Nápoles; tudo o que não lhe estiver ligado vai se
destruir em poucos anos, e o que quiser conservar se consolidará".
No século XVIII, a rainha Ana tinha também aplicado aos irlandeses católicos a partilha igual e
forçada, conservando aos protestantes a faculdade de testar segundo as leis inglesas; e o solo da
Irlanda passou pouco a pouco às mãos dos lordes protestantes.
8
Os números também têm sua eloqüência. Le Play cita, no norte, seis lotes de terra, vendidos pelo
preço total de 36 francos: exigiram 758 francos e 85 centavos de taxas. No mesmo departamento,
lotes vendidos a 51, 58 e 55 francos, deram lugar a taxas que se elevam respectivamente a 210, 250 e
501 francos e 92 centavos. Em Pas-de-Calais, 37 ares de terra foram vendidos a 845 francos; as
taxas preparatórias elevaram-se a 1.862. Após muitos outros exemplos, ele diz: "Nós poderíamos
apoiar esses fatos com cem mil outros da mesma natureza. Eles se reproduzem sem cessar em cada
uma de nossas localidades".
Georges Michel demonstrou que, na venda das pequenas heranças, a soma das taxas é sempre
superior ao montante do preço de adjudicação. (Une iniquité sociale. Les frais des ventes judiciaires
d'immeubles ). A lei de 1884, é verdade, exonerou os imóveis de valor inferior a 2.000 francos de
certos encargos, mas as estatísticas oficiais estabelecem que as taxas de vendas judiciais são iguais,
se não mais altas do que antes. Há taxas e formalidades demais. Sobre 100 francos o fisco retém
antecipadamente 90 francos, de sorte que a parte dos homens da lei representa apenas 10%.
68
Renan também disse:
"Um código de leis que parece ter sido feito para um cidadão ideal, que
nasce enjeitado e morre celibatário; um código que torna tudo transitório, no qual
os filhos são um inconveniente para o pai, em que toda obra coletiva e perpétua
está proibida, em que as unidades morais, que são as verdadeiras, são dissolvidas
a cada morte, em que o homem prevenido é o egoísta que trata de ter o menos
possível de deveres, em que o homem e a mulher são jogados na arena da vida
nas mesmas condições, em que a propriedade é concebida não como uma coisa
moral, mas como uma coisa equivalente a um gozo sempre apreciável em
dinheiro, um tal código, digo, não pode engendrar nada além de fraqueza e
pequenez. Com sua concepção mesquinha da família e da propriedade, aqueles
que de forma tão triste pagaram as dívidas da falência da Revolução... prepararam
9
um mundo de pigmeus e de revoltados".
Se queremos que a França ainda tenha um futuro, nada mais fundamental,
nada mais necessário do que restituir à família francesa a faculdade de se
recolocar sob o regime da família-tronco, que tenha um lugar de trabalho perpétuo
(campo, fábrica, casa de comércio), encarregado de produzir não somente o pão
quotidiano, mas aquele dos velhos dias e o estabelecimento dos filhos, que tenha
também seu lar encarregado da educação das jovens gerações segundo as
tradições dos ancestrais. Desde que essa liberdade seja devolvida, um certo
número de famílias entrará por elas mesmas nesse caminho, e, após algumas
gerações, encontrar-se-ão muito naturalmente acima daquelas que permanecerão
na instabilidade.
A hierarquia social delinear-se-á de novo pelo próprio fato. A sociedade
fortalecer-se-á na mesma proporção e acabará por se reconstituir.
"Tudo na história, disse muito bem Paul Bourget, demonstra que a energia do
corpo social sempre esteve, como dizem os matemáticos, em função ou em
proporção com a energia da vida de família".
9
Prefácio das Questions contemporaines.
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chegarem, ir ao exterior administrar as feitorias de seus irmãos, patrões ou
estranhos".
A pesquisa agrícola de 1869 está cheia de queixas de nossos agricultores
sobre a inferioridade a que nos condena nosso regime de sucessão. Uma
importante reunião de jurisconsultos formulou em 1883, ao congresso de Nantes,
a conclusão de seus estudos nestes termos:
"A lei civil deve à família e à autoridade paterna que a governa uma proteção
eficaz no que é indispensável à permanência das instituições domésticas. Os
jurisconsultos católicos pedem que a legislação assegure, ou pelo menos e
esperando melhorar, favoreça a transmissão integral do lar e a extensão da quota
disponível, à taxa proposta desde 1803 pelos conselheiros de Estado elevados nas
regiões à condição de família-tronco".
A opinião pública começa pois a entrever os tristes efeitos de uma das mais
10
perigosas aberrações dos homens do Terror. Projetos de lei foram preparados
para conjurar o mal que Robespierre, Pétion, Tronchet e os outros legisladores da
Revolução fizeram à família francesa e à própria nação. Mas esses projetos foram
levados, como tantas outras coisas, pelos acontecimentos de 1870.11
Longe de retornar àquela situação, o regime atual agravou consideravelmente
as dificuldades já existentes para manter nas famílias o bem que as ajuda a se
perpetuarem.
Se os democratas cristãos tivessem empregado seu zelo para o bem do
povo, para esclarecer a opinião pública sobre essa questão, cujas conseqüências
morais, econômicas, políticas e sociais são tão graves, eles teriam seguramente
realizado melhor obra do que incitar o povo a exigir salários impossíveis e que,
ademais, aumentando, outra coisa não fazem senão produzir miséria maior, se
não são acompanhados de um aumento correspondente de moralidade.
"As numerosas classes que vivem de um salário diário estão interessadas, diz
Le Play, na chegada do regime da liberdade testamentária, mais ainda do que
aquelas que encontram em suas próprias posses todos os meios de trabalho.
Aqueles que, depois dessa reforma, adquirissem pela economia o lar doméstico e
os outros bens situados nos primeiros escalões da propriedade, não seriam
desencorajados, como o são hoje, pela perspectiva das liquidações que a partilha
forçada impõe. O operário laborioso e parcimonioso teria a garantia de unir à
posse de seus bens a emancipação de sua posteridade: ele seria, pois, mais
ardoroso em adquiri-los pelo trabalho e pela virtude. Sob as mesmas influências,
as gerações subseqüentes estariam, em geral, no nível alcançado pelo fundador
do lar, no caso em que elas não se elevassem mais alto, juntando a esse lar
algumas novas dependências".
Vários que desejam fixar o pequeno proprietário e seus filhos propuseram
constituir, como se fez outrora na América sob o nome de homestead, um bem de
família que uma lei tornaria impenhorável. Decretar a impenhorabilidade seria
esvaziar ou diminuir, no operário proprietário de sua casa, ou no camponês
proprietário de sua terra, a consciência da responsabilidade, e, mediante isso,
apequenar a virtude necessária para fundar uma família. Ademais, o primeiro
10
A partilha forçada pertence à época mais sinistra da Revolução. Foi promulgada em 7 de março de
1793, com o propósito declarado de destruir, na família, a autoridade paterna; e, no país, todo o
espírito de tradição. Veja-se o Moniteur daquela data. Jamais se viu num povo civilizado interesses
tão grandes suprimidos por razões tão fracas quanto aquelas que foram dadas para destruir instituições
que datavam de vinte séculos.
11
Ver a respeito dessa questão: Les lois de succession appréciées dans leurs effects économiques
par les Chambres de Commerce de France, pelo conde de Butenval, antigo ministro plenipotenciário,
antigo conselheiro de Estado. Paris, Secretariado das Uniões da paz social.
70
efeito da declaração de impenhorabilidade seria destruir o crédito do pai de
família. Ele não encontrará mais negociante de animais para vender-lhe uma vaca
a crédito, nenhum pedreiro para reparar sua casa se ele não pagar
antecipadamente. A lei impedirá o cultivador de tomar dinheiro emprestado, o que
poderia ser excelente: mas ela o colocará na impossibilidade de conseguir
instrumentos de trabalho ou algum gado que seja na entressafra.
Que grande negócio para um camponês conservar um teto, uma casa de
família, se não tem nenhum recurso para viver ali; uma terra, se não tem os meios
de valorizá-la!
É na alma e não na lei que é preciso pôr a força que dá às famílias a energia
necessária para se elevarem socialmente. Deve-se pedir à lei apenas que levante
os obstáculos que impedem essa força de funcionar.
Permitindo ao operário fundar um lar, a reforma do código nesse sentido
permitiria também às famílias burguesas que crescessem, que se erguessem por
seus próprios bens. Mas, como observa Le Play, aí se encontra a objeção que, no
espírito dos democratas, se levanta contra ela. É que ela aproveitaria aos ricos
como aos operários, é que ela favoreceria o restabelecimento da hierarquia na
sociedade.
Na América do Norte, as filhas, não tendo dote, são procuradas apenas por
suas qualidades; e os filhos, não contando com a fortuna paterna, trabalham.
Cada geração deve buscar sua própria subsistência: tal é a máxima colocada em
prática na Inglaterra assim como na América.
"Se as leis têm por efeito, diz Paul Leroy-Beaulieu, levar a maior parte da
nação a não ter senão um filho por família, é preciso convir que essas leis, por
sacrossantas que se as considerem, não somente ultrajam a moral, mas ainda
conspiram contra a grandeza nacional". Em 1815, os prussianos consideravam
que os aliados propiciavam aos franceses um destino doce demais: "Tranqüilizai-
vos, disse o plenipotenciário inglês, lorde Castebreagh, a França tem um regime de
sucessão que a enfraquecerá mais do que saberíamos fazer".
72
CAPÍTULO IX
FAMÍLIAS TRADICIONAIS
1
Interroga as gerações passadas, e examina com cuidado a experiência dos antepassados:
por sermos ignorantes das coisas de ontem, nossos dias sobre a terra passam como a sombra.
Eles podem instruir-te, falar-te, e de seu coração tirar este discurso:
"Pode o papiro crescer fora do brejo,
e o junco germinar sem água?"
73
Há quarenta anos, em 15 de novembro de 1871, Emile Montégut escrevia na
Revue des Deux-Mondes: "Enquanto um vestígio de tradição uniu a nova França à
França antiga, as conseqüências da Revolução não puderam vir à tona. Mas logo
que a roda do tempo girou o suficiente para que não subsistisse nenhum resquício
de tradição, a hora da lógica soou; e as gerações contemporâneas, criadas numa
sociedade em que somente a revolução está de pé, escutam sem admiração
palavras que, trinta anos antes, lhes teriam enchido de horror e de medo".
Desde 1871 a roda do tempo produziu quarenta novos anos, durante os quais
o espírito revolucionário acabou por triturar os últimos vestígios das tradições da
antiga França. E se, há quarenta anos, tinha-se chegado a escutar sem admiração
palavras que antes teriam enchido de horror e de medo, hoje assistimos
impassivelmente a atos que, na antiguidade pagã, teriam revoltado os povos mais
bárbaros. Em toda a extensão da França, as escolas nas quais se ensinava às
crianças a conhecer, amar e adorar a Deus, estão fechadas por este motivo
abertamente declarado pelos governantes: eles querem uma sociedade na qual só
haja ateus.
De onde vem essa impassibilidade? Do fato de que não há mais nos espíritos
idéias fixas, princípios solidamente ancorados nas almas, mas somente idéias
vagas e flutuantes, incapazes de porem energia nos corações. E por que, nos
nossos dias, as idéias flutuam assim? Porque as idéias-mães, as idéias-princípios
não foram impressas nas almas das crianças por pais que tivessem sido, eles
próprios, petrificados pelos ensinamentos dos antepassados, imbuídos já dessas
verdades pelos seus ancestrais. Em uma palavra, porque não há mais tradições
nas famílias.
Havia outrora, e por toda a parte, uma idéia quase religiosa ligada a essa
expressão "tradições de família", entendida em seu significado elevado, enquanto
designativa da herança das verdades e das virtudes, no seio das quais se
formaram os caracteres que forjaram a duração e a grandeza da casa.
Hoje, essa palavra não diz mais nada às novas gerações que chegam à vida.
Elas aparecem num dia para desaparecer no dia seguinte, sem ter recebido e sem
deixar após elas essa fonte de lembranças e de afetos, de princípios e de
costumes, que outrora passavam de pai para filho e faziam chegar as famílias que
lhes eram fiéis acima daquelas que os menosprezavam. Toda a família que tem
tradições deve isso, geralmente falando, a um de seus ancestrais, no qual o
sentimento do bem foi mais forte do que no comum dos homens e ao qual foi dada
a sabedoria e a vontade para inculcá-lo nos seus.
“A verdade é um bem, diz Aristóteles, e uma família na qual os homens
virtuosos se sucedem é uma família de homens de bem. Essa sucessão de
virtudes ocorre quando a família remonta a uma origem boa e honesta; porque isso
é próprio de um princípio que produz muitas coisas semelhantes a ele próprio; é de
alguma maneira sua obra formar seu semelhante. Quando, pois, existe numa
família um homem tão ligado ao bem que sua bondade se comunica a seus
descendentes durante várias gerações, segue necessariamente que é uma família
2
virtuosa".
Todo o homem que quer fundar uma "família virtuosa" deve primeiro persuadir-
se de que seu dever não se limita, como quer J.J. Rousseau, a prover às
necessidades físicas de seu filho, tão longamente que este fique na impotência de
manter por si próprio sua vida corporal. Ele lhe deve a educação intelectual, moral
e religiosa. O animal tem a força pela qual ele socorre as necessidades corporais
2
Fragmento conservado por Stobée.
74
de seus filhotes, e isto lhes basta. A criança, ser moral, tem outras necessidades,
e é por isso que, além da força, Deus deu ao pai de família a autoridade para
regrar a vontade de seus filhos, fazê-los entrar na via do bem, nela mantê-los e
nela fazê-los progredir. Essa autoridade Deus a quis permanente, porque o
progresso moral é obra de toda a vida. E como, segundo as intenções da
Providência, o progresso deve se desenvolver e crescer de geração em geração, é
necessário que a família humana não se extinga a cada geração: o vínculo familiar
deve subsistir entre mortos e vivos, atar umas às outras todas as filiações de uma
mesma descendência, e isto entre as raças vigorosas que duram séculos.
O pensamento do homem de bem não deve pois parar em seus próprios filhos,
ele deve ir além, sobre as gerações que seguirão e fazer com que aquilo que é
virtude se torne tradição entre elas.
Charles de Ribbe empregou o melhor de sua vida para repor no lugar de honra
os livros de razão. Após ter editado os manuscritos de várias antigas famílias,
publicou diversas obras para dar ampla publicidade aos ensinamentos que neles se
encontram, e, finalmente, redigiu, segundo os modelos que tinha sob seus olhos,
Le Livre de Famille, para servir de modelo e assim auxiliar os pais de família que
quisessem pôr em prática o que havia sido praticado por nossos ancestrais. Não
conseguiríamos recomendar suficientemente a aquisição, a leitura e a meditação
desse livro; é dos poucos que podem contribuir grandemente para imprimir à
nossa sociedade degenerada um novo impulso em direção ao bem.
Limitar-nos-emos aqui a dar algumas indicações.
O livro de razão é assim chamado porque nele se dá satisfação aos filhos e
aos filhos dos filhos, nas gerações futuras, da posição da família, de seus
antecedentes, de seus trabalhos, das idéias e dos sentimentos que a guiaram no
caminho da vida e dos costumes que devem assegurar a transmissão dos mesmos
sentimentos e das mesmas virtudes. Ele é o liame moral entre as gerações, cujos
elos, graças a ele, unem-se estreitamente numa comunidade de idéias e de
sentimentos.
O livro deve ser dividido em três partes, correspondentes às três fases da
existência da família. O passado, constituído pela genealogia e pela história do
tronco doméstico. O presente, constituído pelo governo atual. O futuro, constituído
pelos ensinamentos deixados pelos pais e ancestrais aos seus filhos e netos. O
75
livro de razão bem organizado contém assim um resumo de tudo aquilo que
constitui moral e materialmente a família.
Primeiro, a genealogia: "Que nossos filhos, diz André Lefèvre d'Ormessan,
que já citamos, conheçam aqueles dos quais descenderam de pai e de mãe". Por
que principalmente esse conhecimento? "Para que sejam incitados a rezar a Deus
por suas almas e a abençoar a memória dos que, com a graça de Deus, honraram
sua casa e adquiriram os bens dos quais fruem seus descendentes, e que
passarão às outras gerações, se agrada à bondade de meu Criador de dar para
isso Sua benção, como o suplico de todo o meu coração". Em outros termos, a
genealogia da família é a condição primeira para criar e manter o espírito de
família.
Tanto quanto possível, uma curta nota deve ser juntada a cada nome. Toda
família deve tender a ter uma história. O livro de razão é o guardião dessa história.
Os livros de razão publicados nesses últimos tempos mostram-nos, através dessas
curtas observações, como numerosas famílias modestas puderam, pela força dos
costumes, se perpetuar durante vários séculos na mesma região, com as mesmas
virtudes.
3
Pensées de Joubert. Livro XVI.
77
sentimentos? Não. Também não foram os filhos educados pelos espíritos fortes
que tiveram espontaneamente sentimentos piedosos, exatamente opostos aos de
seus pais; vimo-los, mas muito raramente. Essa transformação se explica muito
naturalmente pela SUPRESSÃO QUASE COMPLETA da descendência cética do
século passado. MUITOS DE NÓS SE EXTINGUIRAM; e para os outros eles se
perpetuaram, seja pela minoria que, mesmo na Corte, havia escapado ao
contágio, seja pelos colaterais obscuros, perdidos no fundo das províncias, que
ali tinham CONSERVADO, COM AS ANTIGAS TRADIÇÕES, as idéias religiosas
sem as quais as famílias não se perpetuam".
78
CAPÍTULO X
AUTORIDADE DO PAI SANTIDADE DA MÃE
CULTO DOS ANTEPASSADOS
1
Qual é o filho a quem seu pai não corrige? (Hebreus, XII, 7).
1.a
Particularmente admirável e digna de elogios foi a mãe que encorajava cada um de seus filhos,
cheia de sabedoria (II Macabeus, VII, 20).
1.b
Quem teme o Senhor honra seus pais (Eclesiástico, III, 8).
2
As "lettres de cachet", literalmente, "cartas com o selo, sinete ou lacre real", eram documentos do rei
que continham ordem de prisão ou de exílio, sem julgamento. (Le Petit Robert 1, Dictionnaire
alphabétique et analogique de la langue française; Dictionnaires LE ROBERT, Paris; Nova edição,
revista, corrigida e atualizada em 1990, p. 232. - N. do T.).
79
Esse direito era admitido por todos, mesmo por aqueles que sofriam suas
conseqüências. A autoridade paterna era considerada como sendo de uma
essência superior às outras, e por isso era tão profundamente respeitada. "O
príncipe dá ordens a seus súditos, diz Jean Bodin, no livro em que ele expõe os
princípios de toda sociedade,3 o mestre ao discípulo, o capitão aos soldados...
Mas dentre todos esses não há, excetuado o pai, nenhum ao qual a natureza dê
algum poder de ordenar que seja a verdadeira imagem do grande Deus soberano,
pai universal de todas as coisas". Imagens de Deus sobre a terra: era exatamente
esta a idéia que os filhos tinham de seus pais. Encontramos por toda a parte
pensamentos semelhantes ao que segue, de Etienne Pasquier: "Devemos
considerar nossos pais como deuses na terra, que nos são dados não somente
para nos intermediar a vida, mas para nos fazer felizes através de uma boa
nutrição e uma sábia instrução".
São Francisco de Sales, escrevendo a uma de suas sobrinhas, diz a mesma
coisa: "Eis-vos, pois, junto do senhor vosso pai, que olhais como uma imagem do
Pai eterno; porque é nessa qualidade que devemos honra e reverência àqueles
dos quais Ele se serviu para nos produzir".
Uma autoridade de caráter tão religioso inspirava respeito e tornava fácil a
obediência, estimulava a abnegação pela família e mantinha a concórdia entre os
filhos.
Quebrada no século XVIII pela corrupção dos costumes, a autoridade paterna
foi quase destruída pela Convenção.
No momento em que os homens imbuídos do espírito de Jean-Jacques
Rousseau, que pretende que o indivíduo e não a família seja a unidade social,
tiveram em suas mãos o poder de legislar, apressaram-se em abolir o poder
paterno relativamente aos maiores de vinte e um anos e em enfraquecê-lo perante
os mais jovens. "A voz imperiosa da razão, proclamava um desses legisladores, se
fez ouvir. Não há mais poder paterno. Um homem não deveria ter poderes diretos
sobre um outro, ainda que fosse seu filho".4 A um século de distância tínhamos
ouvido palavras equivalentes na tribuna, por ocasião da discussão das leis sobre a
liberdade de ensino. Assim que o socialismo estiver no poder transformará esses
propósitos em leis. Benoît Malon, no livro Le Socialisme Intégral, diz: O importante
é abolir radicalmente a autoridade do pai e seu poder quase real na família. A
igualdade, com efeito, não será perfeita senão sob essa condição. Os filhos não
valem tanto quanto os pais? Por que dar-lhes ordens? COM QUE DIREITO?
OBEDIÊNCIA NÃO MAIS, SEM O QUE NÃO SE TERÁ IGUALDADE!"
Agora, o pai está diante de seus filhos na situação em que estaria diante de
seus súditos um soberano privado dos meios de reprimir a rebelião. A literatura
age no mesmo sentido da lei, ela combate sem descanso a velhice e a idade
madura através de assertivas que a razão desmente. A própria escola, pelos
conhecimentos que oferece na ordem das coisas materiais, persuade os filhos de
que eles têm uma verdadeira superioridade sobre seus pais, os quais os ignoram,
e os dão-lhes uma espécie de supremacia na família.
Assim, a autoridade paterna não é senão a sombra do que ela era antes da
Revolução. Tocqueville augurava isso para a sociedade doméstica: "Penso, diz,
que à medida que as leis e os costumes se tornem mais democráticos, as relações
entre pais e filhos tornar-se-ão mais íntimas e mais doces; sendo menor a
presença da regra e da autoridade, maiores serão a confiança e a afeição, e me
parece que o laço natural se estreita enquanto o laço social se desata".5
3
Les Six Livres de la République, cap. IV.
4
Cambacérès. Moniteur de 23 de agosto de 1793.
5
T. II, 3ª parte, cap. VIII.
80
Os fatos são contrários a essas previsões, as quais, ademais, a razão não
podia admitir. Hoje todos deploram a ruptura dos laços familiares e suas
conseqüências, que são: o desaparecimento do respeito e da obediência entre os
jovens, sua emancipação, e, como conseqüência, uma extrema corrupção dos
costumes privados e dos costumes públicos; enfim, a decadência da raça e a
sociedade francesa colocada em perigo. Nas classes inferiores o mal se revela
com cinismo. Le Play, no livro L'Organisation du Travail, traz em testemunho os
quadros pungentes traçados por Pénart, no seu discurso de reentrada na corte de
Douai, em 1865; por Bougeau, no seu discurso no Senado, em 23 de março de
1861; e por Legouvé: Les Pères et les Enfants au XIXème. Siècle. Quanto o mal
se agravou ainda mais na última metade do século! Nas classes superiores, as
aparências são mais bem mantidas, mas a realidade não é melhor. Fortalecida
pelo direito à herança, a juventude se revolta freqüentemente contra a disciplina do
lar; ela pretende gozar na ociosidade e na libertinagem a riqueza criada pelo
trabalho dos antepassados.
6
Lamartine, Harmonies Poétiques, III, 9. Apesar dos desvios de sua imaginação, Lamartine sempre
guardou a lembrança de uma educação cristã que sua mãe lhe havia dado. Mais de dois anos antes de
sua morte, ele se ajoelhou, na semana da Páscoa, na Santa Mesa ao lado de sua mãe. Como disse J.
de Maistre: "Se a mãe se impôs o dever de imprimir profundamente sobre a fronte de seu filho o
caráter divino, pode-se estar mais ou menos seguro de que a mão do vício jamais o apagará
inteiramente".
A lembrança de uma santa mãe acompanha por toda a parte o homem virtuoso! Ozanam, falando de
sua mãe, dizia: "Quando sou bom, quando faço alguma coisa pelos pobres que ela tanto amou,
quando estou em paz com Deus ao Qual ela tão bem serviu, vejo que ela me sorri de longe. Algumas
vezes, se rezo, creio ouvir sua oração que acompanha a minha, como fazíamos juntos, à noite, ao pé
do crucifixo. Enfim, freqüentemente, quando tenho a felicidade de comungar, assim que o Salvador
vem me visitar, parece-me que ela O segue no meu miserável coração, como tantas vezes ela O
seguiu, levado em viático, a casas de indigentes".
7
Cours familier de littérature, 1ª conversação, p. 9.
8
Idem.
82
Um servidor a mais para servir o Grande-Mestre,
Um olho, uma razão a mais, para conhecê-Lo,
Uma língua a mais no coro infinito,
Pelo qual, de século em século, Ele deve ser bendito!
9
Cartulf. Instructio epistolaris ad Carolum regem. Migne Patrol. lat. T. XCVI c. 1363.
83
princesas. A virgem de Nanterre e a de Vaucouleurs, Germaine de Pibrac e
Benoîte du Laus, toda uma legião de santas mulheres de todas as condições e de
todos os níveis, fazem penetrar por toda a parte a doce influência de Maria, seu
modelo.
"Assim, enquanto a salvação da Itália vem, antes de tudo, de seus grandes
Pontífices, para nós vem sobretudo do apostolado das mulheres. No último século
(XVIII), reis e magistrados, sábios e mesmo pontífices, estavam adormecidos; mas
as mulheres permaneciam heroicamente fiéis. E quando os homens diziam: "Não
conheço esse homem, Seu reino não é deste mundo!", as mulheres
silenciosamente seguiam Cristo e seu Vigário até o Calvário.
"Devemos a nossas mães e a nossas irmãs a essência de honra e de
devotamento cavalheiresco que constitui a vida da França. Devemos-lhes a fé
católica. Discípulas da Rainha dos Apóstolos e dos Mártires, as mulheres
passaram os seus corações para os corações de seus filhos.
"As mulheres na França são a alma de todas as boas obras: do Tesouro de
São Pedro como da Propagação da Fé; e foi o sopro de suas mães e de suas
irmãs que levou à Roma os defensores da Santa Sé. Conheço mais de um jovem
que estaria entre os zuavos se tivesse seguido os desejos secretos de sua mãe:
não conheço nenhum que uma mãe cristã tenha impedido de estar entre eles.10
O pai podia fraquejar, jamais a mãe; jamais, nem antes, nem durante, nem
depois. Um filho mutilado era seu orgulho, e quando, diante do cadáver do mártir,
Deus dizia-lhe no fundo do coração: Teu filho está comigo, a gratidão apagava sua
dor. Mais que o sangue de seu filho, ela amava sua glória.
"Maria, modelo delas, Maria havia ensinado a essas mães como se sacrifica
um filho único a Deus e à Igreja. "Não, dizia Pio IX ao narrar essas sublimes
imolações, a França, que produz tais santas, não perecerá!"
"Na primeira vez que a heróica viúva de Pimodan viu o Papa, não lhe disse:
"Ó, Santo Padre, restitui-me meu marido!"; ela lhe disse: "Ó, dizei-me que ele está
no céu!" E quando Pio IX respondeu: "Eu não rezo mais por ele", ela não
perguntou mais nada; porque ela compreendeu que ela era viúva de um mártir, e
isto lhe bastou.
"As mulheres são a alma de tudo quanto comoveu a França, e, por seu
intermédio, o mundo. Em Castelfidardo, os zuavos combatiam sob os olhos de
suas mães, presentes em seus pensamentos, e sob os muros do santuário onde a
Rainha dos Mártires gerou o Rei dos Mártires. Todos, marchando contra o
inimigo, repetiam essa frase: "Minha alma para Deus, meu coração para minha
mãe, meu corpo para Lorette". A honra da batalha é canalizada para suas mães,
para Maria, que a todos inspirou. Como os cavaleiros de outrora, como os
vandeanos de mais tarde, foi sobre os joelhos de suas mães que eles apreenderam
a morrer por Deus, pela Igreja e pela pátria".
Num belo estudo publicado na Défense Social e de 16 de abril a 1º de agosto
de 1903, sob o título O Progresso , Favière observa que a civilização moderna se
liga, por suas origens, à antiguidade greco-latina. "O Evangelho, diz ele, as
diferencia, mas as une por causa de suas afinidades. Essa afinidade provém do
fato que Grécia e Roma, contrariamente ao que se passava no Oriente, não
tinham excluído a mulher da vida social, de sorte que o gênio feminino tinha tido
participação no desenvolvimento de suas civilizações, que, por isso, foram mais
aptas que as civilizações do Oriente para receber o enxerto evangélico".
Os germânicos, quando se estabeleceram no império, levaram consigo o
respeito supersticioso que tinham pela mulher. A Igreja purificou esse sentimento,
10
Isto foi escrito em 1862, quando os zuavos pontifícios vertiam seu sangue em defesa da Santa Sé.
84
reservou para a pureza dos costumes o primeiro nível na estima dos homens, e
abrindo assim sobre o mundo todos os tesouros do coração e da inteligência da
mulher, dobrou os recursos e o campo de ação do progresso.
"Foi da mulher, diz Favière, que as nações cristãs receberam o dom da
piedade, é delas que têm essa faculdade das emoções comunicativas que
enternecem as multidões, esses súbitos e irresistíveis despertares que às vezes
erguem os povos acima deles mesmos, de seus interesses comerciais e de seu
repouso, para precipitá-los na via das aventuras sublimes que constituem as
grandes etapas da Humanidade. Que povo sabe melhor disto do que o nosso?
Não foi somente pelo coração que a mulher se associou à obra do progresso; não
foi somente pelo calor e pelo movimento que ela lhe comunicou, que ela veio a
elevar a civilização cristã acima do que o mundo tinha visto; o progresso não foi
menos bem servido por sua inteligência. A inteligência pronta e instintiva da
mulher tem, sobre o mundo moral, olhos cuja penetração não é igualada pela
inteligência masculina... Ela cultiva na família o senso do bem, ela lhe dá a
compreensão das verdades primeiras, ela as ensina por seus atos, por seus
julgamentos, pelas manifestações de sua estima e de sua censura."
Há bem poucos homens entre nós que, de dois séculos a esta data, mesmo
sem o querer, não se deixaram enlaçar pela Revolução. As mulheres, ao contrário,
têm o instinto da verdade como o da caridade. Toda apostasia, toda
pusilanimidade, toda fraqueza de espírito ou de coração encontra nelas juízas
inflexíveis. Elas amam a Igreja e a Pátria, Cristo e Sua Mãe; elas os amam mais
do que a elas mesmas, mais do que às riquezas, mais do que a seus próprios
filhos. Vimos isto, há pouco, em Mentana e em Castelfidardo. E esse amor lhes
confere posição de ciência. Elas são entre nós o firme apoio da sociedade e da
Igreja. A Revolução sabe-o bem. Ela conhece o número de irmãos, de filhos e de
maridos preservados, desviados das sociedades secretas por simples operárias,
por simples camponesas. Sem trégua, o revolucionário é atormentado por essa
guerra feminina. Daí suas queixas, suas conspirações para perverter o coração da
mulher. Mas as mulheres de França tornaram-se aguerridas por cem anos de lutas
incessantes!
O espírito de família engendra o que com muita razão se chamou de culto dos
ancestrais e dele se nutre.
Esse culto existiu entre as nações pagãs, mas logo degenerou. Ele está vivo
nas sociedades cristãs, e nós o vemos, na China, constituir quase toda a
religião.
Entre os pagãos, ele não deve ter consistido, inicialmente, senão de
sentimentos de gratidão: dos filhos pelo pai que os havia educado, e da família
pelo antepassado que havia construído sua condição social, que lhe tinha dado a
lição e o exemplo das virtudes morais em razão das quais prosperara.
Pouco a pouco, à medida que se distanciava a imagem venerada do fundador,
ela tomava um aspecto mais misterioso e produzia nos corações sentimentos de
um caráter mais religioso.
Logo eles se traduziram num culto propriamente dito. Ofereciam-se ao
ancestral sacrifícios sobre sua tumba, e dizia-se-lhe: "Deus oculto, sede-nos
propício!"
Ademais, um altar era erguido no lar da casa familiar. Carvões iluminados ali
brilhavam noite e dia. Eles simbolizavam a alma da família, o espírito da família
recebido dos ancestrais e sempre vivo nela. Infeliz da casa em que o braseiro
viesse a se extinguir! O fogo não devia parar de queimar sobre o altar senão
85
quando a família tivesse perecido inteira. Braseiro extinto, família extinta, eram
expressões sinônimas.
86
CAPÍTULO XI
RECONSTITUIÇÃO DO CORPO SOCIAL
1
Então, revigorado na sua integridade, o bem comum florescerá por inteiro; então o esplendor da
perfeita ordem será aformoseado, e a honestidade revestir-se-á de bela perfeição, se cada qual de per si
realizar dignamente a função que lhe foi destinada, se houver repartição — e não concentração —das
obrigações. (N. do T.).
2
Association catholique, 15 de outubro de 1897.
87
Spencer tem razão quando caracteriza a ascensão do ser social, assim como
a do ser individual, pela passagem da homogeneidade indefinida à
heterogeneidade definida. As diferentes classes, segundo as quais uma população
se eleva nas vias do trabalho e da poupança, da justiça e da honra, da caridade e
da santidade, não são, bem se vê, estabelecidas e impostas arbitrariamente por
um poder extrínseco às famílias e aos indivíduos, como o queria fazer crer a
democracia: elas nascem do jogo da liberdade na massa da nação. Elas
começam a se desenhar desde o próprio nascimento de toda sociedade, e elas se
acentuam dia a dia pelo bom ou mau uso do livre arbítrio e do que disso resulta.
Sempre e por toda a parte, distinguem-se do populacho os homens do povo que
têm mais ardor e perseverança no trabalho e mais moderação na satisfação de
suas necessidades. Entre estes crescem as famílias nas quais as tradições de
trabalho e de moderação, respeitadas e seguidas durante várias gerações,
conduziram à propriedade. Elas constituem a burguesia. Acima delas, a classe
das que, não querendo fruir de seus bens como egoístas, se dedicam ao bem
público.
"Se bem que a nobreza fosse, mesmo na França, o patrimônio de algumas
famílias, diz Bonald, ela era o objeto e o termo dos esforços de todas as famílias,
pois todas deviam tender a se enobrecerem, isto é, a passar do estado privado ao
estado público, porque é razoável e mesmo cristão passar de um estado no qual
se está ocupado apenas a trabalhar para si, a um estado no qual, desembaraçado
da preocupação de adquirir uma fortuna, visto como se a supõe realizada, o
homem é destinado a servir os outros, servindo o Estado. Uma família, na França,
saída do estado de infância, e do tempo em que ela depende de outras famílias
para suas primeiras necessidades, propunha-se o enobrecimento como objetivo
ulterior de seus projetos. Uma vez aí chegada, aí se fixava. O indivíduo, sem
dúvida, podia avançar em grau, de tenente tornar-se marechal de França, e de
conselheiro tornar-se chanceler; mas esses graus, se não eram iguais, eram
semelhantes; as funções, por serem mais abrangentes, não eram diferentes: a
família não podia receber dessa realidade um caráter diferente, ela não podia
perdê-lo senão por prevaricação. Nos governos populares, uma família não pode
aspirar senão a enriquecer, a enriquecer mais, mesmo quando é opulenta. Jamais
ela recebe um caráter que a consagra especialmente ao serviço do Estado, e
mesmo as funções públicas às quais o cidadão rico é passageiramente elevado
constituem apenas um meio para a família especular com mais proveito em favor
de sua fortuna. Não se é capaz de harmonizar duas idéias, quando não se vê a
extrema diferença que deve resultar para o caráter de um povo e para os
sentimentos que constituem a força ou a fraqueza das nações dessa disparidade
3
total em suas instituições".
A classe dos que consideram o bem público mais que o próprio, foi sempre
chamada aristocracia, a classe dos melhores, aristoi, denominação tão honrosa
quanto justa. A Revolução fez dessa palavra e da coisa que ela exprime um
objeto de horror: ela tinha suas razões para isso e nós temos as nossas para não
compartilhar desse sentimento.
Observemos primeiramente, com Blanc de Saint-Bonnet, que compreendida
em lato senso, a aristocracia, num povo, se compõe de todas as pessoas de bem,
de todos os que se consideram ser melhores do que o grosso da nação. Existe
aristocracia bem no meio do povo: é a que se forma pelo trabalho, pela
poupança, pelo freio que sabe pôr a seus apetites. E há povo nas classes altas:
3
Législation primitive. Discurso preliminar.
88
as famílias que por seus vícios se deformam, se destróem e tornam a cair na
multidão.
Mas o que geralmente se entende por essa palavra "aristocracia" é o conjunto
das famílias que, por uma longa tradição de virtudes, de nobres sentimentos e
de serviços prestados ao país, se elevaram ao cume da hierarquia social.
A democracia coloca-se como adversária dessa aristocracia. Ela se esforçou
para aniquilá-la, e para tanto confiscou, faz um século, os direitos adquiridos nos
séculos precedentes. Hoje ela quereria impedi-la de renascer; esta a razão pela
qual faz leis para que as famílias-troncos não mais possam se reconstituir, elas
que são as únicas em que as tradições podem se transmitir e em que os méritos
podem se acumular pelos esforços contínuos de uma seqüência de gerações.
Mas tirar assim dos homens o grande estímulo para o bem, não lhes permitir de
endereçar seus olhares para o futuro e de nele ver sua descendência crescer e se
elevar pelo impulso que eles terão dado, é aniquilar de vez a natureza humana,
fixar a sociedade na inércia, e ao mesmo tempo reduzir o agregado humano à
condição de manada. Aí, com efeito, todas as cabeças são iguais, a hierarquia
não poderia se produzir, porque não há liberdade e, conseqüentemente, méritos,
posição adquirida por esses méritos.
4
No Ancien Régime, somente a nobreza devia prestar o serviço militar e devia servir "a suas
expensas". Os soldos, sempre mínimos, eram apenas um complemento. Cada campanha
representava para o oficial a venda de um campo, comprado por um camponês. Foi por isso que no
início da Revolução a nobreza estava mais ou menos arruinada e havia quatro milhões de camponeses
proprietários.
Essa idéia de que a defesa nacional pertencia exclusivamente à nobreza era tão rigorosamente
aplicada que toda ocupação que pudesse tornar-se imprópria a esse fim era-lhe proibida. Ela não
podia, sem indignidade, dedicar-se ao comércio ou à indústria. Um nobre podia apenas cultivar ou
fazer cultivar suas terras; mas não podia fazer senão isso, porque devia, durante toda sua vida,
manter-se à disposição do Rei, como soldado ou oficial.
Esse sistema, aplicado durante longas gerações, teve o efeito de desenvolver a um ponto
extraordinário, por atavismo, na nobreza francesa, as qualidades militares.
Pode-se dizer que a nobreza continuou a ser recrutada para o exército e que hoje a grande maioria
dos oficiais, mesmo não titulados, fazem parte da nobreza: cada vez mais, com efeito, famílias se
especializam na profissão militar; e, no Ancien Régime, todas essas famílias seriam enobrecidas
depois de um longo período de tempo: quatro gerações de oficiais conferiam a nobreza de ofício; e
quase sempre a nobilitação se produzia antes da quarta geração por causa dos feitos de guerra.
89
Uma observação que não devemos negligenciar é esta: quando o rei torna
nobre burgueses enriquecidos ou funcionários, é sempre na qualidade de senhores
deste ou daquele lugar, marcando assim a nobreza como uma função social,
relativamente a um determinado grupo de habitantes do reino.
Famílias verdadeiramente aristocráticas podem não ser enobrecidas, e o rei
pode, por abuso, nobilitar famílias que não se enobreceram por si mesmas.
"Não é necessário crer, diz de Maistre, se quisermos exprimir-nos com
exatidão, que os soberanos podem nobilitar . Há famílias novas que se lançam
pouco a pouco na administração do Estado, que se desembaraçam da igualdade
de uma maneira notável, e se elevam dentre as outras como as árvores
resguardadas na mata destinada ao corte. Os soberanos podem sancionar essas
nobilitações naturais; a isso se limita o seu poder. Se eles contrariam um número
grande demais dessas nobilitações, ou se eles se permitem de levar seus plenos
poderes longe demais, trabalham para a destruição de seus Estados. A falsa
nobreza foi uma das grandes chagas da França".5
No momento não existe mais nobreza na França, pelo menos enquanto classe
social. Ela se reconstituirá. É o segredo de Deus, dos acontecimentos e do
tempo. É permitido a esse respeito desejar e apoiar esse desejo com a
observação de que a nobreza brilhou em toda a Antiguidade, que ela reapareceu
com mais brilho do que nunca entre os povos modernos, que na França ela
viveu quatorze séculos e que foi a glória do nosso país, que ela construiu a
grandeza do país durante mil anos, ao passo que a democracia o colocou no
estado em que o vemos.
Taine, no primeiro volume de sua obra sobre a Revolução, lamentou o
desaparecimento da nobreza. "Graças à sua fortuna e à sua posição, o homem
dessa classe está acima das necessidades e das tentações vulgares. Ele pode
servir gratuitamente; ele não tem que se preocupar com dinheiro, em prover as
necessidades de sua família, em construir seu caminho. Ele pode seguir suas
convicções, resistir à opinião estridente e malsã, ser o servidor leal e não o vil
adulador do público. Conseqüentemente, enquanto que nas classes médias ou
inferiores, o principal impulsor é o interesse, para ele o grande motor é o orgulho;
ora, entre os sentimentos profundos do homem, não há outro que seja mais
próprio em se transformar em probidade, patriotismo e consciência; porque o
homem altivo tem necessidade de seu próprio respeito, e para obtê-lo ele é
induzido a merecê-lo. Sob todos esses pontos de vista, comparai a "gentry" e a
nobreza inglesas aos políticos dos Estados Unidos".6 Em seguida, Taine mostra
como a educação dada ao nobre, o meio no qual ele se encontra, suas relações, o
conhecimento que adquire sobre os homens e as coisas lhe permitem, se é bem
dotado, ser um homem de Estado antes dos trinta anos.
5
Considérations sur la France, p.49.
6
As classes ricas de uma sociedade não podem cumprir seu dever social senão quando o Estado torna-
lhes possível esse cumprimento. Os homens dessa classe não podem utilizar sua instrução, seu
tempo disponível, sua fortuna e sua boa vontade em benefício do Estado senão quando o Estado se
presta a isso, como ele fazia na França e como ainda faz na Inglaterra.
90
deferência particular ao brilho do nome, a partir do momento em que o divino
Redentor mostrou, na prática, de o ter em estima! Certo, em sua peregrinação
terrestre Ele adotou a pobreza e jamais a riqueza como companhia; não obstante,
Ele quis nascer da estirpe real .
"Não é para adular um orgulho tolo, que Nós vos lembramos essas coisas,
caros filhos; mas sobretudo para vos reconfortar nas obras dignas de vossa
posição. Todo indivíduo, toda classe de indivíduos tem suas funções e seu valor
próprios, e é do conjunto de todos que brota a harmonia da sociedade humana.
No entanto, é inegável que, nas instituições privadas e públicas, a aristocracia do
sangue é uma força especial, como a fortuna, como o talento. Se houvesse nisso
dissonância com as disposições da natureza, tal fato não teria sido, como o foi em
todos os tempos, UMA DAS LEIS MODERADORAS DOS ACONTECIMENTOS
HUMANOS. Por isso, julgando conforme o passado, não é ilógico inferir que,
quaisquer que sejam as vicissitudes do tempo , um nome ilustre não deixará
jamais de ter alguma eficácia para quem sabe usá-lo dignamente".
Leão XIII terminou seu discurso com essas palavras: "Mantende os olhos
abertos para os acontecimentos que amadurecem e jamais percais de vista que
no meio do fermento crescente das concupiscências populares, a franca e
constante virtude entre as classes mais elevadas é um dos mais necessários
meios de defesa".
Em janeiro de 1903, Leão XIII diz ainda: "Se Jesus Cristo quis passar Sua
vida privada na obscuridade de uma humilde morada e como filho de artesão; se,
na Sua vida pública, amou viver no meio do povo, fazendo-lhe o bem de todas as
maneiras, quis entretanto nascer de estirpe real, escolhendo Maria por mãe, como
pai adotivo José, ambos descendentes da estirpe de David. Hoje, na festa de
seus esponsais, poderíamos repetir com a Igreja essas belas palavras: Maria
mostra-se-nos brilhante, saída de uma estirpe real.
"Assim, a Igreja, pregando aos homens que todos são filhos do mesmo Pai
celeste, reconhece como uma condição providencial da sociedade humana a
distinção das classes; por isso ela ensina que só o respeito recíproco dos direitos e
dos deveres, e a caridade mútua proporcionarão o segredo do justo equilíbrio, do
bem-estar honesto, da verdadeira paz e da prosperidade dos povos".
Em 1872 Pio IX havia dito o mesma coisa:
"O próprio Jesus Cristo amou a aristocracia, Ele também quis pertencer à
nobreza por Seu nascimento e descender da estirpe de David". Lembra-nos o
Soberano Pontífice que quando era ainda jovem um príncipe romano Lhe havia
exposto "o papel da nobreza na sociedade". "Agora, diz Pio IX, esclarecido por
uma longa experiência e pela luz do soberano Pontificado, declaro QUE ESSES
7
PRINCÍPIOS SÃO VERDADEIRAMENTE CATÓLICOS".
Como, nessas condições, pôde a França se desfazer de sua nobreza? É
preciso dizer que a nobreza se desfez a si mesma. A partir do século XIV, a
partir da Renascença, começou a se produzir no seu interior um rebaixamento
moral que prosseguiu de maneira quase contínua. Com a chegada do século XVIII
não se via mais a nobreza preencher, na França, os deveres de uma verdadeira
aristocracia; e foi por essa razão que a Revolução pôde derrubá-la. "A nobreza
francesa, disse de Maistre, não deve atribuir senão a ela mesma todas as suas
desgraças".8
Teria sido necessário recolocar nas almas o antigo espírito, a antiga
dedicação. A França teria então assistido a uma evolução, em lugar de sofrer uma
revolução. Adaptando-se às condições presentes da sociedade, o antigo espírito
7
Discours de N.-S.-P. le Pape Pie IX, t. I, p. 122.
8
Considérations sur la France, p. 151.
91
teria feito avançar pelos caminhos de um verdadeiro progresso a sociedade que
vemos retroceder. Liberada que está aos impulsos da massa, ela cede à
quantidade, como o corpo ao mais forte peso; ela desce os degraus da civilização,
ela reentra na barbárie.
Se aprouver a Deus desviar-nos desse declive, no momento em que se
reorganizar nossa sociedade talvez se perceba a necessidade de reconstituir como
nobreza o que restará em termos de aristocracia, isto é, de famílias que terão
sabido subtrair-se ao contágio de todos os males que nos devoram. A fonte da
soberania está em Deus, mas o depósito dela no soberano não pode ser exercido
inteiramente apenas pelo soberano; todo chefe tem necessidade de lugares-
tenentes. Estes devem ser funcionários sem raízes, ou homens cercados de
respeito, com uma fortuna que lhes garanta a independência, a conduta e a
capacidade? A questão toda se resume nisso. Se as famílias que se
aristocratizam permanecem isoladas umas das outras, se elas não formam um
corpo que tenha recebido uma investidura, não agirão junto ao povo senão de uma
maneira individual, e, por isso, toda a ação social deverá vir do poder, o que
representa um grande perigo de despotismo. A nobreza constituída é um corpo
protetor para o povo, relativamente ao soberano, como também para o soberano,
relativamente à multidão. Esta é a razão pela qual toda nação que quer conservar
suas liberdades deve ter uma nobreza, assim como todo poder deve ter uma
nobreza para possuir apoios.
Colocando-se sob outra perspectiva, Taine disse: "Não se pode suprimir a
aristocracia sem perigo. Em todas as sociedades que existiram houve sempre
um núcleo de famílias cuja fortuna e consideração são antigas. Suprimida pela
lei, a aristocracia se reconstitui na prática, e o legislador pode apenas escolher
entre dois sistemas: aquele que a deixa desprotegida, ou aquele que lhe propicia
lucros; aquele que desserve o serviço público ou aquele que a aglutina em seu
favor; e ele fornece excelentes razões para demonstrar que esse último partido é
sobejamente preferível.
O melhor governo é o que dá pleno curso ao desenvolvimento da natureza
humana, mantendo aberta a entrada da nobreza à burguesia pelas nobilitações
legítimas, e a entrada da burguesia aberta ao povo por institutos que favoreçam
a formação do capital e consagrem seus direitos.
"Se houvesse no campo e em cada cidadezinha, diz Bonald, uma família à
qual uma fortuna considerável, relativamente à de seu vizinho, assegurasse uma
existência independente de especulações e de salários, e essa espécie de
consideração de que gozam junto aos habitantes rurais a antiguidade e a extensão
das propriedades territoriais; uma família que tivesse simultaneamente, no seu
exterior a dignidade, e na vida privada muita modéstia e simplicidade; que,
submissa às leis severas da honra, desse o exemplo de todas as virtudes ou de
todo o decoro; que aliasse às despesas necessárias do seu estado e a um
consumo indispensável, que já é uma vantagem para o povo, essa beneficência
diária que, no campo, é uma necessidade, se é que não constitui uma virtude; uma
família que estivesse unicamente ocupada com os deveres da vida pública, ou
exclusivamente disponível para o serviço do Estado; pensemos no que não
resultaria de vantagens, para a moral e o bem-estar dos povos, dessa instituição
que, sob uma forma ou outra, tão duradouramente tem existido na Europa,
9
mantida pelos costumes, e à qual só falta o regulamento das leis?"
"Essas autoridades sociais, diz Le Play, resolvem certamente o grande
problema, que consiste em fazer reinar a paz pública sem o recurso da força. Para
9
Pensées de Bonald.
92
alcançar esse objetivo, todas elas empregam os mesmos meios: dão o bom
exemplo à sua localidade, inspirando a seus servidores, operários e vizinhos o
respeito e a afeição. Quando elas agem com toda a liberdade, elas criam
sociedades estáveis e prósperas; mas quando são paralisadas pelos governos e
pelas constituições escritas, elas não podem mais conjurar nem as revoluções,
10
nem as decadências".
10
Réforme Sociale, cap. LXIV.
93
E no entanto, apesar de todos os entraves e de todas as perseguições, apesar
mesmo das defecções e dos desencorajamentos que são próprios das
perseguições, é preciso, é mais necessário do que nunca que a elite se
mantenha e aja. Que aja primeiramente sobre si mesma, cada um se esforçando
para tornar-se melhor; depois sobre seu círculo de convivência: o padre na
paróquia, o pai na sua família, o patrão na sua oficina, o capitão na sua
companhia, cada um sobre todos os que ele pode atingir, a fim de desenvolver o
núcleo de aristocracia que Deus, não desejando que sofrêssemos a sorte de
11
Sodoma e Gomorra, nos deixou.
Que o pai de família se lembre de que a queda pesa sempre sobre os filhos
dos homens, e que use da autoridade com que Deus o investiu para reencaminhar
as almas, discipliná-las e educá-las. Que ele conduza seus olhares para além
dos berços que o cercam, e que faça tudo o que estiver no seu poder para
perpetuar seu espírito na sua descendência, tão longe quanto ela vá.
E, da mesma forma, que todos os que a Providência colocou em posição de
destaque, por pouco elevada que seja, ponham toda a sua alma e todas as suas
forças em fazer descer a verdade e o bem sobre os que eles vêem mais abaixo.
Foi por isso que Deus criou as alturas: para que elas recebam dEle, com a
finalidade de que as derramem nos vales, os dons de Sua infinita Bondade. É
dEla que provém todo o bem, mas Ele quer canais. Felizes aqueles aos quais Ele
concede essa honra. "O princípio da hierarquia, diz São Denis, o Areopagita, no
tratado da Hiérarchie Ecclésiastique,12 é a Trindade, fonte de vida, bondade
essencial, causa única de tudo, e que, na efusão do seu amor, comunicou a todas
as coisas o ser e a perfeição". Na Hiérarchie Céleste seu pensamento se
completa desta maneira: "A ordem hierárquica importa em que uns sejam
purificados e que outros purifiquem; que uns sejam iluminados e que outros
iluminem; que uns sejam aperfeiçoados e que outros aperfeiçoem, e que assim
cada qual tenha seu modo de imitar a Deus".
Aqueles aos quais Deus deu a luz, têm o dever de difundi-la; aqueles que, por
Sua graça, guardaram a pureza de costumes, têm o dever de trabalhar para
propagá-la; aqueles que, em qualquer ordem que seja, tenham chegado à
perfeição, devem ajudar seus irmãos a alcançá-la. Isto é imitar a Deus, imitá-Lo
no mais nobre de Seus atributos, a Bondade, a qual, dizia Santo Tomás de
Aquino, é difusiva do que nela se contém.
Cabe ao povo imitar essa bondade nas famílias, ao nobre nas suas terras, ao
industrial nas suas fábricas, ao padre no seu aprisco.
Numa discussão havida em 1886, na Academia de Ciências, sobre a questão
social, Ravaisson indicou a solução nesses termos: "Que as classes superiores
renovem, e se possível com mais força, a tradição da antiga generosidade, da qual
saiu para todos os lugares, mas talvez mais na França do que alhures, tudo o que
se fez de grande: ver-se-á brotar dessa reforma uma sociedade unida e, por
conseguinte, durável. Na minha opinião, a única solução que pode ser dada ao
que se chama questão operária, e mais genericamente questão social, é uma
reforma moral que restabeleceria a reciprocidade da dedicação e dos serviços,
reforma de que deve resultar uma nova educação dada à nação, educação cujo
empreendimento pertence às classes superiores, mas começando por elas
13
mesmas".
11
Isaías, I, 9.
12
Cap. I.
13
Na Réforme Sociale, 1º de junho de 1886.
94
O grande erro dos democratas que têm verdadeiramente no coração piedade
do povo, é o de querer educar todos os homens ao mesmo tempo, através de
regras e de leis. Isto jamais se pôde fazer. A força do homem está na sua alma,
as leis são apenas um freio, um liame exterior, incapaz de estimular a vida. A
vida vem de Deus. Os primeiros a aproveitarem os benefícios da Redenção e da
civilização devem estender a mão aos outros, ajudá-los a segui-las, conduzi-los
pouco a pouco em direção ao bem: "Que o primeiro dentre vós seja o servidor de
todos".14 Essa via é seguramente menos rápida que a da legislação, mas somente
ela pode conduzir ao objetivo. O objetivo é a elevação de todos, a extensão das
classes superiores à toda a nação pela dilatação das aristocracias, pela
generalização do capital das virtudes que o criam. É preciso chamar isso de
"democracia"? Evidentemente não, pois o povo é chamado a fazer parte da
aristocracia, e assim não pode ser esclarecido ou socorrido senão pelos que já
chegaram a ser melhores, em uma palavra, pela aristocracia.
14
Mateus, XX, 27.
95
96
CAPÍTULO XII
A FRANÇA. SUAS ORIGENS E SUA MISSÃO.
1
Eu te tirei das pastagens onde apascentavas tuas ovelhas para fazer de ti o chefe de Meu povo de
Israel e fiz o teu nome comparável ao dos grandes da terra. Preparei um lugar para o Meu povo de
Israel e coloquei-o nele. Suscitarei depois de ti a tua posteridade e consolidarei o seu reino, e firmarei
para sempre o seu trono real. Serei para ele um pai e ele será para Mim um filho. Se ele cometer
alguma falta, castigá-lo-ei coma vara de homens e com açoites de homens, mas não lhe retirarei a
Minha graça. (2 Rs. [2 Sam.], 7, 8-15).
2
Oração de Jeremias, no fim de suas Lamentações .
97
"Na capela do palácio dedicado a São Pedro, estavam sentados São Remi,
Clóvis e Santa Clotilde, rodeados de clérigos que haviam acompanhado o Pontífice,
e dos oficiais do Rei e da Rainha. O prelado transmitia ao Rei ensinamentos
salutares e lhe inculcava os mandamentos evangélicos. Para confirmar a prédica
do santo bispo, Deus quis mostrar visivelmente o que Ele diz a todos os fiéis:
'Quando dois ou três estão reunidos em Meu nome, Eu estou no meio deles'.
"Subitamente, com efeito, uma abundante luz, mais brilhante do que a do sol,
encheu toda a capela e ouviram-se ao mesmo tempo estas palavras:
"A PAZ ESTEJA CONVOSCO. SOU EU, NADA TEMAIS: PERMANECEI NO
MEU AMOR.
"Em seguida, após essas palavras, a luz desapareceu e um odor de uma
inacreditável suavidade perfumou o palácio, para provar com evidência que o autor
da luz, da paz e da suavidade tinha estado ali, porque, excetuado o bispo, nenhum
dos assistentes tinha podido vê-Lo, posto que estavam ofuscados pela claridade
da luz. Seu esplendor penetrou o Santo Pontífice, e a luz que este irradiava
iluminava o palácio com mais brilho do que os archotes que o aclaravam...
"Um milagre digno dos tempos apostólicos, para servir-me das expressões de
Hormisdas, sucedeu a essa aparição, como contam Aimoin e Hincmar, bispo de
Reims; falo da ampola do santo crisma, trazida do céu por uma pomba, e que
serviu para sagrar Clóvis e, a seu exemplo, todos os reis de França, seus
sucessores".3
"Através desses deslumbrantes prodígios, prossegue o grande historiador da
Igreja, Deus quis manifestar claramente de que peso (quantae molis erat) era a
conversão do rei dos Francos e de seu povo".4
A miraculosa conversão dos francos seguiu a do rei. A pedido de São Remi,
Clóvis foi falar aos francos.
"Mas antes que ele tivesse tomado a palavra, o poder divino toma a dianteira,
e todo o povo exclama a uma voz: 'Nós rechaçamos os deuses mortais, piedoso
príncipe; estamos prontos a seguir o Deus imortal anunciado por Remi'. A essa
notícia, o Pontífice, cheio de alegria, ordena se prepare o banho sagrado. Todo o
templo está perfumado por um odor divino, e Deus concede aos assistentes uma
graça tão grande que eles crêem estar perfumados por odores do céu".5
Baronius acrescenta:
"Instruído acerca da via de Deus, o rei entrou com a corajosa nação dos
francos pela porta da luz eterna. Ela creu em Cristo e tornou-se uma nação santa,
3
Eis o que conta Hincmar: "Estávamos no batistério. O clérigo que levava o crisma, embargado pela
multidão, não pôde chegar até às fontes batismais; ia faltar o crisma. São Remi pôs-se logo em oração,
e eis que, de repente, uma pomba mais branca do que a neve apareceu, carregando em seu bico uma
ampola cheia de um crisma sagrado, que o venerável bispo derramou nas fontes batismais; no mesmo
instante espalhou-se um odor mais suave que todos os perfumes que se tinham vertido".
Tal era, desde o século IX, a tradição remigiana. Na sagração de nossos reis, as unções eram feitas
com um crisma preparado sobre a patena de ouro do cálice de São Remi, ao qual se adicionava uma
gota do bálsamo contido na Santa Âmbula, retirada com a ajuda de uma agulha de ouro.
A Santa Âmbula foi quebrada em 8 de outubro de 1793 por Philippe Rühl, deputado do Baixo-Reno,
no pedestal da estátua de Luís XV, na Praça Royale. Mas na véspera do dia em que sua destruição foi
ordenada, Seraine e Philippe Hourelle, como consta de uma depoimento autêntico, retiraram, com
ajuda da agulha de ouro, o mais que puderam do bálsamo miraculoso, ocultaram-no em papel e o
conservaram. Esses fragmentos permitiram reconstituir a Santa Âmbula, que foi empregada como
outrora para a sagração de Carlos X.
4
T. VI, p. 464. Ano 499, XVIII.
5
Ibid., p. 462, XX; edição de Veneza.
98
um povo de aquisição, a fim de que nele fosse anunciado o poder dAquele que os
chamou das trevas para Sua admirável luz".
É uma lenda, dir-se-á; mas Deus não pode fazer prodígios? Não tinha ele
razão suficiente de fazê-lo para consagrar e alistar em Seu serviço o povo que Ele
queria tornar Seu braço direito? E enfim, como negar um prodígio narrado por
graves e santos historiadores, implicitamente afirmado pelo testemunho do Papa
Hormisdas, que escreve a São Remi mencionando que milagres iguais aos dos
tempos apostólicos produziram-se na França, confirmados pela Santa Âmbula e
pelo dom de curar escrófulas, testemunho por assim dizer sancionado pelo próprio
Cristo, que mais tarde chamará o rei de França de "filho primogênito do Seu
Sagrado Coração"!
"A partir daí, diz monsenhor Pie, uma grande nação, uma outra tribo de Judá
começou no mundo. Os pontífices de Roma, segundo os bispos da Gália, não se
enganaram a esse respeito. Através da obscuridade profunda que lhes havia tão
duradoura e dolorosamente encoberto o mistério do futuro, eles logo saudaram o
novo astro que se levantava no Ocidente e conceberam presságios que não eram
enganosos".
Um historiador, daqueles que são os menos dispostos a ver nos
acontecimentos humanos a intervenção divina, Th. Lavalée, igualmente disse:
"A conversão de Clóvis foi um acontecimento imenso, ela iniciou a grandeza
dos Francos e da Gália. Desde esse momento, esse país torna-se o centro do
catolicismo, da civilização e do progresso. Desde esse momento ele assume a
magistratura do Ocidente, a qual não deixará de exercer".
Os papas e os bispos vislumbraram desde os primeiros dias essa gloriosa
carreira e a profetizaram.
O Papa Anastácio II escreveu a Clóvis:
"Louvamos a Deus que tirou do poder das trevas um tão grande príncipe, A
FIM DE PROVER A IGREJA DE UM DEFENSOR e o ornou com o elmo da
salvação para combater Seus perniciosos adversários. Coragem, pois, caro e
glorioso filho, a fim de atrair sobre vossa sereníssima pessoa e sobre vosso reino
a proteção celeste do Deus todo-poderoso; que Ele ordene a Seus anjos que vos
guardem em todos os vossos caminhos, e vos dê por toda a parte a vitória sobre os
6
vossos inimigos".
E São Remi, antes de morrer, diz Baronius, inspirado pelo Espírito Santo, à
maneira dos patriarcas, deu à França uma benção consignada no seu testamento,
confirmada pela assinatura dos bispos (São Vaast, São Médard, São Loup), cujos
termos são os seguintes:
"Se meu Senhor Jesus Cristo dignar-se de ouvir a prece que faço todos os
dias pela casa real, a fim de que ela persevere na via em que dirigi Clóvis PARA O
ENGRANDECIMENTO DA SANTA IGREJA DE DEUS, possam as bênçãos que o
Espírito Santo derramou sobre sua cabeça pela minha mão pecadora
aumentarem pelo mesmo Espírito sobre a cabeça de seus sucessores! Que dele
saiam reis e imperadores que farão a vontade do Senhor através do crescimento
da Santa Igreja e que serão, pelo seu poder, confirmados e fortificados na justiça.
Possam eles aumentar cada dia seu reino, conservá-lo e merecer reinar
eternamente com o Senhor na Jerusalém celeste!"
Santo Ávito, bispo de Viena, que não tinha podido assistir ao batismo de
Clóvis, escreveu-lhe também uma carta "na qual não se sabe, diz Godefroid Kurth,
6
Devemos dizer que a carta do Papa Anastácio II a Clóvis, ainda que não traga nenhum caráter
interno de suposição, (além disso ela é por demais curta para oferecer muita percepção à crítica), deve
ser tida como suspeita por causa de sua proveniência. Ela é, com efeito, referida pelo sábio Jérôme
Viguier, autor de documentos fabricados (Ver Clovis , por Godefroid Kurth).
99
o que é preciso mais admirar: a elevação da linguagem, a justeza da perspectiva
ou a inspiração sublime do pensamento": "...De toda vossa antiga genealogia nada
quisestes conservar além de vossa nobreza, e desejastes que vossa
descendência começasse em vós todas as glórias que ornam um alto nascimento.
Vossos antepassados vos prepararam grandes destinos: vós desejastes preparar
maiores para os que viriam após vós... Posto que Deus, graças a vós, vai fazer
de vosso povo inteiramente o Seu, muito bem!, oferecei uma parte do tesouro de
fé que enche vosso coração a esses povos estabelecidos além de vós, e que,
vivendo em sua ignorância natural, não foram ainda corrompidos pelas doutrinas
perversas (o arianismo); não temais em enviar-lhes embaixadores e advogai junto
a eles a causa de Deus, o Qual tudo fez pela vossa".7 É, diz Kurth, o programa
do povo franco que está aqui formulado. Quem, a quatorze séculos de distância,
vê desenrolar-se no passado o papel histórico desse povo, então encoberto pelas
trevas do futuro, parece ouvir um vidente de outrora predizer a missão de um
povo de eleitos. A nação franca foi encarregada, durante séculos, de realizar o
programa de Ávito: ela levou o Evangelho aos povos pagãos, armada
simultaneamente com a cruz e a espada, e mereceu que seus trabalhos fossem
inscritos na história sob este título: Gesta Dei per Francos.8
Ao mesmo tempo em que lhes foi dada por Deus, indicada pelo papa e pelos
bispos, a missão de serem no mundo os defensores da Santa Igreja foi conferida
aos reis dos francos pelos imperadores romanos.
Ainda que exilado no Oriente, o império romano conservou durante muito
tempo seu prestígio no Ocidente. De tal maneira que Clóvis não se creu seguro
de suas conquistas senão quando recebeu do imperador Anastácio o título e as
insígnias de patrício, cônsul e augusto. Em sua alegria, como conta Gregório de
Tours, ao tomar posse solenemente de sua nova dignidade em Saint-Martin de
Tour, ele fez cunhar, para distribuir ao povo, moedas com a efígie de Anastácio,
com esta divisa no reverso:
Desde esse dia Clóvis foi pois igualmente investido, em nome do Imperador,
da dupla missão de proteger a Igreja e os pobres. E desde então essa missão foi
sempre olhada como a herança mais preciosa dos soberanos da França.
Conferindo o patriciado aos reis merovíngios, os imperadores do Oriente lhes
diziam:
"Como não podemos nos desincumbir sozinhos da carga que nos é imposta,
concedemo-vos a honra de fazer justiça às igrejas de Deus e aos pobres,
9
recordando-vos que prestareis contas ao Soberano Juiz".
Quando, pouco a pouco, os laços do Oriente e do Ocidente se romperam, os
Papas, em nome "de Pedro, presente em Roma na sua carne " e com o
consentimento dos romanos, deram sozinhos esse mandato. Gregório III investiu
no patriciado Carlos Martelo, título que a morte não lhe permitiu aceitar, mas que
passou a Pepino e a seus filhos. É isto que explica por que razão o Papa foi
consultado para a eleição de Pepino ao trono da França. Três anos após sua
sagração, Estêvão lhe escrevia nestes termos em nome de São Pedro e do seu:
7
A. Avitus, Epist., 46 (41).
8
Clovis, p. 355.
9
Ozanam, Civilisation Chrétienne.
100
"Pedro, apóstolo, chamado por Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, e comigo a
Igreja católica, apostólica, romana, mestra de todas as outras, e Estêvão, bispo
de Roma:
"A vós, homens excelentíssimos, Pepino, Carlos e Carloman, todos os três
reis; aos bispos, abades, duques, condes, a todos os exércitos e a todos os povos
dos francos.
"Eu, Pedro, por Deus mandado a esclarecer o mundo, escolhidos como meus
filhos adotivos , a fim de que defendais contra seus inimigos a cidade de Roma, o
povo que Deus me confiou e o lugar onde repouso segundo a carne . Concito-
vos, pois, a que liberteis a Igreja de Deus, que me foi recomendada do Alto; e
peço-vos urgência, porque Ela sofre grandes aflições e opressões extremas...
Rogo-vos e conjuro-vos, como se estivesse presente diante de vós; porque,
segundo a promessa recebida de Nosso Senhor e Redentor, distingo o povo dos
Francos dentre todas as nações... Emprestai aos romanos, emprestai a vossos
irmãos todo o apoio de vossas forças, a fim de que eu, Pedro, cobrindo-vos com
meu patrocínio neste mundo e no outro, erga tendas para vós no reino de
Deus".10
Assim, os francos são irmãos dos romanos não somente como todos os
católicos enquanto filhos espirituais de Pedro, mas como seus filhos adotivos,
como concidadãos, título que outros Papas nos dão.
10
Ozanam acompanhou a publicação desta carta com as seguintes reflexões:
"Ao citar a carta escrita pelo papa Estêvão em nome do apóstolo São Pedro, limitei-me às passagens
mais decisivas. A crítica moderna não mais permite considerar esta carta como uma trapaça religiosa,
nem mesmo como uma vã prosopopéia" (Etudes Germaniques, t. II, p. 250).
11
Ozanam, Civilisation Chrétienne.
101
particulares, assim o reino de França foi distinguido entre todos os povos da terra
por uma prerrogativa de honra e de graça.
"Da mesma forma como aquela tribo jamais imitou as outras nas suas
apostasias, mas, ao contrário, venceu, em numerosos combates, os infiéis, assim o
reino de França jamais pôde ser abalado na sua devoção a Deus e à Igreja; jamais
deixou perecer no seu seio a liberdade eclesiástica; jamais consentiu que a fé
cristã perdesse sua energia própria; mais que tudo isso, para a conservação
desses bens, reis e povos não hesitaram em se expor a todas as espécies de
perigos e a derramar seu sangue.
"É pois manifesto que esse reino abençoado por Deus foi escolhido pelo nosso
Redentor para ser o executor de Suas vontades divinas. Jesus Cristo tomou-o sob
Sua posse, como a uma aljava da qual freqüentemente tira flechas escolhidas, que
lança com a força irresistível do Seu braço, para a proteção da liberdade e da fé
12
da Igreja, o castigo dos ímpios e a defesa da justiça".
Antes dele, Honório III chamara a França de "muro inexpugnável da
cristandade"; Inocêncio III dissera: "Os triunfos da França são os triunfos da Sé
Apostólica"; e Alexandre III: "A França é um reino abençoado por Deus, cuja
exaltação é inseparável da da Santa Sé".
Para abreviar, cheguemos a Leão XIII, que resume assim nossa história: "A
nobilíssima nação francesa, pelas grandes coisas que realizou na paz e na guerra,
adquiriu, relativamente à Igreja Católica, méritos e títulos para um reconhecimento
imortal e para uma glória que jamais se extinguirá". — "À medida que ela
progredia na fé cristã, vimo-la subir gradualmente a essa grandeza moral que
alcançou como potência política e militar". — "Em todos os tempos a Providência
comprazeu-se em confiar aos braços valentes da França a defesa da Igreja, e
quando Ela a via cumprir fielmente sua missão, não deixava de recompensá-la
mediante um aumento de glória e de prosperidade. Ah! pedimos ao Céu com
insistência, possa a França de hoje, por sua fé religiosa, mostrar-se digna da
França do passado! Possa ela permanecer fiel às grandes tradições de sua
história, e assim trabalhar para sua verdadeira grandeza!"13
12
Labbe, Collection des Conciles, t. XIV, p. 266.
13
Encíclica Nobilissima Gallorum gens. — Encíclica Au milieu des sollicitudes. — Discurso aos
peregrinos franceses, 8 de maio de 1881.
— Se a distinção entre as ciências naturais e as ciências morais, judiciosa e fortemente assinalada
pelo professor Grasset num célebre livro (Les Limites de la Biologie , pelo doutor Grasset, 1 volume,
Alcan.), deve ser mantida da maneira mais estrita, diz Paul Bourget, isto não constitui motivo para
renunciar à comparação entre os últimos resultados dessas ciências. Reservamo-nos o direito de
assinalar, a propósito desses resultados, analogias que adquirem, quando chegam à identidade, o mais
alto valor de verificação. Ora, conhecemos a doutrina de Claude Bernard sobre a vida, esta nutrição
dirigida: "A vida, escreveu ele, é a criação. O que não é essencialmente do domínio da vida, o que não
pertence nem à física, nem à química, nem a nenhuma outra coisa, é a idéia diretriz dessa evolução
vital... Em todo o germe vivente há uma idéia criadora que se desenvolve e se manifesta pela
organização. Durante toda a sua vida, o ser vivente permanece sob a influência dessa mesma força
vital criadora , e a morte chega quando ela não pode mais se realizar... É sempre a mesma idéia vital
que conserva o ser, reconstituindo as partes vivas, desorganizadas pelo exercício, ou destruídas pelos
acidentes e doenças..." (Ver a Introduction à la Médecine Expérimentale, edição de Sertillanges, M.
Levé, 17, rua Cassette). Estudando, como ele fez, a história dos povos em todas as civilizações, o
abade Pascal verificou com que surpreendente exatidão essa fórmula se aplica às grandezas e às
decadências de todos os países... Modificai-lhe alguns termos, a fim de passar da ordem da biologia
para a ordem da história. Esquecei por um momento a frase de Bernard e lede esta: "Um povo é uma
criação contínua. O que é essencialmente do domínio desse povo, o que não pertence a nenhum outro,
é a idéia diretriz que se desenvolve e se manifesta pela organização. Durante toda a sua vida, esse
povo permanece sob a influência dessa mesma força nacional criadora, e sua morte chega quando
102
A cada renovação de reinado, a sagração do rei vinha selar de novo a aliança
firmada entre Cristo e a França, tão freqüentemente registrada em cartório, por
assim dizer, pelos soberanos Pontífices.
A sagração dos reis foi um privilégio reservado durante muito tempo à França.
Nenhum imperador romano, nem Constantino, nem Teodósio, pediu à Igreja
consagração religiosa. Chegado o momento em que a Providência quis ter na
França reis protetores da Santa Sé e propagadores da Fé católica, São Remi,
como um novo Samuel, deu a unção ao fundador da monarquia francesa.
Foi apenas muito mais tarde que a Espanha quis ter, também ela, o rei ungido
com o Óleo santo. A Inglaterra e depois as outras nações da Europa expressaram
em seguida o mesmo desejo.
Mas a sagração dos reis de França conservou um cerimonial particular. Seria
demasiado longo reproduzi-lo, bastando que se assinalem seus pontos principais.
Antes de celebrar a missa da sagração, o prelado consagrador lembrava ao rei
seus deveres:
"Como hoje, excelente príncipe, ireis receber a unção santa e as insígnias da
realeza por nossas mãos, e como (ainda que indigno) ocupamos o lugar de Cristo,
nosso Salvador, é bom que vos advirtamos a respeito da responsabilidade que ireis
assumir. Essa posição é ilustre, mas cheia de perigos, de trabalhos e de
solicitudes. Considerai que todo o poder vem do Senhor Deus, pelo Qual os reis
reinam e os legisladores decretam as leis justas , e que vós também dareis contas
a Deus do rebanho que vos é confiado.
"Primeiramente guardai a piedade, prestai culto a Deus, vosso Senhor, com
todo o vosso espírito e com um coração puro. Defendei constantemente contra
todos a religião cristã e a fé católica , que professais desde vosso berço. Rendei
aos prelados e aos demais sacerdotes a honra que lhes é devida. Administrai
invariavelmente a justiça, sem a qual nenhuma sociedade pode durar muito tempo,
ela não pode mais se realizar... É sempre essa idéia nacional que conserva esse povo,
reconstituindo as partes vivas, desorganizadas pelos abusos, ou destruídas pelos acidentes exteriores e
pelas Revoluções..." Não há nessa série de afirmações uma verdade que não seja de experiência
histórica, assim como não havia uma verdade, na série das afirmações de Bernard, que não fosse de
experiência biológica. É apenas um paralelo, mas de que alcance. Pascal vai medi-lo para nós.
Esse princípio da idéia diretriz domina sua pesquisa com aquilo que ele qualifica, com Bossuet, de
seqüência de nossa história, sentido de nossa vida nacional, função étnica, ele diz, ele, "a vocação da
França". Ele é cristão. Reconheceis, nessa última palavra sua fé numa Providência. Mas se ele se
ativesse à atitude positivista, ao determinismo puramente naturalista, ele não raciocinaria de outra
maneira. É um dos casos mais notáveis do completo acordo entre as instituições tradicionais e as
conclusões de ordem experimental, quando se trata das leis das sociedades. Que um ateu declarado,
ou — posto que o ateísmo não é um estado de espírito científico — que um agnóstico irredutível
queira considerar o fenômeno francês como um simples produto da Natureza Social, e descobrirá que
esse produto se caracteriza pelos dois princípios diretores que são o credo hereditário dos
tradicionalistas. A França nasceu e viveu católica e monarquista. Seu crescimento e sua prosperidade
estiveram na razão direta do grau em que ela esteve unida à sua Igreja e ao seu Rei. Todas as vezes
que, ao contrário, suas energias foram exercidas contrariamente a essas duas idéias diretrizes , a
organização nacional foi profundamente, perigosamente perturbada. De onde esta imperiosa
conclusão: a França não pode deixar de ser católica e monárquica, sem deixar de ser a França — da
mesma sorte que um fígado não pode deixar de produzir a bile sem deixar de ser um fígado, um
estômago de secretar o suco gástrico sem deixar de ser um estômago. Essas simples, essas grosseiras
assimilações são apenas o enunciado de uma lei que domina a metafísica mais comum. Os filósofos
cartesianos conferiram-lhe uma expressão, também ela axiomática, quando afirmaram que "todo ser
tende a perseverar no seu ser". É o mesmo que dizer que dois mais dois são quatro e que a linha reta
é o caminho mais curto entre dois pontos.
103
recompensando os bons e castigando os maus. Defendei contra toda opressão as
viúvas, os órfãos, os pobres, os fracos. Mostrai-vos com uma dignidade real,
suave, afável, cheia de benignidade para com os que se aproximem de vós.
Conduzi-vos de tal maneira que pareçais reinar não em vosso interesse, mas no
interesse do povo inteiro , e aguardai não da terra, mas do Céu, a recompensa de
vossas boas obras".
O príncipe prometia defender a fé católica, o poder temporal das igrejas
confiadas à sua guarda e de fazer justiça a todos.14
O povo aceitava essa promessa e, por seu turno, ligava-se a ele.
O Pontífice perguntava ao povo se ele queria se submeter a esse príncipe e
obedecer às suas ordens. Somente após a resposta unânime do clero e do povo o
bispo pedia a benção de Deus sobre a cabeça do príncipe. Ele lhe devolvia a coroa
15
e a mão da justiça, retiradas de sob o altar, como se lhe fazia notar; o arcebispo
fazia-o sentar-se ao trono, dizendo-lhe:
"Sê firme e guarda o Estado que recebes da sucessão paterna e que te é
delegado pelo direito hereditário, pela autoridade de Deus todo-poderoso e pela
tradição de todos os Bispos e dos outros servidores de Deus; que o mediador de
Deus e dos homens te estabeleça sobre esse trono real, mediador do clero e do
povo; e que Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei dos reis e Senhor dos senhores, te
confirme sobre o trono desse reino e te faça reinar com Ele em seu reino eterno".
Todo o direito cristão era expresso nessas palavras: 1º — o direito humano do
príncipe, hereditário; 2º — o direito humano do povo que aprovava a transmissão
da coroa ao herdeiro legítimo; 3º — o direito divino que investia o príncipe "pela
autoridade de Deus todo-poderoso e pela tradição dos bispos"; 4º — a realeza
soberana e eterna de Cristo.
Ao poder humano, que não vem dEla, mas que Ela confirma, como Ela
confirma o contrato que entre si fazem os esposos, a Igreja junta alguma coisa,
como ela junta ao matrimônio de direito natural a graça do sacramento. Essa
alguma coisa era uma missão e um dom: a missão que vimos ser conferida pelos
Papas e pelos imperadores romanos, o dom sobrenatural exposto no que segue.
O Rei de França era sagrado com o Santo Crisma, o mais nobre dos Santos
Óleos, aquele que é empregado na sagração dos bispos. Assim que outros reis
pediram à Igreja que também os sagrasse, Ela quis aplicar apenas o óleo dos
catecúmenos.
O rei era ungido primeiramente na cabeça, como o bispo, para mostrar que,
assim como o bispo tem a primeira dignidade no clero, o rei de França tinha a
preeminência sobre todos os soberanos. Era ungido nas mãos, como o sacerdote,
14
Suger dizia, desde o século XII: "na coroação, o Rei abandona sua espada, o exército secular, e
cinge o gládio eclesiástico para a punição dos maus". "Historicamente, diz Paul Bourget, o Rei,
aceitando a investidura da Igreja, afirma sua vontade de manter a mais preciosa conquista da
civilização romana sobre os bárbaros, essa unidade moral, essa pax romana transmudada para pax
christiana por um mistério dessa sublime alquimia impressa por toda a parte no universo, para quem
sabe pensar. Mas se o Rei, para dar a seu poder a consagração religiosa, submetia-se assim à Igreja,
a ela se submetia sem que essa Igreja o obrigasse. Ele era sagrado Rei — hereditariamente —, quer
dizer, ele se afirmava como o chefe nacional, por direito de nascimento, de ma outra unidade, a
unidade cívica, separada do mesmo império romano, e assegurada em sua autonomia pelos usos,
costumes, por leis específicas.
15
Os que quiseram derrogar esse cerimonial não foram felizes em seu reinado. Carlos Magno recebeu
a coroa por seu filho, Luís, o Bonachão; Luís, o Bonachão, deveria deixá-la cair de sua cabeça.
Napoleão tomou ele próprio a coroa e colocou a da imperatriz sobre a cabeça de Josefina: Josefina
foi repudiada algum tempo depois e o poderoso imperador morreu descoroado numa ilha perdida no
meio do oceano.
104
não para o ministério do altar, mas para a força a ser exercida contra os inimigos
da Igreja e de seu povo, e também, como veremos, para conferir-lhe o dom da
cura. Era ungido nos ombros "para carregar o fardo dos negócios, da paz e da
guerra". Era ungido nos cotovelos "para torná-los invencíveis a seus inimigos".
A unção santa assim praticada fazia o rei.
Sabemos que Joana d'Arc chamava Carlos VII apenas de "gentil delfim" antes
que ela o tivesse levado sagrar em Reims.
A unção santa dava à França a pessoa do rei, de tal sorte que o rei pertencia
mais ao país do que a ele mesmo. Após os Estados da Igreja, a realeza da França
era a mais desimpedida dos laços terrenos, podemos dizer a mais espiritualizada.
O rei era mais verdadeiramente o pai de seu povo do que de seus próprios filhos.
Ele devia sacrificar estes àquele, e ele sabia fazê-lo, como as lápides de mármore
de Versalhes testemunham. Ou melhor, seus filhos não mais lhe pertenciam,
eram "os filhos da França".
A unção santa conferia ao rei um certo caráter de santidade, não dessa
santidade que torna o homem capaz de ver a Deus tal qual Ele é nos Seus
esplendores eternos, mas daquela que estabelece relações particulares entre Deus
e tal ou qual de suas criaturas. Foi Santo Tomás de Aquino que as qualificou com
este nome: santidade.16 E ele dá como prova de sua existência o que aconteceu
no batismo de Clóvis, e o que Deus tem renovado de século em século até nossos
dias.
"Encontramos, diz ele, uma prova dessa SANTIDADE nas gestas dos francos
e do bem-aventurado Remi. Encontramo-la na Santa Âmbula trazida do alto por
uma pomba para servir na sagração de Clóvis e de seus sucessores, e nos sinais,
prodígios e diversas curas operadas por eles" (De Reg. Princ., II-XVI).
São Tomás quer referir-se aqui ao poder dado aos reis de França de curar
escrófulas.17
É um fato constante, apoiado pelo testemunho de um grande número de
teólogos, de historiadores e de médicos, que os reis legítimos de França gozaram
desse privilégio. O venerável Guibert, abade do mosteiro de Saint-Marc à Nogent-
sur-Coucy, na diocese de Laon, uma das luzes da França no início do século XII,
fala dessa prerrogativa nestes termos:
"Que direi do milagre diário18 que VEMOS se operar por nosso mestre o rei
Luís? EU VI aqueles que têm escrófulas no pescoço ou em outras partes do corpo,
se comprimirem em multidão ao redor dele, a fim de que ele os tocasse, marcando-
os com o sinal da cruz; eu estava ao lado dele e queria impedi-los, mas ele, com
sua bondade natural, estendia-lhes afetuosamente a mão e fazia sobre eles o sinal
da cruz com muita humildade". Ele acrescenta que o rei Filipe, pai de Luís, havia
inicialmente exercido, "com a mesma facilidade esse glorioso poder". "Ignoro,
aduz, que tipo de faltas fizeram-no perdê-lo". Guilherme de Nangis conta que ao
pronunciar as palavras usuais: O rei te toca, o rei te cura, ditas para a cura dos
16
A venerável Catarina de Emmerich, falando da instituição, na quinta-feira santa, da santa
Eucaristia e dos sacramentos da Ordem e da Extrema Unção, acrescenta: "Ele (Jesus) falou-lhes
(aos apóstolos) de diferentes unções, em particular daquelas que se fazem nos reis para sagrá-los, e
disse-lhes que mesmo os maus reis que foram sagrados receberam dessa cerimônia uma virtude
particular".
17
É a São Marculfe, vulgarmente chamado Marcoul, que os reis de França eram devedores desse
maravilhoso privilégio. Ele era bretão, de família nobre; distribuiu seus bens aos pobres e viveu como
eremita e como missionário na diocese de Coutances. Pediu a Chilbert I a terra de Nanteuil, próxima
a essa idade, para ali edificar um mosteiro. Morreu aproximadamente na metade do século VI, no
dia 1º de maio.
18
Esse poder não estava limitado aos dias da sagração.
105
escrofulosos "acerca dos quais Deus concedeu aos reis de França uma graça
singular", o rei São Luís tinha o costume de ajuntar o sinal da cruz, porque
desejava que a cura fosse atribuída ao sinal salutar da Redenção. O que
continuou a ser observado dali para a frente. Estêvão de Conty, sábio monge de
Corbie em 1400, na sua história manuscrita do rei de França diz: "Est veritas quo
innumerabilis sic de hac infirmitate fuerunt sanati per plures reges Franciae".
19
A peregrinação a Corberry, na diocese de Laon, que o rei fazia após a sagração, passava-se assim:
os monges iam processionalmente ao encontro do rei; eles lhe colocavam entre as mãos a cabeça de
São Marcoul, que o príncipe carregava pessoalmente até a igreja e recolocava sobre o altar. No dia
seguinte, após ter ouvido missa e rezado, o rei tocava o rosto dos doentes, fazendo sobre eles o sinal
da cruz e pronunciando estas palavras: "O rei te toca, Deus te cura". Os doentes deviam fazer uma
semana de jejum e de retiro.
106
distribuir entre eles. Eles disseram que não era aquilo que eles queriam. O abade
Desgenettes, então cura da paróquia das Missões Estrangeiras, mais tarde cura
de Nossa Senhora das Vitórias, que estava hospedado em São Marcoul, vendo a
desolação dos doentes, foi advogar a causa deles, e o rei anunciou sua visita para
o dia 30 de maio, no hospital. Os doentes foram visitados por Noël, médico do
hospital, e por Dupuytren, primeiro cirurgião do rei, a fim de não se apresentarem
senão os doentes verdadeiramente atingidos pelas escrófulas.
Restaram cento e trinta. Eles foram apresentados sucessivamente ao rei
pelos doutores Alibert e Thévent de Saint-Blaise. O rei tocou-os, pronunciando a
fórmula tradicional". O primeiro doente curado foi uma criança de cinco anos e
meio, Jean-Baptiste Camus; ela apresentava quatro chagas. O segundo, uma
menina de doze anos, Marie-Clarisse Faucheron; ela era portadora de uma chaga
escrofulosa na face desde a idade de cinco anos. O terceiro, Suzane Grévisseaux,
com onze anos de idade; ela apresentava chagas e tumores escrofulosos. O
quarto, Marie-Elisabeth Colin, com nove anos de idade, apresentava várias chagas.
O quinto, Marie-Anne Mathieu, com quinze anos, tinha um tumor escrofuloso e
uma chaga no pescoço. Redigiu-se ata dessas curas e se aguardou cinco meses
antes de conclui-la e publicá-la, a fim de se ter certeza de que o tempo confirmaria
as curas. "São Marcoul não pôde obter mais curas, observa um historiador da
abadia, como aconteceu ao próprio Jesus, por causa da incredulidade dos
doentes".
O sábio papa Bento XIV creu no privilégio dos reis de França, assim como São
Tomás de Aquino. Ele mostra que há graças miraculosas, que não são concedidas
em razão da santidade daquele do qual são o instrumento, e depois acrescenta:
"Citemos, por exemplo, o privilégio que têm os reis de França de curar as
escrófulas, não por uma virtude que lhes é inata, mas por uma graça que lhes foi
dada gratuitamente, assim que São Marcoul a obteve de Deus para todos os reis
de França".
A missão que a França devia cumprir através de seus reis, como já vimos,
descia do coração de Deus para o coração dos papas e dos bispos; a boca dos
pontífices a confiara aos reis, e a conduta quatorze vezes secular dos soberanos a
imprimira no coração dos franceses.
20
A lei sálica foi, desde o primeiro dia, a expressão viva dessa missão. Eis
aqui o primeiro prólogo da lei:
20
Os trabalhos mais sérios da erudição contemporânea estabelecem que a redação latina da lei sálica
foi inicialmente promulgada por Clóvis, antes de sua conversão ao cristianismo, isto é, do ano 481 ao
ano 496; e que o rei, após sua conversão, de 497 a 511, acrescentou um certo número de títulos; o
que fizeram, a seu exemplo, seus sucessores. O precioso manuscrito 4404 da Biblioteca Nacional,
publicado por Pardessus, é tido como o texto mais antigo e mais completo da lei sálica. Ela foi
redigida e promulgada, segundo todas as probabilidades, na Toxandrie, nessa parte norte da Bélgica,
entre Escaut e o Baixo-Reno, onde Julien permitiu aos sálicos residirem.
A lei é precedida de dois prólogos, acrescentados após a conversão de Clóvis, um grande, e um
pequeno, seguidos de um epílogo. O grande prólogo, Gens Francorum, é reproduzido, diz
Laferrière (Histoire du droit français, tomo III, p. 78 e seguintes), em onze manuscritos, dos quais
vários são anteriores à revisão de Carlos Magno, e o relato que ele contém é confirmado por um
outro prólogo, Placuit atque convenit, mais simples na expressão, idêntico pelos fatos, o qual
acompanha o grande prólogo em cinco dos onze manuscritos.
Esse grande prólogo se encontra numa compilação do século VIII, a coleção dos Gesta Francorum.
Alguns críticos acreditaram poder atribuir a paternidade desse admirável monumento histórico ao
compilador do século VIII. O próprio caráter do documento não deixa essa hipótese de pé. Carlos
Magno revisou sua lei sálica. Resta, dessa lei revisada, lex emendata , uns cinqüenta manuscritos
107
"A ilustre nação dos Francos, constituída pela mão de Deus, forte na guerra,
firme nos tratados de paz, profunda no conselho, de uma nobre estatura, de uma
beleza primitiva de sangue e de forma, cheia de coragem, de prontidão e de
entusiasmo, recentemente convertida à fé católica e isenta de heresia; quando ela
estava ainda no estado bárbaro, procurando a ciência sob a inspiração de Deus,
desejando a justiça e guardando a piedade segundo seus costumes, ditou a lei
sálica pela voz dos grandes, seus chefes eleitos dentre diversos, de nomes
Wisogast, Bodogast, Salegast, Wodogast, os quais, em três assembléias reunidas
nos lugares chamados Salachem, Bodochen e Widochem, após haver discutido
cuidadosamente as origens de todas as causas e tratado de cada uma em
particular, decretaram o seguinte julgamento.
"Mas desde que, pela graça de Deus, o rei dos Francos, grande e invencível,
Clóvis, recebeu o batismo católico, o que não mais convinha no pacto foi
lucidamente corrigido tanto pelo rei vencedor quanto por Childebert e Clotaire.
"VIVA CRISTO, QUE AMA OS FRANCOS"! que o Senhor Jesus Cristo guarde o
reino deles e encha os chefes com Sua luz e Sua graça; que Ele proteja seus
exércitos, sustente sua fé e conceda à sua piedade a alegria, a felicidade, a paz e
a perenidade de sua soberania!
"É esta raça de homens, com efeito, que, pouco numerosa ainda, mas valente
e forte, nos combates sacudiu e retirou de sua fronte o jugo tão duro dos romanos;
são os Francos que, após sua admissão ao batismo, procuraram e cobriram de
ouro e de pedras preciosas os corpos dos santos mártires que os romanos tinham
mutilado com a espada, abandonado às chamas ou jogado aos animais ferozes
para serem devorados".
Um pouco mais tarde, a Igreja da França pediu, na própria oblação do Santo
Sacrifício, a graça para que os franceses sempre fizessem as obras que sua
vocação lhe impunha:
"Deus todo-poderoso e eterno, que, para servir de instrumento à Vossa divina
vontade no mundo, e para o triunfo e a defesa de Vossa Santa Igreja,
estabelecestes o império dos Francos, iluminai sempre e em toda a parte seus
filhos com vossas luzes divinas, a fim de que conheçam o que devem fazer para
conhecidos. A obra de Carlos Magno não alterou a de Clóvis; ela somente acrescentou novas
disposições, tornadas necessárias pelo estado dos costumes e pelos interesses da Igreja e da
sociedade. O grande prólogo foi chamado em um dos mais antigos manuscritos Laus Francorum, e
é exatamente o nome que merece. Nada foi escrito de mais honroso à nossa raça. "Sentimos ao lê-lo,
diz Ginoulhiac (Histoire générale du droit français, 1884, p. 143), que ainda estamos numa época
vizinha da conquista, sob a influência das vitórias recentes de Clóvis e da derrota dos romanos. É,
ademais, o que nos ensina o próprio redator do prólogo, com estas palavras: Ad catholicam fidem
NUPER conversa, que indicam por sua redação uma época próxima da conversão de Clóvis ao
catolicismo".
Dispomos apenas de textos latinos da lei sálica; é provável, entretanto, que a primeira redação tinha
sido feita na língua franca, mas essa redação deve ter sido oral e não escrita. Os francos, antes do
século VIII, não tinham língua escrita. Aí está, para mencionar de passagem, o que explica a raridade
dos documentos relativos às nossas origens. Quando a escola hipercrítica, com seu desdém pelas
tradições, rejeita as lembranças mais bem estabelecidas, com este único argumento de que não há
documentos, ela esquece que os francos não escreviam, mas conservavam em cânticos a memória de
seus fundadores e dos acontecimentos marcantes da vida nacional. Somente aqueles que possuíam a
língua latina podiam fixar pela escrita seu pensamento, e estes eram então em número muito pequeno.
Como quer que seja, e para não fugirmos do nosso as sunto, diremos com o historiador do direito
francês Laferrière, inspetor geral das Faculdades de Direito: "É preciso olhar os prólogos e o epílogo
da lei sálica como documentos autênticos" (Histoire générale du droit français, 1884, p. 70) (Semana
Religiosa de Rouen).
108
estabelecer Vosso reino no mundo, e que, perseverando na caridade e na força,
realizem o que conheceram que devem fazer, por Nosso Senhor Jesus Cristo..."21
Não foi somente no santo altar que a França exprimiu o sentimento inato de
sua sublime missão. Em uma de suas canções de gesta, ela se gloriava de que
Deus tenha feito coroar pelos anjos seu primeiro rei, para ser Seu oficial.
Casamento em família
Da Igreja e das flores de lis.
Quando um ou outro partir,
Cada um deles se ressentirá.22
As moedas que os reis mandavam gravar, e que o povo tinha diariamente nas
mãos, eram feitas com a expressa intenção de manter no público o pensamento do
papel reservado à França e de induzi-lo a render graças ao divino Rei.23
21
Esta oração foi tirada de um missal do século IX. Suas origens remontam ao século VII. (Dom Pitra,
Histoire de Saint Léger, Introdução, p. XXII).
22
Guilherme de Nangis, na Chronique de Saint Louis, explica de maneira curiosa e profética o
simbolismo do brasão da França.
"Visto como Nosso Pai Jesus Cristo quer especialmente iluminar acima de todos os outros reinos o
reino de França com Fé, Sabedoria e Cavalaria, os reis de França se acostumaram a levar em suas
armas a flor de lis pintada com três folhas, assim como se eles dissessem a todo o mundo: Fé,
Sabedoria e Cavalaria estão, pela provisão e pela graça de Deus, mais abundantemente em nosso reino
do que em outros. As duas folhas que formam asas significam Sabedoria e Cavalaria, que guardam e
defendem a terceira folha, que está no meio delas, mais longa e mais alta, através da qual a Fé é
compreendida e significada, porque ela é e deve ser governada pela Sabedoria e defendida pela
Cavalaria.
Assim, enquanto essas três graças de Deus estiverem fortemente e ordenadamente juntas no reino de
França, o reino será forte e firme; e se sucede que elas sejam retiradas do lugar e separadas, o reino
estará em desolação e em destruição".
O reino está em "desolação e em destruição". Por quê? A partir do século XVIII a Sabedoria real
deixou de governá-lo e a Cavalaria deixou de defender a Fé.
23
A Cruz é, sem contestação, o signo mais característico de Jesus Cristo e de Sua realeza; como o diz
a Igreja após David: Regnavit a ligno Deus.
As primeiras moedas cunhadas por nossos reis no começo do século VI apresentam esse signo
augusto. Desde então a cruz não deixou de ocupar em nossas moedas o lugar de honra, no campo do
reverso. Percorrendo nossas coleções de medalhas, públicas ou privadas, examinando os sous de ouro
e os triens de prata e os oboles da primeira e da segunda dinastia de nossos reis, e as moedas de ouro,
de prata, de cobre e de couro da terceira dinastia, em todas veremos a cruz, apresentada sob todas as
formas.
109
Lia-se em nossas moedas de ouro:
Christus vincit, Christus imperat, Christus regnat.
Em outras:
Lilium elegisti tibi.
"Cristo vence, Cristo impera, Cristo reina; — Que o nome de Jesus Cristo,
Nosso Senhor e nosso Deus, seja bendito. — Ele reservou o lis para Si".
24
Wallon, t. I, p. 92. Edição in-12.
25
Oeuvres, t. III, p. 405.
26
O galicanismo foi a primeira e principal causa da Revolução. A independência do poder secular,
proclamada pelo primeiro artigo da Declaração de 1682 tornou-se a base de todas as constituições
modernas.
27
"Jamais houve monarquia, diz Le Bret, que tenha durado tanto tempo no seu esplendor, nem que no
estado em que se encontra não possa prometer ais glória e felicidade que a da França; porque, ainda
que sua sorte tenha sido freqüentemente agitada por furiosas tempestades que foram geralmente
suscitadas ou pela inveja de seus vizinhos ou pela própria malícia de seu povo, não obstante Deus
sempre a ergueu acima da borrasca e a tornou mais forte do que era anteriormente, tanto que um
assinalado personagem deste século disse com razão:
"Magna regni Gallorum fortuna, sed semper in malis major ressurrexit".
"Devemos esperar que ela jamais possa ser enfraquecida, enquanto nossos reis continuarem a
manter a religião no seu brilho, a amar seus povos e a fazê-los partícipes da felicidade que Deus lhes
dá" (Traité de la souveraineté du Roy , L. I, cap. I).
110
livre-pensador, de espírito muito moderno, Viollet-Leduc.28 Não há futuro para eles".
Com efeito, é o espírito de um povo que mantém sua vida. E esse espírito se
compõe dos sentimentos hauridos nas mesmas fontes religiosas, da glória
recolhida nos mesmos campos de honra, do amor às antigas instituições.
Por isso, Leroy-Beaulieu pôde dizer: "O dia em que a França, para obedecer
às intimidações do anticlericalismo, tiver covardemente abdicado de suas funções
de grande nação católica, será para nós o sinal da decadência definitiva, da derrota
irremediável, preparada por mãos francesas. A política do anticlericalismo é, para
a França, uma política de suicídio nacional".
Isso nós vemos em demasia.
28
Prefácio do dicionário de arquitetura.
111
112
EPÍLOGO
Nulla gens esta ita sollicita circa regem suum sicut apes.
Unde regi incolumi omnibus mens una est;
Amisso rumpere fidem, constructa que mella rumpere;
Et si moritur, moriuntur et ipsae.1
S. CHRYSOST. In policratio, Lib. VII.
Qualquer que seja o estado a que estejamos reduzidos, não cessemos de ter
esperança. Há castigo naquilo que nós sofremos. Mas se Deus pune, Ele não se
arrepende de Seus dons. Um dia ou outro, Ele recolocará a França nas vias de
sua juventude. Várias pessoas têm o pressentimento de que isto acontecerá logo.
Edouard Drumond, apesar de seu pessimismo habitual, terminava seu artigo
de 27 de julho de 1905 com essas palavras: "Podemos perfeitamente conceber, na
seqüência dos acontecimentos que não tardarão a se produzir, uma reconstituição
dos elementos franceses, dos elementos de estirpe ao redor de um chefe que
personifique essa estirpe".
O patriotismo, na falta da lei, abre os olhos a muitos publicistas acerca das
condições necessárias à nossa vida nacional. O estudo aprofundado da história da
França, das causas que construíram sua prosperidade e sua preponderância no
mundo, e daquelas que redundaram na sua decadência, convenceu-os de que os
destinos de nosso país estão intimamente ligados aos do catolicismo, e de que
apenas uma coisa pode nos dar, juntamente com a vida, a posição que nos
pertence: retemperar a alma francesa no espírito do passado. Mirabeau deu todo o
argumento da Revolução nessas poucas palavras: "É preciso descatolicizar a
França para desmonarquizá-la, e desmonarquizá-la para descatolicizá-la". É
sempre a mesma palavra de ordem.
"Apenas o cristianismo, diz o positivista Taine, pode travar o resvalamento
insensível através do qual, e com todo seu peso original, nosso povo retrograde em
direção ao fosso; e o velho Evangelho é ainda hoje o melhor auxiliar social".
1
Na verdade, ninguém é tão cuidadoso como as abelhas acerca de suas coisas. Por isso que a
incolumidade da rainha constitui para todas um desígnio comum; e se esta morre, em razão da quebra
da fidelidade ou da perda do mel acumulado, morrem todas. (N. do T.).
113
E Brunetière:
"É uma ilusão crer que triunfaremos com um vago liberalismo da ação
combinada do jacobinismo e da franco-maçonaria... São cegos os que não vêem
que sendo o programa de nossos adversários a descristianização da França,
fugimos do combate e abandonamos a pátria se fingimos crer que a luta se fere em
outro lugar".
Num livro que acaba de publicar, Le Sentiment Religieux en France, Lucien
Arréat, que coloca todas as religiões no mesmo nível e parece não seguir nenhuma
delas, é levado a reconhecer isto (p. 27): "A alma francesa carrega a marca do
catolicismo, isto não é contestável". E um pouco mais longe (p. 31): "O declínio
da religião católica pôde parecer para nós uma enorme vantagem, enquanto as
esperanças da escola enciclopedista brilharam diante de nossos olhos e a sorte de
nossa pátria não estava colocada em perigo. Passados quarenta anos, não é
mais assim, de maneira nenhuma; nossas agitações desordenadas conduziram-
nos a uma crise funesta, a uma dessas batalhas que mudam o destino das
nações".
E ainda: "A ruína das idéias tradicionais freqüentemente decide o retorno a
um estado inferior, não somente nas classes dirigidas, mas ainda naquelas que
têm o verniz da mais alta cultura" (p. 91).
Léon Daudet terminava recentemente um artigo intitulado Les Chemins de
Damas2 [Os Caminhos de Damasco] com estas linhas:
"A verdade é que os franceses de hereditariedade católica, que os desafetos
do catolicismo que se julgam os mais distanciados da crença de seus ancestrais,
estão separados dele apenas por uma tênue cortina, que eles tomam por um muro
blindado... Essa tênue cortina, que separa da fé os homens de temperamento
católico, jamais foi tão flutuante quanto na nossa época, na qual, de um lado a
superabundância das noções, a superatividade intelectual provocam e necessitam
de crises do sensível, — de outro lado a causa da Religião e aquela da Raça
aparecem como inseparáveis. Esta a razão pela qual o caminho de Damasco
jamais foi tão freqüentado, tão transitável. Prevejo que muitos de nossos
contemporâneos nele transitarão de automóvel. O gosto desenfreado da
velocidade aplicar-se-á até mesmo à conversão".
Quase toda semana encontramos essas idéias expressas em jornais, em
revistas, em livros, fato que nos teria deixado muito admirados há alguns anos. A
verdade expressa por L. Veuillot torna-se cada vez mais evidente aos olhos de
quem sabe ver:
"O tempo do meio-termo passou; não há futuro no mundo senão para os
socialistas como Proudhon, ou para os católicos como nós, porque o mundo
chegou a um ponto no qual ele deve perecer ou renascer. Todas as coisas
intermediárias serão esmagadas pela destruição ou rejeitadas com desdém pela
reconstrução" .
2
La Libre Parole , número de 12 de abril de 1903.
3
A Santa Igreja encorajou, desde antes do século XIII e em Roma mesmo a oração pelo rei de França.
Em Saint-Louis-des-Français lê-se em cada um dos pilares que fronteiam a porta de entrada:
QUICUNQUE ORAT PRO REGE FRANCIAE HABET DECEM DIES INDULGENCIAE, A
PAPA INNOC. IV. Quem rezar pelo rei de França ganha dez dias de indulgência, concedida pelo
papa Inocêncio IV.
São Tomás de Aquino recolheu esta inscrição e a inseriu na Suma Teológica e no Livro de
Sentenças (in Supp. XXV, art. III, ad. 2 et in IV sent. Dist. XX, q. 1, art. III).
A mesma inscrição encontra-se em Saint-Claude des Bourguignons.
114
Um corpo não pode existir sem cabeça; e o corpo social, não menos que um
outro corpo, não pode viver, e sobretudo se reconstituir, sem a influência da alma
que, da cabeça, aciona os outros membros.
Há mais de um século a França está decapitada. Por que, pois, espantar-se
com o estado de decomposição em que ela se encontra?
Se Deus tem piedade de nós, parece que Sua primeira obra de misericórdia
será de recolocar, no cimo da pirâmide que as famílias constituem em toda
sociedade, a família que, durante tantos séculos, tem sido a primeira, e que por
um trabalho lento reuniu em torno dela os elementos da nacionalidade francesa,4
petrificando-os com suas mãos possantes para fazer deles um só povo, e neles
vertendo sua alma cheia do pensamento que Clóvis recebeu do céu no dia de seu
batismo.
Buffet, presidente da Assembléia Nacional, gostava de dizer a seu filho acerca
de seus últimos dias:
"Uma dúvida, uma dúvida profunda e crescente não pára, faz alguns anos, de
nos atormentar. Após tantas infelicidades passadas, diante de tantas crises
presentes e de outras tantas que se preparam, fico hoje a me perguntar se a
França ainda pode ser salva...
"Creio, entretanto, que a salvação ainda é possível. Mas eis a última certeza
de minha vida: se a França deve ser salva, ela não o será senão pela monarquia".
Não por uma monarquia qualquer, como se quis de 1871 a 1875, mas pela
verdadeira monarquia francesa e cristã; nas condições, todavia, que as ocorrências
do século presente reclamam.
Lur-Saluces disse com acerto:
"O papel do rei de França não poderia consistir em tentar essa obra absurda
que seria desastrosa se não fosse impossível, e que consistiria em querer forçar
um país a reviver sua vida às avessas. Não se pára a evolução de um povo como
a de um corpo vivo qualquer; o papel do poder é o de regularizá-la e dirigi-la sem a
entravar, de maneira a torná-la fecunda.
"A monarquia é um centro fixo. Eu não poderia melhor compará-la do que a
um desses eixos que, sem estar imóveis, permanecem no mesmo lugar, enquanto
evoluem. Restabelecido esse pivô, a antiga evolução, regular e feliz, poderá
recomeçar". 'Juntos e quando quiserdes, retomaremos o grande movimento de
1789'. Esse convite do conde de Chambord à França traça, ao que me parece, o
programa da realeza futura".
Monsenhor Gerbet, nos seus Esquisses de Rome Chrétienne [Esboços da
Roma Cristã] lembra um fato cuja reprodução, deve-se esperar, ainda veremos.
Falando sobre a basílica Ulpiana, diz:
"Nessa mesma basílica, Constantino convocou uma assembléia do povo
romano. O Imperador colocou-se na abside... Dali fez-se ouvir uma das
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"A história de meus antepassados, disse com inteira verdade o conde de Chambord, é a história da
grandeza progressiva da França".
Sua política hábil e invariável nos deu Berry sob Filipe I; Normandie e Touraine sob Filipe-Augusto;
Languedoc sob São Luís; Champagne e Lyonnais sob Filipe-o-Belo; Dauphiné sob Filipe VI;
Limousin, Saintonge, Angoumois, Aunis e Poitou sob Carlos-o-Sábio; Guyenne sob Carlos VII;
Bourgogne, Provence, Anjou, Maine sob Luís XI; Bretagne sob Carlos VIII; Bourbonnais, Marche e
Auvergne sob Francisco I; Metz, Toul e Verdun sob Henrique II; Navarre, Béarn, Périgord, o condado
de Foix sob Henrique IV; Alsace, Roussillon, Artois sob Luís XIII; Flandre, Franche-Comté,
Nivernais sob Luís XIV; Lorraine, Corse sob Luís XV; Algérie sob Carlos X.
Tal foi a obra da Monarquia.
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proclamações mais solenes cujo texto a História conservou, aquela que anunciou
oficialmente os funerais do mundo pagão e o coroamento cristão do novo mundo.
"Do alto dessa tribuna, Constantino dirigiu estas palavras à assembléia:
"As funestas divisões dos espíritos não podem ter um fim feliz, enquanto um
raio da pura luz da verdade não iluminar aqueles que estão cobertos pelas trevas
de uma profunda ignorância. É preciso, pois, abrir os olhos das almas. É dessa
maneira que deve morrer o erro da idolatria. Renunciemos a essa superstição que
a ignorância gerou e que o contra-senso alimenta. Que o Senhor único e
verdadeiro, que reina nos céus, seja o único a ser adorado..."
"...Então a voz do povo explodiu e fez ouvir durante o espaço de duas horas
estas exclamações:
"Infelizes dos que negam Cristo! O Deus dos cristãos é o único Deus! Que os
templos sejam fechados e que se abram as igrejas!
"Aqueles que não honram Cristo são inimigos dos Augustos! Aqueles que
não honram Cristo são inimigos dos romanos! Aquele que salvou o Imperador é o
verdadeiro Deus!
"AQUELE QUE HONRA CRISTO SEMPRE TRIUNFARÁ SOBRE SEUS
INIMIGOS!"5
Um dia ou outro, um príncipe dirá à França: "As funestas divisões dos
espíritos não podem ter um fim feliz, enquanto a pura luz da verdade não tiver
iluminado os ignorantes... É preciso abrir os olhos das almas". Como Constantino,
ele pedirá essa luz ao Vigário de Jesus Cristo; e como o povo romano daquele
tempo, o povo francês exclamará: "O Deus de nossos pais é o único Deus! Que
as lojas sejam fechadas e que as igrejas se abram. O povo que honra Cristo
sempre triunfará sobre seus inimigos!"
A partir desse dia, mas apenas desse dia, a REVOLUÇÃO terá deixado de
existir e começará a RENOVAÇÃO. Ela começará não somente para a França,
mas para a Europa e para o mundo.
No dia das grandes peregrinações a Paray-le-Monial, milhares de cristãos,
belgas, americanos, ingleses, italianos, assim como franceses, levam ao céu, a
uma só voz, esta súplica:
Deus de clemência,
Ó Deus vencedor,
Salvai Roma e a França
Por vosso Sagrado Coração.
Por que essa oração, que associa num mesmo pensamento a salvação de
um povo e a independência da Santa Sé, era comum aos peregrinos de todos os
povos? Não é por se encontrarem em todos o sentimento da missão dada à
França e o instinto secreto do papel que ainda é chamada a desempenhar essa
nação privilegiada, costumeira nos reerguimentos repentinos?
"Aí está uma afirmação que não sofre desmentido, escrevia naquela época
monsenhor Pie; além dos montes, aqueles que esperam e aqueles que temem o
restabelecimento da ordem cristã no mundo, estão de acordo em não julgar esse
5
Leibnitz já exprimia, há dois séculos, esse desejo: "Se nós fôssemos suficientemente felizes para que
um grande monarca tomasse a peito os interesses da religião, para atribuir todas as descobertas
presentes e futuras ao louvor do Mestre supremo do universo e ao crescimento do amor divino, que
não seria sincero em nós se não contivesse também a caridade relativamente ao homens,
avançaríamos mais em dez anos na glória de Deus e felicidade humana como não faríamos por outra
maneira em vários séculos".
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fato possível e realizável senão através da França. Quando e como? perguntar-
me-eis. Esta não é a questão, e é o segredo somente de Deus.
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ÍNDICE DAS MATÉRIAS
CAPÍTULO I
COMO SE FORMAM OS ESTADOS
CAPÍTULO II
OS ESTADOS DEVEM CONSERVAR
O MODELO FAMILIAR
CAPÍTULO III
A UNIÃO, LEI DAS FAMÍLIAS,
É TAMBÉM A LEI DOS ESTADOS
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tin Lémann. — A união social entre os antigos; entre nós na Idade
Média; entre os estrangeiros ................................................................ 25
CAPÍTULO IV
DE ONDE VEM A PROSPERIDADE
E A DECADÊNCIA DOS POVOS
CAPÍTULO V
QUE DESTINO A ARISTOCRACIA DE DINHEIRO
RESERVA PARA SI E PARA A FRANÇA?
CAPÍTULO VI
A SALVAÇÃO ESTÁ NO RETORNO À PAZ SOCIAL
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dade dele para se conservarem . — É a família humana rebaixada ao
CAPÍTULO VIII
FAMÍLIAS-TRONCOS
121
CAPÍTULO IX
FAMÍLIAS TRADICIONAIS
CAPÍTULO X
AUTORIDADE DO PAI — SANTIDADE DA MÃE
CULTO DOS ANTEPASSADOS
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CAPÍTULO XI
RECONSTITUIÇÃO DO CORPO SOCIAL
CAPÍTULO XII
A FRANÇA. SUAS ORIGENS E SUA MISSÃO.
EPÍLOGO