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Nós, os negros
Nós, os negros
Tendo nascido pouco antes de 1948 (O ano em que o Partido Nacionalista chegou
ao poder.), vivi toda minha vida consciente dentro da estrutura de um "desenvolvimento
em separado" institucionalizado. Minhas amizades, meu amor, minha educação, meu
pensamento e todas as outras facetas de minha vida foram formados e modelados dentro do
contexto da segregação racial. Em vários estágios de minha vida consegui superar algumas
idéias que o sistema me ensinou. Agora me proponho, e espero consegui-lo, a dar uma
olhada naqueles que participam da oposição ao sistema - não de um ponto de vista
distanciado, mas do ponto de vista de um homem negro consciente da premência de se
compreender o que está envolvido na nova abordagem: a "Consciência Negra".
Não devemos perder tempo aqui tratando das manifestações da pobreza material do
povo negro. Uma ampla literatura já foi escrita sobre esse problema. Talvez se deva dizer
algo a respeito da pobreza espiritual. O que faz o negro deixar de reagir? Será que ele se
convenceu por si mesmo da própria incapacidade? Será que em sua constituição genética
não existe aquela qualidade rara que faz com que um homem esteja pronto a morrer pela
realização de suas aspirações? Ou será ele apenas uma pessoa derrotada? As respostas para
essas questões não é evidente. No entanto, está mais próxima da última sugestão que de
qualquer outra. A lógica que se acha por trás da dominação do branco é a de preparar o
negro para desempenhar neste país um papel subserviente. Há pouco tempo tal afirmação
costumava ser feita sem constrangimento no Parlamento, até mesmo a respeito do sistema
educacional para os negros. E ainda se afirma até hoje, embora numa linguagem muito
mais sofisticada. Os malfeitores foram em grande parte bem-sucedidos em produzir, como
produto final de sua máquina, uma espécie de homem negro que só é homem na forma. Tal
é o ponto a que avançou o processo de desumanização.
Sob o governo de Smuts os negros estavam oprimidos, mas ainda eram gente. Eles
deixaram de mudar o sistema devido a várias razões que não vamos analisar aqui. Mas o
tipo de homem negro que temos hoje perdeu sua dignidade humana. Reduzido a uma casca
serviçal, ele olha com respeito e temor para a estrutura de poder do branco e aceita o que
vê como uma "posição inevitável". Bem no fundo, sua raiva cresce com o acúmulo de
insultos, mas ele a manifesta na direção errada - contra seu companheiro na cidade
segregada, contra coisas que são propriedade dos negros. Ele não confia mais na liderança,
porque as prisões em massa de 1963 podem ser atribuídas à inabilidade da liderança, e nem
há uma liderança na qual confiar. Na intimidade de seu banheiro contorce o rosto numa
condenação silenciosa da sociedade branca, mas suas feições se iluminam ao sair depressa
para atender, com a obediência de um cordeiro, ao chamado impaciente de seu amo. No
ônibus ou no trem, voltando para casa, junta-se ao coro de vozes que condenam o branco
claramente, mas é o primeiro a elogiar o governo na frente da polícia ou de seus patrões.
Seu coração almeja o conforto da sociedade branca e ele culpa a si mesmo por não ser
"educado" o suficiente para merecer tal luxo. As propaladas realizações dos brancos no
campo da ciência - que ele só entende vagamente - servem para convencê-lo, até certo
ponto, da inutilidade de resistir e a jogar fora qualquer esperança de que algum dia as
coisas mudem. No geral, o homem negro se transformou numa casca, numa sombra de
homem, totalmente derrotado, afogado na própria miséria; um escravo, um boi que suporta
o jugo da opressão com a timidez de um cordeiro.
Por mais amarga que possa parecer, essa é a primeira verdade que temos de aceitar
antes de poder iniciar qualquer programa destinado a mudar o status quo. Torna-se ainda
mais necessário encarar a verdade como ela é se percebermos que o único veículo para a
mudança são essas pessoas que perderam a personalidade. O primeiro passo, portanto, é
fazer com que o negro se encontre a si mesmo, insuflar novamente a vida em sua casca
vazia, infundir nele o orgulho e a dignidade. Lembrar-lhe de sua cumplicidade no crime de
permitir que abusem dele, deixando assim que o mal impere em seu país natal. É
exatamente isso que queremos dizer quando falamos em um processo de olhar para dentro.
Essa é a definição de Consciência Negra.
Um escritor ressalta que, no esforço de destruir por completo as estruturas que
haviam sido estabelecidas na sociedade africana e de impor seu imperialismo de forma
total e corrosiva, os colonizadores não se satisfizeram apenas em manter um povo em suas
garras e esvaziar a mente dos nativos de toda forma e conteúdo, mas se voltaram também
para o passado do povo oprimido e o distorceram, desfiguraram e destruíram. Não se fez
mais nenhuma referência à cultura africana, que se tornou um barbarismo. A África era o
"continente obscuro". As práticas e os costumes religiosos eram considerados superstição.
A história da sociedade africana foi reduzida a batalhas tribais e guerras internas. Nenhuma
migração de um lugar de moradia para outro foi feita de modo consciente. Não, o que havia
era sempre a fuga de um tirano que queria destruir a tribo sem nenhuma razão positiva,
mas apenas para eliminá-la da face da Terra.
Não é de estranhar que a criança africana aprenda na escola a odiar tudo o que
herdou. A imagem que lhe apresentam é tão negativa que seu único consolo consiste em
identificar-se ao máximo com a sociedade branca.
Portanto, não há dúvida de que muito da abordagem para fazer surgir a Consciência
Negra precisa ser voltada para o passado, a fim de procurar reescrever a história do negro e
criar nela os heróis que formam o núcleo do contexto africano. Quando sabemos que uma
vasta literatura a respeito de Gandhi na África do Sul está sendo reunida, podemos afirmar
que a comunidade indiana já começou a trabalhar nesse sentido. Mas há muito poucas
referências a heróis africanos. Um povo sem uma história positiva é como um veículo sem
motor. Suas emoções não podem ser facilmente controladas e canalizadas numa direção
clara. Ele vive sempre à sombra de uma sociedade mais bem-sucedida. Por esse motivo,
num país como o nosso, ele é obrigado a celebrar feriados como a data de aniversário de
Paul Kruger, o Dia dos Heróis, o Dia da República etc., - e todos são ocasiões em que a
humilhação da derrota é revivida de imediato.
Além disso, podemos perceber em nossas culturas nativas muitas virtudes positivas
que deveriam servir de lição para os ocidentais. A união da comunidade, por exemplo, está
no centro de nossa cultura. A facilidade com que os africanos se comunicam entre si não é
algo forçado pela autoridade, mas inerente à estrutura do povo africano. Assim, enquanto
uma família branca pode permanecer numa determinada área sem conhecer os vizinhos, os
africanos desenvolvem um sentimento comunitário depois de pouco tempo de convivência.
Muitos funcionários de hospitais se surpreendem com a prática de indianos que levam
presentes e lembranças a pacientes cujos nomes mal conseguem recordar. Mas uma vez,
essa é uma manifestação do inter-relacionamento entre as pessoas no mundo do negro, em
oposição ao mundo altamente impessoal em que vive o branquelo (Whitey, no original:
palavra depreciativa para se referir ao branco.NT). Essas são características que não
podemos no permitir perder. Seu valor só pode ser apreciado por aqueles de nós que ainda
não foram transformados em escravos da tecnologia e da máquina. Poderíamos citar uma
infinidade de outros exemplos. Nesse caso, a Consciência Negra também procura mostrar
aos negros o valor de seus próprios padrões e pontos de vista. Incentiva os negros a
julgarem a si mesmos de acordo com esses padrões e a não se deixarem enganar pela
sociedade branca, que absolve a si mesma e faz dos padrões brancos a medida pela qual até
os negros julgam uns aos outros.
Para realizar uma ação verdadeira, é necessário ser parte viva da África e de seu
pensamento; é preciso ser um elemento da energia popular que é totalmente convocada
para a libertação, o progresso e a felicidade da África. Fora dessa luta não há lugar para o
artista ou para o intelectual que não esteja, ele mesmo, preocupado e totalmente
identificado com o povo na grande batalha da África e da humanidade sofredora.
"Nós, os negros", escrito por Bantu Steve Biko (Frank Talk), em setembro de 1970
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