Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Entornando um copo de vinho com Albert Camus num daqueles bons cafés de
Paris, Sartre comunicou ao amigo que em breve sairia uma crítica bem pesada
na sua revista Les Temps Modernes contra o seu último livro L'Homme
revolte (o Homem Revoltado). Haviam se encontrado na rua vindo para um
destino comum, uma manifestação contra a ditadura franquista na Espanha.
Nunca mais o fizeram.
Os amigos rompem
O petardo lançado então contra ele, intitulado Albert Camus ou a alma
rebelde (Temps Modernes, maio de 1952), foi estrondoso. Sartre, alegando
razões de amizade, passara a ingrata tarefa para um dos seus próximos, um tal
de Francis Jeanson, um jovem desconhecido que destratou Camus em vinte
páginas.
"O poder é triste no século 20", concluiu ele. Quando Camus morreu num
estúpido acidente de automóvel, em janeiro de 1960, Sartre, no necrológico, o
considerou um dos grandes moralistas da tradição literária francesa, mas
nunca mais tinham se aproximado.
O efeito Koestler
Para Ronald Aronson, um estudioso norte-americano do panorama do
existencialismo francês daquela época, o fator que muito impulsionou a virada
de Camus para um anticomunismo mais radical deveu-se a presença de Arthur
Koestler, um refugiado húngaro que passara a frequentar a trupe que cercava
Sartre e Simone e que alcançara a celebridade com um livro que antecipou os
começos da guerra fria: Darkness at Noon (Do zero ao infinito), aparecido
em 1941, que relatava a capitulação ficcional de Bukharin durante os
Processos de Moscou (1936-1938), seguido de outro, intitulado Le Yogi et le
Commissaire (O Ioga e o Comissário), de 1945, onde denunciava caminho
violento tomado pelos comunistas.
A influência dele sobre Camus fez por acelerar a sua mutação. O romancista
que fora um militante do Partido Comunista na sua Argélia natal (1936-1938),
um ativista da Resistência, o tão admirado homem engajado de Sartre,
começou a se desengajar no após-guerra, procurando outro caminho que não
o levasse a aliar-se ao comunismo, como Sartre terminou fazendo.
Em verdade, a postura que ele assumiu era um tanto irreal ou mesmo utópica
devido à dimensão das forças em crescente colisão, a do Bloco Capitalista-
Ocidental contra o Bloco Comunista do Leste. Rivalidade que envolveu o
mundo e o ameaçou durante anos com um apocalipse atômico. Naquela
situação era impossível haver "uma terceira posição" que conseguisse
permanecer equidistante deles.
Seja como for o desentendimento entre Camus e Sartre, teve uma conotação
universal, resumindo os conflitos da inteligência ocidental no século 20 (pelo
menos desde 1917). Afinal, ao longo do século, todos os seres pensantes
foram chamados a se colocarem a favor ou contra o comunismo, da mesma
forma que ocorrera quatro séculos antes no Ocidente por ocasião da Reforma
Religiosa no começo do século 16. Fato que dissolveu o Partido dos
Humanistas da época do renascimento, forçado a abraçar a ortodoxia católica
ou a dos protestantes.
Nem o afeto e admiração recíproca que ambos sentiam um pelo outro resistiu à
pressão da Guerra Fria. Camus somente tinha olhos para os crimes de Stalin e
para os desatinos da esquerda, enquanto Sartre insurgiu-se contra a guerra
colonialista que a França movia primeiro na Indochina (1945-1954) e depois na
Argélia (1956-1961) e também contra os Estados Unidos que lhe dava apoio.