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Albert Camus contra Jean-Paul

Sartre: o fim da revolução


Voltaire Schilling
Edição: André Roca

Em outubro de 1951, deu-se em Paris a publicação de um livro que abalou a


esquerda francesa. Tratava-se do ensaio de Albert Camus intitulado O
Homem Revoltado, uma brilhante e literariamente bem articulada exposição
sobre as mazelas da revolução através dos tempos contemporâneos, inclusive
com reparos aos acontecimentos decorrentes de 1789. Entre outras coisas,
provocou o fim da longa amizade que Jean Paul Sartre mantinha com ele.

Nos calores da Guerra Fria

Entornando um copo de vinho com Albert Camus num daqueles bons cafés de
Paris, Sartre comunicou ao amigo que em breve sairia uma crítica bem pesada
na sua revista Les Temps Modernes contra o seu último livro L'Homme
revolte (o Homem Revoltado). Haviam se encontrado na rua vindo para um
destino comum, uma manifestação contra a ditadura franquista na Espanha.
Nunca mais o fizeram.

O ensaio de Camus, aparecido em 1951, provocara um desconcerto geral em


meio à esquerda francesa ao tempo em que vendeu quase 70 mil exemplares,
editados pela Gallimard, ao longo de 1952. E não era para menos. Naqueles
tempos quentes da Guerra Fria, com Mao Tse Tung recém chegando ao poder
em Pequim e os norte-americanos ameaçando explodir a Coréia e, quiçá, a
China Popular, com bombas atômicas, como era o desejo do general
MacArthur, o famoso escritor deu-se ao desplante de repudiar a revolução,
denunciando-a como a parteira dos absurdos e da arbitrariedade do Estado
Policial moderno. Foi um pandemônio.

Os amigos rompem
O petardo lançado então contra ele, intitulado Albert Camus ou a alma
rebelde (Temps Modernes, maio de 1952), foi estrondoso. Sartre, alegando
razões de amizade, passara a ingrata tarefa para um dos seus próximos, um tal
de Francis Jeanson, um jovem desconhecido que destratou Camus em vinte
páginas.

Ele, chocado com a agressividade do artigo, respondeu em carta à direção.


Sartre então entrou na liça, em defesa de Jeanson. "Nossa amizade não era
fácil, mas vou sentir a falta dela. Se você a quebra hoje, é, sem dúvida, porque
ela devia um dia ser quebrada... também a amizade é totalitária: é necessário o
perfeito acordo ou o corte de relações."

Nove anos de boa convivência entre os dois evaporaram-se em outras trinta


páginas do Les Temps, nº 82, de agosto de 1952, que teve duas tiragens
esgotadas quando o público intelectual soube da "guerra literária" entre os dois
maiores nomes da literatura francesa de então. Na verdade, o acusatório de
Camus não era tanto contra a revolução, mas, sim, contra sua inoperância,
denunciando-lhe a inutilidade da sua razão de ser.

O sem sentido da revolução


De que servira à França, indagou, ter tido três outras revoluções desde 1789,
todas elas sangrentas, se os escandinavos e os ingleses, sem muitos tumultos,
conduzidos pelas políticas de socialistas moderados, tinham atingido um alto
padrão de vida, bem superior ao dos franceses?

A crítica de Camus aos destemperos e exageros das revoluções não pararam


por aí, visto que acreditava que os seus líderes, quando no poder, mais tarde
ou mais cedo, se tornavam repressores ou heréticos... policiais ou loucos!
Porque, quis saber ele, Prometeu, com suas esperanças de regenerar o
mundo, terminava como César, tiranizando as instituições?

O danoso daquilo tudo é que os admiradores das insurreições de massa feitas


em nome da liberdade logo adotavam uma política de crimes justificados.
Prendiam, interrogavam, confinavam e, em nome de um profundo amor pela
humanidade, fuzilavam. Convictos de que aqueles a quem despachavam da
vida eram ervas daninhas que precisavam extirpar do jardim socialista para
que, mais tarde, no futuro, no amadurecer da planta, ela vicejasse com todo o
vigor. Enquanto isto, os campos de concentração e o tiro no pescoço eram os
herbicidas que eles, ainda que a contragosto, se viam obrigados a espargir.

A traição dos intelectuais


Irritava-o ainda o estrabismo dos intelectuais comprometidos com a esquerda
que eram incapazes de formular sequer uma só crítica ao regime soviético.
Podia-se ser rebelde contra tudo, menos contra Moscou! O que lembrava o
sermão em forma de livro de Julien Benda, La Trahison des Clercs (A
Traição dos Clérigos, de 1927), que falava do abandono deles aos princípios
da razão, seduzidos e apaixonados pelas religiões terrenas (as ideologias), que
abraçavam.

O desacerto de Camus com o socialismo milenarista, com os apocalípticos que


viam sinais da crise derradeira do capitalismo a cada dobrar de esquina, vinha
de mais longe, do final da guerra. Ainda que ele fosse um dos homens-chave
do célebre Combat, o jornal da Resistência, que chegara a façanha de vender
300 mil exemplares ainda 1943, numa França ocupada, rapidamente o autor
de A Peste atinou, já em 1944, que a Resistência não iria desembocar na
Revolução Socialista ambicionada por muitos militantes, particularmente
pelos maquisards de esquerda. Acreditava sim numa Revolução Democrática
que impusesse novos relacionamentos sociais e humanos, mas nada que
dirigido ou controlado pelos comunistas.

Em busca de uma Terceira Via


Porque, então, ensimesmou, ao invés da pregação a favor da revolução
violenta, não encontrar uma solução de compromisso entre "a liberdade e a
justiça"? Uma sociedade onde houvesse liberdade para que todos tivessem as
mesmas oportunidades e onde qualquer um fosse respeitado nos seus direitos
mais comezinhos (de certo modo, ao pensar assim, ele antecipou-se de longe
à teoria da Terceira Via de Anthony Giddens e de Tony Blair, já devidamente
sepultada).

Afinal, que se encontrasse um denominador comum entre a economia


coletivista e a política liberal, e que, fundamentalmente, os socialistas, este
"proletariado de bacharéis", parassem de se imaginar como seres ungidos
divinos da reforma social. Que calçassem as sandálias da humildade. Daí
entender-se o titulo do seu provocativo artigo A Democracia: exercício de
modéstia, 1948.

Que aqueles aventureiros da dialética - muitos dos personagens dos


"Mandarins" de Simone de Beauvoir -, cessassem de clamar pela revolução em
abstrato, atingida pelo cálculo, feita por gente ressentida que só conduzia ao
domínio "do rancor e tirania", e voltassem a ser de carne e osso como todo
mundo.

E, acima de tudo, resistissem à tentação de praticar massacres e de querer


hastear a bandeira da liberdade no centro dos campos corretivos e de
trabalhos forçados, visto que o Estado que ambicionavam, fosse por influencia
de Marx, Hegel ou Nietzsche, desandava num "Estado terrorista". Entre outros
motivos porque "Os nossos criminosos... são adultos, e o seu álibi irrefutável é
a filosofia que pode servir para tudo, até para transformar os assassinos em
juízes." (O Homem Revoltado - Introdução).

Atrás da revolução relativa


Buscassem, pois, a revolução relativa, sem matanças, sem rios de sangue
escorrendo pelas ruas, e sem as abomináveis justificações pelas mortes em
massa. Sartre acreditava que era possível, purgando a água suja do stalinismo,
salvar-se a criança dentro da bacia do socialismo. Camus, desencantado,
enxergava sentando bem no meio dela um pequeno monstro, parido pelo terror
revolucionário.

"O poder é triste no século 20", concluiu ele. Quando Camus morreu num
estúpido acidente de automóvel, em janeiro de 1960, Sartre, no necrológico, o
considerou um dos grandes moralistas da tradição literária francesa, mas
nunca mais tinham se aproximado.

O efeito Koestler
Para Ronald Aronson, um estudioso norte-americano do panorama do
existencialismo francês daquela época, o fator que muito impulsionou a virada
de Camus para um anticomunismo mais radical deveu-se a presença de Arthur
Koestler, um refugiado húngaro que passara a frequentar a trupe que cercava
Sartre e Simone e que alcançara a celebridade com um livro que antecipou os
começos da guerra fria: Darkness at Noon (Do zero ao infinito), aparecido
em 1941, que relatava a capitulação ficcional de Bukharin durante os
Processos de Moscou (1936-1938), seguido de outro, intitulado Le Yogi et le
Commissaire (O Ioga e o Comissário), de 1945, onde denunciava caminho
violento tomado pelos comunistas.

Koestler era o exemplo vivo do intelectual renegado, um ex-agente comunista


que durante a prisão na Guerra Civil da Espanha, desiludido com a causa,
assumira uma posição crescentemente anticomunista, efeito que levou ao
escritor franco-argelino, seu amigo recente, a afirmar que "comunismo =
assassinatos".

A influência dele sobre Camus fez por acelerar a sua mutação. O romancista
que fora um militante do Partido Comunista na sua Argélia natal (1936-1938),
um ativista da Resistência, o tão admirado homem engajado de Sartre,
começou a se desengajar no após-guerra, procurando outro caminho que não
o levasse a aliar-se ao comunismo, como Sartre terminou fazendo.

Em verdade, a postura que ele assumiu era um tanto irreal ou mesmo utópica
devido à dimensão das forças em crescente colisão, a do Bloco Capitalista-
Ocidental contra o Bloco Comunista do Leste. Rivalidade que envolveu o
mundo e o ameaçou durante anos com um apocalipse atômico. Naquela
situação era impossível haver "uma terceira posição" que conseguisse
permanecer equidistante deles.

Tenha-se em conta o medo que a Guerra da Coréia indiretamente provocou na


população parisiense, entre 1950 e 1952. Muitos passaram a temer que com o
acirramento do confronto no extremo-oriente, os soviéticos em represália à
intervenção norte-americana comandada pelo general MacArthur, poderiam
invadir a França. Francine, a mulher de Camus, confessou à Simone de
Beauvoir que, se tal acontecesse, ela se veria obrigada a matar seus dois filhos
e se suicidar, pois não poderia suportar viver "sob os vermelhos". Os alunos de
Simone, por sua vez, juram fazer um "pacto de morte" pelo mesmo motivo. A
geração que sobreviera a Hitler não queria entregar-se a Stalin. Este, pois, era
o clima que cercou a polêmica.

Seja como for o desentendimento entre Camus e Sartre, teve uma conotação
universal, resumindo os conflitos da inteligência ocidental no século 20 (pelo
menos desde 1917). Afinal, ao longo do século, todos os seres pensantes
foram chamados a se colocarem a favor ou contra o comunismo, da mesma
forma que ocorrera quatro séculos antes no Ocidente por ocasião da Reforma
Religiosa no começo do século 16. Fato que dissolveu o Partido dos
Humanistas da época do renascimento, forçado a abraçar a ortodoxia católica
ou a dos protestantes.

Nem o afeto e admiração recíproca que ambos sentiam um pelo outro resistiu à
pressão da Guerra Fria. Camus somente tinha olhos para os crimes de Stalin e
para os desatinos da esquerda, enquanto Sartre insurgiu-se contra a guerra
colonialista que a França movia primeiro na Indochina (1945-1954) e depois na
Argélia (1956-1961) e também contra os Estados Unidos que lhe dava apoio.

O resultado disso é que Camus tendia a silenciar frente aos desmandos e


atrocidades praticadas pelo colonialismo, enquanto Sartre, ao contrário,
fechava os ouvidos para a denúncia dos campos forçados soviéticos, ao
Processo Slansky, à "conspiração dos médicos", ao fuzilamento dos
trabalhadores alemães alçados contra os soviéticos em Berlim, em 1953.

Somente afastou-se dos comunistas em 1956, com o famoso ensaio Le


phantome de Stalin (O fantasma de Stalin), escrito em repúdio à invasão
da Hungria pelo Exército Vermelho. Numa entrevista
ao L'Express anunciou: "Eu estou rompendo, com pesar, mas
totalmente, meus laços com meus amigos escritores soviéticos que
não denunciam (ou não podem denunciar) o massacre na Hungria.
Nós não mais podemos qualquer amizade com a facção dominante da
burocracia soviética".

Envolvidos na Guerra Ideológica do Século, Camus e Sartre terminaram


mergulhando fundo nela, pondo fim a uma das mais produtivas amizades
intelectuais da literatura francesa do século 20.
Bibliografia
Aronson , Ronald - Camus e Sartre: o fim de uma amizade. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2007.
Beauvoir, Simone - A Força das Coisas. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira,1995.
Beevor, Anthony - Paris after liberation: 1944-1949. Londres: Penguin Books,
1994.
Camus, Albert - O Homem Revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.
Cohen-Solal, Annie - Sartre: 1905-1985. Porto Alegre: LP&M, 1986.
Furet, François - O Passado de uma Ilusão. Ensaios sobre a ideia comunista
no século XX. São Paulo: Siciliano, 1995.
Levy, Bernard-Henri - O Século de Sartre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001.
Lottman, Herbert - Albert Camus. Paris: Seuil, 1978.
Lottman, Herbert - Rive Gauche. Paris: Points, 1984
Mounier, Emmanuel - Malraux, Camus, Sartre, Bernanos. Paris: Point, 1970.
Rowley, Hazel - Tête-à-Tête: Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2006.
Sartre, Jean-Paul - Situações IV . Lisboa: Europa-América, 1972.
Thody, Philip - Sartre: uma introdução biográfica .Rio de Janeiro: Bloch, 1974.
Todd, Olivier - Albert Camus: una vida. Barcelona: Tusquets, 1997.
Winock, Michel - O século dos intelectuais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2000.

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