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Título muito interessante mesmo: você vai querer saber tudo

sobre ​Daughters of the Dust1

Dimitria Herrera2

Resumo: ​Este artigo pretende analisar as escolhas feitas pelas personagens femininas do
filme ​Daughters of the Dust, ​dirigido por Julie Dash, no que se refere à manutenção de suas
tradições familiares.

Palavras-chave:

Abstract: ​bla bla bla

Keywords: ​word, word, word

1
​Trabalho produzido como forma de avaliação para a disciplina optativa Teatro de Diáspora Afrodescendente,
coordenada pelos docentes Licko Turle e Alexandra Dumas e pelas tirocinistas/docentes Mônica Santana e
Fernanda Silva, realizada no primeiro semestre de 2019 na Universidade Federal da Bahia.
2
​ Dimitria Herrera é graduanda em Artes Cênicas com habilitação em Interpretação Teatral pela Universidade
Federal da Bahia. Tem pesquisas nas áreas de Artes e Letras.
1. Introdução

Daughters of the Dust ​é um filme independente norte-americano, escrito, dirigido e

produzido por Julie Dash. Seu lançamento, em 1992, marcou a história do cinema nos Estados
Unidos como a primeira vez em que a obra de uma mulher afro-americana teve ampla
exibição nos cinemas do país. Essa informação, entretanto, não é suficiente para dimensionar
o acontecimento. A obra cinematográfica desafia o cinema ocidental convencional até os dias
de hoje, tanto por sua estética quanto pelo seu tema, por suas escolhas narrativas, seu elenco,
sua equipe e a maioria dos caminhos tomados durante sua produção. Em uma conversa com
Julie Dash em 1992, bell hooks, analisando a necessidade de uma redefinição da história e da
mitologia no processo de descolonização e libertação das pessoas afro-americanas (ou de
outros grupos globalmente oprimidos), diz:

Como ​Daughters f​ az isso de uma maneira tão incrível, cria-se um novo tipo
de filme artístico, porque claramente pode ser visto como um filme artístico,
mas também como uma intervenção política progressiva. Existem imagens
de pessoas negras nesse filme, imagens nossas como nunca havíamos visto
nós mesmos na tela antes. (ADICIONAR AQUI, 1992, p. 31/32)3

Apesar de ter sido lançado no início da década de 90 e da extensa bibliografia sobre o


assunto em inglês, existem poucas produções em português com foco nessa obra
cinematográfica. Mesmo que acontecimentos recentes (como o albúm ​Lemonade, de Beyoncé,
com inspiração estética e temática em ​Daughters of the Dust) tenham colocado o filme em
pauta, mesmo após seu relançamento nos cinemas americanos e mesmo com a
disponibilização do filme em alta definição na plataforma Netflix brasileira, para os nativos
da língua portuguesa as referências escritas ao filme ainda são escassas. Das publicações
brasileiras podemos citar o artigo de Marco Aurélio da Conceição Correa e Tatiana Santos
dos Reis p​ ublicado pela Kwanissa: Revista de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros como
uma das poucas produções escritas facilmente acessíveis.
Por esse motivo, se faz necessário ao presente artigo aproximar os falantes de
português ao rico universo criado por Julie Dash e sua equipe. O livro ​Daughters of the Dust:

3
​Tradução livre. Excerto original: “Because Daughters does this in such an incredible way, it creates a new kind
of art film because it clearly can be seen as an art film, but also as a progressive political intervention. There are
images of black people is this film, images of us as we've never seen ourselves on the screen before.”
the making of an African American woman’s film4 escrito por Julie Dash com participações de
Toni Cade Bambara e bell hooks será uma das principais referências. O ponto de partida será
[falar do motivo para incluir todo o processo de produção do filme]. Em sequência, será feita
uma contextualização do enredo do filme e de algumas escolhas estéticas e políticas de sua
construção. Por fim, serão apresentadas personagens relevantes para destacar algumas das
tradições apresentadas por Dash em seu filme e para construir um diálogo sobre a memória
mítica que está sendo criada.

1.1 Contextualização: Julie Dash e a produção independente de ​Daughters


of the Dust
Julie Dash é uma escritora, diretora e produtora afro-americana nascida em Nova
Iorque em 1952. Graduada em produção cinematográfica pelo ​City College of New York em
1974, prosseguiu os estudos com uma bolsa na ​American Film Institute.​ Após terminar o
curta-metragem ​Illusions, em 1981, deu início ao intenso processo de pesquisa para
Daughters of the Dust,​ q​ ue levaria cerca de sete anos.
Inicialmente pensado como um curta-metragem silencioso sobre o momento em que
uma família afro-americana das ilhas da Carolina do Sul se prepara para migrar para o norte,
na virada do século vinte, seria por causa da pesquisa de Dash que a história se transformaria
num longa metragem. Ela percebeu que “havia muita informação e ela precisava ser
compartilhada.”
Até 1985, as pesquisas para o filme permaneceram constantes. Pelo final de 1986,
havia uma versão do roteiro (que passaria por 5 reescritas completas, dois polimentos e teve
partes alteradas durante a gravação) pronta para a filmagem. Dash, então, começou a busca
por financiamento. O orçamento inicial estipulava 250 mil dólares, mas, mesmo aplicando-se
para diversas bolsas e programas de financiamento, o dinheiro não se fez acessível. Dash e
Arthur Jafa, co-produtor e diretor de fotografia, decidiram filmar um uma prévia do filme na
esperança de que isso facilitasse a obtenção de recursos. No verão de 87, formaram uma
equipe de 14 pessoas e gravaram na ilha de Santa Helena durante cinco dias.

4
​Disponível na íntegra, em inglês, para empréstimo através do site Archive.org -
https://archive.org/details/daughtersofdustt00dash
Essa experiência gerou uma atualização no orçamento previsto, de 250 para 800 mil
dólares, além de um processo exaustivo de edição no qual Dash investiu muito de suas
economias. A prévia, editada, foi enviada para diversos possíveis financiadores, americanos e
europeus. Sobre as respostas que foram recebidas, Dash diz:

Os estúdios de Hollywood ficaram geralmente impressionados com o visual


do filme, mas de alguma forma eles não conseguiam compreender o
conceito. Eles não conseguiam processar o fato de que uma mulher negra
filmmaker queria fazer um filme sobre mulheres afro-americanas na virada
do século - particularmente um filme com uma família forte, com
personagens que não estavam vivendo no gueto, matando uns aos outros e
queimando tudo. E não haveria nenhuma cena de sexo explícito, tampouco.
Eles pensavam que o filme seria invendável. 5
(CITACAO, 1992, p 8)

Em 1988, durante um retiro nas Montanhas Rochosas, em Utah, Dash conheceu Lynn
Holst, que trabalhava para a American Playhouse. Uma série de longas discussões sobre o
projeto, que capturou o interesse de Holst, levaram ao posterior investimento da American
Playhouse, que aceitou arcar com a maior parte do financiamento. As filmagens foram
planejadas para outubro de 1989.
Mal tinham acabado de instalar a equipe de produção na ilha de Santa Helena quando
receberam a notícia do iminente furacão Hugo, que os obrigou a abandonar a ilha no mesmo
dia. Quando finalmente começaram a filmar restavam 28 dias para capturar a parte principal.
A locação mais frequente ficava a uma milha de caminhada, e, por motivos de preservação
ambiental, não podiam usar veículos motorizados, de forma que todo o equipamento
precisava ser carregado a pé. Como não seria possível levar um gerador, Arthur Jafa decidiu
filmar com a luz natural, solar.
Dash descreve o período de filmagem como extremamente exaustivo. Além da
constante necessidade de aproveitar as horas de luz, lidavam com os problemas de
convivência, com a natureza e seus implacáveis mosquitos e tempestades de areia, e com os
recursos cada vez mais escassos. Uma parte da equipe teve que ser enviada de volta mais cedo
por falta de dinheiro. Alguns permaneceram, trabalhando de graça por alguns dias.

5
“​Hollywood studios were generally impressed with the look of the film, but somehow they couldn't grasp the
concept. They could not process the fact that a black woman filmmaker wanted to make a film about African
American women at the turn of the century - particularly a film with a strong family, with characters who weren't
living in the ghetto, killing each other and burning things down. And there weren't going to be any explicit sex
scenes, either. They thought the film would be unmarketable.”
Finalizada a gravação, o que antes era recurso disponível havia se transformado em
dívidas. Em janeiro de 1990, Dash começa a editar em sua casa, valendo-se de toda a ajuda e
todos os recursos pessoais que podia conseguir - as recompensas de premiações e outros
pequenos projetos em que ela trabalhou foram imediatamente para a edição de ​Daughters. Em
dezembro, havia uma versão. John Barnes produziu a trilha sonora original em duas semanas
devido à impossibilidade de alterar a data final da mixagem de som. Com o filme pronto,
começou a busca por um distribuidor.
Dash imaginava que, com o material filmado, editado e sonorizado, a busca por um
distribuidor não seria muito difícil. Infelizmente, foi um desafio tal qual a busca por uma
financiador. Sobre isso, Dash diz:

Os distribuidores falavam sobre o visual espetacular do filme e sobre as


imagens e sobre a história ser tão diferente e provocar reflexão, mas a
resposta final era de que ‘não havia mercado’ para esse tipo de filme. De
novo, eu estava escutando principalmente homens brancos dizendo a mim,
uma mulher afro-americana, o que meu povo queria ver. De fato, eles
estavam decidindo o que nós deveríamos ser permitidos a ver. Eu sabia que
estava errado. Eu sabia que eles estavam errados.6 (DASH, 1992, p. 25)

Diante desses acontecimentos, o filme foi colocado no circuito de festivais. O


Sundance Film Festival de 1991, em Utah, deu o prêmio de melhor direção de fotografia a
Daughters of the Dust​. A recepção ao filme foi igualmente calorosa nos outros festivais em
que participou, até setembro do mesmo ano, quando Kino International assinou um contrato
de distribuição para o ano seguinte.
Daughters of the Dust foi lançado no dia 15 de Janeiro de 1992 em Nova Iorque, no
Film Forum. Todos os ingressos se esgotaram. No dia do lançamento, a ​Coalition of One
Hundred Black Woman of New York fez uma recepção em apoio ao filme. ​Daughters foi
exibido largamente nos cinemas do país e se tornou um marco histórico para o cinema
norte-americano.

6
“​The distributors talked about the spectacular look of the film and the images and story being so different and
thought-provoking, yet the consistent response was that there was 'no market' for this type of film. Again, I was
hearing mostly white men telling me, an African American woman, what my people wanted to see. In fact, they
were deciding what we should be allowed to see. I knew that was wrong. I knew they were wrong."
2 Sobre o filme: enredo, narração e escolhas estéticas
Daughters of the Dust conta a história da família Peazant, habitantes da ilha de Santa

Helena na costa da Carolina do Sul, em 1902, no momento em que a maior parte da família se
prepara para migrar para o continente e tomar a direção norte. O enredo se desenrola num
único dia, um domingo, quando a família faz uma grande refeição como forma de despedida
da matriarca, Nana, que permanecerá em Santa Helena. Duas Peazant que já habitam o
continente voltam para o esse encontro, uma delas trazendo um fotógrafo contratado para
registrar o momento.
Os Peazant são ​Gullah,​ ou ​Geechee,​ termo amplamente utilizado para designar
afro-americanos da região da Geórgia e da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. As ilhas
dessa região foram, no período do comércio transatlântico de escravos, o principal ponto de
desembarque dos navios negreiros com seu material humano capturado no continente
africano. O relativo isolamento que as ilhas encaravam frente ao continente contribuiu para
que ali se desenvolvesse uma cultura própria, na medida em que os diversos povos africanos,
trabalhadores forçados das plantations, buscavam formas de se relacionar e manterem vivas as
suas tradições. Desenvolveram sua própria linguagem, uma rica mistura de variados idiomas
africanos com o inglês, considerada por muito tempo como um “inglês de bebê” até
progressivamente passar a ter sua importância e características reconhecidas.
Daughters of the Dust ​está baseado nessa cultura. O ponto de partida para a história do
filme foram as recordações de sua família, como diz Dash em seu livro:

“As memórias de minha própria família levaram à ideia de ​Daughters e​


formaram as bases para alguns dos personagens. Mas quando sondei meus
parentes por informações sobre a história da família na Carolina do Sul, ou
sobre a nossa migração para o norte, para Nova Iorque, eles frequentemente
se mostraram relutantes a discutir. [...] Eu já sabia então que as imagens que
eu queria mostrar, que a história que eu queria contar, tinha que tocar a
audiência da forma como tocava a minha família. Tinha que levá-los de
volta, para dentro das memórias de suas famílias, para dentro de nossas
memórias coletivas.”7(E AE, 1992, p. 5)

7
"​The stories from my own family sparked the idea of Daughters and formed the basis for some of the
characters. But when I probed my relatives for information about the family history in South Carolina, or about
our migration north to New York, they were often reluctant to discuss it. [...] I knew then that the images I
Na tentativa de acessar essas memórias coletivas e com base em anos de pesquisa,
Dash criou em seu filme um caminho para a reconstrução da história e da mitologia das
pessoas afro-americanas, incorporando a cosmologia Yorubana e todas as referências
relevantes à necessidade. Uma delas foi o ​Ibo Landing.​ Em conversa com bell hooks, Dash
explica que existem dois mitos e uma possível realidade para essa história. Conta-se de um
grupo de pessoas da etnia Ibo que, capturadas e enviadas através do atlântico, ao
desembarcarem na costa americana, se recusam a viver a escravidão. Elas dão as costas ao
continente e caminham para a água - em uma das versões, o grupo caminha por cima da água
todo o caminho de volta ao continente africano. Em outra, são levados pelas correntes
marítimas até a costa da África. A terceira versão, supostamente a que confere à realidade, diz
que o grupo de pessoas Ibo marcha para dentro da água e voluntariamente se afoga,
libertando-se da escravidão.
O ​Ibo Landing aparece no filme como um lugar real, com o qual as personagens se
relacionam. Dash descobriu em suas pesquisas que em quase todas as ilhas marítimas daquela
região existe um ​Ibo Landing,​ um local sinalizado pela população como o lugar em que aquilo
realmente aconteceu. Ela diz que:
“É porque essa mensagem é tão forte, tão poderosa, tão fundamental para a
tradição de resistência, de todas as formas possíveis, que toda comunidade
Gullah acolhe esse mito. Então eu aprendi que o mito é muito importante na
luta para manter um senso de identidade e para mover-se em direção ao
futuro.”8 (DASH, 1992, p. 30]

Daughters of the Dust não tem uma estrutura ocidental, cronológica, da disposição dos
eventos. A forma de mostrar a história, assim como seu conteúdo, é afrocentrada. Dash
inspirou-se na figura do ​griot​, o “contador de histórias” dos povos africanos. No livro ​Talk
That Talk: An Anthology on African-American Storytelling ​(1989), D’jimo Kouyate9 explica a
figura do ​griot ​como sendo o “historiador oral e educador” nas sociedades do continente
africano. O ​griot ​era uma figura respeitada, próxima ao rei, para quem interpretava alguns
acontecimentos. Era também responsabilidade do ​griot ​“garantir que as pessoas recebessem

wanted to show, the story I wanted to tell, had to touch an audience the way it touched my family. It had to take
them back, take them inside their family memories, inside our collective memories."
8
“​It's because that message is so strong, so powerful, so sustaining to the tradition of resistance, by any means
possible, that every Gullah community embraces this myth. So I learned that myth is very important in the
struggle to maintain a sense of self and to move forward into the future.”
9
​D’jimo Kouyate foi o 149° das gerações de ​griot (​ também chamado ​diali)​ da família senegalesa Kouyate.
todas as informações sobre seus ancestrais - o que o pai, os avós e suas linhagens fizeram e
como eles fizeram isso.”10
No filme, assistimos como se uma ​griot ​revelasse a história da família. Passado,
presente e futuro estão entrelaçados, como uma linha de história que se desenrola e puxa outra
história, e outra, e outra. Ainda que quase todos os acontecimentos do filme estejam
concentrados num único dia, em 1902, num domingo em que a família se despede da bisavó, a
griot d​ a família, a percepção do tempo para o espectador é de um outro tempo, um tempo em
que passado e futuro fluem conjuntamente. Existem duas narradoras principais: a bisavó,
Nana Peazant, e a ​Unborn Child, a criança não nascida, no ventre de Eula. Dessa forma, o
filme é contado e sustentado tanto pela figura dos ancestrais tanto quanto pelo futuro, a
expectativa da vida.
Se faz importante destacar, também, o uso das câmeras e de certos efeitos nas
imagens. É através de sobreposições e efeitos estilo “câmera lenta” utilizados em alguns
momentos que podemos compreender que os acontecimentos paralelos do filme também estão
conectados. O que certas personagens estão dizendo em uma cena está intimamente
relacionado com os acontecimentos de outra cena, com outras personagens. Além disso, a
esses efeitos também anunciam momentos mágicos, em que o tempo se entrelaça e a ​Unborn
Child interage com o momento presente. Quanto ao uso das câmeras, Toni Cade Bambara faz
uma explanação interessante:
Em D ​ aughters,​ a ênfase está em espaço compartilhado (cenas com
enquadramento de ângulos amplos e alta profundidade de campo) em vez de
espaço dominado (herói em primeiro plano com foco nítido, outros borrados
no fundo); em espaço social em vez de espaço idealizado (como nos filmes
ocidentais); em espaço delineado que encoraja uma leitura contínua da
realidade em vez de espaços maquiados em que, através de ​close-ups e
enquadramentos, o espectador é encorajado a acreditar que conflitos são
apenas psicológicos, não, digamos, sistêmicos, e, desse modo, podem ser
resolvidos por um psiquiatra, um advogado, ou uma arma, mas não,
digamos, através de uma transformação social.11(BAMBARA, 1992, p ??)

10
“​It was also the responsibility of the griot to make sure that the people received all the information about their
ancestors - what the father, the grandparents, and their lineages had done and how they had done it.”
11
“​In Daughters, the emphasis is on shared space (wide-angled and deep-focus shots in which no one becomes
backdrop to anyone else's drama) rather than dominated space (foregrounded hero in sharp focus, others Othered
in background blur); on social space rather than idealized space (as in westerns); on delineated space that
encourages a contiguous-reality reading rather than on masked space in which, through close-ups and framing,
the spectator is encouraged to believe that conflicts are solely psychological not, say systemic, hence, can be
resolved by a shrink, a lawyer, or a gun, but not say, through societal transformation.”
Somado a todas essas características está o fato de que o filme se concentra na
perspectiva das mulheres. ​Daughters leva o espectador a acompanhar prioritariamente o
universo feminino, o que as mulheres conversam, o que fazem durante aquele dia, o que
pensam e sentem. Em diálogo com bell hooks, Dash diz que quem ela estava tentando
privilegiar com esse filme eram “as mulheres negras primeiro, a comunidade negra em
segundo, as mulheres brancas em terceiro. E todos os outros após isso.”12

3. As personagens e a construção de uma memória mítica


Em ​Daughters of the Dust,​ não é apenas através da inserção de elementos da tradição

e da linguagem ​Gullah e dos povos do continente africano que se dá a construção de uma


memória mítica, mas sim através da articulação desses elementos dentro do campo da
imaginação, valendo-se da ressignificação de certos símbolos. É interessante notar, por
exemplo, que as marcas físicas deixadas pela escravidão sejam as mãos tingidas de índigo.
Ainda que a tinta venenosa não provoque marcas permanentes, Dash encontra uma nova
maneira de se referir a esse acontecimento e provoca novos sentimentos e reflexões no
espectador.
Ao tratar da memória diaspórica, o filme lida com os lapsos, os inevitáveis vazios de
memória. A história daquela família não é a história que está escrita, que é ensinada nas
escolas, é antes aquela que vive dentro da lata cheia de pedacinhos de memória que Nana
carrega durante o filme. Outras personagens também carregam suas próprias latas, suas
coleções, os pedacinhos de passado capturados ao longo do tempo e que necessariamente
precisam do ​griot, d​ o contador de histórias que faça com que os elementos materiais tomem a
forma de memória compartilhada. Elementos esses que também podem se transformar numa
fonte de poder e proteção, como quando, ao final do filme, Nana prepara um amuleto para sua
família.
Nana é a ​griot ​da família, a bisavó, a matriarca, a mais velha. Com ela reside a
responsabilidade de passar aos seus descendentes a sabedoria de seus ancestrais. Ela
experimenta uma conexão forte com o passado e ao mesmo tempo um laço com o futuro, com
a comunicação que mantém com a ​Unborn Child​. Além da representação física de Nana como

12
“I wanted black women first, the black community second, white woman third. That's who I was trying to
privilege with this film. And everyone else after that.”
uma mulher mais velha cheia de força e afastada das representações ocidentais tradicionais de
uma “avó”, ela também ressignifica a relação daquele povo com aquele pedaço de terra. Nana
se apropria da terra e quer permanecer ali. Não há a representação da terra como um fardo que
aquela gente precisa carregar. Em vez disso, a ilha de Santa Helena significa um local de
abundância, a terra de onde se conseguem os alimentos e onde aconteceu a história daquela
família.
Eli é marido de Eula e inicia o filme enfrentando um momento de dúvida do poder de
sua ancestralidade, dos ritos de sua família, após a esposa ter sido estuprada por um homem
branco. Eli nos apresenta algumas referências às sociedades secretas africanas, que se
comunicavam através de uma linguagem de sinais e cuja sabedoria foi passada através de
gerações. Ele é visto algumas vezes treinando sozinho ou trocando sinais com outros parentes
e também utilizando um tipo de luta marcial africana com seu primo. Aparentemente, a
migração para o continente representa uma possibilidade de fuga para Eli, que, aprisionado à
ilusão de propriedade criada pelo patriarcado, se sente arruinado pelo acontecimento
enfrentado por sua esposa e duvida ser pai da criança em gestação no ventre de Eula. Sendo
uma das principais personagens masculinas, é simbólico que Eli não tenha a representação
física típica de protagonistas masculinos nos filmes ocidentais e que ao final do filme a fé em
sua ancestralidade seja restaurada.
Eula aparece como uma das personagens mais conectadas às raízes da família, depois
de Nana. Ela se comunica com a mãe, falecida há alguns anos, através de uma mensagem
deixada embaixo da cama sob um copo d’água. Seu quarto está coberto de jornais para afastar
os maus espíritos e ela fica visivelmente abalada quando Eli destrói a árvore com os jarros de
vidro, que Dash explica em seu livro como uma representação simbólica daqueles que já se
foram e uma outra forma de proteção contra espíritos ruins.

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