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Mateus Felipe Cordeiro Caetano Pinto

Gog e Magog: Intertextualidade entre


Apocalipse 20:7–10 e Ezequiel 38 e 39

Engenheiro Coelho
2017
Mateus Felipe Cordeiro Caetano Pinto

Gog e Magog: Intertextualidade entre Apocalipse


20:7–10 e Ezequiel 38 e 39

Centro Universitário Adventista de São Paulo


Faculdade de Teologia
Programa de Graduação

Orientador: Dr. Vanderlei Dorneles

Engenheiro Coelho
2017
Mateus Felipe Cordeiro Caetano Pinto

Gog e Magog: Intertextualidade entre Apocalipse


20:7–10 e Ezequiel 38 e 39

Trabalho aprovado. Engenheiro Coelho, 30 de dezembro de 2017:

Prof. Felipe Carmo

Engenheiro Coelho
2017
AGRADECIMENTOS

• Primeiramente, a Deus, por ter me dado forças e discernimento para chegar até
aqui.

• À Faculdade de Teologia e todo o seu corpo docente, que nestes quatro anos me
inculcaram um conhecimento incomparável, que levarei por toda a vida.

• Ao meu orientador, Dr. Vanderlei Dorneles, que me ensinou e me guiou nesta pes-
quisa, pelas correções e incentivos.

• Aos meus pais, que me apoiaram, incentivaram e amaram incondionalmente.

• Enfim, a todos que estiveram comigo durante esta caminhada tão importante e
decisiva em minha vida.
“Farei conhecido o meu santo nome no meio
de Israel, o meu povo. Não mais deixarei que o
meu nome seja profanado, e as nações saberão
que eu, o Senhor, sou o Santo de Israel.
(Bíblia Sagrada, Ezequiel 39, 7)
RESUMO

A batalha de Gog e Magog em Apocalipse 20:7–10 é descrita de forma sucinta. No entanto,


a presença destes nomes evoca o texto de Ezequiel 38–39. O objetivo deste trabalho é
estudar o texto de Apocalipse 20:7–10 de forma a compreender a natureza desta batalha à
luz de Ezequiel 38–39. Foi-se utilizado o método da intertextualidade a fim de identificar
e comparar os paralelos verbais e temáticos presentes nos textos. Concluiu-se que, ao
escrever estes versos, João não tinha em mente apenas uma expressão individual, mas todo
um contexto imagético extraído de Ezequiel, e que compreender o contexto de Ezequiel
38–39 amplia o entendimento de vários aspectos da natureza deste conflito escatológico.

Palavras-chave: Intertextualidade. Apocalipse. Gog e Magog. Ezequiel.


ABSTRACT

The Gog and Magog battle present in Revelation 20:7–10 is described succintly. Nonethe-
less, the presence of these names evokes the text of Ezekiel 38–39. The purpose of this
work is to research the text of Revelation 20:7–10 in order to understand the nature of
this battle in light of Ezekiel 38–39. The intertextual method was used in order to identify
and compare the verbal and thematic parallels in the text. It was concluded that when
John wrote these verses, he didn’t have in mind only a individual expression, but a whole
imagetic context extracted from Ezekiel, and that understanding Ezekiel 38–39’s context
widens the understanding of several aspects of this eschatological conflict.

Keywords: Intertextuality. Revelation. Gog and Magog. Ezekiel.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AR Almeida Recebida

ARA Almeida Revista e Atualizada

AT Antigo Testamento

CBASD Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia

LXX Septuaginta

NT Novo Testamento

NVI Nova Versão Internacional

TM Texto Massorético
SUMÁRIO

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1 A INTERTEXTUALIDADE BÍBLICA . . . . . . . . . . . . . . 13
1.1 O conceito de Intertextualidade Bíblica . . . . . . . . . . . . . . . 13
1.2 Aplicação da Intertextualidade Bíblica . . . . . . . . . . . . . . . 16

2 REVISÃO DA INTERPRETAÇÃO DE APOCALIPSE 20:7–10 20


2.1 A libertação de Satanás . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
2.2 Gog e Magog . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
2.3 O acampamento dos santos e a Nova Jerusalém . . . . . . . . . . 22
2.4 A destruição do mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

3 ANÁLISE DO TEXTO BÍBLICO . . . . . . . . . . . . . . . . . 25


3.1 Análise de Apocalipse 20:7–10 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
3.1.1 Análise do Contexto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
3.1.2 Análise do Texto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
3.2 Análise de Ezequiel 38–39 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
3.2.1 Análise do Contexto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
3.2.2 Análise Final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
3.2.2.1 O líder proeminente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
3.2.2.2 O catalisador da guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
3.2.2.3 Os quatro cantos da Terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
3.2.2.4 Os povos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
3.2.2.4.1 Gog e Magog . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
3.2.2.4.2 Meseq e Tubal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
3.2.2.4.3 Pérsia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
3.2.2.4.4 Cush e Put . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
3.2.2.4.5 Gomer e Togarmah . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
3.2.2.5 Reunião para a batalha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
3.2.2.6 O ataque à cidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
3.2.2.7 A destruição final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
3.2.3 A vindicação do caráter de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

4 CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . 48
APÊNDICES 51

APÊNDICE A – PARALELOS TEXTUAIS ENTRE APOCA-


LIPSE 20:7–10 E EZEQUIEL 38–39 . . . . . 52
10

INTRODUÇÃO

As profecias bíblicas sempre foram algo de interesse de muitos: cristãos ou não,


teístas ou ateus, leigos e teólogos. A ideia do “futuro revelado” sempre levou as pessoas a
tentar entender o significado destes textos. Uma atenção ainda maior é dada às profecias
apocalípticas, já que elas concernem aos nossos tempos. Entretanto, interpretar correta-
mente as profecias sempre foi um desafio. Os simbolismos predominantes, o anacronismo
interno do texto entre outros fatores apenas intensificam as dificuldades existentes em in-
terpretar documentos escritos há milhares de anos, em uma cultura e contexto totalmente
diferentes, e para pessoas completamente estranhas a nós.
O Apocalipse de João é um destes textos. Vários teólogos, pela história, tentaram
decifrar as intrigantes cenas deste livro. As interpretações são marcadamente divergentes,
de forma que, em muitas partes da obra, torna-se impossível haver um consenso sobre seu
significado.
No final do Apocalipse, em uma seção situada após as sete pragas, encontra-se o
capítulo 20, que é um destes textos amplamente discutidos. Após descrever um período
de mil anos, João traz, em poucos versos, a descrição de uma última e final batalha entre
Deus e o inimigo do bem. Ao relatar este evento, aponta para a presença de uma expressão
singular, a saber, os nomes Gog e Magog.
Neste contexto, surge um problema: quem ou o que é Gog e Magog? Do que se trata
esta guerra? Um leitor desta passagem, se desavisado, pode não entender o que significa,
já que esta expressão não aparece no contexto imediato, nem livro do Apocalipse e sequer
no Novo Testamento. Na verdade, faz-se necessário uma breve pesquisa para se concluir
que esta expressão aparece apenas mais uma vez em toda a Bíblia, em Ezequiel 38 e 39.
Ergue-se a hipótese, então, que João, ao escrever os versos 7–10 do capítulo 20
de Apocalipse, trouxe para dentro do texto o cenário e o contexto que aparecem nestes
capítulos de Ezequiel. Desta forma, o judeu ou conhecedor do Antigo Testamento que lesse
esta simples expressão retomaria em sua mente ideias já existentes em sua concepção, de
forma a expandir e clarificar o significado do texto de Apocalipse.
O objetivo primário desta pesquisa é entender a natureza da batalha de Gog e
Magog. Paralelo a este objetivo principal, tem-se também como objetivo compreender de
que forma João utilizou o texto de Ezequiel 38 e 39 ao redigir estes versos, e descobrir
o quanto esta compreensão pode ajudar o intérprete a expandir sua perspectiva sobre o
significado do texto.
O corrente trabalho se utilizará do método intertextual a fim de atingir seus ob-
jetivos. Klingbeil (2004, p. 147–148) define a intertextualidade como “o emprego bíblico
co-interno e o reemprego de textos bíblicos através de autores bíblicos contemporâneos ou
tardios”, e complementa dizendo que este método permite “captar como um autor bíblico
entendeu um texto específico”. Na verdade esta é uma disciplina que não se limita ao
Introdução 11

campo bíblico. Antes, foi proposta e estudada por linguistas e semiólogos, como Mikhail
Bakhtin e Julia Kristeva.
O primeiro capítulo será uma exposição do conceito de intertextualidade bíblica:
como os intérpretes a entendem e de que forma a aplicam ao estudar um texto. Além
disso, será falado brevemente sobre a teoria da intertextualidade no meio literário. O se-
gundo capítulo tratará de uma revisão da interpretação de cada fragmento relevante do
texto de Apocalipse 20:7–10, levando em especial consideração os autores contemporâ-
neos. O terceiro e último capítulo será uma aplicação prática do método intertextual no
texto de Apocalipse 20:7–10, a fim de averiguar, efetivamente, até que ponto uma exegese
interbíblica pode auxiliar o intérprete a entender o texto estudado.
12

1 A INTERTEXTUALIDADE BÍBLICA

1.1 O conceito de Intertextualidade Bíblica

O método intertextual de interpretação bíblica é um método que considera a Bíblia


como um todo, e parte da ideia de que a Bíblia elucida-se a si mesma. É “a ciência e a arte
de fazer associações e conexões entre textos no interior do cânon bíblico” (DIOP, 2007, p.
135). Apesar de este método não ser utilizado de forma tão abrangente nos nossos dias,
no passado foi muito empregado.
Os rabinos utilizavam-se do método intertextual para interpretar as Escrituras
judaicas. Eles “ligavam versos das Escrituras uns com os outros”, já que acreditavam que
a verdade só seria coerente se considerassem para onde apontavam os textos estudados
(DIOP, 2007, p. 137).
Jesus também se utilizou do método intertextual. Um texto muito claro onde
pode-se perceber isso é Lucas 24, onde Jesus, no caminho de Emaús, após a ressurreição,
“discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes [aos discípulos] o que a seu respeito
constava em todas as Escrituras” (v. 27). Jesus, neste texto, mostra aos discípulos que
estavam com ele as conexões existentes entre os textos messiânicos do AT, e que na verdade
falavam dele. Aqueles homens estavam confusos sobre o Messias, porque não esperavam
um Messias sofredor (v. 21), mas ao Jesus mostrar-lhes o contexto canônico, “por todos
os profetas”, puderam entender quem Ele era (v. 32).
Todos os livros do NT fazem referência a textos ou contextos do AT, em maior ou
menor grau. Segundo Diop (2007), podemos encontrar bem mais de duzentas citações ao
AT no NT, sem contar as alusões. Isto é desta forma porque a intertextualidade não acon-
tecia apenas no nível da interpretação, mas também no nível da redação, “depende[nte]
da ordem cronológica de redação/escrita do cânon sagrado” (COELHO; SILVA; VIEIRA,
2011, p. 15). A primeira parte da Bíblia a ser escrita, a Torah (Pentateuco), serve como
fundamento para o Nevi‘im (profetas) e o Ketubim (escritos), no AT. Estes dois, por sua
vez, acabam servindo como fundamento para o NT. Há uma dependência cronológica e
canônica entre os livros da Bíblia, que pode ser representada na Figure 1.
Desta forma, por exemplo, quando Joel escreve sobre a vinda dos gafanhotos à
terra de Israel, tinha em mente o contexto das bençãos e maldições da Torah: “Levarás
muita semente para o teu campo, porém colherás pouco; porque o gafanhoto a consumirá”
(Dt 28:38, AR). Tanto o texto quanto o contexto de Deuteronômio podem ser identifica-
dos em Joel, já que, enquanto estão redigindo um texto, “os escritores ou personagens
bíblicos podem partilhar da mesma fonte de palavras, quadro de palavras, imagens, me-
táforas, temas ou teologia” (DIOP, 2007, p. 136). Neste caso, fica claro que a Torah foi
o fundamento do texto de Joel. O texto de Joel, por sua vez, fundamentou outros textos,
como Apocalipse 9:3 (STEFANOVIĆ, 2009).
Entre os teólogos contemporâneos que apoiam o método intertextual, Hasel (2007,
Capítulo 1. A Intertextualidade Bíblica 13

Figura 1 – Dependência canônica interna da Bíblia

Fonte: Adaptado de LOPES, A. G. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã,
2004, p. 37

p. 36–37)1 destaca a importância deste princípio hermenêutico:

Uma característica hermenêutica do princípio sola scriptura é a sua auto-


interpretação. Não é a tradição, a razão humana, ou a experiência reli-
giosa, a cultura, ou o veredito de sábios e líderes que constitui a fonte e
norma para a interpretação das Escrituras. As Escrituras somente são a
chave que descerra as Escrituras.

Outro teólogo contemporâneo que destacadamente defende a intertextualidade


como método válido de interpretação bíblica é Gregory K. Beale (2013), apesar de preferir
utilizar meramente o termo “alusão”.2 Ele argumenta que o método utilizado por Jesus,
os apóstolos e outros autores bíblicos do NT era o método intertextual, chamado por ele
de método contextual, tal que estes escritores fundamentavam-se profundamente não só
nos textos do AT, de forma explícita, como também nos seus respectivos contextos, tanto
literários quanto históricos. Para ele, “os autores veterotestamentários tinham compre-
ensão genuína, porém não exaustiva, daquilo que escreviam” quando usavam o Antigo
Testamento no Novo Testamento (BEALE, 2013, p. 51). A conclusão de Beale é que, se
este era o método utilizado por Jesus e pelos apóstolos na época do Novo Testamento,
1
Gerhard Hasel foi um teólogo adventista, professor de Antigo Testamento e Teologia Bíblica, além de
reitor do seminário teológico da Andrews University. Faleceu em 1994, no estado de Utah, EUA.
2
Gregory K. Beale é PhD pela Universidade de Cambridge. Professor de Novo Testamento e de Teologia
Bíblica pelo Seminário Teológico de Wesminster, onde é titular da cátedra J. Gresham Machen de
Novo Testamento, e autor de vários livros destacados que têm como foco o uso que o Novo Testamento
faz do Antigo Testamento.
Capítulo 1. A Intertextualidade Bíblica 14

a Igreja de Cristo também deve estar autorizada, além de encorajada, a utilizar-se deste
método.
Este tipo de dependência ou fundamentação é ainda mais intensa e perceptível no
Apocalipse. Vários autores falam sobre esta dependência, tão forte que “muitas pessoas
não conseguem compreender completamente a [sua mensagem] porque não consideram a
natureza do Antigo Testamento em sua linguagem” (PAULIEN, 2012, p. 26). Dorneles
(2015, p. 11) afirma que “nos 22 capítulos do Apocalipse, João faz cerca de 2 mil alusões ao
Antigo Testamento, incluindo nada menos que 400 referências diretas e 90 citações literais
do Pentateuco e dos Profetas”. Ellen G. White (2007, p. 406) nota que “no Apocalipse
todos os livros da Bíblia se encontram e se cumprem”. “Os eventos, as imagens, as cenas
e a terminologia do Apocalipse são provenientes do Antigo Testamento, material com que
João estava intimamente familiarizado”, e portanto “tendem a emergir de modo natural
em seus textos” (DORNELES, 2015, p. 23). Por conta desta conexão, o AT é a principal
chave para se decodificar os símbolos do Apocalipse, e portanto não podemos estudar este
livro sem considerar o texto e o contexto das Escrituras hebraicas. (PAULIEN, apud
DORNELES, 2015, p. 12)
A intertextualidade, no entanto, não se limita ao campo da hermenêutica bíblica.
Na linguística e semiótica, a teoria intertextual se desenvolveu de uma forma mais ge-
nérica, e trata das “várias maneiras pelas quais a produção e recepção de dado texto
depende do conhecimento de outros textos por parte de seu autor ou autores” (KOCH,
2007 apud COELHO; SILVA; VIEIRA, 2011). O termo foi cunhado por Julia Kristeva3 ,
que derivou suas ideias de conceitos já anteriormente estabelecidos pelo formalista russo
Mikhail Bakhtin (COELHO; SILVA; VIEIRA, 2011).4
Bakhtin propõe a ideia do dialogismo. Dois conceitos relevantes podem ser en-
contrados nesta ideia. O primeiro é que toda palavra ou enunciado são integralmente
dialógicos em natureza. “Isto significa que nenhuma palavra ou texto pode ser ouvido ou
lido em isolamento” (CLAASSENS, 2003, p. 129, tradução minha). Ou seja, toda vez que
um texto aparece, ele está relacionado com algum texto anterior, como uma espécie de
resposta a este. Da mesma forma, este texto que está relacionado com um texto ante-
rior, se relacionará com um texto posterior, que também funcionará como uma espécie
de reposta a aquele. Sendo assim, não há texto puro. No exemplo de Joel, dado acima,
este fenômeno é evidente, já que o texto de Joel aparece relacionado tanto com um texto
anterior (Deuteronômio 28) quanto a um texto posterior (Apocalipse 9).
3
Julia Kristeva é uma filósofa, escritora, crítica literária, psicanalista e feminista búlgaro-francesa. Sua
imensa massa de trabalho inclui livros e ensaios que abordam intertextualidade e a semiótica, nas
áreas de lingüística, teoria e crítica literária, psicanálise, biografia e autobiografia, análise política e
cultural, arte e história da arte.
4
Mikhail Mikhailovich Bakhtin foi um filósofo e pensador russo, teórico da cultura europeia e as artes.
Seus escritos, em uma variedade de assuntos, inspiraram trabalhos de estudiosos em um número de
diferentes tradições, como a semiótica, o estrutiralismo e a crítica religiosa. Faleceu em 1975, em
Moscou.
Capítulo 1. A Intertextualidade Bíblica 15

O segundo conceito relevante proposto por Bakhtin é de que as palavras ou enun-


ciados envolvidos na relação dialógica não são deixados intocados pela interação. Quando
os textos entram em contato um com o outro, eles ganham vida. Tanto um quanto o outro
são iluminados, clarificados. “O real significado do texto, ‘sua verdadeira essência,’ se de-
senvolve no limite de dois textos ou ‘consciências’ ” (CLAASSENS, 2003, p. 129, tradução
minha). Consequentemente, não é possível obter o verdadeiro significado, ou o significado
“vivo” dos textos, sem considerar os textos com quais eles se relacionam. Usando nova-
mente o exemplo de Joel, ao considerar o contexto de Deuteronômio podemos entender
melhor o que está acontecendo: as causas e a forma, por exemplo, tornam-se mais claros.
Já o texto de Deuteronômio é elucidado no sentido em que Joel enriquece o que havia
sido profetizado com a descrição da realidade conforme cumprida.
Kristeva (1974, p. 64, grifo meu), expandindo as ideias de Bakhtin, diz que “todo
texto se constrói como mosaico de citações, todo o texto é absorção e transformação de um
outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade”.
Lotman (1996, p. 56, tradução minha) expressa esta mesma ideia ao dizer que o texto
tem um tipo de memória, e “características de uma pessoa com um intelecto altamente
desenvolvido”.5 Segundo ele, o consumidor não apenas “decifra o texto”; mais do que isso,
ele “se relaciona com o texto”, tornando o processo de decodificação do texto algo muito
mais complexo e dinâmico do que normalmente se conhece, sendo necessário decodificá-lo
várias vezes ao invés de uma só (LOTMAN, 1996).
No entanto, a proposta de Bakhtin não permite que este relacionamento entre tex-
tos faça desaparecer a verdade individual de cada texto. Cada texto é independente quanto
a sua realidade; é “individual, único e irreproduzível, sendo nisso que reside seu sentido
(seu desígnio, aquele para o qual foi criado)” (BAKHTIN, 1992 apud COELHO; SILVA;
VIEIRA, 2011). Esta ideia é uma salvaguarda contra o perigo que existe de subjetivar o
significado de um textou ao interpretá-lo.

1.2 Aplicação da Intertextualidade Bíblica

Se, conforme vimos supra, há uma ligação tão forte entre o NT e o AT, e esta
dependência é ainda mais intensa quando tratamos do livro de Apocalipse, como então
aplicar o método intertextual de forma prática ao interpretar textos bíblicos? Existiria
uma forma correta de se estudar os livros do NT à luz do texto do AT?
O primeiro ponto que devemos ter em mente é que a intertextualidade não ocorre
de uma forma só, e muitas vezes ela não está tão clara e tão definida.

A interpretação bíblica vai muito além de uma mera menção de tex-


tos. Realmente, ela pode ocorrer na forma de uma citação palavra-por-
palavra de uma passagem bíblica. Também pode ser uma aproximada,
mas ainda óbvia referência a um texto bíblico, ou pode ocorrer na forma
5
Texto original, em espanhol: rasgos de una persona con un intelecto altamente desarollado.
Capítulo 1. A Intertextualidade Bíblica 16

de um arranjo de palavras rememorativo de um texto anterior, um ar-


tifício estilístico ou feição literária ligando dois ou mais textos bíblicos
(DIOP, 2007, p. 136).

Elias e Koch ( apud COELHO; SILVA; VIEIRA, 2011, p. 10) fazem uma distinção
entre dois possíveis sentidos da intertextualidade. (1) O sentido estrito é um sentido
mais claro, em que um texto (ou intertexto) que faz parte da memória coletiva está inserto
no texto. (2) O sentido amplo é o fenômeno que acontece com todos os textos: como
sempre há um texto precedente e um posterior, não temos como desvencilhar nossas ideias
do que já existe, e tudo o que virá depois será embasado em alguma ideia já divulgada
em um texto.
Ao falar de intertextualidade bíblica, no entanto, alguns autores preferem dar ou-
tro nome para estes dois sentidos: citação e alusão. A citação é uma “reprodução direta de
uma passagem do AT facilmente identificável por seu paralelismo claro e bem caracterís-
tico” (BEALE, 2013, p. 53). É uma referência clara e extremamente fácil de se identificar,
já que é composta quase que totalmente por palavras iguais. Muitas vezes, ainda, é acom-
panhada por uma fórmula introdutória, como em Mateus 2:15: “para que se cumprisse
o que fora dito pelo Senhor, por intermédio do profeta”. Uma alusão, por outro lado, é
uma “expressão breve deliberadamente pretendida pelo autor para ser dependente de uma
passagem do AT” (BEALE, 2013, p. 55). Em oposição à citação, a alusão é uma referên-
cia indireta e, portanto, pode ser mais difícil de ser identificada. Alguns autores fazem
ainda uma distinção entre alusão e eco, sendo este último “uma possível referência invo-
luntária baseada no conhecimento geral da literatura e/ou a sua influência no ambiente”
(PAULIEN, 2012, p. 26).
Considerando a própria definição de citação, sabemos que não é difícil identificar
uma. Não é à toa que “grande parte dos comentaristas concorda sobre a imensa maioria
dos trechos classificados como citações do AT” (BEALE, 2013, p. 53). O mesmo, porém,
não pode ser dito das alusões. Na verdade, há vários textos que são debatidos quanto a
existência ou não de alusões. Beale (2013) afirma que o número de alusões no livro do
Apocalipse, dependendo das variantes utilizadas e da forma de se classificar a alusão, pode
variar de 394 a 635, ou até mesmo chegar a 1000.
Diante desta dificuldade, é importante estabelecer-se métodos confiáveis para se
identificar alusões e, assim, desenvolver uma hermenêutica confiável. Não é o objetivo
deste trabalho estabelecer estes métodos, ou analisar o que outros autores já tentaram
propor em relação a isto. De fato, há vários autores que escreveram princípios, regras ou
passo-a-passos para ajudar um intérprete a identificar o uso do AT no NT; todavia, a fim
de ser sucinto, serão mencionados apenas dois.
A primeira fonte é uma lista de princípios ou critérios a ser levado em conta,
elaborada por Richard Hays, adaptada de Beale (2013, p. 57–58) e que, segundo ele, é
“um dos melhores métodos para discernir e estudar a natureza e legitimidade das alusões”:
Capítulo 1. A Intertextualidade Bíblica 17

a) Disponibilidade. O texto-fonte (o AT grego ou hebraico) devia ser acessível ao


autor.
b) Volume. Grau considerável de repetição literal de palavras ou padrões sintáti-
cos.
c) Recorrência. Há referências no contexto imediato (ou em outra parte do mesmo
autor) ao mesmo contexto do AT do qual deriva a suposta alusão.
d) Coerência temática. A suposta alusão ao AT é apropriada porque esclarece seu
sentido no AT e se ajusta tematicamente ao argumento do autor.
e) Plausibilidade histórica. É plausível o autor do NT ter pretendido a alusão e o
público ter compreendido o uso dela em graus variados.6
f) História da interpretação. É importante passar verificar se outros levaram em
conta a alusão.7
g) Satisfação. Com ou sem a confirmação dos seis critérios precedentes, será que
a alusão proposta e seu uso interpretativo fazem sentido no contexto imediato?
A segunda fonte é uma série de quatro passos que Paulien (2012, p. 26–27) orienta
a darmos quando estivermos em busca de alusões (ou ecos). Apesar do contexto em que ele
sugere estes passos seja aplicado ao Apocalipse, creio que são passos válidos para qualquer
estudo intertextual entre o NT e o AT. São estes: (1) extrair e analisar cuidadosamente
uma lista de possíveis referências do AT no NT. Esta pesquisa preliminar deve ser feita
através de notas da Bíblia, comentários, concordâncias e listas de alusões. (2) Colocar as
passagens possíveis ao lado da passagem escolhida do NT para tentar encontrar paralelos
verbais temáticos e estruturais entre as passagens. (3) Considerar as evidências encontra-
das no último passo a fim de determinar se o que ocorre é uma alusão ou apenas um eco.
(4) Aplicar a compreensão apropriada do texto, isto é, entender o impacto da alusão e de
que forma ela pode ajudar a compreender de forma mais ampla o texto do NT.
Dados estes quatro passos, creio ser importante explicitar o significado de paralelos
verbais, temáticos e estruturais, que ele propõe que devam ser colocados em evidência
no terceiro passo. Paralelos verbais “ocorrem sempre que houver duas ou mais palavras
principais em comum entre a passagem do [Novo Testamento] e o possível texto-fonte do
Antigo Testamento” (PAULIEN, 2012, p. 28). Por exemplo, em Apocalipse 14:7 o anjo
6
Contudo, sempre existe a possibilidade de que os leitores não tenham compreendido a alusão pre-
tendida pelo autor. Além disso, se for possível demonstrar que o uso do AT pelo autor do NT tem
paralelos e analogias com outros usos que os judeus da época faziam das mesmas passagens veterotes-
tamentárias, isso pode aumentar a legitimidade da alusão.
7
Este é um dos critérios menos confiáveis para identificá-la. Embora o estudo das interpretações poste-
riores possa revelar as possíveis alusões propostas por outros, também pode resultar no estreitamento
das possibilidades, uma vez que os comentaristas tendem a seguir aqueles que os antecederam e, como
a tradição de comentários traz sempre consigo a possibilidade de distorcer ou interpretar equivoca-
damente o texto, perde-se a abordagem nova e criativa dos arranjos fraseológicos intertextuais dos
autores do NT.
Capítulo 1. A Intertextualidade Bíblica 18

ordena adorar “aquele que fez os céus, o mar, a Terra e as fontes das águas”. Estas mesmas
palavras (o verbo “fazer”, “Terra”, “mar”) estão presentes em Êxodo 20:11. Paralelos
temáticos “envolvem um paralelo do tema ou ideia, não necessariamente sinalizada por
palavras” (PAULIEN, 2012, p. 28). Isoladamente, não tem muito valor, mas se na presença
dos outros dois tipos de paralelos pode adquirir uma força relevante. Por fim, os paralelos
estruturais “ocorrem quando um número de palavras e temas é equivalente entre uma
parte do [Novo Testamento] e um contexto particular do Antigo Testamento” (PAULIEN,
2012, p. 28).
Como considerado supra, há muitas outras propostas de diretrizes para o processo
de identificar e interpretar interbiblicamente. No entanto, apesar de haver divergência
entre eles em um nível mais estrito, há também semelhanças significativas, que devem
ser levadas em consideração. Estas duas propostas são suficientes para direcionar nossa
pesquisa.
19

2 REVISÃO DA INTERPRETAÇÃO DE APOCALIPSE 20:7–10

Antes de aplicarmos de forma prática o método intertextual no texto de Apocalipse


20:7–10, é de relevância fazer-se breve revisão bibliográfica acerca de como o texto sele-
cionado de Apocalipse tem sido interpretado pelos estudiosos. Os pontos de divergência
normalmente estão intimamente ligados com a interpretação sobre o milênio, que aparece
nos versos anteriores (v. 1–6).1

2.1 A libertação de Satanás

A perícope estudada começa com o relato da libertação de Satanás da prisão em


que ele fora jogado segundo os versos anteriores, por ocasião do início milênio. Esta prisão
é chamada, nestes versos precedentes, de “abismo”. A maioria dos autores a vê não como
uma prisão física, mas como tendo um sentido figurado. Alguns acreditam que, na verdade,
o real significado desta expressão é que Satanás será restringido em sua atividade quase
que totalmente, mas não totalmente (LADD, 2011; BEALE, 1999). Desta forma, sua
libertação seria a remoção destas restrições, o que levaria ele a voltar a enganar e dissuadir
as pessoas da verdade, mas também, mais do que isso, persuadi-las a se reunirem em um
último ataque contra Deus (BEALE, 1999). A visão de alguns autores adventista é que
esta restrição se dá pelo fato de que os ímpios já foram destruídos por ocasião da Segunda
Vinda de Cristo e, portanto, Satanás não tem a quem tentar. Sua libertação seria, portanto,
a ressurreição dos ímpios (NICHOLS, 2014; MAXWELL, 2013; STEFANOVIĆ, 2009).
Pode parecer estranho o fato que o Diabo não seja destruído até esse momento.
Em vez disso, ele ficará livre por este breve espaço de tempo, e poderá enganar as nações,
e Deus só o destruirá depois da tentativa do ataque. Um possível motivo para que isso
aconteça é que isto pode “tornar claro que nem os planos de Satanás nem a rebelião do co-
ração humano se alterarão pelo mero passar de tempo” (MOUNCE, 1977, p. 361, tradução
minha),2 já que não provêm de uma condição social inadequada, pobreza, ou qualquer ou-
tro fator determinista, mas um coração determinada e consciosamente obstinado (LADD,
2011).

2.2 Gog e Magog

Após a ressurreição dos perdidos, Satanás sairá “a enganar as nações que estão
nos quatro cantos da terra, Gog e Magog” (Ap 20:8, AR). A expressão “os quatro cantos
1
As quatro principais interpretações quanto ao milênio de Apocalipse 20:1–6 são o amilenialismo, pós-
milenialismo e pré-milenialismo. Este último, ainda, pode ser dividido em outros três. Para um estudo
mais detalhado e análise crítica sobre o tema, ver BADINA, J. The millenium. In: HOLBROOK, F. B.
(Ed.). Symposium on Revelation: Book II. Hagerstown, Maryland: Review and Herald Publishing
Association, 1992, (Daniel and Revelation Committee Series, v. 7)..
2
Perhaps the most reasonable explanation for this is to make plain that neither the designs of Satan
not the waywardness of the human heart will be altered by the mere passing of time.
Capítulo 2. Revisão da Interpretação de Apocalipse 20:7–10 20

da terra”, que se aplica às nações, é uma construção semítica que funciona como uma
sinédoque (BEALE, 1999).3 Não significa quatro cantos literais, mas todas as direções,
e enfatiza a universalidade (MOUNCE, 1977). É uma expressão recorrente na Bíblia, e
também está presente em alguns textos judaicos antigos (AUNE, 1998; BEALE, 1999).
Alguns poucos intérpretes tentam explicá-la como sendo um lugar do mundo onde fica uma
passagem para o submundo, de onde viriam as hordas demoníacas, mas esta interpretação
não faz muito sentido e não tem muita força (BEALE, 1999; AUNE, 1998).
A ideia de universalidade é apoiada, também, pela existência de uma variante tex-
tual. Alguns manuscritos trazem “πάντα” no começo da expressão, podendo ser traduzido
desta forma: “todas as nações dos quatro cantos da terra” (BEALE, 1999). Assim, o sig-
nificado da expressão é que as nações que vêm guerrear contra Deus não vêm de um lugar
só, mas de diversos pontos diferentes ao redor da Terra.
A expressão “Gog e Magog” está em aposição às nações, e portanto descreve-as. O
uso dela é identificado, sem exceção, com a expressão equivalente que aparece de forma
idêntica em Ezequiel 38 e 39. Neste texto, assim como em Apocalipse, acontece uma reu-
nião de forças opositoras que querem guerrear contra Deus. Beale (1999) Entende que
o texto de Apocalipse pode ser entendido, então, como um cumprimento desta profecia.
Estes nomes representam “as nações que se rebelam contra Deus e são hostis com seu
povo” (LADD, 2011, p. 200). No entanto, há algumas divergências quanto a identidade
destas nações, decorrente principalmente das múltiplas interpretações do contexto amplo,
e podem ser resumidas em três grupos principais (AUNE, 1998; BEALE, 1999): (1) alguns
acreditam que as forças que guerrearão contra Deus são forças demoníacas, ou a união
destas forças demoníacas com os espíritos dos ímpios que já foram mortos. (2) Outros,
crêem que se tratam dos ímpios que já haviam sido mortos mas agora são ressuscitados
por Cristo para um juízo final. São portanto, nações físicas e humanas. Esta é uma visão
tradicional adventista (MAXWELL, 2013). (3) Um terceiro grupo argumenta que a des-
truição que acontece no capítulo 19 é uma destruição parcial, e as nações que Satanás
engana são os restantes desses (LADD, 2011).
Alguns estudiosos da linha crítica-história, como Aune (1998), enxergam um pro-
blema de redação, já que a existência de nações nos quatro cantos da terra parece con-
tradizer os eventos que acontecem no capítulo 19, isto é, a destruição de todos os ímpios.
Intérpretes têm tentado resolver este problema de diversas maneiras. Se considerarmos as
interpretações acima acerca da identidade das nações, todas elas resolvem de certa forma
o problema. Além destas visões, no entanto, há aqueles que dizem que a linguagem de
Apocalipse é metafórica e mística, tal que não há necessidade de haver uma lógica na
narrativa (AUNE, 1998).
O número das hordas, no texto, é comparado à “areia do mar”. Esta expressão
3
A sinédoque é uma figura de linguagem, similar à metonímia e, às vezes, considerada apenas uma
variação desta. Consiste na atribuição da parte pelo todo, ou do todo pela parte.
Capítulo 2. Revisão da Interpretação de Apocalipse 20:7–10 21

é usada em vários textos da Bíblia, e é uma metáfora que denota muita abundância
(AUNE, 1998) e, neste caso, uma quantidade incontável de inimigos (NICHOLS, ed.,
2014) e uma aparente vantagem esmagadora destes sobre o povo de Deus (BEALE, 1999).
Sua origem parece estar relacionada à ocasião em que Deus faz uma aliança com Abraão,
em Gênesis, em que ele promete que sua decendência seria como as estrelas do céu e como
a areia que está na praia do mar (AUNE, 1998), e pode estar funcionando, neste texto,
como uma paródia a esta promessa (STEFANOVIĆ, 2009). É encontrada, frequentemente,
relacionada com exércitos numerosos (AUNE, 1998; BEALE, 1999), assim como no texto
de Apocalipse, mas não se limita a este tipo de contexto, podendo também ser encontrada
em relação ao povo de Israel, ou descendentes de Davi (AUNE, 1998).
A ideia de um exército inumerável que cerca Israel no escathon, isto é, no dia do
juízo final, é um motivo judaico, que é visível não apenas no Antigo Testamento (Sl 46, 48,
76; Ez 38–39) quanto em outros textos antigos não-canônicos, como 4 Esdras 13 (AUNE,
1998).

2.3 O acampamento dos santos e a Nova Jerusalém

O exército de Satanás marcha por sobre a Terra, até que por fim cercam “o acam-
pamento dos santos e a cidade querida” (v. 9). A palavra que é traduzida como “acampa-
mento” (παρεμβολὴν), em seu aspecto semântico primário, tem uma conotação militar. É
usada para se referir a acampamentos, barracas ou fortalezas militares, mas também pode
se referir a um acampamento, em um sentido mais geral (NICHOLS, ed., 2014; AUNE,
1998).
Há algumas interpretações diferentes sobre o que exatamente é este acampamento
(AUNE, 1998): (1) alguns pensam ser a cidade celestial. (2) Outros, identificam com a
expressão “cidade amada”, que aparece em seguida, como se ela funcionasse como um
aposto (NICHOLS, ed., 2014; LADD, 2011; BEALE, 1977). (3) Um terceiro grupo en-
fatiza a separação entre estes dois termos, e vêem o acampamento dos santos como o
acampamento do povo de Deus, fora da cidade. (4) Há aqueles que relacionam com os
mártires que morreram pela causa de Cristo. (5) Por fim, um exército de anjos que estaria
protegendo a cidade.
Outro ponto discutido é se a “cidade querida” se refere à Jerusalém terrena ou
celestial. Aune (1998) Aponta que ao se analizar o texto de forma cronológica, a Nova
Jerusalém só desce à Terra no capítulo 21. Assim, se torna impossível que o termo se
refira à cidade celestial. A visão dispensacionalista interpreta desta forma, considerando
a restauração do governo judaico na Jerusalém terrena, enquanto outros intérpretes veem
como a capital de um reino terreno cristocêntrico, também na terra santa (LADD, 2011).
No entanto, alguns defendem que, por conta da estrutura recapitulativa e não-cronológica
do Apocalipse, e considerando o contexto de Apocalipse 21, a descrição da Nova Jerusalém
descendo neste capítulo acontece no fim do milênio, antes do cerco diabólico (NICHOLS,
Capítulo 2. Revisão da Interpretação de Apocalipse 20:7–10 22

ed., 2014; BEALE, 1999; AUNE, 1998). Argumentando nesta linha, Beale (1999) aponta
para as versões boraica e etíope, em que a expressão é traduzida, respectivamente, como
“nova cidade” e “cidade santa”. A cidade querida seria, neste caso, não a Jerusalém terrena,
mas a Nova Jerusalém que desce do céu.

2.4 A destruição do mal

Antes que os exércitos de Satanás comecem o ataque, Deus manda fogo do céu, que
destrói a todos. Vários autores apontam que esta cena é reminiscente de 2 Reis 1:10–14,
episódio em que Elias, por duas vezes, invoca fogo do céu para destruir um grupo de 50
soldados juntamente com seus capitães (AUNE, 1998; BEALE, 1999; MOUNCE, 1977).
Aune (1998) destaca a extrema semelhança entre o texto de Apocalipse e o texto da LXX:
καὶ κατέβη πῦρ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καὶ κατέφαγεν αὐτούς.
Em seguida, o próprio Diabo é lançado no lago de fogo e enxofre. Neste momento, o
texto não enfatiza a destruição dos exércitos que se rebelam contra Deus. Antes, o foco do
texto está na destruição dos poderes que estão por trás destes exércitos e desta rebelião,
e que têm feito isto desde a fundação do mundo, a saber, a destruição final e definitiva
de Satanás e de todo o mal que há no universo (LADD, 2011).
A maioria dos estudiosos têm uma visão dualística do mundo, e enxergam Satanás
e os demônios como seres meramente espirituais. Para estes, o lago de fogo e enxofre
não é um lago real e físico, já que um juízo de tal natureza não conseguiriam destruir
as entidades do mal. Em vez disso, a expressão é uma metáfora para uma destruição de
natureza espiritual (BEALE, 1999; LADD, 2011).
No entanto, há intérpretes que, contrariando as visões acima, acreditam que o fogo
é literal, e equivale à superfície da terra, que “se transforma em uma mar de chamas
que tanto consome os ímpios quanto purifica o planeta” (NICHOLS, ed., 2014, p. 981). É,
portanto um instrumento real de destruição dos ímpios e das entidades do mal (NICHOLS,
ed., 2014; MAXWELL, 2013).
Outro ponto de divergência entre os estudiosos é quanto à duração deste tormento.
A expressão “de dia e de noite serão atormentados pelos séculos dos séculos” (v. 10, AR),
ao ser interpretada de forma literalista, leva alguns a pensar que Satanás será atormentado
eternamente (BEALE, 1999; MOUNCE, 1977; AUNE, 1998). Beale (1999) acrescenta a
esta ideia que o tormento que Satanás sofrerá será consciente, e de natureza espiritual e
psicológica, já que a incorporeidade dele não permitiria um tormento físico.
Em oposição a esta ideia existem os que vêem o texto de uma forma aniquilacionis-
tas (LADD, 2011; NICHOLS, ed., 2014; MAXWELL, 2013; STEFANOVIĆ, 2009). Estes,
como o nome sugere, entendem que a destruição de Satanás acontecerá de forma pon-
tual e definitiva. Neste caso, a expressão seria, na verdade, simplemente um idiomatismo
hebraico, como em Isaías 34:8–10, e significaria uma destruição completa (MAXWELL,
2013).
Capítulo 2. Revisão da Interpretação de Apocalipse 20:7–10 23

Sumarizando, ao fazer uma breve revisão bibliográfica sobre o texto, pode-se ver
que apesar de haver algumas divergências em pontos específicos, há também uma série de
concordância quanto a interpretação do texto de Apocalipse 20:7–10: A prisão de Satanás é
majoritariamente interpretada como sendo uma prisão figurativa, que na verdade significa
uma restrição de suas atividades, e sua libertação está diretamente relacionada com a
guerra que vem a seguir. As nações que ele engana, Gog e Magog, são povos que vêm
de todas as direções da terra, inumeráveis, e serão reunidos para batalhar contra o povo
de Deus. Há uma ligação direta entre este texto e Ezequiel 38–39, tanto pela ligação
terminológica quanto temática, em vários aspectos. No entanto, antes que a cidade seja
atacada, Deus executa um juízo com fogo, imagem diretamente ligada ao episódio de 2
Reis 1, a fim de punir definitivamente todo o mal que existe no planeta.
24

3 ANÁLISE DO TEXTO BÍBLICO

Finalizada a breve revisão bibliográfica, deve-se fazer uma análise do texto propri-
amente dita. Não será feita uma exegese detalhada sobre o texto, já que muitos outros já
fizeram isso, mas uma análise das ideias anteriormente estabelecidas e explorar a relação
do texto em questão com o restante das Escrituras, em especial o texto de Ezequiel 38–39.
Os passos realizados serão uma adaptação dos primeiros passos da proposta que (BEALE,
2013, p. 68) sugere. Primeiramente, será feita uma análise do contexto geral e imediato e
do texto de Apocalipse 20:7–10. O segundo passo, será fazer este mesmo tipo de análise
no texto de Ezequiel 38–39, relacionando o primeiro com o segundo.

3.1 Análise de Apocalipse 20:7–10

3.1.1 Análise do Contexto

Um dos pontos indispensáveis para qualquer exegese textual, bíblica ou não, é


analisar o contexto em que determinado texto está inserto, tanto geral quanto imediato.
Este passo ajuda o intérprete a compreender o fluxo do texto e a linha de raciocínio do
autor, além das ligações presentes no próprio texto, o que realça e amplia a compreensão
que se terá do trecho estudado (MÜLLER, 2007, p. 117–118).
O Apocalipse é uma literatura apocalíptica que foi escrita por João, enquanto es-
tava na ilha de Patmos, primariamente para as sete igrejas (STEFANOVIĆ, 2009; LADD,
2011). Sua natureza simbólica dificulta uma linearidade de interpretações, mas é evidente
que, em seu contexto geral, trata de acontecimentos com caráter profético. Dentro deste
contexto geral é indispensável identificar a estrutura do Apocalipse, e muitas tentativas
inconsensuais têm sido feita quanto a isso (STEFANOVIĆ, 2009). Esta pesquisa pressu-
põe a estrutura proposta por Stefanović (2009), que separa o livro de Apocalipse em três
partes: mensagens às igrejas (1:9–3:22), abertura do livro selado (4–11) e o conteúdo do
livro selado (12–22:5).
A terceira seção da estrutura, onde está inserto o nosso texto de estudo, introduz
e foca no grande conflito entre Cristo e Satanás. No capítulo 12 é apresentada a batalha
entre o dragão, que desde o surgimento do povo de Deus está em constante perseguição a
ele, e Miguel, aquele que é nascido da mulher, e que haveria de destruir o dragão e reinar
para sempre. A partir do capítulo 13 temos a descrição de duas bestas, instituídas pelo
dragão na tentativa de concretizar seus planos. Porém, Deus é aquele que livra seu povo
e executa seus juízos contra os ímpios. O capítulo 14 trata da última mensagem de Deus
ao mundo, chamando-o para o arrependimento. Em seguida, os capítulos 15–18 retratam

em vívida linguagem a execução da ira divina nos termos do derrama-


mento das taças das sete pragas sobre os adoradores do triunvirato sa-
tânico e o subsequente julgamento no a Babilônia do fim dos tempos.
[…] O Apocalipse apresenta as sete últimas pragas como a expressão da
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 25

ira final de Deus na sua força máxima para “o mundo em rebelião final
contra Deus” (STEFANOVIĆ, 2009, p. 467).1

A última praga é o julgamento de Deus sobre a besta e o falso profeta, e o julga-


mento definitivo contra Babilônia, por ocasião da parousia (STEFANOVIĆ, 2009). Neste
momento, todos os ímpios humanos são destruídos. As palavras do anjo no capítulo 18 e
o cântico dos santos após a queda de Babilônia no capítulo 19 evidenciam isso.
Após a destruição de Babilônia, os santos são levados a viver com Cristo por mil
anos (Ap 20:1–6). É importante notar que nos versículos 5 e 6 do capítulo 20 há uma ênfase
na ressurreição, chamada “primeira ressurreição”. Esta ressurreição está em paralelo com
a apresentada em 1 Tessalonicenses 4, que acontece por ocasião da segunda vinda de
Cristo, e que causa uma transformação do corpo e da natureza pecaminosa (1 Co 15:51).
A destruição dos ímpios e ressurreição dos justos é seguido de um período de 1000
anos, chamado milênio, em que aos santos é dado “o poder de julgar” (v. 4). Durante este
período, aqueles que foram arrebatados por ocasião da parusia estarão “reexaminando
as evidências com base nas quais Deus tomou suas decisões” em relação à salvação das
pessoas (MAXWELL, 2013, p. 516). Neste ínterim, porque os ímpios estarão mortos e a
terra estará sem nenhum ser vivo, Satanás não terá a quem tentar, o que é indicado na
figura de sua prisão (MAXWELL, 2013).
Após o reinado de mil anos no céu, Satanás será solto de sua prisão. Se a des-
truição dos ímpios causou a prisão de Satanás, a libertação dele decorre da ressurreição
destes ímpios, que permitirão que ele tenha novamente a quem tentar (MAXWELL, 2013;
STEFANOVIĆ, 2009). Sua tentação, agora, não se dá apenas em termos de desvirtuar os
ímpios da verdade de Deus, afinal, eles já foram julgados e condenados. No entanto, ele
os engana na ideia de que poderão atacar a cidade de Deus e destroná-lo (MAXWELL,
2013).
Satanás, então, reúne todos os povos da terra e cerca a cidade santa, mas antes que
o ataque possa de fato acontecer, Deus se senta em um grande trono branco, abrem-se
livros, e todos os ímpios, diante de Deus, são julgados (20:11–12). Ali, cada um dos ímpios,
inclusive o próprio Satanás, é sentenciado por todas as suas obras e por sua rebelião contra
Deus, e condenado. Desce fogo do céu que destrói as nações da terra (20:9b) e o diabo é
finalmente lançado no lago de fogo e enxofre, onde terá sua atividade findada de forma
definitiva (20:10; cf. 20:14).
A cena seguinte é o resultado da destruição de Satanás. O universo finalmente foi
purificado do mal, e agora o reino pacífico e eterno de Deus é completamente restabelecido.
“Vi novo céu e nova terra” (Ap 21:1). João vê um Éden restaurado, um lugar paradisíaco,
uma cidade onde habita o próprio Deus e onde “não haverá luto, nem pranto, nem dor”
1
Texto original, em inglês: Revelation 15–18 portrays in vivid language the execution of God’s divine
wrath in terms off the pouring out of the seven bowl plagues upon the worshipers of the satanic
triumvirate (chapters 17–18). […] Revelation presents the seven last plagues as the expression of
God’s final wrath in full strength (Rev. 14:10) for “the world in final rebellion against God”.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 26

(21:4). Finalmente, Jesus promete que vem sem demora para dar aos seus filhos todas
estas coisas que João viu (22:7).
Nesta perspectiva geral, podemos estabelecer uma estrutura temática para os últi-
mos capítulos do Apocalipse conforme se segue:
a) Babilônia é julgada e condenada por Deus (15–19);
b) Cristo restaura seus filhos e os leva para morar com Ele por mil anos (20:1–6);
c) Satanás reúne os ímpios ressuscitados por Deus para guerrear contra Ele (20:7–
9a);
d) Deus julga a Satanás e todos os que estavam com ele e os destrói (20:9b–15);
e) A Terra é completamente restaurada e Deus habita novamente com seu povo
(21–22).

3.1.2 Análise do Texto

O versículo 7 começa com a retomada do conceito dos mil anos. Estes mil anos
se referem ao contexto imediato, conforme estudado na seção anterior. No AT não há
ocorrência relevante da expressão “mil anos” ou similar.2 No NT, excetuando Apocalipse
20, aparece apenas uma vez, em 2 Pe 3, com relação ao “tempo de Deus”. Portanto, fica
claro que a expressão foi extraída unicamente do contexto imediato, e não de outro lugar
da Bíblia. O significado da prisão de Satanás também é dependente do contexto imediato,
já que está intimamente ligado com o milênio.
O verbo λύω, em Apocalipse 20:7, aparece no futuro passivo. Segundo (AUNE,
1998, p. 1093, tradução minha), “o verbo futuro passivo λυθήσεται, ‘será solto’, pode ser
interpretado como um passivo de ação divina, e portanto pode ser entendido como ‘Deus
irá libertar Satanás de sua prisão’ ”.3 Satanás não se liberta de sua prisão; é Deus que o
liberta. Assim como por sua vontade Deus prendeu seu arqui-inimigo, por sua vontade
também o liberta de sua prisão.
Não fica muito claro no texto o porquê de Deus ter ressuscitado os ímpios. Como
visto no capítulo 2, pode ser que isso tenha a ver com uma averiguação definitiva da
rebeldia do coração dos homens ímpios e dos demônios. Os versos que seguem este evento
deixam claro que antes de serem destruídos, todos vão comparecer diante do trono de
Deus (20:11–12). A mesma cena é descrita em Romanos 14:10b: “Pois todos havemos de
comparecer perante o tribunal de Cristo” (AR). Este é o único momento em que todos
estão diante de Deus, já que por ocasião da parousia não há averiguação do julgamento,
2
Há apenas duas ocorrências da expressão “mil anos” (χιλια ετη) ou similar no AT segundo a LXX. A
primeira, no Salmo 90:4, falando da noção temporal de Deus, e de onde parece que Pedro aludiu em
2 Pe 3, e a segunda em Eclesiastes 6:6, falando da futilidade da vida.
3
Texto original, em inglês: The future passive verb λυθήσεται, “will be released,” can be construed as a
passive of divine activity and therefore can be understood to mean “God will release Satan from his
prison.”
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 27

e não há ressurreição dos ímpios, mas no julgamento que aparece nos versos 11–15, os
ímpios de todas as gerações estão presentes, e os mortos são julgados com base nos livros
(v. 12). Na sequência do capítulo 14 de Romanos, no versículo 11, temos que no momento
em que todos estiverem diante do tribunal de Cristo, “se dobrará todo joelho, e toda
língua confessará a Deus”. White (2013, p. 584) sugere que, neste momento, “Satanás se
curva e confessa a justiça [da] sentença [de Deus]”. Pode-se propor, então, que o motivo
pelo qual Deus ressuscita os ímpios é para que aconteça este momento em que todos os
seres criados reconhecem a Santidade de Deus. Deus permite que esta “guerra” aconteça
para que seu caráter possa ser vindicado diante de todo o universo.
Após ser libertado de sua prisão, no v. 8, Satanás reaparece como aquele que
seduzirá as nações da terra. Satanás é apresentado por todo o Apocalipse na figura de um
dragão (STEFANOVIĆ, 2009; MAXWELL, 2013), e este dragão, no livro de Apocalipse,
é constantemente visto ocupando uma posição de liderança contra Deus, sua Lei e/ou seu
povo. Em Apocalipse 12:3, o dragão arrasta a terça parte das estrelas do céu para a Terra.
Isto é comumente entendido pelos adventistas como sendo Satanás enganando os anjos do
céu e levando-os com ele para a perdição (MAXWELL, 2013). Em 12:4, ele é claramente
o líder do lado do mal em uma batalha contra Miguel; uma espécie de general. Em 13:2
ele tem poder para dar à besta que emerge do mar poder, trono e autoridade, símbolos de
majestade. Em 13:4 ele é adorado como um grande rei. Por fim, em 16:3, libera um dos
espíritos imundos que reúne toda a Terra para uma guerra contra Deus. Sendo assim, fica
claro que Satanás é representado como uma figura de liderança e de importância, pelo
menos entre os ímpios.
Desta forma, ao serem ressuscitados os ímpios, logo se identificam com aquele que
haviam seguido durante toda a vida. Ele fora seu senhor antes da morte, e agora que estão
vivos novamente, continuará sendo seu senhor. Esta influência perduradora fará com que
Satanás tenha autoridade para convencê-los que teriam capacidade de destronar a Deus
(MAXWELL, 2013). E é exatamente isso que ele faz. O texto diz que ele sai para seduzir
as nações que há nos “quatro cantos da terra”.
A expressão exata “os quatro cantos da terra”, em grego ταις τεσσαρσιν γωνιαις της
γης, conforme aparece no verso 8, não é encontrada em nenhum lugar da LXX. Porém,
podemos encontrar a expressão των τεσσαρων πτερυγων της γης, que quer dizer, literal-
mente, “as quatro asas da Terra”. Esta expressão é a tradução do hebraico ‫אַרŸבַּע כַּנžפוֹת‬
!Z«‫הָאָר‬, “os quatro cantos da Terra”.4 Nos contextos em que esta expressão é utilizada, fica
evidente que o significado não estabelece a existência de quatro cantos numericamente
exatos e literais, mas é na verdade uma expressão que indica totalidade. Se removermos
o numeral !‫( אַרŸבַּע‬quatro), o significado podemos encontrar ainda mais ocorrências, com
um significado similar. Nestes casos, !Z«‫כַּנžפוֹת הָאָר‬, “cantos da Terra”, é traduzido como
4
Provavelmente, a expressão da LXX foi traduzida como “asas” ao invés de “cantos” porque, no hebraico
bíblico, a raiz !P‫ כנ‬pode significar tanto “canto” quanto “asa”.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 28

“confins da Terra”.
Em Isaías 11:12 lemos: “Ele erguerá uma bandeira para as nações a fim de reunir
os exilados de Israel; ajuntará o povo disperso de Judá desde os quatro cantos da terra”
(NVI, grifo meu). O texto indica claramente que a expressão se refere a um contexto de
totalidade, já que o povo de Israel e Judá não estavam exilados em quatro pontos especí-
ficos da Terra, mas em diversos lugares, por toda a Terra. Semelhantemente, em Ezequiel
7:2 diz: “Filho do homem, assim diz o Soberano, o Senhor, à nação de Israel: Chegou
o fim! O fim chegou aos quatro cantos da terra de Israel.” (NVI) A mesma interpretação
se aplica neste caso, já que Israel, por não ser quadrada, não possía quatro cantos. A
expressão quer, no entanto, dizer que o fim chegou para todo o Israel, e não apenas parte
dela.
Quanto à expressão “Gogue e Magogue”, o contexto imediato no Apocalipse não
deixa muito claro quem ou o quê são. O texto é sucinto em descrevê-los como as numerosas
nações que há nos quatro cantos da terra. No entanto, pode-se ter certeza absoluta de que
João faz uma referência a Ezequiel 38–39. Ao fazer-se uma pesquisa por esta expressão em
toda a Bíblia, descobre-se que os termos “Gogue” e “Magogue”, separadamente, aparecem
pouquíssimas vezes. Juntos, no entanto, aparece apenas uma vez. Este único texto em que
a expressão aparece parece ter sido o fundamento para o que João escreve, e pode ser uma
chave hermenêutica para clarificar o significado destas nações.
A última parte do verso 8 diz: “a fim de reuni-las para a peleja” (Ap 20:8c). O
motivo de Satanás seduzir as nações é para suscitar, mais uma vez, uma guerra contra
Deus. Além disso, seu número é incomumente grande. Apocalipse utiliza a expressão “areia
do mar” (20:8d) para descrever o número dos exércitos. A expressão αμμος της θαλασσης
ou similares são encontradas incontáveis vezes na LXX. Seu significado idiomático é uma
hipérbole quanto a numerosidade de algo. O livro com maior número de ocorrências é
Gênesis, 4 vezes, sendo três vezes em relação à aliança de Deus com os patriarcas, onde a
descendência deles seria como a “areia do mar” (22:17, 28:14, 32:12). Oseias 1:10 retoma
esta promessa feita a Israel. A expressão também é usada frequentemente em contextos
de guerra, para descrever o número dos inimigos (Js 11:4; Jz 7:12; 1 Sm 13:5).
“Marcharam, então, pela superfície da terra e sitiaram o acampamento dos santos e
a cidade querida” (Ap 20:9a). A cena seguinte é o avanço das tropas. O ataque finalmente
começou. Satanás ordena que seu exército marche, por sobre toda a superfície da terra,
e após sitiar a Nova Jerusalém, se prepara para o ataque final. Maxwell (2013) comenta
que o pecado obscurece a mente dos ímpios a ponto de acreditarem que terão alguma
possibilidade de destruir a Deus e seu povo.
Antes, porém, que Satanás e seu exército possam tentar atacar o povo de Deus,
Ele intervém: “Desceu, porém, fogo do céu e os consumiu. O diabo, o sedutor deles, foi
lançado para dentro do lago de fogo e enxofre, onde já se encontram não só a besta como
também o falso profeta, e serão atormentados de dia e de noite, pelos séculos dos séculos”
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 29

(Ap 20:9b–10). Da mesma forma que a besta e o falso profeta já haviam sido destruídos,
restava agora a destruição daquele que é o maior e mais proeminente promotor do mal: o
próprio diabo.

3.2 Análise de Ezequiel 38–39

Após estudar o contexto e o texto de Apocalipse 20:7–10, tem-se mais entendimento


sobre o que acontece está acontecendo, e mais ferramentas para se comparar o texto com
a alusão identificada. Resta, agora, analisar o texto de Ezequiel 38 e 39 a fim de buscar
compreender até que ponto há relação entre estas duas profecias.

3.2.1 Análise do Contexto

Ezequiel, assim como Apocalipse, é um livro de caráter profético e, como tal, car-
rega em si vários oráculos e profecias contra nações da terra. Do capítulo 25 até o capítulo
32 temos diversas condenações contra antigos povos que eram inimigos do povo de Deus,
tematicamente semelhante ao juízo que Deus faz à Babilônia em Apocalipse 16–18:5
a) Capítulo 25: Amom, Moabe, Edom e Filístia;
b) Capítulo 26–28a: Tiro;
c) Capítulo 28b: Sidom;
d) Capítulo 29–32: Egito.
Dentro deste bloco de textos, em Ezequiel, em uma profecia contra Tiro, há diversas
referências a negociantes e suas mercadorias. Em Apocalipse 18 também há esta ênfase:
“Os negociantes da terra chorarão e se lamentarão por causa dela, porque ninguém mais
compra a sua mercadoria” (Ap 20:11, NVI). Muitas das mercadorias citadas em Ezequiel
27 aparecem em Apocalipse 18, como prata e ferro (v. 12, 19; cf. Ap 18:12), utensílios de
bronze (v. 13; cf. Ap. 18:12), cavalos (v. 14; cf. Ap 18:13), marfim (v. 15; cf. Ap 18:12),
tecido púrpura e linho (v. 16; cf. Ap. 18:12), trigo e azeite (v. 17; cf. Ap 18:13), vinho
(v. 18; cf. Ap 18:13), animais (v. 21; cf. Ap 18:13), especiarias, pedras preciosas e ouro(v.
22; cf. Ap 18:12–13). Além disso, em ambos os textos há a lamentação de mercadores (v.
36; cf. Ap 18:11, 15–16), reis (v. 35b; cf. Ap 18:9) e homens do mar (v. 29–35a; cf. Ap
20:17–19). Estes paralelos temáticos e verbais evidenciam uma conexão entre o contexto
imediato de Apocalipse e o contexto imediato de Ezequiel.
Após esta seção que condena vários dos povos ímpios e inimigos de Deus e de seu
povo, Ezequiel 33 começa uma seção que fala sobre a restauração do povo de Israel. Esta
seção vai até o capítulo 38. Nela Deus chama Israel ao arrependimento e promete restaurar
o seu povo em todos os aspectos.
5
Apesar de no capítulo 35 haver uma profecia contra Edom, ela faz parte do bloco seguinte, que veremos
infra.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 30

Um destaque deve ser dado ao capítulo 38, onde Deus proclama uma promessa
em que aconteceria reunião do povo de Judá e Israel, tornando-se um só povo novamente.
“Nunca mais serão duas nações; nunca mais para o futuro se dividirão em dois reinos.” (v.
23) Então, teriam a terra e o reino davídico restaurado:

O meu servo Davi reinará sobre eles; todos eles terão um só pastor,
andarão nos meus juízos, guardarão os meus estatutos e os observarão.
Habitarão na terra que dei a meu servo Jacó, na qual vossos pais habi-
taram. […] Davi, meu servo, será seu príncipe eternamente. […] O meu
tabernáculo estará com eles; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu
povo.” (Ez 37:24–27)

Este capítulo tem relevância especial, pois além de Deus restaurar o povo, ele
promete habitar entre eles novamente. O que acontece em Apocalipse 20:1–6 é muito
semelhante: Deus restaura os remidos, tornando-os incorruptíveis, e estes vão morar com
Deus por mil anos, onde terão paz absoluta.
Os capítulos 38–39 apresentam o único evento que poderia atrapalhar esta restau-
ração. Depois de ter sido reunido, restaurado e de servir novamente a Deus e seguir os
seus caminhos, uma última perturbação aparece para tentar destruir o povo de Israel.
Gog, da terra de Magog, reúne nações de todo o mundo para invadir, saquear e destruir
a Nova Cidade em que habitará o povo de Deus. O capítulo 38 descreve esta coalizão, de
forma extremamente rica e imagética. O capítulo 39 foca-se no juízo de Deus contra estas
nações e sua destruição final através de fogo e enxofre.
Da mesma forma, o Apocalipse, na sequência da restauração relatada, descreve uma
guerra contra este povo que já está restaurado, com objetivo de destruir não a Jerusalém
terrena, mas a Nova Jerusalém. E assim como em Ezequiel, no entanto, Deus destrói aos
exércitos de Satanás e joga-o no lago de fogo e enxofre, consumando o juízo. Finalmente
o povo de Israel está livre de todo e qualquer inimigo. Finalmente poderá viver de forma
plena na presença de seu Senhor. Finalmente poderá ser completamente restaurado.
Do capítulo 40 ao 46, Ezequiel passa a ver o templo da Nova Cidade em que o
povo de Deus então habita. Há vários paralelos relevantes entre este texto e Apocalipse
21. Ezequiel é colocado em um monte alto, onde ele vê uma cidade (v. 2; cf. Ap 21:10).
Surge a figura de um homem, com a aparência como de bronze, e este homem tem uma
cana medidora (v. 3; cf. Ap 21:15). O anjo passa então a medir a estrutura do templo e a
especificar cada detalhe. Interessantemente, assim como o templo que Ezequiel vê, a Nova
Jerusalém é descrita como quadrangular (Ap 21:16). O próprio João faz uma comparação
entre a Nova Jerusalém e o tabernáculo: “Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus
habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles” (Ap 21:3b).6
No capítulo 43, a glória do Senhor, que anteriormente havia deixado o templo
(cap. 10), retorna e preenche o templo. Ali, o Senhor promete habitar no meio dos filhos
6
Apesar da palavra tabernáculo (σκηνή) poder significar “tenda”, também é a palavra utilizada no AT
para se referir ao primeiro santuário, o santuár io móvel que foi construído no deserto. O contexto
sugere que este sentido é preferível aqui.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 31

de Israel para sempre (v. 7; cf. Ap 22:5). Em seguida, restabelece o altar de holocaustos,
o ministério sacerdotal do templo e as festas.
No capítulo 47, Ezequiel vê água saindo de baixo do templo, assim como João vê
o rio da água da vida saindo de baixo do trono de Deus (47:1; cf. Ap 22:1), e as divisões e
limites da nova terra. O capítulo 48 termina com o homem de bronze medindo os portões
da Nova Cidade, que, assim como a cidade descrita em Apocalipse 21, possui três portões
para cada lado da cidade, e cada um deles tem o nome de uma das doze tribos de Israel
(v. 30–34; cf. Ap. 21:12–13).
O capítulo 48 termina com o que é o mais importante elemento da cidade. “O
nome da cidade desde aquele dia será: O Senhor Está Ali” (Ez 48:35b). A presença do
Senhor na cidade é o que a torna tão especial. Agora, finalmente, Deus habita de novo
com o seu povo, de forma plena. João também dá esta ênfase quando está descrevendo a
Nova Jerusalém. “Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles
serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles” (Ap. 21:3). “Nela, não vi santuário,
porque o seu santuário é o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro. A cidade não
precisa nem do sol, nem da lua, para lhe darem claridade, pois a glória de Deus a iluminou,
e o Cordeiro é a sua lâmpada” (Ap 21:22–23). “Nunca mais haverá qualquer maldição.
Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os seus servos o servirão, contemplarão a sua
face, e na sua fronte está o nome dele” (Ap 20:3–4). “Então, já não haverá noite, nem
precisam eles de luz de candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre
eles, e reinarão pelos séculos dos séculos” (Ap 20:5). Para Ezequiel e para João, o que
mais importa, a conclusão e o suprassumo dos últimos acontecimentos, é quando Deus
volta a habitar com aqueles que foram salvos por Ele, seus filhos.
Após analisar o contexto de Ezequiel 38–39, assim como foi feito com Apocalipse,
pode-se montar uma estrutura temática geral, seguindo os principais temas de cada seção
estudada:
a) O Senhor condena as várias nações ímpias (25–32);
b) Ele quer restaurar a Israel e reunir os dois povos para habitar com eles (33–37);
c) Gog reúne as nações de todo mundo para perturbar a paz do povo de Deus
(38);
d) Desce fogo e enxofre do céu para destruir definitivamente todos que ameaçam
a Israel (39);
e) O profeta tem visões da nova cidade e da estrutura do templo, onde finalmente
o remanescente de Deus poderá habitar na Sua presença (40–48).
Ao comparar as estruturas temáticas de Apocalipse e Ezequiel, pode-se claramente
perceber que elas contêm diversos paralelos temáticos que se relacionam entre si, não
apenas contextualmente como também verbalmente, em alguns momentos. Assim sendo,
infere-se com segurança que muito provavelmente João possuía o contexto imediato de
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 32

Ezequiel em mente, e utilizou-se deste ao descrever a condenação da Babilônia, a restau-


ração de Israel, a batalha decisiva e a Nova Jerusalém. A Table 1 mostra uma síntese dos
paralelos encontrados no contexto imediato de Ezequiel 38–39 e Apocalipse 20:7–10.

Tabela 1 – Contexto Imediato de Ezequiel e Apocalipse

Apocalipse Ezequiel
Capítulos 25–32: profecia condenatória Capítulos 17–19: Babilônia, represen-
contra os ímpios tante de todos os ímpios, é condenada
Capítulo 20:1–6: restauração do Novo
Capítulos 33–37: restauração de Israel:
Israel: os justos ressuscitam e todo o
o povo de Deus tem novamente a terra
povo de Deus vai morar com Ele por
e Deus torna-se novamente seu Deus
1000 anos
Capítulos 38: nações de todo o mundo Capítulo 20:7–9a: nações de todo o
se reúnem para atacar o povo de Deus mundo se reúnem para atacar o povo
restaurado de Deus restaurado
Capítulo 39: Deus intervém e destrói os Capítulo 20:9b–15: Deus intervém e
ímpios em um juízo final destrói os ímpios em um juízo final
Capítulos 21–22: o profeta vê a nova
Capítulos 40–46: o profeta vê o templo
Jerusalém restaurada, suas portas, o rio
restaurado e a Glória do Senhor retor-
que sai do trono de Deus e a Glória de
nando ao templo
Deus que ilumina a cidade
Capítulos 47–48: o profeta vê o rio que
sai do templo, as novas fronteiras da
cidade e as portas da nova cidade

3.2.2 Análise Final

3.2.2.1 O líder proeminente

Em Ezequiel 38, o líder da rebelião se chama Gog, e aparece no verso 2. A tradução


da ARA descreve-o como “Gogue, da terra de Magogue, príncipe de Rôs, de Meseque e
Tubal” (Ez 38:2b, ARA). No entanto, esta não é a única possível tradução para este texto.
Veja, por exemplo, a forma como a NVI traduz: “Gogue, da terra de Magogue, o príncipe
maior de Meseque e Tubal” (Ez 38:2b, NVI). Esta divergência se dá por conta da fonte tex-
tual. A versão da LXX traz o texto da seguinte forma: γωγ και την γην του μαγωγ αρχοντα
ρως μοσοχ και θοβελ και προφητευσον επ αυτον. Nesta versão, o grego não dá outra opção
se não ler ρως como sendo o nome própro de um povo ou uma pessoa. Muitos intérpretes
veem desta forma, e alguns tentam identificar este povo profeticamente, como por exem-
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 33

plo com a Rússia, pela similaridade dos fonemas e outros motivos (GOT QUESTIONS
MINISTRIES, entre 2002 e 2017). Nesta interpretação, Gog é um príncipe de Ros, Meseq
e Tubal. Por outro lado, a tradução que a NVI optou reflete uma interpretação alterna-
tiva. No TM a expressão encontrada é !‫בָל‬u‫ת‬¢‫יא ר¸אשׁ מֶשׁ¬› ו‬¤‫ הַמָּגוֹג נžשׁ‬Z«‫גּוֹג אֶר‬. A palavra que
na LXX é traduzida como Ros, aqui é !‫ ר¸אשׁ‬e, no hebraico bíblico, significa “cabeça, chefe,
líder, primeiro, principal” (DAVIDSON, 2014). É uma palavra que significa primazia e
destaque. Portanto, a tradução “maior príncipe” ou “principal príncipe” é válida.
Esta possibilidade de tradução, conforme o TM, parece ser ainda mais provável
se fizermos uma pesquisa em busca da palavra ρως por todo a LXX, já que nunca a
encontramos sendo utilizada como nome próprio se não nesta ocorrência. Sendo assim,
se formos considerar a possibilidade de esta palavra significar um nome próprio, esta
seria uma utilização singular, enquanto optar pelo significado da raiz hebraica é uma
interpretação muito mais natural.
Desta forma, há uma forte identificação entre a figura de Gog de Ezequiel 38–39
e Satanás conforme retratado por Apocalipse 20. Gog não é apenas um príncipe, mas o
maior deles, o mais exaltado, assim como Satanás o é para todos aqueles que decidiram
se rebelar contra o Senhor.

3.2.2.2 O catalisador da guerra

Assim como em Apocalipse 20, em Ezequiel 38–39 é Deus quem age diretamente
para que a batalha aconteça. Tanto no começo do capítulo 38 quanto no começo do
capítulo 39, temos expressões que indicam claramente que é o Senhor quem leva Gog
a agir: “Far-te-ei que te volvas” (38:4a; 39:2a, ARA), “far-te-ei subir dos lados do Norte
e te trarei aos montes de Israel” (38:4c, ARA). Em 38:7, especificamente, Ele aparece
ordenando Gog a se rebelar, como se esta fosse a sua vontade. “Prepara-te, sim, dispõe-te
tu e toda a multidão do teu povo que se reuniu a ti, e serve-lhe de guarda” (38:7, ARA).
Aune (1998) também aponta para 38:14–17 como sendo Deus o motivador da reunião:

Por isso, filho do homem, profetize e diga a Gogue: Assim diz o Sobe-
rano, o Senhor: Naquele dia, quando Israel, o meu povo, estiver vivendo
em segurança, será que você não vai reparar nisso? Você virá do seu
lugar, do extremo norte, você, acompanhado de muitas nações, todas
elas montadas em cavalos, uma grande multidão, um exército numeroso.
Você avançará contra Israel, o meu povo, como uma nuvem que cobre
a terra. Nos dias vindouros, ó Gogue, trarei você contra a minha terra,
para que as nações me conheçam quando eu me mostrar santo por meio
de você diante dos olhos delas. Assim diz o Soberano, o Senhor: Acaso
você não é aquele de quem falei em dias passados por meio dos meus
servos, os profetas de Israel? Naquela época eles profetizaram durante
anos que eu traria você contra Israel (Ez 38:14–17, NVI, grifos meus).
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 34

3.2.2.3 Os quatro cantos da Terra

Apesar de em Ezequiel 38–39 não aparecer a expressão “quatro cantos da Terra”,


a ideia de que os exércitos são reunidos não só de um lugar, mas de toda a Terra, está
evidente: “A Pérsia, a Etiópia e a Líbia estarão com eles” (38:5). “Gômer […] e Bete-
Togarma […]; muitas nações com você” (38:6). “acompanhado de muitas nações” (38:15).
“as muitas nações que estarão com ele” (38:22). “as nações que estiverem com você” (39:4).
Todos estes versos indicam a presença de muitas nações, e de vários lugares.
Para o Beale (1999), há uma diferença entre Ezequiel e Apocalipse aqui, já que
no primeiro os povos vêm apenas de duas direções, enquanto no seguno vêm de todos os
lugares da Terra. No entanto, se pesquisarmos onde estavam localizadas as nações citadas,
vemos que elas estavam localizadas em vários lugares da Terra. O principal deles é o Norte.
O profeta fala duas vezes que as nações vêm do Norte (38:15; 39:2), e fala especificamente
da casa de Togarma, como também vindo do Norte (38:6).

Além do uso esperado em referência à direção, “Norte” possui diversas


conotações específicas no AT. “Norte” é especialmente a direção de onde
vêm os invasores. Certamente a posição de Israel influenciou este enten-
dimento. Protegida pelo mar no Oeste e pelo deserto sírio no Leste, suas
únicas preocupações principais quanto a uma grande invasão vinha do
Sul (Egito) e Norte (Assíria, Babilônia, os Hititas etc.). […] Talvez tanto
simbolicamente quanto geograficamente, “Norte” é também a direção
de onde os invasores virão contra a Babilônia e a direção de onde virá
Gog, de Magog (JR., 1992, p. 1136, tradução minha). 7

Foi do Norte que veio a Assíria para destruir Israel. “O Senhor me disse: ‘Do
norte se derramará a desgraça sobre todos os habitantes da terra” (Jr 1:14). Daniel usa
a figura do Norte no capítulo 11, na guerra entre os reinos do Norte e Sul, e estes rei do
norte está em oposição a Deus.

O Norte é a representação bíblica do mal que usurpa a Deus. O chifre


pequeno vem do Norte. Da mesma forma, os profetas identificaram mal e
tragédia vindo do Norte. […] A ligação entre Babilônia e o Norte encontra
ainda mais confirmações na literatura do Antigo Oriente Médio. Na
mitologia canaanita, Baal habita no Norte. A referência ao Norte, seja
através de Baal ou Babilônia, carrega implicações religiosas e alusões à
usurpação de Deus (DOUKHAN, 2000, p. 172, tradução minha).8
7
Texto original, em inglês: In addition to the expected use in reference to the direction, “north” comes
to have several specific connotations in the OT. “North” is especially the direction from which invaders
come. Certainly Israel’s position influenced this understanding. Protected by the sea on the W and
the Syrian desert on the E, her only major concerns for massive invasion came from the S (Egypt)
and the N (Assyria, Babylon, the Hittites, etc.). […] Perhaps as much symbolically as geographically,
“north” is also the direction invaders will come upon Babylon and the direction from which Gog of
Magog will come.
8
Texto original, em inglês: The north is the biblical representative of evil, which usurps God. The
little horn comes from the north. Likewise, the prophets identified evil and tragedy as coming from
the north. […] The link between Babylon and the north finds further confirmatio in ancient Middle
Eastern literature. In Canaanite mythology the god of Baal dwelled in the north. The reference to
north, be it through Baal or Babylon, carries religious implication and allusion to the usurpation of
God.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 35

O motivo de o profeta utilizar o Norte como origem das nações do conflito é muito
claro nas Escrituras. O Norte estava intimamente relacionado com as invasões dos inimigos.
Mas o Norte não é o único lugar de onde vêm os inimigos de Deus em Ezequiel 38–39.
Como não se acham correspondentes históricos bem definidos para a terra de Ma-
gog, assumir-se-á que ficava de fato no Norte. Quanto a Meseq (v. 2), Baker (1992b)
aponta que tanto Heródoto quanto Josefo identificaram o leste da Ásia Menor como a
localização deste povo, ratificando a descrição dada pelo texto bíblico, que localiza este
povo ao Norte de Israel. Baker (1992c) também diz que Tubal (v. 2) provavelmente ficava
ao Norte de Israel, já que vários dos outros povos descendentes de Jafé citados na Bíblia
(Gomer, Magog, Madai, Javã, Meseq, Tubal) se encontravam naquela região. Textos aca-
dianos, que mencionam tabal e muski, que podem ser identificados com Meseq e Tubal,
localizam estes povos no leste da Ásia Menor, a oeste de Togarma (BAKER, 1992c).
O CBASD localiza o segundo grupo de povos citados em Ezequiel 38 (Pérsia, Cush
e Put, v. 5) ao Sul e Leste de Israel (NICHOLS, ed., 2013, p. 778). A Enciclopédia Mirador
Internacional (1982) situa a Pérsia na região entre o mar Cáspio e o golfo Pérsico. Cush é
traduzido em algumas versões como Etiópia (e. g. NVI, KJV). Se considerarmos o local da
Etiópia moderna, Cush ficaria no lugar conhecido como “Chifre da África”, ao nordeste
do continente de mesmo nome. De acordo com o CBASD (NICHOLS, ed., 2013, p. 778),
este povo ficava ao sul do Egito, mais ou menos onde hoje é a Núbia, o que é um pouco
acima da moderna Etiópia. Por sua vez, Johnson (1992) comenta que Cush poderia ser
no sul do Egito, na Etiópia ou norte da Síria. A interpretação de que Cush fica ao sul
do Egito parece se mais coerente com o relato de Gênesis 2. Quanto à localização de
Put, o CBASD (NICHOLS, ed., 2013) nota que poderia estar situado às margens do Mar
Vermelho, ou na Líbia. Esta segunda ideia se reflete na tradução de algumas versões da
Bíblia, como a clássica KJV, que várias vezes traduz Put como Líbia, ou libianos.
No verso 6, aparecem Gomer e Togarmah. Tanto o CBASD (NICHOLS, ed., 2013,
p. 779) quanto Baker (1992a) levantam a ideia da possibilidade de identificar Gomer com
os gimirri, ou cimérios, um povo Indo-Europeu que habitava onde hoje é o sul da Rússia.
Sobre Togarmah, O CBASD (NICHOLS, ed., 2013, p. 779) diz: “Historicamente, este
povo tem sido identificado como sendo os tilgarimmu das insrições assíria”. Na Bíblia,
é retratado como comerciante de cavalos, e no contexto geográfico de Ez 38 pode ser
situado ao norte de Israel. Documentos antigos parecem localizá-lo ao leste de Tubal, ou
na moderna Turquia, em Gurun (NICHOLS, ed., 2013, p. 779).
A Figure 2 ilustra aproximadamente, com base nas informações supra, onde vivia
cada um dos povos citados em Ezequiel 38–39. Como podemos ver, não se trata de um local
apenas, mas de todas as direções do mundo, se considerarmos a localização geográfica do
povo de Israel. Conclue-se, então, que esta é outra relação entre Apocalipse 20 e Ezequiel
38–39, já que em ambos os contextos os povos reunidos para guerrear contra Deus se
encontram em diversos locais da Terra.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 36

Figura 2 – Locais aproximados dos povos

3.2.2.4 Os povos

Depois de estudar onde os povos de Ezequiel 38–39 habitavam, é importante tam-


bém entender quem eles eram. A escassez de informação em Apocalipse 20 pode ser suprida
ao combinarmos o contexto de Apocalipse com o de Ezequiek. Um estudo intertextual
pela Bíblia e, principalmente, em Ezequiel nos dará um entendimento mais completo sobre
a natureza dos povos que compõem este grande conflito final.

3.2.2.4.1 Gog e Magog

A palavra gog (!‫ )גּוֹג‬aparece apenas em dois contextos no Antigo Testamento. O


primeiro está em I Crônicas 5:4, e é o nome de um reubenita.9 Este contexto é irrelevante
para o presente estudo, e é uma ocorrência extremamente singular. O outro contexto em
que aparece é o relativo ao presente estudo, a saber, Ezequiel 38–39, onde aparece várias
9
Por algum motivo, a LXX traduziu o termo !‫זּ¦י‬¢‫( גּ‬traduzido pela ARA como “ceifa”) de Amós 7:1 como
γωγ. Como isto não faz sentido no contexto e nenhuma tradução da Bíblia traduz esta palavra como
o nome próprio Gog, vou assumir a versão do TM, em que a palavra não aparece neste texto.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 37

vezes se referindo a uma pessoa, da terra de Magog (!‫)מָגוֹג‬, e o principal chefe de Meseq
e Tubal. De acordo com o ABD (CUFFEY, 1992, p. 1056), várias propostas foram feitas
para identificar quem era o Gog ao qual Ezequiel se referia:

(1) Gyges, rei da Lídia (Gugu, nos registros de Ashurbanipal); (2) Gaga,
o nome na correspondência Armana para as nações do norte; (3) Gaga,
um Deus enxontrado nos escritos de Ras Shamra; (4) uma figura histó-
rica, especialmente Alexandre; e (5) fontes mitológicas, comGog sendo
uma representação das forças diabólicas das trevas que se opõem a
Yahweh e seu povo.10

O termo magog (!‫ )מָגּוֹג‬também aparece, além de Ezequiel 38–39, em dois contextos.
O primeiro é Gênesis 10. Este é um contexto relevante, conforme veremos a seguir. Magog
aparece como sendo um dos descendentes de Jafé. Em I Crônicas 1:5 ele reaparece, já que
este verso é uma reedição da genealogia de Gênesis 10. Interessantemente, em Gênesis 10
não há Gog, apenas Magog, e ele é uma pessoa. Já em Ezequiel, Magog é um lugar, e a
pessoa se chama Gog. Apocalipse 20 usa os termos indiscriminadamente, Gog e Magog,
como representação dos povos que se levantam contra Deus.

3.2.2.4.2 Meseq e Tubal

Apesar de Gog e Magog serem raros no texto bíblico, os outros povos que estão
presente no contexto não o são, e nos ajudam a clarificar o significado da natureza desta
rebelião. Meseq também aparece em Gênesis 10 como filho de Jafé (v. 2), e na reedição de
I Crônicas 1 como filho tanto de Jafé (v. 5) como de Sem (v. 17). O autor do Salmo 120 se
coloca como peregrino entre o povo de Meseq (v. 5), que é descrito por ele como aqueles
que “odeiam a paz” (v. 6), e que “só falam de guerra” (v. 7). Este não é um contexto
profético, mas nos dá uma ideia da natureza deste povo.
Ezequiel 27 é um oráculo contra Tiro. Antes de dar a condenação a esta cidade, o
profeta cita vários povos que se relacionam com Tiro. Muitos deles também aparecem em
Ezequiel 38 e 39. No verso 13, aparece Tubal, Meseq e Javan, como cidades que comercia-
lizaram como Tiro, mais especificamente trocando “escravos e utensílios de bronze pelos
seus bens”.
Ezequiel 32 também em um lamento, mas desta vez contra o rei do Egito. Yhwh,
através do profeta, usa uma linguagem forte de condenação contra o faraó. A partir do
verso 17, o profeta ordena que as multidões do Egito desçam “para baixo da terra tanto elas
como as filhas das nações poderosas, junto com aqueles que descem à cova” (v. 18). Entre
estas nações poderosas, após citar a Assíria e Elão, fala de Meseque e Tubal: “Meseque
e Tubal estão ali, com toda a sua população ao redor de seus túmulos. Todos eles são
10
Texto original, em inglês: (1) Gyges, King of Lydia (Gugu of Ashurbanipal’s records); (2) Gaga, a nem
in the Amarna correspondence for the nations of the N; (3) Gaga, a god from Ras Shamra writings; (4)
a historical figure, especially Alexander; and (5) mythological sources, with Gog being a representation
of the evil forces of darkness which range themselves against Yahweh and his people.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 38

incircuncisos, mortos à espada porque espalharam o seu terror na terra dos viventes” (v.
26). A imagem aqui não é nada positiva. O adjetivo “incircunciso”, usado para descrever
Meseque e Tubal, assim como outros dos povos nesta lista, certamente não se refere à
circuncisão física do povo de Israel, mas ao fato de se oporem diametralmente a Yhwh.
Tubal aparece na genealogia de Gênesis 5 e I Crônicas 1 como descendente de
Jafé, junto a Meseq. Como falado supra, também aparece em Ezequiel 27 e 32, no mesmo
contexto. Em Isaías 66, um cenário quase que escatológico, o profeta descreve as ações
de Deus por seu povo, quando ele iria estender a paz a Jeursalém (v. 12), consolar os
seus filhos (v. 13) e trazer juízo (v. 16, 17). Além disso, Yhwh iria “ajuntar todas as
nações e línguas” para verem sua glória (v. 18). Depois, enviaria mensageiros a estes
povos para proclamar Sua glória. Entre estes povos está “Társis, [os] líbios, [os] lídios,
famosos flecheiros, Tubal, Grécia e [as] ilhas distantes, que não ouviram falar [dEle] e não
viram [sua] glória” (v. 19). Tubal, nesta cena, não aparece como um povo que se rebela
diretamente contra Deus, mas como um povo que não conhece a Deus.11

3.2.2.4.3 Pérsia

Partindo do pressuposto que, de fato, Ezequiel começou seu ministério a partir


do quinto ano do cativeiro do rei Joaquim, entre o ano 593 e 592 a.C. (NICHOLS, ed.,
2013), conforme o próprio texto bíblico nos diz, nesta época os persas não eram ainda
uma grande nação. Pérsia é o único nome no contexto de Ezequiel 38 e 39 que não
aparece na genealogia de Gênesis 10. No entanto, a Pérsia aparece muito mais vezes no
Antigo Testamento do que os citados até agora, a saber, 28 vezes (segundo o TM). Não
vou discorrer individualmente sobre cada uma dessas ocorrências, porque a maioria é de
pouca ou nenhuma relevância para nós.
Nos textos de II Crônicas 36:20, 22, 23 e Esdras 1:1, 2, 8; 3:7; 4:3, 5, 7; 7:1 e 9:9,
a Pérsia aparece em um contexto exílico e/ou pós-exílico, mostrando como a palavra de
Deus se cumpriu e como os persas sucederam a Babilônia como império que dominava
sobre o povo de Deus. É um sentido literalista e histórico.
O livro de Ester se situa no reino Persa, então não é surpreendente que este nome
apareça. Porém, aparece em um sentido também literalista e histórico, e em um contexto
exílico. Os textos em que o nome aparece são 1:3, 14, 18, 19 e 10:2, tanto no começo
quando no fim do livro.
O livro de Daniel, a Pérsia agora aparece em um contexto profético, para indicar
os eventos que ocorreriam daí em diante até a vinda do Messias. Estes são 8:20; 10:1, 13 e
11
Na LXX, diferentemente do texto massorético, o verso 19 não apresenta o epíteto “famosos flecheiros”.
No lugar, temos a expressão “καὶ Μοσοχ”, que pode ser perfeitamente traduzida como “e Meseque”.
De acordo com o TM, a expressão hebraica seria !‫כֵי קֶשׁ¬ת‬ ‫מֹשׁ‬, que possui a mesma raíz do nome Mesq,
a saber, !K‫מש‬. Não é objetivo do presente estudo analisar se esta possibilidade é válida ou não, mas é
interessante notar que, caso a interpretação da LXX esteja correta, todos os seis usos do nome Tubal
pelos profetas do AT são acompanhados do nome Meseq.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 39

11:2. A única exceção está em Daniel 10:20, onde a palavra aparece na expressão “Príncipe
da Pérsia”, que, no contexto do verso, é um poder sobrenatural que tenta impedir que
Daniel recebesse o conforto e as palavras do anjo que viria em seguida. Este príncipe é
tradicionalmente interpretado como o próprio diabo.
Além destes usos menos relevantes, o uso de maior destaque é o que se encontra
em Ezequiel 27:10, já que aparece no mesmo contexto em que Meseq e Tubal neste verso.
Além disso, a palavra se encontra juntamente aos Lídios e Put. Assim, a sequência “Pérsia,
Lídia, Put” (27:10) se assemelha muito com “Pérsia, Etiópia e Put” (38:5). O contexto é
similar ao de Meseq e Tubal, mas em vez de estes povos serem mercadores de Tiro, eles
são os “homens de guerra” dele.

3.2.2.4.4 Cush e Put

Tanto Cush como Put aparecem em Gênesis 10 e I Crônicas 1, como filhos de Cam,
diferentemente dos povos mecionados acima. Porém, ainda antes da genealogia, o nome
Cush já aparece, em Gênesis 2:13, como uma território pelo qual o rio Giom fluia ao redor.
De acordo com (JOHNSON, 1992), porém, o nome pode se referir a dois persoangens
bíblicos. O primeiro, que é de nosso interesse, seria este filho de Cam, originador dos
etíopes e dos cassitas. O segundo, é um benjamita que aparece no Salmo 7, e que, segundo
alguns teólogos, é o mesmo personagem que aparece em II Samuel 1. Iremos tratar apenas
com os textos que lidam com o primeiro personagem.12
No livro de Ester, Cush aparece no começo e perto do fim do livro (1:1; 8:9),
indicando a extensão do reino persa na época (127 províncias, da Índia até a Etiópia).
Há uma ocorrência do nome Cush em Jó (28:19), onde ele diz que o valor do ouro
ou do topázio oriundo da Etiópia não podem se comparar ao valor da sabedoria.
O Salmo 68 apresenta uma cena onde Deus dá vitória sobre os inimigos. Após
esta vitória, há um momento de adoração a Deus por estes seus feitos. Neste contexto,
aparece a etiópia, “[correndo] a estender mãos cheias para Deus” (v. 31). Nesta situação,
Cush aparece em um tom relativamente positivo. Além deste, o Salmo 87 apresenta uma
exaltação à cidade de Jerusalém, onde a Etiópia, juntamente de Tiro e outros povos, é
descrita como se tivesse nascido em Jerusalém, e portanto reconhece sua importância.
Este também não é um contexto negativo.
No capítulo 11 de Isaías, versículo 11, a Etiópia aparece com vários outros povos,
como representando a extensão do exílio do povo de Deus. No capítulo 18, há uma profecia
contra a Etiópia, onde ela é apresentada como um povo alto, temido, agressivo e “de
fala estranha” (v. 2, NVI). O capítulo 20 de Isaías também traz uma profecia contra a
Etiópia, junto com o Egito, onde eles seriam exilados nus, e deixariam Israel sem ter a
12
A discussão sobre se o Cuxe de II Samuel é o mesmo do Salmo 7 é maior e um pouco mais complexa,
mas esta discussão não está no escopo deste trabalho. Além disso, as ocorrências de II Samuel não
são relevantes para o nosso estudo, portanto vamos descartar estes textos da nossa análise.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 40

quem socorrer quando viesse o rei da Assíria. Em Isaías 37:9, Tiraca, o rei da Etiópia,
iria lutar contra Senaqueribe. Em 45:14, em uma promessa de restauração de Israel que
começa no capítulo 44, os produtos do Egito e as mercadorias da Etiópia pertenceriam a
Israel.
Em Jeremias 46:9, Etiópia aparece juntamente com Put e Lídia (Lud). Estes três
povos são agentes de Deus para a execução do Dia do Senhor contra o Egito. Os Etíopes
são descritos como aqueles que manejam o escudo.
Em Ezequiel, além do texto do corrente estudo, aparece nos capítulos 29 e 30. Ali,
apesar de ser uma condenação contra o Egito e focar a maior parte do tempo nele, em 30:4,
5 e 9, há condenação também sobre a Etiópia. Um destaque maior vai para o versículo 5,
em que aparecem Etiópia, Put e Lídia (Lud) juntos, mais uma vez.
Naum 3:9 apresenta a Etiópia junto do Egito, Put e Líbia (Lud). É apresentada
como força aliada de Tebas.
O último texto em que encontramos o nome Etiópia é em Sofonias 3. Em mais uma
promessa de bênção e restauração de Israel, Deus também promete que todos os povos
viriam adorá-lo em Israel. Entre estes povos, está a Etiópia (v. 10).

3.2.2.4.5 Gomer e Togarmah

Talvez a ocorrência mais conhecida de Gomer é aquela que se refere à esposa de


Oséias, o profeta, dita prostituta. Esta, porém, é uma ocorrência única (Os 1:3), e não
relevante para o nosso estudo. O Gomer que Ezequiel se refere no capítulo 38 é aquele que
também aparece na genealogia de Gênesis 10, como primogênito de Jafé, e recapitulado
em 1 Crônicas 1. Além destes textos, nenhuma outra vez Gomer aparece na Bíblia, e
é portanto um povo de difícil identificação. Por conta disso, fica difícil utilizá-lo para
enriquecer o nosso estudo senão na questão da descendência jafita.
O nome Togarma aparece ainda menos vezes que o nome Gomer, e todas as suas
ocorrências são comuns com outros dos nomes analisados supra. Estas ocorrências estão
na genealogia de Gênesis 10, como filho de Gomer, a genealogia de I Crônicas 1, Ezequiel
27 e Ezequiel 38. Acredito que a maior relevância esteja em 27, pela sua forte conexão
com 38.
Ao analisar as ocorrências de todos estes nomes, podemos concluir dois pontos
importantes: (1) os povos que fazem parte da coalizão de Gog frequentemente aparecem em
contextos de juízo. São retratados normalmente como povos que se rebelam contra Deus,
violentos e maus, ou que se ligam a outros povos que têm estas características. Apesar
de haver algumas exceções, esta é a ideia geral apresentada no contexto escriturístico, e
podemos concluir com segurança que a leitura destes nomes por parte de qualquer judeu
conhecedor das Escrituras evocaria estes conceitos. (2) Além disso, com exceção da Pérsia,
todos os povos que fazem parte da rebelião estão presentes na genealogia de Gênesis 10.
Gomer, Magog, Meseq, Tubal e Togarmah são filhos de Jafé, enquanto Cush e Put de
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 41

Cam. Além dos povos que guerrearão, Ezequiel 38–39 apresenta outros que interagem
com aqueles: Sabá, Dedã, Társis. Estes também fazem parte da descendência de Jafé
e Cam. Este detalhe é significante, já que no AT é comum se identificar Sem e seus
descendentes de forma positiva, já que estes receberam a bênção de Noé; enquanto Jafé
e principalmente Cam de são retratados de forma negativa. Estes, foram desobedientes a
Deus, e sua descendência assim também procedeu. Desta forma, temos o seguinte: Israel
está representando todos aqueles que obedecem a Deus e que fazem parte da aliança
divina, a linhagem de Sem. Do outro lado, estão todos aqueles que não fazem a vontade
de Deus, e que não fazem parte da aliança divina, a linhagem de Cam e Jafé.
Este contexto é carregado para o Apocalipse. Gog e Magog não são apenas as
nações de toda a terra, conforme o texto diz (20:8b). A ligação com Ezequiel nos mostra
a natureza da rebelião de Gog e Magog. São as nações más, aqueles que se rebelaram
decididamente contra Deus. São o símbolo dos povos que arrastaram o povo de Deus para
um exílio, e os destruíram (cf. Ez 38:8). São aqueles que, assim como Cam e Jafé, tiveram
a oportunidade de servir a Deus e de fazer parte da aliança de salvação, mas rejeitaram
o seu salvador, Jesus, o Cristo. Estes, agora, ao terem mais uma vez a oportunidade de
se rebelar contra Deus, estão decidido a atacar sua cidade com ódio mortal.

3.2.2.5 Reunião para a batalha

Esta reunião que acontece em Apocalipse 20:8 a fim de guerrear contra o povo de
Deus também acontece em Ezequiel. Várias expressões indicam esta ajuntamento: “reuni-
das ao seu redor” (38:7), “você reuniu” (38:13). Há também fortes elementos que indicam
uma violenta guerra: “seu exército: seus cavalos, seus cavaleiros totalmente armados e
uma grande multidão com escudos grandes e pequenos, todos eles brandindo suas espa-
das.” (38:4), “as suas tropas” (38:6, 2x; 38:9; 38:22; 39:4), “você será chamado às armas
[…] você invadirá” (38:8), “Invadirei […] atacarei” (38:11), “Despojarei, saquearei e voltarei
a minha mão contra” (38:12), “para tomar despojos […] para saquear, levar embora prata
e ouro, tomar o gado e os bens e apoderar-se de mutos despojos” (38:13), “todas elas
montadas em cavalos […] um exército” (38:15).
A linguagem de Ezequiel é muito mais detalhada e descritiva do que a de Apoca-
lipse. Ezequiel se utiliza de figuras nítidas sobre o nível da batalha. Cavalos, cavaleiros
totalmente armados, escudos. A preparação não é para uma batalha qualquer, mas para
uma grande batalha. Também é nítido que a intenção não é apenas de conquistar, mas
saquear e destruir tudo. Esta descrição é digna de uma batalha apocalíptica.
No texto de Ezequiel, apesar de não se usar a mesma terminologia de Apocalipse,
também se percebe uma ênfase na ideia de que os povos não são poucos, mas muitos,
multidões: “você e todas as multidões”, (38:7) “esta multidão” (38:13), “uma grande
multidão […] numeroso” (38:15).
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 42

3.2.2.6 O ataque à cidade

Apocalipse descreve o exército marchando por toda a largura da Terra (Ap 20:8).
O contexto de Ezequiel utiliza uma expressão imagética que tem o mesmo significado:
uma nuvem que cobre a terra. A expressão aparece duas vezes (38:9, 38:16), no TM com
as mesmas palavras. Fisch (1978, p. 256, tradução minha) interpreta a ocorrência de 38:9
como relacionada à expressão “tempestade” que vem anteriormente, e significando a força
e terrível aparência com que o povo viria. A segunda ocorrência é interpretada por ele
como sendo uma nuvem “que cobre a terra com escuridão; portanto Gog invade com um
exército vasto que cobre uma ampla área de batalha”.13
Apesar desta interpretação poder ser válida, acredito que a primeira ocorrência da
expressão tem o mesmo sentido da segunda. A versão da LXX destaca essa ideia, já que os
termos usados são diferentes. Em 38:9, é utilizado o verbo κατακαλύπτω, que não aponta
apenas a ideia de cobrir algo (como o faz o verbo utilizado em 38:16, καλύπτω). Mais do
que isso, o verbo traz a ideia de “cobrir completamente”.
Assim como em Apocalipse, em Ezequiel o alvo do ataque também é a cidade de
Deus. Ezequiel descreve a cidade como “uma terra que se recuperou da guerra, cujo povo
foi reunido dentre muitas nações nos montes de Irael, os quais por muito tempo estiveram
arrasados. Trazido das nações, agora vive em segurança” (38:8), “uma terra de povoados;
[…] um povo pacífico e que de nada suspeita, onde todos moram em cidades sem muros,
sem portas e sem trancas” (38:11). Ambos os versos mostram um contexto paralelo com
Apocalipse. Em Apocalipse, esta guerra acontecerá após o Novo Israel, a igreja amada
de Deus, ter sido restaurada de seu exílio do pecado. Além disso, a expressão “cidades
sem muros, sem portas e sem trancas” é totalmente identificável com a cidade da Nova
Jerusalém. Esta identificação não se dá em nível literal, já que o capítulo 21 diz que a
cidade “tinha grande e alta muralha [e] doze portas” (v. 12), mas no nível metafórico.

Na condição de paz e sentindo-se segura, Israel não fará nenhuma prepa-


ração contra os ataques construindo muros ao redor de suas cidades. O
estado indefensável da terra será um incentivo para Gog fazê-lo objeto
de sua campanha (FISCH, 1978, p. 255, tradução minha).14

O verso 14 reforça esta ideia: “[virão] quando Israel, o meu povo, estiver vivendo em
segurança”. Na Nova Jerusalém não vamos nos preocupar com guerras. De fato, estaremos
já salvos e transformados, vivendo em perfeita paz e segurança. Assim como o texto em
Ezequiel, estaremos, em certo sentido, indefensáveis, já que não estaremos preocupados
com um ataque, e muito menos preparados para isso.
13
Texto original, em inglês: Which covers the earth with gloom; so will Gog invade with a vast army
which covers a wide battle-area.
14
Texto original, em inglês: In the condition of peace and feeling secure, Israel will have made no
preparations against attack by building walls around his cities. The defenceless state of the land will
be an incentive to Gog to make it the object of his campaign.
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 43

3.2.2.7 A destruição final

Ao se estudar as expressões “fogo” e “cosumir” de acordo com seus usos na LXX15 ,


conclue-se que a maioria esmagadora dos textos do AT que falam de um fogo consumidor
está em um contexto de juízo, na maioria das vezes contra os inimigos de Deus e do povo
de Deus, mas algumas vezes contra o próprio povo de Deus:

Eis que eu sou contra ti, ó orgulhosa, diz o Senhor, o Senhor dos
Exércitos; porque veio o teu dia, o tempo em que te hei de castigar.
Então, tropeçará o soberbo, e cairá, e ninguém haverá que o levante;
porei fogo às suas cidades, o qual consumirá todos os seus arredores
(Lm 2:3, grifos meus).

Um segundo contexto encontrado no AT com a mesma terminologia é o contexto de


holocaustos, onde o fogo consome o sacrifício: “E eis que, saindo fogo de diante do Senhor,
consumiu o holocausto e a gordura sobre o altar; o que vendo o povo, jubilou e prostrou-
se sobre o rosto” (Lv 9:24, grifo meu). Constantemente este tipo de texto apresenta uma
manifestação do Senhor em aceitação de um sacrifício seguido de um reconhecimento e/ou
adoração daqueles que ofereceram o sacrifício (cf. Jz 6:21–22; I Rs 18:38–39; 2 Cr 7:1–3)
Existem ainda alguns textos que combinam os dois contextos. Um dos notáveis e
conhecidos exemplos do AT é a história que se encontra em I Rs 18. Nesta história, Elias
batalha contra os sacerdotes de Baal. Elias ofereceria um holocausto a Yhwh, enquanto
os sacerdotes de Baal, ao seu deus. O sacrifício que fosse aceito decidiria quem era o
verdadeiro Deus. Após tentarem diversas vezes, os baalitas não conseguem que seu deus
se manifeste em aceitação a eles. Em seguida, os versos 37–39 descrevem o momento
decisivo:

No devido tempo, para se apresentar a oferta de manjares, aproximou-


se o profeta Elias e disse: Ó Senhor, Deus de Abraão, de Isaque e de
Israel, fique, hoje, sabido que tu és Deus em Israel, e que eu sou teu
servo e que, segundo a tua palavra, fiz todas estas coisas. Responde-me,
Senhor, responde-me, para que este povo saiba que tu, Senhor, és
Deus e que a ti fizeste retroceder o coração deles. Então, caiu fogo do
Senhor, e consumiu o holocausto, e a lenha, e as pedras, e a terra, e
ainda lambeu a água que estava no rego. O que vendo todo o povo, caiu
de rosto em terra e disse: O Senhor é Deus! O Senhor é Deus! (grifo
meu)

A expressão “fogo e enxofre”, apesar de aparecer poucas vezes, também aparece


em contexto de juízo. A primeira e mais destacada ocorrência desta expressão acontece
na destruição de Sodoma e Gomorra: “Então o Senhor, da sua parte, fez chover do céu
enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra” (Gn 19:24; cf. Sl 11:6, Is 30:33, grifo meu).
Ezequiel utiliza-se tanto da expressão “fogo” isoladamente como da composição
“fogo e enxofre”. “Mandarei fogo sobre Magogue e sobre aqueles que vivem em segurança
15
Foram pesquisados os textos em que se encontra o termo κατεσθίω (literalmente, “devorar”, e normal-
mente traduzido nestes contextos como “consumir”) acompanhado de πῦρ ( “fogo”).
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 44

nas regiões costeiras” (39:6) “desabarei torrentes de chuva, saraiva [πῦρ] e enxofre ardente”
(38:22). O profeta utiliza estas imagens tanto no sentido de juízo como de sacrifício. Apesar
de ele não indicar terminologicamente que Gog e Magog seriam consumidos pelo fogo, isto
está implícito no contexto. O contexto de juízo é claro e, assim como nos outros textos
relacionados com holocaustos que foram citados acima, após a destruição dos inimigos
de Deus, todas reconhecem e adoram a Ele: “Assim, eu me engrandecerei, vindicarei a
minha santidade e me darei a conhecer aos olhos de muitas nações; e saberão que eu sou
o Senhor” (cf. 39:6–7, 21–22, 28). Além disso, o próprio Senhor faz esta comparação:

Tu, pois, ó filho do homem, assim diz o Senhor Deus: Dize às aves
de toda espécie e a todos os animais do campo: Ajuntai-vos e vinde,
ajuntai-vos de toda parte para o meu sacrifício, que eu oferecerei por
vós, sacrifício grande nos montes de Israel; e comereis carne e bebereis
sangue. Comereis a carne dos poderosos e bebereis o sangue dos príncipes
da terra, dos carneiros, dos cordeiros, dos bodes e dos novilhos, todos
engordados em Basã. Do meu sacrifício, que oferecerei por vós, comereis
a gordura até vos fartardes e bebereis o sangue até vos embriagardes
(39:17-19, grifos meus).

O texto de Apocalipse claramente não traz o nível de detalhes que o cenário ima-
gético de Ezequiel descreve, mas as semelhanças são nítidas. Ambos trazem o fogo e o
enxofre no contexto do juízo destruindo as hordas comandadas por um líder que se levanta
contra Deus e o seu povo. Uma diferença, no entanto, que é interessante destacar se trata
da diferença entre a forma do fogo e enxofre de Apocalipse 20. Enquanto o AT, inclusive
o texto de Ezequiel, apresenta o fogo e o enxofre caindo do céu em forma de chuva, os
últimos capítulos de Apocalipse apresentam um lago de fogo e enxofre (19:20; 20:10; 21:8).
Estas são as únicas ocorrências em toda a Bíblia que apresentam esta estrutura.
É possível que esta diferença se dê por uma questão simples, que pode ser en-
tendida de forma clara através da realidade concreta. Um lago de fogo e enxofre é uma
imagem mais intensa do que uma chuva de fogo e enxofre, o que indica um aumento na
intensidade do castigo divino. Enquanto as profecias do AT apresentavam um juízo para
povos terrestres, nações inimigas contemporâneas a Israel, o Apocalipse apresenta o juízo
contra o maior inimigo de Deus, o próprio Satanás. Isto pode trazer a ideia de que para
um inimigo maior, exigi-se poder maior de destruição. Um lago de fogo e enxofre é algo
ainda mais terrível do que uma chuva, porque Satanás, a besta e o falso profeta não serão
apenas atingidos por estes elementos, mas estarão submersos neles! Além disso, podemos
entender que esta imagem enfatiza o fato de que o mal não se levantará novamente. Os
juízos contra os povos antigos resolviam um problema local e temporalmente condicionado
àquela época, mas, mais cedo ou mais tarde, o mal se levantaria novamente. Apocalipse 21
compara o lago de fogo e enxofre à “segunda morte” (v. 8), que no contexto escriturístico
é a morte eterna e definitiva (NICHOLS, ed., 2014, p. 980).
Capítulo 3. Análise do Texto Bíblico 45

3.2.3 A vindicação do caráter de Deus

Ao analisar o texto de Apocalipse sugeriu-se que é possível que Deus ressuscite a


todos os ímpios da Terra e permita que a guerra aconteça para que o seu caráter seja
vindicado diante de todos os seres do universo. Isto não está muito claro no contexto
imediato de Apocalipse, mas em Ezequiel temos algo parecido.
Enquanto o capítulo 38 ocupa-se quase que todo para descrever o ajuntamento
das nações contra o povo de Deus, o capítulo tema principal do capítulo 39 é o juízo
de Deus.16 No texto de Ezequiel, é repetido várias vezes o motivo pelo qual Deus incita
aquela guerra:

Contenderei com ele por meio da peste e do sangue; chuva inundante,


grandes pedras de saraiva, fogo e enxofre farei cair sobre ele, sobre as
suas tropas e sobre os muitos povos que estiverem com ele. Assim, eu me
engrandecerei, vindicarei a minha santidade e me darei a conhecer aos
olhos de muitas nações; e saberão que eu sou o Senhor (Ez 38:22–23,
cf. 39:7; 39:21–22; 39:27–29; grifos meus).

O motivo pelo qual Deus incita a guerra é para que todas as nações da Terra
reconheçam quem Ele é. “A demonstração da onipotência de Deus e Sua libertação do
povo de Israel suscitarão um reconhecimento universal de Sua soberania” (FISCH, 1978,
p. 258, tradução minha).17
Esta vindicação não está tão explícita no livro de Apocalipse. No entanto, é muito
provável que o leitor original do texto, conhecedor das Escrituras hebraicas, teria isso em
mente ao ler os versos 7 a 10 de Apocalipse 20. Como vimos acima, o texto de Ezequiel 38–
39 é carregado para dentro de Apocalipse 20, o que nos ajuda a entender os elementos que
ali estão presente. Não teríamos motivos válidos para descartar este tema tão importante
de Ezequiel ao aplicarmos o método intertextual.
No contexto escriturístico maior, o Grande Conflito, a guerra espiritual entre Deus
e Satanás, mostra a todo o cosmos quem Ele é de suprema importância. Vindicar Sua
santidade, o maior de seus atributos, é pôr perante a terra, definitivamente, todas as
consequências do grande problema que Satanás criou no céu: o problema do pecado. Fi-
nalmente todo o mal tem um fim. Finalmente os filhos de Deus estão absolutamente salvos
e restaurados. Finalmente o universo está purificado, e todos os salvos poderão habitar
na Nova Jerusalém, na cidade prometida; e deste momento em diante, o nome da cidade
será:

O Senhor está aqui.


(Ez 48:35b, NVI)

16
Nos versos 18–22 do capítulo 38 é descrito o juízo de Deus, de forma bem resumida. Talvez este
trecho deva ser entendido como uma espécie de prelúdio ou transição para o capítulo 39, onde o tema
principal é o juízo de Deus contra aqueles que se reuniram contra o povo dele.
17
Texto original, em inglês: The demonstration of God’s omnipotence and His deliverance of Israel will
bring about universal recognition of His Sovereignty.
46

4 CONCLUSÃO

Os versos 7–10 do capítulo 20 de Apocalipse descrevem uma guerra escatológica


entre Deus e Satanás. Este é relatado a seduzir e reunir Gog e Magog dos quatro cantos
da Terra, a fim de investirem contra a cidade amada de Deus, habitada pelos santos que
foram salvos por Jesus Cristo.
O objetivo deste trabalho foi estudar esta perícope a fim de entender a natureza
desta batalha em relação à identidade de Gog e Magog, já que o texto de Apocalipse é
muito sucinto em relação a isso, considerando a relação existente entre este texto e o texto
de Ezequiel 38 e 39.
Para atingir este objetivo, primeiramente foi feita uma breve revisão bibliográ-
fica que permitiu com que se obtivesse um panorama geral de como este texto tem sido
interpretado pelos estudiosos, e possibilitou que se observasse que apesar de todos eles
identificarem o paralelo entre Apocalipse e Ezequiel, a maioria deles limita a sua inter-
pretação mais ao contexto imediato e geral do livro, não explorando muito o contexto
canônico.
Por conta disso, em seguida, foi feita uma análise dos textos estudados através do
método intertextual, que propõe a identificação de alusões e a comparação de paralelos
verbais, temáticos e estruturais entre os textos, a fim de ampliar o entendimento do
significado do texto. Primeiramente foi feita uma investigação contextual e textual do
texto de Apocalipse e em seguida o mesmo tipo de estudo no texto de Ezequiel.
Os resultados nos evidencia que não existe apenas a identificação de um único
termo, “Gog e Magog”, entre os textos. Pelo contrário, o contexto imediato de Apocalipse
segue uma extrutura extremamente semelhante ao de Ezequiel, e o texto em si possui
diversas semelhanças, tanto a nível de vocabulário quanto a nível temático, o que indica
que de fato João tinha muito mais do que uma expressão de Ezequiel em mente quando
escreveu este capítulo de Apocalipse. Ele tinha todo um contexto imagético que fazia
parte do conhecimento judaico, e que seria evocado à mente ao utilizar a expressão.
Desta forma, visualizamos que ao carregar o contexto de Ezequiel para dentro do de
Apocalipse, podemos enriquecer muito o nosso entendimento sobre a natureza da batalha
de Gog e Magog. A identificação de Gog e Magog em Ezequiel nos ajuda a entender o
caráter daqueles que decidem guerrear contra Deus. As imagens fortes e vívidas ampliam
a nossa visão sobre a impetuosidade odiosa e violenta destes povos que querem destruir
um povo inocente. A soberania de Deus em todo o processo, conforme revelado por sua
agência, clarifica o fato de que esta guerra tem como objetivo vindicar o caráter de Deus
em todo o universo, a fim de que todos, até os ímpios reconheçam que ele é Santo.
47

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<http://centrowhite.org.br/files/ebooks/egw/O%20Grande%20Conflito.pdf>. Citado
na página 28.
Apêndices
51

APÊNDICE A – PARALELOS TEXTUAIS ENTRE APOCALIPSE 20:7–10 E


EZEQUIEL 38–39

Apocalipse 20:7–10 Ezequiel 38–39


“as nações que estão nos quatro cantos “A Pérsia, a Etiópia e a Líbia estarão
da terra” (20:8b) com eles” (38:5)

“muitas nações com você” (38:6)


“acompanhado de muitas nações”
(38:15)
“as muitas nações que estarão com ele”
(38:22)
“as nações que estiverem com você”
(39:4)

“a fim de reuní-las” (20:8c) “reunidas ao seu redor” (38:7)

“você reuniu” (38:13)


“seu exército: seus cavalos, seus cavalei-
ros totalmente armados e uma grande
“para batalha.” (20:8d) multidão com escudos grandes e peque-
nos, todos eles brandindo suas espadas.”
(38:4)
“as suas tropas” (38:6, 2x; 38:9; 38:22;
39:4)
“você será chamado às armas […] você
invadirá” (38:8)

“Invadirei […] atacarei” (38:11)


“Despojarei, saquearei e voltarei a mi-
nha mão contra” (38:12)
“para tomar despojos […] para saquear,
levar embora prata e ouro, tomar o
gado e os bens e apoderar-se de mutos
despojos” (38:13)
“todas elas montadas em cavalos […] um
exército” (38:15)
“Seu número é como a areia do mar.”
“você e todas as multidões” (38:7)
(20:8d)
APÊNDICE A. Paralelos textuais entre Apocalipse 20:7–10 e Ezequiel 38–39 52

Continuação
Apocalipse 20:7–10) Ezequiel 38–39

“esta multidão” (38:13)


“uma grande multidão […] numeroso”
(38:15)
“avançando como uma tempestade;
“As nações marcharam por toda a su-
você será como uma nuvem cobrindo a
perfície da terra” (20:9a)
terra.” (38:9)
“Você avançará […] como uma nuvem
que cobre a terra.” (38:16)
“uma terra que se recuperou da guerra,
cujo povo foi reunido dentre muitas na-
“acampamento dos santos, a cidade ções nos montes de Israel, os quais por
amada;” (20:9b) muito tempo estiveram arrasados. Tra-
zido das nações, agora vive em segu-
rança.” (38:8)
“uma terra de povoados; […] um povo
pacífico e que de nada suspeita, onde to-
dos moram em cidades sem muros, sem
portas e sem trancas.” (38:11)
“o povo reunido dentre as nações, rico
em gado e em bens, que vive na parte
central do território” (38:12)
“quando Israel, o meu povo, estiver vi-
vendo em segurança” (38:14)
“contra Israel, o meu povo […] contra a
minha terra” (38:16)
“mas um fogo desceu do céu e as devo- “desabarei torrentes de chuva, saraiva
rou.” (20:9c) [ou fogo] e enxofre ardente” (38:22)
“Mandarei fogo sobre Magogue e sobre
aqueles que vivem em segurança nas re-
giões costeiras” (39:6)

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