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Sumário
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( ) dilema de Hermes: o disfarce da subversão na
<I cM.. rição etnográfica........................................................... ·· ......................................... 91
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CATAL(XiAÇÀO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Vinrmt Crapanzano
Bruna Heller CRB I O'2348
I l;a porta de sua tenda: o etnógrafo e o inquisidor.. ........................................... 125
E74
A escrita da cultura : poética e política da etnografia I N.tn,t to Rosa/do
James Clifford, George E. Marcus (orgs.) ; [tradu-
ção] Maria Claudia Coelho. Rio de Janeiro: Ed. Sullll .1 .tlegoria etnográfica ...................................................................................... 151
UERJ; Papéis Selvagens Edições, 2016. Jm11r• Uif!ord
388 p. : 16x23 cm.
A (lno~r.tfta pós-moderna: do documento do oculto
Inclui bibliografia. H• .laH umcnto oculto ................................................................................................. 183
ISBN 978-85-7511-431-5
\trphm •1. !Jh
1. Etnografia. 2. Poéticas. 3. Política. 4. Cultura.
lll"'" t'IIO de tradução cultural na antropologia social britânica.................. 207
L Clifford, James. II. Marcus, George E.
CDU39 /,t/tt/11IIId

Imagem de capa gentilmente cedada pelos organazadores do lavro


O conceito de tradução cultural na
antropologia social britânica

TalalAsad

Introdução

Todos os antropólogos estão familiarizados com a famosa definição


de cultura de E. B. Tylor: "cultura ou civilização, em seu sentido etnográfico
amplo, é esse todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral,
lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo ho-
mem enquanto um membro da sociedade". Seria interessante rastrear como
e quando essa noção de cultura, com sua enumeração das "capacidades e há-
bitos" e sua ênfase naquilo que Linton chamou de hereditariedade social (focan-
do no processo de aprendizagem), foi transformada na noção de um texto-
isto é, em algo parecido com um discurso inscrito. Uma pista óbvia para essa
mudança pode ser encontrada na forma como uma noção de linguagem como
a precondição da continuidade histórica e da aprendizagem social ("cultivo'')
veio a dominar a perspectiva dos antropólogos sociais. É claro que, de ma-
neira geral, esse interesse pela linguagem é anterior a Tylor, mas, no século
XIX e no início do século XX, tendia a ser central em algumas correntes da
teoria literária nacionalista e da educação (cf. Eagleton, 1983, cap. 2), mais
do que em outras ciências humanas. Quando e de que forma esse interesse
se tornou crucial para a antropologia social britânica? Não pretendo tentar
traçar essa história aqui, mas apenas lembrar que a expressão "tradução de
culturas", que, cada vez mais, desde os anos 1950, tem se tornado uma des-
crição quase banal da tarefa específica da antropologia social, nem sempre
esteve táo em ev1dênc1a. Quero enfauzar que essa mudança aparente nao I~ interessante ver Edmund J..cach, yue nunca esteve associado a
coincide de forma plena com a velha periodização pré funcionalismo/fun ( )xford, empregar a mesma noção em sua conclusão de um retrato histórico
cionalismo. Não se trata, também, meramente de um problema de mteressc da antropologia soc1al escnto uma década mais tarde:
direto na linguagem e no s1gnificado que antes estaria ausente (Crick, 1976).
Bronislaw Malinowski, um dos fundadores da escola conhecida como fun- Deixem me recapitular. Começamos enfatizando quão diferentes são
cionaltsta, escreveu muito sobre a "linguagem primitiYa" e coletou enormes "os outros" - e os tornamos não apenas dtferentes, mas dtstantes e tn
quantidades de material linguístico (pro\·érbios, terminologia de parentesco, feriores. i\o plano sentimental, seguimos então o cammho oposto e ale-
feitiços etc.) para análise antropológtca. Mas ele nunca pensou em seu traba- gamos que todos os seres humanos são semelhantes; podemos entender
lho em termos de uma tradução de culturas. os trobnandeses ou os Barotse porque suas monvações são tdênticas
()trabalho de Godfrey Licnhardt, "Modes ofThought" (1954), é, pos- às nossas; mas tsso também não funciOnou, "os outros" continuaram
sivelmente, um dos primeiros - certamente um dos mais sutis exemplos sendo, obstinadamente, outros. Mas agora nos demos conta de que o
do uso dessa noção de tradução para descrever cxpltcttamente uma tarefa problema cssenctal é uma questào de tradução. Os lmguistas nos mostra-
central da antropologia soctal. ram que toda tradução é dtfíctl, c que a tradução perfeita cm geral é im
possível. Mas, mesmo assim, sabemos que, para objettvos práttcos, uma
O problema de descreYer para outros o modo como membros de uma tri- tradução aceltavclmente satisfatória é sempre possl\·d, mesmo quando o
bo dtsrante pensam começa entào a se parecer multo com um problema de "texto" ongtnal é extremamente obscuro. ,\s línguas são dtferentes, mas
tradução, de tornar a coerêneta que o pensamento pnmitivo tc:m na línt,>ua não tão dtferentes assim. Vrstos por esse ângulo, os antropólogos sociais
em que: realmente Yln~ rão clara quanto possh·d na nossa prúpria línt,>ua estão dedteados à criação de uma metodologia para a tradução da língua
(l..icnhardr, 1954, p. !)7). cu !rural (Leach, 197), p. 7 7 2).

Essa afirmativa é citada c criticada no artigo de I ~rnest Gellner que Até mesmo .l\Iax Gluckman (1973, p. 905), em resposta, logo depois, a
analiso na próxima seção, c voltarei a ela no contexto do argumento de Gell- Leach, aceita a centralidade da "tradução cultural", embora proponha uma
ner. Chamo, agui, a atenção rapidamente para o uso, por J jcnhardt, da pala- genealogia muito diferente para essa prática antropológica.
vra "tradução" para se referir não aos assuntos linguísticos per se, mas a "mo- Ainda assim, apesar da concordância geral com a gual essa noção foi
dos de pensamento" embutidos nesses assuntos. Talvez não seja irrelevante, aceita como parte da autodefiniçào da antropologia social britânica, ela foi
a propósito, que l.icnhardt tenha formação cm hteratura inglesa c tenha sido objeto de escasso exame sistemático no seio da profissão. Uma exceçào par-
aluno de F. R. I ,cavis, em Cambridge, antes de se tornar aluno e colaborador cial é 13elief, latlf!,IIOJ?,e, and e;,perience, de Rodney Needham (1972). Trata-se de
de E. L. Enns Pntchard, cm Oxford. uma obra complexa c erudita que merece uma análise atenta. Agui, contudo,
Oxford, evidentemente, é famosa como o centro antropológico da desejo me concentrar em um texto mais curto- "Concepts and Society", de
Grã-Bretanha mais autoconsciente quanto à sua preocupação com a "tradu- Ernest Gellner -, que parece ser amplamente usado em cursos de graduação
ção de culturas". O mais conhecido ltno didánco produzido naguele centro, nas universidades britânicas e ainda está disponível em algumas coletâneas
Other cu/fures, de John Beattie (1964), enfatizava a centralidade do "problema muito conhecidas. A próxima seçào é, assim, dedicada a um exame detalha-
da tradução" para a antropologia social e distinguia (mas não separava) a do desse ensaio, e, nas seções seguintes, abordo alguns pontos que emergem
"cultura" da "linguagem", de uma forma que começa,·a a se tornar familiar desse exame.
para os antropólogos - embora não necessariamente, por isso, totalmente
clara (ver pp. 89-90).
• •" "..,.-, '''·' 11.1 ' ' " ' " ' ': I "~IH ., cr JKIIttn• n:.. n•11~r~rr~

Um texto teórico son c as dificuldades típicas do antropólogo. Para os htstoriadores da eco-


nomia c os soctólogos envolvidos no debate webenano, os textos históricos
"Concepts and Soctety", de Gellner, é dedteado à análise do modo são um dado primário em relação ao qual os contextos sociais precisam ser
l'omo os antropólogos funcionalistas lidam com problemas de mterpretação reconstruídos. O antropólogo pesquisador de campo parte de uma situação
c tradução do dtscurso de soctedades estrangeiras. Seu argumento básico é social na qual algo é dito, c é o sigruficaJo cultural dessas enunciações que
lJUC (a) os antropólogos contemporâneos inststem em interpretar conceitos prectsa ser reconstruído. Isso não quer dtzcr, e"Videntemente, que o historia-
c crenças exóttcos em um contexto social, mas, (b) ao fazê-lo, garantem que dor possa abordar seu material de arquivo sem alguma concepção a respeito
afirmações aparentemente absurdas ou incoerentes recebam sempre um sen- de seu contexto histórico, ou que o pesquisador de campo possa definir a
tido aceitável, e que, (c) embora o método contextuai de interpretação seja situação social independentemente daquilo que foi dito nela. O contraste
dlido em princípio, a "indulgência excessiva" que costuma acompanhá-lo parece ser de orientação, que decorre do fato de que o historiador recebe um
não o é. O trabalho contém vários diagramas, cujo propósito é organizar e texto, ao passo que o etnógrafo precisa constmir um texto.
esclarecer, de forma visual, os processos culturais relevantes. Em vez de investigar esse contraste tão relevante, Gellner se apressa a
Gellner apresenta o problema da interpretação em referência ao Reli- definir c recomendar como método aquilo a que chama de "funcionalismo
gion and economic aclion (1961 ), de Kurt Samuelsson, um ataque empreendido moderado", o qual
por um historiador da economia à tese weberiana da ética protestante. Sa-
muelsson critica o fato de \X'eber e seus seguidores terem reinterpretado [... ]consiste em insistir no fato de que conceitos c crenças não eXJstem em es-
textos religiosos de uma forma que lhes permite extrair significados que con- tado de isolamento, em textos ou mentes indtviduais, mas na vida de homens
firmam a tese. Gellner apresenta este exemplo apenas para tornar mais nítida e sociedades. As atividades e instituições, no contexto das quais uma palavra,
a posição contrastante do antropólogo funcionalista: ou expressão, ou conJunto de exprcssôes, é usada, preci~am ser conhectdas
antes que essa palavra ou essas expressões possam ser compreendidas, an
"\ião estou preocupado, nem apto, a discutir se, nesse caso específico, é vá- tcs que possamos realmente falar de um conmlo ou de uma crença (Gcllner,
lido o emprego por Samuelsson de seu pnncípto tácito de que não se deve op. cJt., p. 22).
reinterpretar as afirmaçôes encontradas. () que mtcressa aqui é que, se esse
princípio for explicttado e generalizado, ele romana absurda a maior parte Ú uma boa formulação e, mesmo que já tenha sido enunciada antes,
dos estudos soctológicos sobre a relação entre crença c conduta. Encontra- vale a pena reafirmá-la. O leitor talvez espere, agora, uma discussão sobre as
remos antropólogo<; mclinados a utilizar o prmcípto cxatamentc opo<;to, a in- di"Versas formas como a linguagem é encontrada pelo etnógrafo no campo,
sistência, c não a recusa, na reinterpretação contextuai (Gcllncr, 1970, p. 20). sobre o modo como as elocuções são produzidas, os significados verbais
organizados, os efeitos retóricos obtidos e as reações culturalmente apro
~Ias
essa afirmação modesta de inaptidão deixa à denva um número pnadas suscttadas. Afinal, Wittgenstein já havia sensibilizado os ftlósofos bri-
excessivo de questões interessantes. Para começar, não é prec1so ter maiores tânicos para a complexidade da língua em uso, c J. L. Austin havia definido
competências para observar que Samuelsson não defende o princípio de que dtstJnçõcs entre os diferentes níveis de produção c recepção da fala de uma
não se deve nunca reinterpretar. Ele também não instste em que não há nunca maneira que antecipava aquilo que os antropólogos mais tarde chamariam
uma conexão significativa entre um texto religioso e seu contexto social; seu de etnografia da fala. Mas Gellner havia anteriormente rejeitado a sugestão
ponto é que a conclusão a que a tese de \X'eber pretende chegar não pode ser de que esse movimento ftlosófico tivesse qualquer coisa valiosa a ensinar
estabelecida. 0/er, por exemplo, Samuelsson, 1961, p. 69). Além disso, há (ver sua polêmica em Words and things, 1959) e, como outros críticos, sempre
um contraste real que Gcllner pode ter captado entre o exemplo de Samuels- insistiu que sua preocupação com a compreensão da linguagem cotidiana era
212 A ~' m~ da cuhur•: poé!ica e poUtica da etnografia O conceito de traduçáo cultural na antropologia social bmâni'a 213

apenas um disfarce para a defesa de formas de falar sobre o mundo já _e~t~be­ de que, a priori, uma denúncia possa não atender aos propósitos da expltcação
lccidas, para negar a possibilidade de que tais formas de falar fossem tlogtcas melhor do que uma difesa não parece estar à Yista cm "Concepts and Society".
ou absurdas. Gellner sempre esteve decidido a manter a distmção entre de- Em vez dtsso, o leitor é lembrado, por me10 de uma citação de Lienhardt,
ti.:nder e explicar "conceitos e crenças" e a preverur contra o tlpo de tradução que o antropólogo contemporâneo, em geral, "parece eleger como condição
Hntropológica que <..lescarta, a priori, a distância críttca necessária para explicar para uma boa tradução que ela expresse a coerência que ele assume poder ser
como os conceitos de fato funcionam, pois "entender o funcionamento dos encontrada no pensamento primitivo" (ibid., p. 26). Temos aqui, então, o que
conceitos de uma sociedade", escreve ele, "é entender suas instituições" (p. acredito ser um contraste enganoso - a tentativa de Durkheim de explicar
l H; ver também a nota 1, na mesma página). t'ersu.r a tentativa do antropólogo contemporâneo de defender. Voltarei a
É por isso que a breve afirmativa de Gellner sobre o funcionalismo esse ponto mais tarde, mas quero insistir que argumentar em favor de uma
moderado, citada acima, o conduz imediatamente a uma discussão de As forma de coerência que dá coesão a um discurso não é, ip.ro facto, justificar
fim11a.r elemen/(.lres da tida rel(f!,iosa, de Durkheim, o qual, além de ser "uma das ou defender esse discurso; é apenas dar um passo essencial no problema
fontes originais do funcionalismo em geral" (p. 22), está preocupado em de explicar sua capacidade coercitit'(.l. Qualquer pessoa que esteja familiarizada
explicar, mais <.lo que em defender conceitos- explicar, mais exatamente, "a com a psicanálise entenderá esse ponto, com facilidade. Podemos colocá-lo
natureza coercitiva <.los nossos conceitos e categorias" (p. 22) em termos de de outra maneira: o critério da "coerência" abstrata ou da "lógica" (Gellner
determinados processos coletivos. Assim: tende a usar esses e outros termos de forma Intercambiável) não é sempre,
c cm qualquer caso, decisivo para a aceitação ou a rejeição do discurso. Isso
'-.;ossas invocaçôes contemporâneas da abordagem tunc1onal, voltada para o se da porque, conforme o próprio Gellner observa, "a linguagem funciona
contexto soc1al, do estudo e da interpretação de conceitos é, sob vá nos aspec- de Jiycrsas maneiras além de 'referir-se a objetos"' (ibid., p. 25). Nem toda
tos, muito diferente daquela de Durkhc1m. Durkhc1m não estava tão preocu- elocução é uma qfirmarão. Há muitas coisas que a língua em uso faz, epretende
pado cm defender os conceiws das sooedadcs primitivas: cm seu ambiente, fazer, que explica por que poJemos reagir positivamente a um discurso que
eles não precisavam de defesa, e, no amb1cnte das socü:dadcs modernas e parece inadequado de um ponto de vista "lógico" estrito. As funções de uma
cm mudança, ele não tinha maiores anseios cm defender o que era arcaico, língua particular, as intenções de um discurso particular, são, evidentemente,
nem relutava cm sugerir que determinada bagagem mtelcctual poderia muito parte daquilo que todo etnógrafo competente tenta apreender antes de poder
bem ser arcaica. Ele estava realmente preocupado cm explicar a capacidade tentar uma tradução adequada para sua própria língua.
coercitiva daquilo que, na prática, não pareoa precisar de qualquer defesa (e, Gellner parece de fato ter alguma consciência desse ponto, mas ra-
ao fazê-lo, ele alegava que estava resolvendo o problema do conheCimento pidamente o deL'<a de lado, em sua ansiedade de mostrar aos antropólogos
cuja solução tinha, do seu ponto de vista, escapado a Kant c a outros, e que funcionalistas sua "indulgência excessiva" na tradução cultural.
0 esta\·a resoh·endo sem recair no empincismo ou no apnorismo). Não é
minha intenção discutir se ele foi bem-suced1do ou não: por d1versas razões, :\ Situação diante de um antropólogo social <.JUe quer Interpretar um concei-
me parece que não foi (Gellner, op. cit., p. 23). to, afirmativa ou doutrina cm uma cultura estrangeira é basicamente muito
simples. Ele está, digamos, diante de uma afirmativa S na língua local. Tem
{~ claro que Gellner compreendeu o projeto fundamental das FomJas à sua disposição o conjunto grande, ou infinito, de frases possíveis em sua
rft'IIJI'IlftJres a saber, sua tentativa de explicar a natureza coercitiva de própria língua. [...]
conceitos socialmente definidos-, mas ele passa, de maneira excessivamente I;.le talvez não esteja inteiramente feliz com essa situação, mas não pode evi
apressada, dl' uma apn:ctaçào daquilo que está cm questão nesse problema tá· LI. Noio há uma terceira lin~-,rua tjue possa fazer a med1ação entre a língua
p:na uma dispensa da tl·nutiva de expltcaçáo de Durkhum. A possthtltdadc n:111v;t t· .1 SILt propna, na tJILtl st· po<knam nHontr.lr t"tJtllvaiC:'nn.ls, <· tlllt·
evitaria as armadilhas provcruentcs do fato Jc que sua própna lín!-,>ua lt'lll ou mesmo unidades de discurso mais amplas. Para dctxar nwu pu11111 111!11'1
seu próprio modo de lidar com o mundo, o qual pode não ser o mesmo da claro: a adequação da unidade empregada dependerá, ela mnrn,•, do ptlll• 1
língua nativa estudada, e que, consequentemente, pode distorcer o que esr:. pio da coerência.
sendo traduzido. Mas a parábola de Gellner do antropólogo-tradutor t~xigc •1 pH 11 u
Ingenuamente, as pessoas às vezes pensam que a própria realidade poderia ser posto de que são frases que ele emparelha, porque isso torna 111,11'1 fil•tllllllli
esse tipo de mediador e de "terceira língua". [...] Por diversas razões podero trar como o pecado da indulgência excessiva se dá. Tendo csrahtlct r.lo 1111u
sas, obviamente isso não serve (Gellner, op. cit., pp. 24-25). equivalência inicial entre uma frase na língua local e uma frase 11.1 1111 prup111
língua, o antropólogo percebe que a frase em inglês contém 1111111 1111prr 11.l• 1
Mais uma vez, essa afirmativa razoável pode parecer, a alguns leitores, "Ruim". Isso preocupa o antropólogo porque- e assim prosst·guc• 11 pilr~h· 1l1
apoiar a demanda de que o etnógrafo precisa tentar reconstruir as várias for- de Gellner- um relato etnográfico que dê essa impressão podl' ser l ul\litdt
mas pelas quais a "língua nativa" lida com o mundo, expressa informações rado como depreciativo dos nativos estudados, e depreciar outms t ultutl41i c
e constitui a experiência, antes de traduzir um discurso estrangeiro na língua um sinal de etnocentrismo, e o etnocentrismo, por sua vez, é um srntlill\14 de
do seu texto etnográfico. Mas o relato de Gellner prossegue em uma direção má antropologia, de acordo com os dogmas da antropologia funuc ltHthllllt ( I
diferente e bastante dúbia. método funcionalista exige que as frases sejam sempre avaliadas l'lll te 111111
Após localizar uma frase equivalente em inglês, continua ele, o antro- de seu próprio contexto social. Assim, o antropólogo preocupado rrullrr
pólogo percebe que ela inevitavelmente contém uma conotação valorativa preta a frase original, com um uso mais flexível e cuidadoso do mftocln
- que é, em outras palavras, Boa ou Ruim. contextua!, de forma a produzir uma "Boa" tradução.
O pecado da indulgência excessiva, e o próprio método cont,·xtu:.l, c !I
Não digo 'verdadeira' ou 'falsa', pois isso só é uma questão em relação a tão ligados, de acordo com Gellner, à visão relativista-funcionalista do pt'n
alguns tipos Je afirmativas. Em relação aos outros, outras dicotomias, tais sarnento, que tem início no iluminismo:
como "dotaua Je sentido" ou "absurda", ou "sensata" ou "boba", podem
ser mais adequadas. Uso, intencionalmente, "Boa" e "Ruim" para cobrir to- O dilema (não resolvido), enfrentado pelo pensamento do iluminism.., l"líl

das essas polarizações possíveis, qualquer que seja a que melhor se aplica ao entre uma visão relativista-funcionalista do pensamento, e as reivindicaçtKii
equivalente de S (Gellner, op. cit., p. 27). absolutistas da Razão iluminada. Encarando o homem como parte d;~ n111u
reza, como exige a Razão iluminada, o iluminismo desejava encarar su;~~ Ali
Não estamos, aqui, diante de alguns pressupostos muito curiosos, que vidades cognitivas e avaliativas também como partes da Natureza e, port;~nrc '•
nenhum tradutor experiente adotaria? O primeiro é que a discriminação ava- como legitimamente variáveis de organismo para organismo e de contcxro
liativa é sempre uma questão de escolher entre alternativas polarizadas, e para contexto. (Esta é a visão funcionalista-relativista.) Mas, aconselhando
o segundo, que distinções avaliativas são reduúveis, em última instância, a ao mesmo tempo uma vida de acordo com a Razão e a Natureza, deseja\'a,
"Boa" e "Ruim". Evidentemente, nenhum desses pressupostos é aceitável, no mínimo, libertar essa mesma visão (e, na prática, algumas outras) desse
se postulado como uma regra geral. E há também a sugestão de que a tarefa relativismo (Gellner, op. cit., p. 31).
do tradutor inclui, necessariamente, emparelhar frase com frase . .Mas, se o
tradutor experiente procura, primeiro, algum princípio de coerência no dis- A formulação filosófica de Gellner costuma apresentar esse "dilema
curso a ser traduzido e, em seguida, tenta reproduzir essa coerência da ma- não resolvido" como uma oposição abstrata entre dois conceitos - "uma
neira mais próxima possível em sua própria língua, não pode haver qualquer visão relativista-funcionalista do pensamento" e "as reivindicações absolu
regra geral relativa a quais unidades o tradutor empregará- frases, parágrafos tistas da Razão iluminada". Mas como esses dois "conceitos" funcionam
21 h A t\trit.l d.1 cultura: poética e política da etnografia O conce1to de tradução cultural na antropologia social britânica 217

como ''correlatas das [...] instituições da sociedade ocidental"? (cf. Gellner, contexto é relevante para uma dada elocução, ou de que forma o contexto
p. 18). Não seria difícil argumentar que as reivindicações da "Razão ilumi- deve ser descrito" (ibid., p. 33).
nada" são materialmente mais bem suce<.lidas nos países do Terceiro Mundo Mas essa última observação pode ser levada a sério? Nada?! Como,
do que muitas visões relativistas, que exerceram uma autoridade maior do que então, seria possível até mesmo a comunicação entre indivíduos em uma
as últimas no desenvolvimento de economias industriais e na formação de mesma sociedade? Por que diríamos a estrangeiros que entenderam mal a]
Estados-nações. Teremos oportunidade de discutir isso mais a fundo quan- guma coisa que escutaram ou viram? Será que a aprendizagem social não
do examinarmos a tradução como um processo de poder. O ponto é que produz nenhuma habilidade de discriminar os contextos relevantes? As res
"as reivindicações absolutistas da Razão iluminada" são, de fato, uma força postas a essas perguntas deveriam ser óbvias, e estão ligadas ao fato de que a
institucionalizada, e, como tal, uma força comprometida, por definição, com tradução do antropólogo não é apenas uma questão de emparelhar frases em
avançar sobre e se apropriar de territórios alheios, e que seus oponentes (se- abstrato, mas de aprender a viver uma outra forma de vida e a falar um outro tipo
jam ou não explicitamente relativistas) são, também por definição, difensivos. de língua. Quais contextos são relevantes em eventos discursivas específicos
Assim, quando Gellner continua, logo em seguida, a caracterizar esse dile- é algo que se aprende vivendo, e muito embora seja, com frequência, muito
ma abstrato nas atitudes dos antropólogos, não leva em conta aquilo que a difícil verbalizar esse conhecimento, ainda assim trata-se de conhecimento
"tradução cultural" pode envolver quando é considerada como uma prática sobre algo "da natureza da sociedade", sobre algum aspecto da vida, que
institucionalizada, dada a relação mais ampla entre sociedades desiguais. Pois indica (embora não "determine") o quanto de contexto é relevante para uma
não é a lógica abstrata do que antropólogos ocidentais individuais dizem em dada elocução. O ponto, é claro, não é que o etnógrafo não possa saber qual
suas etnografias, mas a lógica concreta daquilo que seus países (e talvez eles contexto é adequado para dar sentido a afirmativas comuns, ou que ele seja
mesmos) fazem em suas relações com o Terceiro Mundo que deveria definir induzido a ser mais indulgente do que deveria ao traduzi-las, mas que suas
o ponto de partida para essa discussão específica. Os dilemas do "relativis- tentativas de tradução podem se deparar com problemas encravados nos
mo" têm uma aparência distinta, dependendo de se pensamos em uma com- materiais linguísticos com os quais ele trabalha e com as condições sociais
preensão abstrata ou em práticas historicamente situadas. em que trabalha - tanto no campo quanto em sua própria sociedade. Volta
Entretanto, Gellner diz que, em princípio, não é contra o relativismo remos a isso mais adiante.
antropológico. "Meu ponto principal referente à interpretação contextuai A última parte do ensaio de Gellner é dedicada a exemplos retirados de
capaz de induzir à tolerância", diz ele, "é que é preciso cautela" (ibid., p. estudos etnográficos para mostrar, em primeiro lugar, indulgência excessiva
32). Mas ele não explica por que essa cautela é reservada para as interpre- na tradução e, em seguida, as vantagens explicativas de se adotar um olhar
tações contextuais que "induzem à tolerância", em vez daquelas que indu- critico em relação à lógica do discurso religioso alheio.
zem à intolerância. Afinal, Gellner enfatizara, anteriormente, que todas as O primeiro conjunto de exemplos é retirado de Nuer religion, de Evans
frases traduzidas estavam destinadas a serem recebidas ou como "Boas" ou -Pritchard (1956), em que traduções iniciais estranhas do discurso religioso
como "Ruins". Por que deveríamos suspeitar apenas daquelas que parecem Nuer, tal como a afirmativa notória de que "um gêmeo é um pássaro", são
"Boas"? Se "é a determinação prévia de que S, a afirmação nativa, seja inter- reinterpretadas. "Esse tipo de afirmativa", observa Gellner, "parece entrar
pretada favoravelmente, o que determina quanto do contexto será levado em conflito com o princípio da identidade ou da não contradição, ou com 0
em conta" (ibid., p. 33), não seria talvez possível escapar desse círculo vi- senso comum, ou com fatos óbvios observáveis: gêmeos humanos não sao
cioso por meio da adoção de uma atitude não empática? Gellner não aborda pássaros, e vice-versa" (Gellner, op. cit., p. 34). De acordo com Gellner, a
diretamente essa possibilidade aqui, mas é preciso assumir que ela não pode reinterpretação de Evans-Pritchard absolve o pensamento Nuer da acus;1
ser uma solução, em particular à luz da alegação de que "não há nada [sic] na çao de "mentalidade pré-lógica" por meio de um uso arbitrário do método
natureza das coisas ou das sociedades que prescreva claramente o quanto do contextuai () absurdo aparente é reinterpretado para negar <JU<.' as crença~
218 A escrita da cultura: poética e polluca da etnografia O conceito de tradução cultural na antropologia social britânica 219

Nuer estejam em conflito com fatos manifestos, o que é feito relacionando- Agora, se Evans-Pritchard consegue ou não explicar a coerência básica
-se o sentido da afirmativa "absurda" ao comportamento "lógico". Gellner do discurso religioso Nuer é, evidentemente, outro problema. Alguns antro-
mostra de que maneira isso é feito, citando Evans-Pritchard (omitindo, deli- pólogos britânicos- por exemplo, Raymond Firth (1966)- (embora não, até
beradamente, uma frase importante): onde sei, qualquer Nuer) questionaram alguns aspectos da interpretação de
Evans-Pritchard. Mas essas divergências, ainda assim, dizem respeito a for-
[...] não há qualquer contradição envolvida na frase, a qual, pelo contrário, pare- mas diferentes de atribuir sentido ao discurso religioso Nuer, e não ao exces-
ce muito sensível, e até mesmo verdadeira, para alguém que apresente a ideia a so ou à carência de "indulgência" na tradução. Na verdade, contrariamente
si mesmo na língua Nuer e dentro do seu sistema de pensamento religioso. (Ele, às alegações de Gellner, a exegese de Evans-Pritchard toma muito explícitas
assim, não toma suas afirmativas sobre gêmeos de forma mais literal do que as "contradições" aparentes, ou ao menos ambiguidades, nos conceitos Nuer
faz e compreende.) bles não estão diifndo que um gêmeo tem um bico, penas etc. Os Nuer - por exemplo, entre a noção de "um ser supremo e onipresente" e a noção
também nãofalam dos gêmeos, em suas relações cotidianas com eles, como sefossem pássaros, ou de "espíritos inferiores", ambos categorizados como kwoth. E é exatamente
agem em relapão a eles como se ofossem (Gellner, op. cit., p. 35). [A frase entre parênte- porque Evans-Pritchard insiste em manter os dois sentidos de ktvoth juntos,
ses foi omitida por Gellner; o grifo foi acrescentado por Gellner.] como partes de "um conceito", e não os trata como homônimos (como 1fa-
linowski talvez tivesse feito, relacionando a palavra a contextos diferentes de
Nesse ponto, Gellner interrompe a citação e observa, com um deses- uso), que o conceito Nuer de espírito pode ser considerado "contraditório".
pero zombeteiro: "Mas então o que seria um pensamento pré-lógico? Presu- Mas dizer que a identificação de ambiguidades e "contradições" no reper-
mivelmente, apenas o comportamento de alguém inteiramente demente, que tório conceituai básico de uma língua constitui evidência de "pensamento
sofresse de alucinações permanentes, que tratan·a algo que fosse perceptivel- pré-lógico" é, obviamente, uma coisa inteiramente diferente - eu sugeriria
mente um ser humano como se tivesse todos os atributos de um pássaro" que somente alguém com uma compreensão muito ingênua daquilo que está
(ibid., p. 35). Gellner está tão ansioso por identificar elocuções que devem envolvido em uma tradução poderia acreditar nisso.
ser consideradas como expressões de "pensamento pré-lógico" (por que ele Ainda assim, o discurso de Gellner evita os temas que parece levantar,
está tão ansioso?) que não se detém para examinar cuidadosamente o que em um estilo que busca fazer o leitor percorrer, apressadamente, uma série
Evans-Pritchard está tentando fazer. Na verdade, Evans-Pritchard dedica de negativas engenhosamente formuladas:
várias páginas à explicação dessa frase estranha. É evidente que ele está pre-
ocupado em explicar (nos termos da vida social Nuer) e não em justificar (nos Não quero que me entendam mal: não estou argumentando que o relato dos
termos do senso comum ocidental, ou dos valores ocidentais). O objetivo conceitos Nuer feito por Evans-Pritchard seja ruim. (Nem estou ansioso para
desse tipo de exegese não é, certamente, convencer os leitores ocidentais a ressuscitar uma doutrina da mentalidade pré-lógica a la Lévy-Bruhl.) Ao con-
adotar as práticas religiosas dos Nuer. Também não exclui a possibilidade trário, tenho enorme admiração por esse relato. O que estou argumentando
de que falantes individuais cometam erros ou digam absurdos em seus dis- é que a interpretação contextuai, que oferece um relato do que as afirmativas
cursos religiosos ao empregar suas formas tradicionais de pensar. Não fica "realmente significam", em oposição àquilo que parecem significar isolada-
claro, assim, por que Gellner usa esse exemplo retirado de Nuer religion para mente, não encerra o assunto por si só (Gellner, op. cit., p. 38) .
sustentar sua acusação de indulgência excessiva da parte dos antropólogos
funcionalistas. Evans-Pritchard está tentando explicar a coerência que dá ao Mas quem teria alegado que sim? Certamente não Evans-Pritchard.
discurso religioso Nuer seu sentido, e não defendendo esse sentido como De toda forma, a oposição entre uma "interpretação contextuai" e uma in-
tendo status universal- afinal, o própno Evans-Pritchard era católico, antes terpretação que não é contextuai é inteiramente espúria. Nada tem sentido
e depois de escrever sua monografia sobre a rehgião Nuer "isoladamente". O problema, sempre, é: que tipo de contexto?
~211 A c~uita da cultura: poética e política da etnografia O conceito de tradução cultural na antropologia social britânica 221

:.\1as isso é algo que Gellner nunca discute, a não ser quando sugere careciam" (Gellner, op. cit., p. 41). Gellner prossegue insistindo que não
lluc a resposta deve envolver um círculo vicioso - ou quando faz alertas está preocupado em contestar as interpretações de Leach, mas apenas em
repetidos contra a indulgência "excessiva" (e em que situações a indulgência "mostrar como o alcance do contexto, e a maneira pela qual o contexto é
não seria "excessiva"?). Ele parece não ter consciência de que, para o tradu- visto, afetam necessariamente a interpretação" (ibid., p. 41 ). Essa observação
tor, o problema de determinar o tipo relevante de contexto em cada caso é é importante, porque não é decerto o reducionismo de Leach que Gellner
resolvido pela habilidade no uso das línguas envolvidas, e não por uma "ati- critica (mais adiante, ele insiste nisso em relação com a ideologia religiosa
tude" apriorística de intolerância ou tolerância. E habilidade é uma coisa que dos berberes), mas o fato de que esse exemplo de reducionismo- ao qual
se aprende- isto é, alguma coisa necessariamente circular, mas não viciosa. Gellner erroneamente se refere como "contextualismo" - parece defender,
Não estamos lidando com um emparelhamento abstrato entre dois conjun- mais do que atacar, o discurso cultural em questão.
tos de frases, mas com uma prática social enraizada em modos de vida. Um A demonstração de Gellner de como "o não indulgente pode ser 'contex-
tradutor pode cometer erros, ou pode, conscientemente, representar algo de tualista' no segundo sentido, melhor e mais profundo" (ibid., p. 42) começa
forma equivocada - do mesmo modo como as pessoas cometem erros ou pela apresentação de uma palavra fictícia em uma sociedade fictícia- a pala-
mentem, na vida cotidiana. Mas não podemos produzir um princípio geral vra "bobre", usada de maneira notavelmente parecida com a palavra inglesa
para identificar essas coisas, e, em particular, não por meio de alertas para "nobre". Somos assim informados de que a palavra pode ser usada para se
que tomemos cuidado com "o método contextuai de interpretação". referir a pessoas que exibem certas formas habituais de conduta, bem como
Vejamos outra das encantadoras negativas de Gellner: a pessoas que têm um status social particular, independentemente do seu
comportamento. "Mas o ponto é que a sociedade em questão não distingue
Dizer tudo isso não é argumentar cm favor de um ccticismo ou agnosticismo entre dois conceitos, bobre (a) e bobre (b). As pessoas apenas utilizam a palavra
relativos àquilo que os membros de outras culturas querem dizer, e menos bobre tottt court" (ibid., p. 42). A lógica da bobreza é então analisada de forma
ainda argumentar em favor de que nos abstenhamos do método contextuai de mais detalhada, para mostrar como
interpretação. (Pelo contrário, argumentarei a seguir em favor de um uso mais
Integral desse método, no sentido de admitir a possibilidade de que aquilo que [...1a bobreza é um instrumento conceitual por meio do qual uma classe pri-
as pessoas querem dizer é, às vezes, absurdo.) (Gellner, op. cit., p. 39). vilegiada da sociedade em questão adquire parte do prestígio de determina-
das virtudes respeitadas naquela sociedade, sem a inconveniência de precisar
O encanto dessa afirmação consiste na apropriação descarada de Gellner colocá-las em prática, graças ao fato de que a mesma palavra se aplica tanto
do método de seu oponente para fortalecer sua própria posição. aos praticantes dessas virtudes quanto aos ocupantes de certas posições de
Mas, antes de fazer isso, ele nos dá outros exemplos da produção privilégio. É, ao mesmo tempo, uma maneira de reforçar a sedução dessas
de tolerância via método contextuai em funcionamento no livro de Leach, virtudes por meio de sua associação, através do uso do mesmo apelo, ao
Politica/ !Ystems rfHigh/and Burma. Assim, de acordo com Leach, as afirmações prestígio e ao poder. Mas tudo isso precisa ser dito, c dizê-lo é revelar a
Kachin sobre o mundo sobrenatural são, "em última análise, nada mais do incoerência lógica interna ao conceito - uma irlcoerência que, na verdade, é
que maneiras de descrever as relações formais que existem entre pessoas reais socialmente funcional (Gellner, op. cit., p. 42).
e grupos reais na sociedade Kachin comum" (citado na p. 40). Nesse ponto,
Gellner intervém: "É possível perceber o que aconteceu. Os procedimentos De fato, o conceito de "bobreza" não é acusado de incoerência- ainda
exegéticos de Leach também pouparam os Kachin de receber o crédito que se aceite que a ambiguidade da palavra permite que seja usada no discurso
por aquilo que parecem estar dizendo" e, assim, tornaram possível "atribuir político para consolidar a legitimidade de uma classe dominante (e portanto,
sentido a afirmações as quais se poderia, de outra forma, supor que dele em princípio, também para minar essa legitimidade). A conclusão satisfeita
A IIIJ ,!J uoltur.l: poética c poli toca da ecnografia O conceito de traduç.\o cultural na antropologoa socoal bntânoca 223

llu r do seu exemplo ficcional é, com certeza, bastante apressada: "() por me1os sobrenaturais. L' m a,gum1111 é alguém l)UC tem baraka Gcllner, op.
.. n demonstra, contudo, é que o intérprete exccssÍ\·amcnte indulgente, cit., p. 43).
um.rdo a defender os concertos qut: estuda da acusação de incoerência
1 t .ht fadado a fazer uma má descrição da situação socral. Compreender traduzido como "santos" nos trabalhos posteriores de
Ú!.,107(J!Jiffl -

•e..l•wlrJ t nrio compreender a sociedade" (ibid., p. 42, grifo meu). f~ cvrdente que Gellner (t:.g., 1969)- são uma rninona pmilegtada c de grande influência na
~--1111\'t l "hobreza" faz sentido para quem a uttliza em atirmações especí- soctedadt: tribal dos berberes do ~1arrocos central, que agem como focos ir-
(1111 niio seria utilizada), e faz sentido também, embora não da mesma radtadorcs de valores religiosos e também como medtadores e árbitros entre
••lfll'll, IMra Gellncr, que afirma que, ao enganar quem a utiliza, a palavra a população tribal com a qual vivem. "t\ crença local é de que eles são esco-
tJMurn.t forma preserva uma estrutura social. Fazer ou não sentido, assim lhidos por Deus. Além disso, Deus explicita sua escolha dotando os escolhi-
t \ ndadc ou mentira, é algo que se aplica a ajirtlla(Õe.r c não a conceitos dos de certas gualidades, incluindo poderes mágicos c grande generosidade,
'·-·-••" '\Jào parece haver aqui, para mim, qualquer evrdência de um con- prosperidade, uma atitude 'olhar os lírios', pacifismo etc." (ibid., p. 43).
' "11un sentido", porque não há qualquer análise de atirmaçôcs social- Essa é a "tradução" de Gellner. !\.Ias seu uso excessivamente fluente de
Ir lliruadas. um 'ocabuláno religioso com tonalidades crrstãs fortes c, ta!Yez, irrelevantes,
t-.l.ts há outra falha mais importante evidente nesse exemplo: a falta de\'e suscttar dúvidas e questões, nt:stc momento. Quais são, exatamente, os
'f"·'klucr tentativa de explorar sua roere"ncia aqurlo que faz com que seu comport;tmentos e discursos traduzrdos aqur como "atttude 'olhai os lírios'",
ltu social seja uma posstbilidade tão poderosa. lwrdentcmcnte, o discurso "cxplictta sua escolha" e "dotando", por exemplo? Os berberes acreditam
pu&llttll utiliza mcnttras, meias verdades, engodos l<'>gicos etc. Entretanto, guc DLus dota seus "santos" Je caraLLt:rí~tH.;as dt: disposição tais como "!-,>Tan-
nln c tsso que o dota de seu caráter cocrcittvo, não mats do que o uso de dc generosidade e pacifismo" ou, ao contrário, eles consideram que essas ca-
llltm.r~t,es falsas ou claras, e é precisamente a capacrdadc coercitiva o que racterísticas são condições de santidade, da proximidade dos {P,IIrTamen de Deus?
1 1 un questão no exemplo de Gellner. "\Ião é o .r/a/u.r l<'>gico abstrato de Será que os berberes realmente se comportam como se l'irtudes religiosas e
tnllt•'tlos que é relevante aqui, mas o modo pelo llual discursos políticos morais fossem "manifestaçôes" da escolha divina? O que dizem e como se
tllpccificos parecem mobilinr ou orientar o comportamento de pessoas comportam quando as pessoas não demonstram as virtudes que ten1 que ter?
1111 dcrerminadas situaçôcs culturais. t\ capacidade coercitiva da "bobrcza" Quem é que conceitua o comportamento de um tJ..P,IIrTam como uma atitude
1 nmo concerto político é um traço não de mentes crédulas, mas de discursos 'olhar os lírios', considerando-se que ele tem família e propriedade, e que
( pr.íricas políticas coerentes. É por isso que é essencial para um tradutor de esse fato é entendido pelos berberes como perfeitamente condizente com o
tdcolo!-,rias políticas poderosas tentar transmitir algo dessa coerência. 1\tribuir esperado? Gellner não dá ao leitor dados para responder a essas importantes
, .. ll.t falta de sentido ao concetto é não compreender a sociedade. pt:rguntas, cu1a relevância para sua tradução ficará já e\~rdente.
() exemplo final de Gellner vem do seu próprio trabalho de campo en-
lll' <,s berberes do \larrocos central e tenta defender o art,rumento de que um 1\ realidade da Situação é, contudo, l)UC os ~~urramm são, na verdade, selccio-
contextualista não indulgente compreende melhor a sociedade que descreve nados pelos membros comuns da tribo guc usam seus servtços, ao serem
ao cnfati7.ar a incoerência de seus concertos. Escreve ele: chamados para executar esses scn1ços c ao serem prcfendos em detrimento
dos candldatos rivais de\·tdo a sua pcrformance. O que parece ser t'O.'\' Det é,
I lá dois conceitos relevantes, baraka e agurram (plural igurramen). Baraka é uma na realidade, t•ox populi. Além disso, o problema das características abençoa-
palavra gue pode significar simplesmente 'suficiente', mas também significa das, os slz._~mata [sic] da condtçao de a,~utram, é mrus complicado. Ú essencial
pk·nitudc, t', anma de tudo, ser abençoado, particularmente, entre outras coi- lJUC aos candidatos bem succdtdos ao statu.r de l{f!,llrram sejam atribuídas essas
s:rs, com a prospcnd.tdt: c c.om o poder d<.. ~_om:cder :l pro~pcridadt: a outros l':lr:trlerisncas, m:~s é lt,rtulml"ntt.: cs ~ t.· nnal , :10 mt.•tws cm rc:laçiio :1 .1lgun s
224 A e~crita da cultura. poética e política da etnografia O conceito de: tradução cultural na antropologia social britânica 225

deles, que na \·crdade não as possuam. Por exemplo, um al,11rram que foi ex- caso em particular, a resposta depende de o texto conter, ao mesmo tempo, o
tremamente generoso cm um espírito "olhal os línos" logo cm sq,>uida estava significado "real", inconsciente, e sua tradução apropriada. Essa fusão de sig-
arrumado, fracassando, por Isso, cm outro teste cru<.:wl - a prospcru..lade. mficante e significado é particularmente C\ tdentc na forma como o conceito
Há aqui uma di\·crgência crucia..l entre conceito c realidade, uma dJYergência tslâmtco de baraka é exposto de modo que o faz soar espantosamente parecido
que, além do mais, é essencial para o funcionamento do sistema soc1al (GcU- com o conceito cristão de graça, tal como retratado por um cético do século
ncr, op. cit., pp. 4 144). XVIII, de tal maneira que as condições que definem o baraka do agurram são
descritas, com um sorriso gibboniano condescendente, como "stigmata" e,
Nesse relato de Gellner, não fica claro, de forma alguma, o que quer dizer por meio desse signo esperto, uma parte do texto cultural berbere é ao mesmo
a afirmaçao "1\ crença local é de que eles são escolhidos por Deus"- "escolhi- tempo construído (inventado) e designado (exibido) dentro do texto de Gel!
dos" exatamente para o quê? Para serem árbitros? Mas a arbitragem precisa ser ner, uma união entre palavra e coisa tão requintada quanto tantas outras que
iniciada por algum membro da sociedade tribal, e é 1mpossívd que os membros podemos encontrar em todos os seus escritos.
da tribo não saibam d1sso. Para serem pacíficos? l\fas o pacifismo é uma virtude No entanto, a sociedade não é um texto que se comunica por conta
e não uma recompensa. Para o sucesso mundano e a prosperidade? ~tas isso não própna ao leitor habilidoso. São pessoas que falam. E o sentido final do que
pode ser uma dtjiniçâo local de santidade, ou os governadores colomats franceses d1zcm não está na sociedade - a sociedade é a condição cultural na qual os
teriam sido vistos como mais santificados do qut; qualquer ~~e..umJ!IJ. falantes agem e que age sobre eles. A pos1ção pnvilegiada que Gellner atribui
'\Jao há, realmente, qualquer grande realtzaçào explicativa, para um a s1 mesmo como decifrador do senttdo real daquilo que os berberes dizem (a
antropólogo europeu, em informar a seus agnósticos e/ ou modernos leitores despetto do que pensam que dizem) só pode ser sustentada por alguém que
europeus que os berberes acreditam em um tipo parucular de mtcrvenção supõe que traduztr outras culturas é, essencialmente, uma questão de empa-
direta da dtvindade em seus assuntos, que eles estão, é claro, errados em crer relhar frases escritas em duas línguas, de maneira tal que o segundo conjunto
russo, c que essa crença equivocada pode ter consequênciaS sociais. Nesse de frases se torna o "sentido real" do primeiro - uma operação que o antro-
tipo de exercício, nós não aprendemos em qtte eles acreditam, mas apenas que pólogo controla sozinho, do caderno de campo até a etnografia impressa.
aquilo cm que acreditam está inteiramente errado: assim, os berberes acredi- Em outras palavras, é a posição privilegiada de alguém que não se engaja,
tam que Deus "escolhe" os igurramen; sabemos que Deus não existe (ou, se nem pode se dar a esse luxo, em um diálogo genuíno com aqueles com quem
alguns de nós amda "acreditam" que stm, "sabemos" que de não mtervém viveu e sobre quem agora escreve (cf. Asad (org.), 1973, p. 17).
diretamente na históna secular); logo, aquele que "escolhe" deve ser um ou- Ao longo do seu artigo, ao discuttr o relativismo antropológico, Gell-
tro agente a quem os membros da tribo não reconhecem como tal - na ver- ner reclama que os
dade, os própnos membros da tribo. Os i._P,ttmlfnm são "escolhidos" (para um
papel soctal específico? Para uma virtude moral? Para um desuno religioso?) [...] antropólogos eram relatJ\'IStas, tolerantes, atentos para o contexto, em com-
pelo povo. A "seleção" parece ser z·ox Dei e é, na realidade, t•ox populi. Mas paração com os selvagens que estão, afinal, a alguma dtstância, mas que são
será que é mesmo? absolutos, intolerantes em relação a seus v1zinhos ou antecessores imediatos,
Na verdade, o processo social descrito pelo antropólogo como "esco- os membros de nossa própria sociedade que não compartilham sua perspectiva
lha" só é o loms de uma mx se se pretende que esse processo consutua um texto abrangente e são, eles mesmos, 'etnocêntricos' [...] (Gellner, op. cit., p. 31).
cultural. Pots um texto precisa ter um autor- aquele que faz sua voz ser ouvida
por esse meto. E, se essa voz não pode ser de Deus, então precisa ser a voz de Por que tentei insistir, neste trabalho, que qualquer um preocupado
outros - a voz do povo. Assim Gellner, o ateu, insiste em responder a uma em traduzir a partir de fontes de outras culturas deve buscar coerência nos
pergunta teológ1ca: quem fala através da história, através da sociedade? Nesse discursos, mas dediquei tantas páginas a mostrar t}UC o texto de Gellncr é,
llllb A csuita da cultura: poéuc•.: política da ~tnografia O conc~uo d~ rraduçáo culrural na anuopolog•a social briránJCa 227

cm lar~~a
meclida, incoerente? ·\ razão c muito simples: Gdlncr e eu fala boa tradução deve sempre preceder uma crítica. L podemos inverter tsso
111ns a mesma língua, pertencemos à mesma profissão acadêmtca, vt,·emos dizendo guc uma boa crítica é sempre uma críttca "interna"- isso é, uma crí-
11.1 ttH:sma sociedade. \o adotar um olhar crítico em relação a seu texto, tica baseada cm algum entendimento compartilhado, cm uma vida comum, a
l 1011 rnnlestando o guc ele diz, e não tmdu':(indo, e é justam<:nte na diferença gual visa alargar e tornar mais coerente. Uma crítica desse tipo - não menos
1 1d1cnl entre essas duas .ltlndades guc tnststo .. \mda assim, o propósito do do gue o objcto da crítica- é um ponto de vista, uma (contra) t•ersào, tendo
lllcu nrgumento não é expressar uma atttudc d<: "intolerâncta" em rdação a uma autoridad~.: apenas provisóna e limitada.
um "vtzinho imediato", mas tentar identtficar incoerências em seu texto gue O l)UC acontece quando as línguas envoh·ídas são tão clistantes gue é
c tgc•m correção, porque a tarefa antropológtca da tradução mer<:c<: ser mais muito difíctl reescrever uma intentio harmoniosa? Rudolf Pannwitz , citado
l ocrc•lle. O objetivo desta crítica, assim, é fomentar um esforço coletivo. por Benjamin no ensaio ao gual acabo de recorrer, faz a seguinte observação:
C rtlll'ar os "selvag<:ns que estão, afinal, a alguma dtstância", em uma mono

••r.lfl:t Ltnográfica <.Jue el<:s não podem l<:r, não m<: parece ter o mesmo tipo '\Jossas traduções, mesmo as melhores, panem de uma premissa equh·ocada.
d< ohjetiYo. Para que a crítica seja responsa\d, é preciso que seja sempre Querem transformar híndi, grego, tngles cm alemão, ao tnvés de transformar
tndcn:çada a alguem <.JUe possa contestá-la. alemão em hmdi, grego, ingles. :\.ossos tradutores têm uma reverência mwto
maior pelo uso da sua própna língua do que pelo cspínto das obras estran-
A dc~igualdade das línguas geiras. 1... ] O erro básico do tradutor é que ele preserva o estado no qual sua
prúpna língua se encontra, em vez de permiur que sua língua seja podero
l:ma leitura cutdadosa do artigo de (,dlner mostra que, embora le,·an samcntc afctada pela língua estrangeira. Em parucular, quando traduzmdo
I< dtvcrsas guest<>es tmportantes, ele nao apenas não consegue respondê-las de uma língua muito distante da sua própna, o tradutor deve retornar aos
llllllo não percebe alguns dos aspectos mais cruCtais do problema com o elementos pnmários da língua em SI e tr ate o ponto em que obra, tmagem
qual o etnógrafo está <:m oh ido. O mais interessante deles, parece me, é o c tom conYergcm. Ele deve expandir c aprofundar sua língua por meto da
pt oltll·ma ao qual pod~.:riamos, talvez, chamar de "línguas desthruais" e é língua cstrangetra (Pannwttz apud Bcnjamm, 1969, p. 80-81).
'"'" ntjUe gostaria de dtscutir agora, de forma mais detalhada.
Toda boa traduçao busca reproduzir a estrutura de um dtscurso cstran- Esse chamado para transformar uma língua de forma a traduzir a coe-
~'CIIO na própria língua do tradutor. () modo como essa estrutura (ou "coe- rência do ongmal coloca um desafio interessante para a pessoa gue se satis-
tliiCi.t") é reproduzida vai, cndentemcnr<:, d~.:pender do gên<:ro <:m l)Uestão faz com uma tradução que soa absurda com base no pressuposto de gue o
("pocsta", "analise ctentítica", "narrati\a" etc.) c dos recursos da língua do original deve s<:r igualmente absurdo: o bom tradutor não presume, imedia-
11 Hllltor, hem como dos Interesses do tradutor e/ ou do seu publtco. Toda tamente, l)UC uma diticuldade incomum em expressar o sentido de um dis-
t ••u lt~ç:io bcm-sucedida baseia se no fato de qu<: é formulada cm uma lín- curso estrangeiro revela uma falha neste último, mas, em vez disso, examina
gua csp~.:cífica, e, portanto, endereçada também a um conjunto especHico criticamente o estado normal de sua própna língua. A pergunta que importa,
dt pr:tttcas, uma forma cspccítica de "ida. Quanto mais distante essa forma assim, não é guào tolerante deve ser a atitude do tradutor diante do autor
de \ id:t está do original, tanto menos mecâmca é a reprodução. Como disse original (um tlilema ético abstrato), mas sim os motlos como pode testar a
\'\'alter Benjarrun: "A língua de uma tradução pode - na verdade deYe - se tolerância de sua própria língua para assumir formas incomuns.
deixar fluir, para guc dê \'07 à intentzo do original, não como reprodução, mas Mas essa extensão dos limites dos usos habituais, esse partir e remode-
c~tno harmonia, como um suplemento da língua na gual se expressa, como lar da própria língua por meio do processo de tradução nunca é uma tarefa
seu prc'tprto tipo de inimizo" (Benjamtn, 1969, p. 79). Fica a cntério do leitor fácil, cm parte (s<: me permitem hipostasiar) porgue tlepende da disposição
~tv.dinr ~.:ssa Ílllmtio, n:io sendo t:uet~t do tradutor tnduzir a avalia~·iio. t:ma da lú~~lfa do t rndutor de sl submeter a esse poder transformador. \tribuo vo
l
228 A escrita da cultura: poética e política da etnografia O conceito de tradução cultural na antropologia social britânica 229

lição à língua, de maneira um tanto ou quanto fictícia, porque quero enfatizar gue um tradutor ocidental pouco habilidoso pode simplificar na direção de
que se trata, em larga medida, de algo que o tradutor não pode determinar sua própria língua "forte".
por meio da atividade individual (não mais do que o falante individual pode Qual a implicação desse argumento para o conceito antropológico de
afetar a evolução de sua própria língua) - algo que é controlado por relações tradução cultural? Que talvez haja uma rigidez nas convenções linguísticas et-
de poder institucionalmente definidas entre as línguas/os modos de vida con- nográficas, uma resistência intrínseca, maiores do que aquilo que pode ser su-
cernentes. Para colocar de forma mais direta: como as línguas das sociedades perado por experimentos individuais nos modos da representação etnográfica.
do Terceiro Mundo - incluindo, obviamente, as sociedades que os antropólo- Em seu sensível ensaio "Modes of Thought", o gual Gellner critica
gos sociais têm tradicionalmente estudado - são "mais fracas" em relação às por se basear em pressupostos excessivamente indulgentes quanto à coerên-
línguas ocidentais (e hoje, especialmente, em relação ao inglês), elas têm uma cia do "pensamento primitivo", Lienhardt di?. o seguinte:
maior probabilidade de se submeterem a transformações forçosas no proces-
so de tradução do gue o contrário. A primeira razão para isso é gue, em suas Quando vivemos com selvagens e falamos suas Línguas, aprendendo a re-
relações político-econômicas com os países do Terceiro Mundo, as nações presentar suas experiências para nós mesmos à maneira deles, chegamos tão
ocidentais têm maior capacidade de manipular as últimas. A segunda razão é perto de pensar como eles quanto é possível, sem deixarmos de ser nós mes-
que as línguas ocidentais produzem e empregam conhecimento desqado mais mos. Ao final, tentamos representar suas concepções de forma sistemática
prontamente do que as línguas do Terceiro Mundo. (O conhecimento gue as nos construtos lógicos que fomos treinados para usar; e esperamos, assim, na
línguas do Terceiro Mundo empregam mais facilmente não é buscado pelas melhor das hipóteses, reconciliar aquilo que pode ser expresso em suas Lín-
sociedades ocidentais da mesma maneira, ou pela mesma razão.) guas com aquilo que pode ser expresso na nossa. Realizamos uma mediação
Vejamos, como exemplo, o árabe moderno. Desde o inicio do século entre seus hábitos de pensamento, que adquirimos com eles, e os hábitos de
XIX, tem havido um volume crescente de textos traduzidos das línguas euro- nossa própria sociedade; ao fazer isso, não é afinal uma "ftlosofia primitiva"
peias- especialmente do francês e do inglês- para o árabe. Incluídos aí estão misteriosa que estamos investigando, mas outras potencialidades de nosso
textos científicos, "ciências sociais", "história", "filosofia" e "literatura". E, a pensamento e linguagem (Lienhardt, 1954, pp. 96-97).
partir do século XIX, o árabe como idioma começou a passar por uma trans-
formação (lexical, gramatical, semântica) muito mais radical do que qualquer No campo, como Lienhardt acertadamente sugere, o processo de tra-
coisa que possa ser identificada nas línguas europeias - uma transformação dução tem lugar no exato momento em que o etnógrafo se envolve com
que o tornou mais próximo das últimas do que no passado. Essas transfor- um modo específico de vida - assim como faz uma criança ao aprender a
mações assinalam desigualdades de poder (isto é, de capacidades) das línguas crescer em uma cultura específica. Ele aprende a agir em um novo ambien-
respectivas em relação às formas dominantes de discurso gue foram e ainda te, e aprende uma nova língua. E, como uma criança, ele precisa verbalizar
estão sendo traduzidas. Há tipos de conhecimento a serem aprendidos, mas, explicitamente qual é a maneira certa de fazer as coisas, porque é assim que o
também, um vasto conjunto de modelos a serem copiados e reproduzidos. aprendizado se dá (cf. A. R. Luria sobre "fala sinpráxica", 1 em Luria e Yudo-
Em alguns casos, o conhecimento desses modelos é uma precondição para vich, 1971, p. 50). Quando a criança/antropólogo se torna competente nos
a produção de mais conhecimento; em outros, é um fim em si mesmo, um hábitos adultos, o que ele aprendeu se torna implícito - à maneira dos pres-
gesto mimético de poder, uma expressão de desejo de mudança. Reconhecer supostos que orientam um modo de vida compartilhado, com todas as suas
esse fato já bem conhecido nos lembra de que o capitalismo industrial trans- ressonâncias e áreas obscuras.
forma não apenas modos de produção, mas também tipos de conhecimento
e estilos de vida do Terceiro Mundo. E, com eles, formas de linguagem. O
resultado de estilos de v-ida sernitransformados dá margem a ambiguidades,
' No mig111;1l: "~ynpr<l'lic spccch" (N do ·q
Entretanto, aprender a ''iver um novo modo de vida não é: a mesma Lendo outras culturas
coisa que aprender sobre um outro modo de vida. Quando os antropólogos
voltam para seus países, precisam descrc\er "seu povo", e precisam fazê- Essa desigualdade de poder entre as línguas, juntamente com o fato de
-lo seguindo as com enções de representação Ja cJrcunscntas ("difundidas", lJUC,cm geral, o antropólogo escreve sobre uma soCJedade sem escrita (ou,
"consolidadas") em sua dJsc1plina, na vida mstJtuCJonal c na sociedade mais no mírumo, que não fala inglês) para um público basicamente acadêmico e
ampla. A "tradução cultural" deve se acomodar a uma língua diferente não nativo do mglês, estimula uma tendência gue gostana de discutir agora: a
apenas no sentido do inglês em oposição ao Dmka, ou do inglês em opo- tendêncta a ler o implícito nas culturas alheias.
sição ao árabe, mas também no sentido de um jogo acadêmico inglês de De acordo com muitos antropólogos sociais, o objeto da tradução et-
classe média em oposição aos modos de vida do Sudão "tribal". A rigidez nográfica não é a fala historicamente situada (esta seria a tarefa do folclorista
de uma estrutura de vida poderosamente estabelecida, com seus próprios ou do linguista), mas a "cultura", e, para traduzir a cultura, o antropólogo
jogos discursivos, suas próprias linguas "fortes", é o gue, entre outras coisas, precisa primeiro ler e, então, reinscrever os significados implícitos que resi-
determina afinal a eficácia da tradução. A tradução dirige-se a uma audiência dem aguém/dentro/além da fala situada. Ma!) Douglas formula essa gues-
muito específica, gue espera ler sobre um outro modo de vida e lidar com o tão com muita clareza:
texto que lê de acordo com regras estabelecidas, e não aprender a 1irer um
outro modo de vida. O antropólogo que esboça o esquema integral do cosmos implícito nas prá-
Se Benjamm estava certo ao sugenr que a tradução pode exigir não ticas [observadas] comete uma grande violência contra a cultura primitiva se
uma reprodução mecânica do original, mas uma harmomzação com sua in- dá a impressão de apresentar a cosmologia como uma tilosofia sistemática
tenlio, disto decorre que não há qualquer razão pela qual ISSO deva ser feito subscnta conscientemente por indivíduos. [... ] Assim, a visão de mundo pri-
exclusivamente segundo o mesmo modo. Na verdade, pode-se até argumen- ffiltJva que defini acima é raramente, da mesma, objeto de contemplação e
tar que, para "traduzir" uma forma estranha de vida, outra cultura, nem sem- especulação na cultura primitiva. Ela se desenvolveu como um apanág10 de
pre a melhor maneira é o discurso representacional da etnografia, e que, outras tnstitutções sociais. Ela é, assim, produzida indiretamente, e por isso
sob certas condições, uma performance teatral, uma dança ou a execução de a cultura primitiva precisa ser entendida como mconscJente em relação a si
uma peça musical podem ser mais adequadas. Qualquer uma delas seriam mesma, inconsciente de suas próprias condições (Douglas, 1966, p. 91).
produrões do original e não apenas meras interpretações: exemplos transfor-
mados do original, e não representações textuais dotadas de autoridade (cf. Uma diferença entre o antropólogo e o linguista na questão da tradu-
Hollander, 1959). Mas será que a maioria dos antropólogos sociais as con- ção é talvez esta: enquanto o último está diante de um trecho específico de
sideraria como exercícios válidos de "tradução de cultura"? Creio que não, discurso produzido na sociedade estudada, um discurso que é então textu-
porque todas elas levantam uma dimensão mte1ramente dtferente da relação alizado, o primeiro precisa construir o dJscurso como um texto cultural em
entre o "trabalho" antropológico e seu público, a questão dos diferentes usos termos dos sigruficados implícitos em uma gama de práncas. A construção do
(práticas), em oposição simplesmente a escritas e leifltras diferentes da obra. dtscurso cultural e sua tradução parecem, assim, ser facetas distintas de um
E, como antropólogos socirus, somos treinados para traduzir outras línguas mesmo ato. O ponto é abordado por Douglas em seus comentários sobre
culturais como textos, e não para introduzir ou aumentar competências cul- suas próprias traduções dos significados do culto do pangolim entre os Lele:
turais, aprendidas com outros modos de vida, no nosso próprio modo de
vida. Parece me muito provável que a noção de cultura como texto tenha Não eXIstem livros Lele de teologia ou ftlosofia para definir o significado do
reforçado essa concepção da nossa tarefa, porque ela facilita o pressuposto culto. As implicações metafísicas não me foram expl.Jcadas em tantas pala-
de que a tradução é essencialmente uma questão de representação verbal.
232 A esc rua da cultura: poética e polínca da etnografia O conceito de tradução cultural na antropologia social bri!ânica 233

vras pelos Lde, nem entreoun tjUaltjucr conversa entre ad1únhos sobre esse ela não difere da compreensão que pode cxtstir entre quaisquer duas pessoas
assunto. I· .J yuc se conhecem bem. [!J Ela se torna Científica na medtda em que a ltngua
<)uc ttpo de e\·idênCla relatiYa ao significado desse culto, ou de 'lualquer ou particular da compreensão íntima é traduzida para uma linguagem pública,
tro, pode ser exigida de maneira scnsatar () culto pode ter mu1tos nh·eis c ti- não importa yuão especializada do ponto de ústa le1go, a qual, nesse caso, é
pos diferentes de sigruticado. ~las ayudc sobre o yual bascto meu argumento a lint,>ua dos psicólogos. ;\las o ato particular de tradução não distorce a expc-
é o s1gmficado que emerge a partir de um padrão no yual se pode demonstrar nência privada do sujeitO e é Idealmente, ao menos potencialmente, aceitá,·el
tncontcstaYclmcnte a interligação entre as partes. Nenhum membro cspecí para ele como uma representação cicntitica de sua experiência privada. Do
fico da sociedade tem necessariamente consc1ênc1a do padrão inteiro, não mesmo modo, o modelo da vida políttca dos Nucr que emerge do trabalho
mais do yue os falantes de uma lín)-,'1.ta são capazes de expltc1tar os padrôcs do professor Evans-Pritchard é um modelo Científico dotado de sentido para
ltnguisucos yue empregam (Douglas, I 966, pp. 173 74). seus colegas sociólogos enquanto sociólogos, c é eficaz porque é potencialmen-
te aceitárel para os _\uer em alguma Slluardo idflll na qual se pode supor que eslanam
Sugen em outro lugar (Asad, 1983a) lJUe a atributção de significados interes.rados em si mesmos como homms que rit·lll em sociedade. Desse ponto de \'is ta,
implícaos a uma prática estranha a dt'.rpeito de .rmm rmmhecido.r por .reu.r Of!,fllles a colaboração dos cientistas soc1a1s pode ser v1sta como o desem·olnmento
é uma forma característica de exercício teológico, com uma longa história. de uma linguagem que capactta dctcrmmadas pessoas a se comunicarem de
,\qui, quero ressal\'ar que a referência a padn>cs ltngutsttcos produzidos pc forma cada vez mats sutil sobre uma área específica dos fenômenos narurais
los falantes não é uma boa analog~a, porque padrot.r ltni-,ruísucos não são stg ddimda pelo nome daquela ciência parncular. Sua ciênCia é, no sentido lite-
nificados a scn.:m traduzidos, são regras a scrcm slstcmaticamcntc dcscritas c ral do termo, seu senso comum, seu significado comum. Passar desse senso
analisadas. l m falantc nati\'o tem consctcncta de como tats padrôcs deYcm comum para o "senso comum" do público mais amplo exige, novamente,
ser produztdos, mesmo quando não consc1-,ruc vcrbaltzar esse conhecimento, um ato de tradução. A situação da antropologia soctal, ou da sociologia em
cxpltcttamcntc, sob a forma de regras. ,\ aparente falta dc capacidade para geral, nào é, nesse nível, tão diferente assim. \diferença reside no fato de que
verbalizar esse conheCimento social não constitui, necessariamente, C\ idên fenúmenos sociológicos só são estudados objctivamente na medida em que
cia de stgniticados inconscientes (cf. Dummett, 19Hl). O concctto de "sig seu sentido subjctivo é levado cm conta e que os povos estudados são poten-
nificado inconsCiente'' pertence a uma t~:ona do inconsctcntc repressor, tal cialmente capazes de comparnlhar a consctênc1a sociológica que o sociólogo
como as t~:s~:s de I·reml, nas yuais é possível afirmar lJUC uma pessoa "sabe" tem a seu respeita (Pocock, 1961, pp. 88 89; grifo meu).
algo inconscientemente.
1\ssim, talvez seja melhor comparar a tarefa de identificar significados Citei essa passagem notável na íntegra porque ela coloca de maneira
inconscientes na "tradução cultural" com a ati,·idade do psicanalista, ao tn- muito lúcida uma posição que, acredito, é amplamente aceitável para muitos
vés do linguista. De fato, alguns antropólogos britânicos apresentaram seu antropólogos que, de outra forma, veriam a s1 mesmos como envolvidos
trabalho, por vezes, exatamente nesses termos. Por exemplo, David Pocock, com upos muito diferentes de empreendimentos. Citei-a, também, porque
aluno de Evans-Pritchard, escreve: a natureza da colaboração entre "autor e tradutor" é levantada de maneira
muito feliz na referência subsequente ao psicanalista como cientista: se o tra-
Em resumo, o trabalho do antropólogo social pode ser visto como um ato dutor antropológico, como o analista, tem a autoridade final para determinar
extremamente complexo de tradução, no yual autor e tradutor colaboram os significados do sujeito, então é o primeiro que se transforma no real autor
um com o outro. C ma analogia mrus precisa seria a relação entre o psicana- do segundo. Nesta visão, a "tradução cultural" é uma questão de determina-
lista c seu analisando. O analista entra no mundo privado do analisando para ção de significados implícitos - não os significados que o falante nativo de
aprender a gr:tmánca de sua linguagem parncular. Se a análtse não avança, fato reconhece cm sua fala, nem mesmo os stgntfic:1dos que o ouvinte nativo
234 A escrira da cultura: poética e política da emografia O conceito de rradução culrural na antropologia social britânica 235

necessariamente aceita, mas sim aqueles que ele é "potencialmente capaz de titucionalizadas da sociedade capitalista industrial (ver páginas 227-8 acima),
compartilhar" com a autoridade científica "em uma situação ideal": é quando gue tendem constantemente a empurrar os significados de várias sociedades
ele pode dizer, por exemplo, junto com Gellner, que a vox Dei é, na realidade, do Terceiro Mundo em uma única direção. Isso não quer dizer que não haja
vox populi, que ele afirma o verdadeiro sentido de seu discurso tradicional guaisquer resistências a essa tendência. Mas a "resistência" indica, por si só,
'
um significado essencial de sua cultura. O fato de que nessa "situação ideal" a presença de uma força dominante.
ele não seria mais um membro muçulmano da tribo berbere, mas algo que É preciso enfatizar que não estou argumentando que a etnografia te-
começa a se parecer com o professor Gellner, não parece causar maiores nha qualquer papel relevante na transformação de outras culturas. No que
preocupações a esses tradutores culturais. diz respeito a isso, os efeitos da etnografia não podem ser comparados com
Esse poder de criar significados para um sujeito por meio da noção outras formas de representação de sociedades - por exemplo, filmes de te-
do "implícito" ou do "inconsciente", de atdon.zá-los, foi, evidentemente, dis- levisão produzidos no Ocidente que são vendidos para países do Terceiro
cutido no caso da relação entre analista e analisando (e)~·., recentemente em Mundo. (O fato de que os antropólogos reconhecem o poder da televisão
Malcolm, 1982). Até onde sei, não foi examinado cm relação àquilo que o se reflete, por exemplo, no número cada vez maior de filmes antropológicos
tradutor cultural faz. I lá, evidentemente, diferenças importantes no caso do feitos para esse meio, na Inglaterra.) Os efeitos da etnografia comparam-se
antropólogo. Pode-se assinalar que o antropólogo não impõe sua tradução aos ainda menos com as restrições políticas, econômicas e militares do sistema
membros da sociedade cujo discurso cultural elucida, que sua etnografia não mundial. Meu ponto é simplesmente de que o processo de "tradução cultu-
é, assim, autoritária da mesma forma em gue o é o estudo de caso do analista. ral" é perpassado, de maneira inevitável, por relações de poder- profissional,
O analisando vem até o analista, ou é encammhado por agueles que detêm nacional, internacional. E entre essas condições está a autoridade dos etnó-
autoridade sobre ele, como um paciente que precisa de ajuda. O antropólo- grafos para descobrir os significados implícitos de sociedades subordinadas.
go, em contraste, vem até a sociedade que gucr ler, vê a si mesmo como um Em sendo assim, a pergunta gue interessa não é se, ou em que medida, os
aprendiz, e não um guia, c se retira da sociedade quando já tem informaçôes antropólogos devem ser relativistas ou racionalistas, críticos ou indulgentes,
suficientes para inscrever sua cultura. Ele não considera a sociedade, nem em relação a outras culturas, mas de que forma o poder participa do proces-
seus membros se consideram, doentes; a sociedade nunca está sujeita à auto- so de "tradução cultural", visto tanto como prática discursiva quanto como
ridade do antropólogo. não discursiva.
No entanto, esse argumento não é tão conclusivo quanto pode parecer
à primeira vista. Resta a questão de que a tradução/ representação do etnó- Conclusão
grafo de uma cultura específica é, inevitavelmente, uma construção textual,
que, enquanto representação, ela não pode, cm geral, ser contestada pelas Há alguns anos sou atraído por este enigma. Como é possível que a
pessoas a quem é atribuída e que, enquanto "texto científico", ela acaba por abordagem exemplificada pelo artigo de Gellner permaneça atraente para
se tornar um elemento privilegiado no estoque potencial de memória histó- tantos pesquisadores, apesar de suas falhas evidentes? Será, talvez, porgue
rica da sociedade sem escrita em questão. Nas sociedades modernas e em se sentem intimidados por um estilo? Sabemos, é claro, gue antropólogos,
processo de modernização, registras escritos têm mais poder para modelar e assim como pesquisadores de outras áreas, não aprendem apenas a usar uma
reformar sefz,es e instituições do que as memórias populares. Eles até mesmo linguagem acadêmica, mas, ainda, a temê-la, admirá-la, a serem cativados por
constroem as memórias populares. A monografia do antropólogo pode vol- ela. Entretanto, isso também não responde inteiramente à pergunta, porque
tar, retraduzida, em uma língua "mais fraca" do Terceiro Mundo. Assim, no não nos diz por que esse tipo de estilo acadêmico cativa tantas pessoas inteli-
longo prazo, não é a autoridade pessoal do etnógrafo que importa, mas a au- gentes. Apresento, agora, uma proposta de solução. O que temos aqui é um
toridade social de sua etnof.,ry-atia. h essa autondade ~ tnscnra nas forçac; tos estilo faul dl· cnstnar, de aprender c de reproduztr (em perguntas de provas,
236 A e\trila da wlwra: po~llca e poluKa da etnografia

trabalhos escolares e dissertações). É um estilo <-JUe facihta a textualização de Problemas contemporâneos da etnografia n<
outras culturas, <-JUe mcenuva a construçao de respostas esquemáticas para
<-JUestões culturais complexas c <-JUe é ade<-Juado para separar conceitos cultu- sistema mundial moderno
rais alhcto-; em pilhas claramente arrumadas de "faz sentido" ou "bobagem".
Além de ser fácil de ensinar c de imttar, esse estilo promete resultados visí-
veis, que podem ser prontamente avaliados. Ele é, certamente, um prêmio George E Mmr.
em uma disciplina acadêmica estabelecida, que asptra a padrões de objetivida-
de científica. )Jão será, assim, a popularidade desse estilo um reflexo do tipo
de instituição pedagógica em que vivemos?
Embora já tenham decorrido muttos anos desde a publicação original
do texto de Gellncr, ele representa uma posiçao dogmátiCa <-JUe é popular
ainda hoje. Penso no sociologismo que defende <.juC ideologias religiosas ex-
traem seu real stgniticado das estruturas políticas ou económicas, c na me
todologta autorretteradora, tk acordo com a qual esse pnnctpio semânuco
As etnografias sempre foram escritas em contextos de mudanças hi
redutivo é evidente para o antropólogo (autoritárto) c não para as pessoas so-
tóricas: a formação dos sistemas de Estado e a evolução de uma econom
bre <-JUem se cscrcn:. Tal postçao pressupúe, asstm, <-JUe é nao apenas possível
política mundial. Entretanto, além do uso de algumas poucas técnicas co
como necessáno para o antropúlogo agtr como tradutor c critico ao mesmo
sagradas para se levar em conta mudanças, história e economia política,1 c
tempo. Considero tal postção mdefcnsável, e penso <-JUC são as rclaçoes e as
práticas de poder <-JUe lhe dão certo grau de viabtltdade. (Para uma (hscussão
1
crítica dessa posição cm sua relação com a históna tslâmiCa, \er Asad, 1980.) Os dois modos mais comuns para a fixação autoconsciente da etnografia no tempo histc'm
são aqueles aos qurus chamarei de modo de resgate e de modo redentor. No modo de rcsga
O ponto positivo que tentei defender ao longo de meu exame do texto
o etnógrafo representa·se como "diante do dilúvto", por assim dizer. Os sinais de mudanc
de Gellner está rclactonado com agutlo a gue me referi como destgualdade fundamentats são evidentes, mas o etnógrafo é capaz de resgatar um estado cultural à bcir11
das línguas. Sugen que o pro1eto antropológtco da traduçao cultural pode transformação. Essa retórica é mais evidente quando uma sucessão de etnógrafos que esc
vem sobre um mesmo obJeto culrural se postctona historicamente no mesmo momento ti
estar victado pelo fato de <-JU<.: há tendênCias e pressôes assimétricas nas lín-
damental; cada um deles está "diante do dilúvio", mas, mesmo assim, cada um encontrn u i
guas das sociedades dominadas e dominantes. E sugeri <-JU<.: os antropólogos cultura que pode relacionar a representações antenores, sem maior sensibilidade para rc un
precisam examinar esses processos para determmar até onde se pode ir na mudanças históncas entre os períodos de trabalho de campo. No modo redentor, o ctnflgn
demonstra a sobrevtvência de sistemas culturais particulares e autênticos, apesar das ineg!.~
definição das posstbtltdades c limites da tradução eficaz.
mudanças. A redenção da autentlctdade cultural é, muitas vezes, empreendida e mcnsurud<t '
relação a algum estado suposto pré-moderno ou pré-capitalista- o tema da "idade do ouro
ou então se encontra uma reserva espacial, ao invés de temporal, para a autenticidade cuht
em meio à transformação -a odis~eia do antropólogo rio acima ou aos confins do territó
para situar o trabalho de campo onde "eles ainda fazem aquilo". O trabalho de cumpo
Além Jos participantes do semináno Jc Santa Fé que discutiram uma primeira ver- Rabinow no Marrocos (1977), enquanto uma viagem épica, emprega essa postura narr~tt
são deste artigo- em parucular Paul Rabinow, que:: fez um extenso comentário-, agradeço mas, no final, ele explode a ilusão de que o obJeto etnográfico puro pode ser encontrado 1
IOCllls mais recônditos do território. Em sua recente e sofisticada etnografia de Samoa, Sh•
as críticas valiosas de 1anya Baker, John Dixon, Rodney Ncedham e Ketth Nield. (1982) oculta o contexto histónco por meto desse movimento de encontr;lr, para R etnogrll
um lugar espacial livre das complicações indesejáveis de uma economia polítka hi~t,·~ru
rnundtal coercinvamentc presente. Há muitos exemplos semelhantes de etnografia' mugi 11
<fUC: f:u:c:m suas corurihuiçi")CS ao custo de manohms desse tipo. O lJUC cst,, finalmente, hl·
Utndo 11 rtnogmtia dl:sscs modo~ ll · IH~t<·•rin•s de lcV'olr cm lOiltll os nHilC..llto>S histórt os

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