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Universidade Federal do Rio de Janeiro

MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

TÂNIA STOLZE LIMA

A Parte do Cauim
etnografia juruna

Rio de Janeiro
1995
TÂNIA STOLZE LIMA

A PARTE DO CAUIM
etnografia juruna

Tese de doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro
1995
Agradecimentos

À CAPES, CNPq e FINEP.

Aos meus colegas do Departamento de Antropologia da Universidade Federal

Fluminense.

Aos professores do PPGAS-Museu Nacional.

Aos que examinarão esta tese.

Aos funcionários do Parque Indígena do Xingu, especialmente Bedjai e Magaron

Txukarramãe; Marawë, Payê, Tuim e Yawariu Kayabi; Suzana e César; e ao líder Kayabi

Canísio.

A Anthony Seeger, Aparecida Vilaça, Bruna Franchetto, Carlos Fausto, Claúdio

Augusto Stolze de Oliveira, Cora e Angélica Rachid, Elizabeth Travassos Lins, Eloísa

Araújo Ribeiro, Francisco Teixeira Portugal, Joana Angélica de Lima Garcia, Ivana Stolze

Lima, Izo Goldman, Janice Caiafa, José Carlos Levinho, José Carlos Rodrigues, Kátia Maria

Pereira, Lília Valle, Lina da Silva, Marco Antônio Teixeira Gonçalves, Marcio Goldman,

Márcio Silva, Maria Eliza R. R. Leite, Márnio Teixeira Pinto, Nadir Paulino, Neila Soares

de Souza, Nilda Loureiro Stolze, Otávio Velho, Ovídio Abreu Filho, Rakel Goldman, Romana

Maria Ramos Costa, Vânia Stolze Lima, Vanessa Lea, Wagner Neves Rocha e Yonne Leite.

Ao meu orientador Eduardo Viveiros de Castro e aos Juruna.


Por quê?
Para quê?
Perplexidade.
— É o vinho!
— a crítica esbraveja.
Tese:
refratário à sociedade.
Corolário:
muito vinho e cerveja.

(Maiakovski)
Resumo

Esta tese é um estudo etnográfico sobre um grupo Juruna (Tupi)

que deixou as ilhas do Médio Xingu onde habitava até o final do

século XIX para viver no alto curso do rio, a montante da Cachoeira

Von Martius. Seus principais focos são as teorias Juruna sobre a

composição do cosmos, a condição humana e a sociedade; e a

cauinagem, concebida como uma forma de antropofagia.


Nota sobre a grafia dos termos Juruna

À exceção dos nomes próprios, todas as palavras em Juruna são grafadas em

itálico. A convenção ortográfica aqui utilizada é uma representação fonética simplificada.

O uso do traço sobre uma consoante remete a uma oposição entre oclusivas (p, b, d, n) e

fricativas (π, ∫, ∂, µ).

CONSOANTES

Bilabial Dental Alveolar Palatal Velar Glotal

Oclusivas

simples p b t d k ÷

palatalizadas ˚ j

m n ñ

nasais

Fricativas

orais π ∫ s ∂ z ≈ h

nasais

Tap r

Constritivas w y

VOGAIS

Anterior Central Posterior

Alta i ¥ u

Média e o

Baixa a

Todas as vogais podem ser nasalizadas; isto é grafado como: ã, ë, ï, †, õ, ü. Em ambiente

nasal [h], [w], [∂], [∫] e [r] também se nasalizam.

Assinalo de passagem que acredito que [π] e [h] formem um só fonema; assim como

[∂] e [µ], e [∫] e [w], [ñ] e [y], e, no quadro das vogais, [u] e [o]. A vogal central alta é,

segundo o contexto, mais posterior; e segundo o falante, mais baixa. Uma das maiores

dificuldades que o Juruna impõe ao aprendiz falante de português vem de um jogo de


duração das vogais, que podem ser brevíssimas, normais ou longas. Não uso convenção

para as vogais breves, pois isso não é um traço distintivo; para as longas, que têm valor de

fonemas, uso uma grafia dupla, ao menos naqueles termos que formam pares mínimos de

significação.

Para o leitor a quem as observações acima não dizem muito, acrescento que as

letras conhecidas apresentam o valor aproximado ao do português, à exceção de [j] e [h] .

Quanto às demais, considere-se o seguinte:

[π] soa como um F produzido com ambos os lábios; e [∫] soa como um V produzido do

mesmo modo;

[˚] soa como o T em tia no falar carioca, assim como o [j] soa como o D em dia; mas ambos

ocorrem diante de todas as vogais;

[∂] soa aproximadamente como o Th do inglês although; mas é pronuciado sem tensão na

língua, de modo que numa palavra como a∂apa lembra menos o nosso Z do que o nosso L

(como em alado);

[µ] é uma variante nasal de ∂; ao nosso ouvido soa como um meio termo entre o N e o L.

[≈] soa como Ch em chave;

[h] soa como o duplo R em carro;

[r] soa como o R em caro;

[÷] chama-se oclusão glotal e é produzido com um fechamento da glote;

[¥] é uma vogal pronunciada sem arredondamento dos lábios (como em I), e com a língua

em posição posterior (como em U).

Não forneço marcas de acentuação porque não sou capaz de o fazer diante de muitas

palavras, onde me parece que a quantidade se distribui uniformemente. As sílabas átonas

são geralmente mais fortes do que em português, e há variação conforme a palavra seja

pronunciada isoladamente ou no contexto da frase. Tampouco forneço marcas de tonalidade.

Pouquíssimo pertinente no nível fonêmico (apenas três ou quatro pares de palavras se

distinguem pelo tom), a tonalidade é importante na prosódia, mas não tenho nenhuma

competência nesse campo.

Visando respeitar ainda que minimamente a privacidade dos Juruna, procuro

utilizar os nomes pessoais que só são conhecidos no âmbito do grupo; quando isto não é

possível, utilizo os nomes menos conhecidos transformando-os de um modo tal que somente

os Juruna sejam capazes de reconstituí-los.


Sumário

Prefácio 1

Capítulo I - No caminho de Seµã÷ã 15

Capítulo II - O Arco e o Remo 57


1. Caderno de história 61
2. O rio e as estações 89
3. O xamã vai à caça 107
4. Um gavião chamado pacu 115
5. Ogros do rio e da floresta 127

Capítulo III - A Alma e a Vida 137


1. Xamanizar 141
2. Sonhar 162
3. Crescer e multiplicar-se 171
4. Adoecer 188
5. Matar 199
6. Morrer 209

Capítulo IV - O Caminho dos Mortos 221


1. O destino da alma 223
2. Poder e sociedade além túmulo 228
3. A política com os mortos 240
4. O festival dos ֕֋nay 253
5. O festival dos ÷ë÷ãm† 268
6. Os mortos são Outros 275

Capítulo V - O Mundo das Pessoas 285


1. Qual é o nome dele? 287
2. Vocabulário de parentesco 298
3. Mamãe chama meu marido de nora e outras confusões 310
4. O mito da sociedade e outras histórias 328

Capítulo VI - A Parte do Cauim 355


1. Receita de cauim 359
2. À Cauinagem 374
3. Margens da alegria 408

Conclusão: As Verdades e os Outros 425

Bibliografia 439

Apêndices 451
1. Epopéia de Seµã÷ã 453
2. “Os Juruna são canoeiros” 470
3. Mapas 473
9

Prefácio

Quando Karl von den Steinen, em sua viagem de exploração do rio Xingu, pernoitou

na aldeia de um certo Nunes, amável velho Juruna que lhe ofereceu canoa e remadores, ele,

pretendendo seguir a jusante logo cedo, deu-se conta de que o dia estava morto:
“... foi inteiramente impossível botar a gente em movimento; todas as palavras e
presentes oferecidos de nada adiantaram: primeiro tinha que se acabar com o caxirí.
‘Agora tem caxirí... caxirí não tem mais, vamos embora’. E o caxirí enchia toda uma
canoa!” (Steinen, 1942: 313).
Era 11 de outubro de 1884. Ele havia de esperar e, quem sabe, beber para esperar,

embora achando que mais tragável era o ‘punch de ptialina’ das ilhas de Samoa, mastigado

por moças mais belas que as velhas das ilhas do Xingu. De qualquer forma o desânimo não

era tudo: “Qual seria o estudante que não ficaria encantado pela poesia que oferece a p r e -

sença de uma canoa cheia de líquido entorpecente?” (idem: 314). Assim deixou um r e -

gistro apreciável da cauinagem, coroado com a bela gravura que reproduzo aqui e que r e -

centemente se tornou uma fonte documental para os Juruna, que aí viram a imagem de

tempos mais verdadeiros.

Na noite de 17 de abril de 1992, em minha casa, Kadu e Kudawaji, trazidos ao Rio

de Janeiro pela Embaixada do Canadá e Fundação Amway para o Meio Ambiente, para um

encontro com um artista plástico Inuit de Coral Harbour, Leo Angotinguar, participante da

exposição “Mestres do Ártico” a ser inaugurada em junho próximo no Museu Histórico

Nacional, ficaram muito emocionados. Panelas, bancos, remos, instrumentos musicais,

arcos, flechas, saia, redes, cuias, desenhos de labirintos, adornos, fotos... toda a p a r a -

fernália que fui acumulando em minhas viagens de campo estava espalhada pela casa para

“mostrar ao Índio, dono do gelo”. O interesse de Leo em fazer chegar a eles informações de

seu país não era menor. Por isto, terminando de apreciar os objetos Juruna e fazer muitas

perguntas, tirou da bolsa uma pilha de revistas com fotos de aurora boreal, iglus, canoas

de pele, morsas, focas, caribus, ursos etc... e, no meio disso, a fotografia de um homem

chamado Au, o último xamã esquimó, morto há várias décadas, ricamente paramentado, que

foi exaltado e muito impressionou os Juruna. A sublime figura do xamã lembrou-me a

bela gravura de Steinen e eu, claro, apanhei minha cópia xerox para mostrar a eles. Kadu

olhou-a demoradamente, exclamando baixinho duas ou três vezes: “Oh, são os verdadeiros

Iuja”, e perguntou sobre a possibilidade de eu conseguir uma cópia, no futuro, para ele.

Recortei a gravura para ele, que disse sem maior explicação que eu a protegesse logo com
10

um papel pois a guardaria na bolsa, sugerindo estranhamente que não era para mostrá-la

a Leo. Kudawaji, contudo, quis ver. Lê a legenda “festa do caxirí” e duvida que represente

Juruna. Não quer acreditar, eu lhe peço para olhar bem as panelas que estão no jirau, pois

se ele podia se fazer uma outra imagem dos antigos havia de considerar que a cerâmica era

idêntica aos exemplares que empilhavam a mesa. Depois de um instante conclui sem e s -

conder a emoção: o pessoal está acabando! como os antigos eram altos! hoje os Juruna são

baixinhos! o pessoal está acabando! Ele se refere à gravura como foto, eu lhe digo que é um

desenho, a diferença não parece significar muito e eu perco o ânimo de lhe dizer para

considerar a distorção; pois se há homens que parecem demasiado altos é porque há um que

parece um anão. Demora-se sobre a gravura e começa a falar, exaltado e já sem a mínima

indignação. Diz que entende perfeitamente da vida dos antigos e aponta o chefe da aldeia,

contrasta sua riqueza com a pobreza dos outros, mostrando que ele é o único a usar brincos

de penas de arara, enquanto os outros têm simplesmente o cabelo amarrado. Kadu diz que as

borlas que estão nas pontas das penas é uma coisa que se encontra na beira do r i o ,

Kudawaji discorda dizendo que é “flor de arara”. Explica-me que os antigos conheciam a

mesma diferença que os Brancos conhecem, a diferença entre ricos e pobres. A riqueza dos

Juruna de outrora consistia em dentes de Índios2, e o homem de brincos com certeza,

afirma, possuía um tesouro de dentes humanos. Em seguida diz que está havendo uma briga,

o homem que se chateou muito pegou seu arco e flecha e está saindo da casa, Kudawaji diz

que sabe que os Juruna estão de cabeça quente por causa do caxiri. Ele continua obser-

vando. Depois se pergunta por que não há nenhuma mulher na casa. Chamo-lhe a atenção

para a mulher que está de pé encostada no poste (sobre a qual Kadu já observara que estava

com frio, que devia ser hora da madrugada, e por isso ela enrolara o torso com a manta), e

observo que as mulheres hoje sempre lembram que no passado mulheres não se mistura-

vam aos homens durante a cauinagem. Ele se lembra imediatamente e diz de novo que sabe

muito bem da vida dos antigos. Ele sabe que esta mulher é a mãe do homem que está com o

dedo em riste, que ela só entrou na casa do cauim para acalmar o filho bravo, mas não

adiantou, ele está bêbado demais e continua falando ríspido com o homem que está ao seu

lado detrás da canoa de bebida. E o chefe, por que está tocando trompa? Ah, sim, é claro,

Kudawaji sabe também, toca para abafar a briga e fazer todo mundo ficar alegre de novo.

“Se vocês já viram, podem guardar”, interrompe Kadu. Nem Kudawaji, nem eu, demo-nos

2 Quando grafado com maiúscula, esse termo se aplica ao que os Juruna chamam de abi. Para os

brancos (karai), uso o mesmo procedimento.


11

conta do homem de camisa sentado, no lado esquerdo da gravura. Kudawaji tinha tomado

cerveja no jantar e estava deslumbrado. A gravura foi guardada, mas ele quis que chegasse

à escuta de Leo que o seu próprio povo se enfeitava com dentes de Índios; que redes e saias

femininas também eram bordadas no passado, mas não com missangas como fazem os Inuit,

e sim com dentes de Índios. (Ele, segundo creio, generalizava um episódio mítico da Epo-

péia de Seµã÷ã em que dentes de Índios-sem-ânus são usados para fazer franjas das redes

da família e da saia da esposa do magnífico xamã.) E contou o que a mim nunca tinha r e -

velado: ele comeu uma vez da carne crua e sangrenta de um jaguar, por isso o ímpeto de

agredir quem o agride jamais lhe tinha faltado, a força para a violência que trazia dentro

de si era muito grande. Nenhum outro Juruna possuía esta força, pois todo mundo diz que é

perigoso e repugnante comer jaguar, mas ele não acredita nisso, e participou da d i s t r i -

buição aos rapazes de pedacinhos de carne crua de jaguar a que assistiu um dia na aldeia

dos Txukahamãe. A lembrança do episódio fazia todo o corpo de Kudawaji pulsar; sério,

fazia de conta que tinha o pedaço de carne crua na boca e acumulava força para engolir...

Muito nojo e coragem!

A sociedade Juruna não possui divisões sociais baseadas em descendência, metades,

classes de idade... não conhece grupos formais de nenhum tipo. Assim Leo, que no dia a n -

terior dissera ter lido na Universidade livros sobre povos da floresta tropical, à medida

em que apreciava os objetos e as fotos, buscou inutilmente, porém com grande sagacidade,

cristalizações da sociedade Juruna através dos objetos materiais. Foi interrogando que

categorias de pessoas usavam os cocares de penas dos pássaros de diferentes espécies; que

categorias de pessoas tinham o direito de ostentar os diferentes padrões de labirintos; que

categorias de pessoas tocavam os diversos instrumentos de sopro. A resposta dos Juruna

era “qualquer pessoa”, “todos nós”. Quanto ao último ponto investigado eu tinha algo a

dizer-lhe, pois não queria deixar cair no vazio sua sensibilidade sociológica. Os i n s t r u -

mentos de sopro não distinguem categorias de pessoas no sentido estrito, mas distinguem

categorias ontológicas mais amplas: as trombetas pertencem aos mortos canibais e celes-

tes, as clarinetas aos “Juruna” canibais que vivem nas profundezas do rio, as flautas

transversas aos selvagens das florestas sombrias, as diversas trompas estão associadas ao

cauim — algumas para convidar para beber e/ou anunciar a aglutinação das pessoas, o u -

tras para dispersar tanto os bêbados irritados quanto as ariranhas e os pa÷¥, ogros do r i o ,

atraídos pelo cheiro de cauim —; as flautas de Pã pertencem aos mortos não-canibais, as


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diversas flautas de dois tubos, sim, muitas pertenciam aos vivos3. O “método totêmico” de

investigação de Leo forneceu outra resposta positiva. Uma correspondência entre dife-

renças sociais e diferenças culturais relativa à diferença entre homens e mulheres. Uma

diferença que não se traduz, porém, qualitativamente: os cocares femininos, feitos de

penas dos mesmos pássaros que se utilizam nos cocares masculinos, a flauta de dois tubos

das mulheres vivas e a flauta de Pã das mulheres mortas — isto é, os instrumentos m u -

sicais que não são estritamente masculinos — são menores que os exemplares masculinos.

Kudawaji, de certa forma, com sua conversa de guerra e de dentes humanos, começava a

dar-lhe a resposta que tanto procurava. Mas o Inuit, tão amante da paz quanto o jovem

Juruna da guerra, usava toda ocasião em que se tentou falar disso para enaltecer a amizade

e a generosidade para com os estrangeiros praticadas por seu povo, e que ele crê neces-

sário existir entre todos os povos. No mesmo estado de espírito, Leo havia, aliás, proposto

durante o jantar uma interpretação, tão surpreendente e pitoresca quanto difícil de

transmitir a Kadu e Kudawaji, do modo pelo qual os esquimós se autodenominam: eles se

chamam “the people” porque estão prontos a reconhecer que neste nome há lugar para

toda a humanidade!

Às duas da manhã, Kudawaji ainda tem muito a dizer; é o único que afirma não

estar cansado. De minha casa até o Hotel Intercontinental onde estão hospedados ele vê

bares abertos e lamenta não poder esticar a noite até o dia amanhecer. No dia seguinte, vão

partir em direção a Tubatuba, Leo fica na cidade ainda dois dias e promete voltar a minha

casa para examinar melhor e fotografar “the native art”. Foi somente então, depois de

cinco dias de intenso e rico contato, que soube que Kadu era o chefe dos Juruna4.

3 Uma delas pertence aos urubus. Existe ainda uma flauta, de um único tubo, destinada a uma

única música, aprendida de um estranho passarinho encontrado uma única vez numa estrada de
seringa aberta por Brancos.
4 Foi somente então também que me fez conhecer sua intenção. Tendo certo contrato com a Fun-
dação Amway, proprietária dos objetos da exposição Masters of the Artic , e amigo do curador
da exposição, um antropólogo inglês, uma das condições que impôs foi travar relações com um
artista indígena brasileiro para um intercâmbio de técnicas de escultura. Após a demonstração de
um verdadeiro manancial de ferramentas (avaliadas em aproximadamente três mil dólares), ele
acabou presenteando Kudawaji e Kadu com tudo o que não era elétrico e podia por isso ser usado
na floresta, a fim de fazer uma experiência: avaliar em que medida as novas ferramentas con-
duziriam os Juruna ao desenvolvimento de novas técnicas. Certo de que visitaria em breve a a l -
deia Juruna (e ansioso para levar Kadu e Kudawaji a Coral Harbour), esperava comparar as dife-
renças entre os objetos esculpidos em madeira com o simples facão, e os esculpidos com as so-
fisticadas ferramentas. Ele está seguro de que o material utilizado pelos Juruna, madeira, e o
material que ele mesmo utiliza, pedra sabão, exigem técnicas muito semelhantes e que os Juruna
certamente farão um bom uso do presente. Acrescento que o propósito de Leo contrariava os i n -
teresses das autoridades canadenses, que somente no Rio de Janeiro foram descobrir que os
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Receio estar querendo usar a experiência de um Inuit para falar da minha expe-

riência, corroborada por outros investigadores que se indagaram sobre o que constitui a

sociedade entre povos Tupi os mais diversos, e defrontaram-se com os mesmos temas: a

guerra, a inimizade, o Outro. Com efeito, o episódio daquela noite aproxima-nos da s o -

ciedade Juruna, tal como os Juruna a vêem por um lado, e, por outro, tal como eu a vejo,

como sendo a um só tempo temerária e terna. A cena que o jovem decodifica na gravura é

como que “o tótem e o tabu” da sociedade: cauim, guerra, canibalismo, prestígio oriundo

da guerra culminando em chefia, oposição entre homens e mulheres, embriaguez, anta-

gonismo, mediação feminina e alegria reconquistada.

Os Juruna acreditam que a vida em sociedade traz muito aborrecimento, porque a

crueldade que se deve exercer no exterior, contra os chamados Índios, gente da floresta,

volta-se fatidicamente contra eles mesmos. E assim crêem firmemente que os Juruna

antigos — as verdadeiras pessoas — eram capazes de matar e comer os parentes. Essa s u -

posição é digna de nota; de fato o canibalismo é o cerne das representações sócio-cosmo-

lógicas do grupo. De certo modo, esta tese nasce do encontro disso com a idéia íntima de que

os Juruna, que me acolheram em sua aldeia durante dezoito meses e sempre me trataram

com amizade, e mesmo com carinho, também seriam capazes de me comer. Sua crueldade

imaginária não deixou de inquietar-me e produzir vontade de domesticá-la. Esta tese é,

assim, uma etnografia de um grupo para quem a antropofagia é um signo de civilização e ao

mesmo tempo uma transgressão; um critério de classificação dos seres que povoam o

Juruna, como, salvo engano, qualquer outro “povo da floresta”, não trabalham com pedra sabão.
Pareceu-me que ainda assim pretendiam que o fizessem, e, vendo o constrangimento que isso
trouxe a Kadu, lembrei-lhes que isso seria ridículo e feriria o direito dos Juruna de se exprimi-
rem como sabem e no material que desejam. Kadu pediu e ficou à espera de um pedaço de madeira
que não chegou, e com o qual pretendia fazer a demonstração de seu trabalho em troca da de-
monstração que lhe fez Leo. Ouvi à boca pequena que os “nativos” do Canadá não destróem a na-
tureza, pois toda a sua arte se aplica aos minerais, no máximo ao marfim extraído de animais
que só se mata para comer. Pareceu-me assim que se alguém pretendia capitalizar o desejo de
Leo, ninguém estava disposto a ver seu nome ligado à derrubada de uma árvore para ser trans-
formada em banco zoomorfo por Kadu. Ficou acertado com os Juruna um novo encontro para j u -
nho do mesmo ano, por ocasião da abertura da exposição, e também da Eco-92. Leo não compare-
ceu, os Juruna sim. Contaram-me que estão usando e apreciando as novas ferramentas, e
Kudawaji, que esculpira e trouxera para mostrar ele um animal no marfim que ganhou com as
ferramentas, vendeu a peça a um branco pelo equivalente a dez dólares. A pedra calcárea em que
Leo fez a demonstração das ferramentas foi transformada numa esplêndida obra que chamou de
United Friends e cuja autoria teve a generosidade de partilhar a com Kadu. Hoje ela enriquece a
exposição “Mestres do Ártico”, cujo acervo pertence à Fundação Amway para o Meio Ambiente.
Uma imagem tosca de mulher, onde estão os sulcos feitos por Kadu, sobre uma sereia de tranças
montada num urso e na qual se apóiam todos os animais do ártico.
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cosmos e eixo da ordem sócio-cosmológica; e que, de resto, passa os seus dias envolvido

com o canibalismo figurado, transfigurado, melhor dizendo, em que consiste a cauinagem.

Para escrevê-la, convivi com os Juruna em sua aldeia por um período de dezoito meses,

distribuídos entre setembro de 1984 e agosto de 1990; além disso, desfrutei de sua

companhia nas incontáveis vezes em que os visitei em Brasília ou São Paulo e de visitas

que me fizeram no Rio de Janeiro, uma das quais se alongou por dois meses.

Os Juruna são antigos habitantes das ilhas do médio curso do rio Xingu5, que se

salvaram da última onda de genocídio que os afrontou no final do século XIX navegando mais

de mil quilômetros para montante, até o alto curso do rio, onde décadas mais tarde foi

criado o Parque Indígena do Xingu. Aí habitam uma única aldeia, Tubatuba, situada na foz do

rio Maritsawá, com uma população de 137 indivíduos (em julho de 1992) de que quase a

metade é criança. Falam uma língua Tupi da família também chamada Juruna, cujos outros

membros se concentravam no baixo e médio Xingu, e afluentes. Além do parentesco l i n -

güístico e da proximidade geográfica, estes grupos partilhavam traços culturais especí-

ficos como navegação, cerveja de mandioca (cauim), cauinagem com os mortos, guerra e

caça de cabeças com ou sem canibalismo, e o uso de saia pelas mulheres. Quase todos de-

sapareceram sem deixar nome nos registros históricos, devido a um processo de genocídio

que data do início do século XVII, a partir da fundação de Belém em 1615 e através de

Bento Maciel Parente, capitão-mor do Pará, um “homem daninho e sanguinário”,

“caçador de índios”, como o caracteriza o historiador inglês Robert Southey, e que soube

transmitir bem seu ofício e conduta aos filhos. Conhecem-se os Shipáya, estudados por

Nimuendaju, e os Juruna, estudados por Adélia Engrácia de Oliveira, mas nada se sabe dos

Arupáya, Peapáya, e toda uma plêiade de outros cujos nomes foram-me listados pelos

Juruna, como os Aoku e os Takümãd¥kay. O universo social e político do médio Xingu

abarcava também grupos que falavam línguas Tupi de outras famílias, como os Takunyapé,

da família Tupi-Guarani, que habitavam o rio, celebravam o festival dos mortos, faziam

cauinagens mas não eram canibais; e os Kuruaya, da família Munduruku, que não cele-

bravam os mortos, não eram canoeiros, habitavam o coração da floresta, mas produziam

cauim e eram canibais. As relações entre estes grupos caíam sob o duplo signo da guerra-

5 As fontes históricas relativas ao século XII costumam situá-los no baixo curso do rio. Contudo,
meus informantes se dizem descendentes de um grupo que jamais ultrapassava as cachoeiras a
jusante de Altamira. O baixo curso do rio, chamado geralmente de Amazonas (pois os Juruna não
concebem o Xingu como afluente de um rio mais importante), é apontado como território de gru-
pos inimigos, canibais e produtores de cauim, linguísticamente relacionados aos Juruna.
15

e-canibalismo e da aliança, e eles formavam, por outro lado, um conjunto que contrastava

marcadamente com grupos que habitavam a floresta e com quem as relações eram p r i n -

cipalmente de guerra, ou que, pelo menos, se essas relações não eram incompatíveis com o

comércio, não eram nem culturalmente homogêneas nem suficientemente pacíficas para

propiciar o intercasamento. Um destes grupos caçava cabeça mas ignorava (dizem os

Juruna) o cauim, exceto que extraía do palmito uma bebida fermentada feita diretamente

no tronco da palmeira, e o outro nem possuía cauim nem era canibal. Trata-se respecti-

vamente dos Arara (Caribe) e dos Kayapó (Jê)6.

Os Juruna que fugiram para o Alto Xingu são muito provavelmente os únicos r e -

manescentes da família linguística que preservam em maior grau a civilização dos grupos

canoeiros do Médio Xingu. Aí ainda se encontram Juruna, Shipáya e Kuruaya ligados por

intercasamento, com alto índice de casamentos com brancos, sem organização social e p o -

lítica consistente para ligar as famílias nucleares que vivem dispersas na reserva não

demarcada do Paquiçamba, praticando pesca e agricultura de subsistência e prestando

serviços em Altamira e redondezas que vão desde os serviços domésticos e a prostituição

até o trabalho num garimpo chamado Ilha da Fazenda, passando por pilotagem de barcos7.

De uns quinze Juruna que conheci em fevereiro de 1989 em Altamira (numa visita breve,

aliás), um único homem, Pinã, já velhinho, sabia falar Juruna e me disse carecer de

interlocutor. Eu estava com Kadu e Mareaji, dois homens do grupo que vive no Alto, e

Pinã, após um longo momento de conversa, pensando que eu fosse filha de um deles, se

disse muito surpreso quando soube que eu não era Juruna. Isto ilustra o quanto a identi-

dade Juruna, para os Juruna de Altamira, está pronta a assumir outras bases que as da

aparência física e da língua, pois Pinã, ainda que há longos anos não ouvisse sua língua,

não seria incapaz de detectar as insuficiências muito pronunciadas de meu desempenho

lingüístico. E os dois homens então lhe explicaram que, a montante, os Juruna viviam

como os antigos: isolados dos Brancos e bebendo muito cauim; e que eu, acrescentou Kadu

sob a forma de elogio e como um signo de minha distinção, era sua empregada. Com efeito, o

cauim é o elemento que persiste na memória do grupo do médio Xingu como a grande s i n -

gularidade do tempo em que seus antepassados eram “Índios”.

No contexto etnológico do Alto Xingu, os Juruna são “marginais” ao sistema social

xinguano, formado pelos grupos que habitam os formadores do rio Xingu. As relações mais

6 Estas informações são inteiramente baseadas em afirmações dos Juruna.


7 Obtive estas informações de um velho Juruna de Altamira, Fortunato, que em 1989 passou uma
temporada em Tubatuba.
16

estreitas que mantêm com os estrangeiros se dão com três outros grupos também

“marginais”, a saber, os Kayabi, os Suyá e os Txukahamãe, a todos os quais estão ligados

por aliança matrimonial, e ao último dos quais se sentem politicamente subordinados, seja

porque a chefia do Parque cabe desde 1984 (até 1995) a um homem deste grupo, seja

porque reconhecem em Raoni um chefe que tem eminência sobre os chefes dos outros

grupos.

Os Juruna dizem claramente que o cauim é o signo privilegiado de sua diferença

cultural e política, relativamente aos outros povos que habitam o Parque. Não se cansam

de dizer que virariam Índios se parassem de beber sua cerveja de mandioca e acrescentam

geralmente esta particularização: virariam Kayabi. Ora, os Kayabi, seus vizinhos mais

próximos (tanto geográfica quanto culturalmente, pois são um grupo Tupi-Guarani),

também são grandes produtores de bebidas fermentadas. No entanto, o traço relevante na

construção da identidade Juruna, não é o gênero de bebida, mas uma bebida fermentada

particular chamada “ser humano”, e que é a única a ser considerada na definição de se um

grupo tem ou não cauim. Uma cerveja de mandioca, feita a partir de determinada receita,

representa metonimicamente uma civilização partilhada outrora por múltiplos grupos e

da qual os Juruna se vêem como os últimos portadores.

O impacto da presença dos brancos na vida dos Juruna foi devastador. Seja através

de uma política de extermínio direta ou indireta, ou de uma política missionária etnocida,

seja através de uma política do contato, assistencial e alienante, a partir de 1949, que

impôs o fim da guerra, precipitou o redimensionamento da esfera de atuação da chefia

indígena, introduziu os fascinantes bens manufaturados, assistência médica, educacional e,

por incrível que pareça, agrícola, a ação dos brancos decididamente provocou o desmo-

ronamento de sistemas sócio-políticos tanto quanto de práticas religiosas. Pois o fato é

que, desde o início do contato e da política de assistência que lhe é peculiar, os Juruna não

tiveram mais sucesso na formação de xamãs.

O xamanismo — pedra angular do sistema cosmológico que vamos estudar — desa-

pareceu. Minha pesquisa tomou por isso o tom de investigação de uma tradição morta,

tanto por predisposição minha quanto por estímulo dos Juruna, cujo discurso é o de que

toda a sua cultura já acabou e que eu havia chegado tarde demais. Todos sabemos que a o b -

servação direta das práticas sócio-políticas e religiosas é um guia inestimável no estudo

do simbolismo. Tive a sorte de coletar um material rico, mas que transborda enormemente

minha observação empírica; de forma que por muito tempo permaneceu ambígua para

mim a natureza da realidade que eu dispunha para descrever e analisar. Pelo caráter de
17

minha formação intelectual, por inclinação pessoal e também pela certeza íntima de que a

cultura Juruna não está morta, fui levada desde o início a não direcionar minha pesquisa

para a reconstrução etnográfica do passado. Ao menos em parte, esta decisão está de acordo

com a natureza dos materiais etnográficos, que se aproximam muito mais do mito que da

história. Quer dizer, são muito mais recriações do passado que informações sobre o que de

fato se passava.

Tomando emprestado e adaptando uma expressão de Lyotard (“surto lírico”), eu

diria que encontrei os Juruna numa espécie de surto mítico. A pobreza relativa de suas

práticas se opõe de forma notável à riqueza de seu saber cosmológico no sentido amplo,

como se as perdas culturais sofridas nos aspectos práticos tivesse precipitado uma h i -

pertrofia do saber sobre o homem, o mundo e a sociedade, saber que se produz e se r e -

produz através de narrativas míticas. Estou cada vez mais segura de que o prodigioso saber

em que os Juruna a seu modo me introduziram é uma prova suficiente de que sua cultura

não está debilitada e muito menos agonizante; que ele se articula com o momento atual da

história do grupo e não é nem mais nem menos sistemático que o saber de um grupo que

não viveu o risco de ser destruído pelos brancos. No mais, caberia perguntar se a muito

fraca aderência do simbolismo à prática não pode ser ela própria um fato cultural.

Numa situação de genocídio do qual consegue sobreviver um bando de cinqüenta

pessoas que se mantém unido após a fuga, a primeira impressão que podemos ter, quanto

aos efeitos do genocídio sobre a organização social, é a da mera sobrevivência da organi-

zação da aldeia. Ou seja, que o sistema social mais amplo, com seus diversos níveis,

desmoronou com o desaparecimento físico dos diversos grupos que o formavam, restando

apenas a unidade política mínima — uma aldeia. Assumo a hipótese de que as coisas não se

passaram desse modo, quer dizer, a morte da sociedade não vai de par com a morte dos

homens. Mecanismos da vida social supra-aldeã tiveram de ser reavaliados para se t o r -

narem mecanismos da vida aldeã, passando por uma espécie de interiorização das relações

inter-aldeãs; de forma que o que se tem hoje é uma certa miniatura da sociedade de o u -

trora. Não penso, é claro, que uma tal miniatura retrate de forma fiel a antiga sociedade.

Tampouco penso que o conjunto das informações que pude coletar sobre a vida social do

passado possa servir para uma reconstrução adequada da sociedade desaparecida. Até onde

posso julgar, essas representações, mais do que dados brutos ou documentos que poderiam

ser utilizados numa pesquisa histórica, são modelos mais ou menos bem elaborados pelos

“historiadores” anônimos da tribo. A memória, como lembra Detienne, é irmã do esque-

cimento.
18

A confortável oposição entre mito e realidade etnográfica pareceu trazer à minha

pesquisa um ultimato; afirmá-la seria reconhecer o fracasso da pesquisa, pelo simples

fato de que (segundo me parecia) eu não dispunha de realidade etnográfica para fazer

frente aos mitos que coletei. A única realidade era a narrativa, para azar meu, que fui

leitora apaixonada de Mythologiques. Com Lévi-Strauss, tinha aprendido que o mito é uma

metalinguagem, da qual a realidade etnográfica, dada como objeto, guarda a chave. Minha

saída, ou ao menos meu conforto, era confiar urgentemente no argumento de Detienne,

segundo o qual é preciso explodir a noção de mitologia, dar-se conta de que mito é uma

“palavra-gesto”, uma teoria-política de exclusão, a qual, portanto, a Antropologia tem

por princípio questionar. Minha perspectiva teórica mais abrangente tornou-se assim

talvez um híbrido estranho, formado pela leitura de duas obras até certo ponto inconci-

liáveis: Mythologiques e L’Invention de la Mythologie. E o seu produto acabou sendo um

certo tipo de etnografia do saber, cujos defeitos talvez pudessem ter sido superados, ou ao

menos contornados, caso eu tivesse tido uma clareza maior sobre como situar-me na

fronteira entre as categorias do mito e da realidade. Não tive — é preciso que fique claro —

a ambição de romper com essas categorias.

Diante de uma contradição intelectual que me pareceu muitas vezes insuperável, a

nota de um filósofo como François Châtelet contribuiu para que eu pudesse aceitar meus

materiais como eles são. Estava eu, então, diante de uma “ideologia”, que o autor define

como
“uma configuração relativamente estável e limitada de elementos representativos
diferentes, abstratos e figurados (imagés); mas estas representações não represen-
tam nada; elas inventam o real — no sentido em que se diz que um espeleólogo
‘inventa’ uma gruta — , elas o apresentam, e, isso, sem que jamais se possa assina-
lar um referente a partir do qual esta apresentação teria lugar” (Châtelet, 1981:
312).
Assim, era-me possível recuperar uma perspectiva capaz de unificar meus materiais e

acalmar meu coração.

Esta etnografia se viu facilitada também pela familiaridade que o pensamento

Juruna apresenta com o dos grupos Tupi-Guarani, por um lado, e, por outro, pela análise

da cosmologia destes grupos realizada por Viveiros de Castro (Os Deuses Canibais). E m -

bora a língua os afaste dos Tupi-Guarani, a cultura dos Juruna é indubitavelmente T u p i -

Guarani8, sendo ao mesmo tempo suficientemente original para que um estudo etnográfico

8 Buscando maior leveza do texto, não me preocupei em fornecer ao leitor a comprovação disso;

pois, para o leigo em etnologia Tupi-Guarani, isso não seria importante, e, para o especialista, as
19

tenha um valor em si mesmo. As etnografias relativas àqueles grupos, bem como as ge-

neralizações e hipóteses propostas por Viveiros de Castro, não obstante a aparente falta de

aplicação do método comparativo nesta tese, estiveram sempre presentes em meu h o r i -

zonte, seja por assinalarem domínios que mereciam ser explorados com detalhe, seja por

elucidarem aspectos significativos da etnografia Juruna, melhor ressaltando sua o r i g i -

nalidade. Desta forma, a carência de um sistema de referências de caráter prático pôde ser

compensada com etnografias Tupi-Guarani.

Eis que há pouco eu falava em morte de uma cultura e agora invoco sua o r i g i n a l i -

dade. A primeira impressão foi-me despertada pelo campo e a segunda por esta tese, a

qual, aliás, tive de fazer duas vezes. O campo, quase sempre, não foi mais que o doce torpor

da embriaguez e da narração de mitos. Pois os Juruna são de fato tenazes produtores de

cerveja, e submetem esta produção a um regime tal que seria permitido dizer que, sem

segundas intenções, nos dias em que não estão reunidos para embriagar-se, é porque o

cauim ainda não está pronto. Sua sociedade é uma “fábrica” de bebida que deveras funciona

quase incessantemente. E, sem dúvida, são também grandes narradores. A primeira versão

desta tese ensinou-me demasiado tarde que havia mais relações entre a “fábrica” e o

discurso do que eu pude suspeitar enquanto a escrevia, relações de caráter estrutural ou

situadas no plano do pensamento inconsciente. De fato, a cerveja de mandioca que os Juruna

designam pelo termo “ser humano” é mesmo uma pessoa. Se o leitor me permite a f r a n -

queza, esse resultado da análise deixou-me suficientemente estupefata, irreversivelmente

tentada a retornar sobre os meus passos para investigar, com maior lucidez, como uma

mera receita de cauim podia infletir a civilização Tupi-Guarani ao ponto de transformá-la

numa cultura original, representada pelos Juruna.

Finalmente, eu gostaria de levantar uma questão mais ou menos difícil, difícil

inclusive de levantar. Châtelet, na introdução a Les Ideologies, por ele organizado, j u s t i -

fica a ausência de ideologias indígenas nesta obra por uma dupla especificidade das socie-

dades indígenas: porque são sociedades sem Estado e sociedades de mitos. As ideologias,

preconiza ele (que, entretanto, dá ao termo um sentido muito diferente do marxista), vão

de par com o Estado e implicam, por isso mesmo, uma certa profissionalização do saber.

Não é difícil imaginar que domesticação estes profissionais operam sobre o mesmo, seja

para enriquecê-lo em seus mais distintos níveis, seja também, por que não?, para e m -

relações ficarão mais ou menos evidentes. Tentei também mencionar o mínimo possível de biblio-
grafia ao longo do texto, mas espero não ser (demasiado) injusta, deixando de incorporar à B i -
bliografia final obras que me inspiraram das mais diferentes maneiras.
20

pobrecê-lo de diferentes modos. Confesso não entender exatamente o que Châtelet quis

dizer, uma vez que sua concepção da ideologia, acima citada, passa ao largo da noção de

Estado e não exclui de antemão a situação particular das sociedades indígenas. Contudo, sua

observação colocou-me num estado de alerta constante; em nenhum momento, creio, e s -

queci-me de que estava investigando uma sociedade de mitos e sem Estado — o que quer

dizer, em meu pensamento formado pela leitura de Clastres, contra o Estado. E esse alerta

me proibiu de buscar preencher as lacunas de meus dados com induções que os mesmos

talvez legitimamente permitissem, mas que de toda forma eram minhas. Temi a sorte de

ter que assumir o papel de pseudo-profissional do saber Juruna e operar cortes e pseudo-

totalizações.

Nossa ignorância a respeito das condições de produção do saber nas sociedades i n -

dígenas acaba nos confrontando dolorosamente com os limites do método etnográfico. O

conhecimento destas condições seria importante para esclarecer, por exemplo, em que

medida a riqueza das cosmologias indígenas não estaria menos no desenvolvimento apro-

fundado de um sistema do que na proliferação de sistemas que só são parcialmente elabo-

rados. Sistemas cujo conjunto dá uma prova radical da não-simplicidade da visão de

mundo, de sua rica diferenciação interna, sua prodigiosa capacidade de diferir. Enquanto

objeto de descrição etnográfica a cosmologia Juruna é rebelde, por não ser ela um sistema

simples e homogêneo, mas um objeto pluridimensional. No conjunto complexo de quadros

simbólicos, alguns se complementam e podem ser postos num mesmo plano; mas outros

operam com temas desenvolvidos também em um quadro situado em um outro plano, f o r -

necendo um desenvolvimento distinto e mesmo inconciliável. Uns são bem desenvolvidos,

outros o são menos e outros ainda são insignificantes. Assim, na composição etnográfica, o

pesquisador não tem apenas de apresentar os temas que têm uma relação de contiguidade,

compondo um quadro; mas também aqueles que estão numa relação paradigmática. Ele se

defronta ao longo do processo com certos tipos de lacunas sobre as quais é incapaz de de-

cidir se são lacunas da investigação empírica, ou se são intrínsecas ao objeto. Além disso,

nunca pode estar inteiramente seguro de que elas, ou parte delas, não sejam postas u n i -

camente por sua consciência. Num tal contexto, quero adiantar que esta tese, com algum

temor mas sem grande hesitação, segue a corrente de um saber que desconhece o dogma e a

versão oficial; que se mostra esquivo, desinteressado (de um modo que julgaríamos quase

irresponsável), diante de motivos que desejaríamos ver tratados com maior dedicação. Um

saber, em suma, que leva a pensar se um aspecto importante dos mitos não é conspirar ao

lado das políticas contra o Estado, e conjurar a irrupção deste no domínio do pensamento.
21

A composição desta etnografia é a seguinte. O Capítulo I apresenta a mitologia d i r e -

tamente relacionada com a cosmologia, no que ela contém a história da formação do mundo,

da criação do homem e da sociedade, e nos leva até um certo desenvolvimento do xamanismo

que visa transformar a condição humana e, por conseguinte, a ordem sócio-cosmológica. O

leitor é convidado a tomar essa história como um pano de fundo sobre o qual se inscrevem o

saber e as práticas Juruna, atuais, imaginárias ou desaparecidas. O Capítulo II faz uma

apresentação da vida social em confronto com os seres que povoam o cosmos e as potências

simbólicas a eles associadas. No Capítulo III, passa-se ao estudo da natureza humana, tal

como esta se forma ao longo do ciclo de vida sócio-biológica. O Capítulo IV, após a a p r e -

sentação da desventurosa passagem para o outro mundo, estuda o complexo de relações com

os mortos. O Capítulo V busca tomar as representações sociológicas como objeto de estudo,

preparando o que será explorado no Capítulo VI: a receita do cauim e a cauinagem. F i -

nalmente, sob o título de Conclusão, procuro fazer algumas notas sobre uma teoria Juruna

do relativismo, teoria que se afasta da nossa, de uma parte, por nada dever ao idealismo e

não se encarnar unicamente na ótica dos homens, mas na de todos os seres; e, de outra

parte, por não fundamentar, em nenhum de seus aspectos, o encerramento de cada um em

seus próprios valores. Muito pelo contrário, o relativismo Juruna exige de todos a atenção

precisa para com os Outros.

Estou consciente de que o caráter mais paradigmático que sintagmático que esta tese

acabou assumindo responde por uma impressão de nebulosidade que sentirá o leitor. Isto

talvez pudesse ser contornado caso eu tivesse desejado conscientemente fazê-la como a fiz,

pois assim teria procurado dominar melhor a técnica que empreguei. Descubro que essa

técnica tem um preço — nada menos que minha incapacidade para “concluir”. Todos s a -

bemos que o pensamento paradigmático é o menos próprio para a linguagem científica,

ávida de explicitações, explicações e conclusões. Por isso, sem dúvida, eu talvez não tenha

conseguido sair da experiência onde acabei me aventurando. E, dentro dela, talvez tenha

faltado fôlego, voz própria ou visão suficiente para discutir questões teóricas da antro-

pologia contemporânea a ela pertinentes. No entanto, se eu pudesse escrever esta tese n o -

vamente — mas isso já não posso desejar —, sua inclinação paradigmática deveria ser

reforçada, e mesmo multiplicada com desenvolvimentos paralelos e mais abrangentes, de

forma a tornar mais evidentes as ligações verticais entre suas múltiplas séries. Assim se

dissiparia a nebulosidade, e ganhariam ainda mais inteligibilidade as coisas que os Juruna

me contaram e as que eu vi.


22

CAPÍTULO I

No Caminho de Seµã÷ã
23

Esta é uma introdução ao pensamento e à vida social dos Juruna através de uma

história sagrada que resume tudo o que os Juruna querem dizer aos Brancos: a história de

Seµã÷ã, o magnífico xamã imortal, criador da humanidade e senhor do mundo. Seu nome é

um epíteto que exprime esta criação metaforicamente, conforme a explicação de um j o -

vem: “a muda de batata de (que) todos nós (brotamos)”. Seµã÷ã recebe também o título

de ÷ë÷ãm†, entre cujos significados básicos destaca-se o conceito de avô. Sua história me

foi apresentada em um conjunto articulado de mitos que denomino Epopéia de Seµã÷ã (da

qual se pode ler no Apêndice 1 a tradução quase integral de uma narração), em relatos

esparsos que não têm lugar nesta epopéia e, finalmente, em mitos “citados” pela mesma e

que compõem um conjunto articulado independente. Trata-se da variante Juruna do co-

nhecido complexo mítico da Criação e do Fim do Mundo dos povos Tupi-Guarani, cuja

singularidade mais notável é a substituição do par de gêmeos uterinos por uma tríade de

meninos que não são gêmeos, aspecto sob o qual ela se distingue inclusive da variante

Shipáya, à qual é bastante semelhante9.

Procuro fornecer aqui, ao lado da parte mais importante da história, o conjunto

(certamente parcial) das glosas ou significações que os Juruna atribuem aos mitos.

Apresento os quadros dos primórdios, da conservação e do fim do mundo, e busco recensear

em suas linhas gerais os aspectos da problemática cosmológica, tal como ela se inscreve na

história sagrada do magnífico xamã. Enquanto isso, peço ao leitor a gentileza de considerar

esta reflexão de Mário de Andrade da qual será preciso desfrutar ao longo desta tese: “Só o

presente e o futuro”, escreve ele em Pequena História da Música, “são realmente tempo. O

passado, por causa de ser fixo, imutável, é muito mais espacial que temporal”.

9 As principais fontes bibliográficas são: para os Apapocúva-Guarani ver Nimuendaju, 1987;


para os Shipáya, Nimuendaju, 1981; para os Mbyá, Cadogan, 1959; para os Tenetehara, Wagley
e Galvão, 1961; para os Kaapor, Huxley, 1980; para os Tupinambá e um estudo comparativo de
outras variantes, Métraux, 1979; para uma compilação comentada de variantes Guarani ver P .
Clastres, 1990. Para a análise e teoria dos aspectos fundamentais deste complexo mítico, Lévi-
Strauss, 1991. Para outros registros da variante Juruna ver Oliveira, 1970 e Villas-Bôas,
1984.
24

1. No caminho de Seµã÷ã

Uma imagem do mundo atual

Atribui-se ao finado Tãkü uma viagem aos confins do mundo, para a qual foi con-

vidado por um grupo de Brancos. Naquela ocasião, Seµã÷ã vivia seus últimos anos na

terra; anunciou-lhe seu plano de mudar-se para o céu tão logo concluísse o ensinamento

dos ofícios industriais aos Brancos e mostrou-lhe o grande edifício do mundo. Foi o último

contato com o magnífico xamã na ordem da realidade empírica. É provavelmente no céu que

ele vive hoje, em algum lugar que só os Brancos visitam conduzidos por poderosos aviões

ou foguetes e de que guardam segredo, pois os Brancos, depois de separarem os Juruna de

seu deus, querem-no só para si.

Credita-se assim ao finado esta descrição do mundo: o céu é uma abóboda que desce

até muito perto da terra, circunscrevendo o espaço do mundo; essa abóboda se sustenta

sobre a cabeça de dois sapos-cururus gigantes, situados no eixo leste-oeste, e sobre as

forquilhas dos galhos das árvores que se erguem em todo o redor. O sol brilha no interior.

Do lado de fora, a superfície terrestre se estende indefinidamente. Aí vivem Índios de c a -

belos ruivos ou louros, não há rio e não há luz. As trevas dominam também o espaço vazio

que se abre acima do céu.

Vendo-o do interior, como o faz Tãkü, o mundo parece-lhe uma casa. “O céu é

nosso abrigo. Todos estamos aqui dentro”. Nos confins, que o finado alcançou e percorreu

sem demora por estar acompanhado do magnífico xamã, o céu está amarrado às árvores

com cipó. Ao longo da estação das chuvas o cipó apodrece, trazendo o perigo de desmoro-

namento do céu. Temerosos e previdentes, os Brancos que vivem lá encarregam-se

anualmente, durante a estação seca, de substituir o cipó podre por cipó novo. Não há

contudo cipó naquelas lonjuras. Assim, Seµã÷ã assopra os Brancos, transforma-os em

borboletas e envia-os ao vale do Xingu para coletar cipó. E as borboletas vão aos Juruna

em abundância após o término das chuvas.

Tãkü testemunhou. São multidão os Brancos que se dedicam à renovação anual das

amarras que sustentam o mundo, todos vestidos de camisa colorida (ou de camisa branca,

segundo a versão). À medida que as borboletas vão retornando e pousando com o cipó,

Seµã÷ã assopra-as e transforma-as em Brancos. Muitos não regressam: borboletas f o -

ram mortas por crianças. Isto disse Seµã÷ã ao Juruna:


25

“Há quem não retornou! cipó novo,


É que não se sabe quem eles são. Que as borboletas amarram-no quando retor-
Agora você está vendo, você pode ver agora. nam.
Quando voltar aos seus, conte-lhes isso. Diga-lhes, pois não fosse isso o céu desmoro-
Diga-lhes que são Brancos em busca de cipó, naria”.
Que o cipó arrebenta e os Brancos trazem

Imagens do mundo divino

Seµã÷ã vivia então em “Tronco d’Água”, um lugar situado nas proximidades dos

confins do mundo e assim chamado por encontrar-se aí o desaguadouro da bacia hidrográ-

fica do Xingu — local onde, com grandes turbilhões, o rio termina e vai continuar o seu

curso nas profundezas da terra.

Tronco d’Água é um povoado onde se dissipa a diferença entre uma aldeia indígena e

uma cidade. O mato não cresce lá: o terreno é tão extraordinariamente isento de vegetação

rasteira que o povoado parece edificado sobre a rocha. É arborizado com arapipa, árvores

muito altas de que pendem grandes frutos parecidos com cabaças. As casas não são de

palmeira, mas de pedra. Seus habitantes são os Juruna que formam a parentela de Seµã÷ã

e que ele levou consigo ao abandonar o restante dos Juruna nas ilhas do Xingu. Diversas

cidades habitadas por Brancos erguem-se nas redondezas.

Neste período florescem as artes industriais, de que Seµã÷ã é o inventor e o

mestre. Ele produz os duráveis bens de ferro a partir da pedra. Em sua mão, à noite, a

pedra apresenta-se tão maleável quanto a argila. Ele corta fatias de massa de pedra nos

diferentes formatos de canivete, faca, facão, machado, ancinho, cavadeira etc., assopra-as

transformando-as em lâminas de aço. Produz motores de popa e aviões. Tãkü viu os aviões

pilotados por Brancos sobrevoarem a cidade do xamã, decolando daí em direção às cidades

vizinhas, aviões pequenos voando baixo em função de estar o seu desenvolvimento em fase

incipiente.

Vive na casa do xamã uma aranha que opera uma máquina têxtil. Os Brancos que

vivem na vizinhança, ao fim da tarde, vão levar-lhe grandes porções de algodão e na

manhã seguinte retornam para recolher os tecidos. Esta aranha, que Seµã÷ã pegou o u -

trora na superfície do rio Fresco, faz-se mulher à noite e se pensa a si mesma como

Branca. O xamã apresentou-a a Tãkü dizendo-lhe: “Minha aranha de estimação é minha

tecelã”. Ela demonstrou sua civilidade saudando o Juruna com lágrimas.

O xamã também mantém sob sua guarda um macaco-prego, originário do r i o

Fresco, que transformou num seringueiro. É um macaco humanizado que guarda a cauda
26

dentro da roupa e leva no ombro uma espingarda (ou um arco, segundo a versão) para

matar a caça que encontra (isto é: a caça que o surpreende) no caminho da seringa. Tam-

bém ele e a esposa receberam Tãkü com uma saudação lacrimosa e um aperto de mão. E ele

pediu a ela que fosse coar um café para o Juruna tomar (ou que fosse pegar uma cuia de

cauim, segundo a versão).

Na parede da casa do xamã estão pendurados diversos instrumentos de sopro feitos

de taquara. São os antigos instrumentos musicais que os filhos dele e demais parentes to-

cavam nas cauinagens que se davam com freqüência no tempo em que habitavam uma aldeia

no rio Fresco. O finado viu como aquelas flautas de Pã, clarinetas e trombetas não sofrem a

ação do tempo: estão tão verdes como se a taquara fosse recém-cortada.

Sobre o moquém acha-se o assado de carne humana que é o alimento de Seµã÷ã e

seus concidadãos. O sopro dele garante a multiplicação desta carne desde a origem dos

tempos; desde que, para vingar a morte da mãe, seus filhos, meninos ainda, massacraram

a população dos Índios-sem-ânus. O xamã ofereceu-a a Tãkü em uma refeição. “Se você

desejar, sirva-se de um pedaço.” Ao finado entretanto não agradava comer carne humana,

pois na ocasião os Juruna já haviam firmado um pacto de abandono do canibalismo, e ele

saboreou apenas a carne de anta que trazia consigo, anta que aliás foi caçada pelos Brancos

nas vésperas da chegada. “Coma então sua carne de anta! Coma o que é seu! Eu possuo

minha carne de Índio; isto é que é anta para mim!”

Uma das casas da cidade é habitada por um casal de Jaguares Negros, pais de

Seµã÷ã. São mantidos eternamente em cima de um jirau, pois se pisassem na terra, esta,

em toda sua extensão, perderia a fertilidade, a cobertura vegetal secaria, dando lugar a um

deserto. Os Jaguares salivam ininterruptamente, o xamã tem o cuidado de manter uma

bacia embaixo do jirau para aparar a saliva do pai, a fim de evitar os acidentes que o

contato da saliva com a terra provocaria entre os Juruna no rio Xingu. Uma gotinha pinga

no chão e uma tocandira ou uma aranha mordem alguém; uma pequena quantidade molha o

chão e uma pessoa sofre uma picada de cobra; uma grande quantidade molha o chão e um

Índio flecha um homem. Quando a bacia está cheia, o filho expede alguém para despejá-la à

distância.

Tãkü viu dois ou três jovenzinhos sobreviventes da raça dos Índios-sem-ânus que

servem de alimento ao casal de Jaguares. Seµã÷ã cuida de multiplicá-los com um sopro

lançado sobre algumas gotas de sangue, de modo que há sempre Índios vivos para alimentar

os pais. O Juruna ouviu o Jaguar grunhir, a dizer “Estou com fome”, e não compreendeu.

Seµã÷ã agarrou um garoto e empurrou-o até o pai. O Jaguar rasgou-o em dois e engoliu.
27

Esse Jaguar não é um jaguar. Trata-se apenas de uma visão que se impõe a todo

olhar humano ordinário. Tãkü é que o viu como um enorme jaguar negro, não discernindo

uma linguagem articulada sob os grunhidos. “Para si próprio, esse Jaguar é homem”,

dotado de uma língua conhecida apenas por seu filho.

Seµã÷ã vive em segundas núpcias com a irmã de sua primeira esposa (a mãe de

seus filhos que ele fez ser devorada pelos Índios-sem-ânus). Para o banho, o casal dispõe

de uma piscina natural de águas muito frias, límpidas e profundas — enganosamente rasas

ao olhar humano. Ele não toma banho de rio, ciente de que as águas do Xingu secariam com o

calor extraordinário de seu corpo. Ele disse ao Juruna: “Se você quiser tomar um banho,

use a piscina de meus filhos!” O finado adquiriria a juventude eterna e se tornaria divino

caso tivesse podido mergulhar nas águas de Seµã÷ã.

Ele (e também a esposa) veste-se de quatro peles, de quatro idades. A pele superior

situa-o na velhice extrema, obrigando-o a andar apoiado num bastão; as intermediárias

situam-no na maturidade, e a inferior na juventude. Tãkü viu o casal despir-se para o

banho e surpreendeu-se com o progressivo rejuvenescimento que os dois iam revelando ao

retirar as peles, puxando-as desde o couro cabeludo, na risca de seus cabelos longos. Após

tirar três peles, Seµã÷ã tornou-se um jovem, de pele sem manchas, belo, ostentando uma

pena vermelha de cauda de arara nas orelhas. Sua velhíssima esposa mostrou os seios

pequenos e duros, e seus belos brincos também, que estavam escondidos sob as peles v e -

lhas. Tãkü conteve sua admiração ao vê-los: “Oh, a velhice deles é falsa! As peles velhas

são um disfarce! Eles são jovens!”, pensou. Porém Seµã÷ã pode ouvir a linguagem s i -

lenciosa, escutou o pensamento do “neto” admirado e ficou a comentar o fato com a esposa e

a rir durante o banho.

Nas redondezas da cidade há um mirante de onde Seµã÷ã avista os Juruna. De tempo

em tempo ele sobe ao cume de um rochedo para averiguar se os Juruna ainda habitam as

ilhas do Xingu. Para Tãkü, lá do alto, sua aldeia parecia tão próxima que, já tomado de

saudade, ele teve de conter o ímpeto de saltar para reencontrar os seus sem demora. O

grande xamã disse a ele: “Quando ouço os gritos de vocês eu venho até aqui. Que gritaria

vocês fazem quando os Índios atacam vocês!” E juntos os dois viram crianças brincando na

praia e gente grande navegando no rio.

“Estes somos nós, diz Seµã÷ã, Vocês são os senhores das cabeceiras das
Os Índios não fazem isto [não navegam]. ilhas,
Estes somos nós! Quando as águas baixam vocês vão para as
Aqueles são os Índios. praias,
28

Os Índios não andam nas praias, Nós íamos para as praias quando estas
Os Índios vivem nas florestas, afloravam,
Vocês vivem nas cabeceiras das ilhas”. É disso que Seµã÷ã está falando.
Habitávamos outrora as cabeceiras das “É daqui que vejo vocês.
ilhas, Levem as crianças para a praia,
Quando vivíamos a jusante isto era possível, Deixem-me vê-las,
Lá as ilhas não são inundadas. Eu quero vê-las”.

Jaz nesse mirante a “Estrela Magna”, tida como a maior e mais longínqua estrela

do firmamento. É um bastão de madeira com a proporção de uma mão de pilão (quer dizer:

é uma estrela enorme) em cuja ponta brilha uma luz que “evoca a de uma lanterna”,

proveniente do fogo que o grande xamã aí acende e que exala fumaça. Tãkü viu sua grande

potência de iluminação atingir os habitantes do Xingu. Seµã÷ã deixou-a acesa até o r e -

gresso de Tãkü, para que ela sinalizasse seu país e Tãkü pudesse apontá-lo para os J u -

runa. Isto disse Tãkü quando todos se reuniram para ouvir sua história: “Venham ver!

Vocês vêem a Estrela Magna que Seµã÷ã acendeu? Todas as outras estrelas são próximas

quando comparadas à Estrela d’Alva”10. Quando pois a “estrela d’alva” nasce diz-se que

Seµã÷ã está procurando os Juruna para saber se eles ainda não foram dizimados.

Dois jovens têm uma compreensão distinta dessa estrela. Trata-se de uma estrela

errante de luz muito poderosa que Seµã÷ã manipulava até recentemente como uma l a n -

terna. Baseados num episódio de sua infância, eles contam como o xamã a perdeu no começo

dos anos 70. Era uma noite de cauinagem. Quando o dia estava prestes a amanhecer,

Seµã÷ã iluminou: uma luz muito brilhante surgiu a oeste e percorreu o céu, “uma grande

bola de fogo correndo como se fosse um foguete”, em direção ao leste. Os Juruna i n t e r -

romperam-se, apanharam as trombetas e começaram a tocar para que Seµã÷ã pudesse

vê-los e exclamaram: “Nós outros estamos aqui!” A estrela caiu na floresta longínqua,

provocando um grande estrondo. No dia seguinte, corroborando o caráter divino do i n c i -

dente, todos os cachorros da aldeia pereceram. Haviam latido durante o trajeto da luz, e o

xamã levara as almas deles por causa de seu barulho. E eis que Seµã÷ã talvez não ilumine

os Juruna nunca mais, pois a queda da estrela errante, muito provavelmente, quer dizer

que os Brancos que a “pilotavam” deixaram-na cair11.

10 A mesma narrativa apresenta com efeito dois nomes para a estrela, anayïb¥a rah¥h¥ e kaapa

jua, literalmente: “senhor do alvorecer”. Segundo Nimuendaju, a estrela matutina que os S h i -


paya designam kaapa djúa é o planeta Vênus (Nimuendaju, 1981:16), razão pela qual me parece
justo chamá-la de “estrela d’alva”.
11 A descrição do acontecimento parece um tanto truncada. Primeiro, entende-se que Seµã÷ã,
situado num ponto fixo, estava usando a estrela como lanterna. A queda suscita, depois, a con-
29

O céu há de cair sobre a terra

Tãkü transmitiu aos Juruna as palavras escatológicas de Seµã÷ã. Quando do alto de

seu mirante ele procurar os Juruna e não os avistar, quando as ilhas do Xingu ficarem

desertas, Seµã÷ã, contrariado com isto, retirará os sapos que apoiam o céu e este des-

moronará, soterrando tudo o que vive na terra.

“Quando me tomar a raiva eu afastarei “Venha comigo! É preciso que você veja,
os sapos, Conte a seus companheiros quando voltar:
O céu há de desmoronar...” Quando os Índios forem dizimados pelos
Todos havemos de sucumbir. Brancos,
“Quando os Juruna e os Índios desapare- O céu há de desmoronar.
cerem, Eu exterminarei os Brancos,
Quando o rio ficar vazio, Eu pegarei o sol,
Eu desmoronarei o céu”. Eu levarei o sol para cima do céu,
Quando os sapos não estiverem mais lá, Eu irei viver em cima do céu”.
Esses sapos em cuja testa o céu está E o finado contou aos Juruna:
apoiado, “Vovô desmoronará o céu quando formos
É tão-somente isto que o apoia, extintos”12.
O céu desmoronará.

A crença na destruição do mundo por vingança divina contra o extermínio dos povos i n -

dígenas funda-se em um precedente mítico e converge para uma concepção da temporali-

dade cósmica. Originalmente, o cosmos apresentava quatro andares, correspondendo, pode-

se dizer, à terra e três céus, todos os quatro réplicas uns dos outros: camadas espessas de

terra com configuração geográfica semelhante. Os andares intermediários desmoronaram,

sobrepondo-se ao inferior e tornando a terra atual mais espessa. “Este lugar em que v i -

vemos hoje é um céu desmoronado”, motivo que de resto confirma a semelhança entre o

céu e a terra. O momento atual da vida humana é concebido como o tempo em que a distância

que nos separa do céu atingiu o grau máximo impossibilitando o trânsito dos humanos no

patamar celeste por meios empíricos, tais como uma escada ou uma corda de cipó; e tam-

bém como o tempo da existência de um céu único que pode desmoronar também. Isto r e -

presentaria não só o fim de um mundo, deste mundo, como também o fim dos tempos, pois à

clusão de que somente Brancos poderiam se expor a um tal acidente. Que a segunda interpretação
não invalide a primeira e não conduza a uma reavaliação do acontecimento como um todo não é um
fato incomum entre os Juruna.
12 Numa ocasião distinta, o mesmo narrador, Kadu, apresenta de forma alternativa o que acima

aparece de modo aditivo: “Em vez de derrubar o céu, ou eu apenas pegarei o sol — não haverá
mais luz aqui, haverá escuridão — ou eu exterminarei os Brancos com um dilúvio: inundarei as
florestas e as cidades, todos os Brancos hão de morrer”.
30

nossa destruição física acrescentar-se-ia, para os sobreviventes hipotéticos, a impos-

sibilidade de existir em um mundo descoberto que se abriria ao vazio e às trevas. Digo um

mundo descoberto, mas para melhor transmitir o pensamento dos Juruna seria preciso

dizer o não-mundo, porque de fato o mundo é o que o céu circunscreve.

O mito afirma que os Juruna atuais, bem como o restante da humanidade, descen-

dem dos sobreviventes de uma destruição cósmica, desencadeada outrora em função de um

mal-entendido de Seµã÷ã. Isto teria sucedido no tempo histórico, o xamã já não vivia

entre os Juruna e os Brancos expandiam-se munidos de sua política de extermínio dos

Índios. Ao buscar os Juruna, ele encontrou desertas as ilhas do Xingu... Kadu exprime-o

bem: ele se defrontou com o nada:

Seµã÷ã enfureceu-se e derrubou o céu, Os que se encontravam alhures morreram,


Seµã÷ã queria exterminar os Brancos. Todos os Brancos,
O rio havia desaparecido. Os Brancos todos morreram,
Foi no tempo em que os Juruna foram Os Índios morreram,
extintos, Os Juruna morreram.
Foi no tempo em que os Juruna estavam à Os que estavam abrigados sob o rochedo
beira da extinção, escavaram o céu,
Quando Seµã÷ã tentou divisar o rio, Eles escavaram o céu espesso com um
Não havia mais rio, pedaço de pau,
E ele enfureceu-se e derrubou o céu, Eles emergiram quando conseguiram
E ele enfureceu-se e afastou os sapos, perfurar o céu.
O céu desmoronou, O céu era bastante espesso,
O sol apagou, Perfuraram-no com um pedaço de pau,
Tudo ficou escuro. Emergiram.
Os Juruna ficaram apreensivos, A grande maioria das gentes achava-se
Os poucos Juruna sobreviventes, alhures,
Os que moravam isolados começaram a Todos morreram,
chorar, Já não havia ninguém.
Os que se abrigaram ao pé de um grande Os sobreviventes reproduziram-se.
rochedo, Seµã÷ã disse [a Tãkü]:
Somente eles se salvaram. _Ӄ assim que hei de agir:
Muita gente se reuniu ao pé do rochedo, Quando os Índios desaparecerem,
Embaixo do rochedo, Quando os Índios desaparecerem das ilhas,
Um rochedo tão grande que o céu caiu apenas Eu desmoronarei o céu,
sobre o seu cume. Eu desmoronarei o último céu.”

Esta é a história do desmoronamento do céu do meio. O céu baixo, este desmoronou

em função tão-somente do desgaste dos cipós que o ligavam aos galhos das árvores que

contornam o mundo. Uma tempestade provocou o desmoronamento. A humanidade, Juruna,

Índios e Brancos, todos foram esmagados, à exceção de uns poucos que, como no relato

acima, encontraram proteção ao pé de um rochedo, escavaram o céu, emergiram e repo-


31

voaram o mundo. Medrosos, os Brancos temem a repetição desse cataclisma e incumbem-

se da renovação do cipó, como contribuição para a solidez e estabilidade do mundo.

Aparentemente, a destruição futura do cosmos não apresentaria um caráter i r -

remediável. Seµã÷ã velaria por nossa existência enquanto existissem à beira do Xingu os

homens aos quais se sente ligado. Mas o problema que se põe transcende talvez o orgulho

que uma cultura pode revelar de si mesma ao enunciar que com seu desaparecimento o céu

há de cair sobre a terra. Pois, sobre a hipótese de que os Brancos não dizimarão os J u -

runa, ainda prevalece a crença de que Seµã÷ã pode destruir o mundo. O orgulho, no caso de

existir algum, não exclui o medo humano correlativo à potência divina e à idade do cosmos:

“O céu está acabando, não há mais céu além deste, não há senão trevas para além do céu —

é disso que temos medo!”, observa Kadu.

2. A Epopéia de Seµã÷ã

Uma imagem do mundo mítico original

No começo o céu era baixo. Inexistem então a bacia do Xingu, os mosquitos e a noite:

a água, os piuns e a obscuridade acham-se aprisionados. Brilha no zênite um sol alheio ao

movimento. Vivem muitos seres antropomorfos portadores de marcas que prefiguram as

espécies animais. Vivem os ferozes Índios-sem-ânus e outros ogros que mal se separam de

suas insígnias prefiguradoras dos elementos de civilização, como o facão, o anzol, a c a -

vadeira e a pedra de quebrar coco. E vive um Juruna — Seµã÷ã.

No começo, ele é um solitário que deseja ter filhos e por isso decide se casar. Assim

abre-se sua epopéia. Ele vai apoderar-se do mundo, transformá-lo em um mundo mais

distinto ou bem organizado, e, depois, fatigado com a insensatez humana, mudar-se para

Tronco d’Água.

A vida familiar de um deus

Ao casar-se, Seµã÷ã faz experiências de reprodução humana. Um dia, entende que

o orifício aberto na terra pelo jato de urina da esposa é uma vagina13. Aí, sem chegar a

adotar a posição e o movimento do coito, mas vivendo subjetivamente a experiência como

13 O trecho de uma narração de Kadu (a do Apêndice 1) traduzido como “Ah, uma vagina!” vem

de uma sugestão de Mareaji. Wereade, contudo, entende que se trata de uma simples exclamação
que não pode ser traduzida assim.
32

uma relação sexual com a mulher, derrama seu sêmen e deste se ergue um menino. Não

fica satisfeito e concebe uma modalidade parcialmente distinta: derrama sêmen no orifício

úmido da terra e engravida a esposa no mesmo instante. Um menino vem ao mundo sem

demora rasgando o ventre da mãe. Estes são os filhos do xamã divino: Pobata e

P ã ñ ã r ï m a14.

Engravidada por uma penetração de que não desfruta, como me disse um jovem, e

mesmo nem se dá conta, a mulher deseja fazer amor e curva-se ao convite de outro h o -

mem; e eis que vem ao mundo um terceiro menino nascido de sua união com Gambá.

Seµã÷ã não se lembra de uma terceira relação sexual e levanta a dúvida sobre a pater-

nidade do “caçula”. Este traz as marcas de sua bastardia nas maçãs do rosto: duas man-

chinhas escuras, tal qual os gambás. Sua esposa andou entregando-se a outro homem,

Seµã÷ã sabe, é orobi, gambá, o pai do caçula Orobiata15.

Ele se ofende com o adultério. Zanga-se com os filhos, recusa-lhes todo cuidado e

carinho paterno, obriga-os a habitar outra casa e, quando a esposa tenta proteger os m e -

ninos, diz a ela que é para deixá-los no abandono. Ela se curva prontamente ao capricho do

marido, pois não era uma mulher boa. Passado algum tempo ele a mata por intermédio dos

14 Não sei qual é o primogênito e não sei que intervalo de tempo separa o nascimento dos dois,

mas me parece que um não nasce imediatamente depois do outro. Dentre as diversas narrações
que registrei, somente uma refere o nome próprio de um destes meninos. Muito excepcionalmente
se pronuncia o nome deles — “eles não gostam que se diga seu nome” — e muitas pessoas a f i r -
mam ignorá-los. Registrei também a ocorrência das pronúncias Pãñürïma e Mãñürima. A pro-
pósito, Adélia de Oliveira (1970:228-9) registrou pronúncias distintas além de nomes próprios
para Seµã÷ã e seu pai. Os meninos eram chamados de Kubatá ou Kumatá (o primogênito) e Kunha-
ryma. O nome de Seµã÷ã é, segundo a mesma autora, Araiá, e o de seu pai Duká. Eu, depois de
muito tentar obter seus nomes, apresentei aos Juruna aqueles registrados pela autora. Sobre
Duká, eles me convenceram de que houve um mal entendido: é que “jaguar negro” se diz ap¥
id¥ka, mas id¥ka (“negro”) não é um nome; sobre Araiá, embora eu tenha tentado explorar todas
as possibilidades de pronúncia que me ocorreram, foi-me afirmado que não se conhecia este
nome, e que seus antepassados não lhes ensinaram o nome próprio de Seµã÷ã. Desconfio que nin-
guém quis me revelar o nome dele. Segundo Huxley, os Urubu atribuem a um Maír o nome A r a -
yar (Senhor das araras) associado ao sol, mas habitando, como Seµã÷ã, nos limites do mundo. Os
irmãos Villas-Bôas (1984:184; 192) também afirmam que o Jaguar se chama Ducá e que o me-
nino primogênito se chama Dubata; os nomes dados aos outros dois meninos conferem com os
meus. A grande instabilidade de seus nomes é digna de nota; de resto, é um fato excepcional na
cultura do grupo.
15 Este nome é pronunciado sem temor, e todos, mesmo as crianças, o conhecem. Gostaria de a s -

sinalar aqui a ambiguidade que pesa sobre a classificação da relação “filho da esposa”. Os ho-
mens geralmente dizem que se trata de um uaha, termo que designa as relações de afinidade e
aliança. As mulheres são unânimes em afirmar que (para os homens, assim como para as mulhe-
res) se trata de um “filho”.
33

Índios-sem-ânus que habitavam a terra naqueles primórdios. Um xamã, com efeito, em

sonho, pode comunicar-se à distância; sendo magnífico, Seµã÷ã, acordado, pensa a morte

dela nos termos de uma devoração canibal pelos selvagens ferozes; simplesmente pensa e

assopra, seu desejo se realiza. Isso se passa um dia em que a mulher caminha só, à d i s -

tância.

Ele então desposa a irmã mais nova da desaparecida. Ao contrário da mais velha, ela

não se inclina aos prazeres do sexo, é uma boa esposa e boa mãe, “já que nunca engravi-

dou”16. De modo redobrado, empenha-se em dar aos filhos proteção familiar, preocupa-se

com suas andanças mundo afora, tenta substituir suas redes puídas por novas. Defronta-

se, porém, com a resistência do marido, que lhe pede para abandonar os meninos à sorte,

ela paralisa-se, porém com dor. O pai desprezou os próprios filhos.

Os meninos sabem cuidar de si. O mais velho e o do meio, “filhos diretos” do divino

xamã, são “perfeitos”, tão divinos quanto o pai. Obrigados ao isolamento, garantem seu

sustento alimentando-se de passarinhos assados na brasa. Ao longo de suas perambulações

nos arredores, sentam-se à sombra de uma árvore e vão flechando as folhas que estão

caindo. Flecham e assopram a um só tempo, transformando-as em passarinhos. O irmão

caçula imita-os; porém, sendo ele “falso”, “imperfeito”, o que cai no chão é a folha

mesmo, com a flecha cravada. É preciso que os mais velhos assoprem a flechada do pequeno

para que este veja cair uma presa.

Um dia Seµã÷ã se decide a deixá-los conhecer a sorte da mãe. Os meninos vêm

reclamando a ausência dela, indagando o pai que lhes nega toda resposta positiva e direta.

Sobretudo o caçula sofre com a ausência dela e expressa-o repetidas vezes: “Quero minha

mãe!” O pai, de sua casa, concebe este modo de comunicar-se com os filhos que ao longe

estão flechando passarinhos. Assopra uma folha graúda, transformando-a em Grande Jacu

(ou, segundo a versão, Seµã÷ã transforma-se ele próprio em Jacu); os meninos f l e -

cham-no e ele revela-lhes a verdadeira história de sua mãe: era uma mulher ÷ëü, adúl-

tera, sem-vergonha, uma libertina que foi devorada pelos Índios-sem-ânus. Os meninos

querem vingança.

Assim está preparada a trama que se desenvolve nos dois primeiros “atos” da

epopéia. Seus episódios não precisam ser resumidos aqui (ver Apêndice 1), mas é preciso

fazer alguns comentários que esclarecem a trama subjacente às fundações míticas aí e s -

16 Isto é talvez um signo de virgindade mais do que de infertilidade, pois tudo se passa como se

Seµã÷ã não fizesse sexo. Que ela nunca gerou uma criança é um sinal de que nunca o traiu.
34

tabelecidas na forma de variações, cujas articulação e unidade se desdobram e se comple-

tam passo a passo, ao longo dos intervalos ou “entrecenas”. Os Juruna interpretam a

história do seguinte modo.

Seµã÷ã parece inseguro quanto à paternidade dos filhos; ou melhor, pretende

parecer inseguro, zangado. É mesmo esta a compreensão que as crianças e sua mãe clas-

sificatória têm da conduta dele. Os mais velhos, porque são filhos “diretos” ou

“verdadeiros”, respeitam a distância que ele lhes impõe, não vão à sua casa, não lhe d i -

rigem a palavra, intimidam-se, sabem que não seriam bem vindos; respeitando a distân-

cia, demonstram ao mesmo tempo que respeitam o pai, compreendem a razão de sua zanga e

guardam sua própria dignidade. E anseiam o reconhecimento e lutam por isto. O caçula é

filho de animal, logo é desprovido de bom senso, não tem consciência de sua fraqueza, não

mede palavra, apronta-se para estar à frente dos outros, quer impor-se ao pai a todo

custo, desafia-o, é um fingidor. Os mais velhos irritam-se com ele por esse seu caráter:

“Você é bastardo! É por sua causa que papai está zangado conosco”17; mas nem por isto

poupam esforços para protegê-lo e acobertá-lo.

A verdadeira intenção de Seµã÷ã é, com efeito, fazer o mundo tal como ele é hoje.

Seµã÷ã é o verdadeiro formador do mundo. Para isto, por um lado, confirma o pequeno

bastardo em seu papel de mensageiro, usa-o para fazer chegar aos filhos a notícia do que

quer ver criado ou adquirido. Essa notícia, ele a transmite como uma proibição, lembrando

o perigo que a desobediência acarretaria, usando palavras vagas e negações. Em resumo,

conforme me disse um Juruna, ao invés de dizer cara a cara o que os filhos devem fazer,

assopra-os, e a idéia que tem em mente penetra no pensamento dos meninos. Assim, ele

atua engajando os filhos em chamados “exercícios” (de força), para, em exibição e glória

de sua própria potência e em confirmação da paternidade dos meninos mais velhos, r e a -

lizar seus objetivos. Eu acrescentaria que agir por interposição é uma atitude típica deste

xamã: ele engravida a esposa por meio da terra úmida de urina, mata-a por meio dos

Índios-sem-ânus, comunica a morte dela por meio do Jacu e, por meio dos meninos, obtém

17 Este é o registro dos irmãos Villas-Bôas: “A mãe quando estava com você na barriga juntou-

se com bicho. Você nasceu misturado” (Villas-Bôas, 1984: 186). Muito embora seja concebível a
dupla genitoridade (mistura de sêmen de homens distintos no útero materno), não obtive jamais
uma referência desta participação de Seµã÷ã na concepção do caçula. Suspeito que o uso do vocá-
bulo português “misturado” não deva neste caso ser tomado ao pé da letra. A dita mistura é uma
noção que subjaz aos casos humanos de bastardia; todo bastardo é por suposto misturado, uma
vez que ao longo de toda a gravidez o sêmen é aproveitado na formação da criança, e a probabili-
dade é que o parceiro legítimo copule com a mulher ao menos alguma vez.
35

a carne eterna dos Índios-sem-ânus, apodera-se dos instrumentos de trabalho (anzol,

facão, pedra-de-quebrar-coco), forma o rio e a alternância do dia e da noite.

Nos exercícios aos quais se entregam com segurança e com o intuito de dissipar a

zanga do pai, os meninos se expõem à potência de seres- isãm† (ogros), que estão na o r i -

gem de certos bens culturais, subjugam-nos com sua astúcia e matam-nos, num confronto

com o caçula, a quem se opõem como o divino ao humano (o animal! — diriam os Juruna),

a potência à impotência, a sabedoria à estupidez. Nestes exercícios determinam-se, pois,

em um mesmo golpe, tanto uma hierarquia dos poderes: o xamanismo divino, a ogritude e o

animal, quanto os pólos entre os quais se situam a condição humana em geral e a condição

de um homem em particular, o xamã.

A participação de Orobiata encerra-se aqui. Doravante a epopéia faz uma refe-

rência geral a “os filhos de Seµã÷ã” e não há mais duplicidade de perspectivas entre o pai

e os filhos, os quais começam a atuar em comum acordo.

À margem da epopéia, os Juruna narram dois mitos também ligados à conquista da

civilização: o do fogo e o da canoa. O do fogo, roubado do gavião (não posso identificar a

espécie, mas posso assegurar que não se trata do gavião carrapateiro, como afirmam os

Shipaya — Nimuendaju, 1981), onde Seµã÷ã revela o poder de transformar-se em c a -

dáver e pau seco, para ludibriar o gavião. O mito de origem da canoa, roubada da ariranha,

pode ser lido em uma tradução completa no Apêndice 2, a partir de uma narração esteti-

camente rica pela exploração máxima do paralelismo “cromático”, segundo a designação

de Hopkins (Jakobson, 1963: 235).

A criação da humanidade

Os filhos de Seµã÷ã pediram-lhe um dia: “Papai, aumente-nos rapidamente, nós

somos tão poucos! Queremos ser muitos, aumente-nos rapidamente!” O pai atendeu. Como

gostam de fazer as crianças, os meninos andavam sem descanso na praia, deixando suas

pegadas na areia. O magnífico xamã assoprou os rastros deles, um grande número de pes-

soas surgiu na praia, andando e conversando entre si. Os passos dos primeiros homens, ele

assoprou-os de novo, fazendo surgir outra leva de humanos, imediatamente dotados de

movimento e palavra. E ele cria uma terceira leva ou repetindo o mesmo gesto ou asso-

prando pedaços de madeira por ele mesmo cortados para este fim (segundo a versão).

O povo que se pode ver circulando nas ruas de uma metrópole fornece uma imagem

da população humana em sua aurora: os homens eram multidão. As três criações suces-
36

sivas conotam já que a humanidade está prometida à diversificação, uns permanecerão

Juruna, e os outros serão transformados em Índios e Brancos. Não se chega porém a de-

terminar de forma definitiva qual leva da criação representa este ou aquele ramo. As

narrações de Kadu, uma autoridade reconhecida pelo próprio grupo, alternam-se quanto ao

terceiro ato da criação: quando este representa a transformação da madeira, surgem os

futuros Brancos18; quando consiste em erguer pessoas dos rastros, os futuros Brancos são

representados pela primeira leva humana, deixando-se indeterminadas as outras duas.

“Outrora, nós outros não existíamos,


Seµã÷ã existia,
Nós outros não existíamos,
A mulher de Seµã÷ã existia...”

Estas palavras com que Areãdü (irmã de Kadu) abre sua narração culminam em uma cena

de criação dos Juruna como os primeiros humanos que se erguem das pegadas na areia,

quer dizer, das pegadas dos próprios meninos. Esta é a versão que compõe, por assim d i -

zer, a opinião da maioria, no que ela permite fundamentar a afirmativa de que os Juruna

são a expressão da identidade humana original e os únicos perpetuadores dela, desde que

uma parte da humanidade se desgarrou e perdeu-se na floresta, tornando-se selvagem, e

outra parte teve sua língua “invertida” para o português.

Essa indeterminação pode ampliar-se até o ponto de fazer remontar o surgimento

dos Juruna a uma era anterior à da criação pelo sopro, representando uma obra não-

narrada mas presumida do Jaguar Negro. É que a origem das mulheres põe um “problema”

cuja solução pode obscurecer a afirmativa tão amplamente difundida de que o criador dos

Juruna é o filho do Jaguar. Eu mesma suscitei o problema quando me pareceu dissonante

que mulheres pré-existissem à criação da humanidade. O narrador, Kadu, não se afeta: à

indagação sobre a origem das esposas do magnífico xamã ele diz “Havia já tanta gente

quando ele se casou...”, e prossegue. Antes da criação dos Juruna por Seµã÷ã, esclarece,

existiu uma outra humanidade (da qual não obtive nenhuma menção fora deste contexto)

que desapareceu não se sabe como e que não se confundia com os seres antropomorfos

representantes dos futuros animais. Um ouvinte sensibilizou-se com minha indagação e

apresentou-me mais tarde sua hipótese (lembrando que se tratava de uma idéia pessoal),

18 Há menos de três décadas, um Juruna assim narrou este mito para Adélia de Oliveira: “Pai de

Juruna, de todos os outros índios é Cinaã. Para fazer Juruna, Cinaã cortou pau no mato e depois
soprou, virando gente...” (Oliveira, 1970: 233). Mareaji aí reconhece o modo de narrar do f i -
nado pai de Kadu.
37

segundo a qual foi o Jaguar mesmo que criou os Juruna; por isso, quando Seµã÷ã decidiu

se casar, as mulheres já existiam.

Os Juruna não são divinos por não serem “filhos diretos” de Seµã÷ã, e assim

necessitam usar drogas especiais para se tornarem xamãs. A criação pelo sopro das p e -

gadas é concebida como um “fazer erguer-se” (tal como o exprime a proposição “Seµã÷ã

semãuahu sebe”) o que existe de forma potencial, o que está pronto para vir à tona, mas
permanece à beira da existência. Seµã÷ã não cria os homens a partir do nada, ele apenas

nos “levanta” (segundo a tradução sugerida por Mareaji para o verbo uahu) a uns como

sombra dos meninos, a outros como sombra da sombra dos meninos, a outros ainda como

sombra da sombra da sombra dos meninos. A criação pelo sopro da madeira corresponde a

uma outra concepção de criação como um “trabalhar” (tal como o exprime a proposição

Seµã÷ã sekariku sebe) que transforma uma matéria ou lhe dá uma forma nova. Acredito

que a instabilidade do mito reflita a instabilidade do pensamento Juruna diante do p r o -

blema do lugar dos Brancos. Porque, se por um lado esse pensamento busca uma h i e r a r -

quização dos três ramos da humanidade e afirma uma maior proximidade entre os Juruna e

Seµã÷ã, a potência dos Brancos parece só poder ser compreendida como um signo de que os

Brancos têm um lugar mais privilegiado na criação que o de nascidos das pegadas dos Í n -

dios, que por sua vez nascem das pegadas dos Juruna que nascem das pegadas divinas. Os

futuros Brancos então representam seja a primeira leva, seja uma gente feita de outro

modo que os Juruna. Veremos adiante que a ambivalência dos Brancos reaparecerá no

momento de batizá-los como tais.

A inscrição da diferença homem-animal (à margem da epopéia)

Os cabelos e os dentes

Os dentes humanos são grãos de milho que Seµã÷ã engastou e assoprou, ao fim de

algumas experiências. Dentes de porco, jaguar e outros animais não especificados, que são

resistentes, foram engastados na boca humana; entretanto, sendo grandes, machucavam

quando se mastigava, gemia-se de dor. “O milho é bom!”, disse o xamã. Os dentes de milho

mostraram-se pequenos, de fato o tamanho ótimo para a mastigação. “Está melhor!” E ele

deu os dentes de jaguar ao jaguar e os dentes de porco ao porco, os quais são fortes e lhes

caíram bem por serem eles os “donos”. Os grãos de milho caíram bem ao homem; entre-

tanto, sendo moles, dão dentes de má qualidade que se quebram ao longo da vida e fazem

gemer de dor quando se mastiga. Do milho também provêm os cabelos dos Juruna. Outrora,
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seus cabelos não tinham brilho, e Seµã÷ã fez-lhes novas cabeleiras com estigmas a r -

rancados de espiga de milho, assoprou-as, tornando-as brilhantes. “Os cabelos dos

Brancos devem ter sido feitos diferentemente”.

Animalidade

Conta-se que os animais eram humanos no tempo da criação dos Juruna e dos

(futuros) Brancos. O caititu era um grande cantor e a anta uma grande flautista. Aquele

celebrava a mandioca cantando, esta tocava uma flauta de Pã. E quando criou os homens

Seµã÷ã disse dos (homens-)animais: “Eles são animais! Que se transformem portanto em

animais”, e assoprou-lhes a capa da animalidade, e todos “perderam a linguagem”.

A inscrição da reprodução sexual

O pênis e a vagina

Este é um mito geralmente narrado fora da epopéia, mas colhi uma versão (por um

homem que a narrava pela primeira vez em “dueto” com a esposa) que o inclui. Houve um

tempo em que os orgãos genitais eram desligados das pessoas e se desconhecia toda afinidade

que no fundo existia entre eles. Um dia, no interior de uma casa há um pênis muito i n -

quieto e choroso. Todos interpretam o fato como fome, dão-lhe diversos alimentos para

comer, e diante de sua firme recusa de cada alimento as pessoas vão se indagando “O que

ele deseja?” Acaba-se percebendo que o choro do pênis era acompanhado de um olhar

triste em direção a uma vagina que estava num outro canto da casa. A vagina foi então l e -

vada até o pênis que se atirou para ela, penetrou-a e lá se agitou à vontade. “É isto! é isto

que ele deseja!” A Seµã÷ã o método não pareceu bom e, para aperfeiçoá-lo, pegou o pênis

e colocou-o no homem, pegou a vagina e colocou-a na mulher. Quando os dois tiveram r e -

lação sexual, Seµã÷ã constatou que assim havia de ser.

Sexo e vergonha

Em correspondência às modalidades da concepção divina de Pãñãrïma e Pobata,

existiram outrora duas formas sucessivas de reprodução humana que passavam, uma, ao

largo da cópula, a outra, ao largo do parto. Mal um homem se aproximava de uma mulher

abraçando-a, o sêmen derramava no chão e dele se erguia uma criança tão-só o homem se

afastava. Tratando-se de um menino, partia em direção ao pai, querendo colo e atenção.

“Papai, por que me abandona? Leve-me com você, papai!” Tratando-se de uma menina,

ela exigia a mãe do mesmo modo. O processo tornava o convívio social difícil para todos. O

ciúme conjugal trazia muito antagonismo, tinha-se grande vergonha da paternidade e


39

abandonava-se o filho, brigava-se com a esposa quando ela se sentia traída ou era t r a i -

dora, não se podia encarar os companheiros casados. Diante da vergonha de todos, Seµã÷ã

se propõe a transformar a condição do nascimento humano. Ele profere estas palavras:

“Envergonha-nos a criança erguer-se e vir a nós no instante mesmo em que nos apartamos da
mulher.
Deitar-se sobre a mulher,
Copular é bom!
Esta é a boa modalidade.

Um outro mal surge, no entanto. Mal um homem copulava, a criança que assim colocava

dentro do útero da mulher rasgava o seu ventre. “Isto é ruim! E o que é bom?”, indagou-

se o xamã. Até que sucedeu a uma mulher dar à luz um bebê por via vaginal. Seµã÷ã

firmou o acontecimento19.

“É isto!
Está melhor!
Está quase bom.
É bom que as mulheres engravidem,
É bom que as crianças se desenvolvam lentamente,
É bom que as crianças nasçam pela vagina
É ruim que as crianças rasguem o ventre da mãe”.

E assim foi. Desde então o sêmen de uma única ejaculação se tornou insuficiente para

formar o bebê; acumulando-o diariamente, ou quase, a barriga da mãe cresce progressi-

vamente. Os gambás preservam a primeira modalidade do parto: ao “extraí-lo” do mundo

humano, o xamã “transferiu-o” para eles. “É bom que os gambás fiquem com isto, eles

são animais!” Eis o que Areãdü opina e como ela encerra uma narração iniciada por seu

marido20:

19 Meu primeiro registro da epopéia de Seµã÷ã, narrado em português por Kadu na semana em

que cheguei ao campo pela primeira vez, registro feito de memória momentos depois, diz que
Seµã÷ã fez os seus dois filhos assim, conforme indicado neste mito; ambos os meninos nasceram
de um contato de Seµã÷ã com a mulher (e não com a terra); o primogênito nasceu rasgando o
ventre da mãe, o do meio nasceu pela vagina. Nunca mais ouvi esta versão e chego a pensar na
possibilidade de eu mesma ter confundido os dois mitos.
20 Sua narração difere nisto: restringe-se a traçar a origem do parto humano e não, também, a

origem da relação sexual, da qual me contou um outro mito que geralmente não é incluído na epo-
péia de Seµã÷ã, o mesmo resumido mais acima sobre a colocação dos orgãos sexuais nas pes-
soas.
40

Foi pior a criança ter vindo para o nosso Após a cópula, a criança seguia: mamãe!
ventre, mamãe!
Está pior. Ou um menino: papai! papai!
Primeiro era melhor. Contudo, Seµã÷ã removeu isso.
Era melhor: não havia dor. Está melhor, agora!
Como envergonhava, ele pôs em nosso É assim que vocês serão,
ventre; Vocês sentirão dor para a criança nascer.
E houve dor. Vocês sentirão dor e a criança nascerá”.
O nascimento trouxe a dor. E ele pôs a criança em nosso ventre.
“Está melhor!, ele disse,

A inscrição da guerra e da sociedade

Criada a humanidade, o dilúvio vem preparar sua diversificação com o desapare-

cimento na imensidão das águas de todos os que se distanciaram do magnífico xamã. Os f i -

lhos de Seµã÷ã, navegando para montante, estão cansados de remar e sugerem ao pai que

inverta o curso do rio. Ele atende o pedido, mas para isso provoca uma total inundação da

terra, assoprando chuvas21. Recomenda a todos que se mantenham perto dele, pelo risco de

se perderem na imensidão das águas; muitos não dão ouvidos e se distanciam, e, de fato,

desaparecem: morrem afogados. A então menos numerosa humanidade fica a navegar,

alimentando-se da mandioca que Seµã÷ã plantou em sua grande canoa e que multiplica à

noite com o sopro divino. Depois ele a leva para o alto de uma serra (ou várias, segundo a

versão) e sai navegando em busca do canal do rio. A humanidade passa a viver então da

numerosa caça que bóia na floresta inundada.

As águas secam demasiado lentamente22. Ao distinguir o canal do rio, o xamã r e -

torna à serra para buscar a humanidade, advertindo-a do perigo que representaria a

dispersão: perder-se e jamais alcançar o rio. E isto sucedeu a uma boa parte. Grupos s u -

cessivos vão seguindo a trilha do xamã e pernoitando nos acampamentos que vão sendo

deixados por ele, desde o alto da serra. É uma marcha de grande privação: não há peixe e

não há farinha. Sucede a um grupo encontrar num acampamento recém-abandonado as

vísceras de uma caça enroladas em folhas de pacova e alimentar-se disso. Foi decerto um

prêmio aí deixado para eles pelo grupo da frente. Adiante, quando os grupos se reencon-

tram, o fato é comentado e elucidado: ninguém matou caça; simplesmente tinha-se comido a

21 Um Juruna comenta deste modo este episódio: “Em que isto melhorou alguma coisa? Para nós

isto não melhorou nada. Remar continua sendo duro!”


22 O tédio de esperar as águas baixarem é tratado no único mito da epopéia que tem animais por

protagonistas (ver Terceiro Ato, O tédio dos animais).


41

placenta de um bebê nascido no dia anterior. O grupo que a comeu se sente enganado e r e -

volta-se, invocando que a placenta deveria ter sido enterrada após o parto. A partir deste

ponto seguem-se dois desenvolvimentos.

O primeiro é uma inscrição da sociologia da floresta presente numa variante de que

obtive uma única narração, feita em português pelo jovem Dumade. O grupo da criança e o

grupo que comeu a placenta travam um combate por iniciativa do segundo. Outras d i v e r -

gências vão surgindo e outros grupos vão se opondo. Irrompeu a guerra no seio da huma-

nidade. Seµã÷ã vem consolidar um tal quadro. Assopra línguas estranhas aos diversos

grupos, dá a cada um uma porção de corda de arco e diz-lhes para tomar cada um seu

próprio rumo. Assim foram criados os Índios, a parte da humanidade que foi abandonada e

se perdeu na floresta, tornando-se selvagem. Assim a humanidade pós-diluviana é frag-

mentada em pequenos bandos, enquanto os Juruna (e os futuros Brancos) continuam sua

marcha ao rio na companhia do grande xamã e lá se instalam.

O segundo desenvolvimento é uma inscrição da sociologia do rio. Os comedores de

placenta se zangam e decidem se separar, tomando a direção oposta. Não se confrontam em

guerra, porém já não são amistosos. Seµã÷ã não presencia o episódio e profere mais

tarde, à beira do rio, as palavras que confirmam o estatuto dos apartados.

“Onde estão nossos companheiros?” [indaga Seµã÷ã]


“Retornaram,
Retornaram zangados,
Comeram uma placenta e zangaram-se,
Zangaram-se e retornaram”.
“Está bem! Deixem-nos!
Eles se tornarão senhores da floresta!”

A outra parte da humanidade reencontra-se à margem do rio, cujo curso tomara o sentido

atual. É hora de separar-se em uma plêiade de grupos locais.

Seµã÷ã cortou barbante para distribuir, E nos dispersamos ao longo do rio,


Ele distribuiu porções de barbante, Um bastante grande número de grupos,
Foi cortando porções de barbante, Os diversos grupos de Índios,
Foi dando a cada um, Os diversos grupos de Juruna,
Mandando reunir os seus e separar-se, Todos os que alcançaram o rio.
Foi distribuindo e mandando que se Seµã÷ã instalou sua aldeia,
separassem. Havia muitos Juruna,
Cada um distribuiu sua porção de barbante Nós todos: os Juruna, os Kuruaya e seus
com os seus, congêneres,
Cada um partiu com os seus. Havia muitos grupos...
Nós outros todos chegamos aqui,
42

As narrações desta versão do barbante, ao qual é atribuído a função de amarrar as pernas

e que opera a dispersão dos grupos locais ao longo do rio e afluentes, podem comportar ou

não o motivo da diversidade linguística. Seµã÷ã, que neste mito é referido como se÷uraha,

“nosso mais-velho”, termo no qual está implícito o papel de autoridade política, não dá o

barbante a cada indivíduo (como o relato poderia levar a crer) mas aos i÷uraha, os v e -

lhos, que são assim elevados à chefia de um grupo pronto a se dispersar. Cada grupo se

forma em função da redistribuição entre filhos, cunhados, genros e netos (quer dizer,

daway, “o seu próprio grupo”) do barbante recebido do chefe geral. A alguns destes grupos
Seµã÷ã assoprou línguas diferentes. Como todos os velhos, o xamã também reúne sua

parentela e ergue sua aldeia.

A dispersão territorial vem solidificar a segmentação pelo parentesco e assumir

um valor de unidade política. Porém a constelação de grupos assim constituídos forma uma

sociedade política unificada pela instituição da chefia central ocupada pelo próprio

Seµã÷ã, da qual estão excluídos os grupos que foram viver em lugares tão longínquos, a

montante, que perderam todo contato com Seµã÷ã — tal é o caso dos grupos alto-xingua-

nos, referidos como “os Kamayurá e seus congêneres”.

Ambas as versões, a do barbante e a da corda do arco, culminam em um mesmo

ponto: a guerra existe, pois existem os selvagens que habitam a floresta por repúdio ao

canibalismo, ou melhor ao infra-canibalismo representado pela ingestão da placenta, a

qual é compreendida pelos Juruna como o “amigo” do bebê. Os selvagens são a contraparte

da sociedade que se estabelece no rio, e este é um tempo em que se trava guerra perma-

nentemente com os mesmos, de tal sorte que se vê operar uma redução da guerra à caça:

este é um tempo em que não havia carne e se comia apenas a carne dos Índios da floresta.

A prática da guerra como caça confere aos guerreiros o estatuto de “donos de

carne”, de forma que, como me disse um jovem, os antigos viviam como os Brancos vivem

hoje: eram obrigados a pedir carne aos seus donos. A carne de boi que se armazena em um

açougue fornece a imagem da quantidade e da inesgotabilidade da carne humana de que os

guerreiros eram “donos”. Ao mesmo tempo em que a guerra primordial é uma fonte de

poder capaz de subordinar todo mundo — os chefes dos grupos locais, inclusive, pois sua

idade avançada os impedia de guerrear —, ela permite conceber o período inaugural da vida

em sociedade como um período de grande abundância. Ou seja, ao mesmo tempo em que é

marcado pelo incômodo de depender dos outros para viver, ele é o oposto da vida difícil. A

vida de um grupo caçador é dura, enquanto a sociedade canibal que trata seu oponente como
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caça vive em abundância.

Essa idade de ouro que o canibalismo representa promete redobrar-se depois que,

em sua aldeia, Seµã÷ã começa a fabricar, em modelos rústicos ainda, machados de aço,

motores de barco e aviões. “Estes bens pertencerão a vocês. Eu ensinarei vocês a fabricá-

los”. Mas os Juruna estão destinados a se tornar caçadores, Seµã÷ã acabará abandonando a

sociedade do rio, devido à conduta de usura que será adotada pelos guerreiros.

A inscrição da caça ou a origem dos Brancos

O tema da caça se desdobra em duas linhas de representações que expressam cada

uma um aspecto particular da condição humana. Numa linha à margem da epopéia, traça-

se o pertencimento e a subordinação da caça e da flecha de caça ao homem. Na outra, que dá

à epopéia o seu desfecho, estabelece-se uma dupla divisão: entre caça e canibalismo, de um

lado, em correlação à situação de abandonados que os Juruna e demais grupos do rio vão

assumir; e, de outro lado, entre caça e domesticação de animais, em correlação ao s u r -

gimento dos Brancos.

Seµã÷ã disse nos primórdios: “Não há floresta, logo não há caça. Isto não está

bom!” E à terra limpa e contínua, pois, conforme ressalta Kadu, se não havia floresta

tampouco havia rio, ele assoprou a floresta para que existisse o habitat dos animais de

caça. E deu-a aos Juruna:

“Há floresta,
Os animais de caça vivem lá.
Há caça para vocês na floresta,
Quando desejarem comer carne de caça,
Vocês vão até a floresta,
E matem porcos, antas, mutuns,
Vocês podem matar!”

Também se deve a ele os frutos silvestres e o mel23: “É doce! Derrubem a colméia,

furem e bebam! Se vocês tiverem fome ao longo de suas andanças na floresta, comam estes

frutos maduros!” E também o pau-d’arco e as flechas de pesca e caça. A taquara com que se

faz a haste da flecha de caça, ele a pôs sob o domínio dos meninos, tornando o olhar que eles

derramam sobre o taquaral, bem como a predação que aí efetuam, um ato de fertilização.

Tendo feito a taquara nascer sobre a rocha, ele disse:

23 Um Juruna, ouvindo uma gravação desta narrativa, indagou-se: “Como fez ele o mel? Será

que tão simplesmente com o sopro?”.


44

“Isto é flecha, vejam! vê,


Isto é bom! Ela seca e morre quando não as vê.
Vocês usarão flecha para caçar. Quanto mais as crianças vão arrancar flechas
Quando lhes faltar taquara, procurem e c o r - mais o taquaral ganha viço,
tem, Pois a taquara é flecha das crianças.
Quando lhes faltar taquara, levem as crian- Quando vocês se extinguirem não haverá
ças para cortar, crianças para esbanjar flechas,
Montem flechas para elas, E o taquaral se extinguirá.”
As crianças vão destruí-las, E ele disse às crianças:
Deixem que esbanjem o quanto desejarem: “Vocês são senhores das flechas!”
A taquara brota e multiplica-se quando as

Retomemos o fio da epopéia. A idade do canibalismo é um tempo de muito trânsito

entre os grupos locais que se estabelecem no rio após o dilúvio e formam a sociedade mais

ampla chefiada por Seµã÷ã. Não é comum esses grupos trocarem mulheres uns com os

outros, e sua intensa comunicação deve-se inteiramente à procura de carne de Índio. Como

todos os demais chefes, Seµã÷ã participa da rede de circulação de carne enviando os seus

às diversas aldeias para pedir também. E um dia enviou sua neta (SD). “Tudo o que você

sabe é pedir!”, os guerreiros recebem a mocinha virgem ainda com indelicadeza e fazem

sexo com ela. Chorando, a moça conta que não lhe quiseram dar um pedaço de Índio. Não é

preciso dizer mais: o avô, por si mesmo, sabe do abuso sexual. Há muito ele já vinha se

aborrecendo com a usura de carne humana; assim, informa sua decisão aos filhos e muda-

se com os membros de sua aldeia (filhos, netos e aliados por casamento, os quais “eram

todos leais”) para a foz do rio Fresco, bem a montante da aldeia onde vivia até então.

Quando Seµã÷ã deixa o “rio principal” (o Xingu), diversos grupos choram sua

partida, e ele lhes dá de presente o arco dizendo-lhes que doravante terão de caçar para

garantir o sustento. Nem todos choram, contudo: os guerreiros com os quais Seµã÷ã se

ofendeu sentem-se ofendidos também, entendendo que um chefe que se ofende e abandona os

companheiros deve morrer.

Seµã÷ã ergue então uma aldeia no rio Fresco, onde seu grupo faz cauinagem com

freqüência e toca muita música de sopro. Ele teria se fixado aí para sempre, os diversos

grupos Juruna teriam reatado comunicação com o grupo dele, os Brancos não teriam sido

criados, caso aqueles guerreiros insatisfeitos não preparassem uma incursão para matar

o chefe que os desprezou.

Prepara-se assim uma guerra contra Seµã÷ã. Os Juruna (guerreiros, inclusive

— não relacionados com os que cometeram o estupro) não estão de acordo mas nada se pode

fazer para contrariar a vontade dos guerreiros. Diversas cenas de ataque se dão no rio, as
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canoas dos perseguidos à frente, as canoas dos perseguidores atrás, remando-se para

montante, no rio Fresco. A duração da guerra é longa (eu não saberia determinar a escala

temporal); Seµã÷ã abre acampamentos ou, segundo a versão, aldeias, pensando então que

os Juruna desistiram de ir ao seu encalço. Os guerreiros atiram quando conseguem se

aproximar, mas as flechas não penetram o corpo de ninguém, pois, a conselho de Seµã÷ã,

todos passaram argila branca no corpo. Não há revide. Seµã÷ã indaga-lhes: “Por que

vocês estão me perseguindo? Vocês recusaram carne de Índio a minha neta, foi por isso que

os deixei”. Eles não se intimidam e retomam mais tarde a perseguição. Os golpes das f l e -

chas acabam deixando dolorido o corpo dos parentes de Seµã÷ã, e seu filho, entediado,

pede-lhe que os obrigue a pôr fim ao ataque. O magnífico xamã enrijece o braço, flexiona-

o e bate no flanco, e produz-se “algo como a explosão de um raio”, porque, conforme nota

um Juruna, ele estava começando a inventar a arma de fogo. Com a explosão, as canoas dos

futuros Brancos naufragam e o ataque cessa temporariamente para ser retomado mais

tarde. Vão sustentando a perseguição e naufragando ao ouvirem a explosão de tiros da e s -

pingarda que o xamã cria durante sua fuga.

Para fixá-los definitivamente no rio Fresco, Seµã÷ã assopra-lhes a boca enquanto

estão dormindo em um acampamento, “invertendo” (no sentido de virar pelo avesso) a

língua Juruna. Assopra-lhes também uma roça de arroz, um curral de bois e um campo de

capim. Declara no dia seguinte ao grupo estupefato, que busca inutilmente comunicar-se

com o grupo dele, a sua nova condição — “Doravante é isto que vocês serão” —, e, f i -

nalmente, assopra as pegadas dos Brancos que há no chão e multiplica-os24.

Assim, segundo uma das duas versões, foram abandonados e encurralados no r i o

Fresco os Juruna que tentaram matar Seµã÷ã. Na foz do rio, próximo à chamada Ilha dos

Periquitos, antiga aldeia de Seµã÷ã, os Brancos ergueram a cidade São Félix do Xingu.

Encerra-se aqui um período da vida humana, o da convivência com o magnífico xamã. A

diversificação da humanidade foi completada, a caça vem inaugurar a vida difícil dos n a -

vegadores, como corrobora também, por contraposição, a opulência dos Brancos, seden-

tários e cuja “caça”, de tão grande porte e aprisionada, está ao alcance da mão. O sentido

24 O episódio da entrega do arco aos Juruna com sua transformação em caçadores, que acima

situei no momento da mudança para o rio Fresco, pode aparecer não lá mas aqui, dizendo-lhes
Seµã÷ã o mesmo, que doravante haveriam de caçar para viver. Esta é uma versão que só vi ser
utilizada quando se conta apenas o fragmento e que também pode ser narrada do seguinte modo:
Seµã÷ã apresentou o arco e a espingarda aos Juruna e aos Brancos; uns escolheram o arco, os
outros escolheram a espingarda; e ele fez o mesmo com o cauim e a cachaça; quem optou por
arco e cauim “virou” Juruna; quem optou pelos outros ítens “virou” Branco
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desta sucessão que vai do canibalismo à caça, ou de sua dissociação, diz respeito a uma

mudança de valores mais do que de regime alimentar. Atividade subalterna na sociedade

mítica, a caça passa para o primeiro plano da vida “histórica”, enquanto o canibalismo,

antes ordinário, assume um caráter de episódio extraordinário justificado como mera

renitência. Os antigos estavam tão acostumados a comer carne de Índio que quando matavam

Índios os comiam.

E Seµã÷ã partiu levando saudade de sua terra,


O rio Fresco era sua terra,
Ele partiu levando saudade de lá.
“Vamos deixar nossa terra!
Vamos nos mudar para longe!”

Seµã÷ã vai viver em Tronco d’Água, a aldeia-cidade que fica nos confins do mundo,

no “fim” do rio.

Segundo Wereade, que narrou para mim apenas o relato da origem dos Brancos

(invocando sempre, diante de meu desejo insistente de gravar sua narração completa, que

seu saber da epopéia é escasso), Seµã÷ã transformou a sua própria parentela em Brancos.

Assoprou-lhe a língua portuguesa a fim de impossibilitar a comunicação com os guer-

reiros Juruna (futuros Brancos, segundo a outra versão) e obrigá-los assim a i n t e r -

romper a guerra e retornar ao Xingu. Esta versão leva o narrador a extrair uma conclusão

que lhe parece dizer tudo: foi porque os Brancos não tentaram matar o chefe que recebe-

ram dele as artes industriais. Os Juruna se tornaram caçadores (ou Índios) porque tenta-

ram matar Seµã÷ã25.

25 Ambas as versões da origem dos Brancos são fundadas em transformações regulares do mito

Munduruku de origem dos porcos (Lévi-Strauss, 1962: 93), conforme se pode ver abaixo:
1. Não se conhecia senão caititu;
Não se conhecia senão carne humana;
2. Karusakaibé envia o filho até os cunhados para trocar inhambu por caititu;
Seµã÷ã envia a neta até os guerreiros para pedir carne humana;
3. A troca é recusada;
O pedido é recusado;
4. —
Os guerreiros violentam a moça em meio a muitos risos;
5. O filho retorna chorando;
A neta retorna chorando;
6. Conflito entre aliados matrimoniais;
Conflito entre aliados políticos;
7. Karusakaibé isola o acampamento dos aliados;
Seµã÷ã isola-se, com os seus;
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Se dentre os fatos estabelecidos pelo magnífico xamã houve um que não podia d u -

rar, foi a sociedade. Retomarei no capítulo V os mitos de origem da guerra e da constituição

da sociedade do rio, onde tentarei mostrar como os Juruna concebem a sociedade como uma

ordem desmoronada ou precária, com base no princípio de que toda unidade social é s u s -

cetível de ser minada por conflitos a propósito de mulheres, bem como naquele segundo o

qual os guerreiros trazem demasiados aborrecimentos à vida social.

3. A viagem de Tãkü

Transcorrida no tempo histórico (ma≈i ‘agora, hoje, recentemente, nos tempos

atuais’), a viagem mítica de Tãkü abre aos Juruna (e demais grupos indígenas) uma nova

chance de redefinição de sua condição social e econômica. Este é o mito de encerramento da

epopéia e desempenha uma função estratégica para os Juruna tanto quanto para nós. Trata-

se de relacionar aspectos da história sagrada com um testemunho ocular moderno, a r t i -

culando-o com os mitos escatológicos e a cosmografia. Tudo se passa como: não fosse a v i a -

gem do finado, nada se saberia da arquitetura do mundo, do desgaste e da renovação anual a

que está sujeito, da história do cosmos e sua destruição futura, e tampouco como é o país

divino. Apresentamos esses aspectos no início desta introdução; passemos à história.

8. Karusakaibé cerca o acampamento dos aliados com uma muralha de plumas;


Os guerreiros obrigam Seµã÷ã a deixar os acampamentos;
9. Os aliados não entendem as palavras que Karusakaibé lhes dirige;

10. Voluntariamente, os aliados copulam grunhindo;
— (4.)
11. Karusakaibé sopra fumaça de tabaco no acampamento dos aliados, que viram porcos;
a) Seµã÷ã sopra os inimigos que dormem em um acampamento e eles viram Brancos;
b) Seµã÷ã sopra seus parentes que dormem em um acampamento e eles viram Brancos;
(9.) —
a) Os Brancos tentam falar e não entendem o que os Juruna dizem;
b) Os Juruna não entendem o que dizem os parentes de Seµã÷ã;
12. Karusakaibé dá pelo de tamanduá aos porcos;
Seµã÷ã dá madeira de arco aos Juruna;
a) Seµã÷ã dá boi e capim aos Brancos;
b) Seµã÷ã dá as artes industriais aos Brancos;
13. Os porcos ficam aprisionados num curral de plumas;
a) Os Brancos são “presos” e se tornam criadores de gado;
b) os Juruna são obrigados a retornar ao Xingu;
14. Os porcos são soltos e se tornam caça;
Os Juruna, abandonados, se tornam caçadores.
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O finado parte em sua juventude com uma expedição de Brancos em direção ao país

de Seµã÷ã. Os Brancos o convidam para ir também como se faz com um amigo; no entanto,

por egoísmo, ciúme e maldade tratam de o confundir e enganar. Receavam que Seµã÷ã

entregasse o segredo dos ofícios industriais aos Juruna, ao invés de revelá-lo a eles. As-

sim, durante a viagem instam o finado a dizer isto e aquilo quando Seµã÷ã o interpelar.

“Diga-lhe: os Brancos são bons conosco!” “Diga-lhe: O rio Fresco é demasiadamente

longe!” “Diga: como você mora longe!”. Também constrangem-no todos os dias a mergu-

lhar sua rede nas águas do rio durante a navegação, para a rede puir e servir de prova

para convencer Seµã÷ã da grande distância que o separa dos Juruna. Em cada povoado onde

passam, pernoitam para alongar a viagem; e, à medida que a distância vai sendo superada

vão vestindo cada vez mais roupas, umas sobre as outras, para provocar artificialmente

um calor cada vez mais forte. Seu intuito é iludir Tãkü quanto à distância e ao calor i n -

suportável do país divino. E muitos anos se passam até a chegada.

Seµã÷ã recebe-o com carinho e alegria. “Finalmente, meu neto, você vem me

visitar!” Ao longo do diálogo que os dois travam, o Branco, embora respeitando uma boa

distância, mantém o olhar fixo sobre Tãkü. Seµã÷ã indaga: “Os Brancos são maus para

vocês?” “Vocês moram perto daqui?” E cada vez o olhar de Tãkü se cruza com o do

Branco, esse olhar o intimida, ele teme ser assassinado no regresso, e, em obediência ao

Branco, diz: “Não”, quando deveria ter dito “Sim”. O olhar fatídico é a razão do infortúnio

de não possuir os bens manufaturados e ter por isto de “viver com os Brancos”. Eis alguns

fragmentos esparsos deste diálogo.

“Os Brancos vão navegar as alturas, “Caso vocês não venham me visitar,
Era o que eu desejava para vocês, Eu vou subir para o lado posterior do céu.
Vocês desejaram me matar, Eu vou subir,
Vim-me embora.” Tão logo os Brancos aprendam a fabricar
todas as coisas,
“Se você me diz que o rio Fresco é perto, Eu mesmo não fabricarei mais,
Eu volto para lá, Quando aprenderem,
O rio Fresco é minha terra, Hão de fabricar sozinhos aviões, motores de
Lá eu bebia muito cauim, barco...
Eu volto para lá.” Hei de estar longe, lá no alto!”

“Venham passear quando vocês quiserem, “Se você me diz que os Brancos são maus
Venham me ver, para vocês,
Eu estou aqui!” Eu afasto os Brancos de lá.
Diga-me se os Brancos são maus!”

O Branco mandara Tãkü pedir bens manufaturados a Seµã÷ã. Não foi preciso.
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Seµã÷ã toma a iniciativa (como convém a um Juruna) e põe à sua disposição uma grande

riqueza. No dia da despedida, inúmeras são as caixas grandes de papelão cheias de presente;

mesmo o macaco-prego envia uma grande encomenda para os Juruna. A carga excede a

capacidade da canoa, e Tãkü tem de deixar uma grande parte dos presentes. “Suas coisas

esperarão aqui, volte para buscar. Eu corto seus cabelos e guardo para esperar você. Eu o

espero: se você morrer, seus cabelos virarão pó; se você for morto por flecha inimiga

seus cabelos se mancharão de sangue”. No meio do caminho, os Brancos tomaram todos os

bens de Tãkü.

Quando reencontrou os Juruna e contou-lhes a história, todos lamentaram: “Oh,

por que você não disse a verdade?” “Eu não sabia... Os Brancos me pediram para não dizer

que era perto”. Não fosse seu medo dos Brancos teria dito a verdade, que os Brancos são

maus; Seµã÷ã teria voltado para viver no rio Fresco, seu país tão aprazível, e teria

afastado os Brancos para lugares distantes. Introduziria as artes industriais entre os

Juruna e os outros habitantes do Xingu, e todos os Índios. Uma nova época teria sido

inaugurada: “Nós outros não viveríamos com os Brancos”.

Esta é a história de Seµã÷ã.

4. Seµã÷ã e Kumãψári

Como os Shipaya são linguística e culturalmente muito próximos dos Juruna, vale

a pena destacar aqui as diferenças mais significativas da mitologia da criação:

1) Os papéis protagonizados por Seµã÷ã pertencem a Kumãψári, nome de dois persona-

gens: pai e filho. Este último é o pai dos meninos Kuñãrima e Arußiatá e o criador da

humanidade. Seu papel na criação exprime-se nos títulos Semãwáψa e Sekárika

(equivalentes ao título Seµã÷ã). Nos mitos que narram as aventuras dos irmãos, ele é

cognominado MaruŇwa (que os Juruna conhecem como o dono das pegadas deixadas nas

pedras das cachoeiras da Volta Grande do Xingu, também atribuídas ao primogênito de

Seµã÷ã). Kumãψari, o Velho, morreu ludibriado por ariranha. Kumãψari, o Moço, foi

viver nos confins do mundo, onde o céu se encontra com a terra, e lá se acha desde muito

tempo transformado em jaguar. É com ele que vivem as almas dos grandes xamãs que em

vida mantinham comunicação com ele. Os Juruna também conhecem um Kumahari, um

xamã magnífico a quem aplicam o título de ÷ë÷ãm†, mas distinguem-no de Seµã÷ã, n e -

gando qualquer parentesco entre eles e considerando que Kumahari viveu numa época
50

muito posterior à fuga de Seµã÷ã26. Não tem assim qualquer papel nos mitos de criação e

transformação do mundo, exceto que se atribui a ele as palavras que consagraram a e x i s -

tência da lua (um Juruna incestuoso que sobe aos céus envergonhado por seu comporta-

mento) e sua função de iluminar a noite; e exceto que existe um mito onde ele (já morto)

se declara senhor dos frutos da floresta e dos arbustos ribeirinhos. Conforme explicou-me

um Juruna, isto vem de ser ele alguém que, freqüentando a parentela de Seµã÷ã, sen-

tindo-se um aliado (no sentido político) do grupo de Seµã÷ã, tem o direito de invocar a

autoria de coisas que foram feitas por Seµã÷ã. Kumahari foi morto por feitiçaria humana,

em vingança das mortes que trazia aos guerreiros; vive no céu, ocupando a posição de chefe

na sociedade celeste dos mortos canibais. Ele não se associa em nada ao jaguar, sim ao

gavião, no qual se transforma ocasionalmente.

2) São dois os irmãos na mitologia Shipaya e eles são gêmeos. Grávida de Kuñãrí ma, filho

de Kumãψari, a mulher copula com um gambá que a surpreende em sua rede, à noite, e

concebe Aruβiatá. Kumãψari não mata a esposa e ainda está casado com ela, também

transformada em jaguar. A bastardia de Aruβiatá é mencionada, mas não parece desem-

penhar o mesmo papel chave que tem entre os Juruna. O ponto de tensão essencial parece

ser a relação entre Kuñãrí ma e o pai. O relato da formação dos rios abre o conjunto de

variações em torno das aventuras dos irmãos. O pai se zanga porque os meninos quebraram

os seus potes d’água e é essa zanga que o leva a pôr os filhos em perigo. O filho do gambá

adquire as manchas na face como marcas dos dois dentes do ogro (o qual para os Juruna é

um desdentado, tendo, contudo, um ferrão). O motivo da execução dos índios sem ânus

ignora o episódio do jacu e encerra a participação dos irmãos, em lugar de inaugurá-la

como na variante Juruna.

3) A intervenção na fisiologia da reprodução humana cabe a Kuñãrí ma. No começo, as

crianças nasciam imediatamente após o coito, já chamando o pai. O primogênito estabeleceu

a condição atual da gravidez demorada; no entanto, o pênis ficava preso na vagina, como

acontece com os cães. Um dia ele cortou o pênis de um homem para separá-lo da mulher; o

pedaço de pênis expelido mais tarde foi plantado e deu origem à castanheira.

26 Minha afirmação de que os Juruna não confundem Seµã÷ã e Kumahari diverge do que afirma

Adélia de Oliveira (Oliveira, 1970: 229; passim). Alguns Juruna pronunciam Kum¥hari (com o ¥
brevíssimo).
51

4) Kumãψari deixa seu país porque os homens recusam à sua filha frutos de araçá. Ele

recorta com o bico do pássaro (um dos troféus obtidos pelos meninos) sua casa da rocha, e

esta desce o rio Iriri levando toda a família. Estabelece-se no baixo curso do rio. Os h o -

mens vão à sua procura com a intenção de matá-lo e, outra vez, ele se põe a descer o r i o

em sua casa e viaja “até o local em que o céu se encontra com a terra” (Nimuendaju,

1981: 21). O mito não é um desenvolvimento do tema da origem dos Brancos. Os Shipaya

narram uma versão simplificada (relacionada com Kumãψari) do mito Munduruku de

origem dos porcos; os Juruna simplificam-na mais ainda e com ela não pretendem e x -

plicar a origem dos porcos.

5) Em substituição à viagem de Tãkü, os Kuruaya fazem uma visita ao país de Kumãψari e

o encontram transformado em jaguar. Por meio de intérpretes, todo dia, ele pedia que os

Kuruaya dançassem e exigia-lhes um menino vivo para comer. Com isto, os visitantes

acham melhor ir embora.

6) Nos confins do mundo, eternamente sentado, babando, com a face voltada para o norte e

cercado por três mulheres que lhe aparam a baba, Kumãψari-Jaguar alimenta-se eter-

namente de carne assada de índios sem ânus. “Quando se virar e olhar para cima, então os

índios deverão morrer. A seu lado está sentada a tartaruga gigante, K u d u d u (o vocábulo

Juruna é o mesmo, mas designa o sapo-cururu) que suporta a terra no dorso. Quando

quiser destruir a terra, passará para o lado exterior do céu, e puxará o animal. Com isto,

o céu, desprovido de seu suporte, desmoronará” (Nimuendaju, 1981:22). Kumahari

também pode destruir o mundo, assoprando tempestades capazes de desmoronar o céu.

7) Nimuendaju aplica a Kumãψari o termo “demônio”, enquanto eu sou tentada a dizer que

Seµã÷ã é um deus. De fato, os Juruna vêem Kumahari de um modo bem diferente do que

vêem Seµã÷ã; Kumahari é cruel, Seµã÷ã é tão bondoso que seria um tanto absurdo

chamá-lo de demônio. (Estudaremos a figura de Kumahari no capítulo IV.)


52

5. O que nenhum deus pode (não) inscrever : a Morte,


ou a Terra sem Mal na variante Juruna

Parece curioso que todos estes mitos aos quais me referi como história sagrada

silenciem, como é evidente, quanto à vida religiosa e falem tão proficuamente da “vida

profana”: família, sexo, água, floresta, trabalho, política, riqueza... Mesmo assim acre-

dito que compõem a história sagrada dos Juruna. Aí, de alguma forma, estão “arquivados”

(como diria Mauss) seus cantos à grandeza divina e seu saber cosmológico e antropológico.

São palavras dotadas de uma densidade inigualável, uma força ameaçadora, seja para quem

as pronuncia seja para quem as entesoura, como eu. Na véspera de minha partida de T u -

batuba, Kadu, cuja voz eu havia capturado, vendo-me arrumar a bagagem, advertiu-me

dos perigos que eu corria transportando as palavras (que narram a história) de Seµã÷ã

dentro de um avião. Sugeriu-me fazer o percurso por terra, acrescentando que ele mesmo

estava decidido a não embarcar até o próximo ano, receoso de que o avião caísse devido ao

peso da narração que o acompanharia por vários meses ainda.

Devemos nos perguntar qual é a inserção de Seµã÷ã na vida religiosa. Os Juruna

fazem convergir para um mesmo deus todo o leque de potências que os povos Tupi-Guarani

distribuem em um panteão, cuja análise devemos a Métraux em seu estudo comparativo da

religião Tupinambá. “Criador”, “Civilizador”, “Transformador”, “Destruidor” — eis

Seµã÷ã. Mas em hipótese alguma esta conjunção de potências num único deus é índice de

monoteísmo — existem, conforme veremos, muitos outros ÷ ë ÷ ã m † . Tentamos seguir o

exemplo de Métraux no que ele apresenta de inestimável contribuição para uma apreensão

justa da categoria do divino no pensamento religioso Tupi, buscando apreender com rigor a

significação de uma concepção genuína do divino, com a qual tanto se inquietou. Entretanto

já não podemos concordar com seu método quase vertiginoso de redução dos “deuses”

Tupinambá, múltiplos segundo o registro de Thevet, a um único ou dois. Assim, seu estudo,

tão fecundo por um lado, culmina também, um tanto sub-repticiamente, na delimitação de

um certo “monoteísmo” primitivo. Eis como ele conclui a análise dos “deuses” (note-se

que a reticência no uso do termo não exclui a presença do conceito):


“... pode-se admitir como certo que, na religião primitiva comum a todos os mem-
bros da família túpica, existia a crença em um ente poderoso criador do universo e
pai da humanidade, o qual revelou a cultura da mandioca. Esse ‘super-homem’, após
lutar contra aqueles a que cobrira de benefícios, retirou-se para uma espécie de pa-
raíso terrestre, estância dos mortos e de alguns vivos favorecidos. Em sua quali-
dade de mago, o mencionado herói-civilizador teria criado outras figuras secundá-
53

rias, geradas por suas transformações. Esse herói-civilizador ainda destruirá


talvez o mundo, conforme já o fez anteriormente” (Métraux, 1979: 17)27.
Métraux sentiria talvez uma satisfação íntima se tivesse chegado a conhecer a versão

Juruna dos mitos que os Tupinambá do Rio de Janeiro narraram a Thevet por volta de

1550. Mas certamente ficaria intrigado com um enigma que não tenho condições de e x -

plorar neste trabalho e que é justamente o fato de que Seµã÷ã n ã o revelou aos homens a

cultura da mandioca. De fato, os Juruna parecem tão prontos a tudo atribuir a Seµã÷ã que

seríamos tentados a atribuir-lhe mesmo aquilo que eles não o fazem, como se não o fizes-

sem por mero esquecimento. Mas, com efeito, não é um elemento implícito do pensamento

Juruna que Seµã÷ã deva responder por tudo o que existe, e eu me sinto à vontade para

assinalar que a inclusão feita pelos irmãos Villas-Bôas (1984) do mito de origem da

agricultura entre as obras de Seµã÷ã não é procedente. Lévi-Strauss bem ensina que não

há versão verdadeira do mito. Mas há limites, e eu que nunca vi os Juruna se inquietarem

com a diversidade das versões, ouvi de um homem, Mareaji, que lia o livro dos irmãos

Villas-Bôas, onde podia identificar muitas vezes os autores da narração pela variante

empregada, que o relato da origem da agricultura (Villas-Bôas, 1984: 195-6) não é uma

história de Seµã÷ã. Além de seu direito natural de julgar, eu diria que Mareaji tem razão

de fato, porque o desenrolar dos episódios torna evidente que o personagem não é Seµã÷ã.

Eu não poderia me alongar detalhando as divergências; o leitor interessado no tema poderá

conferir com facilidade que o mito da agricultura ( infra : 116-18) é um onde não se vê a

atuação de Seµã÷ã. Em suma, a nota de Mareaji — “Essa história não é de Seµã÷ã!” —

indica o fato objetivo de que não se apreende Seµã÷ã no relato. O personagem do mito de

origem das plantas cultivadas, nascidas das cinzas de uma serpente e ensinadas aos homens

pelo passarinho ui˚i˚i, é um xamã de nome (ao menos supostamente) ignorado28.

Um mito que traz à cena um xamã igualmente não identificado pretende explicar

porque somos mortais. Duas pequenas ilhas separadas do continente pela erosão, e dotadas

de palavra, desceram o rio anunciando as palavras da vida, uma, e da morte, a outra. A ilha

da morte veio na dianteira. Os antigos Juruna viram-na: ao separar-se do continente ela

27 Eis a nota que lhe acrescenta Estevão Pinto, seu tradutor: “Métraux solicitou-me substituir,

todas as vêzes que fosse encontrada no texto, a palavra deus-civilizador por herói-civilizador”.
(idem: 20 n. m.)
28 A versão Shipaya dispensa por completo a participação de um xamã. Mas o nome do passari-

nho que ensina aos homens o significado de cada alimento é Kumãψari Kuri≈u. Segundo Adélia de
Oliveira, os Juruna atribuem o mito a Kumahari (que, segundo ela, é o proprio Seµã÷ã) (Oliveira,
1970: 235).
54

rodou, em seguida se imobilizou e finalmente desceu o rio clamando nossa morte: “Todos

nós havemos de morrer!” O xamã advertiu-os para não “responder”, e exortou-os a

fazê-lo à passagem da ilha da vida eterna. Mas quando a ilha encantada passou exclamando

que todos havíamos de morrer, as pessoas gritaram, como se não acreditassem, segundo

observou-me alguém, na advertência do xamã.

Ela chegou falando, “Se todos tivéssemos respondido ao


Era uma ilha, ‘Todos havemos de trocar de pele’,
Era Trocar-de-Pele que descia falando: Trocaríamos de pele na velhice,
“Todos nós havemos de trocar de pele!” Vocês seriam imortais.
— “Respondam-lhe!” Já que responderam à palavra de
Ninguém gritou contudo. Morrer-Morrer,
“Por que vocês não responderam Vocês serão mortais”.
imediatamente?” Os Juruna responderam à ilha da Morte.
E a ilha já havia passado, Caso respondéssemos à outra ilha, despren-
Nós outros os Juruna não respondemos, deríamos a pele na velhice,
As árvores responderam, Mal surgisse o sol nos recolheríamos à casa,
As cobras responderam, Com o passar do tempo sairíamos por curtos
Os lagartos “pele-lisa” responderam, instantes,
As aranhas, Para curtir devagar a pele nova,
As baratas. Até podermos andar livremente outra vez à
E quando a casca das árvores cai, surge a luz do sol.
casca nova,
E quando as cobras envelhecem, desprendem Isto não sucedeu,
a pele. Nós morremos, simplesmente.

Eis as imagens da estrutura da pele humana e do ciclo de vida que esse relato s u s -

cita. Ao longo dos anos, sucede ao homem o desenvolvimento de “quatro ou cinco” camadas

sobrepostas de pele. Caso lhe tivesse sido dada a sorte da imortalidade, quando a velhice

atingisse seu ponto máximo, ele retiraria através da risca do cabelo a pele exterior, pele

que traz do berço e sob a qual se encontra sua pele de homem de meia-idade. Retiraria em

seguida esta e também a outra, interrompendo-se na pele de juventude do fim da puber-

dade. Sua vida recomeçaria desde este ponto e um novo ciclo de envelhecimento se desen-

rolaria. E assim sucessivamente.

Retomando a questão da inserção de Seµã÷ã na vida religiosa, o primeiro elemento

a ressaltar é que os Juruna não lhe prestam nenhum culto (o que não quer dizer que a

epopéia não desperte o sentimento do divino). É preciso repetir esse lugar comum dos

estudos das chamadas religiões primitivas, por mais incômodo que seja etnografar a s s i -

nalando lacunas. É preciso, entretanto, indagar ao mesmo tempo: por que haveriam de o

fazer? O que existe de forma positiva por baixo da aparente lacuna? No quadro dos estudos

de religião dos índios sul-americanos, e dos Tupi em particular, Hélène Clastres tem o
55

mérito de abordar a lacuna do culto pelo revés. Eu gostaria de incorporar suas observa-

ções, que dão conta com muita perspicácia do que vou em seguida apresentar em relação à

religião Juruna. Trata-se, segundo escreve em seu estudo do profetismo Tupi-Guarani, de

“denunciar este a priori”:


“a idéia de que por essência, uma religião se define numa relação com divindades; de
que ela procede de uma disjunção irredutível, pondo de um lado os deuses, do outro
os homens. Mas principalmente, tal atitude negligencia o fato, contudo merecedor de
atenção, de que culto algum era prestado a uma “divindade” qualquer, para encer-
rar-se no paradoxo — que, justamente, deixava tão perplexos os primeiros
observadores — de uma religião reduzida a um saber vago e inútil, porque carente de
efeitos. Por isso, é necessário mudar radicalmente de perspectiva: sugerimos que o
que constitui a originalidade da religião tupi-guarani é que ela não se desenvolve no
“elemento” da Teologia, do saber dos deuses. (...) [Trata-se de] uma religião em
que os próprios homens se esforçam por se tornar semelhantes aos deuses, imortais
como eles” (Clastres, 1978: 30-1).
Cada nota se aplica de forma muito justa aos Juruna.

Numa cauinagem, dois homens bêbados contaram-me um dia que na ilha que eu

conhecera há pouco, “Colônia das Formigas”, sítio de uma antiga aldeia que não pude e x -

plorar como desejava frente ao temor demonstrado pelas pessoas com quem estava, jazia o

finado Tãkü. Muito comovedor: estive por um longo momento perto dos restos mortais de

um homem mítico. Eu não podia imaginar que naquela visita havia estado perto de restos

mortais ainda mais sagrados. Um xamã magnífico, um homem que tentou tornar-se

“substituto” de Seµã÷ã, o último Juruna que se engajou nesta via, está ali enterrado. Um

silêncio quase absoluto envolve sua vida. O medo de falar sobre ele é por si só um elemento

denso para se estimar sua importância. Tãkü, Areãdü depois esclareceu, morreu já não se

sabe há quanto tempo; ele não se compara àquele homem maravilhoso, pois sua viagem

transcorreu no espaço empírico, enquanto o xamã que jaz na ilha fazia viagens em sonho. O

pai de Areãdü o conheceu. Eis o que se conta.

Ele desejava xamanizar magnificamente. Eu os guardo em uma mala e trago para


Ele partia ao dormir, vocês.
Ele ia visitar Seµã÷ã ao dormir. Eu voltarei de lá com os bens que eu
E ele contou para os concidadãos: fabricar.
“Eu o vejo, lá, na aldeia dele”... Seµã÷ã me pediu isto.
Era um homem de meia-idade. ‘Você quer fabricar bens?’,
...”Tenho ido conversar com ele. Ele me perguntou.
Doravante, assim que eu me tornar um E quando eu morrer, terei morrido
magnífico xamã, minimamente;
Quando eu sonhar, voltarei com bens... Quando eu morrer, será de manhã, eu volto
facas... ao entardecer.
Eu vou trazer para vocês, E então jamais partirei outra vez,
56

Eu ficarei aqui, E nunca mais houve xamã depois que ele


Eu serei um xamã magnífico, morreu.
E vou fabricar bens para vocês. É por isto que os Juruna desejam tanto
Eu só lhes digo isto porque foi Seµã÷ã que encontrar πoririku urah¥h¥.
me pediu. “Vamos procurar!”
‘Nunca mais saí deste lugar, No passado os Juruna diziam-se:
Ao passo que você está lá; “Procuremos πoririku urah¥h¥,
Portanto fabrique bens para eles, aviões, Quando encontrarmos, nós nos tornaremos
motores de popa... magníficos xamãs!”
E tudo isto pertencerá aos Índios.
Eu fabriquei tudo para os Brancos,
Fabriquei barcos e fabriquei aviões e
fabriquei tudo.
Eu vim para cá depois que os Brancos
aprenderam a fabricar motores,
Você, permaneça lá.
Permaneça lá, você.
Fabrique bens para nossos parentes,
Para os Índios’.
E um dia ele estava adoentado... muito pouco
— não era nada.
E um Juruna esfregou resina de jatobá em
uma flecha [para fixar a ponta],
E a resina-ïsãm† [a alma da resina] fixou-
se no peito dele [o xamã].
Com isto, ele morreu,
E com isto ele não voltou.
“Não mais poderei voltar,
Eu não estaria morrendo se ninguém tivesse
manipulado resina de jatobá,
Se eu só morresse depois de muito
envelhecer,
Eu voltaria através do caminho [que conduz
a alma do morto à aldeia dos mortos],
E jamais eu morreria outra vez.
No entanto manipularam aquilo,
E eu estou prestes a partir para muito longe.
Estou de partida:
Vou encontrar-me com Seµã÷ã”.

E tendo sentido a dor no peito, um [outro]


xamã veio [assisti-lo], porém não conseguiu
extrair [a alma da resina].
Quanto a ele, ele extraía doenças com as
mãos apenas.
Uma criancinha adoecia, ele extraía,
Uma criancinha adoecia, ele extraía...
Ninguém morria, não.
57

Assim narra Kadu29. Para Wereade (que pensava ser Tãkü o xamã), ao homem que jaz

naquela ilha sucedeu o seguinte. Ele profetizava que quando morresse, ao fim do dia, caso

morresse pela manhã, ou ao amanhecer, caso morresse à tardinha, iria ressurgir e e r -

guer-se em seu próprio corpo inteiramente rejuvenescido. Após este seu regresso da

morte, ninguém jamais morreria definitivamente, pois ele, tornando-se conhecedor do

segredo de regressar aos vivos pelo mesmo caminho que conduz aos mortos, assegurava que

esse regresso seria acessível a todos. Prometia assim trazer todos os outros também à

vida. Que, por conseguinte, no dia em que ele morresse, ninguém chorasse, pois isto

prejudicaria a concretização de seu objetivo; era preciso cantar, cantar intensa e a l e -

gremente os cantos do festival dos ֕֋nay (os mortos) que, nisto, ele reanimaria.

Aconteceu-lhe porém comer da farinha que encomendara à esposa para um destes festivais;

diante de dois cestos contendo, um, a farinha destinada aos mortos, outro, a farinha o r -

dinária, a mulher se enganou. Ele caiu doente. Apesar disso, seu filho não cumpriu r e s -

guardo, saiu para caçar e matou um jaburu, extraindo-lhe ademais o bico (o qual c o r -

responde ao facão- ïsãm† de que fala a epopéia). O bico- ïsãm† (ou -alma) agravou a

doença do pai que morreu (antes do tempo, e vitimado por doença) e não pôde ressurgir

como anunciara30. E os Juruna continuam sendo mortais.

Sucede que o que se obteve de Seµã÷ã enquanto criador, civilizador, transforma-

dor, é indubitavelmente o melhor. E o que não se obteve, a imortalidade e a civilização

industrial — com todo o imaginário que há em torno da segunda representando o fim da vida

difícil: a caça, a navegação a remo —, abre no espaço do xamanismo um tipo singular de

problemática religiosa. De um lado, transpor o sonho trazendo de lá os bens industriais

oniricamente produzidos; ou seja, tornar-se capaz de resgatar para o plano da realidade

empírica os bens que no sonho existem apenas na condição de alma. De outro lado, superar

a condição humana da mortalidade, aqui e agora. As promessas desse xamanismo divino são

feitas para este lugar, a cabeceira da ilha mesmo, por assim dizer.

A história sagrada de que partimos não se deixa pois encerrar nos mitos de

Seµã÷ã. Os Juruna fazem uma distinção muito clara entre o tempo mítico (“o passado

verdadeiro”) e o tempo atual. Diferentemente de Seµã÷ã, muitos xamãs magníficos

29 O πoririko urah¥h¥ a que ele faz menção é uma árvore dita favorecer a comunicação onírica

com Seµã÷ã. As folhas de um arbusto chamado πoririko ≈ï≈i são utilizadas no desenvolvimento
de relações xamânicas com Kumahari (ver capítulo III).
30 Segundo Areãdü, esta história diz respeito a um outro xamã.
58

pertencem ao tempo atual e desenvolveram seus poderes consumindo a droga π o r i r i k u

urah¥h¥, definida como “tabaco de Seµã÷ã”. Por iniciativa deste, o xamã é estimulado a
se tornar seu “substituto”. É assim introduzido no aprendizado da confecção de f e r r a -

mentas de aço a partir da pedra, e passa a experimentar a possibilidade em trazer do sonho

estes objetos. O mais mitológico destes xamãs é conhecido pelo nome de Waisa. Conta-se

que ele chegou a transportar um canivete para este mundo, e se o irmão de sua esposa

adúltera, que ele acabou transformando em mulher-peixe, não tivesse tentado matá-lo

(em vingança do destino da irmã), Waisa já teria tido sucesso em trazer do sonho bens

mais significativos que um canivete, teria trazido um avião.

A religião Juruna é tal que a própria oposição entre monoteísmo e politeísmo se

dissipa. A expressão “religião atéia” que Hélène Clastres propõe para os Guarani parece

mais justa para o caso (Clastres, 1978: 32). O que importa antes de tudo é que não se

concretiza uma partilha irrevogável entre a condição humana e a condição divina. E se a l -

guma partilha existe, ela não é intransponível. A condição divina de fato se opõe à humana;

mas sob a condição de que os deuses sejam recrutados entre os homens. E o xamanismo não

é a via da comunicação entre os homens e os deuses sem ser ao mesmo tempo processo de

divinização do homem, ainda que esta ambição só se realize com a inelutável morte do

xamã, ainda que ele só seja consagrado ÷ë÷ãm† postumamente. A noção de divindade tal

como a exprime o conceito de ÷ë÷ãm† apresenta pois os seguintes aspectos: humanidade,

multiplicidade, potência xamânica e/ou canibalismo e, finalmente, a — bastante ambiva-

lente — imortalidade. Sucede também que nesta noção há lugar para uma hierarquização

dos deuses conforme o grau de sua potência, hierarquia na qual Seµã÷ã ocupa sem dúvida o

ponto mais alto (no pólo oposto ao das almas dos guerreiros que formam a sociedade de

Kumahari)31.

31 O termo também implica a noção de avô. Assim explica K a d u : ”÷ë÷ãm†, assim chamamos a
todos os asupase [“nossos pais”]. Seµã÷ã nos fez a nós todos. Nós outros, os Juruna, o chama-
mos sï÷ãm† [“nosso avô”], ÷ë÷ãm†. Quando são muitos, dizemos sï÷ãm†se [“nossos avós”];
também chamamos Kumahari de ÷e÷ãm†, sï÷ãm†. Assim chamamos ao avô de todos nós:
÷ë÷ãm†. Os filhos de nossas filhas nos chamam ÷ã÷ãm† [vocativo; we÷ãm† é o termo de refe-
rência]”. Nenhum outro termo de parentesco apresenta uma flexão pronominal comparável ao que
ocorre com ÷ë÷ãm†. Muito embora Kadu introduza o termo no paradigma ‘avô’, em português,
Seµã÷ã é chamado por ele de “Nosso Pai”. Indico também que segundo o meu próprio ouvido eu
g r a f a r i a ÷ ï ÷ ã m † . Porém Mareaji, que é alfabetizado e junto a quem procurei saber se o termo
apresentava a mesma raiz de÷ï÷ãnay (“as almas dos mortos”) argumentou que a grafia correta
seria ÷ë÷ãm†. Como a vogal e do Juruna é mais alta do que a do português e não me era incomum
tomá-la por i, uso a grafia sugerida por ele. Os Juruna confirmam que ÷ï÷ã, “morto”
(adjetivo), está presente no vocábulo ÷ ï ÷ ã n a y ; pareceu-me que era justo por isso que Mareaji
59

Segundo Hélène Clastres, a prática religiosa dos Tupi-Guarani se desenvolve em

torno de dois temas estreitamente ligados: a crença na destruição futura da terra e a busca

da Terra sem Mal. Esta última, a Terra sem Mal, era marcada pelo duplo signo de um além

(seja das montanhas, seja do mar) onde habitavam os deuses e as almas dos guerreiros

mortos, e de uma região no espaço da experiência real dos homens. Lugar onde não existe

morte e não é preciso cultivar a terra, pois ela produz por si mesma; onde não se faz nada

senão dançar. De acordo com a interpretação da autora, a busca da Terra sem Mal exprime

justamente uma prática religiosa “em que os próprios homens se esforçam por se tornar

semelhantes aos deuses, imortais como eles”. A esperança e a inquietação de que dão prova

os que se engajaram nessa busca indicam que a religião Tupi-Guarani enuncia “a questão

da possibilidade (ou da impossibilidade) de serem os homens seus próprios deuses”

(Clastres, 1978: 31). Em um trecho conclusivo que apreende o problema de uma forma

muito precisa, lê-se que:


“Uma lógica que recusa o princípio da contradição parece operar nesse pensamento
que, ao mesmo tempo, opõe os extremos e almeja torná-los compatíveis ou compos-
síveis. Quando pretendia explicar o prestígio dos caraís tupinambás, Frazer
invocava a crença que tomava tais personagens por heróis míticos reencarnados.
Pensamento confuso — dizia ele — e incapaz de ascender à idéia de Deus, pois as
‘divindades’ são pensadas simultaneamente com atributos humanos: a mesma
incapacidade de distinguir permite crer imortais os homens e os deuses suscetíveis
de morrer. Contudo, o pensamento guarani é perfeitamente distinto: entre a terra
má — dos homens e da ordem social — e a Terra sem Mal — universo dos deuses e da
negação da ordem — marca a oposição com muita nitidez; mas ao mesmo tempo que
distingue as duas ordens, estabelece uma mediação que tornará possível sua
conjunção; pertencer a uma não excluirá pertencer à outra: porém na sucessão, não
na simultaneidade. (…) Ou talvez fosse mais conveniente dizer que a disjunção é
apenas parcial , pois não produz relações de rigorosa exclusão recíproca entre as
duas ordens. (…) Impensável segundo o eixo da simultaneidade, a conjunção da ordem
humana e do mundo divino é pensável de acordo com o eixo do tempo. Doravante,
homens e deuses viverão separados, em suas terras respectivas, mas os primeiros
contarão com a possibilidade de reconquistar o paraíso perdido...” (Clastres, 1978:
89-90).
A etnografia Juruna não apresenta qualquer indício de movimentos de busca da

Terra sem Mal. Contudo, em suas linhas gerais, conforme vimos acima, a problemática

não lhe é desconhecida. Simplesmente, os Juruna suprimiram, por um lado, a dependência

estreita desta problemática com a crença na destruição futura da terra, e, por outro lado,

repudiava a grafia ÷ï÷ãm†. Tudo o que posso acrescentar é que ÷ë÷ë÷ã significa “ m o r r e r ” ,
“ser vulnerável à morte”, e ÷ë÷ë÷ãmã significa “não ter morrido”, “ser imortal”, “tornar-se
imortal”.
60

a viagem como mediação necessária do acesso à Terra sem Mal. Em lugar da viagem, pos-

tulam uma outra necessidade: nada menos do que a própria morte. Ou melhor, em lugar do

sair à busca de um caminho que se abriria aos vivos no espaço real, encontra-se a possi-

bilidade de regressar por um caminho sobrenatural que se abre à alma na hora da morte (e

que a aprisiona definitivamente na sociedade dos ֕֋nay, os mortos).

Numa palavra, os Juruna desenvolveram uma imagem simétrica da Terra sem Mal.

Não se trata de movimento em que os vivos tentam alcançar o país dos deuses e dos grandes

guerreiros mortos que lá adquiriram vida eterna, mas de um movimento para trazer os

mortos ao mundo dos vivos. Do projeto Tupi-Guarani de ascender à imortalidade sem

passar pela prova da morte, passa-se àquele de realizar, pela morte, uma viagem de volta

à vida terrena que então se tornaria eterna. Teremos a oportunidade de mostrar (ver c a -

pítulo IV) que mais do que abolir a morte como acontecimento da vida individual, o que se

pretende é instaurar no espaço-tempo da experiência empírica o que só é possível de se

realizar de modo parcial e figurado no espaço-tempo do ritual.

Estas linhas estavam praticamente prontas quando pude ler o belo Histoire de Lynx

que Lévi-Strauss dedica justamente à análise da epopéia de Seµã÷ã — personagem que ele

não conhece por esse cognome, mas que é filho de um (se assim posso dizer) lince tropical.

Nesse livro, a história do lince proveniente dos povos de língua Salish do noroeste da

América do Norte se comunica com a Gênese Tupinambá registrada por Thevet no Rio de

Janeiro32.

Nas palavras do autor, o livro apresenta uma teoria ameríndia sobre a impossi-

bilidade da gemelaridade, entendida (por ele) como identidade perfeita. Pretendo destacar

alguns aspectos da epopéia Juruna a partir de análise que Lévi-Strauss propõe para a

gemelaridade. Substituindo os gêmeos por uma tríade, a epopéia não chega a apresentar um

32 A epopéia Juruna é a Gênese Tupinambá narrada de uma forma muito curiosa porquanto na-

quela não aparecem, à exceção do tema da “gravidez intempestiva”, os episódios que ligam os
grupos Salish aos antigos Tupinambá. Eu não vou me alongar apontando estes aspectos, mas r e -
gistro como simples curiosidade que os Juruna possuem mitos cosmológicos de importância me-
nor que se comunicam diretamente com os outros temas dos mitos Salish estudados na mesma
obra e que estão ausentes na Gênese Tupinambá.
61

afastamento abrupto do quadro das variantes Tupi-Guarani. Em primeiro lugar, nem todas

as variantes se desenvolvem em torno de gêmeos. Os Mbyá, por exemplo, afirmam que o

filho divino fez ele mesmo um irmão caçula — aspecto que Lévi-Strauss ressalta, seguindo

o passo de Cadogan (1959), para argumentar que a eminência da gemelaridade não passa

de um fato aparente (Lévi-Strauss, 1991: 89; 92). Quer dizer, ainda quando o tema da

gemelaridade está presente, o objetivo dos mitos seria negá-la33. Os Apapocuva, por sua

vez, afirmam que os gêmeos têm um terceiro irmão, caçula, nascido do pai divino e cujo

nome é Tupã (Nimuendaju, 1987: 55). Nesta variante, é notável o enfraquecimento da

oposição entre os gêmeos, a ponto de Nimuendaju afirmar que o papel do gêmeo mais novo é

insignificante. São ambos divinos; o duplo engravidamento não é ilegítimo, pelo contrário;

e a precedência do mais velho (cuja “inquietude” lembra a do caçula bastardo Juruna)

parece apenas refletir a precedência de seu pai (Ñãderuvuçú, ‘Nosso Grande Pai’) face ao

pai do mais novo (Ñãderú Mbaecuaá, ‘Nosso Pai, o Conhecedor das Coisas’).

A variante Tupinambá, da qual a variante Juruna se aproxima em um nível não

superficial, traz à cena dois pares de irmãos, um dos quais é gêmeo (meio-irmãos ute-

rinos; um é filho de Maira-atá e o outro “de um homem chamado Sarigue [gambá]”,

Thevet, 1953: 68). Os irmãos agnáticos Tamendonare e Aricoute, filhos de Sumé, mos-

tram que a oposição entre os irmãos não é concebível apenas por meio de gêmeos (meio-

irmãos uterinos). Dedicados um à agricultura e o outro à guerra, de físico e temperamento

diferentes — um é bom, o outro é mau —, odiando-se até a morte, exibem seus poderes

divinos provocando, um, a ascensão da aldeia ao céu e, o outro, o dilúvio de origem ctônica

que inunda completamente a terra. Os dois se salvam desse dilúvio subindo, um, ao topo de

uma palmeira, e, o outro, ao topo de um genipapeiro, acompanhados das respectivas e s -

posas. Quando as águas secam, os dois irmãos repovoam a terra com sua prole; os des-

cendentes de Tamendonare, o bom, são os Tupinambá; os descendentes do belicoso Aricoute

são os inimigos perpétuos dos primeiros, os Temininós (Thevet, 1953: 43-45).

A variante Juruna suprime a distância temporal entre os dois pares de irmãos

vigente na variante Tupinambá, de modo que seus três personagens formam dois pares

simétricos e inversos de relações de fraternidade. Há primeiramente um par de irmãos

agnáticos que não são irmãos uterinos, visto que o primogênito não passa pelo ventre

33 Esta hipótese mereceria ser desenvolvida na direção de uma sugestão de Huxley, bastante

interessante, segundo a qual os gêmeos Tupi-Guarani (“figuras vivas do Eu e do Outro”) são um


modelo da relação de afinidade (Huxley, 1980: 220-221). Não posso, contudo, fazê-lo neste t r a -
balho.
62

materno como sucede ao irmão do meio. Há em segundo lugar um par de irmãos uterinos

gerados por homens distintos — o do meio e o caçula34. O par de meio-irmãos agnáticos

aproxima-se da identidade perfeita e contrapõe-se ao par de meio-irmãos uterinos. Se

não há um índice concepcional da gemelaridade, há um índice no nível da conduta. De resto,

esta é uma variante em que a própria gemelaridade parece sofrer um deslocamento do

nível do termo para o nível da relação. Assim ela se destaca como uma variante complexa:

aprofunda o enfraquecimento da oposição entre os irmãos já assinalada entre os Apapocuva

até reduzi-la a zero, e, fazendo reinar uma harmonia perfeita entre o mais-velho e o do

meio, funda sua trama no contraste entre esta relação de identidade e a desigualdade de

origem, temperamento e potência constitutiva do par de irmãos uterinos.

Eu lembrava acima que Histoire de Lynx pretende apresentar uma teoria ameríndia

sobre a impossibilidade da gemelaridade. Lévi-Strauss contrasta a pseudo-gemelaridade

ameríndia com a gemelaridade greco-romana. Castor e Polux, embora nascidos de pais

diferentes, um divino e o outro humano, atingem a identidade perfeita “partilhando-se a

imortalidade de um e a mortalidade do outro” (Lévi-Strauss, 1991: 302). Os ‘gêmeos’

ameríndios, porque nascidos de pais diferentes, um divino e o outro gambá (de acordo com

o mito Tupinambá), estão na base de uma teoria que parte da “desigualdade original”,

sustenta-a e desenvolve-a por “todos os domínios”, de forma que “a cosmologia e a s o -

ciologia indígenas devem-lhe [à “desigualdade original”] sua energia ( ressort ) interna”

(idem: 302).

Na seqüência da argumentação, não deixa de haver certa reticência do autor r e l a -

tivamente aos domínios em que a gemelaridade impossível atua efetivamente como um

princípio motor. Diante dos Tupinambá, ele circunscreve sua teoria ao campo do “sistema

de explicação do mundo” representado pela Gênese. Diante dos Bororo e dos grupos de

língua Jê, projeta-a não só sobre a cosmologia mas também sobre o sistema sociológico.

Mas o leitor percebe nas entrelinhas que Lévi-Strauss não pretende negar a existência de

um operador dualista na sociologia Tupi. O que ele chama de sistema de explicação do

mundo é definido em termos sucintos:


“um tipo de clinamen filosófico parece indispensável para que em qualquer setor do
cosmos ou da sociedade as coisas não permaneçam em seu estado inicial, e que de um
dualismo instável, apreendido em qualquer nível, resulte sempre um outro dualismo
instável” (Lévi-Strauss, 1991: 306).

34 Haveria ainda um par de não-irmãos, visto que o primogênito não é relacionado ao caçula nem

por via paterna nem materna, mas não sei até que ponto esse não-parentesco não passa de um
resíduo pouco significativo.
63

Vejamos em que consiste esse dualismo instável, tomando-o pelo viés da Gênese. Nesta,

derrama-se uma “cascata” de afastamentos diferenciais que põem a máquina do universo

em movimento . Cascata, porque “fluxo” de bipartições que vão ordenando o mundo em um

processo tal que a ordem bipartite contém uma potência essencial de desequilíbrio (ou,

enumerando as diferentes designações do autor, assimetria, desigualdade, superioridade,

hierarquia). É essa potência que faz com que um ou os dois termos da relação escorram

para um outro nível, onde uma nova ordem é fundada entre seres que permanecem prontos

a bifurcar-se de novo (idem: 90-1).

A questão que gostaria de colocar a propósito disso diz respeito aos limites internos

desse pensamento. O que poderia represar a cascata? Ou seja, em que medida essa lógica

das bipartições contínuas, articulada ao clinamen, não rege uma história necessariamente

concebida como inacabada? Os movimentos de busca da Terra sem Mal, bem como a v a -

riante mais discreta e menos dispendiosa que os Juruna propõem, sugerem que, de direito,

a lógica da cascata não está encerrada no subconjunto que se recorta artificialmente e como

que por mero hábito como “a” mitologia, “a Gênese Tupinambá” ou “a epopéia de

Seµã÷ã”. Da “mitologia” Juruna, se ainda não podemos deixar de isolar uma, como

propõe Marcel Detienne (1981), sabemos contudo que ela não tem fronteiras bem defi-

nidas, como mostram os relatos de tentativas recentes de substituição de Seµã÷ã por um

homem. Se mito existisse, seria o de que a máquina do mundo, mais precisamente o lugar

do homem nessa máquina, pode ser transformado. A fundação mítica da dissociação entre os

deuses e os homens não extirpa a divindade do humano, ao menos enquanto virtualidade. O

fato de “toda unidade encerra[r] uma dualidade” (Lévi-Strauss, 1991: 92) é pleno de

conseqüências na ordem da vida real.

As distinções mais diversas inscritas por Seµã÷ã permanecem, assim, mais ou

menos relativas, os termos por ele dissociados permanecem aproximadamente capazes de

assumir a potência de seus pares. São estas distinções — desde, por exemplo, a (potência

de) ogritude dos objetos manufaturados até a aposta Juruna de que o redimensionamento da

condição humana é possível (num futuro próximo, longínquo ou mesmo anterior), pas-

sando pela (potência de) inimizade e canibalismo dos guerreiros e pela humanidade (não

totalmente) perdida dos animais — que circunscrevem o espaço da cultura que tentarei

descrever.
64

CAPÍTULO II

O Arco e o Remo
65

Digam-nos: qual é o nome deste rio? “Este rio não tem nome. Dizemos simples-

mente iya i˚ab¥”(rio ou canal principal de uma bacia hidrográfica)35.

Digam-nos: o que quer dizer seu nome? “Nosso nome, Iuja , nós o temos porque

somos deste rio, porque nós outros fomos criados neste rio”.

Digam-nos: quais são as fronteiras de sua terra? “De Altamira ao Morená, este r i o

é nossa terra”.

Digam-nos: por que vocês caçam de canoa? “Não podemos andar a pé, não somos

Índios. Temos canoa para navegar”.

Com efeito a experiência dos Juruna define-se antes de tudo como experiência de

navegadores, de habitantes das ilhas do Xingu. Seu modo de explorar o território e sua

concepção dos seres imaginários com quem compartilham este território refletem-se um

ao outro. Neste capítulo, após algumas indicações a respeito de sua história, apresentamos

a etnografia de aspectos de sua vida material e das potências simbólicas associadas.

Por comodidade de exposição, consideremos que os seres animados se dividam em

homens, animais e espíritos. Estas três noções que são tão básicas em nossa visão de

mundo também são importantes para os Juruna, mas, é claro, seu modo de recortá-las e

compreendê-las é bem distinto. Fundamentalmente, essas noções se comunicam de um

modo tal que cada uma pode conter ou estar contida noutra. Assim, a condição humana

também caracteriza o que chamaríamos de espíritos. A condição divina (penso em todos os

seres ligados ao conceito de ÷ ë ÷ ã m ¥ ) distingue certos homens e certos animais

(concebidos como ogros). A condição animal distingue certos homens, caracterizados como

ogros e, até certo ponto, distingue também espíritos caracterizados como humanos. Além

disso, todos os animais podem se transfigurar em homens, e, dentre os humanos sobre-

naturais, existem os que são concebidos como espíritos e os que são concebidos como seres

tão empíricos quanto nós; uma parte dos que são espíritos foram um dia vivos (as almas

dos mortos), a outra parte vive desde sempre na condição de alma.

Isto parece confuso, mas confuso é apenas o encontro de nossas palavras com os

conceitos Juruna. Pretendemos dar conta da totalidade do universo distinguindo de um

golpe as três ordens do Homem, da Natureza e da Sobrenatureza. Os Juruna pretendem

35Também se aplica ao Xingu o termo iya ≈ipa; o poste mais importante de sustentação da estru-

tura da casa (aka) chama-se aka ≈ipa.


66

fazer outra coisa. Utilizando noções congêneres, seu pensamento parece proceder por

partes, inventariando cada caso e distinguindo o que é humano, divino e animal na classe

dos homens e na classe dos animais. Exemplificando, o caititu e o porco são animais, mas

não o são da mesma forma, pois o porco também é igual aos mortos, o que indubitavel-

mente o vincula ao humano. O macaco-prego é um animal, porém o macaco-da-noite é um

ser sobrenatural. Em suma, cada uma das três categorias que ordenam a visão de mundo

compreende seres marcados com valores das outras duas. Passando às classes nativas de

seres sobrenaturais (algumas das quais não serão estudadas neste capítulo)36, e

fornecendo por ora apenas seu significado básico, temos:

• ÷ï÷ãnay: as almas dos mortos; habitam em sua maioria o interior dos rochedos altos
na beira do rio;

• ÷ë÷ãm† : existem dois gêneros, um terrestre e outro celeste; o primeiro vive eter-
namente na condição de alma, o segundo tem vida eterna;

• kãneana: ogros animais e humanos, para os quais existem também as seguintes de-
signações:

• ãwã: fantasmas capazes de assumir existência empírica, dos quais existem dois
gêneros humanos e um gênero animal; um dos gêneros humanos habita o interior do

rio, os outros vivem na floresta. Para alguns ãwã animais, como o macaco-da-noite,

a glosa ‘fantasma’ é inapropriada;

• animais -ïsãm† : ogros animais que vivem no rio ou na floresta e são concebidos

como seres empíricos (embora o termo seja aplicado também ao gênero animal de

ãwã que habita a floresta). São correspondentes a espécies naturais (por exemplo: o
porco-ïsãm†) ;

• kanïã iya bubebe: animais -ïsãm† que habitam o interior do rio; as espécies
naturais correspondentes vivem na floresta.

À exceção dos ÷ ï ÷ ã n a y , todos os seres definidos por estas categorias são antropófagos.

Neste capítulo, nós estudaremos apenas os ogros por serem eles diretamente relacionados

com o rio ou a floresta, e portanto com a caça e a navegação.

36 Não sou capaz de analisar a categoria animal, mas registro que os Juruna não aplicam um

termo geral a peixes, aves, mamíferos etc. Entre as aves, algumas são definidas pelo termo ge-
ral que significa animal (kãnia); é o caso, por exemplo, de urubu, gavião e mutum, entre outras
aves de caça.
67

1. Caderno de história

As primeiras informações sobre os Juruna remontam ao século XVII e não são mais

do que fragmentos relativos a tentativas de escravização e catequização37. Em 1655 o

Padre Antônio Vieira envia dois jesuítas ao Baixo Xingu que aí fundam um aldeamento com

Juruna oriundos do rio Iriri. Os Juruna então lhes contam que haviam atacado uma

fortificação de tropas provenientes da capitania de São Vicente com o fim de capturá-los. O

aldeamento se dissolve 6 ou 7 anos mais tarde, depois de uma nova investida de caçadores

de índios no rio Iriri: a princípio amistosos, os intrusos se interessam pelas mulheres dos

Juruna, que se enfurecem e matam quase todos. Em 1667, o Padre Pero Luis Gonsalves

tenta, sem sucesso, restabelecer a missão: muito provavelmente, os Juruna receiam

vingança pelos mortos. Em 1686 sucede uma grande guerra: Gonçalo Pais de Araújo

empreende uma expedição ao Xingu auxiliado pelos Kuruaya; de sua parte, os Juruna se

aliam aos Takunyapé e atacam os invasores. Trinta canoas Juruna comemoram a vitória em

torno da cabeça de um sargento de nome Antônio Rodrigues. Em 1691-2, os jesuítas

tentam, mais uma vez sem sucesso, restabelecer a missão: os Juruna matam seis

mensageiros enviados pelos padres. 1697: epidemia de varíola. 1698-9: os jesuítas

mantêm Juruna em sua companhia. Em 1723, funda-se a missão jesuítica de Souzel, que

atrai, 13 anos mais tarde, um grupo de Juruna; os Juruna decidem matar o padre, contudo

um companheiro os denuncia, o padre foge e os Juruna também. Em torno de 1750 os

jesuítas fundam a missão Tavaquara, a jusante da atual Altamira, e atraem, além de

Juruna, índios Takunyapé. É aberta uma estrada entre Souzel e a atual Altamira: supera-

se com isto as dificuldades impostas à navegação pelo curso encachoeirado do Xingu na Volta

Grande. Os Juruna matam o padre da missão recém-inaugurada. 1763: a missão de Souzel

abriga Juruna. 1841: o Padre Torquato Antônio de Souza restabelece a missão de

Tavaquara, a montante da qual os Juruna estão habitando. 1848: esta missão não mais

existe. O Padre Torquato propiciou a primeira observação etnográfica valiosa dos Juruna,

feita em 1842, pelo príncipe Adalberto da Prússia, cujo livro de viagem ( Brasil:

Amazonas, Xingu) é uma obra prima.

37 Para uma recensão da informações históricas relativas aos Juruna ver Nimuendaju, 1948;

Adélia de Oliveira, 1970; Andrade & Viveiros de Castro, 1988. As principais fontes bibliográfi-
cas são: Southey, 1981 (especialmente cap. XIII, XXVII e XXXI); Betendorf, 1910; Adalberto,
1977; Steinen, 1942; Coudreau, 1977.
68

Segundo Adalberto, aquele Padre estimava em 2 000 a população Juruna de nove

aldeias, situadas entre Tavaquara e Piranhaquara (a montante). 1863 (apenas 20 anos

após a visita do príncipe Adalberto): os Juruna somam 250. 1884: viagem de von den

Steinen. Pouco mais de 200 Juruna habitam cinco aldeias localizadas entre Piranhaquara e

Pedra Seca (a montante). 1896: viagem de Henri Coudreau. Os Juruna vivem circuns-

tâncias que levam o viajante francês a anunciar a iminência de extinção desta tribo “ainda

primitiva”. Estima sua população em 150 e informa que ela consiste em dois grupos, além

de diversos indivíduos em condição de “propriedade” de seringalistas. Um dos grupos vive

em Praia Grande, nas proximidades da atual Altamira, em torno de um chefe chamado

Murato; o outro vive, ou erra, a grande distância da Volta Grande, a jusante da foz do r i o

Fresco até a Cachoeira Comprida. Coudreau não os conheceu senão por vestígios muito

recentes, como sua aldeia recém abandonada e seus acampamentos. Os Juruna que conheci

são certamente os descendentes desse grupo errante.

A experiência trágica que os Juruna viviam naquele final de século não os abatia a

ponto de não tentarem resistir, como mostra o registro de um ataque à propriedade dos

Miranda em 1896, feito por Coudreau.

“O ataque ocorreu no dia 30 de agosto, lá pelas sete da manhã, enquanto se tomava


o café da manhã como de costume. Os índios vieram pela floresta. Depois mais ou
menos protegidos por uma espécie de galpão um pouco afastado da sede da fazenda
crivaram a casa de flechas que se fincaram no teto e não feriram pessoa alguma. O
irmão mais velho não estava em casa; lá se encontravam somente Tristão e uma das
moças civilizadas de seu pessoal. Cada um dos dois tomou de um ‘Colt’ e abriu fogo
do melhor modo que pôde sobre os assaltantes lambuzados de urucu, e que agora,
num vozerio infernal, iam de uma a outra extremidade da borda da floresta, junto à
roça, e sempre que podiam atirando suas flechas que continuaram inofensivas. S i -
multaneamente, um outro grupo, escalando a rampa quase a prumo em cujo topo foi
construída a casa, tentava incendiar o teto de palha através de uma longa folha de
palmeira com fogo na ponta. Neste ínterim, as balas dos ‘Colts’ continuavam
zunindo. Ao fim de duas horas nesta mesma manobra, com os índios ululando e
correndo como feras pela floresta que margeia a roça, com Tristão e a moça usando
seus rifles do melhor modo que podiam, os selvagens por fim decidiram i r - s e
embora. No entanto, toda essa flecharia e essa fuzilaria não tiveram resultados tão
trágicos quanto se poderia recear: do lado dos Mirandas, ninguém foi ferido; do lado
dos índios, um (só um!) foi atingido por uma das balas dos rifles. Viram-no cair. Mas
seus camaradas o carregaram. No lugar onde o selvagem caiu, os sitiados v i r a m ,
depois da retirada dos assaltantes, um verdadeiro ‘mar de sangue’. E por fim, pouco
tempo depois, os irmãos Miranda incendiaram o galpão aberto que permitira aos
assaltantes dissimular seu ataque. Para encerrar o episódio, contaram-me que, no
dia seguinte ao do ataque, os seringeiros que desciam o rio avistaram incontáveis
urubus que fervilhavam em cima de sua rocha (…)” (Coudreau, 1977: 92).
69

1910: o seringalista Constantino Viana se estabelece a jusante de Pedra Seca e

subordina os Juruna. 1916: Nimuendaju trava conhecimento com um bando de Juruna em

Altamira, colhe uma lista de palavras e faz um levantamento de sua população: 50 pessoas,

chefiadas por Máma. No mesmo período, a população do grupo que vive na Volta Grande é

estimada em 15 pessoas. Segundo Nimuendaju, naquele ano os Juruna acabavam de aban-

donar a Pedra Seca para se estabelecer bem a montante, na Cachoeira Von Martius. Numa

carta de 1920 (publicada recentemente), endereçada ao Diretor do Serviço de Proteção

aos Índios, ele resume brevemente o estado de “alguns restos de tribos [Assurini, Arara,

Juruna, Shipaya e Kuruaya], míseros despojos que a onda dos caucheiros não afogou no seu

avanço brutal”, registrando um fato que, apesar de recente, os Juruna nunca menciona-

ram para mim: a experiência junto aos Brancos no rio Fresco (onde se acredita que os

Brancos foram criados):

“Os Juruna , antigamente a tribo mais importante do Xingu, sofreu todo o peso do
avanço dos seringueiros. Especialmente o pessoal do Crl. Tancredo Martins Jorge,
na boca do rio Fresco cometeu, do assassinato para baixo, toda sorte de crimes
contra estes pobres, até que eles se revoltaram e fugiram, chefiados pelo seu
Tuxáua Máma, para além das fronteiras do Mato Grosso, onde se estabeleceram
numa ilha acima da Cachoeira de Martius. Lá os encontrou Fontoura quando em
comissão da Defesa da Borracha desceu o Xingu do Mato Grosso em 1913 (?). Em
seguida os Juruna fizeram as pazes com o seringueiro Major Constantino Viana, da
Pedra Seca, que com eles tripulou as suas embarcações em 1916 e desceu a
Altamira onde em poucos dias morreram 11 dos Juruna. Quando os sobreviventes
voltaram com esta notícia o velho Máma fugiu com o resto novamente rio acima, e
ninguém sabe hoje do paradeiro deste bando que se compõe de umas 40 cabeças. Um
outro bandozinho, a família do Tuxáua Muratú, umas 12 pessoas, conservou-se,
protegido pelas terríveis cachoeiras da ‘Volta’ do Xingu, no Salto Jurucuá, pouco
abaixo da boca do Pacajá” (Nimuendaju, 1993: 151).

Em 1948, a Expedição Roncador-Xingu funda o Posto Diauarum nas proximidades

da foz do rio Suyá-Missu, inaugurando para os Juruna novas formas de submissão.


Os Juruna contam que no passado o território da tribo se estendia das últimas c a -

choeiras da Volta Grande até o rio Fresco. Além das últimas cachoeiras, corre a chamada

“Água Grande”, que foi magicamente alargada pelo filho mais velho de Seµã÷ã com o fim

explícito de impedir a navegação. Outros seriam os grupos que habitavam a jusante da


70

Volta Grande: inimigos dos Juruna, mas reconhecidos não só como falantes de uma língua

próxima, como participantes da civilização do cauim. O grupo que se estabeleceu na C a -

choeira Von Martius em 1916 vivia na Volta Grande, nas imediações de Praia Grande e foz

do rio Pacajá, e lá havia na ocasião três ou quatro aldeias, sobre todas as quais um homem

cognominado M¥rato pretendia exercer sua liderança. Reconhecia-se que ele era muito

bom para os membros de sua aldeia, mas nada bom para os outros Juruna. Foi proposto

então que ele deixasse o cargo, mas seu grupo o apoiou. Os membros de uma das aldeias o

mataram e tomaram o caminho de Seµã÷ã, fugindo para montante e se estabelecendo nas

imediações do rio Fresco, com medo da represália. Teria sido nesse lugar que conheceram

os Brancos. A presença destes os empurrou para montante, abandonando o país de Seµã÷ã,

em cujos limites se situa a “Pedra Pelada” (literalmente: “sem barba”).

Pedra Seca tornou-se célebre pela descoberta de uma jazida de pedras muito p r e -

ciosas. Situada nas proximidades da aldeia de Seµã÷ã, encontravam-se em suas bacias

muitas contas de louça grandes e brancas e muitas miçangas coloridas. Os peixinhos que se

deslocavam para estas bacias durante as cheias, morreriam quando findavam as chuvas e

as águas secavam, e seus olhos tornar-se-iam estas belas pérolas das quais os Juruna

começaram a desfrutar, e que já vinham maravilhosamente furadas. Eu ganhei em 1985 e

em 1990 algumas destas miçangas, escavadas por alguns Juruna ansiosos para me mos-

trar a preciosidade divina de que teriam desfrutado os primeiros Juruna chegados ao Alto

Xingu. Isto se passou numa ilha selvosa bem ao sul de Pedra Seca, uma ilha chamada

“Colônia das Formigas” (ver Apêndice 3, Mapa de Yawajiwa), antiga aldeia situada a a l -

guns quilômetros a montante da Cachoeira Von Martius, atualmente o limite setentrional,

ao menos de um ponto de vista prático, do território dos Juruna. O achado das miçangas

projeta uma luz sobre a história do grupo. Permite considerar que suas primeiras pas-

sagens por Pedra Seca são posteriores ao mês de setembro do ano de 1896, pois as m i -

çangas foram derramadas neste lugar por Henri Coudreau aos três de setembro de 1896.

Algo emocionado, ele escreve:

“Sobre a pedra encontramos cacos de cerâmica à guisa de ex-voto. Acrescento a


esta oferenda de algum benfeitor anônimo da caruara (porque a Pedra Seca é uma
verdadeira pedra sagrada, e também um autêntico templo primitivo da tribo já quase
extinta, mas ainda primitiva dos jurunas), acrescento a estes fragmentos uma dá-
diva de fanático ou de príncipe das finanças: quarenta e cinco quilos de contas, nem
mais nem menos! É o resto de um estoque que tenho trazido comigo há vários anos, a
fim de dá-lo aos verdadeiros índios, a cada dia mais difíceis de serem encontrados,
de vez que atualmente todos vêm sendo absorvidos, quer pela civilização quer pela
morte.
71

Será que os jurunas que erram por estas paragens, esquecendo sua dignidade de í n -
dios vestidos de farrapos, irão se apropriar destas bijuterias, aí deixadas eviden-
temente com alguma intenção misteriosa, no alto desta pedra, alguns quilômetros ao
sul da qual ardem, neste momento, no centro dos campos da vertente meridional,
grandes fogueiras que certamente foram acesas pelos carajás-suiás?...
“Deixo ali estas contas em testemunho de uma fé que tive, mas já não mais tenho.
Fica para atestar que um dia acreditei na possibilidade de sua utilização pelos índios.
Isso talvez fosse possível há um tempo não muito remoto. Quando comecei a acredi-
tar nesta possibilidade, ela já começava a não mais existir” (Coudreau, 1977: 79-
80).

Os Juruna não abandonam o país de Seµã÷ã sem experimentar as regras do jogo

imposto pelos Brancos: trabalhar para eles, precisamente para Constantino Viana, ao qual

se referem como Tatino. Os Juruna deixaram-se submeter por intermediação de um

Shipaya de nome Ωãïta, casado com uma Branca (e irmão mais velho de Mãware, que

acredito ser o informante de Nimuendaju), e que trabalhava para aquele seringalista.

Sucede um dia que uma vaca de Tatino morre por ter bebido o caldo de mandioca brava

extraído pelas Juruna. Um rapaz mestiço, Izídio, comunica-lhes que o dono da vaca está

furioso. Os Juruna se vão para montante durante a noite, após roubar armas de fogo e

munição. Antes deste episódio, já se havia transposto a Cachoeira Von Martius e constatado

que além dela o curso do rio não é mais encachoeirado, e há muitas praias grandes e belas.

Os Juruna então erguem uma aldeia numa ilha a jusante da cachoeira, e começam a e x -

plorar o rio a montante38.

Rastros humanos foram vistos no local hoje conhecido como Aldeia Capivara

(Kayabi) e os Juruna decidiram procurar a aldeia dos Índios. Defrontaram-se com um

casal Suyá descendo a correnteza numa curva do rio e cercaram sua canoa. A mulher se

jogou chorando no fundo da embarcação; seu marido tremia, chorava e pedia para não ser

morto. Em sinal de que suas disposições eram pacíficas, os Juruna lhes deram miçangas,

um facão e um machado de um estoque recebido de seringueiros. Mais tarde os Suyá, cuja

aldeia estava situada no Diauarum, os procuraram levando rolos de barbante tingido de

urucum, trocados com os Juruna por um facão e miçangas. Um ano mais tarde, no verão,

os Juruna foram visitá-los no Diauarum. Ficaram à sua espera numa praia e mais uma

vez trocaram miçangas por barbante, e também trocaram abraços. Passaram-se dois ou

três invernos, os Juruna foram visitá-los novamente e tomaram conhecimento de que a

38 Para as informações que se seguem, o leitor pode consultar o mapa de Yawajiwa, Apêndice 3 ,

acompanhado de uma cópia simplificada do mapa de Steinen.


72

montante viviam os Kamayurá. Queriam conhecê-los e esperavam que os Suyá mediassem

esse contato. Deixaram com os Suyá um jovem, e retornaram para jusante.

As visitas tinham agora a finalidade de visitar o parente que foi deixado a viver com

os Suyá. Sucedeu que estes tentaram matá-lo, ele fugiu e o fato estimulou os Juruna a

atacarem o Diauarum. Alguns homens Suyá foram mortos, algumas mulheres foram r o u -

badas e os sobreviventes fugiram e decidiram subir o rio Suyá-Missu onde ergueram nova

aldeia.

Dois ou três anos mais tarde, os Juruna tentaram se aproximar dos Suyá para

reatar amizade, mas foram desprezados. O tempo passou, os Juruna decidiram atacá-los

novamente. Chegando ao Diauarum, foram informados que os Kamayurá e os Kalapalo e s -

tavam em guerra com os Suyá, até então chefiados por um c a p i t ã o chamado Ma˚ïdo. Os

Kamayurá e os Kalapalo, na posição de atacantes, sofreram várias perdas, mas a avaliação

dos Suyá era que se deveria fugir. Apesar disso, Ma˚ïdo seguiu incitando o grupo a r e s i s -

tir. Após morrerem alguns Suyá, foram dizer a Ma˚ïdo que eram responsabilidade sua

aquelas mortes, e Ma˚ïdo pegou o arco e saiu no encalço dos Kamayurá que o mataram e

foram embora. Naquela ocasião, os Suyá estavam distribuídos em duas aldeias.

A paz com os Suyá foi restabelecida. Os Juruna os visitavam e os recebiam em sua

aldeia, situada agora em Saúva, bem a montante da Cachoeira Von Martius. Estavam de

viagem marcada para jusante quando uma mulher sugeriu que visitassem os Suyá antes de

descer o rio. “Como ela disse isso, os Juruna foram”, observa Kadu, acrescentando que

foram conduzidos por um Kalapalo roubado anos antes dos próprios Suyá (este Kalapalo

era filho de um homem Suyá chamado Rõdo). Lá, os Suyá os convidaram para se sentar em

bancos e beber o mingau chamado perereba no português regional. E em seguida mataram

todos os homens Juruna em idade de guerrear39, preservando apenas os velhos, as m u -

lheres e as crianças; entre os últimos estavam, meninos ainda, o pai e a mãe do narrador.

Passaram-se dois invernos e os sobreviventes permaneciam prisioneiros dos Suyá. As

relações entre os dois grupos eram bastante tensas: um menino andava se recusando a

comer alegando que tinham matado seu pai e foi morto. Um velho que também se quis matar

fugiu e teve a idéia de procurar Constantino Viana para matar os Suyá e libertar o grupo.

E foi o que ele fez. Numa canoa de pesca navegou para jusante ao longo de um mês.

Os Brancos ironizaram quando ele expôs a situação dos Juruna:

39 Logo abaixo será visto que a história contém um certo exagero: nem todos os homens em

idade viril foram mortos nesta ocasião.


73

“Então os Juruna levaram munição [roubada] à toa?


Os Juruna não mataram Índios, não, hein?
O que você veio fazer aqui?” perguntou-lhe Constantino.
“Não sei. Vim buscar Brancos, vim buscar Brancos para os Suyá”.
“Você pode levar, mas por que vocês foram procurar os Suyá?”
E o velho conseguiu três canoas de Brancos para acertar contas com os Suyá. Era verão e a

viagem lhes tomou um mês. Defronte à aldeia abandonada dos Juruna, foram vistos dois

homens sobre pedras do rio. Os Brancos gritaram “Suyá!”, o velho pediu um momento

para a confirmação, mas os tiros já tinham atingido mortalmente os dois homens.

Tratava-se de dois Juruna que os Suyá decidiram matar e que fugiram para jusante (um

deles era o pai da mãe do narrador). Seu cabelo estava cortado à moda Suyá. Sem comida,

haviam parado na roça para comer banana e morreram enquanto matavam a sede com água.

O Branco atirador ficou furioso com o velho Juruna:

“Por que você não olhou direito? Se você tivesse prestado atenção eu não os teria
matado. Atirei porque pareciam Suyá”.
“Você fica assim [bravo] e quando chegar aos Suyá terá medo de matá-los. Fique assim
e não conseguirá matar ninguém”.
Os corpos foram levados até a foz do rio Maritsawá e lá foram enterrados. Dois

outros Juruna que fugiam dos Suyá pelo mesmo motivo foram encontrados no caminho.

Dois dias depois chegaram ao Diauarum; os Suyá dormiam quando foram atacados.

“Vou entrar nas casas e cortar os Índios com facão!”


“Não faça isso, há Juruna nas casas”.
O velho já havia prevenido as mulheres para não sair de dentro de casa quando os Brancos

chegassem. Quando os tiros começassem a pipocar, os Suyá deixariam as casas para fugir

para a floresta e seriam mortos. Assim aconteceu.

Os Juruna reconstituíram seu grupo com quatro homens e dez mulheres, e quase

nenhuma criança, e fizeram aldeia numa ilha acima da Cachoeira Von Martius. Outras

mulheres e crianças (o pai e a mãe do narrador inclusive) continuaram prisioneiras dos

Suyá. Dois invernos mais tarde os Kamayurá atacaram os Suyá, fazendo algumas mortes e

capturando as mulheres e crianças Juruna.

Três anos depois o pai do narrador fugiu com sua própria mãe, uma outra mulher e

um jovem Trumai também prisioneiro dos Kamayurá, descendo o rio em cima de um

tronco. Alguns meses antes uma mulher também havia conseguido fugir com a filha. Entre

os Kamayurá, continuavam vivendo uma moça e três rapazes, dois dos quais os Juruna

matariam anos mais tarde.


74

Alguns anos se passaram. Os homens adultos somavam dez. O chefe do grupo decidiu

recuperar a filha que se encontrava com os Kamayurá. No Morená ele se encontrou com

T¥bara, um Kamayurá que vivera algum tempo com os Juruna, e lhe pediu para buscar a

filha na aldeia que ele queria vê-la e presenteá-la com miçangas. Dos índios que acom-

panharam a moça até o pai, cinco foram mortos e ela foi resgatada.

Passaram-se uns dez anos, os Juruna ainda moravam perto da Cachoeira Von

Martius, e os Txukahamãe os atacaram matando o chefe e xamã (o último xamã reputado

verdadeiramente grande). O grupo ficou desolado, foi viver a montante, bem próximo à foz

do rio Maritsawá, para guardar distância dos Txukahamãe. Uma família que foi ao Diaua-

rum em busca de pequi foi atacada pelos Suyá: morreram o homem e um dos meninos. Os

Juruna estavam cercados de inimigos e planejavam retornar definitivamente para a Volta

Grande quando os irmãos Villas-Boas chegaram.

“Sabíamos que havia Juruna lá e decidimos ir morar com eles. Se tivéssemos ido,

os Juruna teriam acabado!”, resume Kadu, baseado em suas observações recentes da vida

dos Juruna de Altamira. Seu relato da chegada dos irmãos Villas-Bôas merece ser trans-

crito integralmente.

“Quando Cláudio chegou aqui, a primeira vez, havia festa. Nós estávamos caçando
tracajá para os ÷ ï ÷ ã n a y comerem, para a dança do jaguar na festa dos ÷ ï ÷ ã n a y — o
Pai-de-Manako40 celebrava. Nós estávamos dançando corretamente; por isso à noite
fomos caçar tracajá. Quando chegaram, os ÷ï÷ãnay comeram tracajá dentro de casa.
Terminando a refeição, eles foram dançar. Amanhecemos o dia dançando.
O Avô-de-Orope, pai de Mayt¥wa, tinha viajado para procurar algodão; ele, o outro
Pai-de-Mayt¥wa e Mayt¥wa — três pessoas. Nós outros estávamos na praia dançando
toda noite. Quando o cauim acabou, a dança acabou, nós outros ficamos lá na praia — era
de tarde — pegando tracajá para a [continuação da] festa. O Pai-de-Arakaida foi pegar
taquara para fazer flecha — foram três: o Pai-de-Arakaida, seu irmão mais novo e o
Pai-de-Wereade... e um outro — foram quatro. Nós outros ficamos sozinhos lá.
Às tantas horas os Brancos chegaram, chegaram em um motor barulhento. Vimos e
gritamos: ‘São os Kamayurá que estão vindo para nos perseguir. É Kamayurá’. Nós não
sabíamos. Quando estavam mais próximos, ouvimos o barulho do motor. O Avô-de-
Wereade [Pai-de-Manako] disse: ‘São outros, são Brancos; não é Kamayurá, não’.

40 Os Juruna não pronunciam o nome dos mortos; grafo os tecnônimos com maiúscula.
75

Nós outros corremos para as canoas, desamarramos as redes e corremos. Começamos a


remar. Meu pai estava pescando. ‘Venha logo! Venha! Os Brancos estão chegando!’ Meu
pai estava perto.
O barco vinha barulhento, soltando fumaça. Remamos para valer e penetramos na
floresta — os Juruna estavam amedrontados. O motor se aproximou das casas na praia,
os Kamayurá ficaram gritando: ‘Venham! Venham! Os Brancos são bons!’. Nós outros
não entendemos. Meu pai sabia falar um pouquinho de Kamayurá: ‘Ele está nos dizendo:
Venham!’. Era o Kamayurá que havia morado com os Juruna fazia muito tempo —
Marika. Ele sabia falar Juruna: ‘Venham! Venham! Os Brancos são bons! Eles nos dão
muitas coisas: facas, machados... Os Brancos não vão matar Juruna, não! Venham!’. Nós
outros não sabíamos e pensamos: ‘É mentira! Se formos eles nos matam!’ E nos
embrenhamos na floresta.
Um Índio pegou uma arara [de estimação]. Cláudio estava lá, Orlando estava lá; eles
disseram: ‘Deixe a arara aí, não pegue, não!’ Nós outros estávamos na floresta. Alguém
sugeriu que fôssemos para outro lugar. Retornamos para as canoas e começamos a
remar rio abaixo. O motor veio atrás nos perseguindo. Quando chegou bem perto de nós,
aportamos e penetramos na floresta de novo. Eu era pequeno. Eu e meu irmão mais novo
penetramos na floresta, meu pai pegou o outro braço do rio e remou para a lagoa; lá
deixou a canoa dele. O sol se punha, o barco encostou em uma ilha, caiu a noite.
Meu pai me disse: ‘Os Brancos trouxeram um Kamayurá. O Kamayurá nos disse:
Venham! Os Brancos querem presentear vocês com miçangas, facas, machados’.
Pensamos que os Brancos estavam mentindo para nós outros — os Juruna estavam com
medo. Durante a noite, fomos por dentro da floresta, escondidos, até bem perto escutar
o que os Brancos estavam conversando. Marika [um Kamayurá] estava falando ‘Oh,
vejam só, eles trouxeram um Kamayurá’. Retornamos, pegamos as canoas e fomos até a
praia para nos suprir de farinha e pegar as redes. ‘Quando sentirmos fome, comeremos
esta farinha!’ E fugimos à noite.
Encontramos o Avô-de-Orope dormindo na praia e lhe contamos que os Brancos estavam
ao nosso encalço. ‘Eu vou conversar com eles’ — ele sabia um pouquinho de português,
pois tinha trabalhado com seringueiros — ‘Eu sei falar um pouquinho!’.
Cláudio desceu até a cabeceira de uma ilha onde tínhamos construído uma casa muito
grande e comprida. De madrugada, o motor estava descendo em direção à ilha. Nessa
casa, ninguém estava lá; Cláudio lá dormiu dois dias. No próximo, ele ligou o motor e
saiu. O Avô-de-Orope gritou: ‘Vem cá, vem conversar comigo!’. Ele não ouviu — o
motor estava ligado — e foi embora.
Na praia, Cláudio deixou camisa, facão e foice. Quando os Juruna chegaram à praia,
encontraram essas coisas — um pegou o facão, outro a foice, outro a camisa. E os
Juruna disseram: ‘Os Brancos são bons; eles deixaram camisa, facão e foice’.
76

E os Juruna foram embora, rio abaixo; deixaram para trás primeiro a casa da
cabeceira da ilha, depois as casas da praia. Desde o começo da fuga, quem seguiu na
frente abriu um acampamento rio abaixo onde deixaram todas as mulheres. Neste
acampamento os Juruna se reuniram de novo. ‘Os Brancos são bons. Eles nos deixaram
estas coisas na praia, porém não conseguimos conversar com eles’. Os Juruna tinham
ficado com medo e fugido para a floresta.
A montante do Kretire Velho havia uma praia. Lá fizemos uma casa bem pequena.
Apareceu então um avião. Eram Cláudio e Orlando. Ah, não sabíamos o que era avião.
Quando ouvimos o motor barulhento penetramos na floresta, correndo. O avião viu os
Juruna e começou a sobrevoar em círculos. Os Juruna, amedrontados, caíram no r i o
com as flechas e nadaram para a floresta — todo mundo. Meu pai, o Avô-de-Orope e meu
avô ficaram na praia. ‘Eu sei um pouquinho da língua dos Brancos’. Eles sobrevoaram e
foram embora. Jogaram uma toalha. ‘O que é isso? O que é isso?’ Queríamos
compreender o que era avião! ‘Oh, nós não sabemos! Os Brancos fazem “canoa” e
voam!’ E a toalha caiu. Os Juruna voltaram para a casa da praia na cabeceira da ilha.
‘Ah, vamos voltar para a outra casa!’
Depois de alguns dias, o avião voltou. Estávamos dançando na praia, havia festa dos
÷ ï ÷ ã n a y . A cobra tinha mordido um Juruna, o Pai-de-Kurewaji — foi aqui em
Tubatuba. A perna dele inchou, já estava apodrecendo, ele estava deitado em casa.
Quando a dança estava terminando o avião chegou, voando bem baixinho. ‘Oh os Brancos
estão chegando!’ E fugimos para a floresta — fomos todos, apenas dois ficaram na praia
observando. O avião voava bem baixo, eles viram um Branco dentro do avião. ‘É esse
Branco que faz avião!’ O Branco acenou para eles [e disse]: ‘Eu vou e volto amanhã’.
E o avião foi para o Jacaré, lá dormiu duas noites e voltou. Sobrevoou bem baixo, os
Juruna fugiram para a floresta de novo — nós não compreendíamos! Os Brancos voaram
bem baixinho, jogaram um facão, espelho e miçangas. Pegamos o facão e a miçanga
enrolada em um papel onde havia a foto de um Branco. ‘Ah, o Branco é bom!’ O avião foi
embora, voltamos para a aldeia onde há o pequizal. Eles retornaram no dia seguinte,
eram muitos, em quatro barcos. Nós gritamos: ‘Os Brancos estão chegando!’. E fugimos
para a floresta; ficaram apenas três: meu pai, o Avô-de-Orope e o irmão mais novo
dele, Pai-de-Arakaida.
Os motores desceram até a aldeia e retornaram até uma praia que havia pouco acima
daqui [de Tubatuba]. Os Brancos desceram na praia e um motor com Cláudio e Orlando
desceu, trazendo também um Juruna que os Kamayurá haviam aprisionado fazia tempo
— Tamako, como os Brancos o chamavam. Ele chegou indagando sobre os parentes. Os
Juruna não o reconheceram: ‘Quem é você?’ Meu pai e o Avô-de-Wereade [ P a i - d e -
Manako] o reconheceram: ‘É o Juruna que os Kamayurá aprisionaram no passado!’. Ele
falava Juruna: ‘Não vão para a floresta! Os Brancos são bons, vêm trazendo muitas
77

coisas! Os Brancos não matam Juruna, não!’. Os Juruna estavam na praia. O motor
parou em uma praia à margem da floresta. ‘Os Juruna estão bravos?’ [os brancos
indagaram]. ‘Não! Os Juruna não estão bravos, estão amedrontados’. ‘Os Brancos são
bons, não matam Juruna, não! os Brancos não vão matar Índios, não!’. E Orlando
trouxe facas, machados, facões — Orlando, Cláudio e o Juruna Tamako. Cláudio trouxe
um revólver; os Juruna gritaram: ‘Os Brancos estão bravos, aquele está com um
revólver!’. ‘Não estou bravo, não!’ E Cláudio tirou o revólver do cinto e o pôs no chão.
‘Não atirem flechas em mim, hein?’. ‘Os Juruna não estão bravos, não. Os Juruna
estão apenas amedrontados’. E o Magro [Orlando] pegou uma máquina fotográfica e tirou
nossa foto. Nesse momento os Juruna correram: ‘É um revólver! É um revólver!’. E
agarraram Orlando. ‘Não me matem! Isto não é um revólver! Eu quero é tirar uma foto
de vocês’. O Juruna prisioneiro dos Kamayurá disse: ‘Isto não é um revólver! Isto
serve para capturar nossa imagem, nossa alma. Soltaram Orlando. Então o Juruna
prisioneiro abraçou um Juruna e começou a chorar. Todo mundo chorou. ‘Os Brancos
são bravos?’. ‘Não, os Brancos não são bravos, são bons. Eles não matam Índios’. E ele
deu facas, facões, miçangas e foi embora.
Cláudio disse: ‘Eu vou subir o rio Maritsawá à procura de Índios; os Kayabi vivem lá.
Quando eu voltar eu venho ver vocês’. Alguns Juruna acompanharam Cláudio até certo
ponto. Orlando deu alguns tiros de revólver para o alto. Havia alguns Juruna na
floresta, e concluíram que os Brancos estavam matando seus parentes. Também
pensamos isso e corremos todos para a floresta. Ao entardecer, quando o P a i - d e -
Arakaida voltou, ele contou que os Brancos não mataram ninguém, que apenas deram
uns tiros com o revólver. E voltamos a nos reunir de novo.
Quando os Brancos retornaram dos Kayabi, eles se aproximaram de novo. Trouxeram-
nos galinhas: ‘Isto é galinha!’, deixaram-nas aqui para nós outros. Deixamos a praia,
voltamos para a aldeia [Pequizal]. Já não temíamos tanto os Brancos, mas ainda
tínhamos um pouco de medo. Então sobrevoou um avião, jogou uma caixa de sal, a foto
de um Branco e rapadura. Os Juruna provaram o sal e se sobressaltaram: ‘É ho rrível!’
Todos gostaram da rapadura e comeram. Um Juruna de meia-idade [o Pai-de-Manako]
explicou que o sal era bom: ‘Quando botamos um pouquinho no peixe fica gostoso!’ Eles
nos deram fósforo; não sabíamos acender. Somente um Juruna de meia-idade [o P a i -
de-Manako] é que sabia: ‘É fogo, vejam!’ E pegou o palito e acendeu: ‘É o fogo dos
Brancos!’
Depois de muitos dias eles voltaram. Começaram a abrir uma pista de pouso no
Diauarum. Chegaram muitos Brancos em um barco, eles nos disseram: ‘Os Brancos são
bons, não queremos matar Índios; ao contrário, nós gostamos dos Índios’. O Juruna
prisioneiro dos Kamayurá veio também, ele disse: ‘Os Brancos são bons. Eles chegaram
até os Kamayurá há muito tempo, e os Kamayurá também fugiram para a floresta. Agora
78

eles não têm mais medo, não. Cláudio e Orlando são bons’. Eles trouxeram miçangas e
deram a todo mundo — miçangas brancas e pretas; distribuíram facões, machados... E os
Juruna não tiveram mais medo.
Perguntamos a eles: ‘Por que os Brancos voam assim nos ares?’. ‘É que os Brancos
sabem fabricar avião para voar no alto’. O medo dos Juruna acabou. Eles foram a b r i r
pista de pouso no Diauarum. Os Juruna foram para lá, acamparam na outra margem do
rio. De lá os Juruna ouviram o som de um rádio gigantesco [o narrador abre os braços
para indicar a dimensão do aparelho]. O rádio falava demasiado alto e os Juruna
fugiram para a floresta — nós outros não sabíamos o que era. ‘O que é isto?’ Alguns dias
depois um motor atravessou [até o acampamento dos Juruna] com Cláudio e Orlando.
‘Nós vamos embora; há muitos Brancos neste lugar, estamos com medo. O que é isso que
fala tão alto?’. ‘Oh, é um rádio!’ E eles levaram alguns Juruna para ver.
A pista de pouso ficou pronta; pousou um avião. Os Brancos nos chamaram: ‘Isto é
avião! Vejam o avião que os Brancos fabricam. Isto voa no céu!’. E foi assim que
conhecemos o avião. O Avô-de-Orope conversou um pouquinho com o Branco. ‘Os
Brancos não matam Índios, não. Os Brancos são numerosos, os Índios são poucos. É por
isso que nós não queremos matar Índios’.
Voltamos. As galinhas estavam fazendo uma barulhada na praia. Desejávamos saber o
que era; o Juruna de meia-idade nos disse que era o canto das galinhas e nos explicou
que galinha é animal doméstico dos Brancos e canta sempre de madrugada. Tampouco
conhecíamos cachorro... Veio ter conosco um outro Juruna que os Kamayurá
capturaram quando era pequenininho — o pai dele foi morto. Ele veio nos ver e todos o
choraram (Co-tradução: Mareaji.)

Pouco tempo depois, no ano de 1950, Galvão visitou os Juruna, que viviam

acampados em frente ao Posto Diauarum e somavam 37 pessoas. Os dois irmãos p r i s i o -

neiros dos Kamayurá, um dos quais era casado e tinha filhos, retornaram (ou se queria que

seu retorno fosse definitivo) com a família para viver com os Juruna. Cada um ganhou

uma esposa, mas seu papel na pacificação dos Juruna ainda não havia terminado. Em uma

epidemia de sarampo, morreram algumas pessoas e os Juruna, através de três rapazes e

estimulados por uma mulher, certos de que os dois irmãos tinham aprendido feitiçaria

com os Kamayurá, mataram-nos enquanto eles se achavam a caminho da aldeia Kamayurá,

no “riacho” por isto designado Riacho de Ωadunã (nome Juruna de Tamako).

Por circunstâncias que desconheço da boca dos Juruna mas que se pode bem p r e -

sumir pelas relações que vou traçar, os Juruna, apesar de sua reduzida população, se

dividiram em dois grupos e assim permaneceram até 1966-7. Um grupo, chefiado pelo

finado Da÷a, um dos matadores e então casado com a jovem viúva de uma das vítimas,
79

ergueu a aldeia hoje conhecida como aldeia Pequizal, onde vive atualmente uma de suas

filhas, casada com um Kayabi. Os dois outros matadores o acompanharam, tendo um deles

também se casado com a viúva da outra vítima. As duas moças eram filhas de um irmão dos

homens (os matadores) com quem se casaram — o que constitui uma relação incestuosa

muito repudiável. Mas, dado o caráter reduzido da população, talvez esses casamentos

tenham sido feitos por uma questão de vida ou morte; no mais, ceder as “filhas” a dois

companheiros duvidosos talvez não fosse uma boa opção.

O outro grupo, do qual o Pai-de-Kadu, “irmão” das vítimas, se tornou chefe,

ergueu a jusante sua aldeia, defronte à praia onde viviam acampados por ocasião da chegada

dos Villas-Bôas. Os dois grupos voltaram a se reunir quando o chefe do primeiro se

apaixonou por uma jovem Kamayurá, divorciou-se e foi viver no grupo da nova esposa,

onde morreu vitimado por sarampo e feitiçaria.

Em 1966-7, Adélia Engrácia de Oliveira (de quem tomo o registro do período em

que os Juruna se reuniram novamente) fez uma pesquisa de campo entre os Juruna e e s -

creveu o livro “Os Índios Juruna do Alto Xingu”. Ela proclamou, com maior ou menor

segurança, a morte da cultura Juruna, dentro de uma perspectiva teórica mais ou menos

generalizada desde os anos 40. Ora esta cultura já teria se desintegrado, ora seria a s s i -

milada em breve pela cultura xinguana (como também supôs Galvão). Acredito que suas

impressões, baseadas, talvez, fundamentalmente, em seus materiais de campo, não se

explicam somente pela expectativa teórica e pessoal da autora relativa ao que seja uma

cultura indígena e ao impacto que nela produz a nossa. A diferença entre os seus materiais

e os meus levam-me a supor que os Juruna estavam um tanto deprimidos na ocasião de sua

pesquisa, tendo passado dessa espécie de depressão cultural à espécie de surto mítico em

que os encontrei. Também não sou otimista, e menos ainda diria que a cultura Juruna não

foi sacudida e mesmo devastada em certos planos, mas a idéia de desintegração não me

comove. Nem a de integração. Entre o que se pode idealizar sobre quem eram os Juruna

quando, em 1686, numa flotilha de 30 canoas, comemoravam a vitória do ataque à expe-

dição de Gonçalo Pais de Araújo (pelas dimensões das canoas hoje, penso em 400 guer-

reiros41), e o pequeno grupo de pessoas humildes que conheci, passando pela figura dos

nobres e doces selvagens que o príncipe Adalberto conheceu, passou-se muita coisa, é

claro, mas os Juruna não se perderam.

41 Existem as canoas de pesca, pequenas, para até dois adultos e algumas crianças; e as canoas

de viagem que comportam cerca de quinze adultos (além de crianças).


80


Quando os conheci em setembro de 1984, os Juruna viviam em duas aldeias desde

aproximadamente cinco anos. Saúva era composta por sete famílias nucleares distribuídas

em quatro casas e sua população somava 31 indivíduos. Tubatuba, situada a montante, era

composta por treze famílias vivendo em sete casas e com uma população de 49 pessoas. Em

outubro de 1988 o grupo de Saúva se mudou para Tubatuba. Quando os visitei pela última

vez em agosto de 1990, a população de Tubatuba somava 121 indivíduos formando 27

famílias nucleares distribuídas em 12 casas.

IDADES HOMENS MULHERES TOTAL


55- 2 3 5
50-54 2 1 3
49-45 1 1 2
40-44 2 3 5
35-39 1 3 4
30-35 6 2 8
25-29 6 7 13
20-24 5 7 12
15-19 5 4 9
10-14 8 7 15
05-09 9 11 20
0-04 12 13 25
TOTAL 59 62 121

População de Tubatuba em agosto de 1990

População de Tubatuba em agosto de 1990


81

Segundo informações obtidas com um homem que veio ao Rio de Janeiro em julho de

1992, esta população havia crescido para 137. No Parque Indígena do Xingu, a população

do grupo conta também com cinco mulheres e três homens que contraíram casamento com

membros dos grupos Kayabi, Suyá e Txukahamãe; alguns vivem na aldeia do cônjuge, o u -

tros em Postos Indígenas. Os filhos e (em alguns casos) netos destas pessoas, por não

viverem em aldeia Juruna, ora são identificados como Juruna ora são identificados como

membros do grupo onde residem. Alguns são bilingües, outros não. Não disponho de censo

atualizado destes descendentes.

De acordo com uma concepção que permite definir como “nossa” toda a extensão do

rio por onde os antigos navegavam, os Juruna afirmam que seu território estende-se da

chamada Volta Grande do Xingu ao Morená, na confluência dos formadores deste rio. Os

Brancos “tomaram-lhes” uma grande parte; os Kayapó estão “tomando conta” de outra

parte; e eles próprios, depois que o rio foi “cortado” com a criação do Parque Indígena do

Xingu, estão limitados às águas que correm dentro do Parque. No interior deste, distin-

guem apenas dois territórios. Ao sul de Morená, na região banhada pelos rios Batovi,

Ronuro e Culuene, estende-se o território dos xinguanos, os chamados “Índios de mon-

tante” ou “os Kamayurá e seus congêneres”. Ao norte de Morená, estende-se o território

que pertence aos Juruna, aos Kayabi, Suyá, Txikão, Panara e Txukahamãe. A noção é a de

que todos estes grupos podem percorrer e explorar como quiserem este território; no

limite, cada um pode construir aldeias onde desejar. Entretanto, de um ponto de vista

prático, pode-se delimitar a área entre o Diauarum e a Cachoeira Von Martius, a jusante,

como a área efetiva dos Juruna. A meu pedido, Yawajiwa desenhou um mapa, situando as

aldeias dentro dos limites do rio (ver Apêndice 3).

A caracterização simbólica da terra distingue, em um primeiro plano, o rio e a

floresta: os Juruna são donos do rio, e os chamados Índios são donos da floresta — ainda

quando, por circunstâncias diversas, existam donos da floresta que passam a habitar o r i o ,

ocupando assim o espaço que de direito pertence aos Juruna, como é o caso dos Txukaha-

mãe. Em outro plano, distinguem-se a floresta — espaço dos Índios e da caça; a floresta

suja ou sombria — espaço dos ogros e fantasmas; e os terrenos de vegetação dita limpa,

concebidos como aldeias de ÷ ë ÷ ã m † , as quais são situadas tanto em ilhas quanto no con-

tinente, à margem do rio, em barrancos relativamente altos. Os Juruna fazem suas aldeias

sobre as aldeias dos ÷ë÷ãm†. Neste contexto, ÷ë÷ãm† designa um povo alma que habita o

mundo desde sempre e povoa não só os terrenos limpos como também o alto dos montes.
82

Estes últimos, os montes, os Juruna temem grandemente, alegando que são freqüentados

pelos ÷ë÷ãm† que vivem no céu, os quais consistem, nesse caso, nas almas dos guerreiros

Juruna.

Os Juruna abrem pois aldeias e roças sobre as terras dos ÷ë÷ãm† . Se estas terras

são limpas é que já foram desbravadas por eles, e se eles próprios as elegeram para a í

plantar suas roças é que sem dúvida são boas para a agricultura. Mas sua disposição com

os novos ocupantes pode ser pacífica ou não. De todo modo é preciso buscar uma aliança.

Os Juruna dizem que Senã÷ã lhes ensinou que era preciso oferecer cauim aos donos

do lugar onde se pretende viver. Sua recepção favorável depende de serem tratados como

amigos, e, portanto, como convidados para beber. Não disponho contudo de nenhum r e -

gistro de oferenda de cauim aos ÷ë÷ãm† terrestres. Os registros de oferenda de peixe, por

outro lado, são muitos. Após um contato onírico com os ÷ë÷ãm† feito pelo xamã, o a l i -

mento é preparado desta forma: em dois fogos contíguos, duas panelas de peixe contendo,

uma, a parte que será comida pelos homens, a outra, a parte das mulheres, são postas a

cozinhar simultaneamente; convoca-se o xamã no instante em que as panelas são tiradas do

fogo (a parte dos homens é retirada primeiro, a das mulheres é retirada depois e posta

atrás). O xamã assopra o peixe cozido para extrair a alma do alimento; em seguida assopra

esta parte no ar para enviá-la aos ÷ë÷ãm†. Por fim, o xamã, que não participará da r e -

feição, dá a comida aos Juruna. Cada panela é levada para um canto e em separado os h o -

mens e as mulheres fazem a refeição. Os homens, no instante de pegar o primeiro bocado,

emitem gritos estridentes. Na manhã do dia seguinte, vai-se indagar o xamã a respeito

deles, querendo saber se os ÷ë÷ãm† receberam o peixe. “Sim”, responde o xamã, já i n -

formado pelo sonho.

A aliança deve ser renovada quando necessário, pois os ÷ ë ÷ ã m † agem desfavora-

velmente enviando epidemias cíclicas que podem matar todos os filhos de um casal, um a

cada epidemia. Quando a morte de crianças começa a ocorrer, ou o grupo se muda ou tenta

apaziguar os verdadeiros donos da terra. O pai interessado deve propor ao xamã para s o -

nhar com eles e convidá-los para uma refeição de peixe cozido, de cuja provisão ele

próprio se encarregará.

Os ÷ ë ÷ ã m † também usam seu poder provocando acidentes para afugentar as pes-

soas de suas terras. Conta-se assim que no passado os donos de Tubatuba não aprovavam a

presença dos Juruna, pois o primeiro homem que tentou aí derrubar uma roça foi picado

mortalmente por uma cobra. (Isso se passou dias antes do primeiro encontro com os

Villas-Bôas.) Em vista disso, quando há uns quatorze anos atrás a aldeia Tubatuba foi
83

aberta, os Juruna, certos de que os ÷ ë ÷ ã m † queriam compensação pelo uso de sua terra

“cultivada”, ofereceram-lhes peixe. Desde então aceitam a presença dos Juruna. O aspecto

que a aldeia tinha em agosto de 1990 pode ser visto no Apêndice 3, sob o olhar saltitante do

jovem Pãrï, desenhista do mapa.

A morfologia da sociedade Juruna não apresenta divisões sociais globais como l i -

nhagens, metades, grupos de idade etc. Seu sistema de parentesco é cognático, com uma

classificação de tipo dravidiano e casamento entre primos cruzados.

A relação sogro-genro (uaha42) é básica na constituição da aldeia. É a relação de

solidariedade por excelência, e também aquela que gera o poder. Segundo Mareaji, avalia-

se a “força” de um homem pela quantidade de irmãs e primos e/ou de filhas e sobrinhos.

Força que se mostra atuante quando “uma coisa ruim acontece”, como uma doença que

impede de trabalhar, um conflito com Índios ou um conflito no interior da aldeia. A f o r -

mação de um grupo local novo depende das relações de aliança, não das relações de con-

sangüinidade, porque, disse-me Mareaji, os irmãos de um homem não podem acompanhá-

lo já que devem solidariedade aos seus próprios cunhados e sogro.

Com efeito, a última divisão política vivida pelos Juruna, no começo dos anos 80,

foi possibilitada por relações de aliança. Viviam então na foz do Maritsawá em um grupo de

dezoito homens casados. O chefe, homem mais velho do grupo, perdeu a esposa para um

sobrinho (ZS). Chateado, decidiu fundar Saúva, levando consigo suas duas (únicas) filhas

casadas com dois sobrinhos (irmãos do mesmo que lhe tomou a esposa) e duas netas ( D D )

com os respectivos cônjuges; a viúva do filho, por ser ela irmã do marido de uma das n e -

tas; uma irmã desta viúva por ser ela casada com um neto (DS); e finalmente um irmão de

seus genros, casado com uma filha do irmão de sua falecida esposa. Compôs então a aldeia

com seis homens: um neto e cinco homens classificados pelo termo uaha. Ele tinha uma

irmã, já viúva; por que não a levou? Mãe do homem que lhe “roubou” a esposa e de três

outros que o acompanharam, esta mulher tem uma única filha, casada com um neto (DS)

dele. Este neto achou por bem permanecer com o filho do avô, seu MB ( uaha ), e os demais

irmãos da esposa, ao invés de acompanhar a mãe e o avô; assim a irmã viúva não acom-

panhou o irmão para não se separar da filha. O grupo que permaneceu na foz do Maritsawá

mudou-se em pouco tempo para Tubatuba, situada a jusante e a menos de um quilômetro de

distância, invocando que a paisagem já não os agradava. Era composto em torno de Kadu

42 O termo uaha é aplicado às seguintes relações: MB-ZS, WF-DH, FZH-WBS e ZH-WB (sob a ótica

de Ego masculino).
84

(filho do chefe, o mesmo que se mudou para Saúva), e reunia seu tio, dois genros, dois

sobrinhos, dois primos (também cunhados classificatórios), um irmão adotivo e dois f i -

lhos. Ou seja, dos oito homens que formavam Tubatuba, cinco eram seus uaha. Após a morte

do velho de Saúva, o marido de uma de suas netas, único homem com irmãs residindo na

aldeia, e uaha de quatro dos cinco homens aí residentes, tornou-se o chefe da aldeia. Saúva

foi habitada até outubro de 1988, quando, após a (ameaça de) guerra promovida pelos

Txukahamãe, o chefe de Tubatuba convidou seus uaha para se reunirem de novo ao grupo.

A relação sogro-genro é, pois, como uma célula do grupo local, mas em casos e x -

tremos, a relação entre cunhados é suficiente para se fundar uma aldeia. No começo de

1988 uma nova divisão esteve prestes a ocorrer em Tubatuba. Um Juruna, que não era

sogro ainda, estava no Posto de Vigilância e aí se encontrou com um Kayabi que lhe disse

ter passado por Tubatuba naquele dia, indagado por ele a um certo homem (seu MB), e

ouvido esta resposta: “Ele está no Bangue. Foi comprar calcinha para a mulher dele”. O

Juruna ficou furioso com essa ironia e começou a planejar sua saída do grupo. Encontrou

um local para erguer uma nova aldeia e conversou com quatro irmãos da esposa (dois c a -

sados e dois solteiros), os quais lhe disseram que o acompanhariam caso estivesse decidido

a partir mesmo. Nada falou com os maridos de suas irmãs, uma vez que moravam em

Saúva, nem com os outros irmãos da esposa que também moravam lá. Seu plano era e s -

perar a entrada da estação seca e só tornar pública sua decisão de partir na hora exata de

deixar a aldeia. As palavras que diria ao MB já estavam prontas: “É verdade que você disse

a fulano que eu fui ao Bangue comprar calcinha para minha mulher?” O plano entretanto

não foi levado avante por causa do conflito com os Txukahamãe, o mesmo conflito que

acabou reunificando as duas aldeias Juruna.

O caráter social da afinidade (primos cruzados, tio-sobrinho, cunhados, sogro-

genro) ressalta também do modo como os Juruna compreendem a relação de companhia. A

companhia de um filho ou de um irmão mais novo é ainda uma forma de solidão; estar com

um ou o outro é estar sozinho43. Já a companhia de um afim, assim como a companhia de

um consangüíneo (terminologicamente falando) mais velho, retira imediatamente o

sujeito da solidão. Embora a relação consangüíneo mais velho/mais novo seja marcada

como companhia, ela não é tão plenamente social quanto a relação de afinidade, já que do

ponto de vista de um pai ou de um irmão mais velho, eles encontram-se sozinhos. Assim,

caso o Juruna que planejou sua saída tivesse ido viver com os filhos e irmãos (todos mais

43 Em certa medida, estar com a esposa e os filhos também é estar só.


85

novos que ele), não chegaria a formar um grupo no sentido próprio, pois um grupo é antes

de tudo fundado em torno de afins (perspectiva do chefe), ou de um afim comum

(perspectiva do grupo).

A aldeia comporta uma casa especialmente destinada ao cauim cuja construção é um

dever do chefe. É verdade que o chefe não ergue a casa sozinho, todos os homens colaboram,

mas tanto ele se diz “dono” como é reconhecido como tal por todos, como se ser dono da

casa do cauim fosse sinônimo de chefia da aldeia. Nos tempos atuais esta prerrogativa é o

único item que a pauta da política interior comporta, todos os outros deveres do chefe d i -

zem respeito às relações com o exterior, seja com os Índios seja com os Brancos. A casa do

cauim é tanto uma cozinha coletiva onde as mulheres processam farinha, polvilho e b e -

bidas, como um clube social onde se dão as cauinagens e em cujo terreiro se realizam as

festas.

Uma planta ideal da aldeia apresenta o seguinte perfil: as casas de moradia f o r -

mando um semicírculo com abertura voltada para o rio e em cujo centro se ergue a casa do

cauim. Eu não disponho de elementos para afirmar que esta planta seja um modelo t r a d i -

cional, e acredito mesmo que corresponda antes de tudo aos anseios estéticos dos Juruna.

Reconstruir Tubatuba segundo a planta ideal era, com efeito, em 1990, um desejo mas-

culino bastante forte. Diversas casas estavam então em construção, mas, como se a idéia —

aliás atribuída a um Juruna casado com uma Suyá, recém-chegado do Diauarum para r e -

sidir em Tubatuba — tivesse ocorrido tarde demais, a aldeia só tomaria o perfil desejado

quando as casas ainda boas se destruíssem e outras fossem erguidas nos espaços vazios do

semicírculo teórico que as casas em construção permitiam traçar. Segundo eu soube em

julho de 1992, o projeto estaria finalmente prestes a se realizar. Mareaji desenhou-me

na ocasião o mapa de Tubatuba que estava então novamente (ou ainda) em reconstrução e

que eu já não reconheceria, conforme observou. Pode-se vê-lo no Apêndice 3. Yawajiwa

achou-o feio e fez o mapa da aldeia no futuro próximo. O mais interessante é que o projeto

arquitetônico foi utilizado para dar consistência a um desejo sociológico novo. Conflitos

aflorados por ocasião de cauinagens (“fofocas da mulherada”), foram solucionados tam-

bém numa cauinagem: decidiu-se que cada família nuclear deveria ter sua própria casa,

porque assim casas novas seriam construídas e haveria número suficiente para compor o

semicírculo44.

44 Em uma visita muito breve que fiz a Tubatuba em agosto de 1994, pude observar que esse de-

sejo sociológico não foi realizado. Tampouco a casa do cauim estava situada no centro da aldeia,
mas entre as casas alinhadas ao fundo.
86

Nas representações referentes ao passado, menciona-se de fato um centro da aldeia

sem que este seja definido como centro de um semicírculo nem como uma construção e s -

pecífica, mas um espaço ao ar livre onde transcorriam refeições coletivas masculinas e

matutinas proporcionadas por homens com um estatuto bem definido: o chefe e os recém-

casados. O grupo teria abandonado a prática destas refeições exclusivamente masculinas, e

hoje tanto o chefe como os recém-casados oferecem refeições coletivas à porta de sua casa

como o fazem todos os outros membros da aldeia. Conforme nota um Juruna, o sentido do

“Tubatuba será assim”


Desenho de Yawajiwa, feito em computador (Apple Macintosh, programa KidPix.)

A futura casa do meio será a casa do cauim; a que fica à extrema direita é
a velha casa de Mayt¥wa que foi transformada em casa do cauim. Ela será
mantida de pé para hospedar Índios. As casas estão voltadas para o r i o ,
exceto aquelas enfileiradas à direita e à esquerda, que estão voltadas para
o centro da aldeia.

costume deixou de operar, pois o recém-casado não dá mais “o peixe do casamento”, nem o

chefe dá mais “o peixe da chefia”. Quer dizer, as refeições que proporcionam, por r e u n i -

rem homens e mulheres, não apresentam um caráter político especial e se dão sob o

mesmo signo das refeições coletivas ordinárias45.

45 As raras refeições coletivas masculinas a que assisti foram proporcionadas pelo homem mais

velho da aldeia, e ele nem desempenhava o papel de chefe nem era recém-casado. A comida con-
sistia em um cozido de cabeça de porco moqueada. O mesmo homem também proporcionou certa
vez cauim doce de milho (antes de fermentar) ao conjunto dos homens. A explicação que obtive
para esses encontros estritamente masculinos foi simplesmente que era bonito de se ver! A dife-
rença que apresentam com relação à separação dos sexos nas refeições que implicam os mortos é
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As aldeias Saúva e Tubatuba não chegavam a representar duas unidades políticas

autônomas. Os habitantes de Saúva sempre enfatizaram o reconhecimento de Kadu (uaha de

quase todos os homens) como o chefe dos Juruna como um todo. A autonomia política dos

Juruna no Parque do Xingu é praticamente nula, não só do ponto de vista de sua ação con-

creta como do ponto de vista sentimental. É verdade que os Juruna sabem manter um plano

de sua vida mais ou menos isolado dos vizinhos — e isto é, para eles, ficar entre si tomando

cauim. Seus antigos vizinhos do médio Xingu (Shipaya, Arupaya, Peapaya, Kuruaya etc.)

ainda são uma referência simbólica central sobre o que sejam civilização e política. Mas

os Juruna dizem que atualmente são subordinados ao chefe Txukahamãe, Raoni, e que,

nessa situação, encontram-se também os Kayabi, os Suyá e os Panara.

Em 1985 ensaiou-se uma reunificação da tribo. Os Txukahamãe, até então ocu-

pando a aldeia Kretire onde também se instalava um Posto Indígena, mudam-se para j u -

sante, e os Juruna tudo fizeram para instalar-se lá a fim de impedir a desativação do

Posto. Kadu entretanto não concordava com a mudança e não seguiu com o grupo. No K r e -

tire, onde todos estavam dispostos a viver juntos novamente, foi escolhido como chefe

principal um homem de Tubatuba, Mareaji, cunhado de cinco dos seis homens casados de

Saúva, e de mais outros quatro de Tubatuba. E como chefe secundário, foi escolhido

Wereade, um cunhado do principal e que já chefiava Saúva. Na compreensão dos Juruna, os

Txukahamãe abandonavam o Kretire para fugir das doenças que freqüentemente os aco-

metiam. O argumento de Kadu era então que os Juruna não deveriam habitar um local s a -

bidamente nefasto. Ele mesmo, triste por ver que seu grupo tomava uma decisão insensata,

estava decidido a retornar para sua terra natal, o Porori. Eu nunca soube com exatidão o

que o velho chefe tinha em mente, pois a ilha para onde pretendia se mudar, e que já foi

berço de uma aldeia Juruna, era então, como constatei alguns meses depois e no auge da

estação seca, uma ilhota que só poderia abrigar justamente uma única casa, destinada além

do mais a ser inundada nas cheias. Entretanto, seu melancólico projeto de ir viver num

que as mulheres não estão reunidas à parte para comer. Por outro lado, as refeições estrita-
mente femininas não são incomuns; algumas são feitas durante cauinagem, e então as mulheres
comem sob vaia dos homens; outras são feitas enquanto os homens não se encontram na aldeia,
mas trabalhando em grupo ou não.
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espaço que exprimisse bem sua condição de chefe abandonado passou rápido. A adminis-

tração do Parque não estava interessada em manter o Posto, pois isto significaria a

abertura de um Posto novo, já que o cargo da chefia de Posto fora levado pelos Txukahamãe

para a sua nova aldeia. Além desta decepção, os Juruna experimentaram outra, trazida com

uma rede fofocas divulgada por índios funcionários do Parque e que dizia ser o seu inte-

resse pelo Kretire motivado pela proximidade da BR-80. Queriam o Kretire para viver

todo dia entre os c a r a í b a s no povoado próximo vulgarmente chamado Bangue-Bangue. O

grupo então se dissolveu, cada um voltando para sua casa e aldeia, e abandonando o sonho de

viver num local onde pousam aviões trazendo Brancos e multiplicando as chances comer-

ciais — além, é claro, da renda que adquiririam aqueles que se tornassem funcionários.

Até o começo de 1988, Raoni e Aritana (um chefe Yawalapiti) partilhavam, s e -

gundo entendem os Juruna, a função de chefes gerais do Parque do Xingu, mas desde então a

aliança entre os xinguanos e os grupos do norte do Parque se rompeu, em função de uma

guerra, como dizem os Juruna, ou em função de uma disputa das lideranças políticas e

administrativas, indígenas, na Funai, em Brasília. De toda forma, a repercussão desta

disputa nas aldeias instaurou um clima de guerra. O caso, para os Juruna, deve ter sido

ainda mais alarmante porque os Kayapó do Pará — Txukahamãe ainda não pacificados por

eles — tiveram sua participação, clamando que os Juruna deveriam ser mortos.

Para contar brevemente, resumo o que me contou Mareaji um ano mais tarde.

Queria-se a exoneração do presidente da Funai, após o massacre recente dos índios Tikuna.

Enquanto delegações do Parque do Xingu e dos Kayapó do Pará encontravam-se em Brasília

para fazer esta reivindicação, duas acusações se cruzam. Uma que o presidente queria a

exoneração do diretor do Parque, membro do grupo de Raoni; outra que dois líderes,

Kayabi e Kamayurá, funcionários da Funai, apoiavam o presidente. O fracasso da r e i v i n -

dicação foi a eles atribuído e os dois foram ameaçados de morte, mas Raoni achou por bem

reprimir os exaltados. A possibilidade de substituição do diretor foi então levantada por

iniciativa dos próprios índios. Espalhou-se a notícia de que guerreiros Kayapó atacariam

as aldeias do Parque, desde os Juruna até os povos alto-xinguanos. Esta notícia se trans-

formou no que Mareaji chamou de documento, escrito em Brasília, que foi lido para os que

lá se encontravam, comunicando que os guerreiros estavam a caminho do ataque, e seu

conteúdo foi transmitido por rádio para o Parque. Tudo foi feito de um modo a sugerir que o

diretor pouco podia fazer para impedir o ataque. A conduta dos Juruna, Suyá e Kayabi

havia contrariado os ânimos de seu povo, os Kayapó, e agora eles já estavam bravos. Raoni

também estava contrariado com tudo o que estava acontecendo, deixando claro para os que
89

se encontravam em Brasília que não aprovava o ataque, e clamando que nos tempos atuais

toda a luta deve se dar contra os Brancos.

Na véspera do dia marcado para o ataque, o diretor voa para o Parque levando

consigo Mareaji. Os Juruna haviam fugido desde alguns meses para o Diauarum, desde as

primeiras ameaças, tanto mais que culminou num final de tarde ouvirem cantar o pássaro

≈ïkã-≈ïkã, reputado mensageiro de ataque Txukahamãe. Os moradores de Saúva se acha-


vam já abrigados em Tubatuba, e quando a mulher do chefe (este estava em Brasília) ficou

a comentar o sentido do canto do pássaro, os Juruna tomaram as canoas em direção ao

Diauarum.

Como os Juruna, os Kayabi e os Suyá também se refugiaram no Diauarum e aí se

prepararam para o ataque. Os xamãs ficavam encarregados de sonhar, os homens de p r e -

parar munição e flechas. À noite faziam apresentações de cantos de guerra, e durante o dia

faziam vigília: não podiam sair para a pesca para proteger as crianças e mulheres de um

ataque que poderia acontecer a qualquer momento. É claro que o contexto ia propiciando aos

homens tornar-se cada vez mais preparados para guerrear. Da parte das mulheres Juruna

contudo, o estado de ânimo era só aflição: a já longa escassez de comida e a certeza de que as

perdas humanas seriam bem graves acabaram produzindo tensões na sua relação com os

homens.

Mareaji, chegando ao Diauarum, ficou tranquilizado ao constatar as chances que os

grupos reunidos no Diauarum tinham de sustentar o ataque. Como tinha notícias recentes

foi convocado a dizê-las diante de todos e todos estavam prontos para o ataque e encenando

alegria. A noite foi alegre, triste e tensa. O último contato pelo rádio anunciara que os

Txukahamãe já haviam chegado ao Posto de Vigilância e estavam de partida para o Diaua-

rum. Dizia-se também que uma delegação de policiais armados fora convidada ao Parque

para proteger os grupos do Alto, e já se encontrava no Posto Leonardo. Às 8 horas da

manhã do dia seguinte o diretor chegou ao Diauarum acompanhado de alguns homens, para

um encontro. Todos chegaram armados de revólver ou carabina. Um velho Txukahamãe,

muito alto e todo negro foi o primeiro a falar:

“‘Nós vamos brigar, nós estamos brabos, por isso pedimos a vocês: Não vão mais
para o PIV [Posto de Vigilãncia na BR-80]. Se alguém não acredita, o cacique dele vai
deixar o corpo lá’ — o velho falou — ‘Quando algum de vocês vai pra lá, vocês vão
deixar o corpo lá, o urubu carrega vocês lá pro céu’. Aí o diretor estava contando
[traduzindo], quando ele fala, ele conta.
90

W. [Suyá] falou pra eles: ‘Nós estamos aqui esperando vocês. Se vocês querem
brigar mesmo, podem vir... nós estamos aqui. Vocês falam que são homens, mas não é só
vocês que são homens, não... nós todos somos homens. Nós não temos medo de vocês e
vocês não têm medo de nós. Se vocês são homens mesmo podem vir brigar com nós. Nós
estamos aqui para brigar, para morrer.
Depois K. [Suyá] falou pra eles a mesma coisa: ‘Sempre nós ouvimos a conversa de
vocês no rádio, que vocês vão brigar com nós. Só na conversa é que vocês falam de
briga, mas vocês não vieram até agora... já passaram muitos dias...’
Aí ficou lá... até... [depois do meio-dia. Pergunto a Mareaji se ele falou.] Nós
falamos... Mayt¥wa [um velho Juruna] falou: ‘Não sei porque nós vamos brigar entre
nós mesmos. Primeiro nós não ficávamos assim, nós lutávamos sempre juntos, nós
brigávamos só com o Branco. Agora vocês estão querendo brigar com nós. Não sei por
que vocês pensam isso. Isto é muito ruim para nós. Vocês é que sabem — nós estamos
aqui para morrer. Quando vocês quiserem brigar, tudo bem. Mas também nós não temos
medo. Faz tempo, nós brigávamos muito... Agora, depois, quando Orlando Villas-Bôas
apareceu, nós paramos de brigar. Agora nós vamos voltar a brigar? Tudo bem, a gente
está aqui. Porque nós mesmos não queremos falar mal de vocês, porque algumas pessoas
de vocês são casados com nossas mulheres... então nós estamos respeitando vocês, mas
vocês não respeitam nós. Então vocês é que sabem. Se vocês querem brigar, vamos
brigar. Primeiro vocês falavam [mal] só do Kamayurá e do Yawalapiti, só com aqueles.
Também nós não gostamos [deles], porque eles são feiticeiros, mas agora vocês falaram
pra nós, nós estamos tristes, todo mundo está triste’”.

São estas as falas de que Mareaji se lembra. Como os Txukahamãe presentes estavam

armados, não se deixava de pensar que a qualquer instante podiam disparar um tiro. Um

jovem Juruna combinou com Mareaji que caso algum disparo fosse feito, o sujeito seria

abatido pelos dois. Para isto, combinaram que o primeiro ficaria a capinar o mato p e r -

tinho do lugar onde estavam reunidos. O velho Txukahamãe parece ter percebido a intenção

e enquanto falava tinha um olho no grupo e outro no jovem. Ou seja, concluiu Mareaji, os

Txukahamãe também estavam amedrontados.

O que esse encontro significou para os Juruna (e os outros grupos) não é muito

claro, exceto que o definem como um dos momentos da guerra. Com efeito, se algo contrário

ao ataque aí se produziu, isto não foi explicitado. Simplesmente, os Txukahamãe não

chegaram a atacar. As ameaças prosseguiram, de forma que, após o encontro, a questão

permanecia em aberto. É verdade contudo que o encaminhamento que os Txukahamãe ado-

taram em seguida foi um tanto distinto, pois desviaram sua atenção dos que estavam no
91

Diauarum para os Juruna, Suyá e Kayabi que se encontravam em Brasília desde a tenta-

tiva de substituição do presidente da Funai. Dentre eles, todos os chefes já haviam r e -

tornado para o Parque, exceto o chefe dos Juruna.

Uma nova notícia foi transmitida pelo rádio: os que se encontravam em Brasília

estavam viajando para o Parque por via terrestre. No mesmo lance, foi noticiado que os

Kayapó ainda se encontravam no Posto de Vigilância, e pretendiam matar aqueles que s a í -

ram de Brasília quando chegassem ao Posto de Vigilância na BR-80. Kadu estava entre os

viajantes. No Diauarum, os homens tanto traçaram um plano de subir o Suyá-Missu até

uma fazenda, onde se conseguiria um caminhão, para interceptar os viajantes em Posto da

Mata, onde o ônibus pega a BR-80, quanto se preparavam para sair numa expedição de

vingança até o Posto de Vigilância. As mulheres Juruna de modo algum desejavam o con-

fronto armado e discutiram, chorando, com os homens, quando eles lhes contaram:

“‘Bom, nós estamos aqui. Se o pessoal passar por lá nós vamos pra lá. Como nós
estamos ouvindo a conversa de Fulano [o Txukahamãe que fez o comunicado]... não
sabemos se ele vai bater neles... nós vamos lá. Quem vai morrer primeiro somos nós
[entenda-se que Kadu seria o primeiro]. Vai muita gente, vai Kayabi, vai Suyá, vamos
nós’. Aí as mulheres falaram: ‘Ah, vocês não são pedra... Se vocês fossem pedra vocês
duravam’. Aí eu falei: ‘Tá bom, e daí? Nós somos para isso, estamos aqui é para morrer
mesmo. E vocês, vocês não. Se nós formos para lá, vocês vão ficar. E nós, nós vamos
para morrer, porque nós nascemos para isso’. Elas falaram: ‘Ah, você não é pedra!
Vocês vão lá, vocês morrem logo’. ‘E daí? tá bom! E vocês vão ficar aqui. Depois quando
eles matarem a gente eles vêm aqui matar vocês também’. Foi assim que nós falamos”.

Uma comitiva comandada por um Kayabi subiu o Suyá-Missu e chegou a tempo em Posto da

Mata para retirar os passageiros do ônibus. Daí em diante, as ameaças de saque e morte

prosseguiram contra os que se aventurassem a passar pelo Posto de Vigilância. Uma r e u -

nião no Parque foi realizada para se discutir a substituição do diretor, o qual fora con-

vocado mas não compareceu, assim como nenhum outro Txukahamãe. Sugeriu-se o nome de

um Kayabi para assumir o cargo. Contudo um líder Suyá, cunhado do candidato, não

aprovou a indicação alegando que os Txukahamãe o matariam, e ele não desejava vê-lo

morto.

Prevaleceu então o argumento Suyá: se os Txukahamãe não queriam entregar a

direção para outrem, que ficassem com ela, para evitar guerra. O conflito teve ainda o u -
tros desdobramentos, como um projeto de mudança de toda a população Kayabi para o r i o

dos Peixes, onde uma parte dela vivia antes de ser atraída para o Parque nos anos 50. Os
92

Juruna foram convidados a seguir com eles, e estavam mais ou menos tentados a fazê-lo. E

também um projeto de divisão do Parque em três áreas: uma para os xinguanos, outra para

os Kayabi, Suyá e Juruna, outra para os Txukahamãe. Parece que este projeto foi proposto

em Brasília; de toda forma, não contou com acordo dos Juruna e seus aliados.

Os Juruna haviam deixado as aldeias em março ou abril, e, incertos quanto ao f u -

turo, abriram roças no Diauarum onde ficaram até julho. Provavelmente porque as

“conversas” dos Txukahamãe cessaram, eles retornaram para as aldeias, evitando contudo

navegar para jusante, em direção ao PIV. Ainda no Diauarum, um líder Kayabi aconselhou

os moradores de Saúva, situada perto do Posto de Vigilância, a se estabelecerem definiti-

vamente em Tubatuba. Os de Saúva retornaram porém para a sua aldeia. Dias mais tarde,

Kadu foi convidá-los para viver com os parentes em Tubatuba, invocando sua preocupação

pelo isolamento da diminuta população daquele grupo — seis homens.

No começo de outubro, eu retornava ao campo. Havia sabido por um telefonema em

março que haveria guerra no dia 29 de abril, mas desde então não sabia que as coisas t i -

vessem chegado ao ponto que chegaram. Cheguei ao PIV por via terrestre perto da meia-

noite, e lá encontrei, ainda acordados, um grupo de cinco Juruna, chefiados por meu irmão

Kurewaji, sogro de um Txukahamãe, e entre os quais estava também um jovem cunhado de

um Txukahamãe. Pareciam decididos a passar a noite em claro; tinham ido a Bangue-

Bangue comprar gasolina, com a intenção de retornar no mesmo dia para a aldeia — não

tinham portanto levado rede. Eu dispunha de redes e cobertores para mais quatro pessoas e

propus dormirmos numa casa desocupada do Posto. Depois do transtorno de abrir a baga-

gem no escuro para procurar as redes e cobertores, sob a grande preocupação dos Juruna

de que os Txukahamãe acordassem e saqueassem os presentes do pessoal, armamos as redes

e fomos dormir. Nem 15 minutos se passaram e alguém sugeriu subir imediatamente para

a aldeia. Havia alguma coisa no ar, e achei por bem me curvar ao capricho dos Juruna,

lembrando-lhes contudo a distância de 2 km até a beira do rio e o peso da bagagem. Eu

tinha conhecido no ônibus um homem Tapirapé que viajava pela primeira vez ao Xingu,

com o objetivo de travar relações comerciais com os Kayabi, visando antes de tudo penas

de pássaros. Como já o convidara para pegar uma carona no carro que fretei para me levar

ao PIV, e para abrigar-se conosco, convidei-o para subir. Na beira do rio, os Juruna

entraram no mato para recolher o que lá haviam escondido: espingardas. Eu nunca tinha

visto isso — a etiqueta que conhecia dizia que não se anda armado quando se visita aldeias e

postos do Parque. Quando zarpamos, o piloto do barco me mostrou o revólver sob a camisa,

e a história da guerra me foi contada. Havia mais de seis meses que ninguém dos grupos
93

Juruna, Suyá e Kayabi visitava o PIV, aquela era a primeira vez desde então. (Em função

disso, os Kayabi inauguraram uma nova via de comunicação com os Brancos, Marcelândia,

onde se chega subindo o rio Maritsawá e seu afluente, o rio Arraia, percurso que tem a

desvantagem de ser muito mais longo e dispendioso que o de Bangue-Bangue.) Acordamos

Saúva às 3 da manhã e todos estavam preocupados com o desaparecimento do barco, já que

se tinha combinado de voltar no mesmo dia. Foi explicado que o chefe do Posto, um T x u -

kahamãe, lhes tinha dito para dormir lá e subir no dia seguinte. De um golpe, compreendi

a esperteza dos Juruna: ninguém teve coragem de dizer não ao Txukahamãe, mas poderiam

dizer-lhe futuramente que eu é que quis subir imediatamente para a aldeia. No mais, era

lua cheia. Nada no comportamento dos Txukahamãe encontrados indicava hostilidade — isto

foi ressaltado, e teria sido comentado e recomentado caso eu não estivesse chegando. Com a

minha chegada, os Juruna mostraram-se mais inclinados a falar da guerra do que dos s i -

nais de paz entrevistos naquele dia. Contaram-me que Kadu os convidara para ir morar em

Tubatuba, e eu lhes perguntei por que não iriam logo quando clareasse o dia, para assim

receberem os presentes que levava para eles.

Quando chegamos a Tubatuba ainda era noite. Por volta do meio-dia as canoas de

Saúva começaram a aportar. Tecidos, miçangas, anzóis... Grande alegria. ‘E você, Tânia,

onde está seu marido?’ ‘Meu marido não veio, vocês sabem que ele tem medo de onça’. ‘Eu

falo de seu novo marido. Aquele que você trouxe! O Tapirapé! Eu lhe dou esse peixe para

você assar para ele’.

O grupo de Saúva chegava para passar uns três dias. As casas ficaram lotadas, os

dias foram passando, ninguém sabia se ia voltar para casa amanhã ou depois de amanhã.

Um mês mais tarde, todos voltaram a Saúva para buscar a mudança e se estabelecerem de

vez em Tubatuba. Não fui capaz de observar os meios utilizados pelos dois grupos para se

conquistarem um ao outro, exceto que havia muita alegria, e em nenhum outro momento de

minha estada no campo ouvi tanto uso de termos de parentesco.

Quando voltei de novo ao campo, em maio de 1990, a ação do governo Collor j á

repercutia na vida do Parque do Xingu. As mercadorias que até então a Funai fornecia ao

Parque, fósforo, sabão, querosene, sal e gasolina, além dos instrumentos para a agricul-

tura, não eram mais distribuídos. Os índios haveriam de cuidar de si. O trânsito dos J u -

runa, Suyá e Kayabi no Posto de Vigilância achava-se completamente livre, ao mesmo

tempo em que havia crescido enormemente o trânsito de garimpeiros na confluência da

BR-80 com o Xingu, ou seja, no Posto de Vigilância. Membros daqueles três grupos man-

tinham quase constantemente acampamentos e barracas para vender peixe frito e frutas
94

aos garimpeiros, e assim poder comprar no Bangue-Bangue as mercadorias de que neces-

sitavam. Naturalmente, outros itens passaram para o primeiro plano dos interesses do

grupo, como café, acúcar, bebidas alcóolicas e roupas. Os Juruna que participavam deste

comércio adoravam-no, antes de tudo pelo clima das relações jocosas que se mantinham

com os Brancos. O conflito contudo não estava fora do horizonte, pois conforme me i n -

formaram, um Branco foi apedrejado, e o corpo carregado para o mato, por jovens índios

amigos dos Juruna.

Desde que vi Tubatuba pela última vez, em setembro de 1990, muita coisa mudou.

Até então havia como que uma preocupação moral de manter as mulheres e meninas d i s -

tantes do chamado Bangue-Bangue. Esta era uma ordem administrativa que atingia as

mulheres de todas as tribos, e a qual os Juruna viam com muito bons olhos. A força da

proibição foi diminuindo com a abertura do povoado às mulheres que lá necessitassem i r

para colocar dentaduras — o que era feito com recursos pessoais, e coisa que duas Juruna

tiveram a felicidade de poder ostentar.

A partir de1990 contudo, outras mulheres puderam saciar o desejo de conhecer o

povoado. É que um fazendeiro e dono de um bazar decidiu entrar para a política, e não quis

fazê-lo sem no mesmo lance arrogar-se o dever de ajudar os índios. Enviou pedreiros e

material de construção a Tubatuba — lá ergueu uma chamada Farmácia. E, além de homens,

convidou mulheres ao Bangue, onde os seus dedos foram manchados de graxa preta e de onde

todas saíram com o título de eleitor. Quando obtive esta informação, de homens Juruna que

recitaram com um certo escárnio os nomes de minhas amigas que então portavam docu-

mentos, soube também que Jerônimo (este é o seu nome) fora eleito vereador. As mais

recentes notícias, de 1993, permitem-me afirmar que ele de modo algum deseja r e s -

tringir-se aos votos. Abriu as portas de uma escola pública do Bangue para as crianças

índias, e convidou para ser seu assessor um homem Kayabi de rara inteligência, empre-

endedor e amistoso, e credor da confiança dos Juruna. As mulheres então não titubearam

em enviar os meninos para viver num Posto da Funai inaugurado recentemente a poucos

quilômetros do Bangue — agora a gurizada freqüenta a escola pública. Também o comércio

na beira do rio se diversificou. Um Juruna obteve de um cunhado Txukahamãe a permissão

para abrir um bar com refrigerante e cerveja, na beira do rio, para os garimpeiros.

Afora isso, em 1991, a Fundação Mata Virgem comprou para o Parque uma lancha,

e com ela chegaram, provenientes de São Félix do Xingu, dois pilotos filhos de um homem

Juruna e uma mulher Branca, trazendo consigo uma mocinha Branca que conheceram

durante o percurso e lhes ofereceu, parece, seus serviços sexuais. No Parque, os pilotos
95

procuraram sua tribo e lá fixaram residência, pois receberam como esposas duas moças,

também irmãs, nascidas de um homem Juruna e uma mulher Suyá. A jovem Branca passou

alguns dias em Tubatuba, onde, no caso de serem procedentes as palavras que me disse um

jovem, contaminou fulano e beltrano com doença venérea. Em 1993, os pilotos trouxeram

um outro irmão que também foi presenteado com uma bela garota de 12 anos.

Os dois pilotos têm (ou tiveram) idéias um tanto extravagantes. Dizendo-se

preocupados com o futuro dos Juruna de Tubatuba, informaram-nos de seus direitos

imemoriais sobre terras situadas a jusante, precisamente uma ilha selvosa que o grupo de

Tubatuba pensa ser a ilha ãmërïñab¥, onde viveu o magnífico xamã Waisa. Sugeriram

então que o grupo efetuasse uma derrubada das árvores lá existentes para vender a m a -

deira e comprar com o dinheiro uma fazenda no rio Arraia para criação de gado. Porque

assim, no caso de os Juruna virem a perder a terra onde hoje habitam, todos se mudariam

para a fazenda. Eu soube do fato por um jovem que se entusiasmara com a idéia. E dois

meses mais tarde, quando tive a oportunidade de conversar sobre o assunto com um Juruna

cuja capacidade de liderança me parece primar sobre a de todos os outros, seu pragma-

tismo destruiu toda a argumentação contrária que fui capaz de desenvolver. Disse-me

simplesmente que era impossível afirmar de antemão se o procedimento seria bom ou

ruim para os Juruna, uma vez que jamais tinham vivido uma experiência semelhante.
96

2. O rio e as estações

A vida econômica dos Juruna se desenvolve em estreita articulação com o regime

das chuvas, em sua determinação do nível do rio tanto quanto em sua ligação com o m o -

vimento geral de renovação da natureza. Os Juruna distinguem duas estações, “tempo da

chuva” (outubro-abril) e “tempo da seca” (maio-setembro), também caracterizadas

como “tempo da cheia” e “tempo da vazante”46. A noção de cheia é utilizada para a conta-

gem dos anos: “passaram-se duas cheias” corresponde aproximadamente a passaram-se

dois anos. Com efeito, sob a perspectiva do ritual, parece legítimo encarar abril como o

período de passagem para um novo ano. As chuvas diminuem sensivelmente, a vazante se

inicia marcando o tempo da colheita da mandioca nova, dita propiciar um cauim de grande

força embriagante, e que é de direito dedicar aos mortos. Nesta ocasião, havia lugar para

um grande festival (֕֋nay karia) de bebidas e cantos onde, diante dos mortos, os vivos

buscavam assegurar-se de que teriam saúde durante todo o período de consumo da man-

dioca, que equivale justamente a um ano. Assim se passava ao ano novo.

O nível do rio fornece o principal parâmetro de distinção do que, de uma forma um

tanto grosseira, chamaríamos meses do ano: “quando o rio começa a subir”, “quando o r i o

está subindo”, “quando o rio transborda”, “quando o rio começa a baixar”, “quando aflo-

ram as praias” etc. A pesca e a caça deixam-se infletir por este movimento das águas, em

acordo com a regra explícita de que é preciso buscar os animais quando estes vivem seu

período de abundância alimentar e/ou estão gordos; ou com uma outra, implícita, de que se

deve desfrutar ao máximo das fontes naturais mais acessíveis da ocasião. O começo da

vazante é a estação da anta, do porco (queixada) e do caititu; estes animais estão gordos

devido ao amadurecimento dos frutos que comem durante as águas altas; e, de resto, o porco

e o caititu encontram um grande regalo nos caranguejos que proliferam nos terrenos

alagados que estão secando. Neste ínterim, os macacos coatá e prego estão magros; sua e s -

tação é o meio da cheia, quando amadurecem seus frutos na floresta. A gordura da caça é

dita tornar a carne perfumada, e por isto apetitosa, porém esta é uma razão insuficiente

para levar os Juruna a se organizarem para caçar na estação reputada conveniente e nos

locais reputados abundantes: a floresta profunda, longe das margens. Tem-se grande

46 Falo por vezes em inverno e verão, correspondendo respectivamente ao período de chuvas e

ao período de seca.
97

apreço por carne de caça, mas a pesca é a atividade que domina. Não se usa perambular na

floresta à procura de alimento; isto exigiria um acontecimento extraordinário. Os antigos,

sim, ocasionalmente dormiam três ou quatro noites no mato, caçando. Ordinariamente, os

Juruna caçam navegando. A madrugada é o momento ideal. Com o auxílio da luz i n t e r m i -

tente de uma lanterna, remando silenciosamente rio Maritsawá acima, exploram-se os

sinais na vegetação da orla. Divisando a caça, o Juruna aporta e entra no mato em sua

perseguição. Dificilmente encontra presa nestas explorações nas proximidades da aldeia, e

acaba se dedicando à pesca. Esporadicamente um grupo de homens parte para caçar a j u -

sante, pernoitando uma ou duas noites na praia (quando possível), e seguindo o mesmo

método acima ou acrescentando-lhe um pequeno desenvolvimento: o percurso por uma

meia-hora ou pouco mais a pé na floresta, paralelamente ao rio.

Os Juruna vivem seu principal período de caça durante as águas baixas, quando se

dedicam às viagens para jusante em grupos geralmente grandes e levando toda a família.

Isto culmina com a desova do tracajá, em agosto. A coleta de ovos e de tracajás surpreen-

didos nas praias durante a noite, a caça de mutuns e macacos antes do nascer do sol,

acrescentadas à pesca, caracterizam este momento do ano como um período de grande

abundância. Os Juruna entregam-se com prazer a estas viagens em que se pernoita cada dia

em uma praia diferente e em que se navega a maior parte do dia.

Por sua profundidade e corrente, o Xingu não é um rio indicado para a pesca com

arco, a não ser excepcionalmente. Os Juruna pescam em lagos, afluentes e várzeas, em

concomitância com a sazonalidade que marca a vida dos peixes. São peixes de inverno os que

se alimentam de frutos, como o matrinxã e o pacu, ou de limo, como o curimatã. O c u -

rimatã abandona o rio em cardume, “com grande festividade”, no começo das chuvas,

tomando como caminho igarapés onde as alegres fêmeas desovam, e daí seguem adiante na

companhia de seus pares até os lagos que se cobrem de aguapé no inverno, e cujas raízes

são ricas em limo. O matrinxã e o pacu abundam nas lagoas e várzeas para onde migraram

à procura dos frutos maduros que caem na água. Os peixes de verão são o tucunaré, o

trairão e o bicudo, peixes carnívoros e por isto definidos como canibais, que vivem nos

lagos durante o verão e mudam-se para o rio no inverno (razão pela qual não são aces-

síveis). Assim, no começo da vazante, os peixes de inverno se mudam para o rio e os peixes

de verão se mudam para os lagos. Quando as chuvas cessam, uma pequena ave, ezi (de que

se diz ser parecida com um patinho), anuncia ao matrinxã, o pacu e o curimatã a chegada

do verão, cantando (tok tok tok tok...) à noite nos lagos para atraí-los e dizer-lhes: “As

águas estão baixando! Vamos todos para o rio!”. Doravante esses peixes se escondem nas
98

águas profundas do Xingu, execto que, por alguns dias no mês de junho, os Juruna rega-

lam-se com o matrinxã que sobe o rio quase à flor da água e possibilita uma das raras

ocasiões de pesca com arco no Xingu. Outras oportunidades deste tipo são propiciadas pela

queda de insetos que atraem para a superfície numerosos pacus, ou pela abundância de

tracajás no auge da cheia (em março).

A pesca com linha e anzol, também muito praticada, abre aos Juruna os peixes do

Xingu independentemente da época do ano e do cardápio sazonal, para cuja variação con-

t r i b u i47. Quando praticada defronte à aldeia, a pesca com anzol tem muitas vezes um c a -

ráter de pesca de última hora, na qual o pescador se dispõe a levar para casa produtos

menos nobres como (em ordem decrescente) piranha, corvina, peixe-cachorro, e p i r a -

rara. A pesca com timbó é importante em dois momentos do ano: no meio da vazante, quando

os igarapés são ricos em filhotes de peixes muito variados, e no começo da cheia, nos

igarapés que o curimatã procura para a desova.

A relação verão-inverno não consiste unicamente em uma oposição entre ausência

e presença de chuva. Esta oposição é ela mesma determinada por uma oposição entre dois

tipos de ventos, os quais, por sua vez, são comandados por uma oposição entre dois grupos

de constelações. Governam o inverno as constelações chamadas “Urubu” (oho) e “Cabeça

de Fantasma” ( ãwã taba), que encarnam a alma de um urubu e a alma de uma cabeça de

Índio que foi extraída e ornamentada por Juruna antigos, para a cauinagem de comemo-

ração da guerra. Não posso identificar com segurança estas constelações; suspeito contudo

que “Cabeça de Fantasma” seja uma parte de Virgem, onde Spica assinalaria a cabeça

propriamente dita e as duas outras estrelas, que formam com Spica os vértices de um

triângulo, assinalariam as duas penas de arara que os antigos enfiaram nas orelhas do

Índio. E “Urubu”, segundo posso presumir mediante a análise da astronomia indígena feita

por Lévi-Strauss (1964), talvez seja Corvo. O verão é governado por Plêiades

( ãnãyïb¥a ˚i˚ib¥ , “mui-muitas estrelas”), Orion ( takurare , “Jabuti”) e Touro; nesta

última se distinguem um caçador chamado Kãnãnãmã (ou Kãnãnãm†, segundo o falante) e

uma “Queixada de anta”. O conjunto dessas constelações inclui ainda duas estrelas não

identificadas: os “Mastros da rede de Plêiades”.

No início da vazante, as Plêiades desaparecem do horizonte ocidental. Ao cabo de

poucos dias vêm renascer no horizonte oriental antes do nascer do sol. É maio. Os Juruna

47 Eu acrescentaria que apesar de terem o tucunaré como peixe de verão, os Juruna o consomem

praticamente o ano inteiro.


99

Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Jan Fev Mar Abr
Começo Fim das
das chuvas chuvas

V A Z A N T E
C H E I A
DERRUBADA QUEIMADA
PLANTIO
milho mandio-
verde ca nova

ALDEIA A L D E I A
PRAIAS
PESCA EM LAGOS E RIOS PESCA EM LAGOS E VÁRZEAS
tucunaré, trairão, bicuda matrinxã, curimatã, pacu

CAÇA E COLETA

TIMBÓ TIMBÓ
peixinhos curimatã

CERÂMICA CANOAS E BANCOS

V E R Ã O
I N V E R N O
Atividades sazonais

acreditam poder determinar a boa duração do verão que entra com esse rito: na alba, cava-

se um buraco e aí se enterra uma pedra grande depois de dizer: “Plêiades, olhem para

mim. Venham devagar!” É verdade que ninguém se encarrega da aplicação desta receita,

afirmando que os antigos, sim, faziam isso. É preciso que o verão seja lento para dar

tempo de se fazer a derrubada da roça antes do auge da estação, e então poder-se usar o

tempo restante para as viagens de caça e coleta de ovos de tracajá. Isto, aliás, as mesmas

estrelas assinalam quando estão posicionadas no alto do céu (em agosto, pela madrugada).

As Plêiades são padroeiras da agricultura. Conta-se que desceram do céu para se

casar com uma mulher Juruna e eram um agricultor miraculoso que muito rapidamente

derrubava uma roça de grande extensão sem dispender energia. Lançava o facão na floresta

e este instrumento cortava por si todo o mato pequeno e retornava para suas mãos; lançava

em seguida o machado, que derrubava todas as árvores existentes dentro daquele campo. Em

contrapartida, era um caçador azarado. Essa circunstância acha-se configurada no grupo

de constelações que governam o verão. Kãnãnãmã (Touro), um exímio caçador, está ofe-
100

recendo a Plêiades um “Queixada de anta” ( tüwã napa÷a ) e um “Jabuti” (Orion), com

três ovos (Três Marias)48.

Destas constelações da agricultura e da caça provêm os ventos que impõem a v a -

zante, levando embora as águas que encheram o rio. Dentre estes ventos destaca-se o

chamado “Grande Vento” que sopra de montante intensa e ininterruptamente durante três

ou quatro dias perto do fim de maio, e outros tantos dias em junho. Estes ventos trazem

também uma baixa muito significativa da temperatura durante a madrugada, pois todas as

estrelas que os enviam são frias; as Plêiades, particularmente, “são gélidas como a lua”.

Quando as Plêiades estão adiantadas em sua marcha em direção ao horizonte o c i -

dental, “Urubu” renasce no horizonte oriental na alta madrugada. “Urubu” chega com

seus ventos quentes e aquosos que trazem as primeiras chuvas. Os Juruna fazem a quei-

mada das roças. Após alguns dias, renasce “Cabeça de Fantasma”, portadora de ventos ainda

mais ricos em água e calor. Assim, no período que vai aproximadamente do meio de s e -

tembro ao meio de outubro, instaura-se o inverno. Os Juruna fazem o plantio e o r i o

começa a encher.


Os Juruna gostam da estação seca e temem demasiadamente as chuvas, em cujas

precipitações pretendem interferir por meio de pequenos ritos. A partir de uma certa

tormenta, nós abordaremos estes ritos com o intuito de ressaltar a multiplicidade de

forças que interferem no inverno.

Chove sobre Tubatuba. É fim de outubro, 1988. As chuvas do último inverno

derrubaram duas casas nesta aldeia e abalaram as outras que talvez não se sustentem até o

fim do inverno que se inicia. Ouviu-se dizer que as mesmas chuvas devastaram a aldeia dos

Txikão. Com certeza foi a feitiçaria dos Índios que vivem a montante, os xinguanos. Eles

fazem feitiço para todo tipo de infelicidade humana, sabem também esculpir imagens do

relâmpago para enterrar nas aldeias dos vizinhos. Os ventos e as chuvas se tornam de-

vastadores. Esperava-se que a boa convivência das tribos, pacificadas desde a vinda dos

irmãos Villas-Bôas, representasse realmente o fim da hostilidade dos Kamayurá contra os

48 Isto na versão de Kadu; a versão de Wereade não diz que Plêiades era azarado e assim

Wereade entende que a configuração estelar implica uma troca de jabuti por queixada de anta en-
tre Plêiades e Kãnãnãm†.
101

Juruna. O tempo das guerras passou, contudo, observa Kadu, a feitiçaria aumenta cada vez

mais. Do mesmo modo, o tempo das guerras passou; entretanto esteve a ponto de irromper

há seis meses um combate. As violentas chuvas do último inverno eram já a mensagem da

guerra. Os Txukahamãe tomaram-se de inimizade pelos Juruna, Suyá e Kayabi. É preciso

pois cuidar-se no inverno que entra, pois esta é a época em que os Txukahamãe gostam de

combater. Por meio da magia de abrir talhos no tronco de certa árvore, e do brado dos

cantos de guerra, esses Índios produzem, intensificam e prolongam a queda das chuvas

quando querem atacar os Juruna, na certeza de que os Juruna, desistindo de ir à pesca ou à

roça, estão recolhidos na aldeia; e que tampouco haverão de sair ao encalço deles após o

ataque. É preciso ter cautela, “os Txukahamãe entendem a linguagem da chuva”, e r e a -

vivaram sua muito velha hostilidade. Por isto o grupo de Juruna que há anos atrás se s e -

parou do grupo de Tubatuba para fundar a aldeia Saúva reuniu-se de novo ao grupo de

Tubatuba neste mês de outubro do ano de 1988, em atendimento ao convite de Kadu. Todos

desconfiam que os Índios estão em ação nesta primeira grande tempestade do ano.

As casas já danificadas abrigam pois muita gente, e agora tanto os recém-chegados

quanto os moradores de Tubatuba têm de se desdobrar para construir casas novas antes do

auge da cheia. Foi preciso transformar em moradia a casa do cauim, onde eu também estou

hospedada. As inúmeras redes da casa foram recolhidas, há goteiras em toda parte, além

disso o vento põe a chuva dentro de casa, soprando-a pelas fendas da parede de troncos. As

três famílias que aí habitam comprimem-se, cada uma em torno de si, sentadas em p e -

quenos bancos. As chamas do fogo comum foram desativadas para não atrair raios. Fosse

noite, ninguém extrairia da lanterna um raio de luz, pois isso, assim como o rádio e o

espelho, atrai raios. Porém uma fina coluna de fumaça é enviada até as nuvens, exalando as

propriedades benéficas do breu perfumado da almecegueira. Os Juruna têm o breu da á r -

vore em que entalham canoas e bancos, e de que extraem a resina para o ornamento tribal

da testa e da risca dos cabelos, como um antídoto contra a tempestade. Afora os piados

constantes dos filhotes de uma ave da família da gaivota que os meninos vêm tirando do

ninho na praia desde um mês, todo ruído vem da chuva. Estas avezinhas trazem sorte para

os Juruna, protegem-nos contra a chuva por contarem elas próprias com a proteção da

chuva. As crianças estão abafadas no corpo curvado das mães, que tapam o ouvido delas mal

pressentem que o trovão vai explodir. Com isso conseguem que as crianças inocentes não

chorem, pois os gritos humanos promovem a comunicação entre o alto e o baixo, já satu-

rada pelas águas que caem continuamente. Quando cai uma tempestade os Juruna fazem
102

silêncio, acreditando que assim como as chuvas objetivamente destroem o teto as casas,

podem desmoronar o céu mal amarrado a cipós podres.

No instante em que a tempestade se armava sobre Tubatuba, muitos brandiram

remos para dispersar os nimbos ou varrê-los para ir chover noutro lugar. Muitos a s -

sopraram em direção aos nimbos, ou o sopro simples ou fumaça de tabaco. Desta vez os

nimbos não dissiparam. Já se queimou breu de almecegueira e chove com ventos, raios e

trovões. A agitação atmosférica prossegue além do tempo esperado. Por instantes, pode-se

ouvir um homem da casa vizinha bater uma borduna à terra. Desta vez, os Juruna operam

ritos suplementares para confrontar estas potências do alto que são a nuvem ou chuva ( a

que se aplica o mesmo termo: amãna) e o relâmpago. ÷I÷ãba enrola a ponta superior do

arco com um chumaço de algodão, cujas sementes a filha dele jogou há pouco sobre as

brasas quase apagadas do fogo. Em seguida, ele atravessa o arco por uma fenda da parede e

finca a ponta inferior na terra dentro de casa. O arco está lá de través, e ele, de pé, a face

quase tocando os troncos, voltada para o leste, onde corre o rio, começa a soprar para o

lado de fora. Parece muito concentrado e com discrição vai soprando a curtos intervalos.

Isto dura um longo momento. Dura até que cessam o vento, os raios e os trovões. Quando se

limita a derramar água é que a chuva foi pacificada.

Que é a tempestade? Trata-se em certos casos de vingança da chuva contra as

pessoas que “ridicularizam” os animais, rindo deles, dirigindo-lhes a palavra ou dando-

lhes alimentos impróprios (por exemplo, peixe a uma arara; fruta a um martim-pes-

cador). No alto, na morada da chuva, há árvores que dão o granizo, o qual tem forma de

cabaça, é de madeira e bem grande49. Quando a chuva se irrita, põe-se a bater nos g r a -

nizos, reduzindo-os aos fragmentos que vão caindo sobre a aldeia Juruna para destruir as

casas. Sua transformação em gelo dá-se durante a queda. Teme-se que a queda de blocos

grandes como um tijolo por um tempo prolongado provoque a erosão do terreno da aldeia e

dê origem a um lago de águas profundas. A frieza contaminaria os artefatos e o cachorro,

desencadeando sua transfiguração em antropófagos vorazes50. Os tipitis vão virando s u -

curi, as redes vão virando piranhas, os cachorros vão virando feras, as canoas vão v i -

rando o ogro pa÷¥ . E as pessoas vão sendo devoradas. Aqueles que conseguem fugir são

resfriados com intensidade, e logo transformados em termiteira ou cupinzeiro.

49 Granizo se diz kuãrãña. Este é também o nome de uma árvore cujas folhas são ditas frias e ,

por isso, boas para emplastros contra dor de cabeça.


50 Designa-se este processo pelo verbo ãw†µü .
103

Os Juruna associam os animais de estimação a este quadro trágico. Pois uma vez,

como está fixado em um mito, uma velha sobreviveu ao cataclisma salvaguardada por um

papagaio com o qual embarcou improvisadamente em um grande vaso de cerâmica próprio

para o cauim51. Um homem de uma aldeia vizinha navegava e avistou o vaso. A velha con-

tou-lhe como a chuva afundara a aldeia. “Veja, eu estou com meu papagaio. Se eu não t i -

vesse um eu não estaria viva, eu me teria transformado em cupinzeiro. Como é frio o

granizo!” E o homem levou-a para a aldeia dele. Todo mundo quis ver a devastação, chovia

porém tão intensamente ainda que ninguém pôde aproximar. Tomaram um banho preparado

com a seiva do cipó “droga do relâmpago” e dirigiram-se de novo ao lugar. Chovia então

levemente; todos viram: a aldeia não existia mais, as redes, as canoas e os tipitis haviam

comido todo mundo.

O que pode encolerizar a chuva? Mutucas e piuns vão até a chuva dizer-lhe que tal

ou qual animal de estimação foi objeto de jocosidade e gargalhadas em tal ou qual aldeia. E a

chuva vinga o animalzinho com tempestade e granizos cataclísmicos. “Não ridicularizem

os animais de estimação! Não lhes ofereçam alimentos impróprios! Não riam à custa deles!

Os piuns são ruins! Os piuns farão fofoca de vocês junto à chuva!”, os Juruna dizem às

crianças52.

Retomando o mito, quando os Juruna estupefatos indagaram-se diante da aldeia

desaparecida: “Por que razão nós estamos sofrendo tudo isso?”, a velha testemunhou: “ F o i

dito às crianças: ‘Peguem esta arraia seca e divirtam-se. Dará um bom brinquedo!’“ E as

crianças pegaram a arraia que jazia morta, colocaram-na sobre três pedrinhas e d e r -

ramaram em cima dela um punhado de areia. Ficaram brincando de torrar farinha no

suposto tacho de cerâmica, extraindo disso grandes risadas. A maldosa sugestão vinha de

um rapaz descontrolado cuja mãe discordara de seu casamento com uma moça que vivia em

outra aldeia e de quem ele gostava muito. Seu casamento implicava mudar-se para a aldeia

do sogro, mas a mãe não queria separar-se dele, e ele, cheio de raiva, vendo a arraia e s -

turricada na praia, propôs a brincadeira às crianças e foi embora em sua canoa. Era a

desova de tracajá, agosto, o auge da estação seca. O céu estava azul, não havia mais que uma

camada fina e clara de nuvem a leste. A tempestade desabou sobre a aldeia fora da estação.

51 A cerâmica não é vulnerável à transfiguração provocada pelo granizo; diz-se também que, à

diferença de todos os artefatos, a alma da cerâmica não age contra o homem em nenhuma c i r -
cunstância.
52 A expressão que aqui traduzo por ridicularizar, ijo waret¥t¥ko, é a mesma que define a r e l a -

ção de brincadeira entre primos cruzados e não-parentes.


104

Com esse elemento maravilhoso comprova-se ainda uma vez que a chuva vinga os animais,

é sua protetora, jamais os prejudicaria. Assim e em contrapartida os animais de estimação

(desde que não se ria deles) protegem os homens da chuva.

O que se deve fazer quando se constata que alguma criança ridiculariza um bichinho

e dentro de poucos dias ou mesmo poucas horas nimbos de chuva se acumulam, obscure-

cendo o céu? Conta-se que os adultos devem se adiantar à chuva, efetuando eles mesmos a

vingança por meio de uma farsa. É preciso denunciar o insensato. Então obrigam-no a

deitar-se na terra, a céu aberto, e um homem armado com uma borduna brada que o vai

matar. Em seguida bate repetidas vezes a borduna contra a terra, bem perto do culpado, de

modo a levar a chuva a pensar que ele morreu. As nuvens dissipam-se, a chuva faz-se

leve.

Qual o grau de adesão das crianças à proibição de ridicularizar os animais? Até

onde pude observar, ocasionalmente crianças e jovens se divertem às custas dos animais de

estimação dos outros. De vez em quando, meninos perseguem e treinam sua pontaria contra

as proibidas aves chamadas “mãe da chuva” (não sei identificar) que aparecem na aldeia

no início do inverno e ficam perambulando pelo chão. Os adultos bem encontram razão

para chamar a atenção das crianças, mas o fazem de uma forma que as crianças não chegam

a dar ouvidos, exceto quando há ameaça de chuva. Observei também que não se apontam

culpados e os Juruna se contentam em sair de casa debaixo de uma chuva de granizo ou de

uma tempestade que se alonga, com uma borduna ou mão de pilão para bater a terra, sem

alarde. Um deles disse-me um dia: “Pensei que o céu ia desmoronar, fui bater a terra com

minha borduna.”

Que animais a chuva mantém sob sua guarda? Todos ou quase todos. Destacam-se

porém aqueles cujo ciclo de vida é mais estreitamente relacionado com a entrada da esta-

ção. Assim são as aves da família da gaivota que em agosto-setembro põem ninho a céu

aberto nas extensas ilhas de areia que afloram no rio ao longo da vazante. Aí, quando os

filhotinhos vão quebrando a casca do ovo, vão assinalando o fim do verão e a proximidade

das primeiras chuvas. Assim são também os sapos de espécies diversas cujo vozerio se

eleva para anunciar o inverno. A relação que se trama pois entre a chuva e eles permite

tomá-los como enviados ou mensageiros da chuva53. E nisso se apóia a crença de que tam-

bém são protegidos e vingados por ela.

53 Isto não tem alcance geral. O tracajá desova no mesmo período mas é dito xerimbabo de um

povo fantasma que vive no rio e que o vinga enviando doenças.


105

Os Juruna abordam o complexo chuva-granizo-relâmpago-trovão de duas p e r s -

pectivas. Ora é a chuva-nuvem (amãna ) que representa o papel de agente, ora este papel

cabe ao relâmpago (napipa). Sob este termo concorrem um povo e o fenômeno relâmpago;

dir-se-ia: agente e ação. Houve um tempo em que os relâmpagos foram dizimados e os

Juruna não mais podiam cultivar suas roças: o verão prolongava-se indefinidamente. A

caminho de uma guerra, os homens haviam acampado ao pé de uma grande árvore para

passar a noite e foram atacados e mortos pelos relâmpagos, que habitavam justamente o

ôco dessa árvore. Um jovem, o único sobrevivente, regressara e dera a notícia. Passados

alguns dias o xamã descobrira o que era preciso fazer para vingar-se. Então conduzira o

grupo até o local, munido de um cesto repleto de pimenta, e aí ateara fogo. A fumaça de

pimenta obrigaria os relâmpagos a sair de sua morada, e os Juruna os flechariam. Eles

entretanto morreram sufocados. Um garotinho, tendo agradado bastante um Juruna, fora

salvo por este, que, decidido a adotá-lo, dera-lhe água para beber e um banho. Tratava-se

de uma bela criança que aprendera a falar Juruna com perfeição. O pai desenvolveu um

hábito, segundo o narrador, incompreensível: passar miolos de lagarto no menino em uma

linha que partia do alto da cabeça e descia até a ponta do nariz. Isto o deixava agitado, b ê -

bado e bravo, andando às tontas, em círculo, no terreno da aldeia. A cada ano os Juruna

vinham preparando a clareira, a queimada e o plantio das roças. Era inútil; a plantação

morria por falta de chuva. Todos haviam ido um dia às roças averiguar o crescimento das

plantas, deixando a sós na aldeia o relâmpago e seu dono. E foi que este aplicou-lhe o e s -

tranho tratamento. Enfurecido, o relâmpago flexionou e enrijeceu o braço, e bateu-o

contra o flanco, fez-se um estrondo, o Juruna caiu partido em dois pela cintura, o r e -

lâmpago subiu para os céus. Choveu. Reativara-se o ciclo das estações. Com o passar do

tempo, a população dos relâmpagos cresceu novamente. A fumaça de pimenta (por ter s u -

focado a primeira população) foi elevada então a antídoto contra tempestade, ao lado da

fumaça de breu de almecegueira e sementes de algodão e urucum.

O raio consiste no brandir da borduna da gente-relâmpago, borduna que mede mais

ou menos um palmo e meio. Pode-se promover a suspensão do inverno tomando-se esta

arma; um grande xamã teria esse poder, tanto quanto o de capturar o próprio dono do raio.

Conta-se que a caminho de um igarapé que os curimatãs subiam para a desova, dois xamãs

foram surpreendidos por uma tempestade. O relâmpago feria o ar com sua borduna, ge-

rando grandes estrondos. Estava irado; os xamãs iraram-se também. Depois de assopra-

rem as mãos, correram em perseguição ao relâmpago, até capturá-lo. Amarraram-no

com cipó, e, o pacote, amarraram-no de novo ao galho de uma árvore. Estancou a chuva
106

nesse instante e os dois seguiram seu caminho. Foi suspensa a estação das chuvas. Entre-

tanto, a liana acabou ressecando e afrouxando com o calor do sol, o relâmpago libertou-se,

a estação retomou seu curso. O sopro que dotou as mãos dos xamãs do poder de capturar o

relâmpago é tido como o gesto inaugural do rito xamânico de assoprar contra os nimbos

carregados, no momento que antecede a precipitação. O sopro de um xamã intimida o r e -

lâmpago, obrigando-o a chover apenas o quanto suportam as defesas humanas. Os Juruna

também confiam que o sopro de qualquer pessoa, acompanhado ou não de fumaça de tabaco,

é suficientemente potente para dissipar nuvens.

Também se descobriu certa vez que o relâmpago teme a palmeira pati ( ˚ïpã) . Ele

visou uma outrora, e disparou com intenção de rachá-la ao meio. E foi que ficou preso no

tronco. O inverno foi suspenso; as plantas pereceram nas roças. Caminhando na floresta,

um finado viu a borduna do relâmpago engastada na palmeira. Mal a arrancou, ela furtou-

se velozmente de sua mão e seguiu para o alto. O relâmpago guarda a lembrança do a p r i -

sionamento e desvia-se da madeira negra dessa palmeira, que, no passado, quando viviam

no médio curso do rio, os Juruna utilizavam para fazer arco (não se encontra pati no

território atual). Para se proteger da ação do relâmpago era esse o arco que se fincava

perto da casa, depois de enrolar algodão na extremidade superior. Deixando-se ver a

grande distância, a brancura do algodão assinalava a presença da palmeira; o relâmpago

cuidava de não disparar em direção àquela casa.

Outra experiência bem sucedida foi a que concebeu um xamã durante uma grande

tempestade. Ele extraiu a seiva de uma liana cujas propriedades eram desconhecidas,

aparando-a em uma panela com água. Saiu direto à chuva, ergueu a panela e verteu o

conteúdo. Cessou a tormenta nesse instante. Desde então os Juruna preparariam de vez em

quando uma infusão com aparas e seiva da liana, que se tornou por isto conhecida como

“droga do relâmpago”, para dar banho nas crianças; na vida adulta, não se sucumbiria à

tempestade.

Esta liana floresce no começo do inverno. As flores chegam com as primeiras

chuvas e fazem oposição a elas. De um vermelho vivo e “muito parecidas com pena de

arara”, evocam o diadema de penas de arara que o sol — ele próprio um homem — porta e

que irradia a luz e o calor solares. “Você já notou que quando há sol não chove?”, Wereade

interpelou-me, acrescentando que é por isso que quem quiser adiar a entrada do inverno

deve colher aquelas flores e compor um diadema para usar durante caminhadas na floresta.

A chuva teme o cocar, as nuvens se dissipam, os relâmpagos não se lançam.


107

Há ainda um rito que não se dirige à tempestade nem ao relâmpago, mas ao tempo

encoberto. Era final de dezembro; desde vários dias o tempo estava encoberto, chuvas

grossas alternavam-se com chuvas finas, entrecortadas por curtas horas de estio. Ao

meio-dia Madayu entrou na casa do cauim discretamente (pois então os que tinham se

abrigado nessa casa já estavam vivendo em casa nova), e com uma bacia e uma pá, foi ao pé

do fogo apagado, e de sob o grande tacho de torrar farinha recolheu uma boa porção de

cinza. Sua nora chamou minha atenção: “Você está vendo? ela está entediada com o tempo

nublado!” Madayu derramou a bacia cheia de cinza nas águas do rio e tudo o que me disse

foi que isto faria o sol voltar a brilhar.

Dezembro é um mês de grande movimento na casa do cauim, porque é o tempo do

milho verde e para processar cauim de milho todas as mulheres da aldeia trabalham j u n -

tas. Em 1988 contudo não havia milho verde. O período passado no Diauarum para fugir

dos Txukahamãe, e preparar-se para a guerra, impediu os Juruna de abrir roças p r ó -

ximas à aldeia. No passado, quando se praticava o xamanismo, o primeiro milho era des-

tinado ao cauim dos ÷ ë ÷ ã m † celestes, especialmente ao seu c a p i t ã o , Kumahari, um

magnífico xamã e famoso canibal, cuja ascendência sobre ventos e tempestades o faz m e -

recer o epíteto de Pai dos Ventos. Oferecendo-lhe o cauim de milho-verde, os xamãs

buscavam assegurar-se de um inverno com chuvas mansas.


O rio corre sobre o país dos ogros pa÷¥.

Pa÷¥ é um ogro de posição muito especial. Detesta ser chamado de p a ÷ ¥ , quer ser
chamado de ÷ë÷ãm†, pretendendo ter direito a esse título por ter sido criado por Seµã÷ã.

Os Juruna consentem nisso quando estão navegando e reconhecem que ele possui de fato

grande poder; porém na terra firme não há porque deixar de dizer seu verdadeiro nome.

Assim como ao ouvi-lo ele se enfurece e ataca os navegadores, saber que o chamam de d i -

vino apazigua-o.

Foi criado como peixe pelo magnífico xamã. É portanto um peixe gigantesco e p o -

deroso, ao mesmo tempo em que é também um ser humano (dubia). É um mestre na arte da

transformação, e isto de acordo com uma noção tal que não se pode tentar apreender sua

forma específica original, exceto encarando-o como um peixe-homem. Na verdade, dizem


108

os Juruna, o pa÷¥ xamaniza. Não conhece os limites que nos aprisionam às formas e

transpõe mundos com facilidade, freqüência e como que por natureza.

O termo recobre um gênero. Um tipo é o comprido que tem formato e tamanho de

canoa, é desdentado, e possui no céu da boca um ferrão afiado como um prego, utilizado

para furar a cabeça das pessoas que engole. É escuro, com duas listas vermelhas no lombo,

que figuram as penas compridas de arara que porta como ornamento de orelha. É este o tipo

que o termo evoca em primeiro lugar. Suas entranhas (as tripas, particularmente) são

desenhadas com belos padrões de labirintos. Os Shipaya, que têm representações seme-

lhantes às dos Juruna, diziam ter aprendido os desenhos corporais depois que um sujeito

engolido por um p a ÷ ¥ e expelido trazia o corpo todo tatuado (Nimuendaju, 1981). Os

Juruna contam um mito semelhante, ressaltando ao final que os antigos acharam os de-

senhos muito bonitos, porém o xamã advertiu que poderiam morrer se copiassem.

Outro tipo tem a forma de um disco, de um tacho de torrar farinha mais p r e c i -

samente, e recebe por isto um nome específico: tacho-- ïsãm† . É dotado de dentes e seus

olhos lembram os da arraia. Existem duas variedades deste tipo: uma é negra, a outra é

branquíssima.

Desse conjunto, alguns são autóctones, outros são oriundos do rio celeste, de onde

se transportam transformados em redemoinho, causando grandes ondas que transtornam as

águas até muito longe do lugar onde caem.

Os p a ÷ ¥ têm vida social, praticam a agricultura e a pesca, e ignoram a caça. A

comunidade (ao menos no que toca aos do tipo canoa) é formada em torno de bagres que

ocupam a posição de sobrinhos, genros e cunhados “do” p a ÷ ¥ — tio, sogro e chefe. A co-

munidade habita uma mesma casa, a aldeia é formada por uma única casa. Entre os afins se

enumeram a pirarara, o wãdope 54 e o ado÷i 55. A arraia é sua sobrinha, e o rastro dela na

areia das águas rasas assinala que está ali processando cauim para o tio.

Os p a ÷ ¥ têm ainda subordinados políticos: peixes que desempenham o papel de

guerreiros “do” pa÷¥ . Praticam a captura de Juruna vivos (jamais os matam — até onde

sei) e os conduzem ao p a ÷ ¥ , que os come. Entre eles se enumeram um chamado “ p e i x e -

araraúna”, grande e negro; o jaú (que ora é assim caracterizado, ora é definido como

54 Dito diferenciar-se da pirarara ( ˚a˚ar¥ ) somente nas cores das raias que ornam sua pele
branca; a pirarara tem raias de um vermelho alaranjado, o wãdope tem raias cinza.
55 É um bagre de cor cinza, sem raias. Este é o único peixe ligado ao pa÷¥ que não recebe marca

de proibição alimentar; tanto faz parte do cardápio que já não se liga, ordinariamente, seu nome
ao do ogro.
109

pa÷¥ ) e uma arraia dita gigantesca, desprovida de ferrão e dotada de um rabo finíssimo,
da qual se diz que vive a deslocar pedras no rio noite afora.

Os bagres pirarara e wãdope não são pa÷¥ . Melhor dizendo, nem todos os i n d i v í -

duos dessas espécies o são; alguns são metamorfoses de pa÷¥, como pode ser o caso também

de peixes de outras espécies. Até se transformar em pirarara, ele passa por uma série de

mutações em peixes os mais diversos, a penúltima das quais é mutação em piranha, com o

fim de devorar outros peixes. Por outro lado, aqueles bagres, na perspectiva da espécie

desta vez, são igualmente capazes de se transformar em humanos (ou, quando menos, de se

conduzirem como humanos), quando franqueiam o mundo dos pa÷¥.

O p a ÷ ¥ encontra nos habitantes do rio não somente parceiros, mas também as

coisas de sua cultura material. Quando atravessam para o seu país, a sucuri e o jacaré são

canoas, o peixe-boi56 é pilão, a bicuda57 é a mão do pilão, o peixinho cará é inhame ou

batata. O que conhecemos como sucuri, jacaré ou bicuda não são senão mutações que

aqueles objetos assumem quando passam do mundo do pa÷¥ para as águas do rio.

O trairão ilustra uma nova forma de relação. É pura e simplesmente um peixe, no

que toca ao olhar e ao saber humanos. Do ponto de vista do p a ÷ ¥ , é a mandioca wãwãru ,

com a qual os Juruna preparam um mingau adocicado, e cujo veneno é eliminado com um

longo tempo de fervura. Quando deseja tomar mingau, ele sai à roça, quer dizer, vai nadar

até a beira do rio, onde o trairão descansa, quase à flor da água, e pensa que está se de-

frontando com pés de wãwãru, de que arranca a raiz58.

As pedras representam o breu aromático da almecegueira. Os p a ÷ ¥ tanto as usam,

quando largas e situadas em água rasa, como ninhos para chocar seus ovos, como arrancam

nacos que amolecem e esfregam no corpo para se perfurmar. Quando perseguem um J u -

runa, de nada adianta fugir para o raso e saltar as pedras do rio correndo, porque as p e -

dras vão ficando cada vez mais moles e o sujeito atola numa matéria tão grudenta que é

capturado sem dificuldade.

O tucunaré, por sua vez, está presente no horizonte do p a ÷ ¥ de uma forma não

menos singular. Defrontando-se com um tucunaré, o p a ÷ ¥ pensa que está se defrontando

56 O vocábulo correspondente é tanapiukaka; os Juruna atuais nunca viram um, porém alguns

assim designaram o peixe-boi visto no jardim zoológico do Rio de Janeiro.


57 Este é um peixe canibal bastante apreciado na alimentação.
58 Esta mandioca é mais comprida e mais grossa do que a chamada mayaka , com a qual se faz

farinha e cauim. Quando os Juruna encontram uma raiz de mayaka tão grande quanto uma raiz de
wãwaru , não deixam de usar a cova para plantar um novo pé, dizendo “trairão, trairão, t r a i -
rão”.
110

com um semelhante, enxerga um outro p a ÷ ¥ , e foge assustado, com temor de ser morto e

comido.

A feição peixe é assumida apenas quando sai de casa para ir a algum lugar, como

visitar casas de seus semelhantes ou simplesmente perambular nas águas do rio. Os r e -

moinhos dizem que está por perto; as águas pousadas dizem que está em casa se embria-

gando.

Sua vida social é, ao que tudo indica, completa: os bagres são seus afins, o “ p e i x e -

araraúna” e o jaú são seus amigos e o tucunaré é o seu inimigo — embora esta inimizade

seja apenas imaginária. É também uma vida social intensa. Ou seja, as cauinagens são bem

freqüentes pois, conforme me disse Kadu, como se parecem com os Juruna, estão sempre

bebendo. Recebem como convidados os bagres, o “peixe-araraúna”, a arraia-tamatama e

pa÷¥ de aldeias vizinhas. As moças são muito bonitas e as cauinagens, por isto, são muito
agradáveis. Seu cauim não é, para os humanos, o cauim propriamente dito, e eu não s a -

beria precisar em que consiste a mandioca mayaka com que é processado. Trata-se de um

lodo, ao qual não falta o aroma do lodo, adquirido durante a fermentação. Do ponto de vista

do efeito que provoca em seres humanos é, contudo, plenamente cauim.

Conta-se que o magnífico xamã Waisa comprovou isto. Sua decisão de ir beber no

fundo do rio foi motivada, aliás, pelo desejo de enciumar sua mulher. Descendo o rio um

dia ao sabor da corrente, ele pediu a ela para catar-lhe piolhos e como ela estava com

preguiça ele disse: “Está bem! Eu vou beber cauim na aldeia do p a ÷ ¥ ”. Deslizou da canoa e

desapareceu, sob o olhar da mulher incrédula. Logo ficou um tanto “embriagado” e virou

piranha. Era a estação das cheias. No fundo do rio, recuperou a forma humana e seguiu até

a casa onde havia cauinagem; lá, puxou um banco, sentou-se e acendeu um cigarro. “ S i r v a

bebida ao xamã”, disse p a ÷ ¥ a uma moça, sua filha. E ela, usando brincos de penas de

arara vermelha, recepcionou o Juruna. Uns rapazes pirarara e wãdope, que lá se d i v e r -

tiam “brincando”59 com as filhas do dono da casa, estavam muito bêbados. Com ciúme da

prima, ficaram também violentos, e procuraram briga com o xamã. “Deixem-no! Tomem

cuidado, pois ele é xamã. Bebam simplesmente!” , disse o c a p i t ã o aos rapazes. Waisa

bebeu tanto que teve de dormir lá. Na manhã seguinte ao emergir, tomou um caminho de

terra e caminhou fumando ininterruptamente até a aldeia. “Por que você mergulhou? Eu

pensei que você tinha morrido afogado” “Você não quis catar meus piolhos!” E contou aos

59 A “brincadeira” entre rapazes e moças significa tanto a relação de primos cruzados como a

paquera, no sentido em que é uma conduta que precede e pode levar ao encontro amoroso.
316

plamente limitada. Com um Juruna bilíngüe era quase impossível trabalhar, porque ele

nem se limitava a apresentar os termos indígenas, nem os traduzia para o português. Bem

ao contrário, traduzia o sistema Juruna para o sistema brasileiro e todo tipo de confusão

aflorava. Por outro lado, com um Juruna monolíngüe, eu mesma era incapaz de sustentar

uma entrevista detalhada na língua indígena. O resultado foi que aprendi a classificação

com pessoas monolíngües — isto é, com as mulheres —, e as concepções do parentesco com

homens que falam português. Se este idioma se mostrava empobrecedor quando se tratava

de investigar outros aspectos quaisquer, isso de modo algum se deu com a ideologia do

parentesco. As glosas fornecidas pelos homens são, com certeza, melhores do que as que eu

poderia propor: a relação “quase prima, quase irmã”, permitida apenas pelo português,

é, evidentemente, muito mais densa que “irmã classificatória”.

O saber relativo ao parentesco é uma especialidade feminina, ao mesmo tempo em

que é mal visto pelos homens: é a fofoca por excelência, feia intromissão na vida dos o u -

tros. Quantas vezes, pedindo-lhes para avaliar a relação com um indivíduo que não sabiam

classificar de imediato pela relação dos pais dele com os pais do entrevistado, não me

disseram em bom português: — “Eu não sei, eu não me meto na vida dos outros”.

Durante um período, achei necessário preencher junto às mulheres as lacunas que

seus filhos ou marido deixavam em minha lista de nomes pessoais, até que resolvi mudar

de técnica. Preparei uma lista de termos descritivos tão completa quanto possível, des-

cobrindo então que os homens eram igualmente despreparados para os cálculos abstratos.

Dada a relação, buscam alguém que tenha essa relação para com eles, lembram-se do

termo que o tal lhes aplica e somente então respondem, fornecendo por vezes um termo que

lhes é aplicado por alguma razão distinta. Cansam-se rapidamente, confundindo-se nas

associações, têm a mesma dificuldade que eu para manter um instante na memória a r e -

lação “irmão da mãe da mãe do pai”, e dão freqüentemente respostas disparatadas. Ao

mesmo tempo, era muitas vezes difícil avaliar até onde isso era falta de habilidade, ou

ocultava uma intenção qualquer, como uma vez em que Kadu me disse que não sabia, tinha-

se esquecido do termo que se aplica à filha da irmã, e se virou para uma sobrinha que e s -

tava em casa conosco e a interrogou. De sua parte, as mulheres, além de um conhecimento

genealógico muito mais seguro que o dos homens, exibem uma habilidade extraordinária,

compreendem de imediato uma relação composta de quatro ou cinco termos, e propõem

equações como: “àquele que chamamos diia, nossos filhos chamam a ÷ ã m † ”, “os filhos

daquela que nos chama de uase nos chamam de a÷ai “ etc. E seu saber não se restringe às

equações do vocabulário feminino: “os filhos de um homem chamam de umã ao aapa do


317

pai”, os filhos de um homem chamam a÷ai à aida do pai”.

Depois resolvi seguir a sugestão de Mareaji. Quero dizer, aceitar o óbvio: a clas-

sificação de parentesco não tem a mesma importância para homens e mulheres. Os homens

são muito conscienciosos das relações próximas, são mais ou menos desinteressados pelas

relações mais distantes, muito desinteressados pelas relações vistas como puramente

convencionais. Do ponto de vista feminino, o parentesco parece universal: todos os i n d i -

víduos da tribo estão relacionados de alguma forma. Do ponto de vista masculino, contudo,

a tribo inclui pessoas que permanecem fora de classe, das quais se diz explicitamente que

não são parentes; pessoas cujas relações não são explicitadas (“Eu não sei o que ele é

meu”.), porque Ego não as vê sob a ótica de nenhuma relação, e tudo se passa do ponto de

vista da conduta como se também fossem não-parentes, muito embora se saiba que não o

são efetivamente; e há, finalmente, as pessoas claramente definidas. Eu diria que, para os

homens, o grupo político em que consiste a aldeia não se confunde com sua parentela; por

um lado a aldeia é mais abrangente do que a parentela, e por outro lado a parentela

transborda a aldeia. Porque se é verdade que os homens estão prontos a não ver relação de

parentesco em uma parte de seus concidadãos, definem contudo por um termo de relação

pessoas que não residem na aldeia (mas em Postos Indígenas ou aldeias de Índios) e que

podem ser tão distantes genealogicamente quanto os concidadãos que são mantidos fora de

classe. Quer-se possuir parentes fora do grupo político, e não se busca transformar o

grupo político em um grupo de parentes.

A bilateralidade era um fator pregnante nos argumentos de Mareaji. Os irmãos

nascidos de pai ou mãe diferente não são irmãos efetivamente, são “quase primos”,

“pouco irmãos”. Os que descendem de um estrangeiro ou uma estrangeira não fazem jus ao

termo de relação que se lhes aplica senão em grau baixo e como quase que por convenção.

Ou, dito de outra forma, a relação de alteridade coexiste com a relação de parentesco, e

pode mesmo dominá-la completamente para justificar, por exemplo, o casamento com uma

irmã classificatória. Do mesmo modo, em sua compreensão, todo aapa (vocativo para M B )

deveria ser esposo de uma a÷ida (vocativo para FZ). Se não fosse preciso considerar a

forte intenção do informante em fazer-me crer que é impossível decidir quem é o que de

quem, eu diria que os Juruna só consideram plenamente adequados ao termo aqueles cujos

pai e mãe são ligados a Ego segundo relações que conduzem à mesma classificação. Mareaji
318

me apresenta, como exemplo, a questão sobre o termo de

relação adequado para a situação de sua irmã uterina e sua

filha, uma vez que o pai de sua irmã é irmão da mãe de sua

filha. Ora, a mãe de Mareaji já havia muito bem decidido que

as duas meninas se tratariam como “primas” (e não como

“tia” e “sobrinha”), pois ensinava freqüentemente a neta a

chamar a menina maior pelo termo “prima”. Lembrando-lhe isto, Mareaji põe, talvez

com malícia, a questão a respeito de seu irmão uterino: “Ele vai chamar minha filha de

prima também?”.

Isto mostra como o saber feminino é falível; sua ciência não tem solução para d i -

ficuldades que a complicação apontada por Mareaji traz para a classificação. Não há

sempre uma hierarquia clara dos critérios de classificação a permitir escolher num

conjunto de possibilidades um termo de relação para indivíduos a quem Ego está ligado por

múltiplos laços. Deste modo, minhas entrevistas com as mulheres eram quase tão ricas de

“não sei” quanto as dos homens, exceto que quando são elas que não sabem isto vem de um

conhecimento amplo das múltiplas ligações e possibilidades de classificação. É-se muitas

vezes cunhada de um filho, prima de um pai, filha de um filho, cunhada de uma mãe ou

irmão... Casos que são indecidíveis de uma vez por todas, e que soam todos, talvez por isto

mesmo, como intriga ao ouvido masculino.

Para ilustrar a multiplicidade de critérios em jogo na classificação do parentesco

seguem alguns trechos da entrevista que fiz com uma mulher.

— Como você chama Hï? [MFBD]


— Ela é minha prima ( usiwahanu ). Meu
pai [cuja mãe era Suyá] cresceu na casa
deles, na casa dos pais dela ( i÷uraha )
[ele foi criado pelos pais da mãe de
Alter], por isso Hï o chamava de titio
( diia), logo ela é “minha prima”.

A entrevista segue, apresento-lhe uns vinte nomes e chegamos ao irmão de Hï.

— Como você chama A÷a≈ï≈i?


— Eu não sei.
Eu insisto, ela também insiste em dizer que não sabe até que se decide a explicar:

— Ele é filho do Pai-de-Ñãñã, que teve duas esposas. Ele é irmão de minha mãe, assim
como é irmão de Ωõtã [MZ] e da Mãe-de-Tarepa [esta sendo filha de um terceiro irmão
319

do Pai-de-Ñãñã]. No entanto, o tio dele ( itaha ) se casou com ela, minha mãe. Ele
[Alter], que chamava meu pai de titio (aapa ), tornou-se cunhado ( u ã ï w ¥ a ) de minha
mãe. Mamãe me dizia que ele é meu primo (uza∂a). Ele era irmão de minha mãe,
porém se tornou um cunhado dela por ser sobrinho (itaha) de papai.
— Então como é que você chama A÷a≈ï≈i?
— Mamãe dizia para eu o chamar de “primo” (jaia [vocativo]).
Como se passa do “eu não sei” a “mamãe dizia que ele é meu primo”? A autoridade da mãe

nestas definições é amplamente invocada. Neste caso específico, é a forma pela qual a i n -

formante, que é uma viúva jovem e recatada e com quem A÷a≈ï≈i, residindo desde apenas

alguns meses em Tubatuba, tem “brincado” muito em dias de cauinagem, usando ao m á -

ximo sua prerrogativa de primo, quer fazer crer que ela mesma não toma a iniciativa de

desfrutar desta relação, e ninguém haverá de ficar comentando que ela fica brincando com

um homem por quem deveria guardar respeito e distância por ser seu tio.

— E Takuro? [esposa de A÷a≈ï≈i]


— Nada, eu não chamo de nada, ela é Índia [Suyá].
— Como você chama Sire? [filha de A÷a≈ï≈i]
— Eu não sei, ela é filha de Índia.
— Como você chama Gaisõto? [outra filha de A÷a≈ï≈i]
— ela é minha filha ( umãb¥ahanu ), pois os filhos de nossos primos (seza∂a) são
nossos filhos.
Por que a atitude da informante muda de uma filha à outra? Uma é solteira e seu compor-

tamento não é muito bem visto. A outra é casada, Ego é mais afetuosa para com ela; lembra

que a jovem, sendo casada com o irmão do marido de sua filha, é uma “amiga” da filha. Sua

atitude em relação à família de um outro primo, cujo nome lhe apresento em seguida, é

radicalmente distinta, muito embora ele também seja casado com uma mulher Suyá.

— Como você chama Kudawa?


— Meu primo (uza∂a ), pois ele é filho
de diia [MB]. Os filhos dele me chamam
de mamãe (ïjã; vocativo), a esposa dele
é minha amiga ( umãmit¥ma ), pois ela
é esposa de uza∂a. Nós brincamos muito
uma com a outra. Não brincamos no dia
em que nos encontramos, não, neste dia
nós só conversamos, mas à medida que os
dias vão passando, ih!, como nós
brincamos!
320

A lista de nomes prossegue, eu cito o nome de Ñãñã, já apontado como meio-irmão de

A÷a≈ï≈i e como irmão da mãe da informante, e ela o define como “meu tio” ( udiia ). A

esposa deste tio, Daka, é definida como uaha (“cunhada”), por ser ela irmã do finado

marido da informante. Daka o é ainda por duas outras razões: seu finado marido era, como

Ñãñã, MFBS de Ego, e a esposa de um MB é uma “cunhada”).

Para classificar os filhos do

casal Ñãñã-Daka, a informante

não considera sua relação com

Ñãñã, mas ora seu próprio

finado marido, ora o finado

marido de Daka, o qual não é o

pai das pessoas nomeadas:

— Como você chama


Kuyawa?
— Cunhado (uãïw¥a), por causa do Pai-de-Paroï. Ele é meu cunhado.
— Como você chama Podu?
— Ela é minha prima ( usiwahanu ), pois Daka foi casada no passado com meu tio
( udiia ) .
Ñãñã tem um irmão que é casado com a irmã de Daka. Seus filhos, Ri˚i e ¥d¥, são clas-

sificados como uãïw¥a (“cunhado”). Ri˚i o é porque Ego foi casada com o tio dele ( itaha ),

e ¥d¥ porque é marido de sua irmã. A informante prossegue especificando a relação

destes cunhados com os filhos dela e conclui com uma risada:

— Eles são primos de Paroï e de Dukare. Yuanawpo é mãe de Dukare, e ¥d¥ é primo
de Dukare. Yuanawpo se casou com ¥d¥, ¥d¥ virou pai de Dukare.
— De que é que você ri?
— Isto não está certo, você não vê? Primo tornar-se pai!
Diante do nome de um terceiro irmão de Ñãñã, Kãnãba, a informante já não se interessa

por classificá-lo através da própria mãe, como um tio; cansada talvez de repetir relações

tantas vezes apontadas, recorda-se da relação puramente convencional que tem com a mãe

de Alter:
321

— Como você chama Kãnãba?


— Eu não sei. Ada me disse uma vez
para chamá-la de uiaha (“irmã mais
velha”, vocativo); portanto, ele é meu
filho... é “meu cunhado”... ah, eu não
sei!
— Como você chama Inimã?
— Eu não sei. Ela me chama uiaha
(“irmã mais velha”, vocativo), eu não
me lembro...
— E Dawaki?
— Eu também não sei. Espere “minha outra mãe” ( ïjã nana, MZ) chegar que eu
pergunto a ela e lhe falo. [Sua “outra mãe” disse que devia chamar Dawaki de prima.]
— E Biata?
— Eu também não sei... Minha neta ( u m i k † ), por causa de Ada ... Ela é minha cunhada
(uaha), por causa de Darë.
Chegando ao nome de Manako, irmão do pai da informante, ela diz:

— Meu filho ( umãb¥a ). Ika÷ë é minha


irmã mais nova; a mãe de Ika÷ë era
uma dos ai˚ab¥i (siblings) de mamãe,
como o era também a Mãe-de-Tarepa;
ela [a mãe de Ika÷ë] era irmã mais
nova de mamãe.
Por esta via, o filho de Ika÷ë é de fato seu

“filho”. Mas não é assim que um grande

número de pessoas define a relação entre

eles, usa-se mesmo dizer o inverso: que a

informante é “filha” de Manako pois, em geral, parte-se do princípio de que uma relação

mais próxima anula ou prevalece sobre uma mais distante.

O irmão da informante também não diz que Manako é seu pai. Na entrevista que fiz

com ele, disse-me não saber absolutamente que relação havia entre os dois e, quando lhe

lembrei que ele mesmo se referia ao seu FF pelo tecnônimo Pai-de-Manako, ficou i m -

perturbável até que finalmente traçou relações semelhantes às apontadas pela irmã. Disse

que Ika÷ë é “prima” de Ωidudu [W], pois a mãe dela era irmã do Pai-de-Ωidudu; que sua

própria mãe era irmã da Mãe-de-Ika÷ë, assim como era irmã do Pai-de-Ωidudu, que
322

portanto ele chamaria Ika÷ë de uãïbi (“minha irmã”), logo Manako seria um uaha.

Manako afirma que ambos são seus filhos. Ele é muito mais jovem do que estes f i -

lhos; é quase 40 anos mais novo que seu falecido irmão. De modo algum a idade é obstáculo

para a definição de uma mulher mais velha do que sua mãe, e que podia mesmo ser avó de

seus filhos, como uma “filha”. Reciprocamente, não é por causa da idade que a informante

prefere dizer-se mãe do homem que se diz seu pai. Nem ela nem o irmão evocaram o fato

durante a entrevista, mas fizeram-me saber outras vezes que seu avô não é o genitor

daquele jovem.

Muitos concordarão com a opinião dos homens Juruna sobre o parentesco — é i n -

triga mesmo. Mas há aí também elementos que dão uma noção do caráter sobredeterminado

da classificação. Quer dizer, a ligação genealógica pode valer ou não valer, a paternidade

social pode valer ou não, o afeto pode ou não pesar, uma relação adotiva pode primar sobre

uma ligação biológica ou não. Há indivíduos cuja classificação é estável, outros cuja

classificação é cambiante, e outros ainda que, ao menos aparentemente, só são classifi-

cados em atenção ao trabalho do pesquisador. O ponto que quero destacar é este: há parentes

de cuja relação Ego desfruta mais ou menos estavelmente ao longo da vida, e parentes p o -

livalentes que ora não são experimentados enquanto tais, ora são experimentados por meio

desta ou daquela relação dentre duas ou mais relações possíveis.


Na vida cotidiana, o vocabulário de parentesco tem um uso bastante limitado, tanto

como forma de tratamento quanto como forma de referência. Usam-se os nomes próprios.

Segundo dizem os Juruna, duas razões justificam o emprego dos vocativos: a proibição de

dizer o nome de determinados parentes, e o interesse em fazer saber aos outros quem se é,

pois o que se é depende das relações que se tem. Quer dizer, as relações de parentesco i n -

dicam a “força” de um homem. Num meio em que todo mundo conhece todo mundo, isto é,

no domínio da aldeia, não se devem exibir as relações, mas simplesmente usar o nome

próprio. Na vida cotidiana, apenas a proibição de dizer o nome de certos parentes e x p l i -

caria o uso dos termos de parentesco. Os antigos entendiam que o perigo inerente ao ato de

dizer o próprio nome estendia-se aos pais e aos irmãos. Por isto, marido e esposa chama-

vam-se um ao outro e aos filhos — na ausência de vocativos específicos para estas relações
323

— pelas palavras “homem” e “mulher” ( senah¥ e i j i a ) 187. Os filhos, por sua vez, cha-

mavam-se uns aos outros e aos pais pelos vocativos de parentesco.

Este modelo não confere com a prática. Aplicam-se termos vocativos a um universo

mais amplo que a família nuclear e, no interior desta, somente aos mais velhos e aos

irmãos do sexo oposto. Quer dizer, utilizam-se todos os vocativos que existem no sistema,

e só existe vocativo para os parentes de G+2, G+1 e G0, excluindo-se o irmão mais novo

do mesmo sexo188.

Vocativos de Parentesco

Ego Masculino e Feminino

Homens Mulheres

ã÷ãm† a÷ai
FF, MF, MMB MM, FM, FFZ

baba, pã* aapa (h.f.) ïjã aida (h.f.)


F, FB diia (m.f.) M, MZ uase (m.f.)
MB FZ

uiaha (h.f.) umã (h.f.) uiaha (m.f.) siwa (m.f.)


eB, eFBS, eMZS jaia (m.f.) eZ, eFBD, eMZS jaia (h.f.)
jija (m.f.) MBS, FZS aja (h.f.) MBD, FZD

B, FBS, MZS Z, FBD, MZD

Os termos de parentesco que não possuem formas específicas de tratamento podem

ser usados com este fim, mas isto não é usual senão para o termo de referência uaha, usado

por cunhados em momentos de embriaguez. Afirmaram-me que o termo u ã ï w ¥ a ,

“cunhados de sexo oposto”, apresenta a forma de tratamento ã ï w ¥ a , porém eu mesma

nunca testemunhei este uso e acredito que os Juruna apenas estimulavam-me a empregá-

lo para rir às minhas custas. Trata-se do termo mais crítico do sistema.

Nas gerações ± 2, avô do marido/esposa do neto e avó da esposa/marido da neta são

imediatamente definidos como uaha, do qual assim desaparece o conteúdo de identidade

sexual vigente nas demais gerações. Nas gerações ± 1, a distinção sexual ainda se faz

presente, mas é negada ou proibida para as posições sogro/nora e sogra/genro, em nome

187 Apenas uma mulher, Madayu, faz uso deste procedimento.


188 Entre primos cruzados do mesmo sexo, não é incomum que somente o mais jovem faça uso do

vocativo.
* Em desuso; diz-se que baba é um termo Shipaya.
324

do ciúme que as mulheres têm de sua mãe com o marido. São relações - ã ï w ¥ a , mas deve-

se dizer que são uaha. Em suma, tomando o ponto de vista de um Ego feminino, é incorreto

dizer que o marido da neta é uãïw¥a, ao passo que é simplesmente inconveniente dizer que

o marido da filha o é.

O ciúme conjugal, eu disse, é invocado para explicar esta proibição. Inúmeras

vezes, durante as entrevistas, vi mulheres corarem de vergonha antes de dizer que tal ou

qual homem era um u ã ï w ¥ a , tanto mais quando se tratava de um HB. Só é bom, dizem,

aplicar o termo aos ZH, FZH e BDH, porque irmãs, tia e sobrinha não sentem ciúme uma

da outra. Quanto aos MBDH e FZDH (posições que o modelo dravidiano ortodoxo toma como

posições de consangüinidade), algumas mulheres me disseram que se recusam de uma vez

por todas a classificá-los como tal porque as primas ficam bravas, e não se deseja que

pensem que estão interessadas no marido delas. O fundamento deste ciúme é este: os antigos

diziam que quando morre uma prima é bom casar-se com o marido dela.

O ciúme que a filha tem da mãe justifica-se, por outro lado, de uma forma muito

distinta, que situa a primeira como guardiã dos bons costumes. É grave promiscuidade ter

relações sexuais com mulheres que são mãe e filha, seja sincronicamente seja diacroni-

camente. Um homem, definitivamente, não deve se casar nem com a sogra nem com a filha

da esposa, assim como é condenável casar-se ou ter relações sexuais com a filha de uma

antiga namorada ou com uma mulher que foi namorada do pai189.

Afirmei acima que os nomes próprios eram livremente utilizados. Isso é verda-

deiro, porém existe um outro mecanismo que restringe o uso dos nomes. Uma pessoa pode

ser abordada pelo nome, mas falando-se com ela de um parente próximo dela e a quem ela

costuma tratar pelo vocativo, emprega-se em vez do nome próprio o termo vocativo que

ela aplica ao parente. Um homem diz à esposa: mamãe foi à roça?, uma mulher diz ao

marido: vou levar isto para mamãe, referindo-se, ambos, à sogra. Muitas vezes é à mãe de

cada um que estão se referindo — a significação depende amplamente do contexto.

Alguns casais têm o hábito de se chamarem um ao outro pelos vocativos “papai” e

“mamãe”; hábito que, segundo dizem, deriva do costume de falar um do outro com os filhos

por meio do vocativo que os mesmos lhes aplicam. Alguns homens ressaltaram que é

perfeitamente lógico chamar a esposa de “mamãe”, uma vez que ela é “um tipo de mãe”,

189 Condena-se inclusive, mas em menor grau, o casamento de pessoas cujos pais foram um dia

namorados, ainda quando está fora de dúvida que o pai de um não participou da concepção do ou-
tro.
325

por ser a “substituta” da mãe na tarefa de alimentar os homens190.

Quanto mais jovem se é, mais extenso é o universo de parentes, e as crianças são as

grandes usuárias dos termos de parentesco. Importa-lhes pouco a razão pela qual um h o -

mem é chamado de “papai”: o próprio pai, os homens que são ditos irmãos do pai, os m a -

ridos das mulheres que são ditas irmãs da mãe, os homens que são ditos primos do pai. Há

um momento, entretanto, em que esta grande rede começa a encolher, o uso do vocativo é

abandonado e chegará o tempo em que os homens dirão ignorar o termo conveniente para

qualificar diversas pessoas (e os filhos destas pessoas) que com certeza na infância eram

chamadas por um termo de parentesco. É que, chegando à vida adulta, os matizes, as d i s -

tâncias e as ambivalências prevalecem sobre a grade dos vocativos, além do fato de que uma

relação pode deixar de ser pertinente, senão para Ego, ao menos, parece, para a sociedade,

conforme sugeriu uma vez Kadu. Como o vocativo para MB é usado rigorosamente por todos

os sobrinhos reais e por muitos classificatórios, perguntei a Kadu por que ele não cha-

mava Mayt¥wa de “titio”. Respondeu-me que isso já tinha acabado. Tendo ficado intrigada

com o fim de semelhante relação (eu não percebera que se tratava apenas de fim da forma

de tratamento), e tendo sua esposa concordado comigo e retrucado que a relação não podia

acabar, Kadu ponderou dizendo que, atualmente, para os jovens, não era mais importante

sua relação com Mayt¥wa, todos a desconheciam (o que não é verdade) e, neste caso, não

havia por que chamá-lo de “titio”.

Por outro lado, curiosamente, chegando-se à velhice o saber esquecido vem de novo

à lembrança, e os velhos são uma fonte mais ou menos segura do saber do parentesco

(muito embora sua autoridade seja menor que a das velhas, e o seu conhecimento das r e -

gras de classificação também).


Não há uma categoria geral para designar a relação de parentesco191, mas relatos

190 Perguntei a alguém se o marido não era também um tipo de pai, já que caçava para a esposa;

ele achou, segundo me pareceu, demasiado absurdo fazer semelhante aproximação.


191 Os Juruna que falam português dizem que “parente” se diz ai˚ab¥i . Este vocábulo significa

“irmãos de ambos os sexos”. Os primos paralelos também são concebidos como ai˚ab¥i , mas não
são computados quando se pede a alguém para enumerar os seus ai˚ab¥i . Tratando-se, porém, de
traçar relações entre mortos, irmãos e primos paralelos são considerados como equivalentes. A
compreensão de Wereade é divergente: ele afirma que ai˚ab¥i inclui também os primos cruzados,
326

de conflitos entre parentes, dos quais um desconhece ou finge ignorar a relação, ensinam

como é que se pode exprimir a noção geral de parente: o ofendido diz ao ofensor: “eu não

sou Outro” (imama nahãwna a∂o), como quem diz: eu sou seu parente, por que você me

agride? Na ausência de uma categoria inclusiva com o significado de parente, o parentesco

vem a ser significado através de uma negação da noção de Outro ( imama ). É verdade que a

noção de imama não se opõe de forma simples ao parentesco pois, conforme veremos, a

alteridade tem nele sua raiz, enquanto uma propriedade subjacente às relações de afinidade

virtual.

A compreensão que formamos do parentesco a partir de uma analogia com a árvore

é estranha ao pensamento Juruna, que o concebe segundo o modelo do batateiral. Esse m o -

delo subjaz à compreensão e ao modo de funcionamento na vida prática do sistema t e r m i -

nológico, e tanto pode subordiná-lo como ser subordinado por este último. Ou seja, tanto

pode prevalecer a classificação de um indivíduo por um termo discreto, quanto prevalecer

sua relação diferencial, definida em termos de distância, com outros que se acham r e u -

nidos sob o mesmo termo.

O modelo do batateiral atribui ao avô o papel de batata matriz ou ï µ ã ÷ ã da prole

(assim como se diz que Seµã÷ã é o ï µ ã ÷ ã da humanidade); ele supõe a existência de

múltiplos ï µ ã ÷ ã , e permite, por outro lado, projetar as relações de parentesco num

espaço concêntrico onde o dentro e o fora se acham a um só tempo distinguidos e unidos por

múltiplas relações. A geração de Ego, segunda a ser gerada pelo ï µ ã ÷ ã , apresenta uma

configuração de seis tipos de relações, as quais são reduzidas pelo sistema terminológico a

dois tipos, irmãos e primos (embora seja verdade que neste sistema uma parte dos irmãos

já seja definida como irmãos- nana ). Do lado de Ego, estão situados os seus irmãos mais

uma vez que significa “parente”. Uma checagem (não exaustiva, é verdade) do sentido do vocá-
bulo p a r e n t e em conversas tidas em português revela que os Juruna o empregam ora com o
significado de “irmão”, ora com o significado de “cunhado”, sem que ninguém tenha chegado a
reunir os dois significados numa mesma proposição. O termo ai˚ab¥i designa bem os primeiros,
mas exclui, por definição, os segundos. Discutindo este ponto com Kadu, ele afirmou desconhecer
qualquer contexto em que ai˚ab¥i incluísse os primos cruzados, e interrogou o que era que afinal
nós chamávamos de parente. À enumeração da lista de termos em português, ele imediatamente
exclamou away e, como minha lista omitia os termos de aliança, acrescentou: “E teus cunhados
(∂aha ), também!” O termo away , embora seja o conceito mais inclusivo, não é simplesmente,
nem principalmente, uma categoria geral para o parentesco, mas uma categoria sócio-política
que se aplica aos mais distintos tipos de grupo, como será visto na próxima seção. Uma vez, che-
gando à casa de Kadu para uma entrevista previamente marcada, ele explicou o que eu queria à
esposa: “Ela quer saber como chamamos se÷azi e saha ”, respectivamente, “nossos filhos de
ambos os sexos” e “nossos afins (do mesmo sexo)”.
327

velhos e mais novos e irmãs; do lado de fora, os seus primos cruzados. No terreno que se

espraia entre um lado e o outro, mais próximos de Ego que do outro lado, estão os seus

irmãos nana (primos paralelos) e, mais próximos do outro lado, entrando talvez mesmo

no terreno dos primos cruzados, estão os irmãos nana mais distantes. Finalmente, no l i -

mite extremo do lado de fora, encontram-se os primos cruzados classificatórios e outros

que por mera convenção Ego usa chamar de irmãos.

Vejamos o que sucede ao termo de consangüinidade uaïbi , “irmã” (h.f.). D i s t i n -

guem-se a irmã hiji , a irmã nana, e a (irmã) imama, com a singularidade de que a nana

não deixa de ser hiji quando contrastada com a imama . A hiji corresponde a uma Z, a nana

a uma MZD ou FBD, como também à filha de irmão nana do pai ou de irmã nana da mãe; e a

imama corresponde às filhas de primos cruzados de ambos os sexos do pai ou da mãe. Uma
irmã nana é definida como “pouco irmã” ou — como se diz em português — “quase i r m ã ,

quase prima”. A escala vai diminuindo conforme a relação do pai ou da mãe de Alter com o

pai ou a mãe de Ego seja hiji ou nana: uma FBD é menos irmã do que uma Z, e mais do que

uma FFBSD. A primeira ainda é h i j i ; a última tanto pode ser considerada como tal quanto

como imama: “falsa irmã”, ou “simplesmente chamada de i r m ã ”192. É assim que se

define também, mas sem a ambiguidade que acabo de assinalar, a irmã gerada por primos

cruzados do pai ou da mãe: uma imama que se classifica como irmã por pura convenção193.

Sua diferença em relação a Z não é dada pela escala da consangüinidade, ela ultrapassou a

fronteira e já se encontra do lado de fora, no campo dos primos cruzados.

Tomemos agora um termo da categoria oposta à das irmãs, uza∂a (“prima”, h.f.;

“primo”, m.f.). A uza∂a é dita imama, ou seja, está situada do lado de fora. Há as que são

hiji (MBD e FZD), há as que são nana (FFBDD, FMZDD, MFFSD, MMZSD). Ocorre, porém,
que as primas classificatórias não são h i j i — uma irmã nana ainda é irmã, uma prima

nana não é mais nem um pouco prima, exceto por convenção. No domínio da afinidade, h i j i
e nana aparecem como valores descontínuos, enquanto a noção de imama vem a ser u t i l i -

192 Um homem que afirma que o FBS é seu irmão hiji pode afirmar também que os filhos de

ambos são irmãos hiji entre si. A avaliação dos filhos, entretanto, pode divergir: preferem
considerar a relação dos pais como sendo nana, e, tomando o laço que os une como mera
convenção, definem-se como imama. Mas, mesmo assim, uma FFBSD não é imama no mesmo
sentido/grau que uma FMBSD, pois o pai da última e o pai de Ego já se definem como imama , mais
especificamente como umã (primos cruzados).
193Uma “simplesmente chamada irmã” não é, contudo, regularmente chamada pelo vocativo,
mas durante a infância de Ego, conforme o empenho da mãe em sua educação, a mãe ou o pai de
Alter são tratados como “mamãe” ou “papai”.
328

zada como escala. Com efeito, a alteridade da prima h i j i é questionável, quando comparada

com a nana. Um Juruna diz de sua MBD que ela é imama, já que é uza∂a; em seguida, tam-

bém diz que não se pode casar com prima h i j i porque ela não é imama, que o correto é

casar-se com a nana, porque esta sim é imama, tendo em conta que o pai de Alter não é

irmão hiji da mãe de Ego. Os primos cruzados reais estão do lado de fora, são Outros, mas

sua alteridade é baixa porque são filhos de pessoas que não são imama.

O par de conceitos hiji/nana não corresponde exatamente à nossa distinção

real/classificatório e não opera do mesmo modo quando se passa da categoria dos consan-

güíneos para a dos afins. Na geração dos pais, h i j i não significa necessariamente pater-

nidade ou maternidade biológicas. É por vezes utilizado com este fim, mas para fazer

identificações inequívocas é preferível o verbo “gerar” ( maku ). FB e MZ são nana em

contraste com F e M, e também são hiji em contraste com os “simplesmente chamados”. A

referência “meu pai nana” ou “minha mãe nana” é bastante comum, porém jamais ouvi

alguém dizer “meu tio materno nana” ou “minha tia paterna nana”. Por um lado, p r o -

cede-se como se estes últimos fossem parentes num mesmo grau que os tios h i j i ; concebe-

se, por outro lado, que são “simplesmente chamados” de tios. Em outras palavras, um tio

classificatório (irmão nana da mãe) n ã o é mais um tio — é definitivamente imama. O

termo de relação que se aplica a ele não tem, contudo, um caráter tão convencional quanto

quando aplicado a um “falso” irmão da mãe (MMFZDS), uma vez que o primeiro tem

minha mãe como irmã nana. Como diz Mareaji, “Quando o chamamos de aapa ( “ t i t i o ” ) ,

não é de verdade, não. Chamamos de mentira; mas nós levamos a sério”. Como se também a

noção de convenção fosse escalar.

Receio não ter sido capaz de expressar com clareza as nuances da classificação e

concepção que os Juruna se fazem do parentesco. Mas prossigo acrescentando que graduar a

convenção é uma forma curiosa e paradoxal de graduar a afinidade: distinguem-se os

verdadeiros e os falsos afins somente para assinalar que os últimos são os afins legítimos.

Acrescentaria à observação de Mareaji uma formulação distinta e aparentemente oposta:

Não é habitual chamar-se de titio o irmão nana da mãe, mas justo por ser pensado como

um tio de mentira é que ele é perfeita e completamente uaha h i j i , do ponto de vista das

possibilidades de casamento — o tio ilegítimo é o legítimo sogro. Voltaremos a isto, antes

veremos que o falso tio de um homem é tio verdadeiro da irmã do mesmo.

A que categoria pertence uma moça classificada como we÷at¥ , sobrinha (h.f.)? A

ótica muda muito, conforme se considere um caso abstrato ou uma situação concreta. Os

Juruna querem crer que o casamento com a filha da irmã é tão aberrante quanto o casa-
329

mento com a irmã. Muitas vezes me perguntaram se eu sabia que nenhum grupo indígena

pratica o casamento com a irmã, afirmando que esta é uma conduta de animais, e curiosos,

ao mesmo tempo, para saber qual é a posição dos Brancos frente a isso! A questão seguinte

era, invariavelmente, se eu sabia que todos os Índios, à exceção dos Juruna, adotam o feio

costume do casamento com a filha da irmã. Talvez porque a sobrinha não seja uma esposa

potencial, o discurso Juruna, quando propõe enunciados normativos, não faz distinção

entre a filha de Z e a filha de FBD ou MZD, com o fim de situar a união com a segunda como

possível ou legítima. Isto é, não se distinguem as sobrinhas em h i j i e nana, mas, caso o

façam, a diferença que apontam é de grau. Ambas são, portanto, h i j i e contrastam com a

“falsa” ou “simplesmente chamada” sobrinha (filhas de “falsas” irmãs), com quem,

diz-se, o casamento seria inteiramente correto. Mas se eu pergunto a uma mulher se é

correto o casamento de uma de suas irmãs, casada com o tio (MFBS), ela diz que sim, pois

a esposa não é sobrinha h i j i do marido, mas nana. Após um instante, maliciosamente,

afirma que o cunhado é realmente incestuoso (÷ëü194), pois no passado quase se casou com

uma ZD195.

Assim, projetando as relações de parentesco em um espaço concêntrico, determi-

nado pela oposição germano/Outro ( ai˚ab¥i/imama ), ou consangüinidade/afinidade, a

analogia com o batateiral fundamenta um uso cromático da classificação. É preciso r e s -

saltar que esse cromatismo não é regido única e simplesmente pelo parâmetro da distância

genealógica, pois ele supõe uma descontinuidade absoluta entre os irmãos reais e os

primos cruzados. A distância é de fato essencial nas considerações Juruna, mas não é tudo:

um MBS é um Outro mais distinto e, portanto, mais distante (conceitualmente falando) do

que um FMZSS; um MMZS é muito mais distante que um FMZSS. Dada a descontinuidade

entre consangüíneos e afins na geração de Ego, o cromatismo trata-a como um vazio que os

consangüíneos classificatórios vêm preencher, chegando mesmo a invadir toda a esfera da

afinidade. A compreensão que podemos extrair da oposição constitutiva do sistema t e r -

minológico trabalhada pelo cromatismo é esta: consangüinidade e afinidade não são m u -

194 Os Juruna não conhecem um termo específico para o incesto. Trata-se de um caso de liberti-

nagem entre outros: adultério, muitos parceiros, desejo sexual intenso e freqüente, bestialidade.
Casar-se muitas vezes ao longo da vida é libertinagem também. O último xamã de ÷ï÷ãnay é tido
por causa disso como um libertino: as mulheres contam nos dedos suas nove esposas, a última
das quais neta de sua finada esposa — horrível casamento!
195 De sua parte, o casal não dá nenhuma importância a sua relação tio-sobrinha, e dizem que se

consideravam como irmão-irmã, pois ele, quando era pequeno, mamava no peito da mãe dela.
“Quando nos casamos, deixamos de ser irmãos”.
330

tuamente exclusivas; existe um conteúdo de afinidade em consangüíneos terminológicos

genealogicamente distantes, mas não há nenhum conteúdo de consangüinidade sob a a f i n i -

dade. Há irmãos que são quase primos, há mesmo aqueles que são definitivamente imama ,

mas não há primos quase irmãos. O distanciamento empobrece a relação de consangüini-

dade e enriquece a relação de afinidade.

Esta concepção do parentesco é um modelo teórico que pude compor a partir de

discussões teóricas com os Juruna, principalmente homens. Quero lembrar que a obser-

vação empírica traz ensinamentos adicionais, revelando que o uso das escalas por cada

indivíduo depende grandemente da importância numérica de seus irmãos e primos c r u -

zados reais. Carecer desses parentes implica imediatamente a consideração dos classifi-

catórios (mais próximos, genealogicamente falando) de ambas as categorias como

“verdadeiros”.


Passemos ao casamento. Ao lado do casamento dos primos cruzados, considera-se

correto casar-se com qualquer mulher classificada por um termo de consangüinidade por

mera convenção, isto é, qualquer mulher imama . Mas isso não basta: é preciso ter direito

à mulher, o que se avalia de diferentes modos.

Primeiro: o homem que se casou com minha irmã me deve uma mulher, e me

oferece uma irmã caso possua alguma disponível. Esta troca de irmãs pode ser imediata ou

não. Em caso positivo, se a irmã do cunhado é criança ainda, é preciso esperar que ela

cresça para poder levá-la como esposa; pode ser que, nesse intervalo, o indivíduo se case

com outra e “perca a primeira esposa”, como ocorreu com Kadu. Não havendo explicitação

da troca por ocasião do primeiro casamento, há uma pressão do grupo mais amplo sobre o

doador, para ele tomar como pagamento a irmã do cunhado. Isso acaba chegando aos ouvidos

do devedor, que toma assim a iniciativa — conforme exige a boa educação — de dizer ao

cunhado que lhe dá a irmã.

Segundo: se a esposa do irmão de um homem tem uma irmã disponível, tem-se

direito a ela, pois para os Juruna é óbvio que quem dá a um irmão dá ao outro também196.

196 É, aliás, assim que se justifica o casamento com a viúva do irmão e o recebimento de uma

irmã da esposa em caso de morte desta. Os dois procedimentos são tanto mais legítimos quando o
331

Terceiro: a filha do irmão da mãe. Casar-se com a filha do irmão hiji da mãe não é

proibido, mas, diz-se, é muito difícil. Seria preciso que o MB tomasse a iniciativa de

oferecê-la ao ZS; caso contrário se ofenderia com o sobrinho, dizendo-lhe que não é

imama. Não ser imama não quer dizer necessariamente ser um consangüíneo. É certo que a
consangüinidade implica não-alteridade e o casamento requer alteridade. Mas é certo

também que a relação de aliança, uma vez consumada, suprime a alteridade (um MBS é

imama, mas o WB não o é). O irmão nana da mãe, “simplesmente chamado” uaha, é
imama, o WF, uaha hiji, não o é. O MB é uaha hiji de Ego e de seu pai, e, no entanto, seria
difícil casar-se com a filha dele. Por que? A relação entre MB-ZS é tão marcada de r e s -

peito como a relação WF-DH, ou W B - H Z197. Acredito que seja justamente por isso, por

reconhecimento à autoridade de MB sobre o ZS e seu pai, que a MBD é tida como de difícil

acesso. Vejamos a relação entre o pai de Ego e o irmão nana da mãe. Eles se consideram

uaha nana ou “pouco uaha ”, o que lhes permite adotar uma conduta que é um misto de
afinidade atual e afinidade virtual, conduta que se define como “brincar um pouco”, quer

dizer, sem ridicularizar o parceiro, com alegria mas respeitosamente. É junto àquele que

apresenta a dupla qualidade de primo e cunhado do pai que se diz ser fácil encontrar uma

esposa. Ademais, considera-se que o MB tem um crédito de mulher; conforme mostram as

histórias de casamento, é bastante comum o uso da ZD para pagar uma filha ou irmã do

parceiro.

Eu diria que, invariavelmente, quando o termo para primos cruzados do sexo oposto

está em questão, os Juruna têm como premissa que se trata (do ponto de vista de um Ego

masculino) de uma filha do irmão da mãe. O tema do casamento é então desenvolvido como

se a prima matrilateral fosse uma cônjuge virtual privilegiada. Com efeito, considerando-

se o total de 56 casamentos (de homens mortos, inclusive) que pude inventariar, o c a -

samento com a prima matrilateral é, em termos absolutos, o mais freqüente.

Talvez valha a pena registrar o quadro que pude compor, lembrando, porém, que as

relações aqui apresentadas merecem ser revistas: seria preciso que eu fizesse outras

leituras possíveis das relações de cada casal198.

morto deixa prole, pois se diz que só pai ou mãe nana tratam realmente bem os filhos do primeiro
casamento.
197 A atitude de respeito significa, basicamente, ausência de brincadeira, e marca tanto as r e l a -

ções de aliança quanto as relações de consangüinidade (pais e filhos, e irmãos).


198 Registre-se também que embora na juventude dois três ou mais casamentos sejam tentados e

desfeitos, após o nascimento do primeiro filho o divórcio não é nada comum.


332

Relação MBD ZD Z FZD D DD FZ Índia Outr os


hiji 7 2

nana 5 7 4 3 1 1 1

“falsa” 1 4 3 1

Total 12 8 8 5 4 2 1 10 6

% 21,4 14,3 14,3 8,9 7,1 3,6 1,8 17,9 10,7

Casamentos (Total: 56)

Observações:
• Outros: casamentos com parentes de afins, ditos “não-parentes” ( imama ), cuja
ligação genealógica não me foi possível desvendar.
• Dos casamentos com MBD, três implicam também a relação FZD classificatória.
• Meu uso da noção nana fica a meio caminho da noção Juruna e de nossa noção de
“classificatório”.


Já que Mareaji não sabia classificar o conjunto dos Juruna (ou não queria passar

por meu interrogatório), e demonstrava uma certa sensibilidade ao problema, propus-lhe

imaginar uma situação de absoluto respeito à regra de casamento dos primos cruzados, que

para ele representava uma condição necessária para que o sistema de classificação pudesse

ser realmente capaz de dar conta das relações, e então lhe apresentei a seguinte dedução.

Havendo somente dois tipos de parentes na geração dele, os irmãos e os primos, os homens

que se casassem com as primas dele seriam seus irmãos, e aqueles que se casassem com as

irmãs dele seriam seus primos. Ele rejeitou enfaticamente a primeira proposição e

aceitou a segunda com reserva (“Está mais ou menos certo”). A rejeição baseava-se

nisso: “Quem se casa com a irmã de nossa mulher parece um primo de nós mesmos”.

Trata-se justamente do chamado “amigo”.

Tudo pareceria indicar que ele reintroduzia o casamento com não-parente cuja

abstração eu havia proposto, pois “amigo” é um termo que, em princípio, só se aplica aos

indivíduos sem ligação cognática. Ocorre porém que a não-cognação não é um conteúdo

necessário da relação de amizade; dois homens ligados por uma certa relação de parentesco

podem se considerar amigos, sob uma condição. O que é necessário é que “andem sempre

juntos” e “brinquem um com o outro”. Como a brincadeira é uma prerrogativa dos


333

primos cruzados, dois irmãos não podem ser amigos; dois primos, sim. Basta que costu-

mem fazer as coisas juntos, como caçar, pescar e também, senão principalmente, ter as

mesmas namoradas. Amigos são primos que possuem primas em comum e, portanto,

concorrem por elas. Para perdurar, a amizade entre dois jovens depende de que tão logo

um deles se case com uma namorada comum o outro a esqueça, definitivamente. Caso con-

trário, o marido ciumento passa a “tratar o amigo como inimigo” ( uãnïãhã ), não acei-

tando mais dar e receber brincadeiras, e querendo mesmo briga. Os amigos são pois

primos (ou não-parentes, ou parentes classificatórios distantes assimilados aos afins

virtuais) que podem ter a mesma mulher e abrem mão deste direito em benefício do outro.

O modelo da relação que Mareaji tem em mente — marido da irmã da esposa — diz também

que eles se casam juntos, possuem sogros comuns, e assim moram juntos. Não basta pois

ceder a prima a outrem, é preciso seguir o mesmo caminho ou ter o mesmo destino m a -

trimonial.

Se a aliança se faz por meio de consangüíneas, irmãs ou filhas (e também s o b r i -

nhas), a amizade é uma espécie de excedente (ou mais valia) de aliança, enquanto produ-

zida por meio de mulheres afins.


334

4. O mito da sociedade e outras histórias

Já se ressaltou muitas vezes que as sociedades amazônicas, quando contrastadas com

as sociedades Jê, saltam aos olhos por suas morfologias amorfas ou fluidas. A etnologia

contemporânea tem dado especial atenção aos modelos indígenas de classificação sócio-

política com o fim de desvendar o que há de culturalmente positivo sob a impressão de

amorfismo. Aqui, vamos examinar como a questão da sociedade é trabalhada pela mitologia

e o modo como os Juruna concebem as identidades coletivas.

Em seu mito de origem da sociedade visto no capítulo 1 (supra: 33-40), os Juruna

põem em paralelo o barbante e a humanidade: após a baixa das águas que inundaram a terra

e a separação dos Índios que se perderam na floresta, a humanidade é fracionada em grupos

que se dispersam ao longo do rio no mesmo lance em que cada um recebe das mãos de

Seµã÷ã uma porção de barbante. Corta-se a humanidade cortando-se o barbante, a

fragmentação sociológica é compreendida por meio da fragmentação do barbante.

A originalidade desta analogia talvez possa ser apreendida através do pensamento de

Lévi-Strauss. Em O Cru e o Cozido, o autor analisa dois processos lógicos relativos à

concepção mítica da passagem da natureza à cultura como passagem do contínuo ao des-

contínuo, seja através de empobrecimento semântico de um conjunto original, seja através

da fragmentação de um ser cromático. Ambos os métodos partem do indiferenciado e che-

gam a um sistema de diferenças. Ora, o que o mito Juruna sugere é que haveria no ponto de

chegada uma certa indiferenciação entre os grupos. E isto surpreende, pois um modelo apto

a satisfazer nossa expectativa sociológica deveria comportar um lugar para a diferença.

Perguntemos então se, para além da oposição entre grupos do rio e da floresta, os Juruna

não concebem a ordem social segundo o modelo do discreto.

À primeira vista, a equivalência entre barbante e humanidade não é perfeita. As

porções de barbante provinham de um novelo único, de um só e mesmo fio inimagina-

velmente longo, ao passo que a condição da humanidade é um tanto diversa. Foi já de grupo

em grupo que ela alcançou o rio, um intervalo separava a chegada de um grupo e outro. Não

só, portanto, ela era já descontínua, como a dispersão respeitou suas lacunas. Pareceria

então que o que a imagem do barbante evoca é a humanidade pré-diluviana, contínua ainda.

Mas considerando-se a técnica de confecção do novelo — amarra-se de tempo em

tempo cada novo fio que vai sendo preparado —, esta, a técnica, é claramente simétrica ao

gesto de Seµã÷ã de cortar o barbante à medida que os grupos foram desembocando. P o -


335

demos assim notar também que, enquanto produto da arte humana, o novelo evoca bem a

imagem do que a humanidade teria sido ao ocupar o rio, caso seu destino fosse permanecer

unida. O que o magnífico xamã propiciou foi que ela passasse a viver conforme sua situação

pós-diluviana: numerosas parentelas bilaterais por nenhuma razão destinadas a perma-

necerem atadas umas às outras199.

O dilúvio matou por afogamento um número indeterminado de indivíduos da muito

numerosa população original. É ele, dir-se-ia com Lévi-Strauss, que responde pelas

lacunas que tornaram pensáveis as parentelas, lacunas que são, primeiro, a condição da

transformação de uma parte em grupos selvagens que se dispersaram e perderam na f l o -

resta, e, depois, da formação, com a parte restante, da sociedade do rio200.

A distribuição do barbante vem selar o pertencimento à ordem humana e cultural:

uma das proposições suscitadas pelo mito diz muito justamente que “é por isso que todos

os grupos possuem barbante para amarrar as pernas”. O barbante batiza, assim, a h o -

mogeneidade das parentelas. Tão magicamente sopradas como as chuvas que inundam a

terra, e sopradas no mesmo lance da entrega do barbante que promulga a igualdade e a

separação dos homens, as línguas diferenciam os grupos.

O ponto notável é que esta diferenciação é decididamente aleatória, e aparentemente

improdutiva. Não há coincidência necessária entre grupo linguístico e parentela, e, entre

as parentelas que permaneceram falando a língua de Seµã÷ã, o Juruna, considera-se que

algumas, “provavelmente”, se deslocaram para distâncias mais significativas do que

aquelas cuja língua foi diferenciada. A distância linguística não vai de par com a distância

espacial e a sociedade cujo perfil o mito pretende traçar apresenta uma diversidade que se

distribui ao acaso e parece mais própria a separar do que a unir. Além disso, a função

diferenciadora das línguas parece subordinada à função assemelhadora do barbante; isto é

tudo o que se pode concluir do fato de que é pelo barbante, e não pela língua, que cada grupo

pertence de direito à sociedade mais ampla que se acaba de instaurar.

Certamente não é por carência de diferenças de outro tipo que o signo da não-he-

199 A propósito, note-se que, na ausência da dispersão, viver-se-ia mergulhado no meio dos Ou-
tros (imama), como vivem os ֕֋nay .
200 “Dans chaque cas, cette discontinuité est obtenue par élimination radicale de certaines
fractions du continu. Celui-ci est appauvri, et des éléments moins nombreux sont désormais à
l’aise pour se déployer dans le même espace, tandis que la distance qui les sépare est désormais
suffisante pour éviter qu’ils n’empiètent les uns les autres ou qu’ils ne se confondent entre e u x ”
(Lévi-Strauss, 1964: 60). Este trecho é relativo aos Bororo, mas, deixando-se de lado os
aspectos substantivos da problemática Bororo, como a natureza particular do contínuo e do des-
contínuo, ele se aplica perfeitamente ao mito Juruna.
336

terogeneidade destes grupos prevalece sobre suas diferenças. No próprio domínio dos

adornos corporais ao qual o barbante está associado, pinturas ou tatuagens faciais e p a -

drões de labirinto são geralmente invocados como sinais distintivos dos grupos que h a b i -

tavam o médio Xingu. O relevo de sua igualdade última talvez sugira que as diferenças não

sejam sistematizáveis, não sejam próprias a encarnar e traduzir os chamados

“afastamentos diferenciais no seio da sociedade”.

Não é nada surpreendente que a descontinuidade de tipo totêmico, quer dizer, o s i s -

tema discreto não tenha lugar no modelo mítico da sociedade Juruna, tendo em conta que a

diferenciação interna não define o tecido da sociedade real. De toda forma, a observação é

necessária por permitir assinalar o que há sob a indiferenciação. Esta não é o efeito n e -

gativo da indiferença do pensamento Juruna frente ao problema da diferença, mas o p r o -

duto de uma concepção positiva da igualdade como noção elementar de um pensamento s o -

ciológico para o qual o sistema não é um todo de partes heterogêneas que se encaixam e

completam, mas um todo de partes homogêneas e separadas.

O aspecto singular do mito é a escolha da dispersão como meio privilegiado para a

constituição da descontinuidade sociológica. A comparação com os modelos analisados por

Lévi-Strauss facilita a apreensão do modelo Juruna. Assim escreve o autor:

“cada um dos mitos que mencionamos oferece uma solução original para resolver o
problema da passagem da quantidade contínua à quantidade discreta. Para o pensa-
mento ojibwa, ao que parece, basta retirar uma unidade da primeira para obter a
segunda — uma é da classe 6, a outra da classe 5. Um aumento de um quinto da
distância entre cada elemento permite instalá-los na descontinuidade. A solução de
Tikopia é mais custosa: originariamente, os alimentos eram em número
indeterminado, e foi preciso passar dessa indeterminação (e, portanto, de um
número elevado, e até teoricamente ilimitado, já que os alimentos primitivos não
são enumerados) para 4, para garantir o caráter discreto do sistema. Pode-se
pressentir a razão dessa diferença: os clãs de Tikopia são realmente quatro, e o
mito tem de atravessar, com muito custo, o abismo que separa o imaginário do
vivido. A tarefa dos Ojibwa não é tão difícil, e eles podem por isso pagar mais
barato, apenas subtraindo uma unidade do total. Na verdade os cinco clãs primitivos
não são mais reais do que os seis seres sobrenaturais que os fundaram, visto que a
sociedade ojibwa se compunha de várias dezenas de clãs ligados aos cinco ‘grandes’
clãs do mito por uma filiação puramente teórica. De modo que, num caso, passa-se
do mito à realidade, e, no outro, não se sai do mito.
Os Tikopia e os Ojibwa podem avaliar de modos diferentes o custo da passagem
do contínuo ao descontínuo. De qualquer modo, essas duas ordens se mantêm formal-
mente homogêneas. Sempre se compõem de quantidades semelhantes e iguais entre s i
(…).
A solução bororo é original em relação às precedentes. Concebe o contínuo como
uma soma de quantidades, por um lado muito numerosas e por outro completamente
337

desiguais, escalonadas das menores às maiores. E, sobretudo, em vez de o descontí-


nuo resultar da subtração de uma qualquer das quantidades somadas (solução ojibwa)
ou da subtração de um número considerável de quantidades somadas, mas ainda equi-
valentes e quaisquer (solução tikopia), os Bororo aplicam a operação, de forma ele-
tiva, sobre as quantidades menores. O descontínuo bororo consiste, afinal, em quan-
tidades desiguais entre si, mas escolhidas entre as maiores, que separam intervalos
ganhos sobre o contínuo primitivo e correspondentes ao espaço anteriormente ocu-
pado pelas quantidades menores” (Lévi-Strauss, 1991: 58-9 [modifico um pouco a
tradução do último parágrafo em benefício da ênfase no caráter aleatório ou moti-
vado da operação, existente no original, 1964: 62]).

De sua parte, os Juruna, diferentemente dos Tikopia e Ojibwa, concebem a questão

por intermédio, primeiro, da afirmação de uma heterogeneidade formal entre o contínuo e

o descontínuo, dado que as quantidades do primeiro são indivíduos e as quantidades do s e -

gundo são parentelas. A supressão em princípio aleatória de quantidades do contínuo

responde pela formação das parentelas, cujo número permanece indeterminado. O mito diz

apenas que morreram aqueles que não deram ouvidos a Seµã÷ã, segundo quem ninguém

devia afastar-se para não se perder na imensidão das águas. Mas o tipo de descontinuidade

provocada pelo dilúvio talvez permita inferir que o afogamento eliminou parentes de p a -

rentes, ou seja, indivíduos que conectavam as diversas parentelas. (Evoco, assim, uma

categoria realmente existente na sociologia do grupo, o “amigo”, responsável pelo dina-

mismo social que, veremos abaixo, o mito trata de obliterar completamente).

Em segundo lugar, diferentemente dos Bororo, cujas quantidades são desiguais e se

escalonam das menores às maiores, as quantidades do pensamento Juruna são iguais e

suscetíveis de se escalonarem das mais próximas às mais longínquas.

Que o número das unidades sociais permaneça indeterminado indica que o sistema é

capaz de operar com um número qualquer de parentelas. Que a distância espacial forneça a

chave de leitura da descontinuidade sociológica, distingue inteiramente o modelo socioló-

gico Juruna daqueles dos três grupos considerados. Em todos os três, há uma perspectiva

global sobre a descontinuidade que é o próprio ponto de vista da sociedade. Aí, uma p e r s -

pectiva sociocêntrica integra as partes, ao passo que o sistema orientado pela distância

espacial conta com tantas perspectivas quantas forem as partes.

Mas o mito Juruna não se esquiva diante desta dificuldade; seu objetivo é mesmo i r

adiante, em busca de um ponto de vista sociocêntrico. O preço disso é, porém, não sair de

si mesmo, como diz Lévi-Strauss, pois, como que construindo um modelo de sociedade

contra a corrente, oferece apenas um modelo imaginário e destinado a desmoronar. To-

memos de novo o barbante.


338

Ele preenche um duplo papel. Condiciona a um só tempo a dispersão das parentelas

bilaterais e a unificação dos membros de cada uma em torno de um “mais velho”, pronto a

tornar-se “dono” ou “chefe”. Cada velho, redistribuindo a porção de barbante recebida,

reuniu e levou consigo filhos, cunhados, genros e netos, quer dizer, o “seu próprio grupo”

(daway). Esta dupla operação exprime dois níveis de organização política: o grupo local e a

sociedade, dotada de uma chefia central ocupada por Seµã÷ã — em nome da senioridade que

o distinguia no próprio campo dos velhos.

Na origem desta sociedade há também a guerra, possibilitada pela redução de uma

parte da humanidade pós-diluviana à selvageria, por seu repúdio ao canibalismo, ou m e -

lhor, ao sub-canibalismo representado pela ingestão da placenta, o “amigo” do recém-

nascido201. A presença de Seµã÷ã no rio Xingu, enquanto chefe geral, garantia a existência

de uma sociedade inteiramente dedicada à guerra contra os selvagens, considerados como “ a

comida” dos grupos do rio. O canibalismo é assim o traço distintivo da civilização e, ainda,

o segundo fator da coesão da sociedade — coesão em torno de um inimigo comum.

Nesta sociedade fragmentada no nível da vida doméstica, e unificada no nível da vida

política por Seµã÷ã e para a guerra, o mito projeta ainda uma instituição — a “casta” dos

guerreiros —, na qual germina o desmoronamento da ordem social. Esta instituição e n -

gendra um poder que põe os chefes dos grupos locais sob a dependência dos guerreiros. A

idade avançada dos chefes os excluía da guerra, e os guerreiros, donos da carne, mantinham

suas casas como açougues, onde os outros se abasteciam. Gente desta casta, invocando a u -

sência de contra-prestação da carne, precipita a convulsão da ordem social ao submeter a

neta virgem de Seµã÷ã ao sexo forçado.

Seµã÷ã abandona os grupos à sorte antes de concluir a civilização (com a invenção

da indústria). É o fim do acordo, uns querem a morte do Chefe descontente, enquanto outros

choram sua partida. Sua fuga para lugares cada vez mais longínquos e a perseguição que

um bando de guerreiros empreende contra ele ilustram a desintegração da sociedade unida

em torno do inimigo comum e exterior: a guerra explode no seio da sociedade. A P r i m e i r a

Guerra essencialmente política é contra o grupo de Seµã÷ã, que, antes de desaparecer

201 Sabendo-se já que amigo é uma categoria marcada pela relação de afinidade potencial, e que a
relação entre bebê e placenta é concebida como relação de amizade, acrescento, como mera e
talvez inútil curiosidade, que o vocábulo para placenta, wã∂aza, assemelha-se ao termo para
primos cruzados de sexo oposto, -∂aza. Um homem chamou uma vez a minha atenção para o fato
de que não existe relação de amizade entre homem e mulher, querendo mostrar como os Juruna e
os Brancos são diferentes neste aspecto. Contudo, a representação gráfica da diferença sexual
(que se gosta de talhar em árvores ou riscar no papel) é chamada de “os amigos” (e também de
“relógio dos Shipaya”).
339

definitivamente, introduz a economia da caça e com ela a dura vida do trabalho.

O modelo mítico da sociedade é duplamente estático, ao conceber a existência de uma

instância política central que permite ao sistema alimentar-se unicamente de seu anta-

gonismo com os grupos da floresta, e ao negar a existência de laços de parentesco entre os

grupos locais. A própria guerra responsável pela vida do sistema não era menos estática,

enquanto constituía mais propriamente uma relação de caça.

Temos então um modelo sociológico em cujo ponto de partida podemos encontrar

elementos e processos lógicos do mesmo tipo daqueles que estão presentes em modelos

baseados na correspondência das diferenças sociais e das diferenças naturais (como os

vegetais Tikopia), culturais (como os ornamentos Bororo) ou sobrenaturais (como os

seres Ojibwa). Trata-se aqui também de pensar a passagem da natureza à cultura como

passagem do contínuo ao descontínuo, mas, como as categorias sociais não se articulam por

meio de categorias empíricas, temos a sensação de nada encontrar no ponto de chegada deste

pensamento202. Nada mais que alguns princípios gerais como a dissociação entre caça e

canibalismo e a presença latente da guerra no seio do conjunto dos grupos do rio.

Nem por isso, contudo, a sociedade é impensável: pode, quando menos, ser

“imaginada”. É certo que, como lembram Deleuze e Guattari, o pensamento que estabelece

analogias de proporcionalidade (“diferenças que se assemelham em uma estrutura, e de

uma estrutura à outra”) é tido como real ( royale ), ao passo que é tido como popular

aquele que trabalha com analogias de proporção (“semelhanças que diferem ao longo de

uma série, ou de uma série à outra”, de acordo com o grau diverso como se aproximam ou

afastam de um termo eminente, dado como razão da série). Porém, como lembram os

mesmos autores, a forma popular do pensamento exige bastante aplicação: “uma i magi-

nação cuidadosa, que deve ter em conta ramos da série, preencher as rupturas aparentes,

conjurar as falsas semelhanças e graduar as verdadeiras, ter em conta ao mesmo tempo

progressões e regressões ou degraduações” (Deleuze & Guattari, 1980: 286-7).

Uma imaginação assim aplicada ecoa, por exemplo, nas observações de dois espe-

cialistas na sociologia amazônica. Segundo P. Clastres, para quem as sociedades da região

não são imediatamente mais transparentes que a nossa, e apresentam uma dimensão d i a -

202 Estas não são as únicas diferenças formais que o mito Juruna apresenta relativamente àque-
les analisados por Lévi-Strauss. Há uma outra sobre a qual nada tenho a dizer, exceto que talvez
se deva tê-la como prefiguração da própria impossibilidade do mito em elaborar um sistema dis-
creto. Lévi-Strauss ressalta que o empobrecimento de que depende a emergência da descontinui-
dade tem como autor um personagem diminuído: cego ou coxo (Lévi-Strauss, 1964); o autor da
descontinuidade Juruna é um personagem potencializado.
340

crônica essencial, elas “sabem administrar perfeitamente a possibilidade da diferença na

identidade, da alteridade no homogêneo; e nessa recusa do mecanismo pode-se ler o signo de

sua criatividade” (Clastres, 1963: 53). Segundo Anne-Christine Taylor, a idéia mestra

do pensamento sociológico dos Jívaro consiste precisamente em “la mise à distance

optimal d’un autrui qui n’est ni tout à fait exotique, ni tout à fait le même, tout en étant

les deux choses à la fois” (Taylor, 1985: 168-9).

Ademais, o modelo sociológico que reúne os atributos do discreto, da extensão e

totalização, analisado por Lévi-Strauss, representa apenas um tipo particular de m u l t i -

plicidades que outros autores descreveram em oposição a um segundo tipo. Riemann d i -

ferencia multiplicidades discretas e contínuas, cuja métrica varia segundo as forças que

nelas atuam. Meinong e Russell propõem distingui-las em extensivas versus próximas do

intensivo, baseadas na distância. E Bergson, em multiplicidades numéricas, ligadas à e x -

tensão, versus multiplicidades qualitativas, ligadas à duração (Deleuze & Guattari, 1980:

46).

Estas observações permitem-nos reconsiderar a dissociação entre caça e caniba-

lismo e a presença latente da guerra no seio da sociedade, fazendo justiça ao seu papel de

elementos fundamentais em uma forma outra de conceber e viver em sociedade. Deixamos

aqui a epopéia de Seµã÷ã para indagar o que dizem as representações do passado histórico

(tido aproximadamente como tal pelos Juruna), onde o universo social está longe de con-

sistir em grupos endógamos associados para a guerra contra o exterior e a alteridade a s -

sinalada pela oposição rio/floresta serve apenas de moldura da identidade social.


A humanidade é dividida em Juruna, Índios ( abi) e Brancos ( karai). Todos os Í n -

dios, por definição, são Outros, imama, mas, ao lado disso, os Índios que habitam (ou h a -

bitaram) a floresta recebem o epíteto de “Índios imama” (abi imama) por serem grupos

que não saberiam ser senão hostis com os Juruna. O cauim é critério da caracterização

genérica dos grupos de Índios que habitavam o Médio Xingu e afluentes e falavam dialetos

ou línguas da família Juruna como não- imama , e mesmo (conforme pude constatar uma

vez numa fala de Ωõtã) como “Juruna nana”, algo como Juruna “classificatórios”
(lembro que o irmão do pai é um pai nana), por contrastarem em bloco, ao lado dos J u -
341

runa propriamente ditos, com os selvagens da floresta, que consomem apenas água203.

Nimuendaju registrou para os Shipaya uma classificação que exprime de forma inequívoca

a distância que existe entre os grupos do rio e os da floresta: os primeiros são tana,

“gente”, os segundos são adjí, “selvagens” (Nimuendaju, 1981: 43). O termo adjí é

cognato de abi, e tana se diz tal qual em Juruna, mas é tão rarissimamente empregado que

só cheguei a descobrir isso perguntando o que queria dizer esta palavra que eu lera em

Nimuendaju. Disseram-me que quer dizer “gente” e que se usa quando se quer anunciar

que alguém assomou a grande distância, de canoa!

No interior do conjunto de grupos produtores de cauim, a alteridade é definida pela

diversidade linguística: os Aoku, os Shipaya, os Peapaya etc. são imama, em oposição aos

Juruna de outras aldeias, definidos como nana. A oposição imama/nana serve aqui para

distinguir quem tem cabeça e dentes apropriados para troféus e quem não os tem. Tomar a

cabeça de um igual é nefasto: vira-se ãwã; só se faz troféu de um imama (seja ele h a b i -

tante do rio ou da floresta)204. Não existe sanção religiosa para o consumo de carnes h u -

manas, a ameaça escatológica incide unicamente na utilização da cabeça205. Como se sabe,

outros grupos amazônicos que praticam a caça de cabeças dão razões nobres a sua conduta.

Assim os Munduruku têm a cabeça como a mais rica isca de caça (Menget, 1993); os Y a -

gua, como um meio de captar energia cósmica e concentrá-la (Chaumeil, 1985). Os J u -

runa, entre quem o uso da cabeça como troféu não é suficiente para caracterizar as

guerras como caça de cabeças, simplesmente justificam-no em nome da alegria que isso

proporcionava: é para comemorar, festejar, alegrar-se nas cauinagens que se seguiam

imediatamente à conclusão dos ritos de homicídio. Assim, ou meus dados não cobrem s u -

203 Exprimindo-se em português, os Juruna usam indiferentemente as expressões “outro índio”


(onde “outro”, a meu ver, está longe de desempenhar a função de pronome) e “índio brabo”
como glosa de abi imama. Com efeito, a diferença entre abi e abi imama é análoga àquela que
existe entre ap¥ e ap¥ imama, cachorro e jaguar.
204 Uma exceção a esta regra é um grupo não-pertencente à civilização do cauim, os Suyá, que
os Juruna só conheceram quando — seus vizinhos do Médio Xingu tendo praticamente desaparecido
— foram viver no Alto Xingu, onde, até onde sei, tomaram apenas cabeças Txukahamãe. Embora
os Suyá sejam incontestavelmente imama, sua cabeça não serve para fazer troféu. Afirma-se
simplesmente isto, lembrando-se que os finados matadores de Suyá declararam que a cabeça não
prestava.
205 Esta sanção se estende aos Brancos, por motivo inusitado: os Brancos não são imama , são

Juruna; apenas ocorre que Seµã÷ã lhes deu outra língua (o que é concebido no mito como um
virar a língua Juruna pelo avesso) e outro cauim (a cachaça). Além disso, a carne de Brancos é a
única incomestível: fumam demais e têm, por isso, a carne amarga, impregnada de nicotina. Sua
condição é, pois, a mesma dos porcos-xamã. Isto foi descoberto quando, segundo se conta, os
antigos mataram e assaram um padre (dito “xamã dos Brancos”) mas não conseguiram comer.
342

ficientemente a complexidade do fenômeno, ou a alegria não é uma racionalização menos

nobre do que as concebidas por outros grupos.

Parentesco e residência determinam a alteridade no interior do grupo linguístico.

No modelo de organização sócio-política imaginado e desejado por Seµã÷ã (!), haveria

coincidência perfeita entre o grupo de parentes e o grupo político ou aldeia, a qual con-

sistiria assim numa unidade endogâmica. Esta coincidência não é imperativa para os J u -

runa e a endogamia local não é um pressuposto fundamental de seu pensamento socioló-

gico206. A premissa é, antes, que a cauinagem favorece encontros com moradores de outras

aldeias e, assim, a troca de mulheres é freqüente, implicando, ao menos hipoteticamente, a

mudança do rapaz para a aldeia do sogro. Do ponto de vista da residência não há Outro no

grupo local — todos se reconhecem membros de um grupo unido em torno de um chefe, e

vêem todos os outros grupos locais como Outros. Do ponto de vista do parentesco, conforme

foi visto anteriormente, todo aquele de quem se diz ser impossível definir uma relação de

parentesco é imama, ainda que seja um membro da aldeia. O rapaz que se casa fora tem a

situação singular de estar ligado ao mesmo tempo a dois grupos onde não é tido como imama

por um aspecto, e de ser tido como tal, por outro.

Finalmente, e isso já vimos também, são imama aqueles com quem se tem certas

relações de parentesco: os chamados “amigos” (cunhados dos primos cruzados) e os

próprios primos cruzados. Note-se que o uaha (MB-ZS, WF-DH, ZH-WB, FZH-WBS) não

é Outro, o umã (MBS-FZS) contudo o é, razão pela qual ele pode se tornar um uaha. A

aliança supõe a alteridade com o fim mesmo de ultrapassá-la. Resumindo, o conceito de

imama compreende desde os selvagens até os primos cruzados.


O esquema da alteridade sócio-política apresenta, pois, como ponto de partida, uma

divisão dos seres humanos (dubia) em grupos da floresta (abi imama) e canoeiros ( tana ),

a qual deve ser entendida como uma oposição assimétrica, visto que se traça em termos da

presença ou ausência de traços culturais tidos como superiores. Em seguida, o esquema

opõe os Juruna aos demais grupos canoeiros ( abi ), e concebe as relações entre estes

grupos sob a forma da predação canibal recíproca. Excetuando-se a posição dos Brancos

(como os próprios Juruna, neste contexto, parecem fazê-lo ao não os considerarem como

Outros), tem-se uma classificação ternária dos seres humanos. Os selvagens têm o esta-

206 Quero frisar que os Juruna não fazem apologia da endogamia local. Se é verdade que o modelo
sociológico presente no mito associa estreitamente o regime endogâmico à existência de uma
instância política central, que permitia à sociedade viver uma história fria, o desmoronamento da
sociedade centralizada acarreta a impossibilidade lógica da endogamia.
343

tuto aproximadamente unívoco de inimigos; ao passo que o estatuto daqueles que consomem

cauim é muito mais problemático do que o esquema da alteridade, que os codifica como alvo

legítimo da predação, permitiria crer. Segundo diversos relatos de guerra, as relações

bélicas e as relações matrimoniais não são excludentes: um grupo imama quanto à língua,

a residência e o parentesco, de quem, portanto, se pode tomar cabeças, é também um grupo

com quem se pode estabelecer aliança matrimonial207.

Ademais, os próprios critérios da classificação não são utilizados sem equívoco e

contradição, como se entre uma figura de alteridade A e outra B, que a segue imediata-

mente, houvesse lugar para uma terceira posição aparentemente imprevista, contingente,

podendo ser codificada ora como A, ora como B. Há Juruna eventualmente inimigos e i n i -

migos eventualmente cunhados. Os contornos das diferentes figuras de alteridade são ge-

ralmente imprecisos.

É mais ou menos isto o que se dá com a tribo, a língua, a civilização do cauim.

Embora a identidade tribal seja um dado sempre presente, não se pode afirmar que a

unidade da tribo seja uma figura pregnante do pensamento Juruna. Não é uma unidade p o -

lítica, nem territorial, nem uma unidade de sangue208. Adélia de Oliveira (1970)

sustenta que a identidade tribal é transmitida por linha paterna. De fato, os Juruna

afirmam que as crianças pertencem à tribo do pai, mas esta regra mecânica está longe de

207 Ver, por exemplo, este trecho de um relato de Kadu: “Os Takümãd¥kay também guerreavam
com os Juruna e os matavam. Eles eram como os Kayabi [vizinhos atuais], passeavam muito en-
tre os Juruna e se casavam com mulheres dos Juruna. Quando estavam bravos, matavam Juruna.
Quando os Juruna estavam bravos os matavam também. Quando eles já haviam diminuído muito,
até sobrar apenas uns poucos, os Juruna os capturaram. Eles morreram entre os Juruna, pois
como eram matadores de Juruna, estes não gostavam deles. Disseram: ‘Vamos dar um fim neles
todos!’ E mataram-nos [enfeitiçados]. Misturavam um pouquinho de sangue de peixe coagulado na
comida deles. Eles comiam e ficavam com diarréia e dor. Assim os Juruna acabaram com os v e -
lhos e os [demais] adultos, deixaram vivos apenas crianças e jovens. Eles morreram mais tarde,
de doença”.
208 Viveiros de Castro, lembrando que é urgente fazer-se uma análise comparativa das formas e
processos de organização social supra-locais na Amazônia, chama a atenção para aspectos que
são pertinentes também para os Juruna: “Minha impressão é que estas morfologias são geral-
mente não-segmentares (…), mas indutivas e não-totalizáveis, de tipo ‘rede’; os grupos locais e
aglomerados regionais são condensações mais ou menos transitórias destas redes egocêntricas,
guiadas por um regime contrátil de aliança e não por qualquer estrutura totalizável em termos de
descendência ou território. Mesmo onde temos grupos nomeados (Kulina, Pakaa-Nova, Parakanã,
a complicada situação dos nawa pano, os sibs e grupos exógamos tukano), a natureza ‘histórica’
mais que ‘estrutural’, destas unidades parece sobressair. O caráter de fluxo de que se revestem
as identidades coletivas na paisagem amazônica torna problemática a aplicação da categoria
clássica de ‘tribo’ (…). Sob este aspecto, a teoria pertinente deverá ser, para usarmos um s í -
mile desajeitado, antes ‘ondulatória’ que ‘corpuscular’” (Viveiros de Castro, 1993: 194-5, n.
5).
344

ser soberana. Os nascidos de pai Índio são Índios, mas, muito provavelmente, nascem entre

Juruna, falam a língua dos Juruna e são plenamente Juruna, exceto quando fazem alguma

coisa errada. Do mesmo modo, os nascidos de mãe Índia são Índios porque geralmente

nascem entre os Índios, e são Juruna quando são atenciosos, quando gostam de beber

cauim... No limite e segundo a circunstância, filhos de um homem Juruna que sempre

viveram com os Juruna podem ser chamados de Índio, e filhos de uma mulher Juruna que

sempre viveram com Índios e não falam Juruna são considerados Juruna, com maior ou

menor reserva.

É certo que a noção de comunidade linguística recobre mais ou menos bem o que se

pode chamar de tribo: os Juruna dizem que todos os que falam sua língua são saway

(“nosso grupo”). Porém, em primeiro lugar, a diversidade linguística entre os diversos

grupos que formavam a civilização do cauim não é um critério unívoco de fronteira tribal,

pois, pelo menos em um caso, a língua Juruna era falada por dois grupos diferentemente

nominados: os Juruna e os Arupaya ( Arupay). Sua diferença é assinalada pelo talhe da

canoa, pelo tempero do cauim (para incrementar a fermentação, os Juruna usam misturar

ao cauim dubia uma porção de outros tipos de cauim; os Arupaya utilizavam cascas de

certas árvores) e pelo tipo de sal (os Juruna consumiam sal de palmeira calcinada; os

Arupaya extraíam sal de aguapé, arupa, ao qual devem o seu nome). Sem deixar de ser

verdadeiro que a tomada de cabeça de um falante do Juruna desencadeia um fenômeno e s -

catológico negativo (vira-se ãwã), as relações com os Arupaya não excluíam a guerra.

Conta-se mesmo que a aldeia onde viviam os últimos remanescentes deste grupo

(sobreviventes de ataques dos Brancos) foi assaltada durante uma cauinagem e comple-

tamente dizimada por Juruna, em represália ao roubo de duas crianças poucos dias antes,

num momento em que os Juruna estavam distraídos tomando o seu cauim.

Em segundo lugar (mas sobre isto os Juruna não me disseram nada), a língua

Juruna não é homogênea. O vocabulário deixado por Coudreau indica que seus informantes,

Ximbi e Laurinda, falavam um dialeto distinto do que se fala em Tubatuba. Nimuendaju

registrou vocabulários de dois dialetos falados pelos dois únicos bandos existentes em

1916. O maior destes bandos, 50 pessoas, era formado justamente pelos antepassados do

grupo de Tubatuba que acabavam de abandonar Pedra Seca para se estabelecer a montante

da cachoeira Von Martius; algumas pessoas deste bando fizeram naquele ano uma viagem a

Altamira, onde Nimuendaju as conheceu. O segundo bando, 15 pessoas, vivia então na Volta

Grande do Xingu e a lista de palavras corrobora seu parentesco com os informantes de

Coudreau (Nimuendaju, 1932). Mas mesmo o vocabulário colhido junto aos antepassados
345

do grupo de Tubatuba difere em alguns aspectos do que se fala hoje lá, como o desapare-

cimento da oclusiva velar sonora g (presente também no dialeto de Volta Grande, bem como

no Shipaya) e variações regulares entre consoantes sonoras e surdas, oclusivas e f r i c a -

tivas, orais e nasais209.

A diversidade linguística é assim uma ordem bastante heterogênea. Havia os grupos

que falavam línguas da família Juruna (como os Shipaya, Peapaya, Kuribara e Aoko),

Tupi-Guarani (os Takunyapé) e Munduruku (os Kuruaya); e, no interior da família

Juruna, grupos cujas línguas eram mais ou menos próximas: o Shipaya é dito muito s e -

melhante ao Juruna (podia-se compreender tudo)210; o P¥pay (Peapaya) é dito um pouco

semelhante (compreendia-se em parte); o Aoku (?) é dito muito pouco semelhante (não

se compreendia quase nada), em oposição ao Kuruaya e ao Takunyapé dos quais se diz não

se compreender absolutamente.

Estas considerações mostram como o principal parâmetro da classificação sócio-

política — a língua — é uma realidade complexa de diferenças graduáveis. As fronteiras da

civilização do cauim são igualmente pouco marcadas, visto que ela abrange um grupo da

floresta, os Kuruaya. O retrato que os Juruna se fazem dos Kuruaya, que não eram c a -

noeiros e representavam para os Shipaya o papel de selvagens paradigmáticos

(Nimuendaju, 1981), é o de um povo essencialmente inclinado para a caça e andanças na

floresta; o canibalismo, entretanto, garantiria seu pertencimento ao quadro da civilização.

As relações com os mesmos incluíam tanto a guerra quanto a aliança matrimonial. P o r

outro lado, os chamados Aoku, que eram navegadores, possuíam cauim e falavam uma

língua não completamente estranha, são retratados apenas como inimigos. Viviam a j u -

sante das cachoeiras da Volta Grande, no Baixo Xingu (ou no Amazonas, como falam Ωõtã e

outros), onde os Juruna não ousavam avançar. Os Aoku, sim, subiam o rio para atacá-los e

capturar pessoas para matar e comer.

Antes de examinar mais detidamente as relações entre as diferentes formas da a l -

teridade, vejamos brevemente o modelo dos Jívaro que possuem um sistema de classifi-

cação sócio-política muito semelhante ao dos Juruna. Tomando uma sugestão de L é v i -

Strauss, Anne-Christine Taylor fornece um grande exemplo de como a codificação da

209 Quanto a isto, tanto se pode supor uma evolução transcorrida após a chegada dos Juruna ao

Alto Xingu, como não se pode descartar a possibilidade de o grupo, que já abrigava Shipaya e T a -
kunyapé, abrigar também falantes de um terceiro dialeto, o qual teria acabado por se impor.
210 Pela gramática da língua Shipaya deixada por Nimuendaju (1923-4), pude notar que as dife-
renças são principalmente fonológicas e obedecem a um processo do mesmo tipo daquele que r e s -
ponde pelas diferenças interdialetais do Juruna.
346

predação é um dispositivo de constituição da sociedade Jívaro, no mesmo sentido em que o

são “a especialização produtiva e a exogamia linguística dos Tukano (para tomar um

exemplo ao acaso)”. Pois, em todo caso, seja por meio de predação seja por meio de troca

de bens ou de mulheres, a questão subjacente é a “definição, culturalmente específica, da

identidade e da alteridade social” (Taylor, 1985: 160).

O sistema Jívaro apresenta dimensões muito claras. Primeiro, a caça de cabeças é

uma prática que cessa nos limites das outras tribos (grupos dialetais) que compõem a

cultura Jívaro; com os grupos de outras culturas, a prática que se impõe é o comércio

pacífico; com os grupos da própria tribo, tidos, teoricamente, como parentes, predomina a

“hostilidade permanente e institucionalizada, latente ou atualizada”, exprimindo-se na

forma de vendetas211; por fim, os grupos locais, compostos por parentelas bilaterais e

associados a um território, constituem “nexos endógamos”.

As dimensões do modelo Juruna são um tanto diferentes. A predação que acarrreta

conseqüências escatológicas positivas possui apenas um único limite negativo — a comu-

nidade linguística —, pois tanto os grupos canoeiros quanto os selvagens são igualmente

bons fornecedores de cabeça. Aqui é a possibilidade da aliança matrimonial que traça uma

fronteira no campo dos inimigos: não é possível a aliança com quem não bebe cauim. O que

a expressão abi imama traduz é exatamente sua exclusão do campo da aliança matrimonial

e, com isto, o seu caráter unívoco de inimigos. Por outro lado, desde que um homem não

pretenda nem cometer incesto nem procurar um sogro que habite a floresta, a aliança pode

ser mais ou menos aventurosa, mais ou menos perigosa, mas nada o impede de contrair

aliança fora da tribo. No âmbito da civilização do cauim, hipoteticamente ao menos, todo

mundo pode ser afim. A aliança sendo efetuada com uma intenção política clara: criar uma

relação de parentesco com o inimigo potencial para que ele não ataque o grupo do cunhado.

211 E isto em função da lógica da guerra cujo objetivo é “soustraire aux autres tribes des
virtualités de personnes destinées à assurer la reproduction de chaque ensemble dialectal, le quel
ne peut se perpétuer sans ce détour par les forces vives des tribus voisines. Or il faut bien que
ces Autres soient quelque part les Mêmes, puisqu’ils sont voués à devenir ce que l’on est soi-
même; il n’y a donc rien d’étonnant à ce que le terme shuar s’applique à toutes les populations
susceptibles de se fournir les unes aux autres des potentialités d’existence. D’un autre côté, ces
Autres ne peuvent pas non plus être trop proches, car l’unité tribale ne saurait se nourrir de sa
propre chair (...) Il y a donc là les éléments d’une contradiction, entre la nécessité, d’une part,
de reconnaître à autrui le statut de personne jivaro, donc de shuar inséré dans un système social
dont la parenté fournit justement l’armature et le modèle conceptuel, et la nécessité, d’autre
part, de le priver initialement du statut de parent (pourtant inhérent au statut de shuar) afin
qu’il puisse le devenir réellement, à l’issue du travail de réappropriation qu’ont pour fonction
d’accomplir les rites de tsantsa [os ritos de redução da cabeça]” (Taylor, 1985: 167).
347

E sendo a guerra, em contrapartida, efetuada por espírito de traição.

Os Outros que bebem cauim formam pois uma categoria ambígua enquanto situada

na confluência da aliança e da guerra. É a história, dir-se-ia, mais do que a estrutura que

determina em cada momento a configuração das relações concretas entre os diferentes

grupos da civilização do cauim; exceto que é estrutural o fato de que cada um possui em

todo momento relações de aliança supra-locais tanto com grupos da tribo quanto com

grupos de outras tribos; relações de hostilidade mais ou menos atuais; e, por último, r e -

lações que se abrem ao possível, seja a aliança seja a guerra, com grupos com os quais

velhas amizades ou inimizades estão sendo esquecidas, as antigas alianças não são mais

pertinentes, podendo ser renovadas ou não212.

Vejamos agora a tribo. Ainda mais natural do que ligar-se aos chamados Índios por

meio de aliança, é casar-se numa outra aldeia da tribo. Simultaneamente, e os Juruna são

muito claros neste ponto, a impossibilidade ritual de tomar cabeças no interior da tribo

não implica que as relações intratribais sejam qualificadas como relações pacíficas. De

acordo com Mareaji, existe uma guerra própria para se travar no interior da tribo: a

guerra de cauinagem213. Trata-se de uma guerra concebida como um conflito onde os

oponentes não são capazes de fazer com que o conjunto das pessoas se divida em solida-

riedade a uma ou outra das partes, de modo a evoluir até o conflito armado. Em princípio,

uma briga iniciada por bêbados não tem o crédito da opinião coletiva, que logo a atribui ao

álcool, e, aliás, vê a briga como um dos mais inequívocos sinais de embriaguez. Se eu não

me engano, uma coisa que um bêbado não pode fazer é brandir, como nós fazemos ocasio-

nalmente, a proposição “eu não estou bêbado!”, no exato momento em que está brigando;

pelo contrário, somente a quem não está brigando é que ocorreria dizer isto. E é o que

efetivamente se diz quando um bêbado se enfurece, como uma forma de lembrar o caráter

212 Como observa Pierre Clastres, “la trahison est toujours possible, et souvent réelle. Là
apparaît un trait décrit par les voyageurs ou ethnographes comme l’inconstance et le goût pour
la traîtrise des Sauvages. Mais, encore une fois, il ne s’agit pas de psychologie primitive:
l’inconstance signifie ici simplement que l’alliance n’est pas un contrat, que sa rupture n’est
jamais perçue par les Sauvages comme un scandale, et qu’enfin une communauté donnée n’a pas
toujours les mêmes alliés ni les mêmes ennemis. Les termes liés par l’alliance et par la guerre
peuvent permuter et le groupe B, allié du groupe A contre le groupe C, peut parfaitement, à l a
suite d’événements fortuits, se tourner contre A aux côtés de C. (...) Ce que l’on doit retenir,
c’est la permanence du dispositif d’ensemble — division des Autres en alliés et ennemis — et non
la place conjoncturelle et variable occupé sur ce dispositif par les communautés impliquées”
(Clastres, 1980: 196-7).
213 Registre-se que a língua Juruna não faz distinções lexicais entre os diferentes tipos de
conflito, designando-os a todos com o termo ∂akariku.
348

irrazoável de se pretender aplicar a força sobre o não-Outro.

A guerra de cauim só é, entretanto, a única que se pode travar no interior da tribo

porque se pode travá-la com qualquer um: parente, não-parente ou Índio; concidadão,

amigo ou inimigo. Não é uma relação institucionalizada com o Mesmo. É ainda uma p r o -

blematização da alteridade que ela desdobra, alimentando-se do fato de que o bêbado, como

parece, vê Outro em toda parte! Conforme examinaremos no próximo capítulo, a guerra de

cauim se alimenta da guerra propriamente dita, quer dizer, o impulso para fazer guerra

entre si vem da experiência da guerra que se faz contra os Outros, mais ou menos como o

preço que se tem de pagar pelo fato de que os guerreiros existem e são prestigiados.

Passemos ao grupo local. Assim como, em princípio, o casamento pode ser decidido

no domínio amplo da civilização, o cauim também poderia ser bebido entre grupos que

partilham a mesma civilização. Mas eis que ao contrário das pessoas que, segundo querem

acreditar os Juruna, se podem trocar neste âmbito, o cauim não é um valor que se põe

facilmente em circulação. Quer dizer, o cauim existe para ser consumido pelos membros

do grupo local. Não há troca de cauim entre grupos, mas somente entre indivíduos.

Não é obrigatório nem é proibido chamar pessoas de outras aldeias para beber,

apenas é pouco recomendável. Eu enfatizo que não há como a aldeia, enquanto unidade,

proporcionar uma cauinagem a outra unidade do mesmo tipo. Os convidados de fora são

convidados do dono do cauim, o conjunto dos concidadãos não é concernido senão muito

indiretamente; de forma que concidadãos e forasteiros encontram-se na mesma situação de

consumidores do cauim de outrem. Além disso, o cauim não é por si mesmo suficiente para

justificar o convite: os vizinhos eram preferentemente convidados para a cauinagem da

noite de encerramento dos festivais (profanos ou religiosos). Segundo Mareaji, dava-se o

seguinte no passado: ocasionalmente, o dono do cauim podia ir ou enviar alguém para

convidar a aldeia vizinha. Este convite era feito ao chefe da aldeia, o qual, contudo, jamais

comparecia à cauinagem214. No grupo chefiado por ele, quem quisesse ir, ia; geralmente os

rapazes é que demonstravam interesse; os donos de Índios geralmente não iam, e, quando

iam, não levavam o seu Índio, para evitar que fosse morto por algum bêbado exaltado e

comido pelos apreciadores de carne de Índio.

Neste sentido, a cauinagem com os mortos é absolutamente singular, no que os

mortos são o único grupo possível de se reunir enquanto grupo frente ao grupo dos v i -

214 Acredito que isso não deve ser compreendido literalmente, mas como expressão de que o

evento não tinha o cunho político de encontro entre dois grupos locais.
349

vos215. Mas aqui é preciso considerar também o seguinte. Por intermédio dos mortos, com

a série de proibições religiosas que cercam os seus festivais — proibição de briga e sexo

—, os grupos locais encontram o meio ideal de reunir-se para beber com a suspensão

imediata de todas as suas diferenças e a submissão de todos às leis do outro mundo. Quer

dizer, os festivais dos mortos não são somente festas entre mortos e vivos, mas festas

entre grupos locais, no âmbito da tribo.

Acontece, por outro lado, que uma famosa tática de guerra, adequada para se com-

bater grupos da mesma civilização e com que se mantêm relações amistosas e mesmo de

aliança, é convidar (ou aceitar o convite) para beber. Embriagando os convidados (ou

cuidando para não se deixar embriagar pelos anfitriões), e depois os dizimando. Embora a

alteridade tribal represente um alvo legítimo da predação, é justo presumir que os con-

flitos estimulados por embriaguez, em cauinagens que reuniam Juruna e Índios, não

chegassem a catalisar a solidariedade coletiva ao ponto de atravessar o limiar da guerra

propriamente dita. Em caso contrário, evidentemente, nenhum Índio aceitaria o convite

para beber. Afirma-se contudo que o cauim era usado para atrair amigos (Índios) com

quem se estava descontente e se desejava matar, com o acordo prévio do grupo aldeão.

É difícil avaliar até que ponto esta tática não existe desde sempre como fenômeno

imaginário. Até que ponto a cauinagem era usada para se efetuar uma traição, ou se s i m -

plesmente a guerra não é aí apenas mais um indício do sentido ao qual remete a cauinagem,

o sentido que tangencia e vibra a cauinagem, sem ter por isso que se dar como ação real.

Um pouco como diz o Robinson de Michel Tournier: “o que não ex-siste insiste. Insiste

para existir”, ou o Riobaldo de Guimarães Rosa, segundo quem “o demônio não precisa de

existir para haver”. Não se deve, com efeito, superestimar a belicosidade da cauinagem,

se não se quer perder o senso de realidade; ao mesmo tempo, não se deve subestimá-la

para não perder a significação da cauinagem. O sentido que os Juruna sacudiram muitas

vezes em minha frente foi a guerra. Mas isso se entende, creio, como resvalamento pos-

sível da cauinagem, resvalamento que tem o duplo selo da contingência e da necessidade, do

acontecimento e da estrutura, da transgressão e da lei.

215 Nós nos aproximamos assim de uma compreensão mais justa do poder coercitivo que se a t r i -

bui ao c a p i t ã o dos ÷ï÷ãnay. Trata-se não só de um aspecto importante da sociedade dos mortos
que a diferencia da sociedade dos vivos, mas de uma condição da cauinagem entre vivos e mor-
tos.
350


Se com o esquema da alteridade os Juruna se situam em e mapeiam um mundo social

que deixou de existir, atualmente sua orientação depende sobretudo de um outro conceito

sociológico, de caráter não menos relativo, away, que quer dizer grupo, tribo, família,

turma, bando, ou, como dizem, o p e s s o a l . O vetor básico deste conceito é a proximidade,

independentemente da alteridade linguística e cultural, e também da duração, podendo

durar teoricamente apenas um minuto; e dependente, intrinsecamente dependente de uma

hierarquia: não há grupo sem dono ou chefe, sem aquele que se põe à frente.

Há grupos das mais diversas ordens de grandeza e segundo os mais diferentes c r i -

térios. Compõem grupos os da mesma faixa de idade, do mesmo sexo, da mesma casa, da

mesma aldeia, da mesma tribo ou língua, de um grupo de aldeias ou tribos, do mesmo

território (o mesmo rio), e, caberia acrescentar, da mesma condição política de índios,

desde que envolvidos, ordinária ou extraordinariamente, num empreendimento comum. A

identificação individual e coletiva se faz por meio do termo - away, precedido seja por um

afixo de posse seja por um nome próprio, que indicam por si mesmos a ordem de grandeza

e o tipo de grupo216.

Ao lado da chefia, o outro aspecto essencial da concepção de grupo é que ele exclui a

alteridade; aí não há Outro e, por conseguinte, não há lugar para o conflito e a guerra.

Veremos abaixo que é preciso matizar minha afirmação de que o grupo exclui a alteridade:

isto é verdadeiro, mas o próprio lugar da chefia é marcado por valores de alteridade.

Nos discursos sobre o passado, é notável a ausência da noção de grupo, a qual t r a -

216Exemplificando: (1) o nome do líder de uma aldeia é utilizado na identificação do grupo ou de

indivíduos membros deste grupo: Canísio away identifica os Kayabi moradores da aldeia Capivara
em seu conjunto, ou alguém desta aldeia. (2) Kãrï away , por outro lado, designa o conjunto dos
meninos que têm a idade aproximada de Kãrï e costumam andar com ele, brincando, navegando,
explorando os arredores. (3) Kawa≈ï away está na floresta cortando folhas de palmeira; isto é,
Kawa≈ï está acompanhado de seus filhos e/ou genros. (4) Kawa≈ï é um Kayabi que vive com os
Juruna desde a juventude, casou e teve filhos neste grupo; se índios Kayabi aportam em Tubatuba
e Kawa≈ï leva cauim para eles, ele está dando cauim para (seu) daway . (5) Uma vez um homem
ficou muito chateado com um tio materno: planeja ir embora, fundar uma nova aldeia; está s e -
guro que (seu) daway o acompanhará, isto é, alguns irmãos da esposa dele. (6) As palavras de
uma mulher dirigidas aos Juruna que vivem perto de Altamira, gravadas por mim com o fim de
reproduzi-las para eles, começam assim: “(nosso) Saway , vocês estão aí?”. (7) Um casal que
numa visita ao Rio de Janeiro conheceu meus alunos contou para os outros que (meu) uaway era
bastante numeroso.
351

balha, ao menos em parte, contra o esquema da alteridade. Basta ser vizinho para que sob

certo aspecto e em certas circunstâncias um Índio seja visto como alguém do “nosso

grupo” (saway). Basta não ser vizinho, ser um desconhecido, para que um Juruna seja

visto como um possível inimigo. Se o esquema da alteridade, orientado para a predação, é o

mecanismo abstrato da divisão sociológica, a noção de grupo, fundamentada na proximidade

e no reconhecimento de um chefe comum, é o mecanismo concreto orientado para a s o l i -

dariedade e reciprocidade. Eu disse que o grupo trabalha contra a alteridade; seria mais

exato dizer que um trabalha contra o outro, porque naturalmente é o esquema da alteridade

que o grupo dispõe ou aciona para dissolver-se ou dividir-se, quando isto convém. O i m -

portante é que um não trabalha sem a presença do outro, e que os mecanismos sociológicos

que exprimem não são redutíveis à lógica segmentar clássica.


Na concepção que os Juruna se fazem do passado, a captura de Índios é tão i m p o r -

tante quanto o homicídio. As motivações simbólicas da captura são fugidias e convergem

para a mesma razão que os levava a extrair a cabeça da vítima como troféu: a alegria. D i z -

se que os Shipaya sim, e também os Aoku, faziam prisioneiros de guerra com o simples

fim de os matar na aldeia para comer; chegavam mesmo ao absurdo de criar as crianças

roubadas para comê-las quando ficassem adultas. Um relato narra o triste fim de um rapaz

Juruna, roubado na infância pelos Shipaya, que teve de colher nos pés de pimenta, em

torno das casas, o tempero com que seria comido, enquanto sob a panela onde seria cozido o

fogo já crepitava. Os Juruna, de sua parte, jamais teriam adotado este costume; seu i n -

teresse era manter o Índio vivo e mesmo elevá-lo à chefia.

A guerra não é o único meio de captura. A aliança era também um grande meio de

capturar pessoas. E isto não porque por meio dela se conquiste genro ou cunhado ( uaha),

mas porque se pode conquistar o mesmo que se conquista em guerra: imimãzaha, filhos

adotivos. Crianças órfãs cujos parentes as dariam de boa vontade, ou jovens cheios do de-

sejo de se expatriar são os principais alvos da captura pacífica. Hoje, bastante freqüen-

temente, os solteiros de ambos os sexos reclamam de um grande tédio da vida aldeã, e falam

de uma vontade grande de mudar de ares, passar uma temporada entre os Índios. Esta

mesma vontade de partir é projetada no passado, e se afirma que era grande a circulação de

pessoas entre os grupos. Uns se casavam no estrangeiro, uns voltavam para casa, outros
352

eram mortos.

O Juruna que parte é geralmente retratado como alguém que assume uma alteridade

política que o torna capaz de matar outros Juruna, conforme ilustra este relato. Um rapaz

foi viver com os Shipaya, levando consigo — em sinal de que a cortejava — o brinco217 da

esposa do irmão mais velho. Voltou um dia para visitar os seus acompanhado de alguns

Shipaya, e não encontrou nem o irmão nem a cunhada: ele estava pescando, e ela estava na

roça arrancando mandioca para fazer farinha. Foi ele até a roça, matou a mulher e pôs o

brinco sobre o corpo dela e foi-se embora, depois de reencontrar-se com os seus novos

companheiros que tinham ficado na aldeia à sua espera. O irmão mais velho, preocupado

com a demora da mulher, foi até a roça e lá achou o brinco que denunciava o autor do

crime.

“Por que você matou minha mulher se ela não era Índia?”, disse ele, pensando no
irmão.
A notícia chegou à aldeia dos Shipaya que contaram ao rapaz que um Índio tinha assassinado

sua cunhada.

“Que pena, ele disse. Por que? Por que um Índio foi matar a esposa de meu irmão?
Por acaso esse Índio nunca fez amor com uma mulher?”
Passados alguns dias o mais velho soube que o mais novo achava-se de visita numa aldeia

Juruna. Reuniu diversos homens e partiu decidido a se vingar. Lá, encontrou-o conver-

sando no interior de uma casa, disse aos companheiros que se posicionassem ao redor do

irmão e se aproximou. “Você chegou?”, foi cumprimentado pelo mais novo. Silêncio. Após

um momento, o rapaz faz o cumprimento de novo, acrescentando:

“Eu cumprimentei você, você não me respondeu”.


“Respondi, sim, respondi antecipadamente”.
“Ora, por que você está bravo comigo, meu irmão?”.
“Você matou minha mulher. Por que você a matou? Ela era Índia? era Índia?”
Assim disse o mais velho, já agarrado ao mais-novo, puxando-lhe os cabelos, e logo s e -

cundado pelos companheiros que seguraram o irmão. Furaram-no com uma faca. Rápido

um tal cortou um pedacinho de carne e foi assar na chama da vela que iluminava a casa.

Enquanto isso, o “dono”, vivo ainda, de pé, olhava a parte de si chamuscando ao lado.

217 Uma forma comum de se paquerar é tomar anel, pulseira, ou colar da moça. Estes objetos
também são usados como “pagamento” de relações sexuais. Pode-se bem imaginar que os ho-
mens vão tomando estas prendas de umas mulheres e dando-as a outras. Atualmente, o bem que
se usa mais freqüentemente para pagar o amor é o sabonete (o Phebo de rosas é o mais apre-
ciado).
353

“Por que você não espera eu morrer para me assar?”


O mais-velho calou o mais-novo gritando que fora ele que matara em primeiro lugar. E

Kadu conclui assim o relato:

E assim eles o mataram e o comeram, e o mais-velho não quis comer o mais-novo.


Já faz muito tempo — quando os Juruna eram numerosos havia muita crueldade.
O avô! o avô comeu o neto! ‘Dê-me a barriga de meu neto para eu comer!’218.
Por outro lado, o retrato do Índio capturado é o de um sujeito tão bem incorporado

ao grupo que acaba se tornando seu chefe. O objetivo da captura parece ser exatamente este:

domesticar ou amansar o Outro, estimulando sua participação na vida Juruna por meio de

imitações de gestos, palavras e condutas Juruna. Estes não são em si mesmos engraçados,

mas basta o fato da imitação para torná-los uma fonte inestimável de alegria. O que assim

se desenrolava por um longo período como imitação e fonte de prazer acabaria virando

realidade pois o Outro assumia a chefia. O trabalho de domesticação em que os Juruna se

empenhavam visava finalmente transformar o Índio em chefe? Não é preciso entender o

fenômeno literalmente, pois, em certo sentido, um Índio não precisa exercer a chefia para

ser uma espécie de chefe: a função Índio-capturado é já uma força que revigora a unidade

do grupo e constrange a vida social a girar em torno daquele que se pretende identificar a

s i219.


Num mundo em que se capturam Índios, as relações entre os próprios Juruna ten-

dem necessariamente para a hostilidade. Assim sucede que a civilização do cauim remete a

um tempo em que havia guerreiros que procuravam, em aldeias Juruna, Índios para matar

218 Por causa da gordura, a barriga é uma carne nobre. Eu não saberia dizer se o avô partiu com
a expedição de busca ao neto ou se residia na aldeia onde se deu a vingança.
219 Nas histórias de Índios que se tornaram chefes, eles nunca aparecem como maus chefes. De
um Arara que virou chefe de uma aldeia Juruna, conta-se também que virou um excelente xamã:
“Ele se tornou o c a p i t ã o dos Juruna, quando ficou homem. O pai e a mãe [adotivos] morreram,
deixando-o só; ele se casou, tornou-se chefe, e tornou-se xamã. Quando ficou homem, as pessoas
disseram: ‘Ele é filho de Arara, foi capturado menino numa guerra, agora está um homem’. Era
um homem bem alto. Tomou drogas e se tornou xamã. Ia até o céu ver ÷ë÷ãm†, ia ver Kumahari;
os Juruna dançavam com ele quando havia festa dos ÷ï÷ãnay que vivem no céu, quando se arran-
cava mandioca para fazer o cauim que os ÷ï÷ãnay pediam. Ele era muito bom (...)”. Os Juruna
projetam sobre outros grupos o mesmo interesse em ser chefiado por um Outro. Conta-se que os
Txukahamãe transformavam em chefe os Juruna capturados na guerra; lembre-se que também os
porcos fazem o mesmo com Juruna cuja alma capturam na caça.
354

e comer. No caso de não os encontrarem, matavam e comiam Juruna, escolhidos entre os

pobres de parentes, isto é, aqueles que não tinham quem os vingasse.

Os Juruna que se dedicavam a comer Índios dos outros formavam bandos em torno

de um capitão rico de distinções. Na expedição de busca ao Outro capturado, ele se sentava

no meio da embarcação, e não na popa como convém ao guia de um bando, sem portar o

remo, à espera de que os subordinados remassem para ele. O bando remava com muito

brio, batendo ritmadamente os remos na borda da canoa, ainda quando, ou tanto mais quanto

se aproximava da aldeia onde se contava encontrar alguém para comer. Chegando ao porto

da aldeia, cada homem pegava seu grosso feixe de flechas, colocava-o no ombro e descia

assim armado para molestar os Juruna. Quer dizer, procedia-se com o alarde que é comum

ao grupo masculino que retorna à aldeia ao fim de um trabalho coletivo sabendo que o

“dono” deste trabalho recompensará a todos com um cauim abundante e forte. Do mesmo

modo, a virilidade, por assim dizer, que se comemora ou encena diante das mulheres no

retorno à aldeia, vinha a ser exibida diante dos homens de outras aldeias. O Índio, que ge-

ralmente se achava paramentado à moda Juruna, era examinado pelo c a p i t ã o , que com

isto buscava os sinais que revelariam sua verdadeira alteridade. O Índio, em seguida, era

morto e assado pelos assaltantes em um moquém improvisado no terreiro da aldeia. A carne

estando bem assada, faziam roda para comer, enquanto os moradores da aldeia os observa-

vam, “simplesmente os observavam”, com certeza atemorizados, sem poder demonstrar

seu descontentamento. Todo mundo receava ser morto e comido também.

Um relato notabiliza um destes bandos através de seu c a p i t ã o cujo apelido era

Lábio Caído, por causa de seu lábio inferior caído220. O aspecto singular de sua conduta era

que se regozijava com jabutis de criação quando não encontrava Índios nem Juruna sem

parentes221. Aproveitando-se desta peculiaridade de seu caráter, os moradores de uma

aldeia situada numa península prepararam-lhe um ardil. Tão-só ouviram as batidas r e -

gulares dos remos da canoa de Lábio Caído, todos deixaram a aldeia e remaram para a roça,

situada no continente, deixando, no caminho desta, onde havia um acampamento, um homem

a fazer uma jarreteira. Lábio Caído aportou e, mesmo não encontrando ninguém, entrou

220 Eu não saberia dizer se este defeito foi provocado por ingestão de alimentos dos mortos, que
provocam isso quando comidos antes de terem sido comidos pelos “donos”. De toda forma, Lábio
Caído comia a “comida” de outrem.
221 Aos Juruna soa como uma excentricidade incompreensível esta substituição de carne humana
por jabuti. Em comunicação pessoal, Viveiros de Castro observa que os Araweté atribuem uma
propriedade comum às duas carnes, a saber, a longevidade. Para os Juruna dá-se o mesmo em
relação ao coração de jabuti, cuja carne, por outro lado, não é recomendável nem às crianças
nem aos jovens por ser reputada causar lerdeza.
355

nas casas e descobriu em uma delas uma grande quantidade de jabutis. Mais tarde, o homem

da jarreteira tomou um atalho por terra que levava até a aldeia e os viu ali comendo. Lábio

Caído dizia:

“Oh, que gostosa carne de jabuti, oh!


“Pois é. É tão gostoso quanto fazer amor, não é, Lábio Caído?”,
respondeu o homem da jarreteira tomando o cuidado de não se deixar ver.

“Quem está aí? quem está aí? De quem é esta voz? que voz é esta?”
E o homem voltou rápido para o acampamento, estirou-se na rede e continuou fazendo sua

jarreteira. Lábio Caído atravessou o rio em busca do autor da frase desafiadora e acabou

topando com ele:

“Quem foi que falou comigo daquele modo?”


“Que sei eu? O que foi que lhe disseram?
“Disseram-me isto: ‘Pois é. É tão gostoso quanto fazer amor, não é, Lábio Caído?’ Foi
você?”
“Eu? Não, de modo algum. Estou aqui trabalhando nesta jarreteira”.
“E quem foi então? Quero pegar esse sujeito!”
Mas logo Lábio Caído concluiu cheio de medo:

“É provável que o sortilégio me prejudique, você não acha?”


“É bem provável, sim. Isto já aconteceu uma vez a um outro”.
“Então é isto: eu vou morrer!”
E o bobo capitão voltou para sua aldeia, contando aos seus o que lhe dissera a voz, e nunca

mais saindo à procura de Juruna para comer. Ao morrer, conforme lembra o narrador,

Lábio Caído virou ÷ë÷ãm†, foi para o céu onde vive até hoje.

O partido que os Juruna tomam em relação ao fenômeno é, como já se pode ver na

aventura de Lábio Caído, que acaba ridicularizado até o fim dos seus dias neste mundo,

unicamente o do grupo cujo Índio era abatido pelos outros, quer dizer, o ponto de vista do

grupo que sofre a perda do Outro por ele capturado222. Relatos desse gênero agitam

222 Não há, parece, narrativas de expedições vitoriosas contra Índios capturados por outrem,
como se o êxito, neste caso, não fornecesse um enredo interessante. Os chefes destas expedi-
ções aparecem na mitologia como guerreiros no final das contas muito fáceis de se enganar, como
se pode ver também neste outro relato. Um homem capturou uma Índia excepcionalmente bonita.
A notícia chegou às diversas aldeias vizinhas e um temido canibal de uma aldeia a montante reu-
niu os companheiros e disse: “Eu quero ver. Vamos!” Porém o dono da mulher já idealizara o s e -
guinte: “Se ele aparecer, você agarre a mão dele e ponha em sua vagina”. O tal chegou inda-
gando: “Onde está a Índia que vocês capturaram?” A Índia estava sentada em um canto. “Venha
até aqui, eu quero ver você!” Ela se aproximou para o exame. Ele olhou-a nos olhos e foi des-
cendo o olhar ao longo do corpo dela, e ela, num gesto rápido, pôs a mão dele sobre sua vagina.
Ele se surpreendeu, puxou a mão e disse: “Você viverá sua vida inteira!”. Era tão vaidoso que
356

bastante o sentimento dos Juruna, fazendo-os tremer de raiva, desencadeando sede de

vingança, e alguns, mais exaltados, dizem que se fosse hoje os canibais não sairiam ilesos,

porque eles próprios não são medrosos como os antigos, eles os matariam223.

Comer um Índio pertencente a um grupo Juruna e comer um Juruna são uma só e

mesma afronta; ambos os casos são sintetizados no mesmo enunciado, a saber, “eles nos

comiam”, ou “Juruna comia Juruna”. Índio de Juruna não representaria, pois, mais do

que uma especificação do estatuto do membro do grupo.

A morte dada ao Índio dos outros merece ser compreendida como uma forma de

guerra por pessoa interposta. A unidade da tribo, para usar a expressão cara a P i e r r e

Clastres, é conjurada por duas forças complementares igualmente ligadas à função Índio-

capturado . Encontrando o seu eixo de unificação na pessoa do Índio incorporado, um grupo

local se põe diante dos companheiros da tribo como um grupo cujo chefe é Outro, pois

naturalmente um Índio só deixa de ser Índio aos olhos de quem o domestica. Procurando na

casa de outro Juruna o Índio que está sendo incorporado por uma outra via, os guerreiros

mostram sua verdadeira face de oposição mútua: estão sempre uns contra os outros em

função de sua guerra aos Índios.

A tensão produzida pelo Índio capturado não diz respeito unicamente à esfera das

relações entre os grupos locais. É certo que a aldeia como um todo recebe com alegria a

chegada de um Índio capturado por um companheiro e que todos se empenham na sua p r o -

teção e domesticação. Contudo, como também é certo que numa cauinagem os guerreiros

podem passar da alegria à violência sem solução de continuidade, tudo poderia acontecer

numa aldeia que abriga um Índio quando o grupo se reúne para beber. Um ou mais bêbados

podiam matar e comer o coitado, para decepção do grupo que assim perdia aquele através de

quem gostava de admirar a própria imagem.

entendeu que a mulher o desejava e assim desistiu de comê-la e lhe ofereceu uma faca para pagar
a amabilidade.
223 Mareaji propôs uma comparação sugestiva para que eu pudesse fazer uma idéia mais justa
dos desmandos dos matadores: eles eram a polícia federal dos Juruna antigos! Na idéia que
Mareaji parece ter da polícia federal, esta se coloca fora da lei, sempre pronta a desacatar os
interesses alheios e gozando da ausência de todo mecanismo de vingança que se pudesse acionar
contra ela. Mas Mareaji não está muito seguro de que isto seja exato e me interroga: “Se mata
polícia federal, não se mata?” Argumenta, então, que se a polícia federal pode ser retaliada
pelos homicídios que comete, por que os antigos não matavam os matadores? Medo — é a única
resposta. “Se fosse hoje, não ia ficar assim, não”.
357


358

Vejamos como se desenvolve o problema da alteridade em sociedades não-humanas,

pois o pensamento sociológico dos Juruna, que parece desejar um diferencial entre o chefe

e o grupo exprimido em termos da distância Índio-Juruna, pode ser melhor avaliado no

quadro das representações acerca de sociedades animais.

A vida social depende tanto de relações nana quanto de relações imama , de “iguais”

tanto quanto de Outros. Entendida como impulso em direção a outrem, a sociabilidade é o

modelo da vida em geral, humana, animal, ou divina. Subjacente à diferença — dos animais

entre si, dos homens com os animais e os ogros, dos homens com os mortos — está o fato de

que todos se pensam como humanos. Isto quer dizer que todos se interessam por Juruna,

com os quais se pensam suficientemente semelhantes para ser concebível uma relação, e

suficientemente diferentes para que possam desejá-la. Assim o guariba, brigando com a

esposa, é capaz de levá-la ao desespero do ciúme, ameaçando ir embora para sempre, i r

viver com os Juruna, lá beber o seu cauim e casar com outra moça. O Outro por excelência

dos animais, dos ogros e dos mortos é o homem.

Por outro lado, a diferença “específica” tem valor de relação de parentesco e de

relação política pelo menos entre os urubus e os bagres. O fato é interessante no que evoca

de imediato a questão do conteúdo da alteridade humana para a perspectiva do homem: será

que a alteridade constituída através de cauim, língua, parentesco e grupo político tem

valores de alteridade “específica”?

A sociedade urubu é composta por três espécies, o urubu-rei, o urubu-peba (de

cabeça amarela) e o urubu-de-cabeça-vermelha, que desempenham, respectivamente, os

papéis de avô e líder político e ritual, de tias paternas e produtoras de pimenta em pó, e de

caçadores e guerreiros. Ela se opõe à sociedade gavião (onde o gavião real desempenha um

papel análogo ao do urubu-rei), com a qual mantém relações de vizinhança, mas cuja a l -

teridade traduzida pelo regime alimentar, o podre e o moqueado224, torna impossível a

224 A conquista do fogo de cozinha, pertencente originalmente ao gavião, não implica inequivoca-

mente que o gavião seja desprovido de fogo. Aqui na terra, o gavião come cru; em sua aldeia ce-
leste, ele come moqueado. Enquanto o urubu pensa que come moqueado, o gavião come realmente
o que pensa que come: moqueado. Disto resulta que o homem é comensal do gavião e não é comen-
sal do urubu. Um finado, que um dia ficou à espreita dos urubus que costumavam comer as v í t i -
mas de guerra dos Juruna, matou o filho do c a p i t ã o , o urubu-rei, e foi forçado pelos urubus
guerreiros a se disfarçar na vítima para preencher seu lugar no grupo. Na hora da refeição,
enojado do podre, ia comer carne assada na aldeia gavião. Tampouco podia suportar a toalete que
as duas esposas da vítima lhe ministravam diariamente: seu óleo de passar no corpo são seus
próprios excrementos. Não foi o nojo que o traiu, mas sua incapacidade de fitar o pai sem piscar
os olhos. Também há limites para a participação humana na vida do gavião: sua bebida é o sangue.
359

comensalidade.

A sociedade do ogro p a ÷ ¥ é constituída pela relação uaha que liga os p a ÷ ¥ p r o -

priamente ditos aos bagres pirarara e wãdope, relação que tem aqui o conteúdo particular

tio-sobrinhos, sogro-genros potenciais. As distintas espécies de p a ÷ ¥ formam grupos

distintos que mantêm relações cordiais, visitando-se por ocasiões de cauinagem. Por outro

lado, o pa÷¥ não é capaz de perceber sua própria diferença específica em relação ao t u -

cunaré. Confunde-o com um membro da sua espécie e por isso evita-o, foge. Para ele, o

tucunaré é como um selvagem para os Juruna: um inimigo.

O princípio de organização destas sociedades opera em um domínio onde as dife-

renças específicas são bastante reduzidas e concebidas como diferenças de traje. As listas

vermelho coral que enfeitam a pirarara, as listas escuras do wãdope; o belo diadema que

enfeita a “cabeleira” do urubu-rei, a nudez simples do urubu caçador, sua careca apenas

aureolada por um folíolo de palma. Diferenças no interior da família (FZ-BS, M B - Z S ) ,

diferenças de condição político-religiosa (urubu-rei/urubus; pa÷¥ /bagres). Desconti-


nuidade sociológica exprimida pela descontinuidade biológica. Diferenças mínimas fazem o

tecido interno do grupo, enquanto diferenças mais acentuadas traçam a fronteira entre

grupos distintos e organizados segundo o mesmo princípio.

Este método animal de tratar a alteridade específica como valor de relação de p a -

rentesco ou como valor de relação política, no âmbito da constituição interna do grupo a s -

sim como no âmbito das relações exteriores, parece representar como que a imagem

cristalina da concepção Juruna da alteridade humana. As sociedades urubu e p a ÷ ¥ dão uma

idéia mais nítida do que significam as distinções entre os grupos sociais, as distinções de

poder ou status e a relação de afinidade, como se no céu ou na água se concretizasse o

princípio ideal visado pelos homens.

Com efeito, os Juruna põem a questão do caráter precário da alteridade humana.

Seja ou não por seu caráter inelutavelmente contextual e dependente da história (“Os

Txukahamãe estão deixando de ser abi imama”), o Outro nunca é distinta e ostensivamente

tão Outro quanto se imaginaria. É justo em nome da insuficiência de marcas diferenciais

entre os Juruna e os grupos da civilização do cauim que, segundo se conta, os antigos

Juruna selaram um pacto de abandono do canibalismo, que ninguém jamais transgrediu,

tão poderoso parece ser o argumento sobre os perigos inerentes ao ato de comer o Outro: à
360

força de não resistir a este desejo, pode-se acabar sendo comido pelo Mesmo225.


Tomemos mais uma vez o mito de origem da sociedade. Eu o considerei apenas como

o mito de uma sociedade mítica, quando na verdade ele também contêm um aspecto que

remete à vida real. Há um fato que ele só menciona a partir do momento em que se dá a fuga

de Seµã÷ã, após, portanto, a ruptura da aliança política que esta fuga representa: a

cauinagem. Isto talvez se deva ao fato de que ao se passar do passado mítico à história (quer

dizer, da sociedade centralizada à sociedade sem chefe central) passa-se do canibalismo no

sentido próprio a um canibalismo figurado, uma vez que “ser humano”, como já sabemos,

é o nome do cauim. Porventura, e uma vez que nada é arbitrário nos mitos, não será o

próprio descentramento engendrado pelo abandono divino que representa a origem lógica da

cauinagem? O que as cauinagens da aldeia que Seµã÷ã ergueu no Rio Fresco, após sua de-

cisão de ir morar longe dos homens que lhe negaram carne humana, exprimiam, e a l i -

mentavam, era a independência da parentela de Seµã÷ã, separada, isolada a grande d i s -

tância, única aldeia do rio Fresco. São elas que motivam a saudade que Seµã÷ã sente deste

225 Conta-se que um Juruna saiu um dia para pescar a montante, enquanto seu neto, morador de

uma aldeia vizinha, foi pescar a jusante com um Shipaya capturado. O neto e o Índio pescavam
matrinxã, exclamando o grito dos Shipaya para chamar mais peixes. O velho ouviu e decidiu ma-
tar os Shipaya. Amarrou no braço a arma de matar Índios e foi procurá-los, aportando a canoa e
convidando-os para comer os filhotes de curimatã que tinha pescado e assado. O Shipaya ficou
com medo e sentou-se ao lado, quieto, enquanto os dois Juruna comiam, e o velho insistia com o
jovem que comesse rápido, rápido, mais rápido... Mas o jovem era Juruna e sabia perfeitamente
comer peixinhos afastando as espinhas com rápidos movimentos da língua; o velho não teve su-
cesso em fazê-lo engasgar, como pretendia, para poder furá-lo com a arma. No final, o avô
avançou contra o neto, que reagiu dizendo que não era Outro. O pai do rapaz, filho do velho, con-
vocou uma reunião de várias aldeias onde foi decidido que parariam de comer Índio, dado que um
neto quase foi comido pelo avô. Segundo outra versão, o episódio se passou entre dois homens que
tinham o hábito de procurar Índios em aldeias Juruna para comer, e eram tidos como verdadeiros
Juruna por sua capacidade de comer rápido filhotes de peixe separando as espinhas apenas com a
língua. Um deles, com ciúme da reputação do outro (“Quero ver se ele é igual a mim”), convidou-
o (durante uma pescaria) para comer peixe elétrico e filhotes de curimatã. O desafiador, armado
com a lâmina de matar Índio, acabou ferido na testa pela arma do outro e houve o seguinte diá-
logo: “Será que você é Índio?” “Por que eu seria Índio? Sou um verdadeiro Juruna. Foi para me
matar que você me chamou para comer? Eu não sou Outro”. “Você me furou. Não vou comer Í n -
dio nunca mais”. O abandono do canibalismo foi promovido por esse homem que se julgava o único
Juruna de verdade.
361

mundo, cujas relíquias são as cuias desenhadas de labirintos e os instrumentos de sopro,

verdes ainda, usados nas cauinagens. Parece de fato existir uma distribuição comple-

mentar (para falar como os lingüistas) entre canibalismo e cauinagem, segundo o meio

sócio-político seja constituído pela dupla força centrípeta da chefia central e do inimigo

exterior (os grupos da floresta), ou constituído pela força centrífuga que sustenta a d i s -

persão dos grupos do rio e os faz temerem-se uns aos outros.

Como o canibalismo, a produção de cauim é um traço distintivo entre selvageria e

civilização. São a dupla marca de uma mesma civilização, o duplo costume da sociedade

(malsucedida) de Seµã÷ã. As duas faces ou pólos deste fenômeno único são diferentemente

valoradas. A cauinagem é perfeitamente conforme à regra da vida social e representa uma

prática que permeia todos os tempos da vida humana (em que pese o curto-circuito p r o -

duzido pelo mito); ao passo que o canibalismo é antes de tudo um anacronismo, uma ten-

tativa desvairada de agir como os antigos do passado mítico, retorno ao tempo em que não

havia caça e Seµã÷ã vivia entre os homens.

Já mencionei que os Juruna afirmam que não se preparava festa para comer i n i -

migos. Comia-se carne de Índio como se come carne de caça! Nenhum perigo e nenhum

ritual. Com efeito, a máquina cosmológica ligada à guerra é posta em movimento pela p u -

trefação da vítima, em benefício, como vimos, do moqueado que alimentará o matador no

além-túmulo. O evento canibal não é promovido pelo grupo, mas por indivíduos que con-

trariam a vontade do grupo. Esse evento é súbito, uma idéia que ocorre ao bêbado (ou b ê -

bados), um desejo ou estado de espírito que a embriaguez precipita (esse bêbado sendo

outrem que o dono do cauim, e o comido sendo outrem que um capturado pelo bêbado).

O que importa, sociologicamente, é que o pendor por carne de Índio é arriscado para

o grupo: o canibal é um comedor potencial de Juruna. Esse horror se estende ao simples

matador de Índios: ele também se torna um matador potencial de Juruna. Sua capacidade de

unificar o grupo por ocasião dos ritos de homicídio, envolvendo a todos na mesma digestão

de sangue de Índio, não significa uma inclinação dada de uma vez por todas para respeitar a

fronteira entre o nós coletivo e os Outros, para reproduzir a diferença entre Juruna e

Índio. Talvez seja necessário distinguir dois níveis: uma coisa é o elemento estrutural que

faz do guerreiro um inimigo, um Outro no seio do próprio grupo (Viveiros de Castro,

1986); outra, é o elemento da consciência Juruna que (hoje, apenas?) condena o caniba-

lismo e teme os guerreiros. De toda forma, ambos os níveis são dignos de nota, na medida

que revelam aspectos complementares: o canibal é o Outro, e esse Outro é Juruna. Defron-

tamo-nos com uma concepção de sociedade que não aposta na ideologia de um nós coletivo
362

forte e situa o Outro do lado de fora, no exterior da sociedade. A ideologia em cena é outra:

os Outros, os inimigos, estão aqui entre nós, tanto quanto estão do lado de fora.
363

CAPÍTULO VI

A Parte do Cauim
364

Quando os Juruna dizem Arupay dubia i≈i÷i≈i, “os Arupaya comiam gente”, e n -

tende-se que esse grupo bebia um certo cauim de mandioca. Na expressão de Mauss, esta

bebida representaria a “prestação-tipo” da sociedade Juruna. Em seu célebre “ G i f t -

Gift”, indagando-se sobre a unidade de uma palavra cujo sentido se bifurcou nas diversas

línguas germânicas em ‘presente’ e ‘veneno’, Mauss propõe uma correlação entre esta

dupla idéia de veneno como dom e de dom como veneno e o bem que funcionava como a

“prestação-tipo” para os antigos germanos — a cerveja. Ele escreve:


“… vê-se que em parte alguma a incerteza sobre a natureza boa ou má do presente
pôde ser maior do que em usos deste gênero, onde os dons consistiam
essencialmente em bebidas tomadas em comum, em libações oferecidas ou a
retribuir. A bebida-presente pode ser um veneno; em princípio, salvo sombrio
drama, não o é; mas sempre pode vir a sê-lo. Em todo caso é sempre um
encantamento (o termo gift conservou este sentido em inglês) que une para sempre
os comunicantes e que sempre pode voltar-se contra um deles se infringiu o direito”
(Mauss, 1924: 366).
O principal dom para os Juruna é o cauim-veneno-presente-homem: “Você vai me matar

com seu cauim!”, diz a voz masculina. “É isso mesmo, meu cauim vai matar você!”,

responde a voz feminina. Que alegria! A correlação apontada por Mauss impõe-se de forma

natural aos fatos Juruna, não só porque os dois sentidos da palavra dubia permanecem

unidos, como porque a antropofagia é o horizonte do dom e da vida social tal como esta é

abordada no pensamento sociológico do grupo. Pois sucede que isto que move a sociedade

pode subir à cabeça como um desejo de ruptura dos laços sociais.

É preciso inicialmente afinar nosso vocabulário. O conceito genérico que os nossos

termos antropofagia e canibalismo exprimem parece inexistir na concepção Juruna.

“Antropofagia” traduz bem a expressão dubia i≈i÷i≈i, que entretanto só tem este s i g n i -

ficado se o sujeito que come é um não-humano, como os ogros por exemplo, pois, como j á

foi dito, se o sujeito for homem o significado é a cauinagem. Já “canibalismo” não traduz

fielmente a expressão daway i≈i÷i≈i, que significa “comer alguém do próprio grupo”,

mais ou antes que comer alguém da própria espécie. A expressão aplica-se usualmente

para definir a conduta do tucunaré, reputado comer a própria prole, ou a conduta de um

Juruna que porventura comesse outro Juruna. É certo que, quanto ao tucunaré, daway é

aplicável a qualquer membro da espécie. Mas quando se trata de homens, o termo assinala o

parentesco, o grupo local ou grupo linguístico. Quando a vítima não pertence a nenhum

destes grupos, o fato é definido através do termo genérico Índio ( abi i≈i÷i≈i) ou do etnô-
365

nimo ( Ωipay i≈i÷i≈i). O modo de se falar de quem come Juruna é “ele(s) nos come(m)”

(seba i≈i÷i≈i), pouco importando se o canibal é ogro, morto celeste ou humano; ou então,

simplesmente, Yuruna i≈i÷i≈i, se o canibal é homem. A identidade da espécie não é p o r -

tanto a base da enunciação. Ela é um pressuposto, certamente — somos todos dubia! Mas o

critério relevante é a identidade do grupo, como se o canibalismo visasse o elemento de

alteridade social ou política que o comido apresenta em relação ao comedor. Isto permanece

verdadeiro mesmo para a antropofagia praticada por ogros ou os mortos, na medida em que

os ogros se tomam a si mesmos como humanos e os mortos se concebem a si mesmos como

vivos. Desta forma, o fato merece ser considerado não pelo elemento da semelhança, mas

pelo elemento da alteridade, como Viveiros de Castro (1986) demonstrou para o caniba-

lismo Tupi em geral.

Há ainda outra forma de enunciação significativa — aquela que se impõe no contexto

de, diga-se assim, passagem ao ato. A carne humana já preparada para comer é chamada de

“carne de fantasma” (ãwã a˚a), seja pelos vivos, seja pelos mortos. O que parece sugerir

que a carne humana seja uma espécie de alimento espiritual.

Podemos assim formular o tema deste capítulo: se a antropofagia dos povos Tupi é,

como sustenta Viveiros de Castro, comer a posição de inimigo226, e se a cauinagem Juruna

é uma antropofagia, o que é que se come, conceitualmente falando, bebendo-se cauim?

226“O que se comia era uma posição: a posição de Inimigo , não a substância de um inimigo”

(Viveiros de Castro, 1986: 669; passim ).


366

1. Receita de Cauim

Os Juruna só bebem água em último caso. Ainda assim, preferem não tomá-la pura:

misturam-na com um pouco de farinha para dissolver a goma. Produzem diversas bebidas

fermentadas e consideram-nas como a principal fonte nutritiva227. Essas bebidas podem

ser divididas em dois grupos: os cauins que se fazem em pequena quantidade — de 20 a 60

litros — para matar a sede da família, e os que se fazem para se beber socialmente até a

embriaguez. No primeiro grupo, destaca-se o cauim de puba seca (yakupa) como a bebida

que se consome o ano inteiro, diariamente. Os outros são feitos em substituição ao yakupa

e dependem da estação: cauim de inhame, cará, batata, macaxeira228, abóbora e,

finalmente, milho verde229, o qual pertence também ao segundo grupo. A característica

básica deste grupo é que a fermentação é um fim subordinado à conservação. Todas estão

prontas para o consumo no momento em que se acaba de prepará-las, quando então são

definidas como “doce” e vão fermentando com o passar dos dias230.

As bebidas do segundo grupo são encabeçadas pelo cauim dubia, feito com puba

fresca, não só porque é o que se produz o ano inteiro como porque sua receita é base de

outros cauins a que se adiciona um segundo produto, seja a mandioca brava adocicada seja o

milho seco. No primeiro caso, tem-se o cauim ˚aka que poderia ser usado como veneno: em

lugar de água, a massa já fermentada do cauim dubia é dissolvida em um mingau quente e

doce de mandioca wãwaru . No segundo caso, tem-se o cauim awaw¥a, que não cheguei a

conhecer, e o pãwï cujo processamento, embora apresente um simbolismo rico, não será

227 Quantas vezes não me telefonaram de Brasília, São Paulo ou Goiânia usando o doce argumento

para pedir-me dinheiro: minha mulher e/ou meu filho estão aqui emagrecendo, estão bebendo
apenas água! Sim! mandarei dinheiro para comprar guaraná. Também produzem bebidas não-fer-
mentadas; a principal é um mingau do líquido da mandioca wãwaru, cujo veneno é exalado durante
o cozimento. Faz-se também refresco de banana madura, crua e esmagada, e de banana-da-terra
cozida.
228 Em 1990, o cauim de macaxeira teve sua receita transformada e passou a pertencer também
ao grupo das bebidas embriagantes. A invenção da nova receita foi atribuída aos Kayabi, que te-
riam experimentado com sucesso acrescentar à receita Juruna uma porção de batata crua ralada.
229 Pode-se também utilizar o milho seco. Porém, como o milho não é plantado em grande quanti-
dade, a reserva de que se dispõe fora da estação é quase toda destinada ao plantio.
230 Excetuando-se a bebida principal deste grupo, o yakupa, a fermentação não é incrementada
por batata crua; uma porção do mesmo produto com que se faz a bebida é mastigada e se usa
apenas isto.
367

estudado aqui. Há finalmente o ka˚upa, cuja receita não se conhece mais231.

A classificação das bebidas é comandada por dois termos genéricos, conforme

ilustra o esquema abaixo.

Não se aplica à cauinagem nenhum termo específico, mas, além das oposições fermen-

tado/não-fermentado e embriagante/refrescante vistas no esquema, distingue-se também,

no campo das yakoha embriagantes, a yakoha e a mari˚a, distinção que independe da receita

e remete indiretamente ao acontecimento social. Neste nível de contraste, yakoha significa

“bebida fermentada embriagante em pequena quantidade”, isto é, insuficiente para e n -

sejar a cauinagem, enquanto mari˚a a promove. Todo cauim embriagante é necessaria-

mente feito em quantidade superior à das bebidas refrescantes. O ideal é possuir panelas

grandes e pequenas destinadas a cada grupo de bebidas, panelas que de resto jamais são

utilizadas para cozinhar peixe ou carne. Em 1988-90, as panelas eram de 40 e 80 litros,

além de uma canoa de 120 litros. A canoa é coletiva, as panelas são de propriedade i n d i -

vidual e quase todas as mulheres possuem uma de cada tamanho. É raro fazer-se apenas 80

litros de yakoha, a quantidade mínima que se poderia fazer entretanto é esta. Geralmente

faz-se pelo menos uma canoa, ou uma canoa e uma panela, ou duas panelas. Estas são as

quantidades usuais de uma yakoha. Para atingir o limiar de uma mari˚a é preciso,

atualmente, uns 400 litros.

É bastante comum a ocorrência de cauinagens em que se consomem várias yakoha,

porém estas bebidas somadas não dão uma mari˚a; permanecem sendo duas, três, ou dez,

231 Até onde sei, os Juruna não conhecem mel fermentado. O mel é consumido puro ou dissolvido
em água em porções pequenas, para consumo da família nuclear. O principal uso que se dá ao mel
é a comercialização.
368

pouco importando que a quantidade total supere de muito uma mari˚a. Várias yakoha são

quantidades definitivamente heterogêneas em função de pertencerem a donos diferentes. A

distinção yakoha/mari˚a é portanto relativa à ordem de grandeza do dom que “um” i n d i -

víduo faz ao grupo. Mas, por outro lado, a quantidade é apenas um aspecto do fenômeno,

pois na verdade os Juruna fazem com que as duas quantidades — pouco e muito — da mesma

receita sejam dois cauins qualitativamente diferentes. Esta diferença é produzida r i -

tualmente através dos tabus que a dona do cauim respeita ao processar a mari˚a para ga-

rantir o sucesso da fermentação, e que são absolutamente desnecessários se o que ela está

fazendo é rotulado simplesmente de yakoha — à exceção do tabu da menstruação, que é

geral ao processamento das bebidas de qualquer tipo e grupo e que se estende mesmo à

água232. Esta diferença se exprime também no modo como se abre a cauinagem. Antes de

passar a ela, vejamos a receita dos dois cauins básicos e sua inter-relação.


O primeiro fato digno de nota é que a produção do cauim de matar a sede é subor-

dinada à produção do cauim embriagante. Ou seja, o yakupa é um sub-produto de dubia, do

duplo ponto de vista técnico e simbólico. A mandioca é posta a pubar até o ponto em que se

torna pastosa, momento em que é absolutamente necessário interromper o processo da

puba. A continuação azedaria a mandioca e o pressuposto básico é que mandioca azeda não dá

cauim embriagante. A receita que Ωidudu teve a gentileza de me fornecer indica o seguinte:

o processo da puba, que é preciso, aliás, “vigiar”, apresenta três fases consecutivas: a

“fermentação”, que leva ao “amadurecimento” (ou “amolecimento”), e evolui para o

“azedamento” (ou “apodrecimento”); o processo deve ser contido no momento em que a

mandioca está ao mesmo tempo “madura” e “insípida”, quer dizer, não azeda. Indica

também que se “extrai o intestino” ( ïmï÷ü ÷ ë ÷ ë ÷ ã )233 da mandioca madura e se põe


para secar (em jiraus de pelo menos 1,50 m de altura construídos para este fim ao a r

livre, ou em canoas velhas suspensas, ao lado das casas). O intestino é a fibra principal da

raiz. Dificilmente se poderia compreender porque os Juruna preservam esta fibra que é

232 Conforme foi registrado num capítulo anterior, a água que uma mulher menstruada leva para
casa pode ser utilizada para limpeza mas não pode ser bebida.
233 Diz-se o mesmo da vingança que a chuva pode mover contra uma pessoa: um raio abre-lhe
uma fenda na barriga pela qual a tripa sai para “comer” a sujeira do chão; e também,
naturalmente, da ação de cortar a caça para extrair as vísceras.
369

na verdade irredutível a suas técnicas de processamento, não fosse um aspecto simbólico

que aponta para uma relação de co-substância entre os dois cauins básicos. Dá-se na

ordem prática o seguinte: a mandioca não “amadurece” por igual, tanto no sentido de que

algumas raízes o fazem umas antes das outras, como no sentido de que há geralmente partes

duras numa raiz dita mole. Estas partes duras ficam presas à fibra principal e, às vezes, à

entrecasca. A entrecasca absolutamente isenta de massa é jogada ao rio, aquela que contém

massa é preservada; já o intestino é geralmente preservado, como o termo simbólico

dominante dos fragmentos duros que não se consegue desmanchar com as mãos para se

obter a massa pastosa da puba fresca, destinada ao cauim embriagante. Os fragmentos

(acrescidos de outros que se descobrem mais tarde durante a transformação da puba fresca

em farinha) são secados ao sol por alguns dias e esta puba seca é então socada em pilão,

dissolvida em água, peneirada e cozida. O mingau grosso e escuro que resulta do cozimento

se liquefaz acrescentando-se uma porção de batata crua ralada e mastigada. Do ponto de

vista dos mortos, a secagem da puba ao sol corresponde à exposição de um cadáver para a

decomposição e de cujo odor eles fogem amedrontados234.

É de se concluir portanto que exista no pensamento Juruna uma unidade profunda

entre os dois cauins: a bebida que mata a sede deriva dos restos mortais da bebida que se

chama “ser humano” e provoca a embriaguez coletiva. Dir-se-ia que a razão última pela

qual os Juruna se embriagam com freqüência é que é preciso dispor da matéria-prima —

puba seca — com que se faz o cauim refrescante235.

Esta “pessoa”, cuja devoração é posta como fundamento da sociabilidade, é p r o -

duzida estritamente pelas mulheres, a partir da mandioca cuja produção é atribuída aos

homens, ainda que efetivamente as mulheres tenham um papel muito ativo no plantio. As-

sim o cauim tem como donos uma mulher e um homem, seu marido. Quanto mais jovem é o

casal menos freqüente é o dom de mari˚a, ao passo que as mulheres que superaram a m e -

nopausa geralmente processam grandes quantidades. O cauim que uma mulher produz com a

mandioca extraída de uma roça que não é sua tem por dono o próprio dono da roça. Entre-

234 Conforme apontei noutro capítulo, é por esta razão que o cheiro de puba podre e um banho de

yakupa cru eliminam o poder xamânico.


235 Pelo sabor, eu tinha a impressão de que esse cauim de puba seca, após vários dias de
fermentação, parecia atingir um teor alcoólico bem mais acentuado do que o cauim de puba
fresca, o que os Juruna ora aceitavam como uma possibilidade ora negavam enfaticamente. Minha
impressão, porém, era confirmada por um Kayabi, que me assegurou que em grande quantidade
ele embriagava, sim. O problema me interessava particularmente: o sabor do yakupa é
especialmente delicado, apesar de exótico, delicioso mesmo, é um cauim tão leve que me fazia
sonhar com uma cauinagem em que se bebesse apenas ele.
370

tanto, nunca vi este dono se comportar como tal, cabendo ao marido da produtora servir o

cauim. Mesmo tratando-se de meu cauim, foram raras as vezes em que o dono fez uso de

seu direito de servir a bebida, e para isto era preciso que eu tivesse processado uma

mari˚a. Na circunstância em que o conjunto das mulheres processa cauim com a mandioca
da roça de um mesmo homem, todos os homens seus maridos se tornam donos de cauim. Mas

isto, para os Juruna, não contradiz o princípio de que o dono da bebida é o dono da roça.

Os Juruna dizem, pois, que o cauim tem como dona a mulher que o processa. Quando

duas ou mais mulheres processam uma mesma bebida, esta tem ainda uma única dona,

aquela que arrancou a mandioca, pôs para pubar e preparou a pequena porção de farinha da

mastigação, e que deve respeitar os tabus236. Arrancar a mandioca é a ação em que na o r -

dem empírica a mulher se engaja como dona; na ordem simbólica, a mastigação relaciona o

cauim a sua pessoa e lhe exige obediência aos tabus. Por outro lado, o processamento é um

trabalho socializado que chega mesmo, em duas etapas específicas, a comprometer o con-

junto das mulheres: o descascamento e a “extração dos intestinos”, na beira do rio, e a

mastigação, na casa do cauim. Não há a exigência formal de que todas as mulheres p a r t i c i -

pem — na receita de Ωidudu tudo se passa, aliás, como se a bebida fosse feita apenas pela

dona —, mas todas as que se aproximarem devem participar, exceto as que estão ocupadas

com o seu próprio cauim. A mastigação atrai principalmente as mulheres que superaram a

menopausa; as meninas são excluídas disso (bem como as mulheres menstruadas) e as

moças só participam caso sejam donas do cauim — o que é excepcional (por exemplo, a

mãe, por algum motivo, está impossibilitada de fazer a bebida e a mandioca já está

“madura”). Em contrapartida, a mastigação do cauim yakupa é tarefa infantil. A partir do

momento em que a filha pode compreender o que é preciso fazer — mastigar a batata crua e

cuspir na panela de mingau — a mãe a estimula a colaborar. Aos nove ou dez anos, a menina

é incentivada a processar inteiramente sozinha o yakupa.

Após a extração dos intestinos, quando a pasta de mandioca é levada para a casa do

cauim, a dona trabalha por um instante sozinha, logo surgindo uma cunhada ou nora para

colaborar já na etapa de espremer a massa no tipiti, ou na etapa seguinte de esfarelar a

massa espremida. A colaboração com que uma mulher efetivamente conta na tarefa muito

dura, diga-se aliás, de processar a bebida vem de suas relações de aliança, e esta colabo-

ração é tanto mais significativa quando ela é sogra, pois a nora, desde que não tenha um

236 Eu não me cansaria de registrar a gentileza das mulheres: todo mundo em cujo cauim eu cola-
borava, por pouco que fosse, tornava-me dona de seu cauim, deixando assim ao meu encargo o
papel muito cansativo de servir a bebida.
371

filho pequeno para cuidar, é na verdade quem faz o trabalho mais pesado, como assar a

massa esfarelada, carregar a água e amassar. A dona geralmente está ocupada com o que se

chama pï˚ü, o fermento ou parte da mastigação. Se, contudo, a dona é nora e jovem, existe

a tendência de se inverterem os papéis; a sogra cuida do pï˚ü de uma forma que se acre-

ditaria ser ela a dona da bebida, podendo mesmo assumir o tom de mestre transmitindo um

ofício. Existe mesmo, ao menos de forma incipiente, uma certa divisão do trabalho, pos-

sibilitando que duas ou mais etapas sejam feitas simultaneamente. Enquanto uma mulher

vai espremendo a pasta para retirar o suco venenoso, outra vai esfarelando a massa e s -

premida, e separando os fragmentos duros que vão para a vasilha dos intestinos. Enquanto

uma está esfarelando, outra (neste caso sempre a dona) peneira e assa uma porção de uns

três quilos de farinha, peneiramento este que distingue material e simbolicamente a parte

da mastigação do restante da massa237. Doravante, a primeira é chamada de pï˚ü e a s e -

gunda de cauim. Em seguida, as duas se revezam ao pé do fogo para assar a massa esfare-

lada. Quando a farinha do cauim está quase cozida, uma lava a canoa e nela coloca uma boa

quantidade de água, suficiente para cobrir a farinha, que é então posta na canoa e deixada a

inchar e esfriar. Neste momento, toda a farinha do pï˚ü está mastigada. Uma mulher vai

ocupar-se dele, ralando uma porção de batata crua em uma bacia, onde ao fim derrama o

pï˚ü. Enquanto isso, e inicialmente, a outra mulher está ocupada com a provisão da água
que será utilizada para dissolver a massa. A esta altura não há somente duas mulheres

trabalhando. Uma ou mais cunhadas, as moças e também meninas de todas as idades dão sua

contribuição no carregamento de água. Apresenta-se também uma terceira ajudante, que

pode ser cunhada, sobrinha, prima ou filha, para amassar com a outra mulher o conteúdo

da canoa, de modo a obter uma massa com liga. Esta massa vai sendo arrumada nos lados da

canoa, deixando-se um espaço vazio no meio238. Então vai-se despejando água e desman-

237 Sucedeu-me às vezes cismar com o método indígena de esfarelar com as mãos a massa e s -
premida ao invés de peneirá-la, como me parecia muito mais econômico, pois os fragmentos du-
ros que se descobrem nesta etapa viriam a ser completamente separados, aumentando com isto a
quantidade que é posta para secar ao sol destinada ao outro cauim; e, o principal, o peneiramento
propiciaria uma farinha menos grumosa, poupando grandemente a energia gasta em amassar a
farinha assada encharcada em água e em peneirar a bebida. Naturalmente, minha audácia não ia ao
ponto de eu querer ensinar o padre a rezar missa; eu pretendia apenas facilitar o trabalho do
cauim de que eu era dona. As mulheres jamais permitiram que eu interferisse na receita, e
quando Ωidudu recitou-a para mim explicitou que é preciso peneirar “a parte do pï˚ü”, porém
não “a parte da yakoha”.
238 Registre-se que a canoa não é só um recipiente, mas participa do processamento como um
meio de trabalho. A técnica e a posição corporal que se adotam para amassar o cauim não podem
ser respeitadas em uma panela de alumínio, em função da profundidade, da dimensão da boca e da
angulação dos lados. Na circunstância de haver apenas uma canoa e várias mulheres serem donas
372

chando a massa até a dissolução completa. Resulta um mingau grosso ao fundo e um caldo

ralo na superfície que vai sendo retirado para outras panelas e mais água se vai acres-

centando. A uma das panelas de caldo ralo se acrescenta o pï˚ü. Quando o cauim atinge uma

consistência que não é nem a do grosso, nem a do ralo, todo o mingau restante é retirado da

canoa e se começa a peneirá-lo na canoa com peneiras de trama bastante cerrada. Uma

mulher (às vezes duas, se se tratar de uma muito farta mari˚a) , que pode ser uma avó,

sogra, ou tia, se ocupa de encher as duas peneiras que as duas outras mulheres manipulam.

Começa-se pelo mingau mais grosso que é bastante cheio de grumos; escoando o líquido os

grumos são esfregados na trama e lavados com o caldo ralo conforme a necessidade, até que

se chega a um bagaço fibroso e completamente desprovido de liga. Em seguida, peneira-se o

conteúdo misturado ao pï˚u, que é bastante menos grumoso, e por fim peneira-se o caldo

ralo que restou239. Com um remo, ou mais raramente uma cuia, mexe-se delicadamente a

bebida. Prova-se para conferir o doce e se comenta que está doce, e com certeza haverá de

amargar. Atravessam-se umas varas ou mãos de pilão sobre a canoa e sobre elas se e s -

tende ou uma esteira ou algumas folhas de pacova (às vezes isto é feito pelo dono).

O sol havia acabado de nascer quando a dona foi ao rio retirar a mandioca da puba;

ao fim do processamento de uma mari˚a, geralmente o sol já está prestes a se por. A bebida

será servida após um período de 24 ou 36 (excepcionalmente 48) horas de fermentação.

A receita de Ωidudu termina assim:

“E assim está pronto. Quando fica pronto nós ficamos a anunciar, contamos para os
homens: ‘Tem yakoha insípida’, dizemos nós. ‘Tem yakoha insípida!’. ‘Tem um
pouquinho de yakoha!’. ‘Tem yakoha insípida!’… dizemos aos homens, a todos os homens.
Quando processamos muito, contamos [também] para todas as mulheres: [acrescentando
à mesma frase dita aos homens] ‘Tem “o resto”, beba! Se você tiver sede, beba!’ E eles
bebem, bebem, bebem. Se os homens também querem beber, nós mesmas lhes
servimos. O “resto”, nós só o bebemos doce; o “corpo” se bebe depois que está amargo
[ou forte]. Bebemos e nos embriagamos. Para anunciar a yakoha embriagante [já

de cauim, todas vão usando a canoa para amassar e dissolver e desocupando-a para dar lugar à
bebida da companheira.
239 O bagaço é reservado e utilizado ou como ração para as galinhas ou para se fazer uma outra
bebida, chamada “bebida de bagaço de yakoha”, que se põe para fermentar e se consome depois
da cauinagem. É extremamente forte e por isto muito apreciada. Geralmente a bebida é roubada
ao fim da cauinagem por jovens frustados com o fato de o cauim ter acabado. Antes de fermentar
ela é proibida aos homens, porque isto lhes traria o azar de serem mortos e comidos por um Í n -
dio. Num capítulo anterior foi visto que ela é parte do cardápio exigido por mortos celestes,
quando então é consumida doce pelas mulheres.
373

fermentada] nós dizemos às mulheres: ‘Bebam, se isso lhes apraz, bebam’. E o homem
diz a cada um do grupo dele [aos do sexo masculino]: ‘Tem yakoha, beba!’ E eles todos
bebem, bebem, bebem e se embriagam”240.

O chamado “resto” é uma quantidade que não é suficiente para encher uma panela

de 80 litros. No processamento de mari˚a, quando não há “resto”, inventa-se: as m u -

lheres e crianças presentes começam a provar para conferir o “doce” e rápido uma das

panelas de 80 litros, não estando mais cheia, vira o “resto”. Como bem sugere Ωidudu, o

consumo deste é uma parte necessária do acontecimento social como um todo. É que essa

parte é ao mesmo tempo oposta e complementar ao corpo ( i˚ab¥ ), à parte da embriaguez.

Se esta equivale a uma morte (“Estou bêbado! O cauim está me matando!”), o resto nutre e

engorda, devendo ser dado sobretudo às crianças de colo. A razão disso, segundo a com-

preensão do marido de Ωidudu, é a seguinte: quando a farinha do cauim é posta de molho

dentro da canoa, a massa incha, logo as crianças se desenvolvem bem e engordam com o

cauim doce. O amargo faz os adultos morrerem e o doce faz as crianças crescerem.

O “corpo” do cauim não é um todo indiferenciado, bem ao contrário. Abstraindo-se

o resto, o corpo não é apenas e bem exatamente toda a parte posta a fermentar. No conjunto

dos recipientes, há tanto uma organização ou relação social quanto uma analogia com o rio.

A água possui o i˚ab¥ e as ramificações; no cauim, há o i˚ab¥ e os “amigos”, segundo uma

diferenciação que se encarna nos recipientes. O cauim não deve ser distribuído entre r e -

cipientes que tenham o mesmo tamanho; a homogeneidade do conteúdo não deve implicar em

homogeneidade do continente, como se semelhante homogeneidade fosse um princípio de

desorganização que se introduziria na própria cauinagem. O ideal é que existam ao menos

duas canoas, uma grande e uma pequena; a grande se mantém no alto, suspensa sobre f o r -

quilhas, a pequena se mantém no chão; e isto de modo algum pode ser invertido. A canoa

pequena é “amiga” da canoa grande, cujo conteúdo é considerado o “corpo” de toda a b e -

bida. As panelas de alumínio podem assumir o papel de canoas pequenas, e deve haver pelo

menos uma canoa que deve ser maior (mas pode não estar no alto) para funcionar como o

eixo da cauinagem241. A abertura do corpo inaugura o acontecimento e, quando o seu con-

teúdo se esgota, geralmente o conteúdo dos amigos (em se tratando de panelas de alumínio)

240 Eu poderia traduzir, e certamente com maior conveniência, os termos iw¥ e i˚ab¥ ( “ r e s t o ”
e “corpo”) por “acessório” ou “excedente” e “parte essencial”. O canal do rio é i˚ab¥ da água,
em contraste com os braços, lagos, enseadas e afluentes. Do ponto de vista da cabeça, o tronco e
os membros são o seu i˚ab¥. Um mito de que se conta apenas o início carece de seu i˚ab¥.
241 Entenda-se: a relação maior/menor é mais importante do que a relação alto/baixo.
374

vai sendo transferido para o recipiente maior.

Esta organização não vem à compreensão dos Juruna. A melhor explicação que

obtive foi mesmo que fazer assim é bonito, passando pela tautologia de que se abre a

cauinagem com a bebida da canoa grande porque esta é a maior, até a resposta interessante

mas insuficiente de Kadu, segundo quem a canoa deve estar no alto para as crianças não se

debruçarem sobre ela, gesto no qual a alma poderia mergulhar no cauim (confundindo-o

com um rio?) e a criança poderia morrer. Mais adiante tentarei mostrar que, conforme

fica claro para o caso das cuias, a diferenciação dos recipientes do cauim traduz uma r e -

lação hierárquica conjugada com a relação de amizade que, ao menos até onde sei, não

apresenta por si mesma nenhum conteúdo hierárquico.

Os sabores do cauim vão de par com o processo da fermentação, partindo do

“insípido” ( imã) e do “doce” ( ï˚ãku), atingindo o “amargo” ou “forte” ( i˚ahu), e f i -

nalmente o “azedo” ou “podre” ( i≈ad¥). Tomemos os sabores de uma perspectiva mais

ampla, em busca do sistema de correspondências do qual participa o cauim. Uma fruta sem

sabor é dita imã, o que não é necessariamente negativo, especialmente quando se trata de

frutos silvestres que não costumam ser doces mesmo; uma sopa de peixe sem sal também é

dita imã, e pede um pouco de sal para se tornar então ï˚ãkü. A fruta saborosa é ï˚ãku,

assim como o mel, a água do mar, e qualquer cauim que se acaba de temperar com a parte

mastigada242. Uma fruta verde de sabor acentuado, com cica ou azeda, por exemplo, é dita

i˚ahu; diz-se o mesmo de carne queimada, sendo que em ambos os casos o sabor é muito
repudiado; i˚ahu define também o tabaco e a bebida fermentada, sinalizando no segundo

caso que o cauim embriagante já pode ser servido. O limão, a fruta podre, carne ou peixe

cozidos azedados pelo tempo e calor, e o cauim cujo tempo da puba e/ou da fermentação é

excessivo são definidos como i≈ad¥. Este último termo se opõe ainda a µümïku, que de-

signa o apodrecimento de carnes cruas ou moqueadas e a decomposição do cadáver.

O paladar dos Juruna aceita tudo desta lista, exceto o sabor amargo ( i˚ahu ) no que

não é tabaco ou cauim. Frutas e carnes amargas não são consumidas; frutas e carnes co-

zidas azedas (passadas) sim, e carnes assadas podres também. Após a separação dos

vermes e das partes atingidas pela decomposição, o assado é cozido com água e resulta num

prato gostoso que de modo algum fere a sensibilidade de um branco. Havendo grande

242 A dupla qualificação do cauim que se acaba de preparar como “insípido” e “doce” remete ao

seguinte: é por pura modéstia que a produtora anuncia aos homens uma bebida sem sabor; sabe-
se, porém, que ela está doce. Ao paladar de uma mulher inexperiente, o cauim é completamente
insípido.
375

abundância de carne assada podre, além do cozido, serve-se também o assado: durante a

refeição, com uma pequena faca, vai-se tirando os vermes e as partes feias. Já o queimado

torna a carne ruim. Isto vem de uma razão olfativa mais do que do paladar. O moqueamento

é uma forma culinária que exige constante vigilância ao pé do fogo, de forma que geral-

mente a peça de carne (e também o peixe) não queima nem por fora. Mas se isto acontece,

em circunstâncias ordinárias, a carne é raspada antes ou durante a refeição; a mulher

sente envergonha e diz, no momento em que reúne a família ou o grupo mais amplo para

comer, em um tom de voz muito especial que significa um pedido de desculpa, que a carne

queimou. Em circunstâncias que exigem cuidado ritual, como a gravidez e o homicídio, a

raspagem não é suficiente: a grávida não come a carne do interior da peça queimada, o

guerreiro não come sequer o moqueado que não queimou. A agradabilidade de uma carne

moqueada ao paladar é traduzida para o campo do olfato: a carne gostosa é dita perfumada —

quanto mais o animal é gordo mais perfume exala a carne após o moqueamento. As grávidas

só podem ou só desejam comer carnes perfumadas. Nos ritos de homicídio, contudo, a

premissa que vale é outra: por definição, o moqueado tem um cheiro forte-amargo que

deve ser evitado, como vimos, por causa da dilatação estomacal que o acúmulo deste cheiro

e do sangue da vítima (também transmitido por via olfativa) traria ao matador e aos seus

concidadãos. Há também carnes em que o amargo, como sucede ao cauim, não é p r i m e i -

ramente um cheiro, mas um sabor: efeito do consumo de tabaco, a carne dos porcos que

xamanizam e a carne dos Brancos em geral (fumantes imoderados) são tão amargas que se

tornam incomíveis.

Para finalizar, o sabor ardente (ad¥) típico da pimenta também qualifica o cauim.

Não se trata apenas nem principalmente de um sabor, mas de uma potência de ferir. A

noção subjaz aos ritos a que os homens submetem as pontas de flecha e as mulheres as suas

próprias mãos, conforme foi apresentado noutro capítulo. As flechas tornam-se capazes de

matar a caça e os inimigos, as mãos femininas tornam-se capazes de processar um cauim

que mata (embriaga) os homens. Que todas as mulheres apliquem cinza de aranha venenosa

nas mãos, não torna porém a ardência uma qualidade comum do cauim. Trata-se de um algo

a mais que alguns cauins têm e outros não, uma qualidade rara que depende do gosto de cada

homem. Numa palavra, quando um homem que acaba de beber uma cuia franze o cenho,

estala a língua e exclama que arde, isto representa para a dona do cauim o mesmo que aqui

representa um homem dizer a uma mulher que ela é bonita. O ardor participa então de um

duplo mecanismo; na ordem social, faz da embriaguez uma morte propiciada aos homens

pelas mulheres e, na ordem pessoal, constitui uma tática de sedução.


376

O cauim não deve ser servido antes nem muito depois do momento em que se torna

forte. Antes, não embriagaria ainda e a fermentação prosseguiria dentro da barriga,

causando mal-estar digestivo; depois, não embriagaria mais, pois azedaria — o que p r o -

vocaria o mesmo mal-estar. Sob o distúrbio comum, escondem-se, contudo, dois processos

diferentes: o estômago é local onde o cauim seria cozido, a canoa daria lugar ao apodre-

cimento. Por coincidência ou não, o cauim atinge o ponto geralmente momentos antes do

nascer ou do por do sol. Não cheguei a discutir com os Juruna minhas impressões a r e s -

peito disto, assim o que vou apontar está sujeito à dúvida: a fermentação produz bolhas

como se fosse uma fervura; há um momento em que uma camada de espuma se estabiliza na

superfície, momento em que também a produção de bolhas diminui sensivelmente. E n -

quanto bolhas estão sendo produzidas, é preciso esperar; a fermentação é tanto mais bem

sucedida quanto maior a profusão das bolhas, que evoca a idéia de que “o cauim está com

raiva”. A partir do momento em que se começa a servir, o borbulhar desaparece. Mas,

para garantir um prolongamento da fermentação, sempre que possível, tempera-se o

cauim, no momento de abrir a cauinagem, com qualquer bebida fermentada do grupo do

yakupa — exceto que, até onde sei, o próprio yakupa não é utilizado como tempero. Com
isto, dentro de algumas horas a bebida estará muito mais forte.


Há três tipos de cuidados rituais envolvendo o processamento do cauim: um visa

assegurar uma boa fermentação; o outro, impedir que o cauim aplique sua força sobre o

coração dos consumidores; o último visa proteger os filhos da produtora, caracterizando a

relação entre ela e o cauim como maternal. Os dois primeiros são encarados com bastante

respeito, o último é tratado com bastante bom humor — o que não quer dizer que seja tido

como falso — e acaba motivando um clima de alegria entre as mulheres que estão traba-

lhando ou simplesmente observando.

O poder embriagante do cauim não depende apenas da saliva feminina e da batata

doce, mas também da idade da mandioca. Quanto mais nova é a mandioca, menor é o risco de

apodrecer durante a puba e mais satisfatória é a fermentação da bebida. Não se deve deixá-

la saber que se tem a intenção de transformá-la em cauim, ela não quer ser reduzida a isto

de modo algum e se rebela azedando. Aceita, porém, de bom grado ser transformada em

farinha. Quando uma mulher põe mandioca para pubar, ela não anuncia o que pretende
377

fazer, guarda segredo; suas companheiras não a interrogam, e eu, interrogando, obtinha

como resposta a dúvida: é preciso esperar para ver como será o andamento do processo da

puba, se a mandioca não azedar, quem sabe, ela virará cauim. Quando se vai fazer cauim

por algum motivo determinado, como uma festa ou um trabalho coletivo, não só não se deve

falar de cauim diante da mandioca, como convém, ao modo de uma precaução adicional,

mentir para ela, dizendo a alguém que se vai fazer farinha. Ela ouve, acredita e não azeda;

a puba se faz segundo o ritmo natural, não azedando antes do tempo. “A mandioca não é

generosa conosco, ela se nega a nos embriagar”.

Não se pode comer pimenta, a quantidade usual de sal, e usar sabão. O sal e a p i -

menta, por serem picantes, fazem o cauim azedar. O mesmo se daria com o uso de sabão,

que chama a atenção dos Juruna pela brevidade da duração da espuma e bolhas. As bolhas

produzidas pela fermentação se dissipariam tão rapidamente como as bolhinhas de sabão. O

cauim azedo não embriaga e não atrai ninguém. Os donos se ocupam em ir atrás das pessoas

que continuam ligadas a suas tarefas ordinárias levando porções de bebida. A ocasião em

que tive o azar de ver o meu cauim azedado, tentei esquivar-me de servi-lo, com vergo-

nha. A mulher que me levara à roça do filho para colher a mandioca, delicadamente, f o r -

çou-me a isto, ensinando-me as palavras que deveria dizer a cada pessoa, a toda cuia que

lhes levava: “Tome esta minha bebida ruim, está podre; o substituto [o próximo cauim que

eu fizer] sairá melhorzinho!” A etiqueta exige que não se atribua a mulher alguma o i n -

sucesso da fermentação, prefere-se lembrar que a batata estava velha, ou a mandioca

estava velha e apodreceu antes do tempo, durante a puba ou a fermentação. Os homens, no

entanto, eram capazes de segredar-me comentários maldosos a respeito do azedamento do

cauim feito por outra mulher que não sua esposa.

Tampouco se pode tocar em peixe cru após ter iniciado a fabricação do cauim. Se o

marido ou filho retornam da pesca, conta-se com uma afim para preparar e distribuir o

peixe. A alma do peixe cru passaria a habitar a canoa de cauim, interferindo no processo de

fermentação de toda bebida que se fizer na mesma. O cauim poderia se tornar kudu-kudu,

quer dizer, engrossar, perder a acidez, não embriagar e precisar ser jogado fora. É r e -

pugnante — as simples palavras yakoha kudu-kudu evocam já o horror.

É muito improvável que o prognóstico seja usado para explicar um caso efetivo de

alteração, a não ser que o fato se repita constantemente. O caso isolado é interpretado como

mensagem de morte de um membro do grupo, e a bebida é jogada fora para impedir a morte

anunciada. Considerando os outros usos do termo kudu-kudu, podemos compreender em que

medida esta alteração do cauim difere do azedamento, e porque ela surge como um fenômeno
378

anti-natural que bem se presta a gerar medo e transmitir mensagem de morte. O termo

corresponde exatamente ao que chamamos mingau; é de fato com ele que os Juruna desig-

nam os seus e os nossos mingaus. O mingau é uma etapa do processamento que está na o r i -

gem do cauim de milho e do de puba seca, podendo ser consumido enquanto tal ( maka≈i

kudu-kudu , mayaka kudu-kudu ) e tornando-se yakoha ao receber a parte do pï˚ü, cuja


ação imediata é aguá-lo. A fermentação, com efeito, é negação ou antítese do mingau. Que a

cerveja dubia resvale em mingau é uma contradição que só se pode resolver com um ato:

não beber, jogar fora. Uma única vez ouvi dizer que o cauim desandou. Eu estava no campo,

não porém em Tubatuba onde o fato se passou. Em Saúva, a notícia chegou no mesmo dia e

foi recebida como uma notícia desoladora, suscitando a dupla interpretação de que ou a dona

pegara em peixe cru, ou alguém morreria brevemente em Tubatuba. Na mesma semana

correu a notícia de que uma mulher Suyá, sogra de um Juruna, havia morrido. A mensa-

gem encontrou sua significação, a tensão das pessoas passou. Chegando a Tubatuba poucos

dias depois, ao buscar informação sobre o fenômeno, nem uma única alma confirmou o

fato, ninguém tinha visto e ninguém sabia de nada. Em limites muito restritos, o fenômeno

não é, entretanto, de todo raro, pois ocorre de vez em quando, eu diria quase freqüente-

mente, que o resto de cauim depois de umas 24 horas ou mais de cauinagem torna-se

kudu-kudu, fato ao qual os bêbados reagem bebendo e reclamando nestes mesmos termos:
yakoha kudu-kudu.
A partir do momento em que a pasta de mandioca separada dos intestinos é levada

para a casa do cauim, deve-se tomar todo cuidado para não deixar que uma porção da massa

caia no chão. No caso de cair um pouquinho, a mulher grita “o meu filho caiu!”, já c o r -

rendo para erguê-lo do chão. A rapidez com que se deve proteger este filho acidentado é

uma forma de impedir que o acidente se realize com o próximo filho que nascer, esteja a

dona grávida ou não. Após ser dissolvida em água, a bebida é já cauim com vida indepen-

dente do destino da criança. O pouco que derrama é suposto minguar a bebida e suscita a

exclamação de que (um passarinho chamado) “ turu≈ari está levando minha bebida!” A

alma do cauim é furtada pela alma do passarinho, que a acrescenta ao seu próprio cauim.

Nisto, o cauim Juruna se torna insignificante, embora pareça farto, e a cauinagem não

chega a cumprir o seu movimento completo. Finalmente — e já não se trata de um tabu,

mas de uma forma cortês de tratar uma mulher — se encontram uma mulher cujo cauim

está fermentando varrendo a casa do cauim dos restos de mandioca, no momento em que ela

passa a vassoura, perto da canoa, sobre fiapinhos do bagaço extraído com o peneiramento,

abordam-na alegremente com estas palavras: “Você está arrancando as pestanas de seu
379

filho?”

O mesmo bagaço responde pela força predatória típica da alma do cauim sobre as

pessoas. A etapa do processo em que se dispende a força mais significativa é o esfregamento

dos grumos do mingau sobre o fundo da peneira, que são esfregados, lavados, espremidos,

esfregados de novo até soltarem toda a massa e toda a liga. É absolutamente proibido e s -

premer com força a bucha de fibras após a última lavagem, para os fiapinhos não ganha-

rem força e espetar o coração de alguém. Este cuidado com o bagaço revela que, do ponto de

vista da teoria da ação e da predação, o cauim pertence menos à ordem dos vegetais que à

ordem das carnes, cujos dentes, fragmentos de osso, espinhas, escamas ou fio de pelo são

supostos causarem doenças. A doenças provocadas por pêlos de cauim, que ficam a furar o

coração das pessoas, não são senão azia e dor de estômago — dois males que atingem os

Juruna freqüentemente.

Há um último cuidado, relativo às cuias, que exprime uma associação destas com as

pessoas e fornece uma vaga imagem do modo como se concebe o fenômeno da raiva provo-

cado pela embriaguez. Garante-se a sustentação da alegria entre os bêbados colocando no

cauim cuias de boca virada para cima. Uma cuia de borco provocaria a explosão de raiva.

Eu mesma um dia, por desinformação, coloquei a cuia de borco dentro do cauim que acabava

de fazer; as pessoas reagiram rudemente como se eu as tivesse insultado. Tempos depois v i

algumas vezes como se reage quando o fato ocorre por acaso: quando um bêbado joga a cuia

vazia na canoa e por acaso ela cai de borco, alguém se apressa em revirá-la, os homens

fazem um grande alarido, com o fim de amedrontar desde logo aquele que dentre eles está

prestes a proceder como inimigo; e as mulheres emitem exclamações de pavor.


Há finalmente um aspecto que eu tomaria a liberdade de rotular com o termo tabu:

não se fala sobre a colaboração de mulheres afins na produção do cauim.

Eu tinha o hábito de comentar com os Juruna aspectos de sua vida que eu percebia

através da mera observação. Esta me levara a apreender um sistema de regras de produção

e distribuição dos alimentos que apresentei em outro trabalho (Lima, 1986). Voltando ao

campo, submeti à crítica feminina a formalização deste sistema, e um elemento relativo ao

processamento do cauim embriagante foi refutado. Que este processamento implique a

colaboração de mulheres ligadas por afinidade não seria verdadeiro. Muito pelo contrário,
380

o cauim seria feito por mulheres que estão na relação mãe-filha, a qual, segundo o meu

modelo, está implicada no processamento do polvilho. De fato, não é proibido uma mulher

participar do processamento do cauim de sua filha ou mãe. Com o orgulho ferido, passei

um breve período lembrando às mulheres que estavam trabalhando no cauim de uma outra

a relação de aliança que tinham com a dona. Era um grande constrangimento, as mulheres

ficavam brancas de vergonha. Os homens, por sua vez, presenciando a cena, e como se o

constrangimento os divertisse, davam grandes risadas. Nunca cheguei a entender por que

razão o assunto constrange, mas dentre as inúmeras gafes que minha situação impunha

nada parecia tão desconcertante como perguntar a uma mulher se ela estava trabalhando

com a sogra ou cunhada.


381

2. À Cauinagem

Pode-se distinguir várias situações sociais conforme a quantidade de cauim. Numa,

a cauinagem não chega a se realizar: os Juruna acham que não adianta reunir-se para

beber quando o cauim total disponível não é suficiente para embriagar todo mundo. Neste

caso, quando o dono do cauim grita o nome de todos os homens chamando-os para beber, as

pessoas atendem, bebem, a maioria volta para os seus afazeres, e os desocupados ficam por

um momento a beber lentamente e a conversar por uma ou duas horas. Ele faz mais uma ou

duas chamadas, ao meio dia e/ou ao fim da tarde, e novamente os homens se reúnem por

algum tempo em torno da bebida. Nestas ocasiões, as mulheres nem sempre se reúnem aos

homens na casa do cauim; permanecem ocupadas com os seus afazeres, sendo surpreendidas

em casa ao longo do dia com uma cuia de bebida levada pela dona. Comum também é uma

circunstância em que a cauinagem cessa prematuramente. Mesmo em pequena quantidade, a

cerveja excepcionalmente forte atrai todo mundo. Homens e mulheres, após serem cha-

mados e beberem a primeira cuia, permanecem na casa do cauim conversando e bebendo.

Quando todos estão bem alegres e um tanto bêbados, quer dizer, quando para os Juruna é

hora de começar a festa, de dançar e cantar, o cauim acaba, imediatamente todos se d i s -

persam e vão para casa dormir. Uma terceira circunstância em que a cauinagem se de-

senvolve por inteiro ocorre quando vários cauins (três, quatro ou mais), em quantidades

que isoladamente não alimentariam uma cauinagem ideal, são servidos consecutiva-

mente243. A última situação é proporcionada pela mari˚a, seu sucesso é tanto mais seguro

quanto a ela se acrescentarem, como é usual, yakoha suplementares proporcionadas por

outros donos. Do ponto de vista dos acontecimentos, as duas últimas circunstâncias são

idênticas, exceto que somente a abertura de uma mari˚a merece ser feita ao som de uma

trompa que se guarda sempre na casa do cauim. Em 1984, em Tubatuba, 500 litros de

bebida proporcionavam uma cauinagem exemplar do ponto de vista dos anseios de uma

população de 31 adultos. Em 1990, depois da mudança dos Juruna da aldeia Saúva para

Tubatuba e com a população adulta montando a 65 indivíduos, consumiam-se em média

1000 litros244.

243 Não se bebe dois cauins ao mesmo tempo. O dono da maior quantidade tem precedência sobre
os outros para a abertura da cauinagem.
244 Tomo aqui por população adulta o universo das pessoas convidadas para beber; estão
incluídos assim rapazes que tomaríamos por crianças. Nessa ocasião, a população da aldeia
382

Os Juruna são muito diferentes conforme estejam sóbrios ou embriagados. São

calados, discretos, parecem tímidos e mesmo tristes. Não valorizam, porém, de forma

explícita e direta, nenhum desses traços. Amam a alegria, a conversa ruidosa, as pessoas

expansivas e brincalhonas. Amam sobretudo ver-se a si próprios, tão reservados, tomados

por uma alegria exuberante que os deixa entre joviais e infantis245. Cabe ao dono do cauim

abrir com alarde o acontecimento que ele vai proporcionar ao grupo: a troca da máscara da

discrição e do comedimento pela máscara do riso e da desmedida. O baixo teor alcóolico do

cauim implica que só se realiza o desejo de embriagar-se tomando uma quantidade que

excede os nossos padrões. Poder-se-ia supor que beber imoderadamente seja um viés meu

ao qual os Juruna são indiferentes. Em absoluto. Bebem demais do seu ponto de vista

mesmo. Beber mais do que se consegue é um valor por assim dizer cívico, tanto isso des-

perta entusiasmo e mesmo orgulho. Beber além do limite, além do que se pensa ser capaz,

é uma conduta que se traduz em outros planos do desdobramento da cauinagem, de forma

que tudo é elevado à potência.

Momentos antes do nascer do sol246, o dono vai à casa do cauim constatar que o

cauim está no ponto. Ele apanha a trompa kãmahu e toca por dois ou três minutos do alto do

somava 120. Compare-se a situação Juruna com a dos Araweté (produtores de cauim de milho),
com uma população total de 135 pessoas: após a instalação da Funai em sua aldeia, com a
aquisição de grande número de panelas, houve “um aumento considerável da quantidade de cauim
produzido. Numa das festas calculei que se tomou cerca de 300 litros de beberagem” (Viveiros
de Castro, 1986: 328). Para os Juruna, isso é muito pouco para uma verdadeira cauinagem.
245 Bem usam recriminar o comportamento de pessoas que são expansivas ou falantes fora do

contexto da cauinagem. Há apenas duas pessoas assim. Um homem jovem, casado, muito falante,
de quem dizem ser um bobo ( ÷ëü, b o b o , d o i d o ) por suas histórias intermináveis em que canta
sempre sua proeza pessoal. E uma adolescente gordinha e muito desejada, que vivia cheia de s i
por causa disso, e de quem diziam ser iari, termo cujo significado é ÷ëü , e que se glosa igual-
mente por “doida”. Uma vez ouvi mulheres dizerem dela o seguinte: “Ela pensa que possui um
pênis”. Ouvi esta mesma expressão do jovem falante, na história que contava de uma Branca em
cujo olhar detectara um sinal típico de quem possui doença venérea (seu propósito era conven-
cer-me de que este tipo de doença pode ser descoberto pelo olhar). Ela queria ter relações s e -
xuais com ele, que recusou; ela tentou seduzi-lo, e ele, após várias tentativas de se soltar dela,
teria dito: “Parece que você tem pau. Você tem pau?”.
246 O que se segue refere-se ao dom de mari˚a. Por comodidade de exposição, elejo uma
circunstância ideal, em que uma cauinagem iniciada ao alvorecer segue muito além das 18 horas
de duração; o movimento do tempo diário e a duração são exigências para que o conjunto das
fases costumeiras possa de fato se desenvolver. Em minha descrição, os acontecimentos que
marcam o entardecer e preparam a dança coletiva são do mesmo tipo dos que marcam o
alvorecer em uma cauinagem que se inicie ao fim da tarde; mas para isso é preciso grande
fartura de cauim, possibilitando que o dia seguinte seja inteiramente destinado a ele. Do
contrário, a cauinagem noturna apresenta um ritmo mais acelerado. A alvorada e o crespúculo
são momentos de se abrir a cauinagem.
383

barranco da aldeia, com a olhar voltado para o rio. A música anuncia o cauim para os que

estão na aldeia e para as aldeias vizinhas, e afugenta as ariranhas e o ogro pa÷¥, que o

cheiro do cauim fermentado é suposto atrair. A música não faz propriamente um convite

formal aos vizinhos, mas os informa, de modo que quem quiser ir beber, vai. Em 1984-5,

quando os Juruna estavam divididos em duas aldeias, usava-se também um sinal de fogo

para avisar que naquele dia se pôs cauim para fermentar. Assim as pessoas podiam se

preparar a tempo para ir à cauinagem. Geralmente, contudo, não se ia beber na aldeia

vizinha. E quando o faziam, grande parte das vezes era ao fim de uma cauinagem na própria

aldeia, quer dizer, iam porque já estavam bêbados247. Não fosse a muito temida música, o

pa÷¥ viria, menos com a intenção de participar da cauinagem que de aproveitar a ocasião
para capturar e comer crianças desprotegidas pelos adultos bêbados. As ariranhas seriam

atraídas sem razão explícita, e ficariam a “chorar” nas imediações — o que evoca, ao

menos para mim, o lamento registrado em mito pelo fato primordial de terem perdido a

embarcação para os Juruna, lembrando-se do tempo em que eram gente e muito prova-

velmente consumiam cauim.

Em seguida, gritando o nome de todos os homens — inclusive os meninos de uns 1 3 -

14 anos, para expressar seu reconhecimento de que eles já são pescadores e participam da

rede de distribuição de peixe cozido —, diz-lhes que há cauim. Todos respondem de dentro

de casa um alto sim, e são poucos os que demoram mesmo um breve instante para se l e -

vantar da rede e ir tomar um bom litro e meio da ácida cerveja. A cada um que vai chegando

o dono serve uma cuia. Bebe-se lenta e ininterruptamente e devolve-se a cuia vazia a

ele248. Ao fim disso, não é mais necessário esperar que o dono sirva, todo mundo tem d i -

reito de se servir um ao outro, respeitando-se uma regra de reciprocidade que então se

instala entre os bebedores: quem dá cauim a alguém ouve uma exclamação de surpresa,

seguida de um Sim! e recebe de volta não a cuia vazia, mas uma transbordando. Esta r e -

ciprocidade não é pensada somente como generosidade mas também como bravura, ela é

uma modalidade da “vingança”, diante da qual se reage também com uma exclamação. Deste

modo, o serviço do cauim consiste em deixar-se embriagar por outrem e embriagar os

247 Para um grupo de moradores de Tubatuba, registrei no verão de 1985 que beberam durante 9
dias consecutivos; coincidiu que em Tubatuba e Saúva houve duas cauinagens consecutivas: be-
bia-se um cauim enquanto outros fermentavam. O grupo bebeu em Tubatuba, foi beber em Saúva,
retornou à Tubatuba, onde outro cauim já fora preparado e estava fermentando.
248 O que quer que se dê a um Juruna para beber, o recipiente é devolvido nas mãos da pessoa
que deu. Esta conduta chegava a causar constrangimento no trato com os Brancos pois, entre
profissionais de saúde, por exemplo, havia quem achasse um abuso dar um remédio a algum
doente e vê-lo incapaz de pôr o copo sobre a mesa.
384

outros.

O dono do cauim torna-se uma espécie de chefe, a quem cabe a responsabilidade

pelos acontecimentos ruins que podem ocorrer durante a cauinagem. Sua função o impede

de beber, melhor dizendo, embriagar-se. Se a raiva porventura tomar um companheiro,

cabe ao dono proteger o grupo contra o bêbado. Nem o dono nem sua mulher se servem a s i

mesmos, mas, entre as pessoas do grupo, sempre alguém se lembra de servi-los. Fui e n -

sinada a servir a dona do cauim dizendo estas palavras: “Tome aqui o teu filho!”. Ainda

quando eles se embriagam, não é de bom tom festejar essa embriaguez.

Geralmente, apenas três ou quatro cuias são usadas para o serviço, resultando

disso uma tensão de espera entre as pessoas, tensão que cresce à medida que vão se e m -

briagando, e não ocorre nunca aos Juruna aliviá-la colocando mais cuias em disponibili-

dade. Entre elas, como sucede com as canoas de cauim, deve haver uma diferença de t a -

manho. A capacidade média das cuias menores é de um litro e meio, a maior é de três l i -

tros, havendo às vezes também uma maior ainda, de cinco litros. Esta diferença exprime

uma relação social das cuias entre si: a pequena é dita “amiga” da grande; mas assim como

a placenta é dita “amiga” do bebê e o bebê não é dito “amigo” da placenta, a amizade das

cuias é uma relação assimétrica, e portanto diferente da amizade contraída por dois

primos cruzados ou por um Juruna e um Índio ou Branco. Que tal relação apresente um

elemento de hierarquia é o que se pode ver mais claramente no festival dos mortos celes-

tes, onde a relação maior/menor das cuias é acionada na abertura do cauim: com um par de

cuias, serve-se em primeiro lugar a um par de homens: o mais velho e o próximo candi-

dato a mais velho, que são, ao menos teoricamente, o chefe e o amigo do chefe (seu a u x i -

liar, que um dia assumirá a chefia). Cuias e canoas de cauim e chefia implicam assim r e -

lações duais que são ao mesmo tempo de amizade e de precedência do plenamente desen-

volvido sobre o incipiente, e parecem obedecer ao duplo modelo da relação entre

bebê/placenta e irmão mais-velho/mais-novo. Nas cauinagens ordinárias, a relação entre

as canoas tem de fato uma função, uma vez que a canoa situada no alto é a primeira a ser

aberta, podendo acontecer (e isso é muito comum quando o recipiente é uma panela de

alumínio) de transferirem para ela, depois de esvaziada, o conteúdo dos recipientes m e -

nores. Já a relação entre as cuias parece ser inoperante, exceto que se busca usar a grande

quando se quer abordar de forma mais dramática algum companheiro249.

249 A bem da verdade, meu conhecimento da relação de amizade entre termos defindos como me-

nor/maior merece maior investigação de campo. Sou inclinada a pensar que se tem aí uma fusão
385

Os homens ficam algum tempo conversando na casa do cauim e voltam para casa.

Enquanto isso, a dona do cauim, com uma cuia maior, de três ou cinco litros faz a ronda das

casas, levando bebida para as mulheres, geralmente ainda adormecidas. Pergunta-lhes

primeiro se estão se sentindo bem; a não ser que o caso seja realmente grave, responde-se

sempre sim. Deitada ainda, a mulher bebe uma boa talagada, e pergunta sobre a quem mais

a porção se destina; a cuia passa então a mais uma ou duas mulheres e é devolvida vazia à

dona. Responde-se “Tomei” (i≈una te, “comi”). Com esta primeira rodada (que para os

homens não significa apenas uma cuia), a cauinagem ainda não engrenou. As pessoas ficam

em casa fazendo qualquer coisa, ou nada, tomam banho e esperam fazer a refeição. Apenas

os jovens (solteiros ou não), tão-só fazem a toalete e vestem a melhor roupa, vão e ficam

na casa do cauim, gabando-se de não querer comer nada, de saber não misturar cauim com

peixe250.

A ocasião poderia suscitar por si mesma uma refeição coletiva, chamada “comida

do cauim”, a qual, contudo e por definição, deve suceder a cauinagem. Trata-se de uma

pesca ou caça que o dono faz enquanto o cauim fermenta para ser consumida numa refeição

coletiva no dia seguinte ao da cauinagem. Mas isto — muitos dizem — é coisa dos antigos251.

O passado, contudo, continua presente no gesto do dono no momento das refeições

familiares (da ordem da família nuclear ou da casa) que são feitas após a abertura do

cauim. Se é verdade que as pessoas contam forrar o estômago antes de se embriagar, é

verdade também que compete ao dono impedir que os companheiros comam, levando-lhes

bebida quando mal se sentaram para comer. A cena alegra os Juruna, e é feita de modo a

parecer que eles interrompem a refeição ao mesmo tempo porque não são femininos, por

coerção do outro e por orgulho de si mesmos. O homem bebe segurando a cuia com os p u -

da relação de fraternidade (mais velho/mais novo) e da relação de afinidade. Em mitos diversos,


os primos cruzados aparecem como modelo de amizade.
250 Diferentemente de outros grupos indígenas que fabricam cauim, os Juruna não costumam

vomitar para beber mais. O vômito não é valorizado; surge como um transtorno, geralmente
atribuído ao fato de se ter comido antes de beber. Afirma-se que estômago de curimatã é um
ótimo remédio contra essa náusea.
251 Vi estas refeições apenas algumas vezes, todas em Saúva em 1984-5, pois lá a “comida do
cauim” era algo como um ponto de honra a distingui-los dos habitantes de Tubatuba. Destes se
dizia que passavam fome e que ninguém se interessava pelas cauinagens que se davam lá por isso.
Tenho para mim que a comida do cauim diz menos sobre uma exigência da tradição que sobre um
desejo de bêbados: responsabilizar o dono pelo fato muito comum de não se ter o que comer de-
pois da cauinagem. Por exemplo: numa cauinagem que acaba pela manhã, todos vão dormir du-
rante o dia, e acordam com fome e sem nada para comer. À guisa de brincadeira, estende-se a
expressão “comida do cauim” às mulheres.
386

nhos para não tocá-la com os dedos sujos de peixe e ao fim ri de sua condição: o estômago

cheio da bebida substancial mais o cheiro dela em combinação com o cheiro de peixe t i -

ram-lhe o apetite. Ele se levanta da roda familiar, lava as mãos e faz um bochecho para

tirar o cheiro e o gosto de peixe e vai para a casa do cauim dando gritos, cheio de satisfa-

ção. As mulheres terminam a refeição sozinhas com as crianças. Ao fim, fazem uma toalete

rápida em que essencialmente untam as mãos de óleo de coco avermelhado por uma mistura

de urucum, para tirar o cheiro de peixe das mãos e fazer brilhar os braços e as pernas,

cuidando de passar depois as mãos nos cabelos para tirar o excesso de óleo.

Por vezes, especialmente quando há caça moqueada, no meio da cauinagem, as m u -

lheres decidem comer, reunindo-se para isso no pátio da aldeia. Nenhum homem aceitaria

participar dessas refeições; parar de beber para comer é uma fraqueza feminina, e, a s -

sim, os jovens, a certa distância, fazem alarido para mostrar que são viris e vaiam o

grupo de mulheres comendo. Uma vez em que comíamos uma cabeça de anta, a performance

do jovem caçador da anta foi espetacular.

Os homens estão reunidos, quase todos de pé, em torno do cauim e conversam. S e -

gundo me contou Hürïkã, cada um procura demonstrar aos seus primos cruzados e tios

maternos que se deseja beber com eles — o cauim é para isso. Assim, quando um tio m a -

terno ou um primo não se encontram na casa do cauim, é preciso ir procurá-lo gritando o

vocativo de parentesco e outros sons estranhos que só os homens fazem.

A animação do encontro masculino determina como as mulheres vão proceder

quando começarem a chegar à casa do cauim. Entrar, se a animação não é grande, ou e s -

perar do lado de fora, defronte à casa. Neste segundo caso se reúnem sob o sol da manhã,

sentada em seus bancos, e vão formando pequenos grupos para se catar piolho umas das

outras, ou das crianças. A coisa dá ensejo à renovação do adorno vermelho da testa e da

penugem branca da risca do cabelo. Sempre num clima de contágio, o tratamento começa

pelas crianças até que todas estejam de face renovada, e muitas das mulheres também. Mas

o embelezamento que ora se passa é o trivial. As cauinagens dedicadas aos mortos, sim,

exigem que as pessoas passem por uma toalete completa para a festa; as destinadas a s i

próprios, não. Ou melhor, não se pintam para a festa, mas na festa. Tudo se passa para as

mulheres como se seu encontro fosse fortuito, e o dos homens também, mas de fato elas

estão aí esperando os homens acabarem de conversar.

Ao longo desta fase, quase invariavelmente, as mulheres lembravam que no passado

as mulheres não bebiam cauim. A informação, entretanto, não é consistente com o con-

junto dos fatos: são inúmeras as referências à participação feminina nas cauinagens a n -
387

tigas. Em todo caso, a cauinagem teria assim consistido inteiramente em reunião dos

homens em torno do cauim. Reunião que na avaliação de mulheres e homens não existe

mais e que não era aberta a todos, mas apenas aos notáveis ou matadores. Estes se apro-

priavam do cauim, às expensas dos outros e das mulheres. Não que houvesse regra alguma

de exclusão; simplesmente tinha-se grande medo de beber com os matadores. Bêbados,

poderiam desafiar, matar e comer um companheiro.

Segundo pois a avaliação dos Juruna, a reunião masculina não existe mais, uma vez

que não mais existe guerra. Para mim, contudo, ela existe, e eu nunca podia assisti-la

pelo fato simples de que mal chegava a conversa tomava outro rumo, voltando-se para a

minha pessoa. Eu podia apenas detectar os temas mais comuns, que eram histórias recentes

relativas aos Índios do Parque Indígena, os Brancos da “Estrada” (a BR-80 que atravessa

o rio Xingu) e a caça, especialmente a caça dos porcos. Somente uma vez, no inverno de

1988-9, quando a casa do cauim fora transformada em moradia, numa cauinagem noturna

no interior da casa do dono, tive sucesso em não me fazer notar pois uma luz débil mal

quebrava a escuridão, e pude acompanhar parte de uma destas reuniões. Os homens faziam

planos para o futuro próximo, entremeando a conversa com muitas histórias de sua

experiência individual. O tema em pauta era o que chamavam p r o j e t o . Decidiam-se a

tentar (por uma segunda vez) a implementação dos projetos econômicos estimulados por

agentes da Funai: plantar arroz e feijão para vender no mercado dos Brancos252. Todos f a -

ziam muitos comentários paralelos do tipo “a Funai não vai dar mais nada aos Índios”,

comentários que um mediador, Mareaji (que retornava naquele dia de uma visita ao

Diauarum e era, a meu ver o principal, interessado no negócio), sabia interromper com

argúcia para dar desenvolvimento à reunião. O local da roça foi definido, assim como a

extensão. Decidiu-se que a derrubada seria efetuada no mês de maio, para que junho fosse

dedicado à derrubada das roças individuais. O preço dos produtos foi superestimado, co-

meçou-se a sonhar alto: adquirir um trator, abrir uma enorme roça de bananas em 1990,

porque a Funai decidira que não daria mais dinheiro aos Índios, a lei mudara, a nova l e i

dizia que os Índios haveriam de plantar e a Funai transportaria os produtos para a cidade e

repassaria o dinheiro aos Índios. O mediador enfatizou algumas vezes que ali estava como

porta-voz de Dumade (“Não sou eu que estou dizendo para vocês abrirem a roça, ele é que

252 A primeira tentativa fora em 1983-84. Dumade foi dono de uma roça de arroz que produziu
17 sacos de 50 kg cada. O arroz foi vendido no povoado São José do Xingu; o dono comprou rou-
pas para ele e um irmão, panelas para a esposa, a mãe e a sogra, e algumas caixas de sabão que
foi distribuído entre todas as mulheres da aldeia em porções aproximadas de 1 kg.
388

disse para nós abrirmos a roça para plantar arroz e feijão”), o jovem Juruna que tinha

ouvido no Posto Diauarum, onde trabalha como monitor de saúde, a notícia das novas de-

cisões da Funai. Informou também que Dumade planejava comprar uma antena parabólica e

uma fazenda para criação de gado nas bandas do Rio Arraia, e que ele estava se oferecendo

para comprar as sementes do plantio253.

A reunião foi abafada aos poucos por uma intensificação das falas paralelas, até que

outras mulheres chegaram à casa e o assunto cessou inteiramente. Mareaji trazia ainda

outra notícia do Diauarum, sobre a qual supôs que eu deveria ser entendida. Dizia-se que o

gelo da terra estava derretendo e o mar inundando as cidades, como era mesmo isso? R e -

latei como pude o que sabia do assunto.

Uma observação de Kadu, o chefe, é suficiente para definir o que se passou. P e r -

guntando-lhe um instante depois por que não tinha se manifestado na reunião, sua r e s -

posta foi exata: “Eu não estou bêbado!” Com efeito, quando retornei ao campo no verão de

1990, vi a roça coletiva já em fase de colheita: uma roça grande toda ocupada por alegres

pés de mandioca!254. Desde que se abandonou o xamanismo — lembro que os mortos, oca-

sionalmente, pediam uma roça de mandioca a ser destinada unicamente ao cauim que seria

bebido com eles — aquela era talvez a primeira roça coletiva que os Juruna se faziam, e

desta vez com o fim de produzir cauim para si mesmos. Isto foi também um dos fatores que

propiciou a adoção do cauim embriagante de macaxeira que os Kayabi teriam inventado em

1989 combinando duas receitas Juruna: a do próprio cauim de aipim, até então bebida

refrescante, e a do dubia. Quer dizer, os Kayabi adicionaram batata crua ralada à parte da

mastigação, o que resultou em uma bebida ardente255. Nas roças individuais abertas em

253 Recebi meses mais tarde uma carta de Dumade pedindo-me uma antena parabólica.
254 Um agrônomo da Funai, Paulo Pinajé, que visitou os Juruna nesse período, teve a gentileza de
ir comigo até à roça para estimar sua extensão: 7 hectares.
255 Não cheguei a investigar o ponto de vista dos Kayabi sobre a invenção, mas me parece bem
que a história procede, pois um dia presenciei um pequeno grupo reunido na casa de Mareaji em
alegre recepção a um Kayabi, todos sentados ao redor de uma panela de yakupa, que o Kayabi
servia como se fosse cerveja enquanto relatava as novas experiências que andavam fazendo com
o objetivo de incrementar o teor alcóolico das bebidas, como adicionar caldo de cana ou melado.
Já neste dia mencionou que acrescentar batata crua ao cauim de milho propiciava uma fermenta-
ção mais acentuada, experiência esta que os Juruna não se interessam em fazer. Este homem
sempre convidava os Juruna para uma cauinagem em sua aldeia, os quais não atendiam o convite;
fizeram-no, entretanto, uma vez, para uma festa que foi designada como “festa de natal”, em
1984. Convidou-me também algumas vezes; eu ficava muito tentada, mas não ia por falta de
companhia. Em um campo neutro como o Posto Diauarum, os Juruna aceitam de bom grado fazer
cauim “para” os Índios, e contam que assim o cauim foi ensinado aos Suyá e aos Trumai que,
afirmam, fazem atualmente suas próprias cauinagens. Para os Juruna, os Kayabi tampouco são
“donos” de cauim; isto é, não se diria deles o que foi dito no início deste capítulo sobre os
389

1989, plantou-se bastante macaxeira, que até então era plantada apenas para o consumo

da família nuclear, e os Juruna puderam então se deliciar com inúmeras jornadas da nova

cerveja. E esta, por uma exigência lógica que culminou numa solução inesperada e curiosa,

propiciou a renomação da cerveja dos Brancos: até então conhecida pelo termo genérico

yakoha, passou a ser chamada “cauim de macaxeira” (maka≈iri˚a).


Mas os companheiros de Kadu não estavam bêbados ainda, no sentido Juruna da

embriaguez. A cauinagem estava apenas começando e era mais o ponto de encontro — a

canoa de cauim — que os levava a explorar outras possibilidades de vida, a sonhar com a

riqueza, “dinheiro próprio”, para poder comprar os bens produzidos pelos Brancos.

Conforme vim a saber mais tarde, ao investigar a questão junto ao mediador, havia aí uma

dupla motivação, reveladora de certo engenho político, mas de que eu não saberia dizer se

foi ou não explicitada ao grupo. A primeira motivação partia de Dumade, porém, em r e s -

peito ao segredo que sua atitude exigia (e exige ainda) no quadro político-administrativo

do Parque, eu não tenho direito de revelá-la. A segunda motivação vinha de Mareaji, a

quem a idéia da roça coletiva pareceu a grande oportunidade de não deixar passar em

branco o que o grupo ora estava vivendo, com a mudança da população da aldeia Saúva para

Tubatuba. Pareceu-lhe que se os dois grupos haviam decidido formar um único grupo,

seria “bonito” que não somente as casas ocupassem um terreno comum, como também as

roças; seria bonito suprimir as distâncias entre as roças, pois no final das contas uma

parte do feijão e arroz teria sido comida pelos próprios Juruna. Aldeia comum, roça co-

mum, a mesma comida.

As mulheres, como eu dizia, mantêm-se distantes da reunião dos homens em torno

do cauim, de que paradoxalmente dizem não existir mais. Acabam, por outro lado, fazendo a

sua própria sessão de conversa, durante a qual vão cuidando dos cabelos. Os temas são

geralmente “papos de mulher”, tanto do nosso quanto do ponto de vista Juruna. De modo

muito mais informal que na reunião dos homens, fala-se da beleza dos cabelos daquela que

os tem cheios, negros e longos até abaixo da cintura; alguém reclama do próprio cabelo

dizendo que está cheio de “piolho fantasma” ( ãwã k¥ha) e alguém responde que é porque

molhou o cabelo ao banhar-se após o pôr do sol256. Os colares de missanga também são

Arupaya. Afirmam que os Kayabi simplesmente aprenderam com os Juruna a receita do cauim
dubia. O fato de os Kayabi produzirem uma grande variedade de bebidas fermentadas não lhes
parece nem um pouco pertinente.
256 O piolho assim chamado é responsável por um fenômeno que fere a vaidade feminina: um nó-
dulo irremovível no fio que lembra uma lêndea. Há mulheres cujo cabelo parece tomado por uma
praga desses “piolhos”. Cheguei a pensar que consistiam em resíduos da resina que se usa nos
390

muito falados: como foram adquiridos, perdidos, passados adiante, e quais são os desejados.

Mas o principal tema é o parentesco, e geralmente são as mulheres mais velhas que falam

para as mais jovens ouvirem. Rememoram-se as relações entre os finados que somente

elas conheceram, em termos sobretudo de filiação e fraternidade, e limitando-se à a p r e -

sentação das relações de parentesco, sem se importarem com definições genealógicas

precisas nem com gradações da classificação. O objetivo não é opor o parente

“verdadeiro” ao “classificatório” e ao “falso”. Como se dos mortos só importassem as

suas relações recíprocas de “consangüinidade”, e como se, por meio destas, a lição de

parentesco tivesse, no entanto, a finalidade de avivar os tons das relações de consangüi-

nidade e afinidade que os finados legaram aos vivos. Mas não se fala só dos próprios p a -

rentes, as relações entre os indivíduos das diversas tribos vizinhas tomam-lhes horas de

conversa; eu mesma era convidada com grande freqüência a recitar a minha árvore. A

única impressão que se poderia ter é de que conhecem praticamente todos os habitantes do

Parque; sabe-se o nome, com quem é casado, quantos filhos tem, quem é o pai de quem e

assim por diante.

Por vezes também as mais velhas narram mitos, mas eu não saberia dizer se era

minha presença que as estimulava. Uma única vez peguei-as contando um mito só para si.

Yawakidu narrava para uma audiência tão atenta como se fosse a primeira vez. Uma m u -

lher que recusa os homens apaixona-se por uma anta. Ao descobrirem o segredo dela, os

homens ficam revoltados e matam a anta. Ela, descobrindo pelas manchas de urucum no

pescoço da caça que ali jazia morto o seu amante, cujo pêlo ela própria costumava pintar,

entra na floresta assoviando para chamá-lo, como de costume, na esperança de que tudo

não passe de um engano. Retornando à aldeia, ela toma argila e modela uma andorinha que

foge voando de suas mãos; modela, em seguida, um porco que foge afoito para a floresta;

então, ela mesma se transforma em gavião carrapateiro, cujo nome significa “namorada

de anta” (tüwã maka). Onde se vê algum, desconfia-se da presença de uma anta, porque o

pássaro vive unicamente a cuidar do pêlo do velho namorado. A ocasião foi também uma das

duas únicas vezes em que presenciei a intervenção da audiência: por que ela fez isso? por

que ela recusava os homens? por que ela se deixava possuir por um bicho? A narradora

apontava uma só explicação: “a finada era libertina”.

Fosse ou não minha presença o principal fator a suscitar a narração, o fato é que os

adornos da testa e da risca do cabelo, pelo motivo de que se dissolve o resto desta resina que i m -
pregna os dedos com óleo, e se passa as mãos na cabeça com o duplo objetivo de limpá-las e
perfumar o cabelo. É mais provável que se trate de um problema de constituição do tecido.
391

mitos relativos ao ogro pa÷¥ eram os preferidos para a ocasião, concorrendo, aliás, com

um relato que pretende explicar porque a cabaça cuité (kürüñü) fornece a cuia ideal para

servir cauim: as mulheres dão à luz crianças lindas! Neste mito, o que está em questão não

é mais uma mulher que recusava os homens, mas um homem renegado por todas as m u -

lheres. Conta-se que “ele se reproduziu numa k ü r ü ñ ü ” que sua mãe tinha levado para

casa e que não fora aberta ainda. A cabaça engravidou-se do rapaz. O tempo passou, o bebê

cresceu e nasceu provocando a morte da mãe, que se rachou toda. O menino era lindo, logo

quem bebe cauim na cuia que o deu à luz tem filhos lindos.

O encontro das mulheres não é animado por cauim, mas vai dando cada vez mais

sede à medida que o sol se aproxima do meio-dia — hora em que o cauim é suposto derrubar

rapidamente todo mundo. Tudo começa com alguém pedindo uma cuia (“Vá buscar cauim

para mim”), mas nunca à dona do cauim, sempre a mim (ou a uma menina, ou moça, caso

eu não estivesse ao alcance), nunca no tom delicado de costume, sempre como uma ordem.

Só que, nesse contexto, o modo brusco de falar passa por lisonjeiro: é sempre lisonja ou

generosidade dar a outrem a chance de embriagar a si mesmo ou alguém; a rudeza apenas

exprime que a decisão de beber é tomada de um golpe, uma rudeza imposta pela natureza do

que se pede. Após ser agraciada, a mulher indica para quem se deve trazer outra cuia e a s -

sim se cumpre toda uma rodada, com as que já beberam dizendo quem deve receber a p r ó -

xima cuia. Isto se faz desordenadamente, podendo desesperar a pessoa que serve. Indicam-

se vários nomes ao mesmo tempo, o máximo que se poderia levar são duas cuias; porém, as

cuias estão ocupadas pelos homens, não é sempre fácil poder-se reter alguma por muito

tempo . Na casa do cauim, vê-se então que o alvoroço das mulheres já contagiou os homens,

entre os quais, alguns querem ser servidos por mim, outros desejam fazer-me beber. Os

mesmos que me ordenaram servi-los se “vingam” de mim; e as mulheres reclamando os

pedidos. E os homens reclamando de fumo, e não querendo só o fumo mas o fogo, e também

muitas vezes que eu enrole o cigarro para eles. “E para fulana, você já deu cauim?”. “ E u

tirei cauim para você, você já bebeu? então me devolva a cuia”. “Fique aqui, eu quero lhe

contar uma coisa”. “Venha cá”. Nos termos da experiência pessoal do pesquisador, a

cauinagem está começando. É preciso fazer de conta que nada se sabe das maneiras de b e -

ber, ao mesmo tempo saber alguma coisa para poder dizer a um e outro: enrole para mim

este cigarro que fulano me pediu porque minha vista está turva; tome conta do fumo para

mim; você quer me matar e eu não vou aceitar esse cauim; o fumo está com fulano, peça a

ele e pegue um pouco para mim também; beba comigo o que seu marido me deu, eu volto já.

Se é verdade que os Juruna parecem invadir a privacidade do outro, desrespeitar sua a u -


392

tonomia, aceitam de muito bom grado que se faça o mesmo com eles, mostrando-se mais do

que receptivos, completamente disponíveis aos caprichos de quem esteja ou pareça b ê -

bado257.

Assim, a cauinagem passa tumultuosamente à fase em que as mulheres bebem com

os homens, ou melhor, ao encontro dos casais no interior da casa do cauim. Forma-se um

amontoado ou uma roda de famílias nucleares, todos se sentam em bancos ou armam redes

para se deitar, à exceção dos garotos convidados que formam à parte o seu bando. As

crianças que já têm vida social independente da mãe ficam a entrar e sair, organizadas em

bandos sexuais que rivalizam entre si, trocando pequenas ofensas. Os convidados que

porventura ainda não chegaram costumam ser flagrados alegremente em sua casa com uma

boa dose pelos donos ou por qualquer pessoa mais exaltada. A segregação sexual até então

observada para servir se modera um pouco, com a dona ou outra mulher servindo cauim

aos homens, e havendo, embora de forma muito discreta, trocas de bebida entre homens e

mulheres (especialmente as solteiras), segundo suas relações de parentesco sejam ou se

aproximem da afinidade potencial. A mulher jovem cujo marido está ausente vai para casa

ao fim do encontro das mulheres, relutando em se juntar ao grupo; assim é surpreendida

várias vezes em casa com uma cuia, e acaba indo para a casa do cauim após passadas a l -

gumas horas. A conduta honrosa de uma mulher casada cujo marido se encontra ausente

depende da companhia que procura na casa do cauim. Reúne-se à família dos pais (ou à de

uma irmã) e se abandona inteiramente às exigências do filho pequeno, adotando assim uma

conduta que exprime que ela está ali mas não está bebendo.

De tempo em tempo, a dona serve uma cauim para as famílias, dando a cuia nas

mãos da mulher. Está-se de barriga cheia, mas não falta ânimo para beber. Primeiro b e -

bem as crianças pequenas que se põem a gritar ao pé da mãe “eu quero, eu quero”, a co-

meçar pelo mais novo. O bebê começa a se alimentar de outras coisas além do leite materno

no momento em que sua atenção é despertada pelas coisas que estão na mão da mãe, por

volta dos quatro ou cinco meses. A mãe come com o filho no colo, ele tenta pegar o que ela

257 Fiquei surpresa com a queixa que ouvi de uma jovem um dia. Ela disse à mãe que estava i r r i -
tada com a cauinagem pois as pessoas não paravam de dizer seu nome, chamando-a a todo ins-
tante para isso e aquilo, perguntando-lhe isso e aquilo. Eu achava que só eu era capaz de me i r r i -
tar, e não entendia como as pessoas podiam se suportar. O interesse que a jovem despertava era
motivado por uma temporada entre os Kamayurá, onde foi viver alguns meses após casar-se com
um Kamayurá descendente de um Juruna capturado. O pai dela esperava que o genro permane-
cesse em Tubatuba, mas o pai do rapaz levou-o com a mulher para sua aldeia. Nesta, ele recebeu
uma segunda esposa nascida no grupo, de forma que já não podia voltar para viver com o p r i -
meiro sogro. Este então foi buscar a filha, que dias depois deu à luz um bebê.
393

está comendo e logo ganha um pedacinho. Dá-se o mesmo com o cauim. Em seguida, bebe a

mulher que depois passa o resto para o marido.

A linguagem flui solta. Os homens (ou os casais258) que têm uma notícia recente

qualquer para contar o fazem, relatando fatos vividos ou ouvidos que se passaram noutros

lugares, e que sejam engraçados pois o que se quer é divertir os outros. Diverte tanto mais

o narrador que possui um talento especial para usar as palavras e descrever as cenas, e

imitar o jeito de falar o português ou de se conduzir dos Outros. Geralmente são fatos que

envolvem os Txukahamãe, os velhos Kayabi e os Brancos. São casos portanto que visam

sempre a relação com o Outro e que se tornam interessantes e engraçados desde que p r o -

blematizem a diferença. Do ponto de vista da arte verbal, a performance somente é com-

parável aos mitos que desenvolvem temas da vida animal. Se nesses mitos — tão i m p e r -

meáveis, aliás, à minha capacidade de tradução — a graça está no sotaque, no erro e na

pobreza com que os animais falam o Juruna, são aspectos análogos que se detectam no

português falado pelos chamados Índios, com a finalidade de rir.

O caráter da relação entre o narrador e a platéia é bastante informal. Como só se

está ali para beber, a atenção de todos pode se desviar para qualquer coisa a qualquer

instante, como se as histórias não tivessem de possuir um desfecho. Está-se ouvindo o

relato de alguém, entra uma pessoa, um primo dela lhe dirige uma brincadeira, todos se

apresentam como espectadores, achando bonito, rindo, seja porque a brincadeira lhes

parece original, ou tradicional, ou simplesmente porque é de praxe. Um menino de três ou

quatro anos, que ainda não largou a barra da saia da mãe, de repente decide que é gente

grande e enche uma cuia para um companheirinho; acaba gostando dos aplausos e resolve

continuar o show, dançando com a cuia na mão. Todos param para ver, até que finalmente o

narrador consegue de novo um pouco de atenção. “E você, você deixa o seu marido acariciar

sua vagina?” Nenhuma resposta. “Experimente, experimente deixar, você vai gostar!”

Enquanto isso, a esposa do brincalhão (prima minha) repete umas dez vezes que é men-

tira, belisca-o, e me obriga a dizer também que é mentira, tolice de bêbado. A irmã do

bêbado (minha mãe) intervém mandando-me chamá-lo de titio, achando talvez que minha

vergonha haveria de ser vingada ao lembrar a ele, na frente de todos, que eu não era a

parceira conveniente para tal brincadeira. Nesta ocasião, porém, ninguém se envergonha

com pouca coisa, antes se diverte com os deslizes e, o que vale mais, diverte a todos. Pois

258 Via de regra, uma mulher não conta um caso sozinha para todo o grupo. Quando tem
novidades, conta-as a pequenos grupos de mulheres ou então ao conjunto das mulheres em dias de
trabalho na casa do cauim.
394

então é hora de cada um tirar lucro da brincadeira, os que estão desatentos logo são noti-

ciados e perguntam alto, fingindo que tudo ignoram: “E aí? Como foi que Yawajiwa falou

com você?” “Ele não disse nada”. “Será que você está me dizendo a verdade? Parece que

ele perguntou: ‘Você deixa seu marido acariciar sua vagina?’ Ah, você está gravando?”

“Você vai deixar seu marido ouvir?” “Mostre a ele quando ele estiver bêbado”. A garga-

lhada geral ecoa: se meu marido fosse Juruna eu bem levaria um safanão por estar assim

me divertindo na ausência dele. O tema que alimenta a alegria não tem fim enquanto não

surge outro, e diversos motivos de brincadeira característicos da afinidade virtual são

desenrolados à frente de todos.

Muitos episódios se passam também em encontros rápidos fora da casa do cauim, de

onde é preciso ausentar-se de tempo em tempo, a intervalos cada vez mais curtos, pela

vontade imperiosa de aliviar a bexiga. Embora a brincadeira entre primos e cunhados de

sexo oposto seja convencional e agrade ao público, não se tem muita coragem de realizá-

las publicamente quando o marido da interessada está presente. O encontro fortuito com

uma afim que não está sob o olhar do marido ou da mãe é a ocasião mais propícia para estas

brincadeiras, alguma frase picante, um leve beliscão, uma apalpadela. Nem sempre o bom

humor é correspondido, especialmente quando se trata de uma relação de cunhados de sexo

oposto em que o homem é um irmão classificatório do marido e a mulher, por alguma

razão ligada à cauinagem, não está muito contente com o marido. Vi algumas vezes mete-

rem os dedos nos olhos de cunhados, que apesar do desconforto se mantêm corteses e r i -

sonhos.

A animação da alegria e a embriaguez já se generalizando dão ensejo a uma sessão

de cabelereiro e maquiagem. No mesmo tom de contágio da sessão passada na reunião das

mulheres, aquelas que não se arrumaram ainda decidem se arrumar, porque o marido lhes

pergunta o motivo pelo qual as outras estão de testa e cabelo feitos e ela não. As mulheres

então fazem sua testa e cabelo e os do marido também; os solteiros se fazem arrumar pela

mãe. Os jovens aparecem também com urucum, e vai que de pouco em pouco quase todos os

homens tiraram a calça comprida e a camisa e estão pintados de vermelho. Os jovens tam-

bém querem cocar e brincos, os outros se contentam com a coroa de palha, que um finado

outrora roubou dos urubus, e para isto alguém arranca uma palma do pé de babaçu p l a n -

tado na aldeia, cada um vai lá e tira o seu folíolo, e um piadista não tarda a aparecer com o

folíolo nascido mais recentemente, perguntando se eu sabia que isso serviu outrora de

calção para os verdadeiros Yuja.

Quase a metade do cauim já foi consumido, o sol está baixo, a reunião social evolui
395

transbordando da casa do cauim para o terreiro. Pessoas mais velhas, geralmente do sexo

feminino, perdem subitamente todo o interesse pelas histórias dos outros. Tornam-se

tristes, mas de uma tristeza que aviva a alegria dos outros, que falam então cada vez mais

e são cada vez menos ouvidos. Os olhos dos mais velhos estão cheios d’água, apenas cheios

d’água, por uma saudade leve ou já há muito tempo dominada. Dizem “eu estou bêbado”,

“eu estou bêbada!” e cantam e dançam sozinhos ou aos pares, com o cônjuge ou um com-

panheiro do mesmo sexo, por vezes horas a fio. Eu não saberia exprimir melhor do que o

fez von den Steinen:


“cada um preocupado consigo mesmo. Em geral notava-se o monólogo, pois nenhum
se importava com o que o outro estava fazendo. A única nota tranquila e regular em
meio da pândega geral era o velho da barriguinha redonda, que, dentro da rede, bebia
e calava ou calava e bebia” (Steinen, 1942: 308).
De fato, a reunião social quando mal se olha está muito além. O mutismo de uns e o canto

individual de outros, o olhar vago e lacrimejante são notas não apenas regulares como

também reguladoras de uma cauinagem evoluída. As exclamações “eu estou bêbado!”, “ o

cauim está me matando”, a interrogação “você está bêbado?” são fórmulas que introdu-

zem a aproximação entre duas pessoas. Mas isso somente quando se bebe o cauim dubia (ou

algum outro de que este compõe a receita). A mandioca bem pode se negar a embriagar os

Juruna enquanto ela puba, mas uma vez que é enganada e transformada em cauim, a e m -

briaguez é persistente, raivosa, deseja atacar; o bêbado pode, por isso, ostentá-la sem

riscos de que ela o abandone. Em revanche, a embriaguez do cauim de milho é tímida, cheia

de vergonha e, por isso, breve. Sua brevidade vem a ser contornada com um cuidado de

linguagem: não se escancara que está bêbado, para evitar que a embriaguez se sinta notada,

vista pelas pessoas que dirigiriam o olhar para o bêbado: ela cora de vergonha e foge.

A cauinagem está pronta a apresentar então uma clara divisão do trabalho da e m -

briaguez social. Há as notas reguladoras dos velhos e outras irregulares, os ritmos

bruscos que se esboçam entre os jovens e são logo retardados pelas primeiras.

Há também, inicialmente, os que se encarregam de processar a tristeza muda ou

cantada em alegria; simplesmente a embriaguez dos velhos é muito bela e contagiante. Ele

bebeu mesmo, está embriagado, os olhos dele mais se parecem com os dos mortos — como

um companheiro assim deixa os Juruna alegres! Servem-lhe mais cauim, já que está

bêbado; é-se abraçado pelo cantor-dançarino que o toma como um bem-vindo par. É difícil

beber, bebe-se agora de gole em gole, dá-se um tempo cada vez mais longo entre um gole e

outro, bebe-se e canta-se, já não se pode evitar derramar o cauim. Tomando-me como seu

par, Madayu chorava colando o rosto no meu, assoprando o bafo ácido, sussurava em meus
396

ouvidos que estava se lembrando dos finados, os quais cantavam quando estavam bêbados

aquele canto justamente. E acrescentava que cantar solitariamente era o modo de conduzir-

se dos bêbados antigos, costume ignorado atualmente por todas as “crianças” que eu estava

vendo. Madayu queria também que eu aprendesse a canção para cantar com ela, naquele

exato momento; eram raras as palavras que eu podia reconhecer e suas cantigas a meu ver

remetiam a uma língua arcaica.

Enquanto uns cantam, outros falam. Não é exatamente ainda como monólogo que se

organiza o discurso. Quer-se o diálogo, quer-se falar com outrem, mas ora aquele que está

ouvindo quer falar também, de outra coisa e com outra pessoa, ora é requisitado por o u -

trem, ora em um instante não há mais ninguém para ouvir. O bêbado parece que procura

onde há duas ou mais pessoas falando, sente-se atraído de preferência por quem não está

tão ébrio quanto ele, e o resultado geral são pequenos grupos onde três ou quatro contam

cada um uma história diferente para alguém que não sabe a quem dar ouvidos. O discurso

então evolui para uma espécie de desafio em que cada um tenta falar mais do que o outro;

sente-se vencedor aquele que não desiste, sustenta sua fala, enquanto os outros se disper-

sam cheios de descontentamento, puxados do bando muitas vezes pelas esposa reclamando

disso e daquilo, como um menino que está chorando, outro que está com febre, ou ela

mesma que está querendo isso ou aquilo.

A coisa é abafada, diminuída sem chegar a cessar inteiramente, por um movimento

de canto e dança coletiva, em geral desencadeado pelas mulheres mais jovens, emocionadas

com a saudade demonstrada pelas velhas. O tempo da embriaguez não é para se contar

história ou fazer discurso, mas para se cantar e dançar em grupo, que são as formas por

excelência de expressão da alegria. De início duas ou três apenas dão-se os braços e co-

meçam a cantar chamando as outras para se juntar a elas, e assim aos poucos se forma uma

linha de mulheres de braços dados com criança no colo e tudo, cantando, dando alguns

passos para a frente e outros tantos para trás. Em pouco tempo a voz masculina se faz

ouvir. Os homens formam uma fila, um com a mão no ombro do outro e dançam e cantam o

canto iniciado pelas mulheres. Imagine-se uma linha reta, e uma outra diametral a esta

que tende a assumir o caráter de uma curva quando posta em movimento: assim se organi-

zam respectivamente os homens e as mulheres. Ao fim de cada canto os homens dissolvem

sua fila e entoam um alarido; as mulheres iniciam um novo canto, explode então um novo

alarido até que os homens se põem a acompanhar a voz feminina com um pequeno atraso,

cantando a frase que elas acabaram de cantar.

De vez em quando a música, que vai prosseguir até o cauim acabar, senão por vezes
397

até horas depois disso, é interrompida para se beber. Raramente se chega a atrair a p a r -

ticipação geral na dança. Há sempre pessoas entrando e saindo, outras que não dançaram

ainda seja porque a embriaguez dos outros não as contagiou, seja porque se chatearam com

um comentário a seu respeito, outras que não querem dançar mais porque se chatearam

também ou porque sua embriaguez é tanta que supera a alegria, impossibilitando a co-

municação com outrem (definamos assim provisoriamente, para retomar este ponto na

próxima seção).

O estado de espírito que conduz à dança coletiva favorece também a comemoração de

relações de afinidade atual e virtual bem como a produção de relações fictícias de afinidade

potencial e alteridade. Um cunhado se dirige ao outro alegremente chamando-o pelo termo

de parentesco, abraçando-o, com uma cuia na mão, querendo partilhar sua alegria, e n -

saiando um passo de dança (chamado tatahu) cujo significado é que se está bêbado e se c e -

lebra o cauim que se tem nas mãos. E os dois se afastam por um momento para trocar a l -

gumas palavras mantidas em segredo. Uma cunhada, também se dirigindo à outra pelo

termo de parentesco, dá o braço a ela puxando-a para se sentar ao seu lado ou ir dançar.

Um irmão da mãe que tenha uma filha solteira (ou mais) oferece a filha a seu sobrinho

casado, dizendo-lhe que tomá-la como esposa é algo que depende apenas de sua (do s o b r i -

nho) vontade. Caso deseje duas esposas, ele as terá se assim quiser259. Um homem diz ao

irmão de sua esposa que dará sua filha menina em casamento ao filhinho do cunhado.

Entre os homens, o português ganha um interesse especial. Usam de preferência a

língua dos Brancos para falar entre si (e muitos o fazem para dirigir-se à esposa e f i -

lhos). Mesmo aqueles que são inseguros no domínio desta língua e não costumam usá-la

para se comunicar com os Índios e os Brancos, ensaiam pequenas frases ou palavras. Eu

acreditava que o emprego do português nas cauinagens era uma forma de chamar minha

atenção, até que escutei gravações feitas pelos próprios índios de festas realizadas em

ocasiões em que eu estava ausente. Então constatei que a predominância do português era

um fato comum260. Chamam de p r i m o s a homens que não são seus primos cruzados

“verdadeiros” nem seus “irmãos verdadeiros”, homens com quem têm relações classi-

259 Esses arranjos poligínicos não ultrapassam a conversa da cauinagem, exceto que, primeiro,

os sobrinhos ficam muito gratos quando são tratados deste modo, e, segundo, podem transferir a
moça ganha para um de seus irmãos solteiros.
260 Algumas mulheres também, ocasionalmente, falavam português comigo quando nos afastáva-
mos por um breve momento e nos achávamos apenas as duas sozinhas. O que então me contavam
era segredo e dizia respeito ao mau comportamento de alguém. Noutro contexto, jamais obtinha
delas uma palavra nessa língua.
398

ficatórias, seja da categoria da consaguinidade seja da categoria da afinidade, de não i m -

porta que geração. Estendem aos p r i m o s as alegres brincadeiras261 e/ou os tratam com

amistosa intimidade, podendo fazer, além disso, na surdina, pequenas transações comer-

ciais, como venda de rádio (para se pagar depois) e trocas de bens nativos que tenham um

emprego comercial fácil (mel, colares e bancos) por bens industrializados (roupas e

calçados). Mas, até onde pude observar, estas transações não chegam a representar um

procedimento regular, consistindo menos numa parte obrigatória da cauinagem do que num

uso desta para resolver interesses puramente individuais.

Os homens, assim, preservam um pequeno núcleo de relações de consangüinidade e

afinidade e transformam o conjunto mais abrangente em posições de alteridade, onde tudo

se passa como se um fosse Índio para o outro, Índio-amigo.

Enquanto isso, paira a dupla preocupação com a chegada imprevista de Índios

desconhecidos ou selvagens e com a possibilidade de os Juruna se tomarem a si próprios

por Índios. O trânsito de pessoas fora do local de concentração, alguém que foi em casa,

alguém que foi ao mato próximo aliviar-se, e sobretudo os cachorros geram ruídos cuja

única interpretação suscetível de ocorrer aos Juruna bêbados é que Índios estão chegando,

selvagens. Basta uma pessoa (mesmo uma criança) dar o grito de alarme “Índio!”, que

mulheres se põem a exclamar que aí vem Índio. Os homens começam a gritar o seu alarido,

até que se descobre que o feixe de luz foi produzido pela lanterna de um companheiro ou que

os cachorros estão latindo porque estão brigando entre si. Se o verdadeiro sentido do sinal

não é determinado rapidamente, homens cuja casa é próxima correm para apanhar a e s -

pingarda e dar tiros para o alto. Não é nada, ninguém na verdade acredita de coração na

possibilidade de surgirem Índios bravos para atacá-los nos dias de hoje, e tudo acaba

soando, ao menos para mim, como se isso fosse mais um desejo estimulado pelo cauim.

Sabe-se, porém, que esses alarmes falsos podem bem trazer prejuízos para o grupo, de

modo que existe um sinal que se emite nos dias de cauinagem caso um membro do grupo

esteja ausente e prestes a voltar. Faz-se ao longo do dia e da noite vários disparos de e s -

pingarda ou toca-se várias vezes a trompa kãmahu para que o Juruna saiba que seus

companheiros estão bebendo; isto serve tanto para que ele se apresse para não perder o

cauim como para que possa anunciar sua chegada com tiros de espingarda, e assim não

correr o risco de ser confundido com um Índio.

261 A extensão da brincadeira a pessoas que não caem sob a categoria da afinidade virtual não
deixa de chamar a atenção de Kadu, que nisso vê um comportamento recente e muito estranho,
feio mesmo.
399

Conta-se que foi assim que o finado Pai-de-Manako matou o irmão. O alarme foi

dado no meio de uma cauinagem. Ele era jovem e também o usuário da única arma de fogo

que o grupo possuía. Seu irmão tinha sido deixado entre os Suyá como uma forma de f i r m a r

relações amistosas entre os dois grupos, e eis que chegando para visitar os seus foi rece-

bido com um tiro e caiu morto. Em desespero, compreendeu-se que o matador devia ser

morto também, mas acabou-se encontrando uma solução menos dispendiosa: tomar-lhe as

esposas, duas Índias por ele capturadas, uma das quais foi então morta, a outra foi aban-

donada — o grupo abandonou a aldeia após o incidente — e pôde alcançar sua aldeia. E o

matador infeliz ficou solteiro por um bom tempo. Uma história mais recente me foi con-

tada por um homem de uns 35 anos. Ele era rapaz. Os Juruna saíram bêbados para a p u -

xada de uma canoa, e, como o grupo que vai bêbado até a floresta não deixa a espingarda em

casa, ao ser dado o alarme de que havia Txukahamãe por perto, os tiros pipocaram. Todas

as armas continham apenas pólvora, mas a dele, por inexperiência (“Naquele tempo eu

não sabia como o pessoal é.”), estava preparada com chumbos para matar macacos. O tiro

atingiu dois companheiros: um irmão classificatório (cujo rosto é salpicado de cicatrizes)

e um primo classificatório que mais tarde se casou com sua irmã262.

A expectativa de guerra é fantasiada, mas não apenas fantasiada, no sentido de que

uma informação que parece bem fundada coloca efetivamente os Juruna em prontidão e os

leva mesmo à ação. Eu ilustrarei com dois acontecimentos que despertaram atitudes

opostas em função da presença e ausência de cauim. No verão de 1990, duas famílias

voltavam da roça de frutas ao entardecer, em canoas que tomaram uma da outra uma boa

distância. Perto de Tubatuba, ouviram-se passos andando em direção à aldeia, por dentro

do mato, próximo à beira do rio. Guardou-se absoluto silêncio, remou-se lentamente, para

não se deixar notar pelo possível inimigo. A primeira família a chegar à aldeia comunicou

o fato aos outros que ficaram curiosos mas não muito preocupados. À chegada da outra

262 O desespero do atirador foi grande. Conta com a voz embargada que o tio, quando viu o filho
derramando sangue, disse-lhe que se o filho morresse o mataria. Os feridos foram levados de ca-
noa para o Posto Diauarum. Ele ficou na aldeia em grande desespero, acreditando o primo morto e
temendo a vingança. Quatro dias depois, não suportando esperar mais, pediu ao pai que fosse com
ele ao Diauarum saber notícia dos feridos. Ele tinha tomado uma decisão, não revelada ao pai:
caso o primo estivesse morto, ele se suicidaria, para não se deixar matar pelo tio. Nunca nin-
guém me contou esta história, além do atirador, que o fez com o único fim de me provar a opinião
que tinha sobre si mesmo, a de que era um homem cruel — o que cheguei a por em dúvida. A c e r -
teza de que é cruel não lhe desperta nenhum orgulho e ele encara o episódio como indício de que no
futuro pode vir a tirar a vida de alguém. Os Juruna não costumam comentar episódios desse tipo
(mesmo se são menos graves) transcorridos em cauinagens. Presumo que isso seja uma grave
ofensa aos envolvidos.
400

família, vendo-se que as informações conferiam, o fato já era mais preocupante. A

afluência de todos à casa do último a chegar revelava-me a gravidade da situação. Falava-

se demasiado baixo, as mulheres amedrontadas e amedrontando as crianças para que

guardassem silêncio, os homens tensos mas confiantes. Disseram-me para não usar mais a

lanterna. Até onde pude compreender, nada foi definitivamente afirmado, e se trabalhou

apenas com hipóteses: o duplo sinal auditivo, passos e respiração, ou vinha de Índios

bravos, pois o rumor dos passos não era de gente que estava calçada, ou de jaguar, ou de

ogro (kaneana), que por sua vez tanto podia ser um animal- isãm† quanto um fantasma

ãwã. Decidiu-se que era preciso preparar as armas de fogo. Quem não tinha pólvora e/ou
chumbo ganhou de um companheiro. A casa de Yawajiwa, onde eu vivia, foi o ponto de e n -

contro para vários homens prepararem os cartuchos. As mulheres entraram com as

crianças nos mosquiteiros e não saíram mais, as crianças maiores também se recolheram,

e os homens fizeram o seu trabalho (a meu ver com grande vagar) à luz de um fogo fraco.

Eu não tinha muito bem conhecimento de qual seria o passo seguinte, e parecia que eles

mesmos não sabiam ainda o que fazer. Peguei no sono por volta da meia-noite, pois embora

concordasse que os cuidados eram de fato necessários, achava duvidoso que o rumor da

respiração humana pudesse ser ouvido e correspondesse à descrição que se fez. Os homens

deram uma vasculhada, de canoa, nas redondezas do local por volta das três da madrugada e

nada foi encontrado. À alvorada saíram de novo e aportaram as canoas para vasculhar o

mato da beira do rio. Descobriram-se rastros recentes de jaguar e fiapos de seu pelo.

Um acontecimento muito diferente sucedeu no começo da estação das chuvas em

1988, ocasião em que os Juruna estavam chocados com o massacre de índios Tikuna efe-

tuado por brancos, e, também, muito apreensivos em relação ao estado de ânimo dos

Txukahamãe, a quem, meses antes, se atribuiu a intenção de atacar os Juruna e dois outros

grupos. Era também um momento importante, pois concretizava-se a mudança dos h a b i -

tantes de Saúva para Tubatuba, mudança proposta por Kadu e argumentada como precaução

contra ataques de inimigos. O grupo de Saúva já estava abrigado em Tubatuba havia pouco

mais de um mês, atraído por minha chegada e meus presentes. Havia cinco dias que o grupo

retornara à aldeia recentemente abandonada anunciando a intenção de fazer farinha; e com

a intenção não muito (ou talvez nada) divulgada de fazer a mudança definitiva. Enquanto

preparavam as coisas e torravam a farinha, fizeram um grande cauim. Quase todos os

homens de Tubatuba foram beber. Não fui convidada, nem pude me oferecer para ir tam-

bém porque não os vi sair; certamente, fez-se um sinal de fogo para informar aos de T u -

batuba que haveria cauim, mas nem disso fui informada. Com certeza, minha presença, que
401

sempre foi tão apreciada nas cauinagens, não era, dessa vez, nada desejada. No mesmo dia,

dois jovens, moradores de Tubatuba, tendo saído alta madrugada, foram ao Posto de V i g i -

lância, pescando durante a viagem uma grande quantidade de peixes que pretendiam vender

aos Brancos de São José do Xingu. Um Índio, então casado com uma jovem Juruna, disse-

lhes que era melhor não ir ao povoado, porque um fulano do seu grupo falara mal dos

Juruna para os Brancos, os Brancos podiam ficar bravos e bater em Juruna; além disso, o

mesmo fulano havia jurado que bateria nos Juruna que fossem ao Bangue (São José do

Xingu). Os Juruna já haviam conseguido uma carona com um amigo Branco, e desceram do

carro após essa conversa. Um casal Juruna (o marido é Índio, membro de um terceiro

grupo) cuja filha é casada com um Índio que trabalha no Posto de Vigilância, estava desde

mais de um mês hospedado na casa da filha. O cabeça do casal contou aos dois jovens que

recebera, no dia anterior, um comunicado pelo rádio, de um filho que se encontrava no

Posto Diauarum, informando a chegada de Brancos da Polícia Federal. Contou também que

um quarto Índio, do mesmo grupo de seu genro — o absurdo estava no ar —, havia pousado

no Posto de Vigilância acompanhado do mandante dos crimes contra os Tikuna: os dois h a -

viam-se aliado, e, o que é mais, o Índio enviara a Polícia Federal para massacrar os J u -

runa e membros de outros dois grupos. Além disso, o mandante dos crimes estava sendo

procurado pelos Brancos do Bangue, que queriam encomendar o seu serviço para massa-

crar os Índios do Parque (neste caso, o termo Índios inclui os Juruna) e assim apoderar-

se da balsa que faz a travessia da BR-80, então controlada pelos Txukahamãe. Finalmente,

comentou sobre sua preocupação com um Juruna que se encontrava na aldeia de um grupo

de Índios, para onde haviam sido levados sua filha (casada com um homem desse grupo) e

neto, e que não tinha retornado apesar das notícias perigosas que se anunciavam. Os dois

jovens tomaram imediatamente o caminho de volta, descendo em Saúva onde os homens

estavam todos reunidos bebendo cauim. Não sei o quanto dessa trama foi imaginado durante

a cauinagem. Primeiro se acabou com o cauim, depois os homens de Tubatuba começaram a

chegar a esta aldeia às 4 da tarde, muito exaltados. Cada canoa trazia um fragmento da

história. O primeiro fragmento anunciava que o Juruna que se encontrava na aldeia de

Índios talvez tivesse levado uma surra. As mulheres gritavam isso em pânico, ao mesmo

tempo em que diziam que ninguém devia se preocupar antes do tempo, que era preciso

ouvir o que o rapaz que sabia das notícias tinha para contar — o mais velho dos dois jovens

era considerado o dono da notícias. Kadu, cuja filha achava-se com o marido na aldeia de

Índios, desceu dizendo que não se sabia ao certo de nada. Ele era o único homem que o cauim

e as notícias não exaltaram. De um outro homem da mesma faixa de idade de Kadu, eu e s -


402

perava um comportamento igualmente moderado. Ele, no entanto, era o chefe de uma e x -

pedição de guerra — era para isso, exatamente, que os bêbados se preparavam. Em exatos

40 minutos a última canoa já tinha aportado em Tubatuba e o barco a motor zarpava em

direção ao Diauarum lotado de bêbados pintados de urucum e armados com bordunas. Neste

intervalo, mesmo quem voluntariamente jamais dissera uma palavra em meu gravador fez

o seu entusiasmado discurso. Kadu, o chefe, reafirmava (não diante de todos, mas para

mim, em um diálogo particular) que não se sabia nada de concreto; os outros estavam to-

talmente embriagados, e eu diria que apreciaram a recepção que lhes fiz com o gravador

em punho. Além do dono das notícias, que estava bêbado mas relatou o fato sem grande

dramatização, apenas dois homens sabiam passar sem dificuldade de um dramático d i s -

curso de bêbado para um discurso sensato. A parte da sensatez consistia em ir ao Diauarum

informar-se do motivo da chegada da Polícia Federal. A outra parte consistia em matar os

Brancos e tomar-lhes as metralhadoras. A intenção de um velho era, no entanto, primeiro

tentar articular uma aliança com a Polícia Federal para voltá-la contra o grupo do Índio

que a teria enviado ao Parque. Requisitou para isto o meu auxílio, obrigando-me a e s -

crever um d o c u m e n t o que ele entregaria à Polícia Federal. O texto dizia que os Juruna

nunca mataram Brancos, os Índios X, sim, haviam matado muitos, bem uns 40, e que os

Brancos, portanto, só tinham razão para matar Índios X. E Brancos mortos foram enu-

merados, bem como os respectivos matadores de um certo Branco ligado a um orgão cujo

poder se acreditava ser o mesmo da Polícia Federal. A circunstância em que o Branco

morreu foi detalhada, bem como as buscas empreendidas, o nome da tribo culpabilizada

mentirosamente e tudo o mais. Nestas buscas, teria tido papel importante um Guarani,

membro da Polícia Federal, razão que parecia indicar que uma aliança com a Polícia F e -

deral era possível. O Juruna me colocava assim numa situação constrangedora, eu não

queria delatar ninguém nem tampouco dizer aos Juruna que eles estavam delirando. R a -

bisquei algumas palavras num pedaço de papel, para descontentamento do chefe da expe-

dição que indagou se toda a sua fala se resumia a tão pouca escrita. A guerra foi cantada e

recantada.

“Eu não tenho medo dos Brancos. criança, pois já matei f a z e n d e i r o ,


Tampouco tenho medo dos Índios X. Um nós outros já matamos muitos
Branco, eu o mato com a borduna. Um Brancos.
Índio, eu o mato com a arma dos Eu vou dizer à p o l í c i a f e d e r a l , vou
Brancos — uma espingarda — dou-lhe dizer se eu ficar bravo: ‘Nunca mais
um tiro. vocês vão matar Índios’.
Eu sou forte. Eu sei matar desde Os Brancos são maus. Antigamente se
403

matava muito Índio, antigamente era minha!’ Depois eu estouro a cabeça


bom. Agora eu vou matar Branco, dele com minha borduna” (Minha
polícia. Vou tomar a tradução suprime as onomatopéias e a
m e t r a l h a d o r a , e vou dizer ao dono: entonação).
‘A m e t r a l h a d o r a era sua! Agora é

Dentre os planos dos guerreiros estava decidido que voltariam na mesma noite caso

os Brancos tivessem sido enviados para matar Índios, ou na manhã seguinte caso não fosse

ameaçador o motivo de sua presença. O retorno imediato seria feito com o fim de avisar aos

homens que se encontravam em Saúva e ao chefe, que achou por bem aguardar a notícia em

Tubatuba. Retornaram de madrugada, sem alarde, com a notícia de que os Brancos p r e -

tendiam sobrevoar os limites do Parque para investigar o estado da picada que deveria ser

refeita nos próximos meses. Salvo engano, já não era plausível que se tratasse da Polícia

Federal, ou que o motivo de sua chegada fosse realmente esse.

No dia seguinte o assunto estava morto, completamente. A ninguém, mesmo ao h o -

mem que a tudo assistiu à distância, ocorreu o comentário de que as interpretações e o

atropelo foram ampliados pela embriaguez. Eu mesma não saberia traçar a linha que s e -

para a dramatização da realidade, mas acredito que é justo uma oscilação entre fantasia e

realidade o fenômeno positivamente procurado através do cauim. Embora só tenha

registros de empresas fracassadas, de modo algum arriscaria afirmar que a temeridade

dramatizada pelos bêbados não franquearia jamais a realidade. A cauinagem tem muito de

teatralização da guerra, mas como vão procurar no exterior parceiros para representar o

papel complementar ao seu, resulta que a cauinagem de modo algum se fecha ao

acontecimento. É apenas pouco provável a irrupção do homicídio desejado.

Ocasionalmente, surgem de fato Índios de aldeias vizinhas durante a cauinagem. A

recepção que lhes fazem é bastante amistosa, vão recebê-los na beira do rio com cauim na

mão, convidam-nos a ficar para beber, e, geralmente, aqueles que param no porto dos

Juruna durante uma cauinagem estão dispostos a descer e beber; são pessoas cujas r e l a -

ções com os Juruna são de amizade segura. São membros dos grupos Suyá e Kayabi, e até

1985, alguns eram Txukahamãe (antes de sua saída da aldeia Kretire, próxima dos J u -

runa), e contam, parece-me, com seu prestígio de chefe ou de funcionário da Funai muito

mais do que com a amizade, porque para falar exatamente, não basta ser amigo para

aceitar beber com os Juruna, é preciso ser, ou pelo menos estar acompanhado de, um
c a p i t ã o ou f u n c i o n á r i o .

Os grupos do Alto (“os Kamayurá e seus congêneres”) jamais fazem parada na

aldeia dos Juruna quando estes estão em cauinagem, e raramente o fazem nos dias comuns.
111

companheiros sobre a briga que tivera, dizendo-lhes que todos veriam no dia seguinte dois

bagres mortos boiarem carregados pela corrente. Assim foi. Tratava-se dos corpos dos

rapazes que o chatearam e em cuja cabeça ele, disfarçadamente, pusera a mão para aí i n -

troduzir algo parecido com pedra, invisível, chamado kuãrãña (como o granizo), e de que

os grandes xamãs portam um em cada palma da mão.

Waisa abriu a cabeça dos bagres para recuperar o que era seu e descreveu o que

vira: uma casa cujo interior se parece com o interior de uma casa Juruna; casa que não

está assentada em ilha alguma; mantém-se maravilhosamente suspensa acima da água. Uma

muito bela plantação de batata-doce arrodeava a casa. “Lá no fundo do rio é como aqui!”,

assim ele resume suas impressões.

A grande potência xamânica de Waisa responde por sua capacidade de transportar-

se (num estado de leve embriaguez) de corpo e alma para o mundo dos p a ÷ ¥ transmu-

tando-se (para transpor as águas) em peixe. No xamanismo ordinário, os xamãs fazem em

sonho o que ele fez na realidade: privam da companhia dos p a ÷ ¥ , ordenam-lhes não raptar

crianças e os ameaçam de morte. Sua liberdade junto a eles é, pode-se dizer, completa,

como exemplificou um jovem comentando o que de fato se passou na noite em que Waisa foi

beber no fundo do rio: a moça usava uma saia e se sentou de um modo a deixar a coxa de

fora; depois se deitou na rede com ele, pirarara avançou no xamã e os dois brigaram de se

puxar o cabelo; o xamã voltou para a rede e teve relações sexuais com ela; no dia seguinte,

pirarara se desculpou e pediu que o benzesse. Os p a ÷ ¥ respeitam os xamãs, pois os têm

como perigosos feiticeiros. E de fato, se um xamã desejar prejudicá-los, basta-lhe

amarrar uma pedra com cipó, que eles ficam com uma dor de cabeça lancinante e morrem.

Segundo se conta, os pa÷¥ já capturaram muitos finados. O som da queda n’água de

frutos ou cascas de frutos de alguma árvore que cresce à beira do rio, o reflexo dos brincos

de pena de arara, a saudade do homem amado, e, finalmente, o cheiro de cauim são os

elementos que os atraem. Os homens e crianças são comidos, as mulheres são transfor-

madas em amantes e em alguns casos levadas para viver no fundo do rio. Assim, quando dão

cauinagens os Juruna repelem os p a ÷ ¥ no momento mesmo da abertura do cauim, com o

som de uma trompa chamada kãmahu. Aliás, as trompas, as clarinetas e a trombeta têm a

mesma virtude de escorraçá-los. Pensam que a música é gritaria de ariranha, e a ariranha

é um ser que muito os intimida. Seu estado de espírito se altera sensivelmente quando

sentem o cheiro de cauim fermentado. Ficam ferozes ( ã w † µ ü ) e assumem a feição peixe

para ir espreitar os Juruna, buscando a oportunidade de raptar os pequenos cujos pais,

bêbados, deixam-nos ao léu na beira do rio. A saudade de namorado ou amante que se e n -


112

contram ausentes também alteram seu espírito: ele se excita ( ã w † µ ü , sic ) e se trans-

forma num homem idêntico ao que se ama, aparecendo na aldeia da mulher saudosa para

fazer amor com ela quando cai a noite. A ausência de umbigo é a pequena diferença que pode

acabar com a farsa.

À diferença de como se comportam com os Juruna, devorando e roubando mulheres,

eles temem os Txukahamãe, guardando distância quando os vêem atravessando o rio (a pé),

por causa do costume deste grupo de amarrar na cintura uma tira de casca da árvore

“bunda de pa÷¥”. A mesma casca era utilizada como droga para o tratamento do corpo por

um povo mítico, os azay, que se aventuravam sem temor nas profundezas do rio, e diante

dos quais os p a ÷ ¥ se mostravam muito submissos, ou melhor, completamente sem força.

Este povo praticava a pesca de filhotes de p a ÷ ¥ , cuja carne é carne de caça, e que se co-

zinhava sem ter de pôr água, pois já soltava sua própria água.

Sob o leito do rio se estende pois um outro mundo, semelhante ao nosso, onde e x i s -

tem os inúmeros povoados dos p a ÷ ¥ , os quais estão situados precisamente no subterrâneo

dos locais mais profundos do rio. Seria talvez mais exato dizer que se trata de numerosos

microcosmos cuja extensão coincide aproximadamente com a da aldeia: uma maloca com

seu quintal de batata doce (com a qual, aliás, se tempera o cauim), uma ou outra fruta, e

uma mata insignificante, cuja existência alguns Juruna chegam mesmo a negar. Conforme

advertiu-me Dumade, a única via de comunicação possível entre as malocas é o rio, pois as

malocas são circundadas por terra. Segundo o esquema que ele rabiscou, trata-se mais ou

menos de uma imagem especular de nosso mundo, onde a água faz o papel de atmosfera (os

peixinhos que vivem a beliscá-los são as muriçocas!), e a beira do rio faz o papel de

floresta: o barranco desmoronado é a clareira onde o pa÷¥ tem sua roça.

O tempo aí se desenvolve segundo o ritmo das estações. Com base na temperatura

das águas, os p a ÷ ¥ distinguem o “tempo de calor” e o “tempo de frio”. As águas são

quentes durante a vazante, e frias durante a cheia. Ao longo da estação fria são nômades, ao
113

longo da estação quente são sedentários. O que quer dizer que quando os Juruna praticam

mais intensamente a navegação, na vazante, tempo aqui na terra do frio enviado pelas

constelações do conjunto das Plêiades, os p a ÷ ¥ não estão perambulando, por causa da alta

temperatura do rio. Quando chega a estação das chuvas e calor, provenientes dos ventos

governados pelas constelações “Urubu” e “Cabeça de Fantasma”, os pa÷¥ dão início a suas

viagens de verão. As nossas tempestades correspondem ao seu bom tempo.


114

3. O xamã vai à caça

“Dukare! Venha nos dizer onde você viu porcos! Primeiro vá buscar a borduna.

Tire o calção, pegue um punhado de cinza e esfregue nos testículos. Então segure a borduna

e nos conte o que você viu”. E os Juruna dão grandes risadas. É assim que Mareaji i n t e r -

pela seu primo que há pouco retornou da pesca dizendo ter visto em tal lugar uma vara de

porcos (queixada). Trata-se de uma cena de “brincadeira” típica da relação entre primos

cruzados, que quer dizer, neste caso, mais ou menos o seguinte: eu o desafio a mostrar aqui

diante de todos que você é homem! O sol se põe. Os homens vão-se reunindo à porta da casa

da mãe de Mareaji, onde este toma a palavra para interrogar Dukare, que se mostra muito

envergonhado, e combinar com os outros uma caçada para o dia seguinte. Dukare é muito

jovem, casado de pouco tempo, e por isso tímido demais para assumir a organização da

caçada. Mareaji o estimula a fazê-lo e ao mesmo tempo toma a frente do grupo. A caça de

porcos é um tema que arrebata os Juruna tanto quanto o cauim, por isso em um instante j á

não posso compreender o que os caçadores falam. Todos falando ao mesmo tempo, gritos

estridentes, onomatopéias de explosões de tiros, flechas silvando, porcos batendo os den-

tes, porcos em correria. Todos têm casos para contar e mímicas para fazer. Estão, talvez,

encenando seu destemor. A caça de porcos é tida como uma empresa muito perigosa; são

muito violentos e ousam afrontar o caçador, que só consegue escapar-lhes subindo numa

árvore, como aconteceu no passado recente com um finado. Nada porém desta algazarra

quando chegar o momento de matar. Se o caçador emite um grito no instante de abater o

porco, sua alma pode abandoná-lo e ir viver com os porcos. O mesmo destino pode ter o

caçador que se atemorizar diante dos porcos medonhos, porque isso pode assustar sua alma

(a alma do caçador) que fugiria e acabaria sendo capturada pelos porcos60.

A caçada do dia seguinte, porém, foi um fracasso. “E os porcos?”, indagou-se a

Mareaji. “Dukare estava mentindo!” Não, ele não mentira, todos viram as pegadas, s i m -

plesmente já haviam abandonado o lugar. Mareaji é que ainda desfrutava de seu direito de

fazer troça do primo.

Os Juruna sonham com a oportunidade de caçar porcos no rio. Quando vêem um

bando atravessando, remam em sua direção e abatem-nos com borduna. Ocasionalmente se

60 Em todo contexto o medo é um risco de perda da alma. O momento do susto é tido como o mo-

mento da fuga.
115

tem de mergulhar para pegar os que afundaram. É preciso ao menos dois tripulantes em

cada canoa: um piloto e um matador. Não há caça mais lucrativa; rende em média de 15 a

20 cabeças, mais ou menos 500 kg de caça. O arrebatamento que os toma é tão grande que,

se porventura os homens não estiverem presentes, as mulheres não perdem a caça. A r -

madas com pedaços de pau, mãos de pilão ou bordunas, conforme vi uma vez, as mais

afoitas tomam as canoas e vão rapidamente matar os porcos, sob os gritos de forte emoção

e contentamento das mais medrosas que permaneceram na aldeia. Encontrando-se uma

porca grávida pode-se enterrar o feto na aldeia, acreditando-se que isto obriga os porcos a

visitarem o lugar com freqüência, como os próprios Juruna fazem em relação aos lugares

onde estão enterrados seus parentes.

Os Juruna amam pintar o passado como uma época de exuberância cultural. N i n -

guém, diz-se, deixava o arco guardado em casa como hoje. Para dar uma volta na aldeia,

participar de uma refeição coletiva, ouvir uma conversa, beber, visitar aldeias, enfim os

homens ostentavam arco e flecha ou borduna onde quer que fossem. A razão disso era um

hábito muito arraigado que, entretanto, os homens “perderam”.

Os Juruna possuem dois arcos, um de pesca e um de caça. Do segundo não havia um

único exemplar no período 1988-90. É comparativamente mais grosso e menos flexível

que o arco de pesca, pois a caça exige que se distenda a corda com toda energia, p r i n c i -

palmente quando se trata de atirar para o alto. Nos últimos anos não se tem praticado a

caça com arco, apenas com arma de fogo. É que não se encontra a gramínea própria para a

haste das flechas de caça61. Por longo tempo, os Juruna se abasteceram no rio Jarina62,

61 Usam-se para as flechas de caça (˚ukaya) pontas de três tipos básicos: de osso de macaco-

prego ou coatá, ou de costela de anta para a caça de mutuns e jacu; de madeira serrilhada, tida
como excelente por fixar-se na carne, para a caça de mutuns, jacu, macacos e anta; lâmina lan-
ceolada de taquara para a caça de anta, porco, caititu e macacos. Desse último tipo era também a
flecha que se utilizava na guerra e para matar jaguar. Os Juruna acusam a inexistência de ta-
quara boa para ponta de flecha em seu atual território; a que aí se encontra não possui a mesma
propriedade hemorrágica da que era conhecida no médio curso do rio; há muito tempo as pontas
lanceoladas de taquara não são, por isto, utilizadas. Nas flechas com ponta de osso para matar
pássaros, incrusta-se um apito de côco entre a haste e a vareta. Para a emplumação, não se faz
distinção entre as penas dos pássaros utilizados: toda pena se adequa bem ao papel de equilibrar a
flecha no vôo que se espera dela. As flechas de pesca (kumareha) têm pontas de ferro, que podem
ser simples, duplas ou triplas; em geral têm farpas.
62 Nas idas ao Jarina, nos confins do território, para abastecimento de flechas, os viajantes
cuidavam de trazer grande abundância, como cinco canoas grandes cheias de taquara, para dis-
tribuir entre todos os homens, e para que a provisão de cada um durasse por muito tempo.
116

mas a fonte esgotou. Comenta-se que o taquaral, localizado muito longe da aldeia, passou

muito tempo sem olhar para meninos e secou.

A formação e o desempenho de um arqueiro exigem o concurso de ritos positivos e

negativos que visam fazer do menino ou rapaz um imitaa , bom predador; quando não

cumpridos, o homem torna-se imitãü , não-predador. As mulheres representam, aqui

como alhures, o primeiro e grande tabu. Para que a flecha desferida por um homem lhe

obedeça, para que não caia antes de atingir o alvo, é preciso não haver contato de mãos

femininas com o arco; é preciso não deixar o arco, as penas e pêlos da caça, e as espinhas

da pesca serem molhados por urina feminina.

É preciso também produzir magicamente a força de pontaria do novo caçador. Em

suas incursões na floresta, meninos e rapazes usam esfregar nas articulações dos braços e

das pernas folhas de certos vegetais, com o fim de adquirir boa pontaria e isto que a e x -

prime (e torna o homem belo): músculos salientes.

No conjunto das drogas usadas com este fim, um tubérculo chamado ãnãïmã ocupa

o primeiro plano. Tido como droga utilizada por ãwã (fantasmas) da floresta em seu

próprio aperfeiçoamento no manejo do arco, o tubérculo é esmagado e esfregado nas a r t i -

culações das mãos e dos antebraços dos jovens para fazer deles bons arqueiros. A ocasião

pede que se rememore o fundamento mítico da eficácia da droga para um finado, vítima,

primeiro, do azar na caça e, depois, da crueldade dos concidadãos. Ele era um jovem que

não tinha êxito na caça, apesar de seu interesse sempre renovado de se aprofundar na

floresta na companhia de um primo cruzado. A sorte estava sempre com os outros, e ele se

via na triste necessidade de sempre ter de cortar os braços dos macacos que os concidadãos

flechavam. Uma vez em que ele saiu de canoa com um grupo de caçadores, estes cortaram os

antebraços dele, alegando que já estavam abusados de vê-lo cortar os braços de sua caça.

Enfiaram um pauzinho nos braços cortados, fincaram-nos no chão aos pés dele e disse-

ram-lhe antes de o abandonar: “Aqui estão as mãos de tua caça”. Na aldeia, guardaram

segredo de sua maldade, mentindo que o rapaz se perdera ao se afastar dos outros para

correr atrás da caça. Um ãwã apareceu ao jovem dizendo-lhe que havia remédio para sua

infelicidade. Arrancou batatas de ãnãïmã para enfiar nos braços cortados, devolveu-os ao

seu lugar no corpo e assoprou. A operação ficou perfeita. O ãwã conduziu o rapaz até o alto

de um morro e o estimulou a treinar a pontaria. O jovem com efeito matou inúmeros m a -

cacos coatá. Moqueou-os. O ãwã aconselhou-o a retornar à aldeia para que os concidadãos

aprendessem algo ao ver a força de seus braços e desfrutar de sua caça. Ademais, exigindo

total segredo, deu-lhe de presente uma pequena flecha de ponta rombuda, para atirar em
117

passarinhos. “Como ele conseguiu voltar? Como conseguiu matar tantos macacos?”, i n -

dagaram-se. Ele ouviu e ironizou: “Sou eu que venho chegando, venho carregado de caça de

gavião!” O finado se tornou um caçador aplicado e generoso. A flecha de ãwã , ele não tinha

senão de armá-la com o arco na posição de tiro e mirar o alvo; a caça caía ao chão, morta.

Contudo o primo tanto lhe pediu que contasse a razão de seu êxito como caçador, que acabou

revelando o segredo. Rogou ainda que desferisse a flecha. “Não. Você quer jogar a flecha

fora?” E foi isto que sucedeu. O primo mirou a caça e atirou a flecha, e o ãwã pegou-a.

“Não lhe darei de novo. Seus parentes lhe cortaram as mãos e você ainda lhes conta o s e -

gredo de minha flecha? Você já sabe caçar; você é um predador”. E o finado lamentou a

perda e ficou zangado com o primo. Junto com esta fábula, os Juruna usam o ãnãïmã para

sobre-dotar a força dos filhos.

A produção simbólica do arqueiro não é tudo. Também as flechas de caça devem ser

sobre-dotadas do poder de causar dor. “Sem isto a flecha não mata nada!”: a ponta é posta a

receber o calor da fumaça de uma lacraia queimada no fogo de cozinha; enquanto isto o dono

da flecha assopra. Com a mesma finalidade, cravavam-se flechas novas de ponta de taquara

em arraias; e, outrora, ter-se-ia usado o costume de esfregar-se cinza de cobra na ponta

das flechas, costume tomado de uma população fantástica de anões (ïpï day) que, por meio

dele, era capaz de combater os Txukahamãe sempre com sucesso.

A fumaça de lacraia também é suposta tornar “dolorosas” as mãos da mulher.

Pondo-as sobre a fumaça, ela assopra e diz: “Minhas mãos hão de ser dolorosas!”, e n -

tendendo-se com isto menos que as mãos se tornarão capazes de matar algo ou alguém do

que de dar vida a um ser — o cauim — suficientemente “doloroso” ou “ardente” para

“matar” os homens. “Você”, diz um homem a uma mulher que está processando a bebida,

“vai me matar”, fazendo-a rir de satisfação.

O arqueiro conhece também magias para atrair presas. O pescador usaria as flores

brancas de uma planta aquática chamada “droga de wawañã” para esfregar a corda do arco

de pesca e para fazer um diadema de usar no rio. Essa droga atrai peixes em cardume,

pululando quase à flor da água, sem temor da flecha. O usuário deve ao mesmo tempo abs-

ter-se de sexo, pois a droga age sobre as mulheres também, fazendo-as perder o medo dos

homens, ou do sexo — ficam “doidas”, para falar o português dos Juruna. É que wawañã é

uma população de mulheres-peixe nascidas de uma mulher ávida por sexo, cujo marido —

o magnífico xamã Waisa — a transformou (e também ao amante dela) em ser aquático.


118


A caça de porcos apresenta um simbolismo a mais: os Juruna situam-na no campo

de ação do xamã. Quem estiver com desejo de comer desta caça pode, diz-se, pedir ao xamã

para atrair porcos. Os porcos vivem em comunidades divididas em famílias e organizadas

em torno de um chefe dotado de poder xamânico. Possuem aldeias subterrâneas e são p r o -

dutores de cauim, o qual, na perspectiva humana, nada mais é que uma argila finíssima,

conforme me contou uma mulher que sonhou com uma aldeia de porcos em cujo porto ela e

eu tomávamos banho, até que descobrimos que estávamos atoladas numa lama da qual os

porcos diziam ser, justamente, sua mandioca puba.

O porco-xamã (hu∂a izia ) se diferencia dos demais por carecer de pêlos no t r a -

seiro, e por ter pêlos avermelhados na cara. Representa um dos espíritos auxiliares

( i ÷ u ÷ i a ) que o xamã pode adquirir na iniciação. Em sonho, o xamã vê esse porco se

tranformar num homem, e busca fazer amizade com ele oferecendo-lhe o cigarro para

fumar. Após sentir que a relação de amizade está firme, o xamã lhe diz que os homens de

seu grupo pretendem fazer uma caçada; e o porco-xamã combina com ele o local e o dia da

travessia. Os caçadores vão à caça.

É preciso deixar sobreviver o auxiliar do xamã, e isto vale inclusive para as c a -

çadas que não são possibilitadas por xamanismo. Ninguém se preocupa em identificar a n -

tecipadamente o tal; o porco-xamã sabe se libertar dos caçadores, atingindo a margem à

frente da vara ou nadando com ligeireza rio abaixo. Em todo caso, o tal é o que seguiu vivo

adiante. Se o acompanham mais um ou dois, os caçadores também os deixam escapar: são a

esposa e/ou o filho do porco-xamã. No caso de alguém o matar sem querer, jogam-no r i o ,

pois a carne tem sabor de tabaco queimado, em função do hábito de fumar o cigarro do

xamã. Além disso, se alguém o matasse, ele poderia levar consigo a alma do xamã Juruna,

que conseqüentemente adoeceria e morreria.

A morte de um porco-xamã traz-lhe um destino singular. Sua alma vai viver com

os ֕֋nay, as almas dos mortos Juruna, de cuja vida participa como um semelhante. Em

contrapartida um caçador que morresse na caça se tornaria um porco.


119

Dizem os mitos que houve um tempo em que xamãs se especializavam no xama-

nismo de caça, consumindo um vegetal conhecido como “droga do porco”63. Desejando-se

comer a caça, dizia-se ao xamã: “Vá chamar os porcos!” Ele usava para isto um apito de

coco, réplica do apito que os porcos fabricam e definem como sua “flauta”. Os porcos

ouviam a música e diziam-se: “Eles vão dar uma festa! vamos! vamos!” Todos muito

alegres pela oportunidade de dançar e beber com os Juruna. Demoravam de um a três dias

para chegar, conforme a distância em que se encontravam. Qunado desembocavam no r i o ,

atravessavam em direção aos Juruna, passando por entre as casas (situadas numa ilha), e

de novo entravam nas águas. “Neste momento, vocês vão e matam, dizia o xamã. Era

excelente!”.

Havia um xamã que recebia na aldeia, durante a vigília, a visita de um porco-

xamã, com quem ele fumava, bebia cauim e dançava. O visitante chegava acompanhado de

todo o seu bando, e, é claro, somente o xamã era capaz vê-los. Quando lhe pediam para

trazer porcos, ele convidava o porco-xamã para tomar cauim e acertar a caçada. Ao entrar

em êxtase, o interessado na caça reapresentava-lhe o pedido: “Traga porcos para mim!

Amanse-os para mim!” “Está bem!”, consentia o xamã. Numa destas ocasiões, que exigem

respeito e comedimento no uso da linguagem como condição do apaziguamento dos porcos,

um homem apelidado Cabeça-de-martim-pescador descontrolou-se e disse: “Minha presa

vai puxar meus testículos pendentes!” Enquanto todos os companheiros sensatos exclama-

vam: “Minha presa estará mansa!” Lembraram a Cabeça-de-martim-pescador que era

preciso tomar cuidado, que não se brinca com a linguagem nestas ocasiões. No dia seguinte,

aconselharam-no a não ir para não ser visto pelos porcos, porém ele era intrépido e não

deu ouvido. Ao fim da caçada, os companheiros notaram sua ausência. Encontraram-no

semimorto, com os testículos arrancados e o corpo perfurado pelos dentes dos porcos e n -

furecidos. Mal teve força para contar-lhes como foi atacado. Sua alma partiu com os

porcos sobreviventes em direção ao rio “Amazonas”. Ao longo da viagem diversos bandos

de porcos se juntaram a eles, e Cabeça-de-martim-pescador se mostrou um companheiro

63 Os porcos comem esse vegetal; donde também se diz que ele tem a propriedade de atraí-los. O

vegetal cresce na região dos rochedos, em cujo interior habitam os mortos ÷ï÷ãnay . Esta região
é por conseguinte reputada rica em porcos. Os mortos são os verdadeiros “donos” da droga.
120

muito agradável, divertindo-os o tempo todo. Isto o xamã viu durante o sonho, e assim,

conta-se, ele narrou:

Eles foram dando gargalhadas.


Os porcos são como os humanos,
Eles lhe pediram:
“Diga-nos os nomes das coisas!”
“O que é isto?”
“É isto.”
Eles encontraram o mel-vagina.
“Que mel é este?”
“É o mel-vagina.”
Eles encontraram o mel-andorinha.
“Que mel é este?”
“Este é o mel-pênis.”
E os porcos gargalhavam.
“Ah, quer dizer que é melífero?”
“O pênis é melífero!”
E os porcos riam, ha÷ ha÷ ha÷.
E ele partiu com os porcos dando
gargalhadas.
Indagaram-lhe os nomes dos animais, dos
méis...
Ele recitou,
Eles davam gargalhadas,
“Ah, quer dizer que é melífero?”
Assim, quando o xamã está sonhando com
porco,
Ou quando está embriagado,
Nós dizemos: “Não digam bobagens!”
121

Finalmente, os porcos elegeram Cabeça-de-martim-pescador como seu chefe. Frente aos

Juruna, o infeliz atua como “intérprete dos porcos” (huda ëkia ) 64, e, enquanto tal, pode

colaborar na caça. Ouvindo um caçador gritar seu nome, conduz o bando para fazer a t r a -

vessia nas proximidades da aldeia.

Resumindo, os porcos vêem a si mesmos como parte da humanidade e a caça é um

confronto onde tentam capturar estrangeiros. As brincadeiras ditas por um caçador em

intenção dos porcos possibilitam a concretização do ponto de vista e do desejo destes ú l -

timos. Na ordem da realidade dos homens, os porcos atacam e matam o caçador, aconte-

cimento que aos porcos parece uma simples captura. O infeliz se torna um parceiro dos

porcos. Alimenta-se de cocos e minhocas; participa de suas danças e bebe seu cauim. Com o

passar do tempo vai assumindo o aspecto do animal, embora seja muito improvável que

consiga se adaptar completamente ao meio. Vive se submetendo ao sopro do porco-xamã na

esperança de se curar dos ferimentos que adquire na mata e que infeccionam com a sujeira.

Por fim é transformado em chefe (hu∂a jua).

Por tudo isso, e por dotar os porcos de sensibilidade para rir com as metáforas dos

outros, o mito65 aproxima a relação entre os homens e os porcos da relação entre grupos

de homens que falam línguas distintas (como o narrador mesmo adverte) e também da

relação de brincadeira que caracteriza tanto a conduta de primos cruzados (cunhados

virtuais) quanto aquela de estrangeiros que se tornam “amigos”. É justo porque é possível

haver uma tal relação de afinidade com os porcos que o cuidado com a linguagem é neces-

sário na caça, com a finalidade de inibir a atualização desta relação66.

64 Para explicar-me o sentido da palavra ëkia Wereade me disse que eu mesma representava um

tipo de Cabeça-de-martim-pescador; os Brancos me intitulariam yuruna ëkia ao poderem contar


comigo como tradutora da língua dos Juruna.
65 O narrador parece sugerir que “mel-pênis” é o nome recitado para o “mel-andorinha”. Não
se trata disso: dois tipos de abelha diferentes os produzem. A propósito, numa lista de 24 nomes
de mel, predomina a associação de particularidades da abelha com particularidades de animais.
Por exemplo, o “mel-jacu” é produzido por uma abelha cuja cabeça é dita lembrar a do jacu; o
“mel-saúva” é produzido por uma abelha que tem cheiro de saúva. Há casos anômalos do tipo: o
“mel-coatá” é produzido por uma abelha que se identifica como “aquela cujas patas são iguais às
do maribondo”. Às vezes, o nome é construído por associação com o orifício da colméia; é este o
caso do “mel-vagina”, produzido por abelhas de distintas espécies.
66 É verdade que o risco do abuso de linguagem transcende o domínio da caça de porcos e assume

o caráter de regra geral da caça. Isto sucedeu a um finado que, de tão exaltado um fim de tarde
em que se combinava uma caçada de anta, exclamou para os companheiros: “Pois eu vou enfiar
meu braço no cu da anta e vou arrancar o coração dela!” No dia seguinte, foi o que ele tentou; po-
rém, mal sua mão atravessou o ânus do animal, este contraiu o esfincter e saiu em disparada a r -
122

De tudo isso os Juruna concluem que “os porcos se parecem com os mortos”. De

fato, ambos vivem em aldeias subterrâneas, alegram-se com a possibilidade de tomar

cauim com os Juruna, tentam capturá-los, são chefiados por alguém de outra categoria,

um morto pode ir viver com os porcos e um porco pode ir viver com os mortos. Para

culminar, assim como os mortos eram convidados até recentemente para beber cauim, há o

fato de que os porcos seriam convidados outrora para beber na aldeia, com os Juruna — a

diferença sendo que não se tem de reprimir o riso quando os convidados são os mortos. Eu

acrescentaria que, no quadro do xamanismo e do ponto de vista dos porcos, os Juruna r e -

presentam espíritos. Isto porque a observação particular segundo a qual o xamã dá ao

porco-xamã o seu cigarro para ele fumar, que antes mencionei, tem uma significação

precisa: o homem age como espírito auxiliar do porco, e, enquanto tal, inicia-o no xama-

nismo, da mesma forma que a iniciação no xamanismo dos mortos depende de se receber

destes o cigarro para fumar. Ou seja, os ÷ ï ÷ ã n a y estão para os Juruna assim como os

Juruna estão para os porcos.

rastando-o floresta a dentro. O infeliz estava quase completamente mudado em anta quando o r e -
encontraram, em uma caçada ocorrida algum tempo depois. Os caçadores flecharam um casal de
antas. Antes de morrer, o macho lhes disse quem ele era. Os Juruna deixaram-no apodrecer na
floresta e comeram a fêmea em cujo ventre encontraram um feto humano.
123

4. Um gavião chamado pacu

A um gavião que pratica a pesca os Juruna dão o nome do peixe pacu ( p a k u ÷ ¥ ) .

Numa tarde do início do inverno de 1988, o gavião surgiu sobrevoando a pouca altura o

rio, defronte à aldeia. Wereade o viu, tomou a espingarda, o gavião se assustou. Para sua

alegria, redescobriu mais tarde a ave pousada no alto de uma árvore, no fundo da aldeia.

Wereade chamou um companheiro e os dois foram se esgueirando por um caminho cheio de

mato com temor de que o gavião fugisse de novo. Ele derrubou o gavião com um tiro. A ave

foi deixada jazer na beira de uma roça velha, não sem antes os dois arrancarem algumas

penas. No dia seguinte, Wereade voltou ao local para preparar o que chamou de “roça do

pacu”. Cortou todo o mato ao redor do corpo do gavião, abrindo uma pequena clareira.

Passados alguns dias, lá voltou para fazer a queimada da roça. Agora ele esperava brotarem

“drogas” de vários tipos na terra fertilizada pelo gavião.

O gavião pacu é reputado possuir as drogas. “Quando paira acima d’água, ele não

agita a droga do peixe e os atrai?”, interroga-me Wereade. É muito ciumento de suas

drogas, esquiva-se de toda pessoa que avista, voando para muito longe para não ser i n -

terpelado por ninguém que queira tomar seus poderes. Muitas destas drogas são úteis e

muitas são nocivas, e os Juruna não sabem de antemão para que serve cada uma, pois as

distintas plantas que crescem em tal roça são desconhecidas. As plantas estando grandes, é

hora de experimentar. Arrancam-se algumas folhas do pé de uma das espécies para levar

consigo à pesca e ver o que acontece. Um cardume do peixe da espécie correspondente à

droga será atraído, o pescador poderá matar tanto quanto desejar, pois os peixes não terão

nenhum temor; o dono da roça cuida então de transplantar uma muda da planta para um

outro lugar, separando-a do conjunto confuso e ainda desconhecido. Mas é possível que a

droga atraia apenas seres indesejáveis, desde peixes que não se comem até cardumes de

pa÷¥ e sucuris; cuida-se então de destruí-la. Amostras que não apresentam nenhum r e -
sultado no rio são levadas para a floresta e vão sendo pouco a pouco distinguidas e sele-

cionadas do mesmo modo: conservam-se as que atraem animais de caça, destróem-se as que

atraem o jaguar em multidão, ou cobras de todo tipo. Assim Wereade teria preparado um

jardim para si, o qual teria o cuidado de regar regularmente durante a estação seca (pois

estas plantas não sobreviveriam à falta de chuva), e onde colheria, conforme seu desejo,

folhas chamativas de tracajá, caititu, paca, macacos, anta, trairão, matrinxã, mutum,

jacu, e pacu.
124

No meio de todas estas plantas nasce uma cuja ação mágica não é descoberta nem no

rio nem na floresta. Chegando à aldeia com algumas folhas o Juruna atrai mulheres ao seu

redor e constata, assim, ser ela a droga chamada mariaku . No caso de ser um bom com-

panheiro, ele não desejará preservá-la; no caso de não o ser, plantará uma muda no j a r -

dim, para com isto tornar as mulheres doidas por sexo, suficientemente libidinosas a

ponto de abordar por iniciativa própria os homens. Os antigos cultivavam mariaku para

desfrutar de sua ação sobre as mulheres. “Os Juruna, antigamente, eram maus”. Usava-

se enfeitiçar as mulheres de uma aldeia vizinha, levando para lá, em dia de cauinagem, um

ramo da planta. Podia-se enfeitiçar simplesmente a mulher que se amava, mas que era

difícil de “amansar”. Perguntei uma vez a um Juruna que interesse pode ter um homem

em endoidar uma mulher que ele ama se ela própria passará a querer todos os homens. Há

um modo de evitar este transtorno, disse-me ele. A partir do momento em que arrancar as

folhas, deve abaixar o olhar e seguir em frente ao encontro da moça; se de fato não deitar

os olhos sobre outros caminhos que o que pisa, ela não desejará senão a ele.

Wereade anunciou-me que destruiria imediatamente a droga das mulheres, por ser

ela a única que se sabe identificar sem ter de fazer experências: sua folha é idêntica à folha

de uma árvore chamada “granizo”.

Visitei algumas vezes a roça do pacu, até que Wereade abriu mão de me convidar,

proclamou que as plantas não brotaram, e o mato ordinário invadiu a pequena clareira.

Era a primeira vez que ouvia falar do gavião e seu mito, mas conhecia desde muito o mito

de origem das plantas cultivadas, no qual me parecia que a performance de Wereade se

inspirava. Os dois mitos são tão parecidos em alguns aspectos que sou levada a suspeitar

um desejo Juruna de subordinar a caça ao cultivo.

As diferentes plantas cultivadas nasceram numa terra temperada com as cinzas de

um ÷ë÷ãm† serpente, chamado tüw† (jibóia, segundo os Juruna), que devorara um grupo

de caçadores, cujas mulheres, por isso, clamaram por vingança. Naquele tempo, a única

farinha dos Juruna era casca de pau seco reduzida a pó, e se praticava a caça daquela

serpente ao pé dos morros onde ela tinha o hábito de se enterrar. Além de cavar a terra

para desenterrar a caça, era preciso o concurso de dois caçadores, um para flechá-la e o

outro para golpeá-la com um machado de pedra67. Um grupo de caçadores chegou um dia

67 Os Juruna não comem nenhum tipo de cobra, e, fora desse contexto, nunca ouvi mencionarem

a caça de cobra. As versões infantis e femininas que colhi desse mito não fazem menção a esta
caça. Resumo aqui a versão de Wereade justamente por causa desse episódio, que de resto des-
125

para caçar uma serpente e, divisando um comprido morro de uns dois metros de altura

onde sabiam estar a serpente, se sentaram nela para assinalar o pedaço que caberia a cada

um. Um caçador contudo não encontrou onde se sentar — não restava nenhum pedaço para

ele. Por isso, tocou a ponta da flecha na ponta do rabo dela, como se assinalasse o miúdo

pedaço que lhe caberia, e não mais conseguiu tirar a flecha. Ele intuiu que todos estavam

colados à serpente, e de fato ninguém conseguiu se levantar. Culparam-no do fato, que foi

atribuído ao toque da ponta da flecha. E numa gritaria medonha foram carregados pela

serpente para o fundo do rio, onde então foram devorados por ela. A serpente era ÷ ë ÷ ã m † .

O caçador que não foi arrastado contou o acontecido na aldeia, onde as mulheres pediram

vingança e pediram ao xamã que sonhasse para descobrir a serpente. Seis dias se passa-

ram, e o xamã viu a esposa da serpente sair da toca e entrar no rio e, logo em seguida, o

marido assassino emergir e entrar na toca cujo espaço ocupou completamente. O xamã

chamou a mulher que lhe pediu o sonho para mostrar-lhe onde estava quem comeu o m a -

rido dela, e, recomendou-lhe derrubar a mata em torno para queimar a serpente68. Ainda

segundo as ordens do xamã, após a derrubada era preciso esperar passarem três meses e

então, após uma pancada de chuva, os caçadores deveriam sair à caça de jabutis para os

quais construiriam uma “casa” e que seriam comidos posteriormente; e, seis dias mais

tarde, deveriam atear fogo em diversos pontos da clareira para impossibilitar a fuga da

serpente. Assim foi feito. Até os ossos viraram cinzas. Começou a chover sem parar, e os

Juruna ficavam imaginando que nunca mais ia parar de chover. Quatro meses mais tarde a

chuva passou. (Tenho dúvidas quanto ao personagem principal do episódio que se segue; é

definido ora como “o finado”, ora como o “o dono da roça — aquele que a encomendou aos

outros”; embora o mais provável é que seja o xamã, pode ser também a mulher a quem ele

se dirigiu para mostrar a serpente, ainda mais que o desfecho presta-se bem a um papel

feminino). Assim o dono foi averiguar. Plantas diversas (melancia, mamão, cana-de-

açúcar, abóbora, pimenta, banana, cuia, batata, inhame, milho, mandioca, tabaco) haviam

nascido e dado frutos, mas o dono nada sabia do bom uso das comidas. Arrancou uma m e -

lancia e pôs para assar, a fruta explodiu e ele correu assustado. Arrancou uma abóbora e

comeu um pedaço, e ficou com a língua coçando. Assou uma cuia e provou, amargava muito.

Até que avistou o passarinho wi˚i˚i, de bico alvo, comendo a fruta de uma planta da roça, e

creve uma caça que reúne elementos do cultivo: machado de pedra e o ato de cavar para desen-
terrar.
68 A versão de Kadu esclarece que o xamã supôs que se as árvores queimam, a serpente quei-

maria também.
126

disse que se o passarinho fosse gente lhe revelaria o nome do que estava comendo. O pas-

sarinho se transformou em Juruna e lhe revelou o nome das plantas, distinguindo o que

era comestível do que não era (caso da cuia), o que era para se comer cru e o que deveria

ser cozido, e como deveria ser cozido: assado em cinzas quentes, ou cozido e depois d i s -

solvido em água para ser bebido; pubado e torrado para acompanhar carne ou pubado e

cozido e depois dissolvido em água para ser bebido (o cauim); secado ao sol e depois e n -

rolado em palha de milho para ser fumado. Ao fim o passarinho foi embora69 e o dono

contou para as pessoas que tinha visto um fantasma ( ãwã ), um ogro ( kãnëãna ), que lhe

revelara a natureza das comidas e convidou-as para ir à roça.


A aldeia Juruna apresenta três níveis básicos de organização, a família nuclear, a

casa e a aldeia, que se traduzem em um código culinário de regras mais ou menos bem de-

finidas. Numa afirmativa muito simples, creio que Nimuendaju disse tudo: “Eles comiam

juntos” (1948: 226). De fato, para os Juruna, viver em sociedade é antes de tudo, comer

junto, sendo que comer também significa beber cerveja de mandioca. Invocam que os

Txukahamãe tanto são um povo da floresta que, além de beberem apenas água, comem cada

um por si, a qualquer hora do dia e da noite, carne sanguinolenta, e, o que é mais exótico,

marido e mulher não fazem as refeições juntos, ele come primeiro, e ela come depois com

as crianças os restos dele — se sobrar.

Noutro lugar, estudei de forma mais ou menos detalhada o código culinário que

evoco acima, e aqui me restrinjo a fornecer um breve resumo. À diferença de outros

grupos que comem juntos, como os Piaroa (Overing s/d) ou os Cubeo (Goldman 1979), os

Juruna não entregam a caça ao chefe ou xamã da aldeia, para que então ela seja preparada

e consumida pelo conjunto dos concidadãos. Embora conheçam este método, ele é i n t e i -

ramente dependente da culinária religiosa, só sendo aplicado quando se trata de um ban-

quete destinado às almas dos mortos e aos ÷ ï ÷ ã m † celestes. Na vida cotidiana, as formas

culinárias grelhado, moqueado e cozido exprimem a natureza do grupo ao qual o alimento se

destina, respectivamente a família nuclear, a casa e a aldeia, exceto que a pesca mais rica

69 A versão de Kadu inclui o ensinamento do plantio, onde se distinguem sementes, ramas e mu-

das.
127

enseja refeições coletivas de peixe moqueado. Exceto também que após a mudança dos

moradores de Saúva para Tubatuba, a distribuição do cozido ficou quase restrita a ocasiões

de pesca farta e à pesca de trairão. Com o crescimento demográfico da aldeia,

formaram-se também dois blocos de casas que se reuniam freqüentemente para comer, e

os moradores da casa do chefe, casualmente situada entre os dois blocos, participavam de

refeições em ambos os blocos. Em contrapartida, a chegada dos moradores de Saúva ensejou

também a abertura de uma roça coletiva — o que os Juruna jamais (segundo me foi

afirmado) tinham feito senão, ocasionalmente, para plantar mandioca para o cauim dos

mortos.

As roças são individuais (ou melhor, pertencem ao casal), a pesca é individual, a

caça geralmente também é individual, contudo a alimentação é um assunto que envolve o

grupo aldeão, em maior ou menor grau. Ao casar-se o homem se torna fornecedor de peixe,

caça e cauim ao conjunto dos concidadãos. É verdade que a pesca dos meninos no começo da

puberdade é demasiado importante na alimentação da aldeia, entretanto eles não dão a r e -

feição em nome próprio, cabendo ao pai fazê-lo. Passam então a ter o seu nome gritado nos

convites para beber e comer, mas eles próprios só passarão a convidar para refeições

coletivas quando se tornarem donos de roça.

Espera-se que o genro preste serviços ao sogro, e assim a realização de um c a -

samento se traduz como mudança do rapaz para a casa dos sogros. Se a moça é orfã de pai e

mãe, o noivo a atrai para sua casa. Ao casar-se o homem faz sua primeira roça (isto

quando o seu pai não é morto, porque neste caso ele assume seu lugar abrindo uma roça

para a mãe). Esta roça é geralmente contígua à do sogro, o que permite ao recém-casado

trabalhar na derrubada tanto da área onde ele próprio vai plantar, quanto naquela do sogro.

As roças são tanto maiores quanto mais velhos são os donos, porque as obrigações sociais

de um homem crescem à medida que ele vai envelhecendo. Ao mesmo tempo em que adquirir

um sogro é contrair uma certa dívida com ele, adquirir um genro é como contrair uma

dívida com o conjunto dos concidadãos, a qual se exprime por meio de grandes dons de b e -

bidas fermentadas, milho verde, melancia e abóbora.

Enquanto reside na casa do sogro, o homem auxilia-o na reconstrução da casa.

Quando seus filhos somam três ou quatro ele constrói sua própria casa e a mudança é m o -

tivo de alegria para ele, a mulher e os filhos. Sua ligação com a casa do sogro entretanto

permanece por muito tempo, traduzindo-se em refeições em que a esposa leva a comida

para a casa dos pais. Além disso esta mudança não quer dizer que nunca mais ele residirá
128

com o sogro. Pelo contrário. A destruição da casa pelas chuvas responde por uma grande

fluidez na composição da aldeia.

A subordinação do genro ao sogro é com efeito um fenômeno de cunho simbólico e

político mais do que econômico. A rigor, o genro não trabalha para o sogro, mas com ele. E

não está excluído que em certa medida o sogro trabalhe para o genro; isto ocorre várias

vezes na vida de um homem: a doença de um filho por ocasião do período de abrir a clareira

da roça pode exigir um resguardo que o impede de fazer roça; nesse caso, ele passa o ano

consumindo os produtos da roça do sogro. Adquirir uma esposa engaja o homem na economia

da aldeia, mais do que na economia da casa do sogro. Por outro lado, adquirir um genro

alarga as responsabilidades do homem com a aldeia.

A comunidade formada pela aldeia não se exprime apenas como comer junto, mas

também e principalmente pela casa do cauim. Onde quer que a casa do cauim seja cons-

truída ela é o centro da vida social, pelo fato simples de que a regra básica da sociabilidade

é a de que toda atividade que implique a participação do grupo local como um todo deve

passar por uma cauinagem. Por outro lado, atividades que poderiam ser realizadas no

âmbito do grupo doméstico são transformadas através de cauim em empreendimento de toda

a aldeia. O chefe da aldeia tem muito pouco a fazer enquanto chefe no desenrolar da vida

comunitária. Em contrapartida nenhuma atividade coletiva chegaria a desenrolar-se caso

não surgisse um chefe especial para a ocasião. O chefe nesta circunstância é o homem que

toma a iniciativa usando um cauim para atrair os outros, sendo que qualquer indivíduo

casado e dono de roça tem pleno direito de se tornar chefe. Parece com efeito uma premissa

fundamental a de que quando dois ou mais indivíduos se juntam para fazer alguma coisa,

um deve responsabilizar-se pelo desenrolar da ação, e também “tomar conta dos outros”.

No caso do chefe da aldeia cabe-lhe “proteger” os Juruna dos Índios e dos Brancos, r e -

cebendo-os quando vão à aldeia e comparecendo às reuniões direta ou indiretamente r e -

lacionadas à Funai. No caso do chefe de uma atividade, cabe-lhe dirigir o trabalho, ir na

frente preparando o terreno para os outros, e também, enquanto dono do cauim, cabe-lhe

não beber para que o grupo o faça despreocupadamente, confiando que os perigos que podem

irromper do exterior, ou no seio do próprio grupo por excesso de embriaguez, serão

contornados por ele. O exercício desta chefia consiste no seguinte. Primeiro o homem pede

à esposa que prepare o cauim; quando a bebida está pronta, ele comunica aos outros que há

cauim e que está com vontade de fazer tal atividade no dia seguinte, em tal lugar. De modo

algum um Juruna diria ao outro: venha comigo, vamos fazer isto ou aquilo. Diz-se s i m -

plesmente: eu vou fazer isso ou aquilo, como puxar minha canoa, limpar minha roça,
129

cortar madeira para fazer minha casa, caçar, bater timbó, cortar palmas para fazer o teto

de minha casa, e assim por diante70. No momento de partir, despede-se de cada compa-

nheiro, e, conforme a conveniência, saem todos juntos ou se encontram mais tarde no local

combinado. O trabalho é efetuado durante a fermentação da bebida. Este fato qualifica o

tempo de trabalho como tempo de espera do cauim, e nesta espera a circunstância se torna

lúdica com as pessoas se divertindo com o fato de que daqui a pouco estarão bebendo para

valer.

Com efeito, faz-se cauim para todo trabalho que não se pode fazer sozinho (ou que

desperta o interesse coletivo, como a pesca com timbó e a caçada), mas que poderia muito

bem ser realizado no âmbito do grupo doméstico. Em lugar de tomar o grupo doméstico

como unidade autônoma, os Juruna preferem comprometer toda a aldeia na tarefa de t r a -

balhar para um homem. Ao mesmo tempo, todo homem é comprometido com a alimentação

da aldeia, dando freqüentemente refeições coletivas ou distribuindo por intermédio da

esposa carne ou peixe cozidos entre todas as famílias nucleares71.

O trabalho coletivo não responde entretanto pela freqüência quase vertiginosa com

que os Juruna bebem, mesmo porque os trabalhos coletivos não são freqüentes. Também se

faz cauim sem outro motivo que o de se viver em sociedade. Dou o calendário de um mês da

estação seca, em 1990, que é bem representativo do que ocorre normalmente.

10 de junho: cauinagem noturna.


12 de junho: cauinagem diurna.
19 de junho: cauinagem diurna que segue até por volta da meia-noite.
22 de junho: cauim durante o dia
24 de junho: cauim durante o dia
27 de junho: cauim durante o dia
30 de junho: cauinagem o dia inteiro e a noite inteira.
01 de julho: a cauinagem prossegue até o fim da tarde, e todas as mulheres vão bêbadas
à roça coletiva colher mandioca para fazer “o substituto” (mais cauim).

70 Também se convida o grupo para ir à roça colher milho ou mandioca. Nesse caso, o dono não dá

o cauim da colheita, mas o próprio milho ou mandioca, possibilitando a todos se tornarem donos
de um cauim feito com o produto da roça dele.
71 A prática das refeições coletivas e distribuição de alimentos preparados não apresenta de

modo algum um caráter meramente celebratório da reciprocidade, como nos pareceria caso a
circunstância fosse a de dar um pouco de comida a cada um e receber dos outros também uma
porção. Não é assim. Geralmente a maioria das pessoas só dispõe dos alimentos recebidos. A
prática realmente define a dieta dos Juruna, permitindo que a pesca não seja uma atividade coti-
diana do ponto de vista individual.
130

06 de julho: cauinagem diurna que se interrompe por volta da meia-noite; o dono do


cauim e os homens jovens fazem vigília (o cauim não pode ficar só).
07 de julho: a cauinagem prossegue até o começo da tarde72.

Uma vez, com a hipótese de que no passado os Juruna não deveriam beber tanto

quanto atualmente, já que o tempo que se dedicava ao trabalho devia ser consideravelmente

mais significativo, levei a questão a Kadu. Ele discorreu longamente sobre os duros ofícios

no tempo em que não se tinha machado de aço e facão, sobre a pouca durabilidade da c e -

râmica e das pontas de osso usadas nas flechas de pesca, mas foi enfático ao afirmar que

hoje se bebe tanto quanto no passado, quer dizer, a cada dez dias. Argumentei que em dez

dias, conforme eu presenciava, havia geralmente umas três cauinagens, e ele, depois de

refletir um momento, negou que fosse assim, reafirmando que hoje ainda só se faz cauim a

cada dez dias. A observação desmente a avaliação de Kadu e me pareceu que só lhe parecia

importante tomar o ponto de vista individual, enquanto para mim o que importava era a

resultante geral e não o fato de que cada homem deve dar um cauim a cada dez dias. Como

não existe necessariamente um acordo prévio do grupo para se fazer cauim simultanea-

mente, resulta que há duas, três, por vezes mesmo mais de três cauinagens por semana,

embora também seja verdade que de vez em quando se passa uma semana inteira sem b e -

ber.


Desde que os Juruna começaram a se esquivar da iniciação xamânica, e a não mais

celebrar os festivais dos mortos e dos ÷ ë ÷ ã m ¥ , a agricultura é um dos dois únicos temas

aos quais dedicam festas. O outro são as clarinetas, das quais falaremos na próxima seção.

Existem cantos nocivos ao crescimento das plantas e existem os cantos benéficos. Os

primeiros são cantos de fantasmas femininos que habitam a floresta, e, segundo conta um

mito, uma delas apareceu um dia a uma mulher que trabalhava na roça, dizendo-lhe:

“prima, vamos dançar!”. As duas se encontraram para cantar e dançar durante dias e dias

até que foram descobertas e a mulher fantasma foi morta e virou um veado. Quando chegou

o tempo de arrancar a mandioca, as raízes estavam mirradinhas. O mesmo prejuízo se

teria, caso uma mulher enfiasse na cabeça o cesto de carregar mandioca. Com a finalidade

72 Distingo cauim e cauinagem para marcar que a cauinagem é uma ocasião mais festiva; quando

o cauim não é farto, ele não interrompe de forma completa as atividades de trabalho, que ficam
assim a meio caminho entre o cotidiano e a festa. Veremos isso no capítulo VI.
131

de garantir o bom crescimento das plantas, os Juruna se proíbem de coletar frutos s i l -

vestres durante o plantio, e de tocar o caule de qualquer das plantas com a ponta de uma

flecha para não matá-las. E fazem o koataha-de ab¥a , como chamam o festival dos cantos

benéficos à agricultura, ensinados por uma mulher celeste, no tempo em que o céu era

baixo.

Os habitantes originais do céu são o povo a∂apa, cujo principal, designado pelo

mesmo termo, os Juruna crêem ser aquele a quem chamamos de Jesus ou Deus. Comparado

aos magníficos xamãs Seµã÷ã, Kumãhari e Waisa, que vivem no céu mas são todos

oriundos da terra, A∂apa é uma figura menor, não obstante seja um magnífico xamã, ou

u m ÷ ë ÷ ã m † , dotado de onisciência. Não é representado como canibal. Sua importância na

vida religiosa é nula, exceto que dele, ou melhor, de uma de suas filhas, vêm os cantos que

propiciam o crescimento das plantas cultivadas. Afora isso, ele tem uma presença indireta

constante na vida dos Juruna, na medida em que se define o orvalho como derivação das

gotas d’água que escorrem de seu cabelo, pois ele, depois do banho, à tardinha, se deita e

puxa a longa cabeleira para fora da rede, para secar. A água se transforma em orvalho na

descida e vem impregnar os cabelos dos Juruna, de manhã cedo, e nisso se pega dor de

cabeça e por vezes febre. Esta figura divina mitológica é personagem de uma narrativa

cosmogônica que passa, até certo ponto, ao largo de Seµã÷ã e problematiza a afinidade

entre os humanos e os celestes. Com efeito, se Seµã÷ã é representado como Avô, A∂apa é

representado como Sogro. Os cantos das plantas cultivadas são o signo do que restou desta

afinidade.

Houve um tempo em que o céu era baixo. A∂apa tinha uma escada móvel que ligava

seu mundo ao dos Juruna e jogou-a um dia para um homem desprezado pelas mulheres,

com a intenção de o fazer marido de uma de suas filhas. Este homem todo dia andava sem

rumo na floresta, desde que fora derrubado da rede, pisado e ridicularizado por uma moça

cujo irmão a deu a ele em “pagamento” da irmã dele, com a qual se casou. “Você é feio! Eu

não o quero, seu joelhudo!” De fato era horroroso e tinha os joelhos grandes. Foi andando à

toa na floresta, pensando que sua vida não tinha razão de ser, que ele se achou diante da

escada que levava ao céu e subiu. Lá no alto encontrou A∂apa lixando um arco e contou-lhe

sua história; acabou sendo convidado para se hospedar na casa dele. As três filhas do deus

receberam o rapaz de forma muito festiva e ousada. “Você é lindo!” Mas o “desprezado”

sabia que era feio e ficou cheio de timidez. “Venha se sentar, sente-se aí”. E tão logo ele se

sentou, uma de cada vez, as três moças se sentaram no colo dele, movimentando-se, n á -
132

degas coladas ao pênis dele, e disseram-lhe: “Possua-me”73. Ele não teve ereção. Elas

foram alegremente dizer ao pai: “Ele está bom! Ele está bom! Ele não teve ereção!” E o pai

lhes disse para levá-lo ao poço da família para tomar um banho. As moças caíram na água

com o Juruna, massagearam todo o corpo dele, demorando-se especialmente nos joelhos, e

em seguida começaram a puxar-lhe os cabelos. Ao fim, ele estava perfeito, bonito, com as

maçãs do rosto coradas, com o cabelo cheio e comprido até a cintura, com os joelhos con-

sertados. Havia-se tornado também imortal, havia-se tornado um a∂apa. A∂apa lhe deu a

filha mais moça como esposa.

Aqui na terra sua mãe chorava de tristeza, acreditando-o morto por Índio (ou

fantasma da floresta, segundo a versão), e raspara a cabeça em sinal de luto. O sogro, que

tem ciência de tudo que se passa cá embaixo, disse isso a ele e o enviou para visitar a mãe.

Aqui, quando descobriram sua transformação muitas mulheres tentaram seduzi-lo, i n u -

tilmente. E assim o Juruna visitou a mãe inúmeras vezes — o sogro jogava a escada para

ele descer ou subir. Nasceu-lhe uma filha e ele veio à terra visitar a mãe com a esposa e a

criança.

Nesse tempo, os Juruna não sabiam cantar e a mulher a∂apa lhes ensinou uma

infinidade de cantos, viajando de aldeia em aldeia para dançar com as mulheres até a m a -

drugada e ensinar-lhes os cantos74. Um dia ela foi à roça com o marido, e este pediu à mãe

para olhar a criança. Era uma menininha linda de olhos miúdos que se metamorfoseava em

filhote de periquito durante o dia. A avó resmungou muito quando achou o periquitinho em

lugar de uma menina, empurrou-a estabanadamente com a vassoura, reclamando das fezes

de passarinho no chão. “Meu filho está me enganando; disse-me que teve uma filha, quando

na verdade só tem um periquito de estimação!” Na roça, a mãe da menina teve ciência do

destrato, ficou furiosa e chamou o marido para remar rapidamente. Na aldeia, recolheu a

filhinha que lhe disse, chorando, que a avó a tinha maltrado e chamado de bicho. Nesse

instante a avó se deu conta da verdadeira natureza da neta. A mulher penetrou na floresta

com a filha, o marido saiu correndo para se juntar a elas mas foi-se defrontando com

obstáculos magicamente postos no caminho pela esposa: um cipoal, cobras, uma palmeira

coberta de espinhos. Esta última ele não conseguiu transpor e retornou para a casa da mãe

73 Esta é a versão de Wereade. Segundo a versão de uma prima dele, o próprio pai manda as f i -

lhas sentarem no colo do Juruna, e diz a ele: “Experimente-as!”, como quem diz: mostre sua
virilidade. Nesta versão, aliás, fala-se em cipó em vez de de escada.
74 Segundo um terceiro narrador, os cantos ensinados nas distintas aldeias eram distintos; desta

forma os Juruna antigos se distinguiam uns dos outros por um conjunto particular de cantos. Os
padrões de labirintos também diferenciavam grupos.
133

e brigou com ela. Dois dias depois decidiu partir ao encontro da família e subiu a escada.

Daí em diante ele descia sozinho para visitar a mãe.

Um primo seu decidiu uma vez ir com ele para se casar e morar no céu e foi i n s -

truído a não ter relação sexual na véspera da partida. Lá no alto as moças o receberam com

a mesma desinibição e ele ficou bastante excitado quando se sentaram no colo dele pedindo

sexo e copulou com elas. “Ele está ruim! Ele está ruim!” E o pai ordenou que o levassem

para tomar banho no “poço de araraúna”. Lá o Juruna foi-se transformando pouco a

pouco, conforme as moças o massageavam, em uma araraúna, cujo enorme bico, f i n a l -

mente, elas incrustaram a partir de um coco de tucumã, batendo duramente, tok tok tok.

De novo um outro primo do rapaz se decidiu a seguir o mesmo caminho. Este não

alcançou o céu, pois “estava ruim” e a escada arrebentou quando ele já estava lá no alto,

perto do céu. É que ele não deu ouvidos quando o primo lhe disse que devia abster-se de

sexo. “Você está bom?” “Eu estou bom, sim”. “Mentira! Ele tinha ido à procura de vagina

antes de dormir!” O Juruna que se tornou a∂apa não pôde voltar nunca mais para ver a

mãe depois que a escada de ligação com o céu foi destruída.

É assim que os Juruna interpretam este mito: A∂apa pretendia estabelecer o co-

mércio de mulheres entre o céu e a terra, fazendo dos Juruna aliados um povo de imortais.

Mas este comércio só tinha chance de se desenvolver caso os Juruna demonstrassem con-

tinência sexual... A∂apa fez com que a escada arrebentasse para interromper a comuni-

cação com os Juruna. Mais tarde, Seµã÷ã distanciou o céu para as alturas que mais n e -

nhuma escada permite transpor.

O festival das plantas cultivadas obedece a um ritmo temporal que é geral a todos os

festivais, profanos ou religiosos. Os festivais duram aproximadamente um mês, com

cantos ou música instrumental executados a partir do cair da tarde, e com tempos de e n -

saios e tempos fortes; dos ensaios participam apenas um dos sexos, de acordo com o caráter

predominantemente masculino ou feminino da música. Os tempos fortes contam com a

presença de ambos os sexos e com uma cauinagem. Existe, em grau maior ou menor, uma

certa ordem das peças cantadas ou tocadas. O que se busca é executar cada dia um número

maior de peças, até que se amanheça o dia. Então é tempo de arrancar a mandioca para o

cauim da festa, e uma nova seqüência de ensaios cada dia mais longos tem início até que o

cauim fermente; realiza-se então um movimento forte com a participação dos dois sexos.

Novamente se recomeça a seqüência de ensaios, outras cauinagens (não necessariamente

preparadas por causa da festa) vêm intensificar o ritmo, até que o organizador da festa

promove a cauinagem de encerramento.


134

No festival das plantas cultivadas são as mulheres que dominam. Além de organi-

zado por uma mulher, os homens só participam quando se bebe cauim, e enquanto um coro

à parte que acompanha com um breve atraso o coro feminino. Os cantos falam das plantas

cultivadas e outras, de animais de caça ou não, os mais diversos, e também de cauim. Sua

ação sobre os animais contudo é nula — não propiciam a reprodução da caça. Os Juruna

definem o viço das plantas como alegria. Os cantos propiciam o brotar com viço, de forma

que o plantio é o tempo ideal para o festival, mas não só o calendário não é rígido, como os

cantos também aceleram o crescimento e podem ser executados depois que as plantas j á

brotaram, ou até mesmo antes da queimada e plantio, em benefício dos produtos de roça que

estão sendo consumidos no momento.

A participação masculina no festival vai além do canto. Compete aos homens dar

gritos muito estridentes ao fim e ao início de cada canto, o qual é sempre decidido pelo coro

feminino. Os cantos (que aliás me soaram um tanto arcaicos) contêm uma marcação d i -

ferencial para os sexos ao fim do verso principal ou entrecortando versos da canção. A

marca masculina é uma sílaba forte, ba, em que se eleva bastante a voz e que pode se de-

generar, propositalmente, numa espécie de berro de carneiro, do qual se passa ao grito

viril típico; a marca feminina ao contrário é um tímido e breve ∂a. As mulheres se dão os

braços e formam um semicírculo para cantar e dançar. Os homens põem o braço no ombro

um do outro e formam uma fila que se posiciona entre a casa do cauim e a linha das m u -

lheres. No encerramento da festa, a oposição sexual que o observador intui o tempo todo se

torna um jogo aberto e divertido. Infelizmente, no segundo festival a que assisti, este

episódio foi cortado por excesso de embriaguez, e do primeiro, realizado logo após o início

de minha pesquisa de campo, os meus registros são muito precários. Trata-se em linhas

gerais de uma prova de força entre homens e mulheres, uma das quais consiste em formar

uma espécie de túnel a ser percorrido pelo outro sexo, mas a cada passante, as pessoas que

se defrontam formando o túnel tentam impedir a passagem. O jogo e a festa acabam em um

banho coletivo no rio.


135

5. Ogros do rio e da floresta

A oposição rio-floresta é um eixo importante da organização do cosmos. A epopéia

de Seµã÷ã ressalta uma oposição interna à humanidade, os Juruna e os Índios, ou c i v i l i -

zação e selvageria. A mesma oposição recorta uma parcela da animalidade. Fala-se de tatu,

porco-, anta-, caititu-, capivara- e jaguar- iia bubebe (“-do fundo do rio”). Também

são definidos como animais- ïsãm† e pertencem à classe mais abrangente dos ogros

( kãnëãna ) 75.

Vivem entocados em cavernas de pequena dimensão e, por isto, ao cair a noite

emergem para circular em nosso mundo. Seu regime alimentar é o mesmo da espécie n a -

tural, exceto que também são antropófagos. À exceção do porco-, cujo habitat talvez não

seja uma mera caverna, todos se alimentam em nosso mundo. No que toca à anta-, ela não

se aprofunda na floresta, nem mesmo deixa completamente as águas, restrigindo-se a por

a cabeça para fora para comer o mato da orla. Neste contexto particular, mesmo o jaguar é

caracterizado como um animal inofensivo, incapaz de atacar e comer uma pessoa, em

contraste com o jaguar- ïsãm† . Sua legião emerge à noite para caçar gente na floresta.

Com este motivo os Juruna justificam por que eles próprios são caçadores diurnos — o

j a g u a r - ï s ã m † poderia caçar o caçador noturno. Em princípio existem sinais corporais

que identificam os - ï s ã m † , embora estes sinais só sejam codificados para a anta-, que é

também a que se avista com mais freqüência. Ela tem o pescoço, a cara e a tromba v e r -

melhos e, segundo alguns Juruna, um porte muito superior ao da anta comum; segundo

outros, trata-se de uma anta pequena, “do tamanho de uma capivara”.

75Explica-se o uso do termo kãnëãna do seguinte modo: designa o que é visto à distância, de modo

parcial e impreciso. “Eu vi kãnëãna ”, ao que se acrescenta, conforme o caso, “parecia um


animal”, “parecia Índio”, “parecia-se conosco”. A polissemia do termo -ïsãm† é bastante
rica. No léxico do xamanismo terapêutico, é empregado para designar a alma ( isãw† ) do objeto
responsável pela doença. O xamã extrai do corpo do doente, por exemplo, o cipó que lhe causa o
mal; este cipó é dito c i p ó - ï s ã m † ou cipó- isãw† . Na toponímia, o termo vem a ser empregado
para os locais em que se captam sinais da presença de um ser que contudo não se revela inteira-
mente; Ariranhas-ïsãm† é o nome de uma pequena ilha perto de Tubatuba onde, no passado, f r e -
qüentemente se ouviam ariranhas que nunca chegaram a ser vistas. No léxico do parentesco,
i s ã m † quer dizer “avô dele” (Mareaji ï s ã m † , “o avô de Mareaji”). Na epopéia de Seµã÷ã, é
empregado na formação do nome dos ogros ancestrais dos objetos da cultura. Na compreensão
dos Juruna, os animais do fundo rio merecem ser chamados de ï s ã m † por serem antropófagos e
não viverem na floresta como seus análogos. Finalmente, assim se caracterizam animais fantas-
mas que vivem na floresta, dos quais falamos mais adiante.
136

Os Juruna se inquietam quando vêem um animal-ïsãm†. O encontro é mensagem de

que uma doença está para acometer aquele que viu ou algum de seus parentes. Ou pode ser

ocasião para se contrair uma doença crônica e até mesmo fatal lançada pelo ogro. Não se

mata um animal destes, seja pelo temor de que ele se vingue lançando doenças, seja porque

isto provoca grande agitação meteorológica, vendavais e tempestades que devastam a aldeia.

Uma circunstância estranha pode ser um indicador suficiente da ogritude do a n i -

mal, principalmente se a ela se segue um caso de doença grave. No inverno de 1988-9 um

Juruna sofria de uma doença que um p o r c o - ïsãm† lhe dera havia um ano. Ele matou um

porco que surgiu um dia no porto da aldeia, ao anoitecer, e ao cabo de alguns meses adoeceu

gravemente. Foi submetido a uma cirurgia para a extração de um tumor cerebral, e, após

ter passado um período hemiplégico, tinha convulsões quase diariamente. Os Juruna o

consideravam então um paciente crônico vitimado pelo porco-; e lembravam que o animal

aparecera com a noite na beira do rio, estava além disso sozinho, muito embora houvesse

na terra rastros de inúmeros porcos; não se mostrou arisco, ao contrário, parecia “tão

manso quanto um porquinho de estimação”; não era portanto um porco. “Vocês não estão

vendo que ele está solitário? É um porco- ïsãm† que emergiu porque o rio está trans-

bordando!”, disse a sogra do matador. Todo mundo no entanto estava com fome!

Eis como dois caititus quase foram taxados de - ïsãm†. Irromperam uma manhã na

aldeia, vindos do porto, e entraram cada um em uma casa. As casas foram evacuadas,

cerraram-se as portas. Os animais, extremamente ferozes, conseguiram escapar des-

truindo a parede de troncos. Foram perseguidos no pátio da aldeia e mortos a golpes de

borduna e machado. Uma Juruna que vinha exercendo a terapia xamânica dos Kayabi desde

alguns meses, depois que este poder lhe foi dado por um xamã Kayabi, iniciou um rumor

que definia os caititus como animais do rio, o que remetia ao perigo de os tomar como caça.

No entanto, a caça já estava ali convidando os caçadores surpreendidos e muito exaltados.

Foram pois abatidos. Aqueles que por alguma razão estavam de resguardo tiveram medo de

comer a carne. Ao cair da tarde, o pequeno Yãnuaka, filhinho do homem vitimado pelo

porco-, desmaiou e passou toda a noite inconsciente, apesar dos esforços da xamã. O caititu

era um - ï s ã m † ? Os Juruna invocaram esta possibilidade. Tudo indicava que sim, muito

provavelmente. Tanto mais porque o pequeno fora visto a comer naquela tarde os grãos

mais grossos de uma farinha, que estava sendo torrada pela avó, que poderiam estar crus

ainda; os pais da criança comeram então os grãos restantes para conferir se estavam crus,

e comprovaram que ele não se envenenara com a mandioca. No dia seguinte, como o menino
137

havia recobrado a consciência e parecia perfeitamente bem, comentava-se que o caititu

não era um - ïsãm† .


A oposição rio-floresta também organiza o mundo dos fantasmas ( ãwã ), dos quais

uns são concebidos como Juruna, outros como Índios, e outros como animais.

No fundo do rio e dos lagos de águas limpas, há lugar para diversos microcosmos

circunscritos por um céu, onde se erguem as aldeias de fantasmas com a aparência física e

a civilização dos Juruna. São agricultores, caçadores, navegadores, canibais e consomem

muito cauim. As roças estão localizadas no próprio patamar das aldeias, ao passo que a caça

de que dispõem vive no exterior, em nosso mundo, às margens da superfície das águas em

cujo fundo estão situadas as aldeias. Emergem para caçar durante a noite alta, e para n a -

vegar e pescar à luz do dia.

O finado Pai-de-Kadu encontrou uma vez no rio Auáia-Missu, de madrugada,

quando caçava mutum, um grupo de fantasmas caçando macaco e coati. Eram tão baixos que

pareciam crianças, pertenciam assim à espécie chamada kãnã. Tinham cabelos bem negros

e compridos e estavam muito bem providos de caça. O finado procurou não se deixar ver,

escondendo-se atrás de uma árvore, e evitou olhá-los fixamente, com temor de que a

aparição se avivasse, tornando-se ainda mais distintamente real. Finalmente, mergulha-

ram e desapareceram no rio. O finado era o chefe dos Juruna e tinha o costume, conta-se,

de lhes dizer, quando se reuniam, para não caçar à noite; para jamais o fazer nas margens

de lagoas limpídas, lembrando que a caça aí existente pertence aos kãnã. Dizia-lhes, ele

que era xamã e conhecia o assunto, para não fixar o olhar nos vultos de fantasma, para

procurar ignorar os vultos ao invés de estimular a visão, porque, justamente, o exercício

visual não possibilitaria ver o fantasma sem ao mesmo tempo tornar-se a si mesmo v i -

sível ao fantasma.

O ponto importante é a transposição do limiar perceptivo, que sempre pode ser

nefasta. Isto sucedeu recentemente a um garoto. Pikaha pescava sozinho na foz do M a r i t -

sawá quando avistou um homem remando na outra margem; gritou-lhe algumas vezes e não

obteve resposta; quando, após dispersar a atenção por um instante, de novo procurou o

Juruna em sua canoa, ele tinha desaparecido. Pikaha compreendeu que avistara kãnã. Foi

para casa, e lá chegou com tremores e apatia; caiu doente. Depois de alguns dias vomitando
138

e queimando de febre, foi levado até um xamã Kayabi, por cujo intermédio recobrou a

saúde.

A visão de um fantasma não culmina necessariamente em percepção completa do

que se passa. Eles atacam imperceptivelmente, atirando flechas invisíveis ou com golpes

de borduna; a vítima ressente mais tarde o efeito da visão que se traduz geralmente em

febre alta, vômitos e dores em todo o corpo.

Os fantasmas do rio também podem ser vistos sob outras máscaras que a humana.

Transformam-se em pirarara, piranha, tucunaré ou trairão e ficam “passeando” nas

águas. Aparentam então ser tão mansos e tão lentos que se poderia agarrar o peixe com a

mão. Reunidos em bando e com o fim de perambular na floresta de nosso mundo, trans-

formam-se em caititu, mutum-cavalo e jacamim, de cujos bandos os Juruna têm pavor,

sobretudo quando, após a visão, sonham com os mesmos, pois isso comprova que eram

mutações de fantasmas, e podem ter-lhes atacado durante o sono.

Conheço apenas duas espécies de fantasmas do rio, os simplesmente chamados ãwã e

os baixinhos ãwã kãnã. Os Juruna obtiveram dos primeiros as clarinetas e os adornos

corporais, de cujo mito falaremos mais adiante. Quanto aos fantasmas da floresta, destes

existem muitas variedades, cuja caracterização reverbera em narrativas muito seme-

lhantes que permitem extrair o conjunto de suas propriedades comuns. Vejamos como são

ilustrados em dois relatos. Um Juruna encontrou na floresta repentinamente obscurecida

por nuvens de chuva um fantasma da espécie “caidores- ïsãm† ”: anões, corcundas, com

dentes enormes. Comprazia-se com o seguinte: subir numa árvore e deixar-se cair, com o

propósito de chocar a corcunda contra uma grossa raiz. O tombo emitia o ruído: dum!, ele

gemia de dor e desfalecia. Em um instante recuperava a força, levantava-se e subia na

árvore novamente. Talvez acreditasse, alguém observou, que os tombos o livrariam do

defeito físico. Percebeu pelo faro a presença do homem e disse consigo mesmo em voz alta:

“Vou cair mais uma vez, vou atrás dele, pego-o e como-o”. Naturalmente, o Juruna fugiu.

Chegou à aldeia com febre e vômitos, pois tinha aspirado a catinga do ãwã. Ele disse aos

outros depois que o xamã o curou: “Eu vi ãwã! Foi isto que me fez ficar doente”.

Um outro finado não teve tanta sorte. Um grupo de caçadores estava na floresta e lá

um deles, que se desgarrou, foi atacado por um Índio que o feriu no peito com uma flechada.

O finado ficou a gritar para os companheiros: “Os Índios estão me atacando!”, até que,

passado o momento do susto, percebeu que não havia vestígio algum de Índio, flecha, nem

ferimento. Os outros o levaram para a aldeia e lá ele morreu, depois que o xamã diagnos-

ticou a agressão do fantasma e tentou tratar dele sem sucesso. O xamã pediu vingança e
139

propôs que incendiassem o acampamento dos fantasmas. Estes entretanto rapidamente se

dispersaram na floresta quando o fogo foi ateado. O xamã, irado, desejou matar um deles.

Flechou um e jogou-o dentro do rio. Subitamente o fantasma morto havia-se transformado

no cadáver de um veado.

Ao contrário dos que habitam o rio, os fantasmas da floresta têm a aparência de

Índios sinistros, e se transformam em veado (morto) após a morte. Vivem em bandos e

habitam longe da margem do rio em locais “sujos” ou “sombrios”, caracterizados por

uma vegetação cerrada com emaranhado de lianas, tidos como muito nefastos. Usam arco e

flechas e borduna, e são reputados excelentes caçadores. Têm dentes pronunciados, são

antropófagos e atacam, principalmente, os solitários que andam fora da trilha. São fétidos.

Uma catinga mais acentuada que a do animal, e que provoca febre e vômitos no caçador r e -

cém-chegado da floresta. A aproximação de um fantasma da espécie ayuru provoca súbita

sensação de fraqueza, e mesmo completo desfalecimento. A fumaça de tabaco é um antídoto

contra eles; simplesmente não se aproximam de onde a fumaça exala. Os Juruna com efeito

não penetram na floresta sem levar consigo uma pequena porção de fumo. Defrontando-se

com índices de fantasma, geralmente o som ritmado que evoca o golpe em madeira, ou um

assobio estranho que se ouve a pequenos intervalos, repelem-no fumando um cigarro.

Entre os fantasmas da floresta existe uma espécie que se parece com Brancos s i -

nistros e baixinhos, usa bermuda, e tem paixão por fígado humano. Chama-se kurupira .

Uma outra espécie se parece com o caititu, e é chamada de caititu- ï s ã m † , como o do fundo

do rio, com o qual contudo não se confunde por ter uma aparência muito sinistra. Entre as

espécies naturais, os Juruna definem três como fantasmas: o macaco-da-noite ( h u j i -

huji ), um “macaco” não-identificado que talvez seja o macaco-da-meia-noite ( kamo-


ï s ã m † ) e o tamanduá-mirim ( uari ). O macaco-da-noite é o que aparece com mais f r e -
qüência e, quando morto nas cercanias da aldeia, é sempre carregado para lá, causando

grande correria e gritos de pavor, por parte, principalmente, das mulheres e crianças.

Tendo de dormir ocasionalmente na floresta, os Juruna queimam farrapos de tecido velho

para afugentá-lo. Reputam-no descer pela corda da rede dos adormecidos para beliscar e

morder-lhes a garganta. As marcas da mordida podem franquear a realidade ou não. Em

caso negativo, cabe ao xamã fazer o diagnóstico. Quanto ao tamanduá-mirim, há quem diga

que não é muito perigoso; consiste entretanto em um fantasma, já que, explicaram-me, é

um vivente da noite. Na madrugada, fica a puxar o cipó ˚i˚i ; quando alguém dormindo na

floresta o ouve, é tomado primeiro pelo pavor e depois por um entorpecimento e cochila de

novo; então o fantasma se aproxima e toca no sujeito. E ele cai de febre. O tamanduá-mi-
140

rim é também dito dono de mutum ( tãkü ), não porém um dono da espécie; simplesmente,

há mutuns que pertencem a ele. Um rapaz, uma vez, desafiou a rotulação do tamanduá-

mirim como fantasma. Matou um e levou-o para a aldeia com a intenção de moqueá-lo, mas

não ousou fazer isso no fogo familiar; ergueu um moquém detrás da aldeia, no mato, longe

do olhar de todos, e assou a presa. Desconfiei que não chegou a comê-la.

Os fantasmas da floresta desempenham um papel importante na educação das

crianças desde a mais tenra idade. As canções e contos de ninar dos Juruna são muito e s -

cabrosos e crianças de dois anos já sabem reagir com intenso pavor quando a mãe as

ameaça com a aproximação de um fantasma. A mais jovem contadora de mitos que tive a

oportunidade de entrevistar tinha justamente três anos. Com a voz embargada de medo,

narrou com graça toda a história de como uma menina se transformou em fantasma ao

atingir a idade adulta, pois, de tão apegada a um “macaquinho” de estimação (asa

‘esquilo’?), era toda suja de urina, e não gostava de tomar banho nem de se pentear.

Homens e mulheres podem se transformar em fantasmas da floresta, assumindo a

mesma aparência sinistra (cabelos desgrenhados, sujeira, dentes enormes) e uma conduta

assustadora de incontinência alimentar. A maternidade, a guerra e a produção de cauim são

os contextos que desencadeariam a transformação. O sangue da vítima se deposita no e s -

tômago do matador; sua mistura com alimentos diversos provocaria um distúrbio esto-

macal capaz de animalizar o guerreiro a tal ponto que ele viraria um ser sinistro da f l o -

resta. O cauim produzido por uma mulher menstruada agiria do mesmo modo.

Os relatos de pessoas que se transformaram em fantasmas têm como alvo principal

as mulheres, e são relembrados, como divertimento, na casa do cauim durante o trabalho

feminino. A mulher preguiçosa nos tempos antigos era vilipendiada pelas companheiras.

Faziam xixi no cauim que sabiam que ela procuraria para beber. Tornava-se tão i n s a -

ciável que sua cabeça começava a “cair” à noite, enquanto o corpo ficava dormindo na rede,

para procurar o que comer. O corpo era enterrado, a cabeça se tornava um transtorno

desesperador e a alma se transformava em fantasma. Conta-se também de mulheres que

foram abandonadas em vida e hoje assombram na floresta. Sua condição ontológica é a

mesma daquelas que foram mortas, pelo fato simples de que transformar-se em ãwã, neste

contexto particular, é não morrer realmente. O fantasma não é imortal, quando morto ele

se extingue completamente no cadáver de veado em que se torna, mas a pessoa morta ou

viva que vira fantasma não tem a condição de morto, e sim justamente a de vivente selva-

gem e sinistro da floresta.


141

Sucede também que a noção de fantasma designa o que conhecemos como assom-

bração, um ser capaz de causar medo mas impotente para agir. As almas das vítimas de

guerra são assim designadas, e toda uma coorte que assombra as trilhas ao redor da aldeia

por ocasião do eclipse lunar, como os de língua compridíssima, os que se fingem de cadá-

veres esticados no chão, os ratos gigantescos que assumem a feição de Índios sem cabeça.

Somente os covardes os temem. Os matadores não se assustavam e, a fim de garantir o êxito

em novas guerras, percorriam os caminhos da aldeia durante o eclipse.

De acordo com os mitos, os fantasmas da floresta fornecem um meio para pensar a

relação entre indivíduo e sociedade. O indivíduo que despreza a sociedade é ameaçado de se

tornar fantasma, animalizando-se. O indivíduo que a sociedade despreza encontra proteção

e conforto junto a fantasmas. O mito que já mencionamos, de como um fantasma trans-

formou um jovem cujos braços foram decepados pelos companheiros em um excelente

caçador, obedece ao mesmo argumento de outros.

Um deles pretende justificar por que os Juruna têm de escavar canoas com o

próprio esforço. Porque, no tempo em que as canoas eram de má qualidade, o primo c r u -

zado de um homem que não tinha canoa para viajar no auge da estação seca, e que por isto

foi abandonado sozinho na aldeia, não guardou o segredo relativo aos fantasmas que em

poucos dias escavaram uma canoa levíssima para o infeliz. A condição peculiar desta e s -

pécie era viver na terra firme e praticar a navegação, como os Juruna. Conheciam a m a -

deira chamada “canoa de verdade”, tão leve e resistente quanto o cedro, e fizeram um

acordo com o finado: os Juruna derrubariam a árvore em que eles escavariam a canoa, com

a condição de ninguém os ver trabalhando. Nuvens de chuva cobririam o céu neste i n t e r -

valo, e isto bastaria para assinalar que os Juruna não deveriam se aproximar. Estes fan-

tasmas são denominados “donos da canoa” e hoje não existem mais senão na condição de

larvas que se desenvolvem na madeira já mencionada; porém, segundo me disse Kadu, para

si próprias as larvas são humanas e seguem escavando canoas.

As flautas transversas ( ãwã pãrë ) e as clarinetas ( p ¥ r i ) foram esquecidas em

aldeias Juruna pelos fantasmas da floresta e do rio, respectivamente. Quanto às flautas, os

Juruna tinham saído em viagem de verão deixando sozinha na aldeia uma Índia raptada. Um

fantasma da floresta lhe apareceu e ficou com ela durante vários dias, até que a chegada dos

Juruna os surpreendeu. Ele fugiu com a mulher e esqueceu a flauta que tocava para ela. As

mais bonitas composições musicais dos Juruna são para as flautas transversas. A p e r -

formance é sempre masculina, individual e solitária. Segundo dizem, o que estimula um


142

homem a tocar é sua vida de caçador. Geralmente o faz deitado na rede, ao alvorecer, antes

de sair sozinho para a floresta, ou ao entardecer, quando retorna da floresta.

As clarinetas, por sua vez, foram obtidas do seguinte modo. Os homens saíram para

caçar a montante, no auge da seca, deixando sozinhas as mulheres, bem como um velho cuja

idade não mais permitia correr atrás de caça. Os fantasmas do rio aproveitaram a opor-

tunidade para dançar (e se divertir) com as mulheres dos Juruna. Toda tarde, durante

vários dias, os homens-fantasma tocavam em coro e dançavam cada um de braço dado com a

esposa de um Juruna e, enquanto isso, estimulavam o velhinho a aprender as músicas. Uma

tarde, as canoas dos caçadores assomam a grande distância, e os fantasmas, segurando cada

um seu par, caem no rio deixando as clarinetas na margem. Quando os caçadores se apro-

ximaram da aldeia, os pulmões das mulheres boiavam ainda.

Os fantasmas deixaram vários conjuntos de clarinetas com suas músicas particu-

lares. Como se as clarinetas valessem tanto quanto as mulheres, apenas se constatou que

mulheres foram devoradas e se passou ao aprendizado das músicas. Os Juruna adotaram

também os adornos corporais dos fantasmas: uma linha branca de penugem de pato colada

com resina de almecegueira descendo do ombro até o peito, quebrando-se em direção ao

outro lado do corpo, até o peito, e subindo ao outro ombro. Outra linha branca da mesma

penugem na risca do cabelo, coroada, no alto da testa, com um botão de resina recoberta

com o arilo vermelho das sementes de pacova, recentemente substituído por fiapinhos m i -

limétricos de tecido vermelho.

Os Juruna atualmente só sabem tocar as clarinetas pequenas ( p ¥ r i õ ≈ ï ≈ i ) e as

grandes ( p¥ri a r a h ¥ h ¥ , também chamadas taratararu e muito parecidas com o ture dos

Assurini). Os intrumentos são feitos de taquara, assim como a palheta, e são tema de um

festival onde se toca todo dia, durante um mês aproximadamente, realizado em qualquer

época do ano, mas de preferência no fim da estação seca, quando se retorna das viagens de

verão.

Eu me restringirei a descrever mais detalhadamente as clarinetas pequenas. Numa

festa realmente bonita, haveria em torno de quarenta mais um instrumentos ( i˚ia ) ,

formando dez famílias de quatro membros comandadas por um, o menor de todos , que faz o

solo e simboliza o avô. Os instrumentos compõem cinco vozes diferentes, de acordo com o

tamanho; em ordem crescente têm-se o avô (i˚ia pequena), o filho (i˚ia pequena do meio),

o irmão mais novo do pai ( i˚ia grande do meio), a esposa ( i˚ia grande ) e o pai (também

chamado i˚ia grande). O avô é dito falar e os outros são ditos responderem, segundo uma
143

ordem de entrada que vai do menor ao maior76. Num dos dois festivais a que assisti, nas

noites em que a execução musical foi acompanhada de cauinagem, havia, por trás do exe-

cutante do instrumento dito avô, o chefe da aldeia, que não tocou praticamente, mas i n d i -

cava o número a ser tocado a seguir, através de um canto formado por um ou dois versos.

“Se os Juruna não celebrarem a festa das clarinetas, as crianças vão morrer,

disse Seµã÷ã”. A relação entre crianças e clarinetas lembra aquela que existe entre

hastes de flechas e crianças. As clarinetas fazem as crianças se multiplicarem, uma vez

que, nota Kadu, existem múltiplos instrumentos e estes estão sempre prontos a se m u l -

tiplicar. Mas a relação não é exatamente a mesma, pois, segundo a origem mítica das

clarinetas, entre estas e seu poder de multiplicação das crianças, situam-se as mulheres

(devoradas). A cena mais bonita do festival é a primeira parte do encerramento, quando os

músicos tocam navegando com uma mocinha no leme de cada canoa grande e as mulheres se

juntam no alto do barranco da aldeia para vê-los ao longe.

Esta cena pode ser transportada do festival para o tempo dos trabalhos coletivos,

masculinos, fora da aldeia, revelando que, à diferença da música dos fantasmas da floresta,

as clarinetas são um meio privilegiado de relação do grupo consigo mesmo. Como o obje-

tivo é fazer-se uma entrada musical na aldeia, as canoas partem em separado tocando-se

em apenas uma delas, e sem que as mulheres parem para ver. Para o retorno, cortam-se

varas grossas e compridas que se atravessam sobre as canoas, onde os homens se sentam,

com o fim de mantê-las unidas, e como que formando uma única embarcação. Segura-se o

remo com uma das mãos enquanto a outra segura a clarineta, e marca-se o ritmo com uma

batida do remo na borda da canoa. De início, alguns tocam um tanto desordenadamente e n -

quanto outros fazem o diadema de palha, penteiam os cabelos e se pintam com urucum

fresco, num clima de alegria e brincadeira, pedindo pente e óleo de cabelo emprestado,

dando gritos estridentes, reclamando do estado da palheta, berrando que estão mortos de

sede nos lugares onde há eco, até que a embarcação se aproxima o suficiente para começar

a ser vista da aldeia. Esquecem-se então das brincadeiras e tocam compenetrados marcando

o ritmo com batidas do remo na borda da canoa. As mulheres e crianças os recebem do alto

do barranco, eles tocam por um momento na beira do rio, com o remo e o arco no ombro e,

em fila indiana puxada pelo músico que toca instrumento avô, seguem tocando até a casa do

76 Essa generalização foi feita por Mareaji, mas me parece que ela não se aplica a todas as com-

posições. O termo que traduzo por “o do meio”, ide˚ï÷ã, significa que entre esse instrumento há
um menor e outro maior; ele é usado como nome do dedo anular (por causa de sua relação com o
dedo médio e o mindinho) e como designação dos irmãos nascidos entre o primogênito e o caçula.
144

cauim. Tocam e dançam um momento ao redor da canoa de cauim, e depositam as clarinetas

sobre a esteira que cobre a canoa. Em meio à algazarra, o dono do trabalho recolhe os

instrumentos e abre o cauim.


145

CAPÍTULO III

A Alma e a Vida
146

Abordando os Juruna a partir de sua concepção da inserção do homem no mundo,

apreendem-se alguns postulados cosmológicos. Primeiro: a relação predador-presa é

inelutavelmente uma relação de reciprocidade. Concebidas essencialmente como aplicação

de força, as práticas humanas desencadeiam um processo novo que se dá entre almas de

pessoas, animais, ou coisas, no qual as pessoas se tornam objeto da força das coisas e dos

animais. A vida humana põe, assim, o problema da resistência da alma às experiências

derivadas das práticas humanas. Segundo: as forças características de certas espécies

naturais são transmissíveis ao homem. Donde se põe um segundo problema: como se faz um

homem? Terceiro: o sonho é uma passagem para o além. Como desenvolver a potência que

capacita o homem a dominar as forças do mundo? Ou como se faz um xamã?

A principal fonte etnográfica para o estudo da inserção do homem no mundo é, no

caso dos Juruna, o chamado ciclo da vida individual. A gestação, o nascimento, a puberdade,

a doença são circunscritos por resguardos que restringem a alimentação e a ação, e por

prescrições de alimentos e ações específicas. O paradigma destas fases da vida é contudo

mais amplo do que o nosso — os Juruna aí incluem a paternidade, o homicídio e a decom-

posição póstuma. Além disso, as fases engajam um termo mais amplo que o indivíduo — a

noção de alma responde pela existência de um corpo familiar, bem como de um corpo s o -

cial, sobre os quais incidem as experiências vividas empiricamente por um indivíduo.

Nesse quadro, o objetivo deste capítulo é duplo: descrever o ciclo de vida e ampliar nosso

conhecimento dos parâmetros que organizam o sistema do mundo.

Antes de começar é preciso apresentar o campo semântico da noção de alma, e fazer

uma nota sobre o grau de adesão dos Juruna às normas do resguardo. Uma observação de

Meyerson introduz bastante satisfatoriamente o caso: a vida coletiva seria impossível sem

convenções e regras, mas seria igualmente impossível se todas as regras fossem aplicadas

(Meyerson, 1948: 192). De fato, as proibições alimentares que vamos considerar são

muito pouco cumpridas. “Os antigos, sim, obedeciam”, o discurso retorna sempre a este

ponto. Eu não deixarei por isto de apresentar a codificação de cada processo da vida como se

as regras vigorassem. Qualquer que seja a idade de ouro da crença, não há razão para

supor que no passado o quadro fosse muito diferente do que pude observar, e que eu sinte-

tizaria deste modo: a) proibições cuja transgressão é a regra — caso do qual se diz que “os

antigos, sim, obedeciam”; b) aquelas cuja obediência diz respeito à quantidade, como

comer apenas um pouquinho do alimento proibido; c) aquelas que são obedecidas por um

período de tempo muito mais curto do que o prescrito; d) aquelas cuja transgressão só é

suspensa quando alguém efetivamente corre risco de vida; e) finalmente, as fronteiras do


147

grupo social sobre o qual incide a codificação são fluidas, de modo que é sempre possível

apontar transgressões no comportamento de pessoas que não seriam concernidas caso não

houvesse necessidade de dar sentido a um infortúnio. Em segundo lugar, as proibições

importam por serem registros de aspectos particulares do sistema cosmológico. Cada

proibição será considerada no que toca ao seu valor de verdade e não enquanto uma norma

rígida de comportamento. Deixando claro que os Juruna operam com grande liberdade os

sistemas de prescrições e proibições com que se ataviam, acrescento esta frase curiosa

que lá se ouve com freqüência: nós não fazemos isso, mas eu faço! nós não comemos isso,

mas eu como! Descrença? Sinal de degeneração da cultura? Acredito que não, prefiro

pensar na flexibilidade talvez indispensável à vida em um mundo copiosamente codificado,

como dizem Deleuze e Guattari a propósito dos Selvagens, ou classificado exaustivamente

pelo pensamento selvagem, que, conforme demonstra Lévi-Strauss, constrói sistemas

conceituais por meio de materiais do mundo sensível.

O termo que traduzo por alma é - ÷ ã w ¥ , que, via de regra, é articulado com um

prefixo de posse. Em Juruna (como é comum ao Tupi), existem duas formas de marcar

posse, cada uma das quais traduz uma categoria específica de relação entre o sujeito e a

coisa possuída: a relação de parte inerente ao sujeito e a relação de objeto alienável. A

relação com a alma pertence à primeira categoria, assim como as partes do corpo humano,

as relações de parentesco e certos pertences como canoa, arco, cerâmica, ornamentos,

roupas. Esses pertences podem também ser flexionados por meio da segunda categoria, uma

vez que é possível cedê-los a outrem, mas, diferentemente dos objetos concebidos como

alienáveis, são destruídos por ocasião da morte do proprietário. Há lugar para diferen-

ciações sutis, onde o sujeito pode abordar sua relação com um objeto de ambas as p e r s -

pectivas. De um produto de sua pesca, o homem dirá u-mita “minha presa” ou u-me-pi˚a

“meu peixe”, destacando, respectivamente, o fato de a predação ser um ato inerente a s i

mesmo, e o fato de que seu peixe é, de fato e de direito, alienável. Da mesma forma dirá a

mulher de sua produção de cauim: u-awari ou u-me-iakoha . Ver-se-á que a existência

destas categorias lingüísticas repercute no pensamento cosmológico do grupo.

No inventário das partes do corpo humano que obtive de um Juruna, ele incluiu a

alma. De acordo com o contexto, -÷ãw¥ pode significar (1) “coração”, muito embora não

se confunda o órgão coração com a alma, distinguindo-se desta pela denominação ï w ã ï

kaha e sendo concebido como o seu sítio. Considerando-se que “pulsação” se diz ÷ ï w ¥ n a , e
“pulso” -w¥na , ou, mais poeticamente, -÷ãw¥ ≈ï≈i , “alma pequena”, o significado b á -
sico da noção de alma é mesmo vitalidade. Corresponde então (2) ao que se designa h a b i -
148

tualmente como “princípio vital”; e também (3) ao que subsiste à morte. Nossa concepção

de que o corpo é mortal e a alma imortal é completamente estranha aos Juruna: a expe-

riência da morte é sofrida pela alma. Ademais, ela pode tanto morrer antes do sujeito

quanto mais uma vez, no mundo póstumo. O termo designa ainda (4) a sombra e o reflexo

do corpo (embora, conceptualmente, não se confunda a alma com a sombra ou o reflexo);

(5) a imagem onírica (não, porém, imagens produzidas mecanicamente como fotografia,

desenho ou escultura77); (6) a linguagem enquanto meio de comunicação consigo mesmo, a

matéria verbal do pensamento reflexivo e do devaneio (interpretados como linguagem

silenciosa: falar sem voz). Diz-se: we÷ãw¥ da na kamenü hae, “eu converso com minha

alma” (“eu estou pensando”), onde da significa “com” no sentido de meio ou instrumento,

e se opõe a jo “com” no sentido de companhia: isãw¥ jo na kamenü “eu conversei com a

alma dele [em sonho]”.

Alma não qualifica apenas aspectos da pessoa humana, mas também animais, v e -

getais, a água, o fogo, o mineral, os objetos da cultura. Nesse quadro mais amplo, a noção

sofre inflexões específicas para designar (7) a qualidade última de certos elementos e

objetos inanimados: o peso da pedra, o calor do fogo, a umidade da água; (8) o significado

último de certas imagens oníricas: o urucum onírico é sangue, a imagem “mulher nua” é

anta; (9) o espectro-princípio vital de animais ou objetos, ou (10) de partes da caça ou

pesca, como dentes e garras, tidas como agentes patogênicos que o xamã extrai do doente.

77 Imagens desse tipo são ÷ã÷ãhã — termo que qualifica também a reprodução de gestos, pala-

vras, cantos, mitos.


149

1. Xamanizar

Embora o xamanismo seja em tese uma função relacionada à velhice, nós vamos

iniciar este capítulo pela iniciação xamânica, que exprime menos aspectos ligados ao ciclo

de vida que à ordem mais geral do mundo. É concebido como uma ação (i-de izia zia ) que se

reporta à capacidade de ver o que está além da visão humana ordinária e de interagir com

os mortos, seja os ÷ï÷ãnay que habitam à margem do Xingu, em aldeias de pedras m a -

jestosas que se erguem na terra, seja os canibais ÷ë÷ãm†, que habitam o céu, sob a chefia

do magnífico xamã Kumahari. As funções do xamã consistem basicamente em curar as

doenças e celebrar os festivais dos mortos. Porém, os Juruna gostariam que os xamãs

fossem capazes de transformar a condição humana, abolindo a subordinação aos Brancos,

no que toca aos bens industriais, e abolindo a morte ou, ao menos, o estado vigente das

relações com os mortos. A capacidade de xamanizar é desenvolvida mediante o consumo de

tabaco e outras drogas (que não identifiquei e de que ignoro se possuem propriedades

alucinógenas) ao longo de um período que pode se estender até dois anos, senão mais,

marcado por restrições. Eu abordarei cada droga e cada restrição visando menos a r e -

construção da iniciação do que a apreensão das distintas facetas cosmológicas de que cada

uma fornece os meios de expressão.

Eis em que consiste e como se constitui a potência xamânica. Tudo se forma no plano

do sonho e, inicialmente, tudo se passa apenas neste plano. É preciso fazer-se acompanhar

de i ÷ u ÷ i a (“espíritos de pajé”, como glosam os Juruna). O termo não designa p r o p r i a -

mente um tipo de espírito, mas um tipo de relação: são os próprios mortos, ÷ ï ÷ ã n a y e

÷ë÷ãm†, que se tornam companheiros de um vivo. Xamanizar é justo a ação realizada em


sociedade com um i ÷ u ÷ i a , não importando o plano da existência humana em que esta ação

se desdobra: o sonho ou a vigília. O sonho, entretanto, não abre esta comunicação entre os

vivos e os mortos sem abrir ao mesmo tempo a comunicação com categorias naturais d i -

versas: animais, vegetais, o sol, o relâmpago. Em tese, pode-se contrair i÷u÷ia de todo

tipo de ser. O contexto de formação e desenvolvimento da relação implica um evento o n í -

rico singular: o sonhador assiste à metamorfose de um ser natural em um humano

(dubia), com quem pode conversar e de cuja convivência pode desfrutar, tornando-se em

função disto um xamã.

Assim como pode haver i÷u÷ia de todo tipo, pode haver todo tipo de xamã — de

÷ ï ÷ ã n a y , ÷ ë ÷ ã m ¥ , porco, e também de cobra, barata etc. Os Juruna levantam, diante


150

disso, o problema da utilidade das diferentes potências xamânicas: a sociedade, embora

pronta a abraçar o xamanismo dos porcos, não quer comunicação senão com os mortos. De

toda forma, o ponto é interessante porque expressa um aspecto da cosmologia: em uma

outra ordem de realidade, todos os seres naturais apresentam um aspecto humano e social.

Os Juruna atribuem ao tabaco o poder de potencializar a visão, consideram a visão

como a fonte primordial do saber, e creditam ao xamã o saber verdadeiro. O tabaco é de-

certo a droga mais importante do xamanismo, é o meio básico para se entrar em transe e,

quando consumido regularmente, é suficiente para dotar alguém de potência xamânica. Isso

se processa tanto mais rápido quanto ocorrer ao iniciante receber de um ÷ ï ÷ ã n a y , em

sonho, um pouco de tabaco para fumar: ele então se torna capaz de ver sem demora toda a

comunidade dos mortos. Conhecem-se pelo menos duas variedades, o tabaco dos Brancos ( a

folha é mais grossa), destituído de força xamânica, e o dos ÷ï÷ãnay (de folha mais fina),

que o pássaro ia∫i∂u (gavião tesoura?) encarrega-se de trazer do outro mundo e semear

nas roças dos Juruna78. Fuma-se e bebe-se o sumo puro ou misturado com cauim. Deve-

se sugar de uma só vez e engolir a fumaça do charuto. O iniciante se “embriaga” e “morre

um pouco” (desmaia); sua alma viaja pelo mundo, com a visão iluminada pelo tabaco.

Olhos! — é muito justamente esse o nome que os ÷ï÷ãnay aplicam ao tabaco, e que,

embriagados, os Juruna usam repetir. Seus olhos perderam a vida, a capacidade de

“derramar luz” sobre o mundo circundante, são cegos (não têm senão a parte branca dos

olhos, revirados por ocasião da morte) que encontram no tabaco um substituto do órgão da

visão. Portam por isso permanentemente uma porção de tabaco pendurado no diadema de

palha. Sucede também que a noite é o dia para os mortos, e o dia é a sua noite. O que o tabaco

proporciona ao xamã é a capacidade de ver a escuridão da noite clara como o dia, o tabaco

ilumina o mundo para ele, dando-lhe a chance de percebê-lo como se fosse um ÷ ï ÷ ã n a y . O

xamã pode ver almas excorporadas, dos mortos ou outras, justamente por ser ele próprio

capaz de ver o mundo do ponto de vista dos mortos. “O xamã diz que está de noite, e que no

entanto, para ele, o ambiente é de luz do dia”. No limite, se ficar cego, o dia se tornará

para ele noite, mas à noite verá tudo iluminado79.

78 Não se cultiva tabaco atualmente, porque, diz-se, o xamanismo Juruna desapareceu. Culti-

vava-se o mesmo tabaco dito proveniente dos ÷ï÷ãnay. Ele não se transforma em pessoa nos so-
nhos xamânicos.
79 Um relato tocante faz Wereade, neto de um xamã que passou seus últimos anos com cataratas

e foi levado a assumir em vida sua condição de ÷ï÷ãnay. “Eu e o Pai-de-Manako estávamos sozi-
nhos em casa. [Era noite.] Eu estava quase dormindo; de repente ele começou a falar sozinho.
‘Ah, por que você está falando sozinho?’, perguntei a ele. ‘Não, eu não estou falando sozinho;
151

O tabaco provoca o êxtase ou “embriaguez” que caracteriza o estado em que se acha

o xamã quando ele vê almas excorporadas, quando se comunica com o além distante, e, no

campo do mito, quando se transporta na vigília, de corpo e alma, para outras esferas do

cosmos. Por outro lado, como o desenvolvimento da potência xamânica através do mero

consumo de tabaco exige um longo tempo, para atrair os ÷ ï ÷ ã n a y com rapidez, o iniciante

pode fazer uso de outras drogas, como o tubérculo üãbera (parecido com o gengibre, s e -

gundo se diz), que os próprios mortos usam para se tornarem xamãs e que é utilizado

segundo a mesma receita: ralado e misturado ao cauim já fermentado.

A casca da árvore ar¥pa — definida como “droga do jaguar” — também é dita

conduzir rapidamente aos sonhos com os mortos dos rochedos. Tendo rastreado a floresta

em busca da árvore, o iniciante sai um dia na alvorada para cortar uma porção de lascas da

casca, a começar do pé para o alto e efetuando movimentos de facão de baixo para cima (o

inverso do gesto usual de descascamento). Na aldeia, ele (ou outra pessoa) esmaga as lascas

com as mãos em uma boa porção de água, ingere alguns goles e, com o restante, toma um

banho em um lugar de onde é seguro que a água não escorrerá para o rio; pois, neste caso,

os peixinhos beberiam a droga e se tornariam xamãs, em prejuízo do iniciante. Recolhe

em seguida os fragmentos de casca para devolvê-los ao pé da árvore quando lá retornar em

busca de novas lascas, tendo o cuidado de cobrir a pilha com folhas de b¥÷a (um mato

muito comum na floresta). O uso é interrompido quando a parte descascada da árvore

atinge aproximadamente um metro de altura — o que corresponde a uns cinco banhos.

O iniciante trava relações com o jaguar em experiências oníricas que precedem e

possibilitam os sonhos com os ÷ï÷ãnay. Ele poderia atrair uma multidão de jaguares caso

entrasse na floresta no período em que faz uso da droga. Evita por isso afastar-se da aldeia,

o que não é sem dúvida inteiramente suficiente. Sucede-lhe ser procurado nas redondezas

da aldeia mesmo, à luz do dia, por um jaguar. Defrontando-se com um tal, não pode agir

impulsivamente e tentar abater a fera, pois o aparecimento dela é o sinal de que a i n i -

tem gente aqui comigo’. Ele sempre falava desse modo, mas eu pensei que houvesse alguém
mesmo. ‘Quem é que está aí?’ ‘Eu estou conversando com os ÷ ï ÷ ã n a y que acabaram de chegar.
Eles vieram ver vocês, estão passeando. Há três pessoas aqui, você não está vendo?’ ‘Não. Eu
não estou vendo ninguém’. ‘Venha ver! Eles estão aqui.” Levantei-me e fui; não vi ninguém. ‘Eles
estão na porta, não vê?’ Depois de alguns instantes, ele me disse: ‘Eles já vão partir’, e ficou
respondendo às despedidas dos ÷ ï ÷ ã n a y . ‘Eles estão me dizendo que já vão embora’. Depois me
contou que eles estavam pintados. Eu gostava muito de conversar com ele; ele sentia dor nos
olhos e já não podia enxergar. Uma vez ele me disse: ‘Durante o dia eu sinto dor nos olhos e só
consigo enxergar o que está muito perto. Durante o dia é escuro para mim. À noite, quando os
÷ï÷ãnay chegam, eu posso ver vocês todos com clareza”.
152

ciação está em curso. O jaguar chega-lhe de mansinho, aterroriza-o inintencionalmente,

pondo a pata pesada sobre o seu pé. Ele deve assoprar a fera, ela levanta a grande cara para

mirá-lo nos olhos, após um longo momento vai embora. Os xamãs já experientes estariam

como que acostumados com o visitante, mas ele gela de medo. À noite o jaguar volta a

procurá-lo e narra suas intenções: “Eu quero brincar com você! De que você tem medo?

Eu não estou bravo!” E os dois andam juntos: o iniciante conhece a vida dos jaguares e todo

o domínio da floresta, ele faz um i ÷ u ÷ i a80. Dentro de pouco tempo lhe vem a sorte de

sonhar com os mortos e desfrutar de sua companhia, seu cauim e tabaco.

A árvore pi˚aiha proporciona uma experiência bem mais apavorante. A madeira é

utilizada na confecção de teares; a embira, no xamanismo. Posta de molho, torna-se de-

masiado macia e tinge a água de um amarelo intenso; a solução é utilizada para tomar

banho (longe do alcance dos peixinhos) e para beber (um gole). A alma da árvore aparece

em sonho, como uma pessoa ( dubia ), e torna-se um i ÷ u ÷ i a que leva o iniciante para co-

nhecer “todo o mundo” que nos cerca ao longo de um período marcado por terríveis pesa-

delos. Primeiro leva-o para conhecer as alturas desse nosso mundo, o topo das árvores

onde vivem os pássaros, e lá o abandona. No alto das grandes árvores secas, ele é abando-

nado em ninhos de arara piranga e canindé. É levado a passar pelos ramos frágeis de a l -

guma árvore onde estão pendurados por um fio os diversos ninhos de uma colônia de r e i -

congo, até introduzir-se em um ninho. Ele sabe que o ramo, o fio ou o ninho podem r o m -

per-se e ele despencar. É levado para o ninho de não importa que pássaro habitante do alto.

Em seguida, é levado até o topo da muito delgada palmeira açaí. Esta fica a oscilar com seu

peso, ele, enquanto isso, duvida da resistência desse tronco tão flexível. Ao fim, é levado

para conhecer a parte baixa de nosso mundo, aqui representada pelo ninho ou morada do

martim-pescador. É abandonado no meio dos túneis “profundos” que o pássaro abre nos

barrancos, e teme que ele feche a saída para o prender.

Os temíveis acidentes só se realizariam se o iniciante tivesse relações sexuais em

sonho — isso um xamã não deve fazer nunca. Para evitá-lo, o iniciante, independente-

mente da droga que está consumindo, não tem relação sexual na vigília e evita mesmo os

devaneios eróticos. Real ou imaginária, a atividade sexual estimula a alma a sonhar com

80 Conta-se isto do finado Kaia: quando um jaguar se aproximava, ele não sentia medo: pegava

um pauzinho para bater na fera sem machucar. Quando o jaguar lhe aparecia em sonho, dizia-lhe:
“Eu estava brincando e você me bateu com um pau, não foi?” O finado lhe respondia: “É que eu
te acho perigoso!” Uma vez perguntei a Kadu se o jaguar não era um “primo” do xamã, porque
são os primos que “brincam” um com o outro. Ele deu uma grande risada e disse que podia ser
um primo sim, quem sabe?
153

sexo. O i÷u÷ia que o acompanha se recusaria a continuar o ensinamento e poderia puni-lo

com a morte. No caso de pi˚aiha, ele sucumbiria aos perigos que o angustiam, caindo e

quebrando a coluna vertebral ou perdendo-se no interior do ninho do martim-pescador.

Por algumas noites, sofreria ainda os mesmos pesadelos, e morreria em contrapartida da

morte já sofrida pela alma.

Ao fim desse período, o iniciante passa ao segundo estágio: o conhecimento dos

mortos. Em seus passeios noturnos, o i ÷ u ÷ i a mostra-lhe os pés do tabaco pertencente aos

÷ ï ÷ ã n a y ; ele se dedica, no sonho como na vigília, a fumar este tabaco e começa a comu-
nicar-se com os ֕֋nay .

Pi˚aiha, disse-me Wereade, só leva o iniciante para conhecer os mortos depois de


levá-lo para conhecer todo o nosso mundo, esse que nos cerca. Mas é verdade que a droga

não o leva a conhecer uma dimensão importante deste, o interior da floresta, cujas lições

cabem ao jaguar. De todo modo, pi˚aiha ilustra em escala reduzida as regiões extremas do

cosmos que caberá ao xamã percorrer: o céu dos ÷ ë ÷ ã m ¥ e o subterrâneo dos ÷ ï ÷ ã n a y ; e

indica, ao mesmo tempo, que o mundo circundante e o além são ordenados por um mesmo

eixo vertical.

Apesar de promover viagens ao alto, pi˚aiha não responde pela iniciação no x a -

manismo dos mortos e deuses que habitam o céu. Isso é efetuado através da droga π o r i r i k u ,

da qual existem duas variedades, ditas “pequena” e “grande”. A primeira é um arbusto de

fácil acesso nos arredores de Tubatuba que dá flores amarelas; a segunda é uma árvore de

flores vermelhas, bastante rara, que os Juruna atuais nunca viram, mas que afirmam

existir numa ilha distante chamada ãmerïña-b¥, onde viveu o legendário Waisa, um

jovem órfão que desmaiou ao pé de uma dessas árvores e se tornou um magnífico xamã.

Considerada a droga mais potente do xamanismo, ela vem a ser definida como “o tabaco de

Seµã÷ã”, com quem põe imediatamente o xamã em comunicação, capacitando-o a se

tornar o “substituto” do mesmo, e, por conseguinte, imortal e ÷ë÷ãm¥.

Embora muito mais fraco que o tabaco de Seµã÷ã, o πoririku pequeno, cujas folhas

são consumidas do mesmo modo que o tabaco, proporciona um poder muito superior ao das

drogas anteriormente mencionadas. Quer dizer, põe o xamã em comunicação com

Kumahari e seu grupo, os mortos canibais e celestes, os ÷ ë ÷ ã m † . Fumado puro ou m i s -

turado com tabaco, bebido o sumo puro (uma ou duas colheres) ou misturado com cauim

dubia previamente temperado com cauim de macaxeira, provoca forte embriaguez, t r e -


mores e sono profundo. O usuário é levado para a rede, enquanto sua alma é levada para o

céu onde os ÷ë÷ãm¥ o convidam para dançar. Kumahari se torna um i÷u÷ia . Quando não é
154

misturado ao tabaco, este deve ser fumado um instante antes, para não o sonhador se

perder na viagem, porque o πoririku “leva” ao caminho do céu, mas somente o tabaco

“vê” esse caminho. Teoricamente, o poder de curar é adquirido rapidamente, após usar

quatro ou cinco vezes. Teoricamente, porque, até onde pude investigar, somente quem j á

exerce certo poder xamânico deveria consumir πoririku. Não é aconselhável a homens em

idade de procriação ou cujos filhos são crianças ainda: acordando-se subitamente com o

choro ou gritos, a alma não retornaria de sua viagem ao céu81.

A superioridade de πoririku sobre as outras drogas reflete a superioridade dos

÷ ë ÷ ã m ¥ sobre os ÷ ï ÷ ã n a y que habitam o interior dos rochedos, bem como aquela, v i r -


tual, entre os xamãs que se especializam no xamanismo de uma ou outra dessas categorias,

celebrando o festival específico de cada uma. Digo virtual porque um xamã de ÷ ë ÷ ã m † não

é necessariamente mais poderoso que um xamã de ÷ï÷ãnay, mas, para se tornar um xamã

magnífico, é preciso ter comércio com os ÷ë÷ãm†82.

Meu conhecimento sobre os sonhos de estabelecimento de relações i ÷ u ÷ i a com os

mortos é pobre. Presumo que o ponto alto da iniciação deva ser justamente esse, em que

seria preciso desenvolver um controle da conduta onírica para bem dominar a interação

com os mortos. Posso acrescentar que é proibido narrar os sonhos iniciatórios, e que

quando os ÷ï÷ãnay dão um cigarro ao sonhador, a iniciação se torna praticamente r e a l i -

zada.

A participação de um xamã na iniciação de outrem não é um fator indispensável na

reprodução do xamanismo. Um xamã desempenharia apenas um papel análogo e, portanto,

suplementar, ao das drogas. O iniciante sonharia com ele, sua alma encontraria na alma

dele um companheiro de perambulação entre as potências do além. O xamã, poder-se-ia

dizer, agiria como um i ÷ u ÷ i a , mostrando-se-lhe em sonhos83. Mas essa participação,

além de representar uma fonte de segurança psicológica inestimável, é tida como

fundamental para protegê-lo dos perigos que ameaçam sua alma e sua vida, como também,

81 Atribui-se-lhe também uma propriedade laxante: o usuário se levanta para fazer cocô e, sob a

ameaça de interromper o transe onírico, é obrigado a fazê-lo ao pé da rede, onde as fezes devem
ser deixadas até o dia seguinte: a alma de πoririku , expelida, é mantida perto do sonhador para
que ele prossiga viagem, e possa retornar.
82 Há ÷ë÷ãm† que habitam a terra e desempenham no xamanismo o papel de mediadores entre o

homem que se tornará xamã e as almas dos mortos que habitam o mundo subterrâneo e o mundo
celeste. Eles acolhem o iniciante e conduzem-no aos distintos lugares do mundo que é preciso co-
nhecer para tornar-se xamã. Não sei nada sobre esses contatos.
83 Os Shipaya, de um xamã que inicia outro, dizem que “Ele lhe deu seu sonho” (Nimuendaju,

1981: 12).
155

senão principalmente, para proteger o grupo, desfazendo as relações i ÷ u ÷ i a que

porventura o iniciante estabeleça com categorias naturais.

“Quem quer se tornar xamã não pode fazer nada!”, dizem os Juruna com um certo

exagero. São estas as proibições:

• Não narrar os sonhos iniciatórios. Estes a se aproximar de quem teve relações s e -


só conduzem ao estabelecimento de r e l a - xuais ou interrompem o contato; segundo,
ções estáveis e controladas se o sonhador poderiam matar com golpes de borduna a
não os narrar a ninguém. Os ÷ ï ÷ ã n a y alma do vivo que se aproximasse. Mesmo
rompem o contato com aquele que se põe a um xamã experiente sofre restrições, por
contar a sua vida e perde-se o pouco de jamais dever se arriscar à prática onírica
potência já adquirida. A narração só pode de sexo. Assim se diz que um xamã não
ser feita por quem já é xamã, e, parece, tem relações sexuais à noite, como todo
ainda neste caso, deve-se ser discreto, mundo, mas de madrugada, e que se l e -
dizer apenas o que os mortos mandam d i - vanta logo em seguida para não tirar um
zer e jamais divulgar histórias da vida cochilo, ter sonhos eróticos e acabar
pessoal de um morto. tendo a alma assassinada.

• Abstenção de relações sexuais por um • Abster-se do contato com puba seca e


período aproximado de dois anos, primeiro tucunaré, porque cheiram a cadáver s e -
porque os mortos ou nem chegam gundo o olfato dos ֕֋nay.

Puba seca84 e tucunaré despertam aos mortos a lembrança de um fato doloroso, a

morte e putrefação, de modo algum aceitam a companhia de quem tem contato com

“cadáver” — têm medo de cadáver e de quem não tem medo de cadáver! Querendo-se des-

truir a potência xamânica de alguém, basta jogar-lhe uma porção de caldo de mandioca

puba crua!85. O tucunaré é-lhes mais repugnante ainda. Os olhos tristes e parados do peixe

lhes lembram o seu próprio semblante, e definitivamente não gostam de se olhar nesse

espelho86. Ademais, caso o iniciante comesse o peixe, os mortos lhe trariam doença fatal,

jogando-lhe o bichinho que o tucunaré, conforme se acredita, possui na garganta.

84 A mandioca puba em questão são os restos secados ao sol da mandioca puba fresca, utilizada

para fazer o cauim dubia, consumido em cauinagem. A puba seca é utilizada para fazer o cauim
iakupa, bebido diariamente, como refrescante.
85 Teoricamente, o xamanismo é aberto às mulheres; porém, suas relações seriam estritamente

com mulheres ÷ï÷ãnay . O fato de os mortos tomarem o cheiro da puba como cheiro de cadáver
sugere que dificilmente uma mulher poderia desenvolver potência xamânica, pois isso implicaria
não só que parasse de trabalhar por longo tempo, como que ela viveria constantemente na i m i -
nência de perder os i÷u÷ia quando sonhasse depois de manipular mandioca puba. Eu não saberia d i -
zer se as mortas deixam de interpretar a puba seca como cadáver.
86 Talvez os Juruna dificilmente convençam a alguém que os olhos do tucunaré sejam particu-

larmente diferentes dos de outros peixes. De toda forma, sabem que tem um olhar de defunto
porque os ÷ï÷ãnay assim o crêem. O olhar dos mortos não é objeto de uma representação homo-
156

A equação da puba e do tucunaré como humanos, que pareceria uma simples metá-

fora ÷ï÷ãnay, apresenta um valor literal para o xamã. Mais do que perder a potência, ele

pode sofrer de um mal provocado por esse “canibalismo” e pagar a quebra do tabu com a

própria vida. Um mal que pode atingir o matador em resguardo, a mocinha que fica

menstruada, a mãe de um recém-nascido, e no limite qualquer um que, contaminado por

sangue de Índio ou de mulher, aspire o fedor de queimado: grave disfunção digestiva

(endurecimento da barriga e prisão de ventre) causadora de morte. Vale dizer que o sangue

de Índio (cujo corpo apodrece na floresta) está para o matador como o tucunaré e puba seca

estão para o xamã.

Estas são as normas cuja transgressão leva o iniciante a ficar doente (os sintomas

nem sempre são previamente apontados):

• Abster-se de bebidas que ainda não e s - alma de um iniciante. Abster-se, pelo


tão bem fermentadas; isto provocaria dor mesmo motivo, de carne de caça.
no peito, um índice de males sofridos pela
alma. • Abster-se de peixes violentos/impuros
(kaipa÷¥), como o trairão, a piranha e o j á
• Não aspirar o “fedor” de queimado, so- mencionado tucunaré. Sua dieta é com-
bretudo o que exala a queima dos pelos da posta apenas de filhotes de peixes
caça. A fumaça e o cheiro são veículos bons/bonitos ( ikia ), como cará, pacu, cu-
da alma da caça, suposta violenta para a rimatã (ou seja, peixes “não-canibais”).

Veremos adiante que o fundamento ordinário das proibições alimentares é a teoria segundo

a qual a alma do alimento exerce sua atividade predatória típica pelo simples fato de ter

sido ingerido. A iniciação xamânica propõe um fundamento original: os ÷ ï ÷ ã n a y são os

causadores do mal: arremessam as “coisas” que os peixes têm sobre o xamã (“Você sabe,

os peixes têm muitas coisas!”, segundo me disse laconicamente Kadu).

gênea. Foi visto acima que só possuem a parte branca dos olhos, são cegos. Aqui aparecem com
olhos de tucunaré, carentes de movimento e vivacidade. No contexto da cauinagem, onde também
são apontados como cegos, os Juruna dizem que os seus próprios olhos se parecem com os dos
mortos: a embriaguez os faz ficar com os olhos cheios d’água. Os ÷ ï ÷ ã n a y , por saudade dos v i -
vos, “sempre” têm lágrimas nos olhos. O semblante da alma é um tema instável: ora é o de seu
cadáver, ora o do vivente. Wereade propôs uma vez que, dependendo da vontade própria, os
֕֋nay se apresentam com um olhar de defunto ou com um olhar de vivo. Quanto ao fedor do tu-
cunaré, os Juruna se dizem pouco sensíveis, mas dão razão aos mortos afirmando que, diferen-
temente de todos os outros peixes, o tucunaré começa a apodrecer no instante em que é flechado.
Veremos adiante que o moribundo Juruna também começa a apodrecer cedo: antes de morrer, j á
está exalando o cheiro da morte.
157

Destacam-se finalmente as restrições relativas às andanças do iniciante, a fim de

evitar desvios do xamanismo. Conforme observei acima, as drogas abrem a comunicação

com os mortos após abrirem a comunicação com seres naturais diversos, dos quais alguns

são reconhecidamente inúteis, outros são maléficos. A regra diz que não se deve sair da

aldeia, pois:

• Andando debaixo do sol quente, o sol se • Andando debaixo da chuva, fica-se com-
torna companheiro do iniciante, que acaba panheiro do relâmpago e passa-se a cau-
sofrendo dores demasiado fortes e morre sar grandes tormentas.
em pouco tempo. Por mais que um xamã o
separasse da alma do sol, ela retornaria • Andando na floresta, contrai-se i ÷ u ÷ i a
para sua companhia. de animal pertencente a não importa que
espécie: cobra, anta, porco87 etc...
• Andando ao pôr do sol e à noite, contrai-
se i÷u÷ia de barata.

Os desvios revelam de que forma os Juruna refletem sobre o deslizamento possível

do xamanismo em um empreendimento privado que não se pode por a serviço dos i nte-

resses coletivos. Considera-se, com efeito, a possibilidade de existir alguém com tão pouco

discernimento que queira manter relações i÷u÷ia com animais, inclusive com um ser tão

desprezível quanto as baratas. Isto exemplifica o máximo do ridículo a que um xamã pode

chegar: “Aquele que sonha com barata, aquele que vê barata virar gente para ele, ah!, ele

só sabe contar [histórias] de baratas!” É preciso a intervenção de um segundo xamã para

anular, à revelia do iniciante ou não, a potência xamânica assim constituída, pois um

“xamã de verdade” é aquele que, como diz Wereade, tem notícias dos parentes mortos para

contar. Um “xamã de mentira” é dotado de uma potência verdadeira — indubitavelmente

verdadeira — sendo, porém, suficientemente bobo para querer promover o contato entre

os Juruna e os animais, trazendo-os para beber cauim com as pessoas.

À primeira vista, da perspectiva de um xamã, não haveria fronteiras absolutas

entre o animal e o humano, justo porque no mundo do sonho que as drogas lhe permitem

habitar, os animais franqueiam a natureza humana. Investiguemos a relação entre esta

aliança virtual e ilegítima e a aliança efetiva e legítima, pois assim poderemos circuns-

crever melhor a concepção de mundo que aí está em jogo, e desfazer a impressão de que a

oposição homem-animal é suprimida.

87 O xamanismo dos porcos apresenta de fato a dupla marca de desvio e instituição.


158

Em parte como a relação com o jaguar, mas em grau muito superior, a aliança com

animais é adquirida na vida diurna (com o iniciante saindo da aldeia para fazer isso ou

aquilo), quer dizer, no plano de realidade onde opera a perspectiva dos humanos — e os

homens vêem os animais como seres irredutíveis. É certo que a aliança depende da ordem

do sonho para se revelar ao xamã e se expandir, e que só aí ele a vivencia como relações

intersubjetivas mediadas pela linguagem. Mas na vida diurna ele é capaz de atraí-los ao

embriagar-se com tabaco. Dá-se outra coisa com a aliança com os ÷ ï ÷ ã n a y . Não é con-

traída neste mundo, os mortos só existem no além, e o sonho não é somente o tempo em que

a aliança se faz, como o espaço que é preciso percorrer para chegar a eles. De outra parte,

do ponto de vista funcional, os aliados animais diferem grandemente das alianças com as

drogas e o jaguar. Estas são um complemento necessário da aliança com os mortos e atuam

num espaço-tempo particular; os animais não são supostos conduzirem aos mortos e

franqueariam o espaço-tempo empírico.

As alianças animais proporcionam uma potência derrisória que não leva a parte

alguma. A despeito de sua viagem no tempo do sonho, o xamã rigorosamente não sai do

lugar. O que ele faz é atrair a espécie i÷u÷ia para a aldeia — o que não é nada bem visto.

Perguntemos o que faria, por exemplo, um xamã de baratas. Ou melhor, o que tentaria ele

fazer. Além de atraí-las em grande número, desejaria justamente fazer o mesmo que um

xamã de ÷ ï ÷ ã n a y : trazê-las para beber cauim com os Juruna. Transmutando-se em

humanos no mundo do sonho, as baratas pensam possuir realmente esta natureza, “para s i

próprias, são seres humanos ( dubia )”, e querem desfrutar da companhia dos Juruna

bebendo o seu cauim. Para os Juruna, isso seria ridículo; a despeito do que pensam de s i

mesmas e de suas relações com o xamã, “para nós mesmos, são baratas”.

O sonho não remete a um plano de indiferenciação geral em que as espécies animais

se dissolveriam todas no humano. Não se afirma a existência de um nível em que todos são

antropomorfos (como eu mesma o fiz anteriormente e que trato de esclarecer agora) senão

com duas reservas muito importantes. A mutação em humano é um episódio de caráter

individual: o i÷u÷ia jaguar, por exemplo, passeia com o xamã pela floresta, e o que os dois

aí encontram são animais, inclusive outros jaguares. Apenas ocorre que a percepção

humana é incompatível com a percepção que os animais têm de si; todo animal ignora sua

crua realidade, pensa que é humano e procura contato com homens. E mais: distingue-se

dos animais de outras espécies como um homem em oposição ao animal. Trata-se assim de

uma concepção que afirma não que somos todos homens, mas que todos os animais distin-

guem o humano e animal e incluem-se a si mesmos entre os homens.


159

Os animais, à exceção do jaguar e de alguns outros (como o tucunaré), são vistos e

tratados como tal também pelos mortos. Sem chegar a pertencer à categoria humana, sem

tampouco ser um mero animal, o jaguar é um ser único. Capaz de habitar a floresta como

animal, capaz de freqüentar a sociedade dos ÷ ï ÷ ã n a y , como um semelhante, uma pessoa.

Sua inscrição cosmológica é, portanto, dupla, assim como a do xamã, que é simultanea-

mente capaz de perceber o mundo como vivo e como morto.

Vimos assim como a possibilidade do desvio se inscreve no próprio coração do

xamanismo: o que promove a comunicação com os mortos também condiciona a comuni-

cação com categorias naturais. Como se uma homologia houvesse entre a distância que

separa os vivos e os mortos e a que separa os homens dos animais, sendo ambas transpostas

no e pelo xamanismo.


Vejamos agora a conjuntura atual do xamanismo. Desapareceram os xamãs. Já

vamos ver que esse diagnóstico é parcialmente arbitrário, pois existem poderes que se

tramaram contra a corrente das representações que acabamos de ler, e outros estão se

tramando silenciosamente. Ademais, em 1966-67, segundo Adélia de Oliveira, os Juruna

já diziam que não havia mais xamã; porém dois homens exerciam esta função e cada um

celebrava o festival dos mortos em que era especializado. Entre os Juruna, o xamanismo

nunca foi uma função exercida por um grande número de homens. O último xamã de v e r -

dade foi morto num ataque dos Txukahamãe, quando Kadu era jovem (nos anos 40, p r o -

vavelmente). Apontam-se, por outro lado, dois ou três xamãs nos últimos 30 anos. O P a i -

de-Wereade, que desenvolvia o xamanismo de porcos e pretendia enveredar no mundo dos

÷ï÷ãnay, morreu jovem, há mais de 15 anos, fulminantemente, vitimado pela alma de sua
vítima, um jaguar88. O pai do Pai-de-Wereade (Kaya) celebrava o festival dos ÷ ï ÷ ã n a y e

privava da vida dos jaguares. Morreu em 1974, de velhice. Foi um grande guerreiro que

teve durante sua longa vida nove esposas. Foi também o último grande navegador: foi a

Altamira e voltou de canoa! O Pai-de-Kadu (Bibina), morto no começo dos anos 80, c e -

88 Este homem tem um nome de finado, raramente utilizado mas que ouvi uma vez da boca de sua

filha: “Vítima-de-jaguar”.
160

lebrava o festival dos ÷ ë ÷ ã m ¥ . (era, segundo alguns, um muito fraco xamã). Desde a

morte desses xamãs, ainda não surgiu outro.

Há quem sustente, como Wereade, que não é a primeira vez que um grupo Juruna

se vê sem xamã. Em tal circunstância, o xamanismo pode ser reativado seja por iniciativa

de algum homem, seja por iniciativa dos ÷ ï ÷ ã n a y que elegem alguém a quem se mostram

em macabra aparição de cadáver-vivo. Se o sujeito não desmoronar de medo, acabará

aceitando o convite dos mortos para transitar em seu mundo, e daria então início ao uso das

drogas. Conta-se que Yawajiwa, um homem que tem grande admiração pelo xamanismo dos

÷ ï ÷ ã n a y e assumia o papel de dono do seu festival até a morte de Kaya, já sofreu esta
experiência e, ainda segundo Wereade, os ÷ï÷ãnay certamente lhe aparecerão outra vez.

Alguns homens revelaram-me, ocasionalmente, sua vontade de tornar-se xamã,

entretanto, a esposa logo ironizava dizendo que ele não conseguiria passar sem vagina,

como se diz em Juruna. Todos desejam um xamã, mas as mulheres, parece, esperam que

isso se recrute entre os maridos das outras. Mareaji pensa que está na hora de Kadu t o r -

nar-se xamã, uma vez que ele já está ficando velho e os outros estão ocupados com a r e -

produção.

Desde a morte dos xamãs, e mesmo antes, não faltaram tentativas de iniciação. O

primeiro foi Mayt¥wa, um velho que uma vez me disse que os finados Kaya e Bibina jamais

foram xamãs. Ele vinha experimentando sonhos com os ÷ ï ÷ ã n a y , mas perdeu todo o poder

ao aspirar, sem querer, o cheiro de mandioca puba seca. Outro foi Kadu, que começou (em

1987 ou começo de 1988) a consumir a droga do jaguar mas recuou amedrontado depois

que um jaguar o encarou da beira do rio, enquanto ele pescava tucunaré em sua canoa,

perto da margem. De toda forma, vem sonhando esporadicamente com os ÷ ï ÷ ã n a y e para

ele se tornar um xamã basta um empurrão, eu diria (embora isso, conforme relatarei no

último capítulo, tenha sido feito em agosto de 1990, mas ele me afirmou dois anos mais

tarde que não era xamã ainda). Corre um rumor de que Saadea (um homem que beira os 50

anos, genro do Pai-de-Kadu) vem desenvolvendo desde 1987 um contato onírico com os

mortos propiciado unicamente por tabaco, seja porque ele teme as drogas ar¥pa e pi˚aiha ,

seja porque, principalmente, seu interesse é tomar a droga πoririku para se aliar aos

÷ë÷ãm†. Contudo, Kadu o aconselhou a não fazê-lo por enquanto, lembrando-lhe que seus
filhos pequenos poderiam chorar à noite durante as viagens ao céu. Não o interroguei sobre

suas experiências, em respeito ao seu deliberado silêncio e à observação que outros me

fizeram: “Ele diz: ‘Esperem! Esperem! Eu não aprendi ainda!’” Também corre o rumor de
161

que o jovem Manako vem experimentando um grau mínimo de xamanismo ÷ ï ÷ ã n a y , nos

quais deseja especializar-se, para seguir a carreira do pai89.

Quase paralelamente ao despertar do interesse de Kadu e Saadea, um irmão do s e -

gundo, Taykap¥, começou a praticar a terapia xamânica Kayabi, após por ter sido eleito

por i÷u÷ia animais, especialmente um trairão que lhe deu “sua própria doença”. Isso se

passou no alto inverno de 1987 (eu não estava no campo), numa ocasião em que muitos

Juruna procuraram o Posto Diauarum, derrubados por grave diarréia e/ou malária. O

Posto abrigava naquela estação um grande número de Kayabi e Suyá também doentes, e lá

sucederam várias ocorrências de um estranho mal com que todo mundo se assustou: p a r a -

lisia facial. Determinou-se que o Diauarum fora enfeitiçado por gente das tribos que v i -

vem em torno do Posto Leonardo, os xinguanos. Fizeram-se subitamente xamãs duas moças

e um homem que muito trabalharam até conseguirem dar cabo das doenças. Uma das moças

é Kayabi, e exerce até hoje o ofício. A outra, Daimã, é Juruna por parte de mãe e Kayabi

por parte de pai. Ela exerceu com reputado sucesso o xamanismo terapêutico por mais de

dois anos. Vivendo numa aldeia habitada apenas por seus pais, irmãos e uma irmã casada,

situada entre o Diauarum e Tubatuba, um barco ia buscá-la freqüentemente para ir ao

Posto atender doentes, e os Juruna, por sua vez, também lhe levavam os doentes. Um dia,

adoentada, magra, esgotada psicologicamente por uma vida onírica muito dramática, em

que um homem celeste ( ÷ ë ÷ ã m † ), de barba comprida e pele alva, muito ciumento, defi-

niu-a como sua noiva, deixando-a muito seduzida e atormentada, ela, sabendo que se d i s -

sesse sim ao pretendente sua alma não retornaria jamais à terra, ela decidiu, frente a tudo

isso, fazer uso de umas folhas para desvencilhar-se do xamanismo. No mais, esse homem

não concordava nem um pouco que ela assistisse os doentes na grande freqüência com que

era requisitada, e dizia-lhe estar completamente enfadado de efetuar os tratamentos. Com o

uso do antídoto, Daimã perdeu o xamanismo em um grau que não lhe permite mais exercer

a terapia; contudo, sua vida onírica não foi apaziguada e seu maldito admirador lhe deu

uma filha que nasceu em janeiro de 1990.

O terceiro xamã, Kaduwa, é um Juruna casado com uma Suyá, residente neste

grupo. Sua potência degenerou em doenças constantes e graves e ele teve de interromper o

89 Também Wereade tentou se tornar xamã quando era rapaz. Contava com a aprovação do avô,

não porém com a do pai, que tinha sofrido recentemente muitos sonhos de angústia com a droga
pi˚aiha. Foi justo esta droga que Wereade se dispôs a tomar quando um dia viu sua mãe arrancar
a embira da madeira com que pretendia armar um tear. Tomou apenas uma dose e um banho, pois
ficou apavorado com um sonho em que subia numa árvore seca até quase o topo, tentava gritar e
não conseguia.
162

ofício ainda durante aquela estação. Certo de que sua saúde fora abalada por potências

xamânicas, em 1989 passou seis meses entre os Txikão, iniciando-se com um xamã

Waurá casado naquele grupo. Em 1990, encontrei-o trabalhando no Posto de Vigilância,

depois de ter passado alguns meses em Tubatuba (onde efetuou alguns tratamentos), s e m i -

foragido dos Suyá, pois entre estes corria o rumor de que era aprendiz de feitiçaria.

Chegaram a tomar-lhe a esposa, com quem tem quatro crianças, mas meses depois ela foi

ter com ele no Posto de Vigilância. Era então um xamã de pequenos poderes. Disse-me que

o Waurá lhe deu o próprio cigarro para fumar; começou então a ver doenças e extraí-las,

doenças que só são visíveis a ele. O iniciador prometeu introduzir-lhe um dia na palma das

mãos uma pedra, que dará visibilidade às doenças aos olhos dos outros.

Enquanto o xamanismo explodia no Diauarum no começo de 1987, Taykap¥ estava

em Tubatuba. Sua mãe foi gravemente atingida pela diarréia. Um dia, ele experimentou e

conseguiu extrair a doença dela. Comprovou-se que xamanizava. Na mesma época, Suray,

seu irmão, limpando o mato que crescia detrás de casa, foi picado por uma jararaca. L e -

vado para o Diauarum, lá encontrou o sentido para os seus sonhos e delírios com cobra.

Kaduwa lhe disse que as cobras se tinham feito i÷u÷ia dele, xamanizaram-no. Com efeito,

Suray tornou-se xamã de cobra, como ele próprio me confirmou numa noite do alto i n -

verno de 1989, quando uma cobra picou seguidamente três cachorros, dois dos quais

morreram, mas o terceiro foi salvo por ele com fumegação de tabaco. O grande carinho que

impregnava sua voz quando me falou de cobras fez-me achar sua experiência muito s i n -

gela. Ele fala das cobras como se elas fossem pessoas, mais precisamente crianças dotadas

de muita graça. A graça estando no interesse que sentem por ele, tentando aproximar-se

cada vez mais, mirando-o nos olhos, enrodilhando-se, arrastando-se um pouco, dubita-

tivas quanto a chegar mais e mais perto — o que ele descreve como se estivesse movido de

afeto. Isso se dá tanto na vigília como no sonho, mas ele não me contou se, em sonho, se

passa algo mais. A experiência mais notável que me revelou se deu durante uma cauinagem.

Uma cobrinha o procurou — decerto, presumiu, ela queria um pouco de cauim! Ele ficou a

apreciar seus movimentos de longe, mas Taykap¥ (que é muito mais desinibido) recep-

cionou a cobra, tomando-a na mão, fazendo muita palhaçada, e pondo na sua boquinha o

cigarro dele para ela fumar. Suray disse que os olhos da cobra eram muito vivazes e que

ela fumou.

Os Juruna, sem chegar a negar que Suray seja um xamã de cobra, mantêm-se em

silêncio, ao menos comigo, e para falar sobre o caráter desprezível de semelhante xama-

nismo preferem ilustrá-lo por meio de outros bichos.


163

Em março de 1990, Arakaida, uma mulher de trinta e poucos anos, grávida, foi

também inesperadamente tornada xamã. Um grande galho de árvore caiu na cabeça do

marido dela. Sofrendo fortes dores, ele foi levado pelos pais e por ela para o Diauarum,

com a expectativa de ir a Brasília submeter-se a exames médicos. Durante a espera do

transporte, um xamã Kayabi foi chamado para assisti-lo, e, enquanto executava o rito,

sucedeu-lhe tomar a mão de Arakaida e colocá-la na cabeça do marido. No mesmo golpe,

passou-lhe o cigarro. Ela não vê a doença, mas consegue arrancá-la. Era um dente de p i -

ranha, conforme diagnosticou o xamã. Desde então Arakaida consome tabaco

(industrializado) regularmente e é requisitada pelos Juruna para olhar os doentes. Uns

dois meses mais tarde, o iniciador convidou-a para participar, no Diauarum, de um longo

e complexo rito de recuperação da alma de uma jovem (Pïdarï, Juruna por parte de mãe

e Kayabi por parte de pai), no qual Arakaida teve a oportunidade de ampliar sua potência.

Eu estava no campo e pude acompanhá-la. No momento em que a alma de Pïdarï começou a

descer do céu, momento crítico da irrupção das potências do além em nosso mundo, o xamã

mostrou a Arakaida numerosos e pequeninos seres luminosos que vinham desabando sobre

nossas cabeças e se perderiam entre nós. Ela apurou demais a vista e despendeu uma

grande força para agarrar no ar uma daquelas luzes que caíam a toda velocidade, e súbito

foi derrubada no chão onde ficou um longo momento, desacordada e transida. Os Juruna que

estavam presentes deram-me interpretações Juruna a respeito do que estava acontecendo,

Pïdarï, entretanto, esclareceu que não era exatamente o que os Juruna chamam de alma

que acabara de vir do céu, mas uma das três almas de que falam os Kayabi. Desde então

Arakaida é capaz não mais apenas de detectar a presença da doença, ela a vê. Taykap¥, cuja

esposa estava gravemente doente na ocasião, estava com ela no Diauarum e participou do

ritual, ao lado de Arakaida.

Afora os poderes já constituídos de Taykap¥ e Arakaida, no verão de 1990 encon-

trei entre os Juruna um quadro peculiar. Durantes as cauinagens, certas mulheres jovens

vinham sendo presas de uma crise algo histérica ou diabólica que se desencadeava s i m u l -

taneamente. Tremores, espasmos, lágrimas e murmúrios. Arakaida comparecia para a s -

sisti-las, embriagando-se de tabaco e defumando-as. Entre elas, destacava-se uma jovem,

Juruna por parte de pai e Suyá por parte de mãe, falante apenas da língua materna e r e -

sidindo há poucos meses em Tubatuba (aldeia a que pertence seu marido, e para onde o seu

pai voltara recentemente depois de mais 20 anos de residência no Diauarum ou na aldeia

Suyá). A primeira vez que presenciei a crise desta jovem não havia cauinagem e nenhuma

de suas companheiras estava na aldeia. Pensei que se tratava de um ataque epilético e por
164

mais de meia hora, ela sendo segurada por três homens, tentei evitar com o cabo de uma

escova de dente que se sufocasse. Nunca vi uma força tão grande, da qual não se acreditaria

capaz um homem. Afirmei que era urgente levá-la para consultar um médico, ninguém me

disse que se tratava de xamanismo. Descobri na manhã seguinte, lavando roupa numa praia

a uns vinte minutos de canoa da aldeia, que as meninas de oito a dez anos sabiam todas

imitar com perfeição a crise. Era uma brincadeira muito divertida, que só se ousava fazer

escondido dos adultos e na qual Pudu merecia uma medalha. Por ocasião das crises em c a -

deia, aquela moça mostrava, mais tarde, estar mais adiantada do que as outras, dizendo ter

visto a alma de uma menina aparentando uns quatro anos a chamar pela mãe. Tratava-se de

um bebê enterrado vivo muito recentemente, filho de uma das jovens que sofriam a crise,

e cujo choro embaixo da terra era ainda, para a mãe, inesquecível e tornou-a melancólica.

O que é esta crise? São potências xamânicas Kayabi invadindo os Juruna. É um

grande desgosto, é muito feio. Lembra-se que isto jamais tinha acontecido aos Juruna,

agora está acontecendo, um horror, e explodem reclamações de todo lado. Depois se vem a

saber que fulana ou sicrana apanharam do marido por causa disso. “Quem quer ser xamã,

por que não vira xamã de verdade?” Não se quer saber de xamanismo Kayabi. Por outro

lado, recorre-se com freqüência ao xamanismo de Taykap¥ e Arakaida.

Se Arakaida não encontrou nenhum obstáculo a sua prática foi apenas porque o

terreno já fora preparado por Taykap¥. Acha-se feio, primeiro, a potência xamânica que

se constitui numa aliança com animais, alienando-se dos mortos; segundo, que um Juruna

emita o grito intermitente e monótono do terapeuta Kayabi. Quando se tornou xamã,

Taykap¥ despertava nos outros uma grande vergonha, ninguém queria ouvir a melodia que

acompanha o ritual, e ele veio a ser muitas vezes ridicularizado pelas irmãs da esposa,

uma das quais um dia o surpreendeu com um banho de mandioca puba para dissolver sua

potência. Anunciou-se que tinha perdido os i÷u÷ia.

Taykap¥ hesitou mas não sucumbiu. Prestou um dia serviço a um doente s u p r i -

mindo a melodia. Não se tinha mais de que queixar. Adoentado, levou a história de seu p o -

der, até então inexplicado para ele mesmo, a um velho xamã Kayabi. Este lhe expôs o

sentido da coisa: ele havia passado os seus “animais de estimação” para Taykap¥ (sem por

isto deixar de os ter ainda), porque ele (o Kayabi) estava muito velho e porque os Juruna

precisavam de alguém que os assistisse. Para os Juruna não há necessidade de mais e x -

plicação. Taykap¥ resume sua história:


165

Comigo aconteceu isto. Estávamos aqui [em Tubatuba] bebendo cauim. O sol estava lá,
posuka [umas três da tarde], nós outros bebíamos cauim. Kãïba brincava conosco e ele
me disse: ‘Vamos tomar um banho’. Nós dois fomos ao rio. Ele me empurrou, fui cair
dentro d’água. Ai! eu nada sabia de mim! Adormeci dentro d’água. Kãïba me puxou pela
mão e foi me arrastando. Como eu tremia quando ele me tirou do rio! como eu tremia!
Nesse momento eu já podia ver. Minhas pernas estavam tremendo, assim.
Eu vivia bêbado. Agora não estou mais assim. Eu não parava de sonhar com os animais
de estimação de Pajezinho [o apelido do xamã Kayabi]. Nós fomos na aldeia de Daimã, o
pai dela ficou preocupado. Então contei a Pajezinho. ‘Está bom’, disse-me ele, ‘está
bom que estejam com você! Eu, agora, eu estou velho. E você, seu pessoal precisa de um
xamã, é bom que acompanhem você’.
Daimã, ela me disse: ‘Não queira, evite! isso não presta, não! Você pode morrer, isso
pode matar você!’ Pajezinho, ele me disse: ‘É bom! Não vai acontecer isso, não! É bom
que o acompanhem! Não vão te matar, não!’ E ele me assoprou, me benzeu com folhas de
ünãha, e me disse: ‘Não vai acontecer nada, você ficará bom!’
Foi assim que fiquei bom. Agora eu posso comer trairão — ah, eu não como no entanto.
De agora em diante eu vou comer trairão — ah, quando eu vejo trairão eu me embriago
logo. De agora em diante eu vou ver, vou ver trairão, vou pescar, vou matar.
Um dia eu estava sozinho, longe daqui, eu quase morri. Peguei um trairão e fiquei
bêbado e caí na canoa, longe daqui. Eu estava pescando. Dei linha ao anzol, ele fisgou,
fisgou e puxou toda a linha e foi embora. Eu não o vi ir embora, estava adormecido,
estava caído na canoa. Eu tinha levado fumo e fumei ao despertar. Ah, como doía minha
cabeça, eu não tinha pescado nada, apenas dois tucunarezinhos. Vim direto para cá.
Contei a Aridama∂u [sua esposa]: ‘Minha cabeça está doendo, o trairão puxou a linha de
meu anzol e eu caí na canoa’. ‘Se você cai no rio, você morre’, ela me disse.
Voltei rápido, vim direto para cá. Minha cabeça estava doendo. A alma de Pajezinho, de
lá, em ÷ ï ÷ ã n a y , extraiu [a causa da dor], era um dente de trairão. E eu, quando
acordei, já estava bom.
É por isso que não pesco trairão. Se eu vejo um trairão eu me embriago logo, e ele
arremessa o dente dele em mim. Eu me assopro fumaça de tabaco e fico bom. Isto não
acontece mais comigo agora, eu comi trairão um vez e não aconteceu nada. Eu não quis
no entanto continuar comendo. Quando eu sonhar com ele não posso comer, quando eu
não sonhar eu posso comer. No entanto nunca mais eu quis comer.
Primeiro eu curei minha mãe. Ela estava sentindo dores em todo o corpo, eu extraí.
Dias depois nós fomos para montante. Dukayu estava doente, com uma dor na barriga.
Chamaram-me, eu fui e extraí. Ah, eu fumava e me embriagava logo.
É por isso que eu não fumava. Só ao por do sol é que eu fumava, ao meio dia eu fumava,
ao nascer do sol eu fumava — só a essas horas. Mas agora eu posso fumar qualquer hora
166

— fumar sem tragar [beber a fumaça] apenas. Quando tragamos [comemos a fumaça]
nos embriagamos, quando apenas fumamos, não. É embriagante demais a fumaça de
tabaco: isso nos derruba! Você não me viu tratando Yaram¥y? Minhas pernas estão
doendo, antes doía em toda parte, já melhorou.
Um dia, na Lagoa Grande, [no acampamento de roça], Ku≈ina me pediu um bebê, à
tardinha. ‘Você podia me dar um filho!’ ‘Faça cauim para isso!’ E ela fez cauim de
macaxeira e separou uma porção para mim, o restante ficou fermentando. À noite,
enquanto eu dormia, eu bebi pela criança. Bebi, bebi, bebi. Na manhã seguinte contei a
ela, ofereci a ela a bebida, e ela ficou com medo e quis recusar. Eu lhe disse: ‘Beba!’ Dei
a ela, ela bebeu. ‘Agora você pegará criança’, eu disse e ela pegou. Mais tarde, à noite,
ela pegou uma criança. Suray copulou com ela, eu disse a ele que copulasse naquela
noite, e o bebê surgiu.
Mas ela sentia medo. A barriga começou a doer, ela sangrava um pouco e veio me contar.
‘É que você tem medo da criança, é só isso, acho que vai passar’, eu lhe disse. E passou
de fato.
Agora foi Yamakaji que veio me pedir um bebê. Eu vou procurar um bebê para ela,
quando eu fumar eu vou procurar, eu vou sonhar, eu vou fumar para sonhar com um
bebê.
Se você me pedir um bebê eu lhe dou. Você não poderá comer qualquer coisa, você não
poderá comer caça grande, não poderá comer carne de boi. Você comerá arroz,
macarrão, galinha, estas coisas. Você não comerá alimentos que exalam cheiro,
grelhados, você comerá apenas alimentos cozidos. Assim é bom. [Por que?] Para não
morrer! Se aspirar cheiro você poderá morrer — sua barriga doerá, você sangrará
muito... E você virará xamã por causa disso, se seu filho morrer você virará xamã.
Caso você queira, senão não acontecerá. Você ficará doente por isto. Doente por um
longo tempo, depois ficará boa. Você sabe, eu fiquei doente, não fiquei? [Por que?]
Porque faz mal, o xamanismo dos Kayabi me faz mal! Foi assim que fiquei faz tempo.
Vou parar agora. Eu já contei.

Taykap¥ se serve muito bem de sua potência, mas sua prática não é rigidamente

colada às representações tidas como tradicionais. Vejamos o caso da fecundação de Ku≈ina

por um cauim de macaxeira que ele se pôs a beber em sonho, e que parece ter sido elevado

à potência de sêmen apenas porque algo passou ao cauim durante o sonho. Embora ele tenha

divulgado o processo da concepção, ninguém leva em conta sua explicação, e todo mundo,

Ku≈ina inclusive, tem a menina Kabi∂u como uma criança ÷ ï ÷ ã n a y que Taykap¥ furtou

em sonho de pais ÷ï÷ãnay e assoprou-a na barriga de Ku≈ina. Conta-se isto, em nome de

que assim procediam no passado os xamãs Juruna, não obstante também exista uma certa
167

tensão entre cauim e sêmen, intrínseca às teorias relativas à concepção, segundo as quais,

como será visto mais adiante, um “dedo polegar” uterino “trabalha” o sêmen como a

mulher “trabalha” o cauim; e o bebê, depois de feito e até o nascimento, bebe cauim assim

como bebe sêmen. Taykap¥, a meu ver, tentou fazer da metáfora um fato literal, confiando

ao sonho a transubstanciação. Ku≈ina (casada então havia uns oito anos com o seu irmão,

incapaz de dar-lhe um filho por ter tomado anos antes de casar com ele, quando o seu único

filho era menino ainda, uma dose dupla de “droga do sangue” para não mais engravi-

dar90), estéril para o sêmen, seria fértil para o cauim. Talvez porque essa hipótese não

mostrou aderência às representações do grupo, o bebê que mais tarde Taykap¥ deu a

Yamakaji, ele o raptou em sonho e assoprou-o na barriga dela, também em sonho.

Não obtive muito investigando as circunstâncias do rapto do bebê de Yamakaji, e

tampouco quando investiguei um acordo que o xamã travou com um porco e que culminou

numa caçada de porcos na beira das roças que ficavam atrás da aldeia. A filha de Kadu lhe

pedira três dias antes da caçada para trazer porcos, ele fumou antes de dormir para sonhar

isso — a caçada foi executada. Taykap¥ está seguro de ter sonhado, mas a mim pareceu que

sonhar não comporta necessariamente a lembrança de um sonho. É claro que ele s i m -

plesmente pode ter querido não me contar, mas como sempre foi um informante generoso e

me contou diversos sonhos, penso que quando se mostrava lacônico é porque não havia nada

mais a dizer. Eu afirmaria que sonhar é, para ele, uma premissa que dispensa a lembrança

pontual de um sonho: sempre considera ter feito em sonho o que tinha a intenção de fazer

antes de dormir — o tabaco que então consome parece ser uma garantia antecipada e mais

importante do que a lembrança. A grande prova é menos o sonho pontual do que, por

exemplo, a gravidez de Yamakaji. Uma vez afirmou-me que, na vida desperta, não se vê —

nenhum xamã vê — potência alguma. O que é invisível para todos também o é para o xamã,

exceto que se pode sentir a presença de um ser invisível.

90 Trata-se de apeta uaha. Os Juruna não conhecem drogas abortivas. O aborto é produzido me-

canicamente, pressionando o feto com o polegar. Conhecem, porém, essa droga que provoca e s -
terilidade temporária ou definitiva, conforme a dose. A menopausa é atribuída à mesma e toda
mulher, antes de chegar à menopausa, geralmente após um parto, faz uso dela para suspender a
menstruação. A dose determina a extensão do efeito. Se uma mulher jovem tomar duas doses
grandes ela, além de tornar-se estéril, pára de menstruar. Alguns afirmaram-me que se trata da
casca de uma árvore frondosa, mas também vi chamarem de apeta uaha uma liana grossa a que
atribuem as mesmas propriedades. Excetuando-se o que afirmam dos mortos, os Juruna desco-
nhecem a esterilidade masculina.
168

A idéia da aquisição de doença/potência xamânica pela mulher que abortasse um

bebê concebido por meios xamânicos tampouco é respaldada pelos Juruna. Com efeito, uma

criança de ÷ ï ÷ ã n a y exige da mãe um número maior de cuidados, ou melhor, ela tem de

seguir estritamente as regras que proíbem isto e aquilo, porque o que é verdadeiro para as

“crianças daqui mesmo” é mais verdadeiro ainda para aquelas trazidas do além. A captura

de crianças entre os ÷ ï ÷ ã n a y não é diferente do costume destes últimos de capturar

crianças dos vivos. Quando o xamã efetua o roubo, os pais ÷ ï ÷ ã n a y podem bem ficar tão

desconsolados que procuram o filho; caso tenham a sorte de encontrá-lo no útero de uma

mulher, pegam-no e levam-no consigo. A mulher simplesmente aborta o feto, por causa da

partida da alma. Ela pode ficar doente, é certo, pois caso o pai da criança tenha a intenção

de lhe fazer mal ele o fará; ela pode mesmo morrer, caso decida levá-la também, com a

intenção de se casar com ela ou dá-la a outrem. Mas ela não se tornará xamã.

Não é impossível que meus materiais sejam incompletos, mas indicam que a doença

não é uma modalidade de aquisição da potência xamânica. A doença provocada por um

i÷u÷ia potencial é signo de que o mesmo não quer mais o homem como aliado seu. A doença
estaria, portanto, na perda da potência xamânica, não em sua origem.

Não estou afirmando que os Juruna deixem de compartilhar a visão de Taykap¥

segundo a qual seu xamanismo tem por origem a doença. Veremos ainda neste capítulo a

possibilidade de um animal, que nos surpreende e é surpreendido por nós, jogar-nos “sua

própria doença”. O que essa doença representa para o animal é tão indeterminado que

Taykap¥ pode acrescentar-lhe um sinal a mais, o do poder xamânico. O xamanismo des-

viante consiste em aliança com animais transformados em humanos no sonho, mas animais

antes de tudo, exatamente os mesmos que vivem neste mundo. Taykap¥ abre a dúvida quanto

a serem exatamente os mesmos. Sensível e receptivo a uma categoria do xamanismo

Kayabi, mamaé — que os Juruna afirmam corresponder à sua categoria kãnïa , “animal”

—, ele entende que seus i ÷ u ÷ i a são e s p í r i t o s ; não os conhece bem, mas está seguro de

que não são b ic h os .

Acredito que ele, naturalmente, nem se move no exterior do saber Juruna nem bem

no interior do saber Kayabi, que talvez só conheça superficialmente, pois não sabe falar

sobre os bichos de estimação que o elegeram, nem sobre o que o trairão tem a ver com os

mesmos. Não sabe por que foi nas águas do rio que começou a “ver” (lembre-se que no r i o

o xamã perde os poderes para os peixinhos). Esta observação (ver o primeiro parágrafo

do relato), tão importante no xamanismo Kayabi, quereria apenas dizer que foi então que
169

Taykap¥ recobrou a consciência, voltou a si. Na boca de um Kayabi, a expressão significa

justamente, o ponto de ruptura com a consciência ordinária (Travassos, 1984 passim).

Os Juruna afirmam que este xamanismo não lhes pertence, as potências que lhe dão

base não são potências do mundo Juruna, mas do mundo Kayabi, as quais decidiram pene-

trar ou invadir o mundo Juruna por si mesmas, sem que ninguém as invocasse, ou dese-

jasse. O conceito de mamaé não possui equivalência em nenhum conceito Juruna, e é justa

sua apreciação de que o xamanismo Kayabi é completamente distinto. Entretanto, eu o b -

servaria que não é difícil passar logicamente de um sistema ao outro: se o kãnïa Juruna se

transforma em humano no sonho, o mamaé Kayabi se transforma em animal (ou humano)

no plano da realidade (Travassos, 1984: 95-99).

Estes fatos ilustram a perspicácia de Taykap¥, um homem alegre e loquaz de pouco

mais de 30 anos, um companheiro muito estimado. Ele soube explorar o vínculo entre

doença e xamanismo (concepção aliás de grande difusão, como mostrou Métraux) para pôr

em movimento, adaptando o que era preciso para melhor atender à expectativa do grupo, a

vida religiosa dos Juruna. Quando cheguei aos Juruna em 1984, disseram-me que eu tinha

chegado tarde demais, o xamanismo acabara. Quando retornei em 1988-9 e 1990, disse-

ram-me que eu não podia deixar de voltar no futuro, porque Tïnïni, Kadu e Manako, eles

sim, iriam se tornar xamãs de verdade. Taykap¥ se tornara xamã em 1987 — eu não

posso deixar de pensar que foi isso que instigou os outros a se diferenciarem dele, que

precipitou a demanda por xamanismo e renovou o desejo de se relacionar com os ÷ ï ÷ ã n a y

e os ÷ ë ÷ ã m ¥ . Ele mesmo, de resto, tinha esperança de ser procurado qualquer dia pelos

mortos91.

A idéia de invasão ilustra mais ou menos bem como os Juruna compreendem a

natureza da cultura e a história da cultura. Estão longe do nosso senso comum segundo o

qual um mesmo e único mundo é traduzido de formas diferentes pelos diferentes povos. A

cada povo corresponde um mundo de determinações e potências diferentes, suscetíveis, por

um absurdo do destino, a migrar para outros mundos. A diversidade é uma propriedade do

mundo92.

91 À guisa de post scriptum , no começo de 1992, Taykap¥ perdeu todo o poder. Com inveja do

sucesso que vinha fazendo, um xamã Kayabi (o mesmo que iniciou Arakaida) roubou-lhe os ani-
mais de estimação, interrompendo seus sonhos.
92 Registre-se que a relação xamânica entre os Juruna e os Kayabi não é unilateral. Os Kayabi

afirmam que uma mulher bebeu cauim Juruna e se tornou xamã (Travassos, 1984: 64).
170

2. Sonhar

Primeiro vamos ler dois sonhos, pois a teoria Juruna se revela de forma cristalina

no modo como contam os sonhos. Isto foi sonhado por Kadu:

Eu tive um pesadelo; sonhei com os ֕֋nay.


Lá, as almas dos mortos estavam bebendo alma de cauim. Os mortos estavam bebendo;
um falou comigo: ‘Vá beber cauim, o pessoal está bebendo lá’. Eu fui beber. Lá, a porta
se fechou. Falaram comigo: ‘Venha beber’. E outra alma de morto disse: ‘Fechem a
porta’. Fecharam. ‘Agora você não poderá sair’, disseram-me. Eles estavam bebendo.
Eu fiquei bebendo. Era uma multidão de mortos. E eu bebi um pouco; estava doce, mal
começava a fermentar. E enquanto eu bebia, disseram: ‘Fechem a porta para ele não
poder sair’. Fiquei lá. Após um longo momento me chamou uma mulher dos mortos.
‘Venha até a porta!’ Eu fui. Lá, ela abriu a porta. ‘Foi aquele lá que fechou a porta. Se
você entrar aqui de novo ele prenderá você’. E eu saí; peguei o caminho e fui.
E encontrei a alma de minha [finada] mãe com os mortos, em uma outra casa. E ela
disse: ‘Eu trouxe suas coisas, eu trouxe tudo... aqui está sua sacola, seu cigarro está
aqui’. E eu lhe perguntei: ‘Por que você trouxe?’ ‘Eu trouxe porque você queria v i r
para cá’, ela me disse, ‘Você brinca com as palavras, foi por isto que fecharam a porta
para você’. ‘Não. Eu não brinquei com as palavras, não’. ‘Você brincou; e fecharam a
porta para prender você. Eu lhes pedi para abrir a porta. Não volte, senão vão fechar
de novo’.
E eu me deitei na rede. Vi almas de fogo brilhando ao longe, e me deitei. ‘Aqui estão suas
coisas; eu trouxe tudo, sua sacola, sua camisa’. Eu fui ver; procurei meu cigarro, não
estava lá. Perguntei: ‘Onde está?’ ‘Está na bolsa’. Procurei, procurei, e não achei. Ela
me disse: ‘Você ficou falando muito, fecharam a porta para você’. ‘Quero ir beber!’
‘Não, senão eles fecham a porta. Não vá’. Deitei-me na rede; fiquei triste. ‘Por que
você brincou com as palavras?’ E a alma de minha mãe chorou.
Eu fui só, fui sozinho, com a alma de Iãnawa [um garoto, seu filho]. Quando me
levantei, saí da casa. Lá fora, almas de Kayabi estavam bebendo. E minha mãe me disse:
‘Não volte. Vá beber e eles fecham a porta como antes’. E eu não fui.
Acordei com uma dor aqui [na barriga] e muito fraco... Ainda estou sentindo um
pouco93.

93 Mareaji reviu a tradução. Gravei sua versão para o português, onde não aparece nenhuma

referência aos ÷ï÷ãnay ou às almas, exceto que a finada mãe de Kadu é referida como “a alma
da mãe dele”. Em lugar de “os mortos” ou “as almas dos mortos”, aparece “o pessoal”. A v e r -
171

Kadu queria um comprimido de Buscopan. E este é um sonho de Areãdü com os Txukahamãe

— ela quis simplesmente uma aspirina.

Assim eu sonhei. Primeiro sonhei com você.


As almas dos Txukahamãe estavam bravas e nós outros nos escondemos deles, em
÷ ï ÷ ã n a y . Depois eles foram mortos — a alma de Yawajiwa [marido da narradora] os
matou. Morreram quatro almas de Txukahamãe; quatro almas ficaram lá esticadas no
chão. E quando olhei para eles fiquei com medo, medo dos cadáveres... Eu acho isso
perigoso... E o pessoal, em ֕֋nay, lavou o sangue por causa dos parentes deles. A
água suja de sangue ficou na canoa.
Depois o pessoal em ÷ ï ÷ ã n a y matou almas de macaco coatá. E disseram: ‘Com esses
macacos, eles não vão saber de nada!’ Em ÷ï÷ãnay, queimamos os pelos dos macacos. As
almas dos cadáveres de Txukahamãe estavam amontoadas lá.
Então a alma de Yawajiwa destrinchou-os, a alma de Yawajiwa, em ÷ ï ÷ ã n a y , a alma de
Yawajiwa destrinchou os Txukahamãe [sic]. Enquanto ele fazia isso, as almas dos
parentes deles chegaram, em ÷ï÷ãnay — as almas dos Txukahamãe. Então em ÷ ï ÷ ã n a y
os Txukahamãe ficaram bravos, em ÷ ï ÷ ã n a y . E nós outros começamos a remar em
÷ï÷ãnay, nós outros atravessamos para a outra margem.
O pessoal, em ÷ï÷ãnay, disse: ‘Os Kayabi nos denunciaram’. Foi isto que as pessoas, em
÷ ï ÷ ã n a y , falaram: ‘Ou foram os Kayabi ou foi Uayaya’ [um Juruna]. ‘Eles os
mataram’, assim Uayaya nos denunciou. E nós outros, em ÷ ï ÷ ã n a y , fomos interrogar a
alma de Uayaya. ‘Não, eu não contei nada!’, disse a alma de Uayaya.
Em ÷ ï ÷ ã n a y , as almas dos Txukahamãe pegaram as espingardas. E o pessoal, em
÷ï÷ãnay, disse a eles: ‘Não. Nós outros matamos foi caça’. E eles em ÷ ï ÷ ã n a y fingiram
acalmar-se e ficaram à espera da alma de Raoni.
E quando a alma de Raoni chegou, em ÷ ï ÷ ã n a y , ele ficou bravo também, como as almas
dos Txukahamãe. E perguntou à alma de Saadea [irmão de Yawajiwa]: ‘Foi você que
matou Txukahamãe?’, ele disse, em ÷ ï ÷ ã n a y , ‘Não. Foi Yawajiwa que os matou’, disse
a alma de Saadea, em ÷ ï ÷ ã n a y . Então disse a alma de Yawajiwa: ‘Não diga, senão eles
vão atirar em mim, eles vão atirar em mim. [Risos] Eu estou apavorado com isso!’
Então eu, em ÷ ï ÷ ã n a y , disse às almas dos Txukahamãe: ‘Yawajiwa vai então morrer!
[Risos] É sempre assim! Se fosse com vocês, vocês ficariam bravos! Quando a doença
nos atinge, nos mata!, eu disse. Se fosse conosco era assim que iríamos pensar’. Os
Txukahamãe mataram muitos de nós, eu estava com medo deles por isso.

são começa assim: “No sonho, o pessoal estava bebendo caxiri e pediu pra ele tomar c a x i r i ” .
Segundo Mareaji, Kadu sofre essa dor há mais de 20 anos, desde uma filmagem feita num período
em que se celebrava o festival dos ֕֋nay .
172

E eu, em ÷ ï ÷ ã n a y , disse à alma de Yawajiwa: ‘Saia daí!’ E a alma de Raoni, em


÷ ï ÷ ã n a y , conversou com seu grupo e depois avançou correndo para mim. Quando
correu em minha direção, eu gritei para Yuanaw [uma mulher]: ‘Bate na canela dele!
[Risos] Rápido! Bate na canela dele com um pau’. E a alma de Yuanaw correu atrás dele
com um pedaço de pau.
E eles pararam de nos ameaçar em ÷ ï ÷ ã n a y . Ah, como tive medo! Por isso estou
febril... E eu acordei; o medo me deu febre, minha cabeça doía. Eu acordei e me levantei.
De sua casa, Nonori indagou, quando ouviu vozes: ‘O que houve? Que conversa é essa?’
Eu lhe respondi: ‘Não é nada. É que eu estava sonhando com os Txukahamãe’ ( C o -
tradução: Mareaji).
Os sonhos são acontecimentos que transcorrem em um plano de realidade especial e

são mais ou menos suscetíveis de se projetarem sobre o plano da realidade empírica. Esses

acontecimentos são vividos por almas que agem com ou sobre almas, ou sofrem a ação de

almas. A expressão “em ÷ ï ÷ ã n a y ” (onde pretendo que o valor de “em” seja aproxima-

damente o mesmo de “em cólera”, “em êxtase”)94, além de limitar o valor de verdade dos

acontecimentos a um certo plano, parece sugerir que o sonho proporciona uma experiência

antecipada da existência póstuma, que morte e sonho são experiências do mesmo tipo. Com

efeito, segundo afirmou-me Mareaji, a vida dos mortos é simplesmente sonhada.

Dormir e morrer liberam a alma. Morrendo, ela vai habitar o interior dos r o -

chedos que se elevam na margem do rio, ditos aldeias de ÷ ï ÷ ã n a y . Dormindo, ela se

aventura em um mundo que é o desdobramento-alma do mundo da experiência empírica e é

94 Tive dificuldade em chegar a um acordo com Mareaji. Ele tem como princípio que ÷ ï ÷ ã n a y - d e

(“em ÷ ï ÷ ã n a y ” ) não pode ser traduzido literalmente e recusou o que lhe apresentei: ‘como
morto’. Sugeriu a glosa ‘no sonho’. É claro que ele tem razão. Nem por isso, contudo, ele se
manteve fiel a esta glosa. Assim, quando a expressão vem depois de ‘eu’ ele a traduziu por ‘no
sonho’; quando vem depois de ‘eles’, traduziu-a por ‘os ÷ ï ÷ ã n a y ’. Como todo Juruna que fala
português, Mareaji jamais glosa ÷ ï ÷ ã n a y por ‘morto’; usa-se ‘espírito’. O português ‘morto’,
enquanto substantivo, significa cadáver (÷ï÷ü) e é empregado numa construção sempre genitivi-
zada: ‘o morto dele’. Com efeito (como será visto no capítulo seguinte), ÷ï÷ãnay é mais do que
um morto: as almas dos mortos são um subconjunto dos ÷ ï ÷ ã n a y . Registre-se também que
Mareaji afirmou que a expressão não é ÷ï÷ãnay - de mas ÷ï÷ãnay - hade ; quando lhe perguntei por
que razão sua mãe dizia simplesmente -de, observou que cada um tem a sua boca. Mas a contra-
ção observada no relato de Areãdü é bastante comum. O significado de - ha tanto pode ser
‘semelhante’ como ‘o que será (isto ou aquilo)’, e não estou segura de que ambos remetam a um
mesmo sufixo. O significado de -de é ‘em cima de’, ‘sobre’, ‘em’; é comumente empregado para
designar as ações (sonhar, dançar, cantar) realizadas em benefício da sobre-produção de alguma
coisa. A regência do verbo sonhar é - de ; uma sentença como una e-de ÷ezo , ‘eu sonhei com v o -
cê’, os Juruna traduzem por ‘eu sonhei você’. O xamã fuma antes de dormir para ‘sonhar os
÷ï÷ãnay ’. A expressão mayaka-de karia ‘dançar pela mandioca (em benefício da puba)’, Mareaji
traduz como ‘dançar em cima da mandioca’, acrescentando: “mas não é em cima, não”.
173

mais abrangente do que este, já que engloba a realidade dos mortos. Assim, vida e morte

não são modos do ser diferenciados por uma ruptura temporal dada de uma vez por todas.

Em princípio, os acontecimentos oníricos estão destinados a se realizarem na

realidade da vida. São potencialmente empíricos, possíveis de se tornarem verdadeiros em

vida. Fazer-se soprar diminui esta potencialidade, tanto mais quanto o sopro é efetuado

por um xamã. E narrar o sonho multiplica suas chances de realização.

Também o que se está habituado a fazer na vida desperta a alma realizará liberada à

noite95. Ou o que se deseja fazer, mas não se pode por constrangimentos diversos, como

falta de tempo, distância, carência ou proibição. A saudade conduz a alma para perto de

quem ela ama, a fome leva-a a procurar comida, o desejo sexual leva-a ao coito. Ao mesmo

tempo, a alma de uma pessoa que vai dormir tendo realizado seus desejos pretende ter mais

e mais prazer. Assim, a relação entre o sonho e a vida é bi-direcionada.

Tomemos os sonhos de Areãdü e Kadu. A despeito da grande diferença de concepção,

Areãdü apreende o seu de um modo que não é muito diferente do nosso. Ela ri do que aí lhe

parece insensatez: o irmão de seu marido denunciando-o aos Índios; ou covardia: o marido

tremendo de medo; ou intrepidez: uma mulher ameaçando um grande líder Txukahamãe

com um pedaço de pau; ou a desculpa pouco convincente com que sua alma pretende con-

vencer os Índios de que se Juruna fossem mortos os Juruna não desejariam vingança e

tomariam o caso como morte por doença. A própria conjuntura política impossibilita a

realização da guerra. Atualmente, sonhar com guerra não quereria dizer mais nada — “os

Índios acabaram! a guerra acabou!”. Almas de Juruna mataram almas de Índios, mas isso

está limitado ao mundo do sonho. Onde a guerra continua, mas nada propicia sua projeção

sobre a realidade da vida.

Já o sonho de Kadu é um em que quase tudo — mas não tudo — que havia para acon-

tecer já aconteceu. Eis primeiro o motivo relacionado com o futuro e a realidade empírica:

ouviu de sua finada mãe que suas coisas tinham sido levadas por ela para lá; procurou-as e

não as encontrou. Kadu pondera: quando morremos procuramos nossos pertences e não

encontramos, deixamo-los aqui, começamos a procurá-los quando chegamos aos ÷ï÷ãnay e

não os encontramos. Conclui que pode morrer, o que se passou em sonho poderá se passar

de novo com sua alma definitivamente morta. Mas, por outro lado, ele foi à aldeia dos

mortos, “viu-os”, aceitou o convite para beber, afastando-se da porta, pondo assim a vida

95 Conta-se que quem se preocupar com esses passeios noturnos deve passar três vezes a palma

da mão na planta dos pés antes de dormir. A alma não andará por lugares distantes e perigosos.
174

em risco. Os mortos tinham a intenção de torná-lo prisioneiro, para puni-lo pelo uso

excessivo da linguagem — um falar à toa que Kadu interpretou como falar dos ÷ ï ÷ ã n a y e

das demais histórias dos antigos para mim. Mas ele foi libertado, o risco que correu é um

tema encerrado no passado (embora não deixe de existir a possibilidade de vir a ser preso

outra vez, para sempre).

Eu diria que o sonho de Kadu é xamânico, entendendo como tal um sonho cuja r e a -

lidade é completa e cujo valor de verdade é plenamente atuante no domínio da vida. Quer

dizer, o sonho xamânico vale uma ação efetuada na realidade. O relato de Taykap¥ visto na

seção anterior ilustra bem o que quero apontar. O xamã Kayabi, em ÷ ï ÷ ã n a y , extraiu de

sua cabeça o dente de trairão que o peixe lhe arremessou antes de fugir levando o anzol. O

tratamento foi efetuado em sonho e curou a dor de cabeça que Taykap¥ sofria na vigília. O

processo pode ser o inverso: a doença pode ser adquirida em sonho e a cura ser efetuada na

vigília.

Vejamos este sonho de Dakanã, que era solteiro na ocasião. Ele sonha com uma moça

Kayabi (muito bonita) fazendo beiju; ele está ao lado dela observando, ela por fim lhe

oferece um! A cena é tal que bem poderia pressagiar um casamento, mas à tarde o rapaz

sente uma aguda dor de estômago, uiva de dor e deixa todo mundo preocupado. Sua mãe

aquece folhas de mandioca para um emplastro a todo instante renovado; a pedido dos J u -

runa, eu o faço tomar um comprimido de Buscopan; Taykap¥ é chamado para assisti-lo e o

faz com grande êxito. Primeiro diagnóstico: foi o beiju comido em sonho. Isso não causa dor

de estômago, mas a alma pode causar, tanto mais porque a moça Kayabi é xamã. O diag-

nóstico confirmava já a suspeita da mãe do rapaz e foi propagado entre todos. Segundo

diagnóstico: foi também um ataque sofrido na mesma noite por Dakanã em um sonho de

Taykap¥: Índios o atacaram, batendo muito e cravando duas flechas em sua barriga. “Já de

madrugada ele começou a sentir dores!”, disse-me o xamã. Observe-se que se o beiju,

inócuo na vida, é patogênico no plano do sonho, as flechadas, letais e impermeáveis ao t r a -

tamento xamânico, já não são graves quando dadas com almas de flecha. Dakanã podia não

ter sofrido o efeito dessas flechadas, ou podia ter sofrido coisa muito mais grave, como ser

atacado por Índios. Neste caso, o sonho apareceria não como diagnóstico do ferimento i n -

visível, mas como presságio de ferimento em vida.

Por outro lado, se um xamã sofresse um acidente semelhante provocado por mortos

ou outros aliados, morreria inapelavelmente. Sua alma já teria sido morta. Nada mais

precisa se passar na realidade para que definhe e morra. Dá-se portanto com os sonhos de
175

um xamã o mesmo que se dá com a vida dos ÷ ï ÷ ã n a y : a realidade onírica tem valor de

realidade empírica.


Os sonhos falam de saúde e doença, caça e guerra, vida e morte. Os signos nefastos

são bem mais importantes do que os bons, no sentido de que se os Juruna de fato agem para

impedir a realização dos primeiros, não se aferram para contribuir na realização dos

sonhos de sucesso. Kadu, por exemplo, podia se preocupar e mesmo ficar adoentado com um

pesadelo, mas nenhuma importância dava a um bom anúncio de caça: “Eu sonhei com m a -

caco-prego”. “Por que você não vai para a floresta?” Risos! “Amanhã eu vou!” No dia

seguinte, já se esqueceu.

Além de reagirem com somatizações típicas como frio, sensação de febre, dores

vagas e abatimento, os Juruna definem o pesadelo de uma forma muito mais ampla do que

nós. A expressão que gloso por pesadelo é ÷e÷e∂a maküb¥ãw , algo como “sonhar ema-

ranhado” (o segundo termo é usado para qualificar o tipo de floresta onde vivem os ogros

ãwã, com vegetação emaranhada por cipós), a que se ligam as qualidades de sujo, perigoso
e sombrio. A obscuridade e o enredo absurdo são suficientes para qualificar o sonho como

pesadelo, ainda que não tenha despertado angústia, e como se o non sense fosse imediata-

mente tido como signo de infortúnio. Imagens isoladas codificadas como signos nefastos

determinam o sonho como pesadelo, independentemente do enredo. Além disso, o sonhador

pode interpretar seu sonho segundo um raciocínio pessoal, conforme vim a saber quando

Dukare suspendeu o compromisso que tinha comigo, de me levar até uma copaíba no r i o

Maritsawá, por ter sonhado com uma arara. Recusou-se a contar o sonho, mas explicitou

seu receio de um de nós ser picado por uma cobra. Isso seria apenas, segundo alguns J u -

runa observaram, uma idéia de Dukare. Ao entardecer do dia anterior, eu tinha lhe pedido

para matar uma cobra pintadinha de vermelho ao pé de minha escrivaninha: exclamara que

aquela era a “cobra-arara”. Fazer-se assoprar por alguém (e/ou assoprar aquele com

quem se sonhou), não narrar e não sair da aldeia (para ir à roça, à floresta ou navegar)

nos próximos três ou quatro dias de quem sofre esses sonhos.

Distinguem-se, pois, antecipadamente elementos e situações que definem um mau e

um bom sonho, mas isso não esgota o problema e há espaço para outras correlações. Os

Juruna chegam a enumerar facilmente o seguinte:


176

Imagem onírica Interpretação

• Fogo, neblina Febre.


• Banho de rio Saúde; ausência de febre.
• Tracajá saindo do Saúde para as crianças.
ovo
• Mulher no banho, Caça de anta no rio. “Diz-se que mulher gorda nua, no rio, é alma de
Mulher nua anta”. Nisto consiste também a canoa em processo de fabricação.
• Animal de caça Caça do animal.
• Porcos mortos Caça de porcos.
• Porcos vivos, luta Índios vão atacar a aldeia. “Diz-se que jaburu é alma de Índio”.
com porcos;
Jaburu, Índio
• Um jaguar nos Índio vai atacar o sonhador. “Diz-se que jaguar é alma de Índio”.
persegue
• Apanhar de pa- Doença e dores fortes em todo o corpo. A doença será muito grave se o
rente mais velho mais velho for um morto.
• O arco quebrado Morte. “É para a gente morrer que o arco se quebra”. Além de se fazer
soprar, o sonhador deve trocar o arco com alguém.
• Procura de obje- Morte. “Quando morremos é que procuramos nossos pertences que dei-
tos de uso pessoal xamos aqui e não encontramos.”
• Pintura de jeni- Morte. A pele enegrecida pela tintura é a cor escura do cadáver em de-
papo composição.
• Pintura de urucum Perda de sangue por borduna ou flecha. A hemorragia será tanto mais pe-
rigosa quanto mais extensa for a região do corpo coberta pela pintura. O
urucum é equacionado como “alma de sangue”. “Quando sonhamos que
Índio nos golpeia com borduna, o sangue jorra sob a forma de urucum”.
• Cauim fermenta- Morte. “Quando sonhamos que Índio nos mata, nós nos embriagamos”. E
do, embriaguez ainda: “O bêbado fica estirado na rede como quem está muito doente”.
• Cauinagem, Morte de um membro do grupo. “É para a gente morrer que a gente dança
Os Juruna dançando no sonho”. Ou ainda: “A alma da festa é a nossa morte”96.
• Muitos Brancos; Infortúnios cuja natureza não se pode prever.
Altura: subir em
árvore, monte...97
• Urubu Morte. Dentre todos, o pesadelo mais temível. Para evitá-lo, os Juruna
não flecham urubus e, após cair a noite, não narram histórias em que
apareçam.

96 O xamã deve ser informado do sonho e reunir a comunidade de manhã cedo para soprar cada

pessoa.
97 O temor da altura é o motivo mais justo que os Juruna têm para brigar com as crianças que

brincam de pular de trampolim no rio. Chegam a ser bastante violentos com as crianças de cinco
ou seis anos, com a certeza de que terão experiências infernais. A despeito da coragem das
crianças, a alma tem medo de altura. Os adultos têm um grande pavor.
177

São muito variados os processos lógicos que dão base à codificação das imagens

oníricas. Além disso, algumas estão situadas no cruzamento de duas ou mais relações.

Umas são interpretadas literalmente: caso da caça. Outras dependem de metonímias s i m -

ples ou combinadas com metáforas: o arco quebrado como morte do caçador; perda de

pertences evocando a circunstância vivida por uma pessoa que morre. Algumas jogam com

oposições simples e motivadas: a água é refrescante, quer dizer ausência de febre; o fogo

emite calor, a alma de fogo provoca febre. Outras são baseadas na classificação das doenças:

o nevoeiro e o orvalho são doenças que provocam febre. Outras são associações baseadas em

experiências tidas por tipicamente oníricas: jorra urucum do ferimento, logo urucum

quer dizer sangue; a embriaguez segue-se ao golpe mortal, portanto embriaguez ou cauim

significam morte. Algumas têm como ponto de partida uma transposição mais ou menos

literal (Índio significa guerra) para logo dar ensejo a uma construção paradigmática onde

ora se privilegia a figura do sonho (jaburu equivale a Índio, logo significa guerra), ora

seu estado de espírito (porcos em fúria equivalem a Índios em fúria, logo significam

guerra). Outras se reportam à concepção de que no campo do sonho certas almas podem se

transfigurar: anta em mulher nua ou canoa inacabada; Índio em jaburu, jaguar ou porcos;

sangue em urucum98.

Essas transfigurações são apenas casos particulares de uma concepção mais geral

da metamorfose como atributo da alma, cuja chance de desenvolvimento é justamente o

sonho. É como metamorfose que se explica o fenômeno onírico em que uma pessoa ou coisa é

substituída por outra. Num sonho de Wereade, a alma de Yawajiwa está na margem oposta

do rio; em um instante “ela se transformou na alma de Kanaba”. Esse mesmo sonho ilustra

um outro aspecto da teoria: o conteúdo é apenas um fragmento, um testemunho parcial do

sonhador, de uma realidade mais abrangente: na margem em que se encontra Wereade, ele

nota de repente a presença de uma mulher nua; a chegada e transformação da anta em

mulher deram-se enquanto ele estava distraído, observando o companheiro na outra m a r -

gem do rio! Acorda presumindo que uma anta será vista atravessando o rio. Resolvo con-

firmar a mensagem, invocando um sonho meu com uma capivara nadando, a cara pintada de

urucum e um colar no pescoço. Os Juruna não comem capivara, então pergunto a Wereade

98 Há ainda aquelas associações, mais inesperadas, que meus comentários não cobriram e que

equacionam a pintura corporal, embriaguez, cauinagem e festa — em suma, a vida em seus mo-
mentos de exuberância — com a morte. Disse-me Mareaji que “a alma da festa é a nossa morte!
quando vamos ficar saudáveis nunca sonhamos com festa!”. Essas imagens (bem como o pesadelo
com urubu) serão investigadas no quadro do luto, onde seu significado onírico passa a vigorar na
vida desperta.
178

se a do meu sonho não é uma anta também, pois o mito que ele narrou antes de dormir f a -

lava de uma anta pintada de urucum por uma mulher que se tornara sua amante. Ele diz que

pode ser que sim e pode ser que não; acha que não se pode ter certeza. Navegamos o dia

inteiro (estávamos viajando) sem avistar anta. No dia seguinte, porém, uma vara de

porcos atravessou o rio e Wereade pôde fazer com Yawajiwa uma caçada muito rica: 16

cabeças. Caça atravessando o rio tornou-se a verdadeira mensagem de nossos sonhos — a

anta não importava mais.

Mostrei acima como os sonhos xamânicos se distinguem dos sonhos das pessoas

comuns, porém qualquer pessoa pode ter sonhos com um caráter tão absoluto como os

xamãs — os de sexo e canibalismo. Os primeiros são apreciados, desde que o parceiro não

se encontre distante, pois então o sonho se torna motivo de angústia: a alma pode não ter

retornado, decidido ficar com o (a) amante. Quanto aos sonhos de canibalismo, nunca me

relataram nenhum e, até que eu mesma sonhei com isso, tudo o que sabia era que os xamãs

(inclusive os que têm como aliados os mortos que habitam os rochedos) são canibais: co-

mem carne de Índio com os mortos celestes. Sonhei que em meio a um nevoeiro havia

inúmeros moquéns com carne humana bem assada, entre os quais estavam sentados índios

(selvagens) de cabelos compridos. Narrei isso para Kadu e Mareaji num restaurante em

Marabá, depois de ter-lhes dito que não estava com fome. Eu não estava com fome porque

já tinha comido a carne humana servida pelos ÷ ë ÷ ã m † . Retruquei que não tinha comido,

absolutamente; exclamaram que eu não sabia, não tinha visto, mas tinha comido. Tempos

mais tarde, Saadea e sua mulher riram muito quando lhes contei o episódio e revelaram

que também já tinham comido da mesma carne, que certamente todos os Juruna o tinham

feito, pois os mortos celestes nos oferecem carne humana. Saciedade e mal estar digestivo

pouco significativo — um sonho sem importância.


179

3. Crescer e multiplicar-se

O elemento fundamental da vida em que consiste a alma não preexiste algures à

concepção (como afirmam outros Tupi), mas se forma de par com o embrião. O bebê é

feito de sêmen (au˚a, “leite de homem” em glosa Juruna) e a concepção exige, por um

lado, que o homem “trabalhe em uma mulher”( ijia-de kuperi ) com certa freqüência ao

longo de um mês — assim se acumula o suficiente para formar o embrião — e dê conti-

nuidade ao “trabalho” até aproximadamente os sete meses de gravidez: assim se desenvolve

o bebê. Por outro lado, há no interior do útero um chamado “produtor de criança” ( ÷ a ∂ i

karikaha , ou, mais genericamente: se-karikaha “nosso produtor”), aí colocado por


Seµã÷ã no começo dos tempos, cuja função é processar o bebê, a partir do sêmen. O

magnífico xamã o inventou para não ter ele mesmo de fazer a criança. Trata-se p r e c i -

samente de uma réplica do pequeno ser em que Seµã÷ã se transformou para poder entrar

no útero de uma muito antiga mulher99, e do qual Wereade diz parecer com um dedo p o -

legar, baseado no que ouviu contar sobre um encontrado no útero de uma Índia grávida que

os antigos mataram para comer. Possui a mesma articulação do polegar, “trabalha”

juntando o sêmen que vai sendo injetado ao longo do tempo e dando-lhe solidez e formato de

criança. Isso vale sem distinção para o sangue, a carne, os ossos — tudo vem do sêmen: ao

fim da produção do embrião, dentro da massa tornada carne já estão os ossos e o sangue.

Percebe-se como um fenômeno miraculoso a diferenciação desses três elementos — isso é

próprio às ações de Seµã÷ã, cuja réplica foi por ele dotada da mesma capacidade de s u r -

preender os homens.

A procriação depende assim da complementaridade entre dois tipos de trabalho100,

um masculino, concebido como dispêndio de energia e geração da matéria primeira de que

somos feitos, e um trabalho feminino, porquanto a atividade realizada pelo ser que habita o

útero é a variante feminina de uma categoria do trabalho que, compreendendo a atividade

99 Registre-se que essas idéias acham-se “descoladas” da epopéia de Senã÷ã.


100 Existem distintas categorias de trabalho: o da cerâmica, da tecelagem, cestaria, fabricação

de bebidas... Sendo que a última, atividade feminina, cai sob a mesma categoria da atividade mas-
culina de talhar madeira (arco, remo, canoa...): karika — verbo que também apresenta o signifi-
cado mais geral de tocar com os dedos (karika maku, “não mexa”). O trabalho sexual é designado
por um termo, (i-de) kuperi , de caráter geral, aplicável a qualquer tipo de trabalho, com o sen-
tido de “ocupar-se”, ou com o sentido de “dispender energia”, “cansar-se” (ao dizerem
kuperina a∂o, os Juruna dizem tanto “estou trabalhando” como “estou me cansando”).
180

masculina de talhar a madeira, exprime a imposição de forma à matéria. Teremos a

oportunidade de ver como às produtoras de cauim (yakoha karikaha ) compete processar

uma pessoa a partir da mandioca, mas podemos já sustentar que a variante feminina dessa

categoria consiste em impor forma ao líquido, sêmen ou cauim.

O trabalho sexual seria interrompido por volta do sétimo mês de gravidez, ao

cessar também o trabalho de produção, quando o bebê é dito estar pronto. Se as relações

sexuais prosseguissem, surgiriam transtornos diversos. A posição do coito — “deitar-se

em cima mulher” — provocaria alteração da posição do bebê, encaixado muito antes do

parto. O pênis o cegaria nos movimentos do coito. Beberia tanto sêmen (tanto “leite” p a -

terno) que cresceria e engordaria demasiadamente, a ponto de não poder nascer.

Na visão de alguns, a suspensão da atividade sexual deve prolongar-se até o bebê

atingir 5-6 meses, para evitar que sua alma, que continuaria ao longo desse período a ser

ejaculada pelo pai, vá parar na roça, na rede, no porto — onde quer que o ato sexual tenha

lugar. Na visão de outros, a vida sexual pode ser retomada pouco depois do parto, desde que

a mãe, ao mesmo tempo, supere a fase hemorrágica e “volte a sentir desejo”.

O sentido deste trabalho sexual pós-parto é ainda o de geração do bebê, ou melhor,

é um trabalho que continua a gerar alma do bebê. A bem da verdade, esta é uma dimensão

suplementar da teoria da concepção, produzida no interior de um discurso que condena a

busca de encontros amorosos com outras que a mãe do bebê: a alma da criança é injetada no

útero de outra mulher, logo à distância do bebê, que assim passa a carecer de alma e pode

morrer. A “gravidez” torna necessária a intervenção de um xamã para efetuar a extração

da alma e sua devolução ao bebê. Trata-se, para dizer de algum modo, de um sobre-tra-

balho sexual que gera uma mais-alma, no que ele é inteiramente dispensável ao bom de-

senvolvimento da criança, podendo mesmo prejudicá-la.

O mito de origem do parto que vimos no contexto da epopéia de Seµã÷ã reverbera

nas histórias que me contaram relativas aos primeiros meses de vida de pessoas hoje

adultas. O xamã ia à roça e encontrava a alma de tal bebê; entrava numa casa, encontrava

na rede a alma de tal bebê; ia ao porto, encontrava a de outro. Cada uma que encontrava, ele

chamava a mãe, pedindo-lhe que levasse o filho, a quem devolvia a alma. Todo mundo sabia

porque razão a alma fora separada do bebê — os pais sentiam grande vergonha. Quando era

preciso fazer uma “cesariana”, o episódio repercutia de forma mais grave. Era preciso

xamanizar sobre a grávida para efetuar a extração. Vergonha de um lado, revolta de outro.

Num caso mais extremo, H., à beira da morte, fora duplicado na barriga de uma mulher. O

xamã encontrou-o, descobrindo que lá havia mais do que a alma do bebê. A mãe de H. disse
181

ao marido que não queria a devolução da alma do filho, que o bebê morresse visto que ele j á

fizera outro. Mas o bebê era o primeiro neto do xamã, que fez a cesariana na amante do

filho e devolveu a alma ao neto. A amante abortou o clone.

Todos os homens que copulam com uma mulher grávida são pais do bebê. A múltipla

genitoridade contraria, porém, o valor que a fidelidade conjugal representa para os J u -

runa, e não há meios de expressão social dessa relação com o filho de um homem casado;

ou, pelo menos, isso não é de bom tom.

O bebê é feito, pois, de sêmen. Por outro lado, sendo feito na mulher, o ambiente

materno implicando a conjunção do bebê com os alimentos ingeridos pela mulher, ele pode

adquirir caracteres dos animais que ela come. A gestação levanta assim um problema de

dieta, cuja semiotização se vai diferenciando ao longo do desenvolvimento do bebê.

Em primeiro lugar, situam-se as restrições e ritos alimentares sem os quais se

geraria um filho desprovido, por assim dizer, de instinto social. Caça e peixe adultos não

devem ser ingeridos no início da gravidez, enquanto o sêmen está sendo trabalhado na

formação do embrião. Caso contrário, a criança será uma pessoa muito agressiva, violenta

mesmo, dificultando a vida do grupo: os outros terão sempre motivos para ficar com raiva,

haverá muita fofoca e conflito. Gera-se uma pessoa calma, sociável, submetendo-se a uma

dieta de filhotinhos de peixe, cuja alma ainda não é capaz de agir e, logo, não apresenta as

características comportamentais dos peixes adultos. Superada a fase inicial, pode-se

comer quase tudo, com a condição de cumprir um rito bastante simples toda vez que se

introduzir caça de uma nova espécie na dieta. Antes da refeição, a mulher enterra um

pedacinho de carne no chão e pula por um breve instante em cima da cova: assim se inibe a

transmissão do instinto do animal para o feto, se anula a possibilidade de o filho tornar-se

um ser “violento/medroso”101, um ser que foge arisco ou ataca pessoas que tentam se

aproximar. No quadro dos peixes, somente o tucunaré suscita esse rito: não se deve gerar

um filho com conduta de tucunaré, o qual, nesse contexto, é reputado perseguir e devorar

os próprios filhotes, representado, portanto, como o mais obstinado dos canibais. O rito

sofre esta variação: são enterradas as espinhas, após a refeição102. Alimentos quentes e

101 Medo e violência são geralmente tomados como as duas faces de um mesmo estado de espí-

rito; a idéia é a de que quem tem medo, ataca.


102 Nós vimos no capítulo anterior que todos os peixes da estação chuvosa são canibais, contudo,

apenas o tucunaré suscita este rito. Seja ou não coincidência, o único peixe canibal reputado co-
mer a própria prole é o tucunaré. Registre-se também que as grávidas recusam o tucunaré invo-
cando menos seu canibalismo (que pode ser dominado pelo rito alimentar) do que seu sabor de po-
dre.
182

pimenta também fazem gerar uma pessoa de temperamento difícil; nenhum rito anula esse

perigo e a proibição de ambos se estende por toda a gravidez.

Em segundo lugar, as restrições das coisas nocivas à vida do feto. Buscando fogo em

uma casa vizinha, é preciso evitar que o tição apague, para não abortar; não se servir de

mais de um tição, para não conceber gêmeos. Não comer coati e mutum-cavalo. Não a s -

pirar catinga de caça, fumaça da queima de pêlos de caça, cheiro de carne queimada. Isso é

duplamente nocivo; além de provocar aborto, interrompendo a gravidez, a mulher ficaria

“barriguda” ( paru÷u ) 103. Isto é, provocaria uma espécie de gravidez fantasmagórica, do

mesmo tipo daquela que, por ocasião da iniciação xamânica, assombra o futuro xamã, de-

vido à associação ÷ ï ÷ ã n a y entre tucunaré e puba seca com carne humana em decomposi-

ção.

Em terceiro e último lugar, restrições do que pode causar dor ao longo da gravidez

e dificultar o parto. Não comer bananas cuja casca apresente arestas. E, ao final da g r a -

videz, não beber cauim demais para a criança não ficar flutuando, não beber muito e

engordar demais. Observe-se que, nessa fase, dá-se com o cauim o que se dá com o sêmen.

Os Juruna, com efeito, têm para si que o cauim enche o útero da grávida. O ideal é que o

ambiente uterino seja mais seco para que o bebê encaixe e permaneça em posição de nas-

cimento. Por outro lado, afirmam que a cerveja ingerida durante a amamentação enche os

seios, onde se transforma em, e flui como leite. E assim sustentam que o leite materno

embriaga o bebê.

O momento do parto não é ocasião de ritos especiais. A mulher é assistida por sua

mãe, e, quando órfã, pela sogra. Em todo caso, a sogra e as tias (paternas) fazem-lhe

muitas visitas ao longo do trabalho de parto. Dá à luz em casa, deitada em uma rede armada

de tal modo que a parte inferior do corpo fica em um nível mais baixo; nas bordas da rede

ela prende as mãos como um apoio para o exercício de força na hora das dores. A parteira

examina constantemente a boa posição do bebê e repete-lhe baixinho: força, força, força!,

no momento das contrações. O bebê nasce e a parteira ou outra mulher amarra o cordão

umbilical com uma tirinha de embira e, em seguida, corta-o com uma tesoura. Então,

sentada num banco, apóia o bebê sobre a coxa e lava-o com a água que vai retirando com a

103 Dentre todos os cuidados de gravidez, a evitação desses odores é a que se cumpre com mais

rigor. Dad¥ma passou dois meses no Rio de Janeiro em minha casa, grávida de seu sétimo filho e
conduziu o seu regime quase puramente em termos do cheiro da comida: recusava tudo o que t i -
nha cheiro. Como “tudo cheirava para ela”, sua dieta básica era ovo (!), banana e melancia, além
de refrigerantes e cerveja.
183

mão em concha de uma pequena panela. Quando a placenta (“companheiro da criança”, em

glosa Juruna) é espelida , a parteira e o pai do bebê (até então aparentemente distanciado

da cena, mas presente em casa) enterram-na com os panos sujos de sangue em uma cova

que se abre neste momento em casa, junto à parede, perto da rede da mãe. Em instantes a

notícia se propaga e todas as mulheres e crianças da aldeia vão ver o bebê e cumprimentar

a mãe (“Você pariu? O que é? kãkã ? ˚i˚i ?”, menino ou menina?104). Como entre nós, a

graça do bebê é ressaltada (a mãozinha, a boquinha, os pequenos gestos); lembram-se

episódios do nascimento de fulano ou beltrano... Os homens não visitarão a mulher e o bebê

senão um ou dois dias mais tarde.

O nascimento põe algumas vezes a possibilidade de inércia da alma. O bebê está

inerte, não chora: “O bebê está morto”. Providencia-se então uma dose de pimenta e s -

magada com água para estimular a alma. Engasgando-se com o líquido ardente, ele chora e

revive. (Terá um temperamento um tanto difícil por ter assim sido tratado). Por vezes

isso não dá resultado: está morto porque a alma se separou, no instante de nascer. Quando

se tem a felicidade de vê-lo encher o pulmão de ar e chorar, é que “a alma pegou”

(de÷ãw† i˚i˚a — assim como se diz de um motor que se está ligando e que finalmente p e -

gou). Foi assim foi com a pequena Ka∫i∂u, o bebê de ÷ ï ÷ ã n a y , senão de cauim, que

Taykap¥ deu a Ku≈ina. A parteira anunciou que estava morta quando percebeu que apenas

as perninhas haviam saído. Indiferente ao suco de pimenta, devido ao qual sua boca ficou

queimada e a fez chorar inconsolavelmente a noite inteira, sua alma pegou quando, em meio

à decepção a que nos entregamos, Ωidudu reagiu e a tomou pelos pés, de cabeça para baixo,

e lhe deu uma palmada — para experimentar o método Branco observado no Diauarum,

conforme disse dias depois aos pais de Ka∫i∂u, que lhe levaram um cacho de banana como

“pagamento” pela vida dada à filha.

O nascimento reativa o sistema de proibições, imprimindo-lhe significados espe-

cíficos. O problema é formulado deste modo: a alma de um bebê é frágil. Sua fragilidade

consiste, primeiro, em carência de força para efetuar uma ação. O que não pode um bebê, o

pai e a mãe não devem fazer, porque a alma participa de suas ações. “Como eu posso atirar

com o meu arco, se sou o pai da criança e o umbigo de meu filho está aberto? Quando a t i -

104 Kãkã e ˚i˚i designam, respectivamente, a genitália masculina e feminina no quadro das

linguagens infantil e erótica. E são também os termos de tratamento e referência que se usam
para as crianças até bem depois da nominação, a qual se dá a partir de cinco ou seis meses. A
partir dos cinco anos, vai deixando de soar bem tratar a criança por esses termos, mas isso é
um hábito que os pais de um caçula dificilmente perdem.
184

ramos, esticamos a corda do arco com força!” O gesto seria reproduzido pela alma do bebê,

isso faria romper o umbigo, mesmo após a cicatrização. Segundo, a alma é frágil para

“resistir ao que cai sobre ela”. Com a realização de uma atividade, os pais trazem consigo

ou muito perto de si as almas dos seres e das coisas sobre as quais ou por meio das quais

agem, aí incluindo a manducação. Essas almas “caem”, “entram pela boca”, “passam”

para o recém-nascido (assim como para um parente doente). A alma do tipiti ronda perto

da mulher que acaba de espremer mandioca; se tem um filho bebê, o tipiti engole a alma

dele e o comprime com uma força igual à que a mulher despende ao utilizar o utensílio; o

bebê adoece, morre, caso não seja socorrido pelo xamã; ou apenas, na melhor das hipó-

teses, torna-se, no futuro, um menino raquítico. O fígado de jabuti ingerido pelo pai (ou

mãe) viaja até o estômago do bebê, provocando dores e diarréia. Muitos pais ressaltaram-

me este ponto: não é a proximidade física que responde por esta transmissão; muitos j á

experimentaram transgredir proibições quando estavam distantes da criança, pensando

que a alma do alimento não franquearia a distância, mas o filho acabou doente. Concluem

então que se trata de outra coisa — é próprio o fato de o bebê (ou o doente) ser um filho!

A repercussão da ação dos pais sobre o bebê não é tudo. Considerando menos o que

pude ver na conduta das pessoas que o que pude ouvir das pessoas mais convictas na ordem

ideal das coisas, todo o grupo de parentes “verdadeiros” ( h i j i ) — avós, irmãos de ambos

os sexos dos pais, e irmãos do bebê — devem se submeter, em maior ou menor grau, a

proibições a fim de protegê-lo105. Quanto mais novo é o bebê, mais amplo é o grupo social

que sua vinda ao mundo implica, e mais extensa é a lista de cuidados a serem tomados por

aqueles que a ele se ligam segundo esta ou aquela relação de parentesco. Ao mesmo tempo, o

parto torna a mulher vulnerável à ação predatória de almas de alimentos e demais objetos

da cultura. Assim, parte das proibições que seus pais, irmãos, filhos e marido respeitam

pelo bebê, respeitam-nas também por ela. O estado em que ela se encontra é, como apontou

Wereade, o mesmo que caracteriza o matador: ambos tiveram contato com muito sangue.

Isto será abordado adiante e, aqui, eu ressaltaria um outro aspecto, que a diferencia do

matador e a iguala ao recém-nascido: ambos estão abertos, podem perder sangue.

A enumeração dos fatos numa tabela facilita a exposição e prepara os comentários.

Quando assinaladas com um asterisco, as restrições não são baseadas na teoria da predação

por almas, mas em associações mágicas simples ou diretas. Notar-se-á que essa diferença

105 Ressalte-se o que Karaidu assinalava: os primos cruzados não se incluem neste grupo. Eu a v i

observar couvade pelo nascimento do filho do irmão.


185

vai de par com uma oposição entre carne e vegetal, exceto que o cauim dubia apresenta

valor de carne — mais precisamente, é um ser dotado de “pelos” capazes da mesma força

(espetar) dos pelos de caça. Observo também que todo prognóstico de hemorragia vale tanto

para o bebê quanto para a mãe.

Relações Restrições Prognóstico e Exegese

Avós, pais, ir- * Comer milho verde, cana-de- Doenças de pele; coceiras.
mãos de ambos açucar, cará, abóbora.
os sexos dos • Comer peixes de dentes pro- Hemorragia umbilical; diarréia com sangra-
pais, irmãos. nunciados e macacos. mento. Os dentes da alma do alimento
“mordem” a criança.

Pais e irmãos • Comer caça. Doenças não especificadas, provocadas pela


alma da caça.

Pais • Dispender força. Hemorragia.


• Tocar em peixe ou caça crus. O sangue é transmitido à criança; produz-se
hemorragia.
• Desenhar, riscar, escrever. Doença dos olhos, porque a criança apuraria
a vista.
* Comer beiju. Cataratas quando chegar à maturidade. Sendo
o polvilho muito alvo, duas placas brancas
cobrirão os olhos do filho.
• Comer produto de pesca com Vômitos incessantes que conduzem à morte.
timbó. O timbó é suposto embriagar os peixes e os
intoxicar humanos. Um bebê, como um peixi-
nho, não resistiria ao veneno.

Mãe * Tocar em macaxeira A pele do bebê ficaria escura. A macaxeira é


alva, porém o (mero) cozimento a torna e s -
cura.
• Beber o cauim dubia A alma dos minúsculos pedacinhos de fibra de
mandioca furam o coração da criança.

O desenvolvimento do bebê sinaliza o relaxamento progressivo das proibições. O

umbigo (tratado diariamente com a brasa de um pequeno tição) cai. Os avós e os tios

(paralelos e cruzados) saem do resguardo, sua ação não vem mais a atingir o bebê. O pai e

os irmãos podem desenhar e escrever, o esforço visual já não afetará a vista do bebê. P o -

dem também, assim como a mãe, comer caça, porém não ainda tocar em carne crua, pois

embora cicatrizado, o umbigo pode reabrir-se e verter sangue de caça ou peixe misturado

com o seu. Não comem contudo qualquer caça: paca, coati, e mutum-cavalo só serão r e i n -
186

troduzidos na dieta dos pais quando o bebê começar a andar. Porco, caititu, anta, e macacos

podem ser consumidos após a efetuação do rito de enterramento, pela mãe, de um peda-

cinho de carne — o rito assumindo um sentido novo: suprimir a possibilidade de a alma da

caça agir sobre a criança provocando doenças.

O bebê faz um mês. Os pais não são mais transmissores de sangue de carne crua, a

mãe pode cozinhar alimentos. Os pêlos do cauim não maltratam o coração do bebê e o beiju

não prefigura cataratas — com a condição de que a mãe, antes de reintroduzi-los em sua

dieta, passe um pouco de polvilho na fronte dele, molhe os dedos no cauim e passe no peito e

na fronte dele.

O bebê começa a engatinhar. Idealmente, o resguardo das atividades que implicam o

uso da força deve prosseguir até este momento; na prática, são retomadas pouco a pouco

muito antes disso. A pesca com anzol e a caça com arma de fogo representam ações sem

dispêndio significativo de força, e dão ao pai a chance de produzir antes de poder utilizar o

arco. Assim, aos dois ou três meses, o pai pesca e caça, a mãe processa mandioca com

moderação. Para ambos, prossegue a restrição de comer peixes de dentes grandes (piranha

e trairão) até bem mais tarde, aos oito ou nove meses. Nesse momento, o bebê está s u f i -

cientemente forte para portar um nome. Alguns são nominados antes disso (aos cinco ou

seis meses), outros somente mais tarde (por volta dos doze meses), pois ainda se pode i n -

vocar sua fragilidade. Como o nome é tomado de um finado, afirma-se que o dono, enciu-

mado, tenta prejudicar o novo portador. (Alguns permanecem sem nome até perto de

atingir a idade adulta, conforme examinaremos no capítulo V.)

O bebê anda. Os pais voltam a comer paca, coati e mutum-cavalo (os dois últimos

tendo sido suspensos da dieta da mãe desde o início da gravidez).

Esse sistema de proibições não funciona apenas de acordo com o calendário do de-

senvolvimento do bebê. Sua saúde interfere nesse calendário, fazendo retroceder no tempo.

Toda vez que adoece, as restrições voltam a se impor (à exceção das restrições dos vege-

tais), abrangendo uma unidade social tanto mais ampla quanto maior a gravidade de seu

estado. Dá-se com um doente que corre risco de vida o que se dá com um bebê antes da queda

do umbigo; nele também repercute (em maior ou menor grau, segundo a relação de p a -

rentesco) a ação de um indivíduo qualquer do seu grupo de parentes.

Existem outros mecanismos de proteção do bebê. A pintura corporal, em primeiro

lugar. Não se pinta um bebê com jenipapo nem (certo) urucum. O sumo de jenipapo tem

um repulsivo cheiro de peixe cru; a tintura vermelha do urucum üãkaha, porque sua
187

imagem onírica significa derramamento de sangue106. A tinta que lhe é benéfica é extraída

do açafrão-da-terra, devendo ser diariamente renovada, ao final da tarde, a partir do

momento em que a mãe começa a passear com ele na aldeia (após a queda do umbigo), a

partir sobretudo do momento em que começa a levá-lo ao rio, para tomar banho. Esta

pintura é um antídoto contra os peixinhos, o louva-deus e outros insetos que andam no

espelho d’água, os quais podem introduzir-se em seu corpo. No segundo ou terceiro mês, o

bebê apresenta-se bonito no meio de todos, para a cauinagem, portando uma cinta de contas

de louça branca com penduricalhos de cocos ak¥ri (“a” comida dos porcos), cerrados ao

meio, dos quais pendem curtos fios de barbante azul com missangas azul-marinho e

vermelho. Na testa, o distintivo tribal: o pequeno botão da resina aromática coberto de

fiapinhos vermelhos; na risca do cabelo, a linha branca de penugem de pato selvagem; no

corpo, pintas cor de ferrugem do “urucum feminino” (uãkapi, uso a glosa indígena) que o

protege de todos os males.

O fogo também é um meio importante de proteção. Os Juruna não usam acender fogo

para se aquecer durante a noite, exceto em acampamentos, exceto, principalmente, em

caso de nascimento. O chamado “fogo do bebê” (trata-se do próprio fogo de cozinha) man-

tém relações estreitas com sua alma: é preciso preservar a brasa do fogo noturno para

garantir a vida do pequeno; não se deve retirar um tição para acender um fogo noutro

lugar: com eles seguiria a alma. É preciso empregar “lenha verdadeira” ( õkwëha ,

∂aw¥ria, eπa÷eπa), para o fogo não apagar, e cuja fumaça, de resto, é benéfica. Um bebê
não pode ser deixado a chorar na obscuridade, o escuro o amedronta, sua alma foge. Ao pai,

cabe reavivar o fogo quantas vezes o bebê acordar durante a noite; cabe à mãe sentar-se

com ele ao pé do fogo, enquanto mantém os olhinhos abertos. Conta-se que isso pode durar

bastante: após a mamada, os bebês gostam de mirar as chamas, acalmam-se completa-

mente, e são fortalecidos pela fumaça. Tornam-se mais fortes ainda tomando pela manhã

um banho de folhas de alguma das madeiras usadas como combustível. A fumaça dessas

madeiras é um fortificante da alma, torna-a resistente à ação predatória das carnes i n -

geridas pela família e dos objetos que recebem a força dos pais.

Ademais, há magias para tudo na vida de um bebê: visgo de banana verde para

limpar excreções dos olhos; não limpar a crosta que se cria na cabeça; esfregar pucumã

na cabecinha para a cabeleleira ser cheia e negra; não cortar as unhas até dois ou três

106 No mundo onírico, a tintura negra é signo de putrefação do cadáver, mas não é isso que

vigora no nascimento.
188

anos, para não perder a alma; dar banho de folha de parore para não chorar quando deixado

sozinho na rede; bater três vezes nas costas com um maracujá silvestre para que não seja

raivoso, não se irrite constantemente, seja moderado em seus desejos.


Resumamos a teoria subjacente ao conjunto de proibições orientadas para o bebê.

Os Juruna distinguem três fases consecutivas. A fase inicial da gestação é marcada como

um tempo da — possível! — simbiose do embrião com peixes, caças e pimenta. É preciso,

assim, excluir a futura mamãe das rodas de refeição. “Quando fiquei grávida de Yamakaji,

como passei fome! Mamãe me dizia: não coma isto, não coma isto, não coma isto...”. O

perigo de não se gerar um homem sociável se atenua depois que o embrião adquire forma

humana. A simbiose, porém, ainda pode suceder, traduzindo-se em temperamento difícil. A

última fase, inaugurada pelo nascimento, põe, em primeiro lugar, uma relação especular

entre pais e filho, onde a ação dos primeiros é suscetível de ser replicada pelo segundo. E ,

em segundo lugar, uma relação de novo tipo entre homem e presa, que marcará para

sempre a existência humana: a possibilidade — os Juruna não se esquecem de enfatizar que

se trata de um possível — de sofrer-se a predação da (ou pela) presa. Esta predação con-

siste seja em um poder de afetar inerente à presa — morder, furar, comprimir, sufocar,

bicar, esquentar etc. — seja em réplica da força realizada pelo homem em concerto com

um objeto, variável segundo a função deste. Por exemplo, o cipó que se empregou para

amarrar algo segue amarrando uma parte do corpo humano; a dor que provoca é tanto mais

forte quanto maior a força com que foi amarrado.

O nascimento inaugura a comunicação freqüentemente arriscada do homem com os

seres e coisas que sofrem sua ação, mas não põe um termo à relação simbiótica que a s -

sombra o embrião. O tempo da infância é um em que se trata de promover simbioses p o -

sitivas, operar um trabalho de socialização de que o período inicial da gestação só e x -

pressava os conteúdos negativos.

Existem as chamadas “drogas das crianças”. A lua crescente assinala que é tempo

de atuar sobre a infância. A lua, cujo mito de origem a define como um Juruna incestuoso

que subiu para o céu com vergonha (por sua conduta) e melancolia (por separar-se da

irmã), a lua, como ia dizendo, tem duas mulheres: uma vive no oriente, a outra no o c i -

dente. A esposa oriental é caprichosa e o alimenta generosamente, ao contrário da outra que


189

o deixa passar fome. É por isso que após um jejum forçado, ele ressurge magrinho no

caminho que o leva àquela que o deixa lua cheia. Da lua nova, os Juruna dizem que “a lua

entrou”; ela sai e, antes de ser perceptível do horizonte avistado desde o rio, é vista pelos

que habitam a floresta — a lua nova é vista pelos animais. Não é certamente uma idéia de

curvatura da terra que acompanha esta representação; acredito tratar-se antes de uma

idéia segundo a qual o rio e a floresta não estão situados no mesmo plano — a floresta é

como um patamar inferior. Durante a lua nova, os Juruna ficam à espera de que os ritos de

lua crescente a que os animais submetem os filhotes sejam efetuados, para em seguida

realizar os seus ritos, em garantia de que não haverá simultaneidade entre as práticas

animais e as humanas. Assim, mesmo o dia em que se avista a lua acima da floresta por um

instante muito breve, ainda não é tempo dos ritos — os animais estão fazendo seus e x e r -

cícios; no dia seguinte os Juruna farão os seus. A noção básica que preside o conjunto dos

ritos é ë∫ïwã, um verbo intransitivo que se glosa por um termo tomado do léxico do e s -

porte Branco: t r e i n a r , e do qual não conheço o uso em outro contexto, além daquele das

provas (nós diríamos) a que Seµã÷ã submete os filhos. Não são provas de força exata-

mente, mas situações que propiciam a aquisição de força — mas só o magnífico xamã é

capaz de fazer coincidir o treino e a competição! Trata-se de exercícios em benefício da

performance humana e cujo conjunto abarca aspectos tão distintos quanto a mastigação, o

entendimento, a expressão verbal, a guerra e a força em geral.

O exercício de mastigação é ser pintado em torno da boca com sumo de jenipapo,

usando-se para tal um floco de algodão recheado com um dente inferior de macaco-prego

ou dentes do peixe ˚akw¥107. Fazendo isso todo crescente, durante toda a infância, “nossos

dentes não apodrecem nem em nossa velhice”. O exercício de guerra, preparatório para o

combate no rio, é ser pintado de jenipapo em torno da boca com algodão recheado com uma

aranha pãpãna ou com um camarão, ambos reputados capazes de se deslocar com o máximo

de agilidade na superfície do rio. Segundo Wereade, “os Juruna não matam camarão, nem

pegam; quando tentam pegar, ele corre para um lado, corre para o outro, corre para lá... é

impossível bater nele com um pauzinho!” O mesmo para a aranha pãpãna. Ambos devem

ser golpeados com o remo e postos a secar ao sol, antes de serem usados. O exercício de

força consiste em ter o corpo levemente esfregado com um ossinho de tatu, pois os tatus

são assim: “quando se agarram à terra, ninguém consegue arrancá-los”. A força adquirida

107 O formato e a coloração desse peixe são quase os mesmos da piranha de lista coral. Sua dife-

rença está justamente nos dentes que são pequeninos.


190

é útil também para a guerra em terra, enquanto capacidade de resistir à tentativa de

captura. O exercício do entendimento é ter as orelhas esfregadas com a cabeça de um japim

ou com folhas de uma erva de nome “droga do japim”. É aplicado no ouvido por ser a

função auditiva a fonte última da moral e da linguagem. Ouvir as palavras, compreender as

mensagens, acreditar nas afirmações, obedecer as regras, memorizar as narrativas dos

antigos... tudo isso é uma questão de boa audição, tudo conflui no verbo ëda÷ëda ( he ). O

japim pode passar seus dons para as crianças: o de ouvir extraordinariamente bem,

mesmo à distância, e aprender linguagens estranhas — dos diversos pássaros, macacos e

grupos humanos108.

Todos esses exercícios podem ser aplicados às meninas tanto quanto aos meninos,

dissipando-se assim uma distinção virtual dos papéis sexuais que outros povos Tupi, n o -

tadamente os Tupinambá, souberam utilizar entre a função feminina da mastigação do

cauim e a função masculina da guerra109. Tudo indica que, para os Juruna, o ser humano,

independentemente do sexo, é um mordedor — a mastigação do cauim sendo antes de tudo

(também à diferença de outros Tupi) uma função de velhas já mais ou menos sem dentes, e

a força do cauim sendo dependente da força das mãos que o amassam (conforme visto no

capítulo anterior). A mastigação humana é uma força destinada a enfraquecer ao longo do

tempo, uma vez que, ao contrário da dentição animal, possuímos dentes falsos, i m p r o v i -

sados, que mais cedo ou mais tarde revelam sua natureza de grãos de milho.

É no campo da linguagem que a marcação diferencial dos sexos se impõe. Para as

meninas, usa-se passar em sua língua a pá de cabaça própria para recolher farinha t o r -

108 Segundo a opinião de Wereade, uma variação justa deste exercício seria empregar a língua do

japim para esfregar na língua da criança, para torná-la apta a falar português e outros idiomas.
Ele induz isso do seguinte: conta-se que um japim fez ninho numa das árvores da antiga aldeia P o -
rori e acabou aprendendo os cantos e as músicas de flauta do festival dos ÷ï÷ãnay.
109 A narrativa que fundamenta a eficácia dos exercícios de guerra tem mesmo uma menina por

heroína. Seu pai lhe fazia submeter mensalmente ao treinamento. E ela, na companhia dele, tam-
bém muito qualificado para a guerra, viveu esta experiência. Por ocasião das guerras, ele a l e -
vava para combater: ela carregava as flechas para ele. Os Txukahamãe não conseguiam matar
nem ao pai nem a ela, e o pai deu morte a muitos Txukahamãe. Numa noite, todo mundo foi dormir
na canoa, no meio do rio, exceto ele, e os Txukahamãe atacaram a aldeia. À medida que os Índios
passavam na frente da porta da casa dele, flechava-os; até que os sobreviventes se indagaram
sobre o que seria preciso fazer para matar o Juruna. Decidiram atirar uma flecha incendiária de
resina de jatobá para incendiar a casa. Então o Juruna disse à neta (sic): “Saia, vá rápido lá para
fora”, e saiu ele também atrás dela. Os Índios dispararam muitas flechas — nenhum êxito. O avô
e a menina alcançaram a margem e saíram a nado. Porém, a pequena foi capturada. O avô voltou à
terra, apanhou o arco e flechas e recomeçou a atirar. A menina escapou outra vez. Nesse ins-
tante, chegam os Juruna que dormiam no meio do rio, resgatam-nos, e todos se põem a remar.
191

rada do tacho. Para os meninos, empregam-se traquéia de mutum ou broto da taquara

própria para clarinetas. Quebra-se o broto dentro da boca do menino, jamais na boca de

uma menina, pois uma mulher deve falar baixinho. O homem adquire voz grossa, bonita e

alta; voz que soa “grossa ainda que ele fale baixo, pois parece que é de dentro da própria

garganta que sai a voz grossa”. No mais, a expressão verbal ganha velocidade, o homem

ganha desenvoltura para contar suas experiências na caça e na guerra, quando se reúne aos

outros nas rodas de refeição ou nas cauinagens.

Os exercícios têm caráter privado ou familiar e, embora ligados ao crescente, p o -

dem ser efetuados em qualquer dia do mês (excetuando-se a lua nova), dependendo dos

achados casuais das drogas. Porém, somente a chegada da lua crescente dá lugar a um

exercício de guerra, masculino, de caráter coletivo, de que participam desde meninos de

sete ou oito anos até homens adultos, com filhos, que se sintam jovens. Ou seja, toda a

juventude masculina (fase que se começa a superar entre a puberdade do primogênito e o

nascimento dos primeiros netos). O exercício compreende um grande alarido e mímicas,

cuja expressividade é ainda maior quando os jovens estão bêbados. No terreiro da aldeia,

primeiro jogam no ar um punhado de grãos de milho e correm com um alto brado, cada um

para um lado, para que as flechas dos Índios percam o alvo. Depois, agachados, ficam a

saltar de um ponto a outro, esquivando-se de flechas imaginárias que os inimigos acabam

de desferir. Sempre gritando. A lua propicia que esse sucesso em defender-se de flechas

imaginárias se desdobre em sucesso nos ataques reais110. Segundo um jovem chamou

minha atenção, o exercício é parte do ritual motivado pelo eclipse lunar, cuja outra parte,

da qual as mulheres participam, compõe também o rito pela queda de meteoros. Veremos

isso na seção relativa aos ritos do homicídio, do qual o eclipse lunar e a queda de meteoros

são mensagens.

A puberdade introduz um tema novo que amplia o quadro da gestão cultural da vida

humana: a necessidade de pôr no alto, “fazer a criança subir” (para um jirau alto cons-

truído dentro de casa), como condição de seu desenvolvimento biológico e social. Esta r e -

clusão é atribuída aos Juruna do passado remoto e sua duração é bastante indeterminada:

cinco meses, um ano, dois anos, quem sabe? Tinha um caráter privado, não motivava

nenhum ritual de encerramento e a introdução do jovem na sociedade se traduzia em c a -

110 Uma variante deste rito, menos ostentatória, é entrar no rio e beber água da correnteza com

o olhar voltado para jusante. Ganha-se a velocidade da correnteza para fugir do inimigo.
192

samento. A moça descia ao casar-se111, o rapaz descia para buscar uma esposa. A família

dizia-lhe no instante de o mandar subir: “Quando você descer, procure uma mulher que o

agrade e poderá se casar com ela”. Um conjunto de variações de um mito justifica o

abandono da reclusão e revela como os Juruna abordam essa instituição pelo revés, se a s -

sim se pode dizer. Afirmam que ela favorecia o roubo de reclusas pelos rapazes, e o roubo

de rapazes pelas mulheres, de modo que aquilo que operava a passagem para a vida social

plena hoje lhes parece favorecer a fuga dos compromissos da aliança. Uma das noções que

fundamentam a reclusão é justamente a necessidade de proteger a “criança” dos adultos do

sexo oposto112, como se os pais desejassem protelar seu casamento, para protegê-los da

aliança por tanto tempo quanto possível. Afora isso, a atividade sexual precoce perturba o

crescimento — interrompe o processo de puberdade; a criança permanece pequena e atinge

a velhice sem passar pela maturidade113.

Mas o mito não obscureceu completamente os aspectos positivos da reclusão. S e -

gundo uma tradução etnográfica proposta por Wereade, a reclusão é tempo de e s t u d o .

Destinava-se à formação técnica e moral do homem e da mulher. O menino aprendia a arte

da cestaria e confecção de flechas. A menina aprendia fiação e tecelagem. Ambos podiam

descer por uma escada móvel (móvel justamente para evitar visitas de pessoas do sexo

oposto) para fazer as refeições com a família. Mas a menina não podia sair de casa senão

para as necessidades fisiológicas e, coberta com uma manta para se proteger do sol, o

corpo inteiramente curvado, acompanhada de uma mais velha para lhe servir de guia. No

festival dos mortos ÷ï÷ãnay, que só se celebra à noite, cabia-lhe um papel inverso a este

— o de guiar um dançarino ÷ï÷ãnay, cuja figura o xamã representa, vestido de um manto

111 Não é a menarca que assinala que é tempo de fazer a moça subir. Ela não faz da menina uma

mulher, apenas anuncia que em breve a menina vai começar a crescer. É preciso esperá-la ficar
mulher para deflorá-la (“abrir o caminho”).
112 Os Juruna reprimem a vida amorosa dos adolescentes e das mulheres solteiras, e são bas-

tante liberais com os jogos sexuais das crianças, ou melhor, fingem ignorá-los. Ao menos para
mim, as crianças falavam disso com detalhes; os adultos escutavam mas não davam atenção. I n -
daguei Mareaji sobre esses jogos e ele me afirmou que as crianças mentiam para mim. Um dia,
sem más intenções, levantei a ponta de uma grande lona debaixo da qual crianças brincavam e s -
condidas, e flagrei dois meninos em posição de sodomia. Segundo minhas informantes pequenas,
os meninos aceitam parceiros do mesmo sexo, as meninas aceitam mesmo irmãos classificató-
rios. Segundo as mesmas, os jogos não se reduzem a carícias — o ato sexual seria praticado de
fato. Jamais falavam de suas aventuras pessoais; mas como todo o bando se reunia para me
contar, os casos de cada uma acabavam sendo narrados.
113 A propósito, em outra ocasião Mareaji me afirmou que isso é apenas o que se fala; ele não

acredita nisso: a meninada namora à vontade e nunca ninguém deixou de crescer.


193

especial e curvado. Quanto ao menino, era-lhe recomendável sair quase diariamente, no

começo da manhã, para exercitar-se na pesca com arco, com a condição de não se demorar

no rio, para não se expor ao sol. Não lhe convinha embriagar-se, porém era convidado a

participar por curtos momentos das cauinagens e das danças, após o que retornava para o

alto. Quem descia com freqüência para pescar tornava-se um arqueiro hábil; quem jamais

descia, tornava-se definitivamente um mau arqueiro. Quem montava muitas flechas t o r -

nava-se um genro e um cunhado estimável, um generoso doador de flechas; quem se e s -

merava na confecção de cestas e peneiras, adquiria o hábito de confeccioná-las por toda a

vida. Da mesma forma, a menina, no futuro, mostrava-se uma mulher incapaz de passar o

tempo livre sem ter às mãos o fuso de fiar.

Não se deixa de considerar a puberdade como período que deve ser vivido no “alto”

— posição que os adolescentes compartilhavam com os esqueletos dos mortos. Ao lado da

prescrição de certas atividades, a reclusão visava proteger a “criança”, sobretudo a

moça, dos raios solares — objetivo comum a duas outras reclusões, o luto e o homicídio.

Em nenhum destes contextos os Juruna racionalizam o tema, afirmando simplesmente que

o sol não faz bem a quem vive tais processos. Fazem-no porém a propósito das ilhas f a -

lantes, Trocar-de-pele e Morrer-Morrer (ver capítulo I), o mito da vida breve, como o

chamaria Lévi-Strauss. Uma vez os homens perderam a chance de trocar de pele quando

ficassem velhos. Caso não a tivessem perdido, deveriam se submeter a uma longa p e r -

manência ao abrigo do sol para dar tempo ao desenvolvimento da pele nova. Da mesma

forma, no quadro dos relatos de xamãs que prometem a imortalidade e de mitos do regresso

dos mortos à vida (ver capítulo IV), se os mortos retornassem da morte, teriam de

permanecer em casa um longo período até que sua pele desenvolvesse resistência à luz do

dia. Naturalmente, a proibição de raios solares é o meio pelo qual os Juruna exprimem a

tão difundida concepção dos ritos de passagem como morte e renascimento. Mas em sua

concepção há também lugar para uma idéia algo diferente. Conforme vimos no primeiro

capítulo, os homens não trocam de pele, mas, ao longo da vida, desenvolvem as (quatro ou

cinco) peles que trocariam caso fossem imortais. O tempo da puberdade é justamente a fase

de desenvolvimento da pele de jovem.

O tempo que prepara o nascimento de um adulto deveria, pois, transcorrer no alto,

longe dos raios solares — condição de crescimento, beleza (o que num homem significa

músculos salientes, e numa mulher significa pele clara, seios firmes e gordurinhas), e

aquisição de hábitos de trabalho arraigados, verdadeiros vícios que escapam à consciência.


194

Assim os trabalhos aparecem como funções estreitamente ligadas à fisiologia humana —

enraizados na pele.


Ao apresentar os cuidados rituais do ciclo da gravidez, nascimento e desenvolvi-

mento do bebê, procurei abordá-los em separado de outros, tomando uma distinção f o r -

mulada pelos Apinayé, relativa a resguardo que se faz para si mesmo e resguardo que se faz

para outrem (DaMatta, 1976: 85). Embora ao pé do fogo do bebê Juruna se cruzem o

processo orientado para ele com um processo orientado para si mesmo (como já haviam se

cruzado antes, na gravidez, com a evitação do cheiro de queimado pela mãe), esta distinção

é necessária, porque as proibições que visam a proteção de si mesmo remetem a uma

teoria diferente. Adianto que esta não conta com nenhuma racionalização Juruna, como é o

caso de sua teoria da predação da alma humana frágil (ou fragilizada pela doença) pelas

almas dos seres e coisas predados pelos homens.

A recusa de levantar-se à noite para avivar o fogo do bebê, e sentar com ele, pode

acarretar, no futuro, uma sonolência crônica no pai e na mãe; ver-se-ão incapacitados

para fazer qualquer coisa, exceto cochilar o tempo todo, à luz do dia. Em contraposição, os

que demostrarem ânimo diante da perturbação do sono filho, tornar-se-ão vivazes e

trabalhadores. Não podem comer galinha, porque as galinhas copulam sem cessar — os pais

contrairiam a mesma incontinência. Isso tem tão pouco a ver com a teoria da predação que

a galinha é extensamente utilizada na alimentação de doentes — sendo mesmo o melhor

motivo para se matar uma galinha. (Terei a oportunidade de mostrar como a incontinência

sexual representa uma horrível “loucura”, a perda por excelência do controle de si.) O

estado em que se acham os pais não é absolutamente análogo ao do recém-nascido (ou do

doente), mas àquele do embrião, do qual vimos a possibilidade de ser atingido por uma

simbiose com as carnes comidas pela mãe.

Não podem fumar durante os primeiros dias para não ficarem cegos (isso com-

promete o pai, uma vez que habitualmente as mulheres não fumam). Paternidade e m a -

ternidade contraditam, assim, a função do tabaco em todos os outros contextos. De poten-

cializador da visão, torna-se o seu inverso. (Adiante, tentarei articular esse fenômeno

com outros do mesmo tipo, suscitados pelo luto e teoria do sonho.) Não podem se coçar
195

durante os primeiros meses de vida do primogênito senão com um graveto, para não ad-

quirir doenças crônicas de pele114.

Para a mãe, cuja situação, como dizia Wereade, é a mesma de um matador, há um

perigo ainda mais grave: a dilatação estomacal. Evita o cheiro de queimado desde o início da

gestação até o pós-parto, e, durante os primeiros dias de vida do bebê (como, aliás, a

menina por ocasião da menarca), não bebe “água crua” (mas água morna, misturada com

um punhado de farinha), e não come o gordo matrinxã. A gravidez fantasmagórica pode

evoluir a uma disfunção representada como a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa,

ou melhor, ao grupo a que ela pertence: tornar-se um glutão absolutamente voraz e i n -

saciável. A voracidade, por sua vez, pode evoluir até um “tornar-se ogro” ( üka÷üka ) ,

ãwã. Isso (conforme evocamos no capítulo anterior) é imaginado como “queda da cabeça”:
ao longo da noite, a cabeça deixa o corpo dormindo na rede e sai à procura de alimentos nas

casas da aldeia; não pode fazer outra coisa que roer comida o tempo todo. Tanto o seu ser se

torna Outro que não tem o destino póstumo comum à alma humana: tornar-se ÷ï÷ãnay; ela

se tornam ãwã, fantasma-vivo que vaga na floresta. Em certo sentido, quem se torna ogra,

torna-se também imortal, seja porque seu destino não é o país dos mortos seja porque sua

morte é falsa: a ogra, cujo corpo se enterra, reaparece como vivente na floresta.

Esse perigo pode atingir todo o grupo e, para preveni-lo, durante a menstrução

não se prepara cauim de nenhum tipo nem se provê o lar de água115. O cauim de uma m u -

lher menstruada poderia transformar a sociedade inteira em ogros.

A circunstância vivida então pelos pais é tal que seu ser está prestes a ser des-

constituído e reconstituído. A reprodução os desfaz e refaz, podendo refazê-los segundo

uma fisiologia nada conveniente.

114 Kadu me contou que foi confiar que a evitação valia apenas para o nascimento do primogênito

e contraiu uma coceira crônica por ter se coçado com as unhas por ocasião do nascimento de seu
caçula (sétimo filho).
115 Também não se cozinha (com água) e não se faz sexo. Diz-se também que a relação sexual e a

ingestão de cauim feito por mulher menstruada tornariam o homem impotente para sexo e caça.
196

3. Adoecer

Dentre os processos da vida humana, adoecer é o menos químico. O título desta

seção não chega a traduzir a concepção Juruna, cuja língua não comporta este verbo.

Fala-se em “doença” (kanea÷ua) como algo que existe no mundo exterior, e de um doente

se diz que está “com” doença (kanea÷ua jo ). A doença vem sempre de fora e pode ser e x -

traída pelo xamã, afora algumas exceções. Quase não é preciso dizer que a concepção

Juruna passa ao largo da noção de disfunção orgânica, mas é preciso ressaltar que, assim

sendo, passa ao largo da noção de um quadro de sintomas estreitamente vinculados. O que

consideramos uma doença, os Juruna consideram uma multiplicidade. Raramente se fica

doente de uma única doença; cada sintoma é uma doença distinta, cada manifestação do

mesmo sintoma pode ser provocada por um agente distinto. Se ontem a menina Dukayu

estava com dor de ouvido, Taykap¥ extraiu o dente de piranha que estava a morder. Se hoje

ela está com dor de ouvido, o xamã extrai a cera de mel de abelha que está a pressionar. Se

amanhã ela sentir dor novamente, o xamã poderá descobrir um resto de cera de abelha a

fazer pressão, ou a abelha mesmo a aferroar, ou alguma outra coisa a efetuar uma outra

força. Dukayu sofre de uma otite crônica, que já a deixou parcialmente surda. Natural-

mente, os Juruna não ignoram sua vulnerabilidade específica e explicam isso dizendo que,

como o ouvido dela já foi afetado por uma infinidade de coisas, uma mera gripe propicia o

agravamento da força das coisas.

Estilhaçam, pois, o que nós entendemos como uma síndrome em uma multiplicidade

de doenças provocadas por forças distintas, e afirmam que o doente e sua família — pais,

irmãos, cônjuge e filhos — devem evitar alimentos e efetuar ações que fariam com que ele

fosse atingido por novas forças. As restrições formam um subconjunto daquelas que visam

proteger o recém-nascido, porém o contexto suscita exegeses algo diferenciadas, eviden-

ciando o aspecto em que o estado do doente é singular. O doente não replica a ação de o u -

trem, apenas não tem resistência para suportar à ação do que “cai” sobre ele.

Restrição Interpretação

Usar arco A alma da corda do arco enrola-se no pescoço do doente e en-


forca; morre-se rapidamente.
Caçar A alma da caça morta segue com o caçador e entra no doente.
197

Amarrar com cipó ou A alma do objeto “cai” no doente, amarra-o ou fura-o, pro-
embira; bater pregos vocando fortes dores
Usar tipiti O tipiti possui uma alma sucuri; ao aproximar-se do doente ela
se elastece e o engole. O doente fica assim dentro de um tipiti
que o comprime incessantemente.
Torrar farinha A alma do remo usado na torrefação se põe a revolver o cora-
ção do doente.
Comer macacos e peixes A alma “morde” o doente. O xamã poderia extrair os dentes
de dentes grandes da alma do alimento, suprimindo o perigo.

A predação vinculada à prática humana mostra-se aqui com clareza. A alma da

presa ou do objeto liga-se ao predador e ao seu grupo familiar e prossegue ativa, e x e r -

cendo sua força característica sobre o doente. Fica claro também que essa teoria se baseia

na premissa de que, por uma razão de outra ordem, uma doença antecedente já debilitou a

alma humana. Ela não explica a primeira doença. Como afirma Kadu, “quando matamos

uma caça, a alma vem atrás de nós; se não estamos doentes, não acontece nada; se estamos

doentes, nos faz mal”. Responde, pois, apenas pelo reaparecimento dos sintomas, apare-

cimento de novos, agravamento, e morte. Com efeito, o fato de a doença implicar a conju-

gação de múltiplas forças, de distintas proveniências, transborda os limites da teoria da

ação humana, e remete a uma teoria mais ampla da predação.

Em primeiro lugar, há animais que são supostos causarem doenças mesmo aos

sãos, e por isto não compõem a dieta. O veado treme ao morrer, atingido por uma flecha, a

carne de veado causaria tremedeira. Um certo cágado de ovo redondo (lembra uma bola de

pingue-pongue, sendo bem menor) causa morte certa, depois de terríveis pesadelos; o ovo

causa uma coceira crônica na língua. E assim por diante.

Em segundo lugar, existem os fatores pelos quais uma pessoa saudável fica doente.

No capítulo anterior vimos como aparições de ogros prejudicam a saúde; os fantasmas

atacam com flechas, borduna, ou fazem mal com sua catinga; os animais-do-rio ( -

ï s ã m † ) arremessam princípios malignos indeterminados. Ao lado disso, existe um con-


junto de seres ditos consistirem em “doença” ou em “donos de doença”, que vão desde

seres ou fenômenos da realidade empírica até seres fantásticos, dos quais alguns personi-

ficam doenças específicas.

• Arco-íris. A alma (ou o ïsãm¥ ) “entra” no • Tuki. Deste se diz que nos “pega”,
estômago de quem se põe a mirá-lo enquanto “captura”, causando emagrecimento, ama-
fala, come, ou bebe. Penetra pela boca e relidão e grande dor em alguma parte do
atravessa no estômago, prejudicando o pro- corpo, onde se forma um ninho de numerosos
cesso de digestão. O doente morre com a espinhos (makuru) que o xamã detecta e e x -
barriga dilatada. trai pouco a pouco, ao longo de vários dias.
198

• Malária. É uma raça antropomorfa, amare- marca alva de sua saliva. Contrai-se o ï s ã m ¥
lada, barriguda, de braços e pernas finíssi- do caramujo por esta saliva, o qual “ m o r d e ”
mos, cabelos muito longos, e pênis demasia- nossas entranhas, causando dor de barriga e
damente comprido. Um indivíduo “entra” nas vômitos com sangue.
pessoas trazendo além da febre a sua cor,
sua barriga grande e sua magreza. Envergo- • Calango ãrãkau. A alma ataca invisivel-
nha-se muito de sua feiúra, e se usa ridicu- mente, mordendo-nos no pescoço. Causa
larizá-lo como uma forma de obrigá-lo a vômitos com sangue, inchação da garganta, a
“sair”: “Vá embora! Você é feíssimo, b a r r i - doença progride até a formação de um papo.
gudo, amarelo!” Ele se vai através da boca, e
nesta passagem deixa muitas feridas que são • Macaco-da-noite e kamo - isãm¥ . Simulta-

um sinal da melhora próxima do doente. neamente definidos como “doença” e como


ãwã, a alma destes animais é bastante feroz;
• Neblina e orvalho. Águas que escorrem do “morde” nossa garganta até nos levar à
céu e aqui chegam transformadas em doenças. morte. Perdemos sangue com estas mordidas.
Impregnando o cabelo das pessoas, causam
febre e fortes dores de cabeça. O orvalho
provém das gotas d’água que pingam do ca-
belo de um deus celeste chamado A∂apa, que
tem o hábito de se estirar na rede depois do
banho do final da tarde e, para não molhá-la,
puxa os longos cabelos para fora da rede.

• Gripe. Além da contaminação pelos Brancos,


contamina-se gripe no ar aspirado no r i o :
quando está gripada, a mulher-peixe wawaña
vemà tona para espirrar e tossir fora d’água.

• Trama de teias de aranha. Atravessar por


entre estas teias na floresta causa febre.

• Rastro da “borduna de ãwã ”. Essa borduna


existe como tal na perspectiva dos fantasmas
da floresta; na apreensão humana, trata-se
uma cobra que mal consegue rastejar de tão
mole. Pisar no seu rastro causa febre e dores
fortes que podem ser curadas pelo xamã. É
com ela que os ãwã golpeiam os humanos. Sua
dureza é tão grande que o golpe causa a morte
num brevíssimo instante.

• Rastro de coruja. Provoca uma pereba feia,


dolorosa, em torno da qual aparece um halo
vermelho. Na perspectiva da coruja esta pe-
reba é o seu cocar e só é usado durante a
noite; sob a luz do sol o ornamento a mataria.

• Caramujo oro÷i . Reputado “lamber” pane-


las nas casas durante a noite, aí deixando a
199

Mais freqüentemente, a doença é desencadeada pelos chamados makuru ( l i t e r a l -

mente, “espinho”; feitiço) que “flecham” ou “penetram” o corpo das pessoas, de um

modo que pode ser perceptível, como uma pontada ou dor repentina, ou não. Alguns

resultam da feitiçaria de Índios116. Outros são lançados no ar pelos mortos, os peixes

(especialmente a pirarara) e o jaguar. De resto, o termo também pode ser aplicado a todo

elemento patógeno extraído do doente pelo xamã.

Existem ainda as chamadas “dores dos Brancos”. São bichinhos minúsculos, i n -

visíveis, que contaminam por meio da água ou da terra, principalmente no ambiente dos

Postos da Funai, devido à comunicação constante com a cidade. Afora os que provocam

doenças venéreas, em si mesmos (inclusive na concepção de um homem como Wereade,

“monitor de saúde” responsável pela farmácia de Tubatuba), não possuem uma força

predatória significativa: as pessoas ficam boas rapidamente. Não são nocivos senão e n -

quanto favorecem a ação das coisas afetadas pela força humana.

Finalmente, existem as “doenças de animais”. São contraídas por ocasião de um

confronto com o animal: — “eles nos dão sua própria doença”. Não se articulam tipos de

doenças a animais específicos e desconheço que valor a doença tem para os mesmos: se são

males que os afligem ou poderes malignos. Suspeito que representam, preferentemente,

males crônicos (assim como o são as doenças dadas por animais-ïsãm†).

Mareaji viu e foi visto por um jaguar que lhe jogou sua doença, conforme se pôde

concluir momentos depois: “vomitou” sangue e ficou completamente prostrado, a família

se reuniu para chorar seu fim. Taykap¥ (segundo o relato já considerado) viu e foi visto

por um trairão fisgado por seu anzol, que lhe jogou uma doença, a qual o fez desmaiar a

bordo da canoa. Quando voltou a si, o anzol e linha tinham sido carregados, a canoa descera

com a corrente, ele enrolou um cigarro e fumou — um gesto que revela já sua disposição a

não tomar a dor de cabeça que se seguiu ao encontro como uma doença pura e simples. P o r

muitos meses não podia ver e ser visto por trairão sem se “embriagar”; tampouco podia

comer o peixe sem se sentir mal: (“Ele me passava sua própria doença”). Mas diferen-

temente de Mareaji, Taykap¥ se tornou xamã, atribuindo o episódio, ao lado de outros

igualmente insólitos, às forças do cosmos Kayabi, cujo xamanismo é reputado provocar

doenças.

116 No passado, havia Juruna praticante de feitiçaria. Atualmente as únicas acusações de


feitiçaria são dirigidas aos grupos participantes do sistema social xinguano, os chamados “Índios
do Alto” ou “Kamayurá e seus congêneres”.
200

Como a doença de Mareaji acabou por trazê-lo ao Rio de Janeiro (fevereiro-março,

1990) pude observar mais detalhadamente o modo como um Juruna procede nesta c i r -

cunstância, cuja riqueza não fui capaz de perceber no campo. Vou narrar brevemente o

caso. Ele viu o jaguar numa tarde de agosto de 1989 (eu não estava no campo). À noite,

conta, quase morreu. Melhorou três dias depois, mas permaneceu adoentado. Em outubro,

decidiu ir para o Posto Diauarum onde esperava uma vaga em um avião que o levasse a

Brasília. Em dezembro — ainda não conseguira fazer a viagem — contraiu malária e em

seguida pneumonia; fez os tratamentos necessários no Posto, mas estava tão debilitado que

acabou indo de ônibus para Brasília (cansado de esperar o avião), nos últimos dias do ano.

Telefonou-me dizendo que ia morrer, pois suas pernas estavam muito inchadas e ele se

sentia muito fraco. Fui visitá-lo e observei que não estava tão mal para se preocupar

tanto. Lá, um mês depois, ainda não se diagnosticara a doença. Telefonou-me decidido a

voltar para a aldeia, dizendo preferir morrer em casa. Convidei-o então para vir ao Rio de

Janeiro, onde poderia ir ao médico. Para desgosto seu, dois meses se passaram, pois só

então se pôde determinar, e de algum modo por exclusão, pois os exames nada acusavam

positivamente, que tinha tuberculose.

Enquanto esteve no Rio, o sintoma que mais o afligia era um peso na cabeça. Sentia

vertigem quando lhe vinha esse peso, os pés e as mãos gelavam, aumentava significati-

vamente o batimento cardíaco. Ele se deitava amedrontado e, quando o quadro se apresen-

tava mais intensamente, parecia pensar que havia chegado sua hora de morrer. A taqui-

cardia assinalava a agitação de sua alma, um signo de que estava ameaçada e podia partir

com medo. “Eu estou frio! Por que eu estou esfriando?” Buscava a cada manifestação do

peso a razão nova que o motivava; avaliava o que havia ao redor no instante da irrupção do

sintoma, apontava uma ou duas razões. Um conjunto heteróclito foi-se formando, a co-

meçar por alimentos. Temendo que parasse de comer, busquei convencê-lo de que o boi é

um animal tão manso que dificilmente poderia fazer-lhe mal. Ele não perdeu o apetite:

talvez o momento mais alegre fosse a hora da refeição. Depois isolou a televisão, figuras de

livros e revistas, a chuva, o calor, buzinas, andorinhas e outras coisas indefinidas da

paisagem vista pela janela. Ia assim listando as coisas que lhe faziam mal e evitando a

presença delas, quando era possível. Às vezes dizia ter tido um pesadelo, resumido como

um sonho com uma multidão de Brancos, e conjecturava que iria se sentir mal naquele dia.

Um dia diferenciou a televisão e o cinema, dizendo que as imagens do segundo nunca lhe

tinham feito mal. Dias depois arbitrou que não iria mais ao cinema, pois “muito prova-

velmente” as imagens também lhe fariam mal. Comprei-lhe uma camisa azul. Recusou
201

com franqueza, dizendo que foi com a última camisa azul que eu lhe dera que estava vestido

em um pesadelo tido depois de ver o jaguar, numa das noites em que esteve gravemente

doente. Por isso, trocara a camisa pela do cunhado, e não pretendia usar camisa azul.

Pedi-lhe para contar o pesadelo, disse-me que não podia fazê-lo, senão se realizaria a

mensagem ruim do sonho, prometendo narrá-lo um dia, quando ficasse bom. Quando o v i -

sitei em Brasília, já mencionava esse pesadelo e sete meses depois de tê-lo sofrido con-

tinuava atormentando-se.

Sua angústia era comovente. Dois anos antes sua irmã fora operada de um câncer

pulmonar; no ano seguinte, seu irmão fora operado de um tumor cerebral; naquele ano o

que esperava? Eu mesma fazia conjecturas e pensava se o melhor não seria interná-lo

rapidamente; mas prevalecia a confiança na médica que o atendia. Assim, na noite em que

se desesperou por estar esfriando, e me cobrou a razão, tentei enganá-lo com umas gotas

de Atroveran na esperança de que desconhecesse este remédio que eu jamais vira na f a r -

mácia da aldeia, dizendo-lhe que melhoraria sua taquicardia. Engoliu, dizendo que se t r a -

tava de um remédio para dor de barriga.

A mim me parecia que sua angústia se explicava pela impossibilidade de se deixar

entregar de corpo e alma à confiança da médica, cujas palavras de conforto não o deixavam

menos perturbado. Ela já pudera notar a singularidade do paciente desde a primeira con-

sulta, pois Mareaji parecia não gostar de enumerar e descrever minuciosamente seus

sintomas, preferindo contar-lhe que, depois de três dias de caçada, chegou à aldeia e foi

informado que uma onça aparecera em pleno terreiro. Que ele então convidou um pessoal

para fazer uma busca à onça, e encontrou-a de fato na beira do caminho da roça, detrás da

aldeia. Quase disparou sua espingarda contra ela (mas como a fera não reagiu à sua p r e -

sença, ele desistiu). Voltaram para a aldeia. À noite sentiu dor no peito e vomitou muito

sangue. Interrogado, não deu mais detalhes. Constatando que não estava anêmico, a médica,

pretendendo dizer isso numa linguagem simples, disse-lhe que estava cheio de sangue. E

Mareaji, por quase dois meses, invocou a vontade de escarificar-se para eliminar esse

sangue; mas aceitou facilmente minha franca repulsa a uma sangria em minha casa. “ P o r

que aquela mulher fica apertando meus dedos?”, um gesto em que eu vim a flagrá-lo

muitas vezes.

Fez uma endoscopia pulmonar. Jurei-lhe que o diagnóstico seria definido, mas não

foi. Foi-lhe pedido mais um prazo de dez dias para a cultura do mesmo material. Teve

insônia na véspera da saída do resultado e, pela manhã, antes de sairmos para o hospital,

comunicou-me que a insônia era sinal de que uma viagem estava marcada para ele, pois,
202

argumentou, se na véspera de uma viagem sempre se tem insônia, a insônia significava

viagem. O resultado da cultura foi negativo. A médica argumentou sobre a necessidade de

um tratamento contra tuberculose, mas, nas condições em que o diagnóstico era feito,

seria preciso acompanhá-lo ao longo da primeira quinzena de tratamento. Mareaji não

aceitou. Como se sua viagem estivesse irremediavelmente marcada, embarcou para B r a -

sília no dia seguinte, levando um protocolo médico, e lá passou ainda pouco mais de um

mês.

Ao chegar a Tubatuba, já tomando remédios para tuberculose, escarificou os braços

e as pernas com uma dentadura de peixe-cachorro. Eu havia chegado a Tubatuba antes dele,

admirei sua coragem para efetuar o tratamento doloroso, em que simplesmente “os Juruna

imitam os Índios”, pois suas próprias teorias não fornecem respaldo algum à escarifi-

cação. Quem sabe não desconfiava que estivesse cheio de sangue de jaguar?

Em Tubatuba, sofreu ainda duas vezes o peso na cabeça, com o mesmo esfriamento e

taquicardia. Sua mãe foi chorar ao pé da rede dele, todos os Juruna se reuniram em sua

casa, e ele contou, na primeira vez, que estava bem e foi com a mulher até a roça arrancar

mandioca; lá, enquanto a esperava sentado em um toco, a poeira da terra seca que subiu da

cova o “pegou”. Os primeiros raios de sol da manhã pegaram-no, um outro dia. Tinha

prometido ao filhinho sair de madrugada para buscar uma ninhada de martim-pescador;

como não acordaram suficientemente cedo, ele teve de remar um longo momento sob o sol

da manhã. “Quando saí, estava escuro; não me lembrei de levar meu chapéu”. Não saiu

mais sem chapéu debaixo do sol de verão, recobrou em pouco tempo a força e a alegria, não

deixando de contar histórias alegres do Rio, e de “brincar” comigo, dizendo-me diante dos

outros que eu vivia zangada, de mau humor.

O caso ilustra a diversidade das coisas que podem exercer sua força sobre o homem,

e talvez sugira que as imagens da mídia, ao menos do ponto de vista de sua riqueza para a

elaboração dos diagnósticos, estão para a cidade (onde se é obrigado a nada fazer) como as

almas das coisas sobre as quais o homem age estão para o ambiente da aldeia.

Quero destacar que os Juruna não encerram a economia da doença em um sistema

fechado. A predação a que o homem é vulnerável não existe apenas como um prolongamento

da predação que ele próprio exerce. Isto é um aspecto particular de uma concepção mais

geral de que tudo o que há no mundo pode cair sobre, ou projetar algo de si sobre o homem.

A bem da verdade existe uma exceção — “a cerâmica possui alma, mas ela não nos p r e j u -

dica”.
203


Para encerrar esta seção, a técnica terapêutica de Taykap¥ e seu contraste com os

as técnicas tradicionais. Distinguem-se três tipos de terapia xamânica: benzer, sugar ou

curar, e xamanizar ( ibi˚u-i˚udu , itõtõ ou i k ¥ , e izia-zia ), os quais correspondem, de

um lado, à gravidade e natureza do sofrimento e, de outro, ao grau de potência xamânica,

que cresce nesta mesma ordem. O benzimento inclui o sopro117 e integra os outros dois

métodos. As indisposições leves, sem dor, com ou sem febre, eram tratadas por meio de

benzimento, com maracá e ramos de ünãhã (cujas folhas são muito perfumadas), massa-

gem e sopro. As dores, isto é, as doenças propriamente ditas, exigiam operação por sucção.

O xamã possui em seu esôfago uma pequena peneira com uma pedra de granizo que o p r o -

tege dos males sugados. A doença atravessa sua boca em alta velocidade, bate na pedra e

ricocheteia; ele tosse, nesse instante, e cospe-a na mão ou em folhas de ünãha antecipa-

damente postas no corpo do paciente, perto da região afetada. “Nesse momento, a doença

pode ficar semelhante a uma lagarta sanguinolenta, um espinho ensangüentado, ou uma

coisa assim como dente de macaco, escama de peixe...” Um benzimento concluía a operação,

os ramos eram amarrados em um buquê que se mantinha numa fresta da casa do doente por

muito tempo.

Encontrava às vezes um buquê de ünãhã seca preso à parede das casas. Os Juruna

nunca se negaram a dizer-me que se tratava de ünãhã , por vezes mesmo evocando o que

isto significava no passado, mas jamais quiseram revelar-me por quê e quem ali colocara

o buquê. Estou certa de que não o poriam ali sem razão, mas ignoro quem é o benzedor, se

há algum especialista secreto ou se qualquer pessoa pode executar o rito. Às vezes, tam-

bém, vi mães levarem uma criança pequena para Kadu benzer, no final da tarde. Ele o fazia

com ou sem fumaça de tabaco (tudo dependia de já estar ou não fumando, por simples

prazer), sem ramos e maracá (do qual contudo possuía um, feito por ele mesmo, quando

cheguei para a temporada de campo em 1988, e que nunca o vi usar). As mulheres e x -

primiam sua intenção: queriam que o filho fosse benzido, pois ou andava indisposto ou

dormindo mal, com o sono agitado. Kadu esclarecia-me que o benzimento protegia a alma da

criança durante o sono; a indisposição que mostrava na vigília era sinal de aventuras v i -

117 A propósito, o sopro ao qual os Juruna se fazem submeter quando sofrem pesadelos e aquele

com que Seµã÷ã transformou os animais em animais caem sob a categoria do benzimento.
204

vidas em sonho, com pássaros celestes e outros animaizinhos não especificados, um tanto

perigosas para os pequenos118.

O poder quase nulo de Kadu não lhe permitiria ir além, sugar doenças. Disse-me

um dia que se ele fosse xamã, traria para mim minha alma quando eu a perdesse. Um xamã

no sentido pleno é alguém capaz de recuperar a alma que se separa da pessoa, devolvendo-a

ao dono no ritual designado “xamanizar” (conforme será visto no próximo capítulo). A

perda da alma favorece o desenvolvimento das doenças, provoca morte, mas em si mesma

não representa uma doença (senão no uso do português).

A sucção é uma técnica perfeitamente dispensável para um magnífico xamã, cujo

prestígio é criado em torno de sua capacidade de empregar o mero benzimento em um t r a -

tamento que outros só são capazes de efetuar por sucção. O que está em jogo é a grande

força que a sucção exige para se conseguir extrair uma doença teoricamente capaz de

derrubar o xamã, tamanha a velocidade com que vem ao exterior e a sua força própria. O

xamã magnífico opera sem dispêndio de energia, “apenas com as mãos”, com um simples

benzer e soprar.

Taykap¥ (e também Arakaida) pratica uma técnica chamada indiferentemente de

benzimento ou cura, da qual, conforme mencionei acima, ele suprimiu a melopéia que o

integra no rito Kayabi. Por motivos que fazem jus à mescla de civilizações, seleciono para

a apresentação o tratamento que efetuou em uma neta de Kadu, filha de um Kayabi, que se

queixou de uma dor um dia depois de concluir um tratamento alopático para malária vivax,

e que saiu das mãos de Taykap¥ direto para o Diauarum onde foi submetida a um trata-

mento alopático para falciparum.

Na manhã de 5 de novembro de 1988, Yaram¥y, cinco anos, estava com febre

baixa, muito abatida, com a boca ardendo de feridinhas. Era animador: a malária havia de

fato saído, como mostravam as feridas. Tudo o que conseguia ingerir eram pequenas doses

de cauim refrescante (iakupa). À tarde, começou a gemer de uma dor na perna e mandaram

chamar Taykap¥ para vê-la. Enquanto os avós e a mãe da menina arrumavam com vagar a

bagagem para levá-la ao Diauarum, Taykap¥ chegou com a esposa à casa de Kadu, fumando

118 Os passarinhos celestes vêm cotidianamente à terra, à noite, e aqui brincam com as crianças

pequenas, os bebês sobretudo, na esfera do sonho. É como se alma do bebê fosse um passarinho,
com a qual os pássaros do céu se divertem como se fossem crianças. “É um perigo”. O bebê tem
o sono muito agitado, acorda e chora toda hora, assustado com o que estão fazendo com ele. É
possível até que a alma do bebê se perca, levada pelos passarinhos. Para que deixem de inferni-
zar a criança, cabe ao xamã atrair por meio de maracá, ramos de ünãhã e cantos estes passari-
nhos à terra, e enforcá-los um por um.
205

um cigarro que acabara de acender. Tinha na mão três outros cigarros de fumo industria-

lizado enrolados em palha de milho. Não foi cumprimentado como é de regra, mas sua e s -

posa sim, respondendo pelos dois. Encostou-se num dos postes da casa, fumando em t r a -

gadas muito brevemente espaçadas, silencioso e vago, até que acendeu o segundo cigarro e

aproximou-se da menina, sentando no banco que lhe ofereceram ao pé da rede dela. Tocou

de muito leve o quadril, quase sem contato com a pele, fechando de vez em quando a mão em

concha e armando um gesto para retirar alguma coisa de sobre o quadril. Com a outra mão,

levava quase sem cessar o cigarro à boca, expelindo a fumaça sobre a região afetada. Após

um momento (o cigarro chegava ao fim), seu braço começou a tremer cada vez mais veloz-

mente. Um frêmito que parecia resultar de uma força estupenda aí concentrada. Podia-se

imaginar que ele machucava a menina, cujo olhar quase sem brilho mas muito atento r e -

velava-me que não estava doendo. A força era na verdade para cima, armada num gesto

para arrancar; mas o mal estava tão bem engastado na carne, que os punhos cerrados do

xamã (o cigarro se consumira) se mantinham firmes sobre a pele de menina. Tão logo o

xamã começara a dispender força, o pai de Yaram¥y se posicionou de pé atrás dele, por

indicação da esposa do xamã, que comandava o auxílio que se devia prestar a ele: dominá-lo

para impedir que fosse derrubado, e arrancar-lhe da mão o elemento do mal. Como por

uma descarga elétrica, o corpo inteiro do xamã ficou rijo e fremente ao conseguir extrair

a doença; de corpo erguido e no instante de um raio, foi lançado ao chão, junto com o pai da

menina, que sucumbiu à disputa de força e acabou amparando com o próprio corpo a queda

do xamã. Os outros homens que estavam presentes (Kadu e família continuavam a prepa-

rar-se com vagar para a viagem) colocaram o xamã em pé de novo, segurando-o ainda,

pois ele continuava muito rijo, de punhos cerrados, embora fremisse menos intensamente.

Sua esposa seguia no comando. Acendeu-se o terceiro cigarro, que alguém fumava e asso-

prava sobre o xamã, enquanto um dos homens tentava com urgência e força abrir sua mão

para pegar a doença. A esposa do xamã ordenava mais força e rapidez, o rapaz acusou ter

tocado em algo por um momento. Quando a mão do xamã foi aberta, ela disse com decepção:

“Oh! Foi-se”. A doença tomara corpo na mão do xamã; mas para se conseguir vê-la é

preciso flagrá-la de imediato; do contrário, foge pela brecha que se forma enquanto se

tenta abrir a mão. No momento em que a doença se foi, desaparecendo no ar, Taykap¥

começou a mostrar domínio do corpo, cuja rigidez havia passado. O pai da menina acendeu o

último cigarro e deu a ele. O xamã retomou o lugar ao pé da rede dela, tocando-lhe de leve o

quadril e soprando fumaça, tal qual no começo. Quando se levantou, a assistência já tinha se

dispersado, a família de Yaram¥y acabava os últimos preparativos; ele saiu sem dizer
206

palavra e olhar em torno. A esposa foi atrás, após despedir-se em nome do casal. Cada

músculo doía, estava exausto.

Yaram¥y embarcou. Momentos mais tarde surgia a notícia divulgada pela mulher

do xamã de que um cipó-ïsãm† fora arrancado da perna da menina.

Ao amanhecer daquele dia, tivera início uma cauinagem por meio da qual um homem

pretendia reunir o grupo para puxar a canoa que acabara de fazer na floresta. Como o

cauim era farto, após beber por algumas horas, todo mundo, homens e mulheres

(excetuando-se os que por alguma razão guardavam resguardo), puxariam a canoa e se

divertiriam depois tomando o cauim. Mas eis que por volta das 10 da manhã, na hora

combinada para puxar a canoa, chega a Tubatuba uma equipe de (uns) quinze jogadores de

futebol, Kayabi, de uma aldeia do rio Maritsawá, a fim de jogar uma pelada. A cauinagem

cessou, ao menos para as mulheres.

Durante o jogo se consumiu quase todo o cauim. Os Kayabi foram descansar na casa

onde eu morava, os Juruna foram puxar a canoa, sem a colaboração das mulheres, que

decidiram ficar para proteger a aldeia contra roubos. No mais, estavam muito zangadas

com a pelada, e vi um ou outro levar um beliscão na perna. O pai de Yaram¥y participara

da puxada — mas isso não me foi mencionado senão duas semanas mais tarde.

Ao anoitecer, os Kayabi foram embora. Na manhã seguinte, os maridos das Juruna

reclamavam por kichute, de dor nas pernas, um dedão machucado, arranhão, corte no pé.

Algumas ironizaram, beliscaram as pernas deles e os trataram com mau humor.

Kadu, ao retornar do Diauarum com a menina já curada, perguntou-me se eu tinha

visto o cipó- ï s ã m † , eu disse não, contou que as pessoas tinham visto e que media um

palmo. Considerando-se que um cipó-ïsãm† é invisível, é claro que eu vi. Sua explicação

para a doença de Yaram¥y passa por uma distinção sutil que não estou certa de bem com-

preender. Contou-me que seu genro ignorava muitas coisas, por isso, ao vê-lo preparado

para puxar a canoa, disse-lhe que não devia estar posicionado na fileira dos homens que

fariam a força de puxar (a corda de cipó que se amarra na proa), deveria ir para a reta-

guarda onde faria a força de empurrar (a pôpa). O genro atendeu o apelo, porém, num

certo momento, a comprida corda de cipó arrebentou, e ele, sem dar-se conta, ajudou a dar

um outro nó. Quando Kadu e ele voltaram para casa, a menina chorava de dor.
207

5. Matar

O inverno é marcado com valores da guerra. Seja porque as constelações chamadas

Cabeça de Fantasma e Urubu sopram os ventos aquosos, seja porque o xamã canibal

(Kumahari) que comanda os mortos canibais e celestes é capaz de soprar ventos que

transformam chuvas em tempestades. Não que o inverno fosse uma estação em que os

Juruna se preparavam para sair em guerra, mas conta-se que seus célebres inimigos, os

Txukahamãe, escolhiam o inverno para atacar. Já mencionei o poder atribuído aos mesmos

de invernar o tempo, por meio do talho de uma certa árvore só conhecida por eles. Além

disso, não se inicia e não se conclui guerra sem alarido, e isso basta para provocar, i n -

clusive na estação seca, uma pancada de chuva. Também o alarido dos Juruna, entoado

quando se deslocam em grupo e mesmo para visitar uma aldeia onde vivem Juruna ou Í n -

dios amigos, fecha o tempo e provoca uma pancada de chuva refrescante. Em resumo, ao

ultrapassar o domínio da aldeia, a vida social se engrena com as forças do inverno.

Lua é um Juruna, e meteoro é uma Juruna. Razão pela qual sabem quando um h o -

micídio está prestes a acontecer. Opostos não somente pelo sexo, lua difere de meteoro

como a gelidez e o fogo ardente; periodicidade versus intempestividade; vergonha e m e -

lancolia versus ciúme e ressentimento. Vergonha pelo incesto, saudade da irmã versus

ciúme da rival e raiva do marido. Meteoro não era o seu nome, mas, como ninguém se

lembra como se chamava, dão-lhe o nome das pedras que lança sobre nós e que consistem

em bolas de massa de mandioca119, que se incandescem e depois empedram (sem perderem

contudo a redondez e, na parte interna, o aspecto de massa de mandioca). Um mito diz que

seu marido, com quem tinha um filho, após uns dez anos de casamento, casou-se com outra

e se esqueceu dela, agindo como ex-marido mais do que como um homem com duas esposas.

Nenhuma pesca para meteoro; quando o menino ia ter com ele no porto para lhe pedir um

peixe, dizia que os peixes eram para sua (do menino) “outra mãe” ( ija nana, mãe clas-

sificatória). Até que um dia, então, meteoro recolheu do jirau suas inúmeras bolas de

massa de farinha (que ela não tinha mesmo por que torrar), chamou o filho e subiu para o

céu. Quando se lembra do passado, ela arremessa uma bola.

119 Tal como as mulheres preparam e põem sobre o jirau para escorrer por dois ou três dias até

que a utilizam para fazer uma farinha polvilhosa, ideal, por isto, para fazer pirão.
208

Por seu lado, lua pressente o futuro120. Refletindo a imagem da futura vítima do

homicídio, lua eclipsa: verte sangue para comunicar-se com os Juruna. Dá-se aqui o

mesmo que se dá com as imagens oníricas: a mensagem pode ser potencializada ou s u p r i -

mida: os cantos entoados por ambos os sexos e o alarido masculino são eficazes tanto para

uma coisa quanto para a outra.

As aldeias que cheguei a localizar estão situadas à margem esquerda e, como T u -

batuba, sua frente é voltada para o nascente. Em casa ou em acampamentos, não se dorme

com a face voltada para o poente. Como um espelho que reflete a divisão do céu, o rio s e -

para o oriente do ocidente. A lua inscreve a mensagem de homicídio contra os Juruna no

céu oriental; no céu ocidental, a do homicídio contra Índios pelos Juruna ou por outros.

Seja no céu oriental ou ocidental, o eclipse lunar exige o exercício de guerra, tal

como descrito anteriormente para o crescente, mas que se prolonga até as margens da

floresta e compromete não apenas a juventude como também os matadores prestigiados. Os

fantasmas mais macabros surgem nos caminhos que há em torno da aldeia. Os homens p e -

gam cada um algum desses caminhos para se tornarem capazes de matar. O domínio do medo

se traduzirá em coragem; os covardes que recuarem de medo jamais chegarão a matar

alguém. Tudo isso num alarido espetacular. O xamã, de sua parte, mergulha a cabeça no r i o

para examinar a reação dos peixes e ouve uma choradeira. É exatamente choradeira que se

deve evitar: os Txukahamãe reagem como os peixes e se dão mal. Quando está escrito na lua

que um Juruna vai morrer é preciso demonstrar mais alegria, gritar mais alto ainda,

cantar e cantar. Para estancar o derramamento de sangue da lua. Ao exercício de guerra

segue-se assim uma festa de cantos de guerra, da qual as mulheres participam e que se

prolonga até o amanhecer.

Os projéteis de mandioca que meteoro lança têm uma significação mais equívoca do

que o eclipse lunar. Quem sabe não os lança a fim de matar Juruna ou algum outro? É

seguro que está raivosa, mas também existe a possibilidade de ela desejar transmitir a

notícia de que alguém será morto. É por considerarem esta possibilidade que os Juruna se

alegram, ou bancam que estão alegres, detonam tiros de espingardas, gritam e cantam. O

meteoro identifica a futura vítima conforme a queda se dê na floresta da margem esquerda

ou direita do rio. A coisa é tanto mais estrondosa, como afirmou Kudawaji cheio de emoção,

120 Embora seja verdadeiro que meteoro também seja dotada desta capacidade, o que prima é

sua ligação com a lembrança.


209

quando a bola de fogo aparece no céu oriental, atravessa o rio e vai cair no lado onde haverá

de morrer Índio.

Os Juruna antigos, segundo se afirma, cantavam em ambas as ocasiões cantos de

guerra pertencentes aos Juruna. Todos estes cantos foram esquecidos; atualmente os J u -

runa cantam músicas de Índio. Não vejo, porém, motivo para se ter esquecido os cantos de

guerra. Além de sua arte musical ser bastante rica, a guerra é o tema privilegiado das

músicas de trombetas que compõem o festival dos mortos canibais, além de ser um tema

comum dos cantos dos mortos dos rochedos. Talvez sempre se tenha executado cantos de

Índios por ocasião de eclipse lunar e queda de meteoro, e os chamados cantos de guerra dos

próprios Juruna não sejam mais que uma ficção.

Os Juruna possuem um conjunto relativamente extenso de cantos chamados

“canções Kuruaya”, que tematizam tanto a guerra quanto a caça. Tematizam p r i n c i p a l -

mente os animais, mas seu conjunto é definido, por sinédoque, como cantos de guerra. Os

animais aí apareceriam simplesmente pelo costume que se atribui aos Kuruaya de cantar

para tudo, quando andavam na floresta. Ao fim da execução das canções Kuruaya, cantam-

se canções Suyá e Txukahamãe (porém não dos Kayabi — até onde sei), entre as quais se

ouve Pisa na Fulô em corruptela Txukahamãe. Por outro lado, as letras das canções K u -

ruaya contêm palavras de que se diz não saber o significado, atribuídas à língua Kuruaya,

e palavras Juruna, como esta canção que não se pode cantar na floresta para não atrair

jaguar (ap¥, em Juruna; desconheço o significado das outras duas palavras).

˚amerïña nema nema ap¥


ap¥ nema nema
ap¥
Numa noite do mês de dezembro de 1988, em Tubatuba, Yamakaji, esposa de

Kudawaji, se dirigia sozinha a sua casa, onde não havia ninguém, o fogo estava apagado e

ela não tinha lanterna. Viu o vulto de um homem, pensou ser alguém da aldeia, mas p e r -

cebeu que o tal se assustara, ela então teve medo. O Índio tentou acertá-la com um p r o j é -

til, ela correu para casa e começou a gritar. Os Juruna fizeram uma batida no local e e n -

contraram, no caminho em que Yamakaji se defrontara com o Índio, um sabugo de milho

que tinha sido assado. Seria provavelmente um vestígio de Índio, pois os Juruna não t i -

nham senão alguns pés de milho plantados na outra extremidade da aldeia e ninguém tinha

comido isso naquele dia.

Então Aruade, irmão da mãe de Yamakaji, também casado de pouco, tornou-se dono

de sua primeira festa. A abertura da festa de guerra, com cantos Kuruaya, durou toda a
210

noite. Ao amanhecer, fui acordada pelas mulheres para ir ver os K¥riway , dos quais fui

transformada em mulher por uma de minhas primas. Os homens haviam se tornado

K¥riway também e reagiram com humor quando souberam que eu era a mulher de sua
tribo. Haviam-se travestido para matar os Índios selvagens ( abi imama ) que rondavam

Tubatuba. Em fila indiana puxada por Taykap¥, vermelhos de urucum da cabeça aos pés,

brincos e cocares, deixavam na aldeia a calça, a camisa e o remo. Careciam apenas de t a -

baco, para fumar caso chovesse na floresta. Entreguei o fumo nas mãos do chefe da guerra,

que era também um reputado conhecedor dos cantos. A alegria de todos certamente a s s i -

nalava que se tratava de uma farsa — afinal, os relatos que me tinham feito da última

guerra com os Txukahamãe não sugeriam que o estado de espírito fosse de prazer. Para

mim, contudo, se fosse verdade que Índios rondavam Tubatuba, não era de todo impossível

que se matasse ou morresse. Os Kuruaya atravessariam a floresta da margem esquerda,

onde fica Tubatuba, em linha reta, até o rio Pium. Voltariam dentro de dois ou três dias (o

Pium dista aproximadamente 40 km). Sempre cantando, floresta a dentro.

Eu tinha para mim que os Juruna cantavam a fim de se anunciarem aos Índios

bravos, para assim evitar um confronto de surpresa, ao qual os Índios poderiam reagir

com agressão. Choveu contudo para os Kuruaya, o céu nublou completamente para eles, e

nisso, ou além disso, eles se perderam. Pensando que se dirigiam em linha reta, a oeste,

tomaram a direção sul e foram desembocar no Kretire, antiga aldeia dos Txukahamãe. Ao

cair da tarde daquele mesmo dia, no mesmo caminho que tomaram ao sair de Tubatuba,

despontaram cantando carregados de caça pendurada nas costas. Os cantos de entrada na

aldeia foram dedicados à caça. Um banho, uma refeição e o reencontro, à noite, para a

continuação da festa. Um festival se seguiu por pouco mais de um mês com um calendário

musical idêntico ao do festival feminino dos cantos das plantas cultivadas.

Tomei a expedição como farsa em um grau muito maior do que deveria. Seu i n s u -

cesso para chegar ao destino levou Wereade, na mesma noite, a convidar-me para uma

viagem ao rio Pium, de barco: eu compraria a gasolina e subiríamos o rio até a altura de

Tubatuba para investigar se os Brancos haviam transposto os limites do Parque, que pas-

sam justamente pelo rio Pium. Os Juruna estavam preocupados com isso, andavam escu-

tando barulho de trator e queriam saber se os Brancos estavam derrubando a floresta à

margem direita do Pium. Wereade marcou a viagem para a lua minguante, porque, segundo

disse, as colméias estão cheias de mel neste período. Subimos o rio, que desemboca no

Xingu perto do Kretire, todas as colméias estavam secas, embora fosse o minguante, não

vimos brancos, apenas seus vestígios, e nos defrontamos com um verdadeiro nicho de caça.
211

Wereade e Yawajiwa concluíram que o trator não se encontrava dentro do Parque e que a l i

não passavam Índios desde que os Txukahamãe se mudaram para jusante, tamanha era a

despreocupação dos macacos com a nossa presença.

Os Kuruaya, então, ou procuravam Brancos (razão pela qual deixaram as roupas e

se pintaram de Índios) e se perderam mesmo, ou apenas queriam investigar se os T x u -

kahamãe andavam rondando nas imediações da aldeia velha. Não muito longe desta, no

Pium, encontramos um bom acampamento onde eles tinham erguido um moquém, e aí a s -

samos peixes e macacos. Só então pude saber que haviam atingido aquele rio. Seguiram

sendo chamados pelas mulheres de K¥riway até o fim do festival.


Matar um Índio é uma ação rica em consequências. Primeiro, paralelamente à de-

composição da vítima, o matador sofre um processo de desordem geral que atinge em maior

ou menor grau, e sob a forma de desordem digestiva todas as pessoas das comunidades ou

aldeias das quais algum membro esteve presente na guerra. Segundo, matar conduz a um

destino póstumo especial para o matador. Aqui será investigado o primeiro aspecto; o s e -

gundo será desenvolvido no próximo capítulo.

“O sangue do Índio passa para o Juruna”. Em detalhe: o cheiro de sangue é um

condutor da alma do sangue, que assim enche o barriga do matador. Em grau menor, o

sangue contamina todo o grupo social, independentemente de sexo e idade. As restrições

suscitadas por esta hematofagia simbólica duram o tempo da decomposição do cadáver e sua

extensão varia de acordo com a quantidade de sangue que se tem na barriga. Como a alma de

sangue também suja a pele dos guerreiros, chegando à aldeia, batem timbó no rio para

tomarem um banho na água seivosa.

Os homens que foram à guerra mas não tiveram êxito podem comer um pouquinho.

Os outros membros da aldeia devem comer pouco. O matador e sua esposa não comem. Ao

longo do dia, tomam alguns goles do cauim iakupa, a bebida que se consome cotidianamente

para matar a sede. Ao fim da tarde, tomam uma porção insignificante de uma sopa de f i -

lhotes de peixe. Os Juruna levam-lhes bastante comida e bebida, tendo, porém, o seguinte

propósito: tão só recebem a grande cuia de bebida ou a panela cheia de peixe e começam a

ingerir, vem uma pessoa tirar-lhes o recipiente, fugindo para ir jogar o conteúdo fora.
212

O sangue da vítima não pode ser misturado com o cauim dubia (embriagante), o

cheiro de pêlos de caça queimados, de carne moqueada, batata, banana e inhame assados.

Nem tampouco com uma boa quantidade de comida. Sua conjunção com o sangue acarretaria

a mesma gravidez fantasmagórica que assombra a maternidade.

Todos estão suscetíveis à gravidez fantasmagórica, mas há perigos adicionais que

atingem somente o matador e a relação matador-vítima é dotada de especificidade. I m a -

gine-se o matador dentro de casa, sentado num banco, olhando para baixo; alguém entra,

chamando seu nome; se ele move o pescoço para olhar para atrás, nunca mais poderá olhar

para a frente de novo; o pescoço perde o movimento. Não deve se coçar com as mãos, mas

com um graveto, senão terá a pele permanentemente cheia de coceiras e feridas. P e r m a -

nece todo o tempo em casa, não sai sequer para tomar banho, não anda, não dorme, não r i ,

quase não fala. Sua esposa também. Os dois passam todo o tempo ou deitados na rede ou

sentados em banquinhos ao pé da rede, sem dever expressar qualquer inquietação, sem

abandonar-se à preguiça, à letargia, sem dormir. Cochilando de dia, o matador poderia

contrair uma sonolência crônica. “Mesmo à noite, diz Kadu, ele fica deitado sem dormir.

Se dormir, emagrece mais ainda e morre”. Ficando inquieto, andando de um lado para o

outro, jamais poderia concentrar-se numa tarefa. Rindo, passaria a dar gargalhadas

mesmo dormindo, no silêncio da noite. Conversando, se tornaria um tagarela inconve-

niente. Falando alto, não saberia dirigir-se aos outros senão de forma bruta e autoritária.

Por outro lado, o casal deve trabalhar ao longo dos dias, do contrário ambos se

tornariam visceralmente preguiçosos. O matador trança cestas e peneiras e monta flechas;

a esposa fia algodão e vai fazendo o barbante que o marido emprega em seus trabalhos. Os

concidadãos vão levando para si as flechas, peneiras e cestas que o matador vai empilhando

num jirau acima da rede.

A vítima está apodrecendo na floresta. Ao seu redor, os urubus desempenham um

papel simbólico nesse duplo processo onde estão engajados o Índio, o matador e o grupo. Os

urubus não se vêem a si próprios como comedores de carniça. O Índio está moqueado, os

vermes que pululam representam a sua pimenta em pó. Sob a chefia do urubu-rei, o seu

mais velho, a quem tomam por um ÷ ë ÷ ã m ¥ , celebram uma festa antropofágica na qual

dançam e cantam sobre a carniça humana. Ao fim, bicam as carnes podres, vão comendo e

vomitando, comendo e vomitando.

No encerramento da “festa dos urubus”, da vítima só restam os ossos. Também o

matador já se encontra seco. Na aldeia, sua magreza diz que as carnes da vítima já se

desmancharam e que já se pode suspender o resguardo. Mas, caso seja possível, é preciso
213

averiguar se a decomposição foi mesmo concluída. Alguns homens vão verificar se a festa

dos urubus já terminou realmente — não adiantaria vomitar o sangue cru ingerido no

campo de batalha, já que o sangue podre do cadáver poderia encher de novo a barriga do

matador.

Concluída a festa, os Juruna se preparam para expelir o sangue do Índio, neste

momento já completamente podre. “Vamos vomitar! Vamos vomitar!” Homens vão à f l o -

resta em busca de entrecasca de tauari, um potente emético. Numa canoa de guardar cauim,

as mulheres maceram o emético em água pura e deixam descansar por uma noite. Ao a l -

vorecer do dia seguinte, o matador sai de casa pela primeira vez convidando todo mundo

para vomitar. Toma um banho com uma porção do emético para limpar-se da alma da v í -

tima; retira a corda de seu arco, amarra-a na cintura, e vai beber uma grande cuia. À

exceção dos bebês, somente lavados com o antídoto, todo mundo deve beber até vomitar. É

amargo, parece sangue, provoca sonolência e mal estar. Neste dia, dorme-se muito e

guarda-se completo jejum.

Ao alvorecer do dia seguinte, os Juruna se reúnem de novo, a convite do matador,

para tomar um banho coletivo no rio e quebrar, dentro d’água, com pedaços de pau e

bordunas, as cuias utilizadas para tomar o emético, as quais devem ser novas e desenhadas

com motivos de labirinto. (Por que se quebram as cuias? “Eu mesmo não sei porquê”,

disse-me Kadu.) Em seguida, vão à roça do matador para arrancar a mandioca do cauim de

comemoração do homicídio. Os homens cortam as ramas e afrouxam o caule, as mulheres

desenterram as raízes.

Enquanto a mandioca está pubando, caso a cabeça da vítima não tenha sido cortada e

levada pelo matador, um grupo de homens e mulheres vai ao local onde jaz o esqueleto. No

passado, o matador apoderava-se do crânio, extraía os dentes, tapava os orifícios com cera

de abelha, furava-o no alto e encaixava aí uma trombeta de taquara destinada a ser tocada

no dia da comemoração, na abertura da cauinagem1 2 1 . Fazia com os incisivos superiores

um par de brincos para si e, com os dentes restantes, um colar para a esposa. Mais recen-

temente, quebra-se o crânio com um golpe de borduna e, sobre ele, acende-se uma f o -

gueira. A alma do Índio é rotulada de ãwã e desperta muito temor.

121 Conta-se também que em lugar de furar o crânio, a taquara podia ser presa à boca. Nem

todas as cabeças humanas podem ser tomadas como troféu. Afirma-se que há cabeças cujo uso
faria o matador virar ãwã. É o caso de cabeça de Juruna, Branco e Suyá. A cabeça de jaguar,
cuja morte exige o cumprimento dos ritos de homicídio, podia ser usada como troféu.
214

A cabeça podia ser tomada no campo de batalha. Pretendendo-se usá-la em uma

trombeta, era posta a cozinhar e o crânio e os dentes eram reservados até o final dos ritos

de homicídio, quando eram usados do mesmo modo descrito acima. Segundo a compreensão

de Wereade, se apetecia ao matador, ou a outrem, tomar a sopa de cabeça, ele o fazia. F a l a -

se de um segundo uso que os Juruna consideram incompreensível ou obscuro. Por meio de

uma técnica não detalhada, a cabeça era deixada a secar; faziam para ela o “banco-cabeça-

de-fantasma” (de assento circular na parte fronteira) e enfeitavam-na com os adornos

típicos dos Juruna1 2 2 .

Kadu narra a história de uma das últimas (senão a última) escaramuças em que

uma cabeça de Índio foi cortada. Os Txukahamãe atacaram uma família que arrancava

mandioca na roça, matando um xamã e seu filho, e capturando a mulher e um menino. Os

Juruna ficaram duplamente irados: os Índios retornaram à roça poucos dias depois, a í

acenderam um fogo e assaram batatas. Um filho do xamã convenceu os companheiros a

acompanhá-lo para fazer vingança. Encontraram três Txukahamãe em um acampamento,

sozinhos (seu bando havia se distanciado para coletar mel), distraídos, conversando sobre

sua recente proeza. Ao avistar os três,

(…) Os Juruna seguiram silenciosos. Um disse: ‘Quero matá-lo com um tiro [de arma
de fogo]’, e foi vê-los. Estavam conversando distraídos, o Juruna deu um tiro, o Índio
caiu, deu outro tiro, o outro Índio caiu também, o outro escapou — saiu correndo mato a
dentro. O irmão mais velho [do Juruna morto] disse ao Txukahamãe caído: ‘Você matou
meu irmão, é por isto que estou aqui para te matar; se você não tivesse matado meu
irmão eu não estaria aqui te matando.’ Disse-lhe isto e o golpeou [com borduna ou um
simples pedaço de pau] e o matou. Cortaram-lhe a cabeça e as mãos, enfiaram flechas
nas mãos cortadas e desferiram estas flechas exclamando: ‘Vão para longe!’123 A
cabeça, cortaram-na e colocaram-na em um cesto de palma de inajá feito ali mesmo.
‘Vamos embora!’
Acharam o caminho e não o pegaram, andaram pela mata fechada [para não correrem o
risco de serem descobertos e mortos], saíram no rio Jarina e andaram até a foz, sem
comer — com uma grande fome. Três dias depois alcançaram o Xingu e uma roça de

122 Usavam-se também as mãos da vítima para fazer castiçal ou “lua de fantasma”. O antebraço

era posto a secar e amarrado a um galho que se fincava no chão; a mão fechada segurava um
pauzinho em cuja ponta se colocava um combustível de cera. Assim, “a luz ficava no alto como a
lua”.
123 A finalidade desse gesto era fazer os Txukahamãe se mudarem para um lugar muito distante

e ao mesmo tempo forçá-los a “querer parar na aldeia”, perder a vontade de percorrer longas
distâncias para guerrear com os Juruna.
215

banana [dos Juruna]. Estavam com muita fome, cortaram cachos de banana... Ora, nós
não comemos banana quando matamos Índio. Não comemos banana maçã, pois nossos
cabelos ficam brancos muito cedo, quando somos jovens ainda. E eles se perguntaram:
‘Nós vamos comer estas bananas?’ O mais velho deles respondeu: ‘Ah, vamos comer!
Cabelos brancos não doem! Nós podemos comer, sim, mas só desta banana, não comamos
banana da terra!’ E eles comeram apenas banana maçã. Continuaram a caminhada.
No dia seguinte pela manhã alcançaram as canoas. Estavam já perto da aldeia. Tocaram
[a trombeta] kãmahu para avisar sua chegada, as pessoas ouviram, tomaram as canoas
e foram encontrá-los no meio do caminho. ‘Nós os matamos.’
A cabeça estava lá, muito pesada, cabeça de Índio pesa muito, você sabia?, tão pesada
que eles se revezaram para transportá-la ao longo da caminhada. ‘Nós nos vingamos.’
Um Índio fugira — o dono dele [um Juruna frustrado] lamentou [quer dizer, chorou, em
meio à saudação lacrimosa da recepção dos guerreiros] os dentes que perdera: ‘Perdi
meus dentes, perdi meus dentes!’
Eles colocaram a cabeça para cozinhar em uma panela nova com água fervente.
Amarraram os cabelos e mergulharam somente a face na água quente para amolecer os
dentes. Quando estava tudo mole, arrancaram os dentes, furaram-nos, fizeram um
colar e penduraram no pescoço. É muito bonito! Agora não tem mais isso, acabou,
acabou a guerra e com ela acabou o colar de dentes de Índio. [E a cabeça, o que fizeram
com ela?, eu pergunto.]
Recentemente, depois que se extraíam os dentes, a cabeça era levada para longe, para
uma aldeia velha. Muito antigamente é que faziam trombeta com crânio de Índio,
enfiando o tubo na boca e colando com cera [de abelha]. Os Juruna tocavam e festejavam
[ao fim do resguardo de homicídio]. Eles levaram a cabeça para uma casa abandonada [e
lá a penduraram], para enterrar depois que ficasse velha [uns dois meses depois], pois
se permanece muito tempo ela vira fantasma [ãwã] na hora em que faz frio [de
madrugada]. É como eu lhe falei ontem, você se lembra, é como os esqueletos dos Juruna
que quando demoravam pendurados no alto viravam gente [dubia] e andavam. A cabeça
cai e anda, vai comer durante a noite, é preciso enterrar depois de certo tempo. ‘Não é
bom demorar’, as pessoas diziam (...)”124.

Na cauinagem destinada a alegrar-se pelo homicídio, o matador está ainda sob p e -

rigo ritual, um perigo suscitado não mais pelo sangue, mas, muito justamente, pelo

cauim. Deve mostrar-se alegre, evitar sentir ciúme da esposa e não se zangar com os

companheiros por causa dela; deve mostrar-se respeitoso com todo mundo, ou seja, deve

124 Co-tradução: Mareaji. Deixei de conferir com o narrador se, realmente, apenas um dos mor-

tos teve a cabeça cortada.


216

suspender a brincadeira mais pesada com os primos cruzados. Pois a embriaguez p r o -

porcionada pelo cauim de comemoração, como a conjunção com o sangue do Índio, é um

estado em que o que ele fizer se tornará um hábito exagerado.

O que sucederia se os Juruna comessem o Índio? Não haveria ritos de homicídio

nem mesmo para o matador, que podia comer também como qualquer um. Comer carne de

Índio, diz-se, é como comer carne de caça. Os elementos que determinam os ritos de h o -

micídio são a hematofagia e a putrefação do cadáver. Os perigos potenciais deste caniba-

lismo simbólico desaparecem em um contexto de canibalismo real.

Com efeito, ao menos atualmente, o canibalismo factual depende menos das r e -

presentações escatológicas do que das representações sociológicas. No domínio da escato-

logia, que estudaremos com detalhe no próximo capítulo, anula-se a oposição entre ritos

de homicídio e canibalismo e desnuda-se a significação oculta dos primeiros: a putrefação

do cadáver (quem sabe, senão também a digestão pelo matador) virá a ser um processo

culinário pelo qual passa a carne que alimentará o matador na vida eterna. Chegando ao

país dos mortos, o matador terá consigo a carne moqueada da sua vítima.

O motivo da participação dos urubus, baseado em um desencontro dos pontos de

vista, o real humano e o imaginário urubu, parece então refletir a dupla perspectiva com

que os próprios Juruna apreendem a vítima.


217

6. Morrer

“Morrer, disse um xamã aos Juruna, é largar os ossos aqui e ir embora para outro

lugar”. Assim também, observa Kadu, embora sejam enterrados, os mortos continuam a

viver alhures mais ou menos do mesmo modo, exceto que doravante o dia representará

para eles a noite, e esta representará o dia. O enterramento é justamente uma forma de

impedir o retorno do morto e obrigá-lo a exilar-se no país dos ÷ ï ÷ ã n a y , com os quais

será confundido com o passar do tempo. Os mortos são antes de tudo contemporâneos e x i -

lados. Mais do que partida dos avós, a morte leva os filhos dos Juruna. O destino póstumo da

alma será estudado no próximo capítulo; aqui serão investigados o funeral e o luto.

Hoje se enterram os mortos sem demora e definitivamente, no passado os esque-

letos eram guardados pela família. Isto, com efeito, foi registrado em 1842 por Adalberto

da Prússia125, cujo testemunho concorda em parte com uma das duas versões que se pode

ouvir atualmente e diverge da outra. Segundo Wereade, os Juruna enterravam o morto em

casa e saíam a navegar e caçar “para esquecer”, por uns dois meses. Voltando, abriam a

sepultura, exumavam os ossos, enrolavam-nos em uma rede e depois confeccionavam o

cesto ˚añãhã (cujo nome é derivado de uma segunda função do mesmo: abi a˚a ñãhã, “cesto

para carne de Índio”) onde os guardavam por um tempo ilimitado, pendurados no teto da

casa.

Esta é a versão de Kadu: não se enterravam os mortos senão depois que os ossos

“envelheciam”. O cadáver era deixado a decompor-se quer em uma rede nova (ou s e m i -

125 “O modo como os jurunas sepultam seus mortos é, como me contou o Padre Torquato quando

lhe perguntei, sumamente simples. O cadáver é envolvido na sua rede, posto em cima de uma e s -
teira de folhas de palmeira, ‘tupé’, e coberto com outra. Depois põem-no na sepultura, que en-
chem de terra — terra que deve ser trazida de muito longe na floresta, e cobrem-na com uma
terceira ‘tupé’. Em cima da sepultura dos homens põem o arco, as flechas e o remo que usava, e
no que concerne às mulheres, jogam na água tudo o que possuíam, não havendo por conseguinte o
que pôr em cima do ‘tupé’. Logo que a carne se decompõe, os sobreviventes tiram os ossos da
terra frouxa e penduram-nos numa esteira ou num cesto no telhado da cabana. Os ossos dos
mortos ficam assim sempre entre os vivos, do que nos certificamos em todas as cabanas dos j u -
runas que vimos, com exceção dessa única abandonada. Pelos primeiros 12 meses vão todas as
manhãs e todas as tardes chorar e lamentarem-se junto à sepultura. Dentro destes doze meses é
também dever dum ausente que regressa, acompanhar as lamentações pelo morto” (Adalberto,
1977: 183). O Padre Torquato desenvolvia naquela época a catequização de grupos indígenas do
médio curso do Xingu, os Juruna inclusive. É possível que os mortos recebam hoje um funeral que
a ação do padre precipitou.
218

nova), quer em cima de um jirau forrado com uma rede e erguido para este fim, na casa do

defunto. Enquanto isso, os moradores se abrigavam em outra casa da aldeia. Os ossos não

deviam ser enterrados frescos; a família ou esperava que “envelhecessem” solitariamente

na casa abandonada, ou retornava para casa tão só estivessem limpos, cuidando de os

transferir para uma rede nova e guardá-los sobre um jirau muito alto. Finalmente, eram

enterrados ou na floresta, ou em casa, no mesmo lugar onde o finado dormia. A mãe do

morto armava sua rede sobre a sepultura126.

À diferença de muitos Tupi-Guarani, que postulam o dualismo da alma, os Juruna

afirmam a existência de uma única alma: ela deixa os ossos aqui e vai para o país dos

÷ ï ÷ ã n a y . Não se deixa, contudo, de vincular a noção de alma aos restos mortais, e isso
segundo duas perspectivas que respondem pela mudança dos costumes funerários e pelo

local escolhido para o enterramento. O tema dos ossos velhos reporta-se justamente a uma

segunda alma virtual. Na compreensão de Kadu, os ossos, com o passar do tempo, podem

transfigurar-se em fantasmas ( üka÷a , “virar ãwã ”, em glosa Juruna). Quer dizer, o


esqueleto se recompõe e desce à noite ao rés do chão para procurar a companhia dos vivos e

beber cauim. Era para evitar isso que os ossos velhos eram enterrados, e foi para evitar

isso que os Juruna deixaram de guardá-los, enterrando o corpo sem demora e definiti-

vamente127. Assim conta Kadu:

Sucedeu isto com os ossos guardados no alto, antes de serem enterrados: desceram para

126 Com efeito, Kadu exprime claramente as variações da antiga instituição funerária, sem che-

gar a relacioná-las com a condição social do morto. “Antigamente, quando alguém morria, eles o
colocavam simplesmente em uma rede, em casa; eles não o enterravam, colocavam-no em uma
rede nova. Aí as carnes apodreciam; os ossos restavam na rede. Quando os ossos ficavam v e -
lhos, carregavam-nos para longe [a floresta] e enterravam. Fazia-se assim mesmo quando o
morto era uma criança — o pai e a mãe colocavam-no em uma rede nova. A carne se consumia
completamente, os ossos ficavam limpinhos! Só muito tempo depois eram enterrados. Eles faziam
também desta outra forma: colocavam-no simplesmente em uma rede nova, em cima de um j i r a u ,
dentro de casa; depois que a carne apodrecia, depois que os ossos estavam velhos, enterravam
dentro de casa. Antigamente também se fazia assim: quando os ossos começavam a envelhecer
colocavam-nos em cima de um jirau alto dentro de uma rede [nova]. Só muito tempo depois é que
enterravam os ossos dentro de casa.” Uma vez, expus a Wereade o que ouvi de Kadu e ele me
respondeu: “Isso, eu nunca escutei. É isso o que eu sei, é isso o que eu escutei sempre: que en-
terram, depois tiram os ossos...” No entanto, ele logo ponderou: “Eu acho que antigamente f a -
ziam assim: deixavam em cima do jirau, deixavam apodrecer, depois pegavam os ossos. Depois
mudou para isso: enterrar e tirar os ossos depois”.
127 Em 1884, von Den Steinen viu cestos com esqueletos humanos pendurados nos tetos das

casas Juruna. Às vezes me pergunto se ele, que conhecia a obra de Adalberto, não foi vítima da
mesma ilusão que eu: em toda casa Juruna há cestos pendurados no alto — cheios de cuias.
219

beber cauim.
O dono desceu e andou, da forma como nós vivos andamos, à noite, enquanto os vivos
estavam
fora.
Tinha cauim, ele bebeu.
O cauim diminuiu, as pessoas indagaram “Quem é que está tomando nossa bebida?
Estava cheio e agora só tem um pouquinho!”
Ninguém sabia quem era.
Depois que muitos potes de bebida se esgotaram assim, alguém disse: “Eu vou
descobrir!”
Era o tempo das muriçocas [verão] — todo mundo saiu para dormir fora [sobre um
rochedo],
A casa ficou vazia — ficara apenas um para vigiar.
E ele desceu.
Lá no alto ele fremia: ≈ara ≈ara ≈ara,
Arrumou os ossos no lugar e desceu e andou até o cauim, mexeu a bebiba e tomou.
E começou a procurar quem estava lá: “Minha semente está aí para me ver?”
Ele bem sabia que havia mais alguém em casa, com ele.
No dia seguinte, quando retornaram todos foram informados:
“Nossos ossos é que estão descendo e bebendo o cauim!”
Foi assim que todos foram informados.
“É mesmo? Estão ficando velhos! É por isso que estão virando ãwã!”
E eles falaram: “Vamos enterrar!”
Disse um tal: “Eu também quero espiar!”
E quando todo mundo saiu para dormir fora, aquele ficou.
Ele desceu de novo.
Ωara ≈ara ≈ara, fremia no alto, e desceu, tornando-se igual a um de nós.
Desceu e andou até o cauim.
Aí ficou cantando; cantou, cantou...
Mexeu a bebida e bebeu, bebeu, bebeu...
Então eles [os observadores] exclamaram: “Ele está virando ãwã!”,
E contaram aos outros no dia seguinte, cedinho:
“É verdade, mesmo! Nossos ossos estão descendo!
Andam por aqui como um de nós,
Ele fica cantando e bebendo cauim!”
“Vamos enterrar!”
Eles cavaram e enterraram.
E o pai e a mãe dele foram para cima da sepultura.
220

Como isto sucedia sempre, eles não guardaram mais,


Eles não colocaram mais os ossos na rede.
Morria-se, era-se enterrado logo.
“Quando alguém morrer, será enterrado logo!”
É por isso que atualmente nós outros não os guardamos mais no alto;
Pois pode suceder como sucedia antigamente:
Eles podem transfigurar-se para nós, se não forem enterrados logo.
É nefasto eles beberem nosso cauim!128

Figuras do antigo funeral assim dão sentido ao contemporâneo, traçando uma e s -

treita dependência entre a inumação e a impossibilidade de emanação de uma alma dos

ossos, um fantasma, que se desenvolveria após certo tempo. A morte poderia pois dividir a

pessoa em um ãwã gélido, fixado entre os vivos, dócil e impuro, e o isãw¥ que se vai para

o país dos ÷ ï ÷ ã n a y , onde pode viver entre iguais. Como muitos Tupi-Guarani, os Juruna

poderiam, pois, afirmar — ou melhor, fazem-no, indireta e negativamente — o desdo-

bramento do homem em um fantasma que permanece neste mundo e uma alma (divina) que

vai viver no além.

Por outro lado, nem a partida da alma nem a inumação do corpo suprimem com-

pletamente a ligação da alma ( i s ã w ¥ ) aos restos mortais, pouco importando o tempo de-

corrido desde a morte. A inumação não basta para livrar-se do morto. Os Juruna não só o

enterram em casa como deveriam reconstruir outra no mesmo local sempre que se des-

truísse, diz Kadu, segundo quem os mortos exigem dos vivos certa sedentariedade. Estes

deveriam pelo menos apresentar àqueles uma solução de compromisso, quando se mudas-

sem para outro lugar: deixar um teto para as sepulturas. (Conforme observei na aldeia

velha do Maritsawá, as sepulturas estão cobertas com flandre.) “As almas são como nós

que queremos ficar em casa durante a chuva. No inverno, a alma distante [distante da a l -

128 Wereade narra uma versão coerente com o seu modo de conceber os funerais antigos: vários
esqueletos descem para beber cauim. Os Juruna, para proteger-se dos Txukahamãe que andavam
rondando a aldeia, prepararam âncoras para as canoas e foram dormir no meio do rio. O canto
dos esqueletos fala da fumaça que os enegreceu por estarem guardados desde longos anos acima
do fogo. Essa versão atribui aos ÷ ï ÷ ã n a y a ordem para se abandonar o costume tradicional. Os
Juruna pediram ao xamã para consultar os i÷u÷ia sobre como deviam proceder: “(…) Então o
xamã dormiu; as almas disserem a ele... os ÷ï÷ãnay disseram a ele: ‘Enterre os ossos dos ãwã !
Está ruim. Ficando lá no alto, eles descem quando sentem frio, estão virando ãwã ’. E o xamã
disse aos finados: ‘Enterrem-nos!’ Eles enterraram. Assim, depois disso, os Juruna não pegaram
mais os ossos para guardar. É ruim. Assim pararam de fazer isso que sempre tinham feito: en-
terrar quem morria e desenterrar os ossos para guardar. O xamã disse: ‘É ruim’, portanto, aca-
bou”.
221

deia onde se encontram os vivos] sente frio, sente frio por estar ao relento. E, sentindo

frio, ela nos diz [em sonho]: —’Estou com frio! Estou na chuva, com frio!’ É por isso que

há um teto sobre ela”.

Wereade, por sua vez, exprimindo a mesma relação, destaca que o enterramento

em casa visa impedir que a alma se sinta solitária, pois atrairia a alma de parentes para

perto de si. Liga-se, portanto, a noção de alma aos restos mortais, de modo que ao lado do

destino póstumo no país dos ÷ï÷ãnay há lugar para se afirmar sua ubiqüidade.

Não se passa da condição de vivo à de morto abruptamente: o moribundo já exala o

fedor da decomposição, sofre diversas vezes a partida e o retorno da alma; esta vai e volta;

ele expira, está morto; a alma retorna uma ou mais vezes, ele estrebucha, reanimado por

ela, mas ela parte. Veremos no próximo capítulo como a alma pode retornar alguns dias

após o sepultamento, quer em busca dos parentes, quer em busca de si mesma. Teorica-

mente, poderia animar de novo o corpo; porém já não lhe concedem isso, não se deseja

isso, e proclamam sua morte por intermédio do xamã, apontando-lhe o chão em cuja

profundidade jaz o que ela procura. É para impedir isso também, o enterro.

À exceção de um bebê que nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço (e que

não cheguei a ver), ao longo de meu período de campo nenhum Juruna morreu129. Conta-

se o seguinte. Cuidam de enterrar algumas poucas horas após o transpasse, se possível;

pois jamais o fazem à noite, de manhã cedo e à tardinha; e também porque é preciso avisar

e esperar a chegada dos parentes ausentes. O óbito transcorre sob o olhar da família130, o

corpo incumbe à família, mas esta cumprirá o seu expediente pedindo a colaboração do

grupo.

É preciso convidar o grupo para chorá-lo. A mãe e o pai convidam todas as pessoas

“para ver”; assim todos se reúnem ao redor do morto e choram. Se os Juruna fossem

rigorosos no cumprimento dos ritos, o corpo seria preparado com pintura e adornos t í -

picos da tribo. “Todos os Índios pintam seus mortos; nós outros deixamos de fazer isso

129 O procedimento usado com o recém-nascido é o mesmo usado para a placenta. O destino quis

que coubesse à morte de meu pai propiciar o contexto em que os Juruna me ensinaram os deta-
lhes de seu saber relativo à relação entre os vivos e o morto recente.
130 Em ocasiões em que se anunciou precipitadamente que duas crianças estavam morrendo, todo

mundo compareceu imediatamente à casa do pequeno moribundo, onde a mãe, sem esperança,
chorava o infeliz e todos se comoviam discretamente. Os meninos foram declarados bêbados, mas
tudo não passou de um susto. Também a história da doença de Mareaji sobre sua doença menciona
a concentração dos Juruna em sua casa. A mulher que dá à luz no dia de um óbito não vê o cadá-
ver, para proteger a vida do bebê.
222

desde que os Brancos chegaram”. Após o pranto, a mãe diz a um primo cruzado ou irmão do

cônjuge do morto: “Cave para mim!”. Os pais, irmãos, cônjuge e filhos não devem tocar na

terra. Uma sepultura circular, dita profunda (“ultrapassa a altura de um homem”), é

aberta, no mesmo lugar em que o morto dormia, por aquele a quem o pedido foi feito, a u -

xiliado por outros primos e cunhados e mesmo irmãos classificatórios.

Para impedir que seja esmagado e “comido” pela terra, prepara-se uma câmara

funerária: troncos cortados no tamanho conveniente forrando completamente o fundo,

cobertos com uma esteira de palma; o corpo, enrolado na rede mais nova, é descido à s e -

pultura pelas mãos da família; acima dele, um teto de troncos cuidadosamente montado e

coberto com uma esteira; a sepultura é fechada pelos afins com a mesma terra escavada. Ao

fim, o grupo deixa a casa funerária para que a família fique só, e a mãe arma sua rede

sobre a cova131.

O cauim dubia e, por conseguinte, a cauinagem tornam-se proibidos para todos os

moradores da aldeia, para prevenir a morte de outras pessoas, por tanto tempo quanto for

dolorosa a lembrança do finado (o que varia segundo a importância deste para o grupo e

pode se prolongar por vários meses). Durante um período, o grupo se encarrega de f o r -

necer os alimentos já preparados à família, cuja dieta é livre — exceto que não se come

tucunaré, pois, “afinal, quem morre não come tucunaré”. A família decerto está viva,

mas, se alguém comesse, o morto se veria na situação de ter de comer também, em r e -

131 Adélia de Oliveira apresenta como parte do modelo tradicional a necessidade de derrubar a

casa “a fim de evitar que as pessoas que lá habitavam morressem com a mesma doença do indi-
víduo recém-falecido. Outra morada era erguida no local da anterior” (Oliveira, 1970: 225).
“Hoje em dia”, diz também, “de acordo com os informantes, a casa do morto ainda é derrubada
mas não se constrói uma segunda no local na primeira. A nova habitação é erguida em outro lugar.
Não sabiam explicar as razões dessa mudança mas afirmavam ser provável que esta houvesse
ocorrido porque quando se construía uma nova morada no mesmo local da anterior, ‘Jurúna an-
tigo pegava doença. Aí resolveu não fazer mais’” (idem: 226). Considerando o conjunto global
das informações que obtive (e também a flexibilidade do sistema funerário Juruna), posso a f i r -
mar que a destruição da casa não é um procedimento regular. Isto é previsto para o caso de ocor-
rência de mortes consecutivas (como já registrava Adalberto — 1977: 183), ou para o caso de o
chão já abrigar um grande número de mortos, situação em que, mais do que a casa, a aldeia é que
merece ser abandonada. Um segundo aspecto não menos residual é a dor que alguns não podem su-
portar, como me contou uma mulher que perdeu o filhinho e, num gesto de revolta, não quis ficar
perto da sepultura, não gostava de ver crianças e não queria mais o marido. Foi embora sozinha
para a casa da mãe, seu marido incendiou a casa e acabou por conquistá-la de novo. Após obser-
var que os pais do morto armam sua rede sobre a sepultura, Kadu acrescenta: “Quando a casa
fica velha, é derrubada; e é preciso construir outra no mesmo lugar. Pois as almas são como nós
que queremos estar dentro de uma casa durante a chuva”.
223

feições oníricas para as quais a família inteira está destinada a reunir-se novamente por

um período. Esse peixe, que representa o alimento quase cotidiano dos Juruna, aponta o elo

que se rompeu no seio da família e exprime a inelutável oposição, o antagonismo mesmo,

entre os vivos e o morto. Este, reconhecendo sua própria imagem no peixe, fica i n t i m i -

dado, agressivo e lança em alguém o bichinho nocivo à saúde que é dito haver na garganta do

peixe.

Cinco ou seis dias depois, para purificar-se do cheiro do cadáver que penetrou na

barriga e impregnou a pele, a família ingere um emético leitoso e toma um banho do

mesmo remédio ou de seiva de timbó132. Caso alguém nos dias seguintes viesse a comer

tucunaré, o contato com o peixe valeria um contato com o cadáver: seria preciso tomar o

emético para vomitar de novo o cheiro de cadáver.

Com o passar do tempo, “os paus vão sendo comidos pela terra”. Um dia, a sepul-

tura sofre um afundamento significativo, é preciso buscar terra fora de casa para nivelar

o chão. Isso pareceria insignificante se cada pessoa que me falou do tema não tivesse r e s -

saltado esse momento, indicando que a técnica cumpre sua finalidade: a terra não come o

morto. Para um povo que afirma uma tradição de duplas exéquias, esse momento mostra

que os Juruna assinalam (como podem) a última etapa de um processo: põem terra nova na

sepultura onde descansam os ossos limpos.


Os Juruna dizem que já não se cumprem os ritos de luto senão parcialmente. A

regra seria cortar o cabelo rente ao crânio, para o pai, mãe, irmãos, cônjuge e filhos; e

cortá-lo até os ombros, para os afins atuais (cunhados, sogros, genros e noras). A regra

seria também, para os primeiros, cumprir uma reclusão até crescer o cabelo à altura dos

ombros, em cima de um j i r a u133, como sustenta Wereade, ou em cima da sepultura, s e -

132 Esse emético é extraído dos frutos do arbusto arapupa que cresce nas margens do rio. Tritu-

rados e misturados com água, soltam uma “seiva leitosa como a do timbó”, também utilizada
para tingir o barbante de tecer rede. O timbó, que pode ser utilizado para purificar a pele, não
deve ser ingerido por provocar intoxicação. Diferentemente do cheiro de sangue de Índio, o
cheiro do morto Juruna não é caracterizado como alma. O grupo mais amplo não é atingido por um
tal cheiro, mas não posso afirmar que os coveiros não o sejam também.
133 Adélia de Oliveira registrou apenas esta variante do luto, que, em meados dos anos 60, j á

era tida como desuso. “Os parentes primários do morto ... ficavam presos em cima de jiraus. Só
os pais do morto podiam sair para preparar alimentos” (Oliveira, 1970: 225). Meus dados não
224

gundo garante Kadu. É difícil saber se essas regras foram cumpridas algum dia, bem como

não é improvável que, na passagem do sistema funerário antigo para o atual, alternativas

tenham se apresentado aos Juruna sem que as contingências propiciassem a estabilização

de um sistema homogêneo. Wereade surpreende um pouco: ele, que atribui ao sistema a n -

tigo o abandono da aldeia para ir navegar, acampar e caçar, afirma que no passado recente

os enlutados “ficavam presos como os jovens”. O alto, lugar destinado ao esqueleto, t o r -

nou-se um lugar a ser ocupado pela família.

Quanto à tonsura do cabelo, sua finalidade é permitir que o crescimento sirva de

calendário do luto, em estreita associação com o desenvolvimento do esquecimento, a s s i -

nalando, ambos, a progressiva retomada das atividades suspensas com a reclusão134. Os

Juruna expressam-se deste modo. Depois que o cabelo cresce um pouquinho, pode-se s a i r

de casa para participar das refeições ao ar livre, mas retorna-se rapidamente pois ainda

não se esqueceu senão um pouquinho. Depois que o cabelo cresce um pouco, começa-se a

andar na aldeia e tomar um pouco de sol, mas ainda não se esqueceu completamente e por

isso não se “brinca” com os primos (“Ele diz aos companheiros: ‘Há muito tempo que não

saio de casa, eu não me esqueci; só tenho um leve esquecimento’”). Depois que o cabelo

cresce, pode-se navegar e tomar cauim (“mas não se bebe muito, não”), mas não se pode

pintar o corpo, pois ainda resta um pouquinho a esquecer.

Por que não se cumpre (mais?) a reclusão? É difícil responder. No mais, embora

se diga que os enlutados não ficam mais presos, de algum modo ficam sim: ao longo de pelo

menos uma semana permanecem em casa deitados. A questão que nos interessa é por que a

consideram necessária por um período de “cinco-dez meses”.

Em primeiro lugar, o estado de espírito da família não é uma experiência psico-

lógica simples e marginal aos ritos. Se o luto pede reclusão, a razão disso, p r i n c i p a l -

mente, é menos o que decorre da morte enquanto fenômeno físico (como é o caso da

decomposição da vítima e resguardo por homicídio) que a experiência psicológica do

morto. Numa palavra, quem deve realizar o trabalho de luto (no sentido freudiano) é o

morto. Os Juruna distinguem dois pesares, ambos sofridos pelo morto e que dele se p r o j e -

tam na família: ∂ad¥ e e∂o. O pesar pela degradação física que antecede à morte e pela

fazem referência a este envolvimento dos pais com a cozinha senão afirmando que isto lhes era
tão proibido quanto aos irmãos, filhos e cônjuge.
134 É curioso que um observador excelente como Adalberto não tenha registrado a tonsura. Hoje,

que os homens usam cabelo cortado à moda dos Brancos, há mulheres que já cortaram o cabelo
até os ombros por morte do pai ou mãe, há também quem não cortou.
225

degradação subseqüente, à qual o morto não é insensível. E o pesar pela separação: saudade

e melancolia. O primeiro traduz-se nas expressões sociais do luto, como corte de cabelo,

pranteamento e permanência em casa; ele não é nocivo, deve ser exprimido, é por ele que

os Juruna choram — de piedade! O segundo, a melancolia, é mortal, um signo de não s e -

paração, de busca, pelo morto, dos parentes perdidos.

A melancolia é inerente ao morto, os vivos estão sujeitos a ela, que se irradia como

um mal: pode-se perder a alma que segue para o outro mundo. Esse sentimento projetado

na família exige a reclusão como uma forma de garantir a paralisação da vida do morto no

plano do sonho e sua progressiva integração à vida social dos ÷ ï ÷ ã n a y . Em suma, como o

luto (no sentido de e∂o) é recíproco e só se conclui quando o morto nos esquece135, a f a -

mília deve ser excluída da vida social (o luto, no sentido de ∂ad¥ ) para que o morto venha

a sê-lo também. Ou, tomando a expressão menos direta dos Juruna, para que os parentes

não morram também.

Sucede o seguinte. A alma parte imediatamente para o país dos ÷ ï ÷ ã n a y — morrer

é ir para lá — onde demora a se adaptar ao “dia”. Contudo, paralelamente, no plano do

sonho, o desaparecido permanece ligado à família, e tende a repetir o que fazia em vida com

e para os parentes: comer, navegar, pescar etc. Essa repetição se dá por causa do passado,

porque ele está habituado a certas atividades. Mas, diferentemente das versões deste tema

desenvolvidas pelos Tupi-Guarani (segundo quem a alma terrestre fica a repetir na f l o -

resta sua antiga vida), para os Juruna, não são suas próprias ações passadas que o morto

repete, mas aquelas efetuadas no presente por membros da família. O irmão do morto vai à

pesca, traz o peixe e o distribui (geralmente depois de preparado) entre os parentes; no

sonho, o morto vai à pesca, traz o peixe e distribui entre os parentes, um dos quais aca-

bará sonhando que recebe de suas mãos um peixe cru. Da mesma forma, se a família se

reúne para comer, o que está ausente da roda estará presente na refeição onírica.

Opera aqui um aspecto da teoria da ação humana, mostrando que o luto também

pertence ao sistema que se inaugura com o nascimento. Nasce um bebê. Não tem força para

esticar a corda do arco e atirar uma flecha; o pai não pode, portanto, fazer isso porque a

alma do filho (num plano de realidade indeterminado) faria o mesmo. O pai morre. O filho

vai à pesca, seu peixe é distribuído; o pai aparece em sonho e lhe dá peixe; o filho por

suposto come, e morre. O pai de um bebê não deve tocar em peixe cru para não lhe

transmitir a alma de sangue de peixe; o filho (ou pai) de um morto não deve dar nem r e -

135 Também na vida a saudade é recíproca e pode provocar a perda da alma.


226

ceber peixe cru, para que o morto não tenha peixe para lhe dar. (Por que não se pode

consumir os produtos do morto? “Porque ele já morreu”!)

Por isso os Juruna dizem: “Os que estão tristes apenas comem”. A reclusão p r o -

põe, pois, um meio ideal e seguro de operar a ruptura das relações com o morto, que, não

obstante tenha partido, está demasiado presente, conforme veremos agora de um outro

ângulo.

O luto proíbe o tucunaré e o cauim. Proíbe, de um lado, o símbolo do antagonismo

entre as perspectivas dos vivos e dos mortos e, de outro, o símbolo da sua comunicação.

Como sucede ao tucunaré, outros referenciais empíricos são destituídos de seu valor e a s -

sumem o sentido que possuem em outros planos, em outras perspectivas que a dos vivos.

Prescreve-se uma conduta verbal e um estado de espírito de morto: não falar senão muito

baixinho e o mínimo necessário, não rir, não se alegrar, pois a voz e o riso quanto mais

altos mais atraem moscas. Vale citar as palavras de Kadu relativas ao que se diz aos e n l u -

tados: “Os Juruna nos dizem: ‘Não riam! Vocês podem morrer também se o fizerem. Não

conversem! Não falem alto! Não fiquem alegres! Párem de ficar alegres! Se vocês r i r e m ,

as moscas vão nos atingir, e nós poderemos morrer’. É por isto que ninguém ri, todos f i -

cam dentro de casa em cima da sepultura. Tampouco se pode cantar”. Por que essa estranha

prescrição de tristeza, se esse é um sentimento assombroso que não se deve cultivar?

A sonoridade da voz é um sinal distintivo do vivente. Assim como os olhos perdem a

visão, a palavra de quem morre perde a sonoridade, é sussurrada. Os sinais da vida, voz e

riso, pressagiam a morte, uma vez que atraem moscas. As moscas não adejam em função do

enterrado, nem assinalam que os que estão em cima da sepultura vivem um processo de

decomposição. Não é isso. Com efeito, tanto é improvável que o luto implique um processo

desse tipo que, diferentemente da paternidade, maternidade, puberdade e homicídio, ele

não é um estado de vulnerabilidade da conduta, não propicia a formação de hábitos, mas,

exatamente, a dissolução dos hábitos do morto. O riso e a voz alta de um enlutado não o

tornariam nem um ridente sonâmbulo nem um autoritário. Simplesmente atraem moscas.

O processo físico da morte só é pertinente quando se trata de uma vítima. E, ainda assim, é

desdobrado em três planos, abordado em uma tríplice perspectiva: a decomposição é j á

consumo antropofágico pelos urubus, e moqueamento para o futuro que se promete ao

matador. A morte simbólica dos vivos é menos a projeção de uma degradação física que de

uma vida que o morto reluta em assumir no além. Tudo indica, pois, que são os próprios

sinais de vida que o luto transforma em foco de atração dos insetos necrófagos.
227

Vejamos um fato análogo que me foi bem detalhado por Hürïkã. No plano da r e a -

lidade, do ponto de vista humano, os urubus são atraídos do céu pelo fedor de carniça, que

sobe da terra. De acordo consigo mesmos, os urubus percebem uma coluna de fumaça e

descem em busca daquele que estão assando cá em baixo. Agem, contudo, como se fossem

atraídos por uma pista da caça viva (sua intenção não é roubar a comida de outrem): pou-

sam um momento numa árvore para tocaiar um veado. Vendo o veado — a carniça — , a g i -

tam-se alegres, matam-no com um tiro de arco, moqueiam-no e se regalam depois de

temperá-lo com pimenta em pó — os vermes — produzida por uma categoria de urubus

chamados “tia paterna”.

Esta é a realidade que se desdobra de um duplo e irredutível ponto de vista. No plano

do sonho, o encadeamento dos fatos é diferente. Lá, se urubus sobrevoam a pouca distância

de um homem, este, aqui, está prestes a morrer, ele se tornará carniça. Os urubus desce-

ram até ele, ele está bem vivo no sonho, mas para quem estaria vivo senão para os u r u -

bus? Para si próprio, com o pensamento desperto, esse homem só poderia estar em breve

morto, pois a única verdade humana (paralela à dos urubus) é que não nos procurariam

senão por nossa carniça. Entendo que é uma ponderação desse tipo, sobre a duplicidade dos

pontos de vista, que fundamenta a interpretação de sonhos com urubus. O que é verdadeiro

na ótica dos mesmos, torna-se verdadeiro para mim. Ou seja, o verdadeiro sentido das

coisas é revirado pelo avesso.

Sucede o mesmo com o luto, com a diferença de que é no próprio plano da vida real

que a perspectiva humana é obstruída, como que digerida pela perspectiva do outro.

Analisemos as últimas proibições, que tematizam a comunhão de perspectiva entre

os vivos e os ÷ï÷ãnay, pois estes não são apenas opostos — o cauim traça sua correlação.

A pintura corporal, a dança, o canto, a cauinagem (proibidos para todos os membros da

aldeia por tanto tempo quanto se lembrarem do finado com tristeza) também significam

morte próxima no plano no sonho136. Contudo, significam o mesmo para os mortos e os

vivos; é justo em função disso que aquele por quem se guarda luto com o fim de romper

seus laços com a família está destinado a participar, no futuro, de cauinagens no mundo dos

vivos.

136 A mensagem de morte da pintura corporal é mais pregnante que a da cauinagem. Volta-se a

beber bem antes de se voltar a pintar com jenipapo. Só se pinta quando o esquecimento é dito
completo. O esquecimento da família é mais lento que o do grupo: começa-se a participar das
cauinagens devagarinho, aceitando beber o que lhe trazem em casa sem ir à cauinagem; depois,
indo dar uma olhada, demora-se lá cada vez um pouco mais.
228

Penso que a ambivalência desses signos da vida social, no que toca a seu valor no

plano do sonho, é função de sua não-ambivalência na passagem da perspectiva dos vivos à

dos ÷ï÷ãnay. Como não é possível passar de uma à outra sem solução de continuidade, aos

vivos parece que pessoas adornadas, alegres e bêbadas na realidade onírica (onde, l embre-

se, a experiência da alma do vivente é entendida como um modo de ser ÷ ï ÷ ã n a y ), ou nesse

estado liminar que é o luto, estão destinadas à morte próxima.

O sonho é o plano onde o morto persiste em comunicação com a família enquanto não

se convence que se tornou outro e se integra à sociedade dos ÷ ï ÷ ã n a y . E, conforme vimos

anteriormente, é um mundo que, situado entre os vivos e os mortos, um xamã aprendiz

deve ultrapassar para atingir o país dos ÷ ï ÷ ã n a y . É também uma espécie de contra-

perspectiva que permite pensar a relação entre esta vida e a outra, entre ser vivo e ser

÷ ï ÷ ã n a y . Por seu intermédio, o valor de verdade da perspectiva dos mortos transpõe o


limiar da vida empírica, destituindo a verdade dos homens.

Assim, a lei simbólica que rege o luto provém quer do sonho quer dos ÷ ï ÷ ã n a y . A

verdade de si é instaurada pelo outro. Os ÷ ï ÷ ã n a y estão certos de que os Juruna são c a -

nibais. Os Juruna fazem de conta que não o são, evitando tucunaré. Recolhem-se, evitam o

cauim, beleza, encontro e alegria. Querem ser esquecidos.


229

CAPÍTULO IV

O Caminho dos Mortos


230

Lembro que ÷ï÷ãnay é a categoria geral que se aplica aos mortos e o nome de um

povo alma que habita desde sempre o interior dos grandes rochedos que se encontram à

beira do Xingu. Utilizaremos o termo “nativos” para distinguir esse povo das almas dos

mortos. Entre os últimos, distinguem-se os que vivem exilados com os ÷ ï ÷ ã n a y (e se

tornaram ÷ ï ÷ ã n a y também) e os que deixaram este exílio e foram viver no céu com um

÷ë÷ãm† , o magnífico xamã Kumahari. Para os últimos, há uma forma de tratamento e s -


pecial, ÷ë÷ãm†. Merecem este título aqueles que, por assim dizer, têm uma vitória sobre

a morte, propiciada por heroísmo guerreiro ou xamânico. Neste capítulo, serão investi-

gados o destino póstumo da alma, as representações relativas ao mundo ctônico e ao mundo

celeste e os festivais com que os Juruna celebravam até a década de 70 os ÷ ï ÷ ã n a y e os

÷ë÷ãm†.
231

1. O destino da alma

Na hora do transpasse abre-se para a alma um caminho na floresta que conduz à

aldeia dos ÷ï÷ãnay. Ela está debilitada, mal aguenta dar um passo, cai muitas vezes, e r -

gue-se com dificuldade e vai caminhando com o auxílio de uma borduna ou pedaço de pau.

Nas árvores estão pousados passarinhos das espécies kãk† e uapadëdë que assistem a seus

desfalecimentos e cantam para indicar-lhe a direção137. Sua idade se altera nesse trajeto:

a criança cresce, o jovem envelhece, o velho rejuvenesce. Os ÷ï÷ãnay dão-se conta de sua

chegada pelo canto dos mesmos passarinhos, e o c a p i t ã o e “senhor da porta”, de nome

Wuba138, exclama: “Chega uma visita! Alguém veio passear!”. Sai à frente dos outros para

recebê-la em uma das trilhas que ligam as casas ao porto, e, ao constatar que se trata de

um estranho, oriundo de sekaha139, o mundo dos vivos, dirige-lhe estas estranhas

palavras: “Por que você veio? Viver aqui é muito difícil, aqui é muito diferente de onde

você vem. Aqui nós vivemos no meio da escuridão. Éramos felizes quando vivíamos em

sekaha, vivíamos à luz do dia, aqui vivemos nas trevas, a vida é dificultosa... Por que você
veio? Você não vai suportar!” Estranhas palavras, pois, primeiro, a despeito do que

sugere sua observação nostálgica, como adiante ficará claro, não exprimem a ótica de

Wuba, que jamais foi um vivente, jamais conheceu a nossa luz do dia. Segundo, tampouco

exprimem sem ambiguidade a ótica dos mortos, para quem seu país é regido pela

alternância do dia e da noite. São palavras que exprimem sem dúvida a ótica dos vivos, cuja

percepção temporal é oposta à dos mortos , os quais por isso parecem viver em um mundo

dominado pelas trevas. No mais, considerando-se que os ÷ ï ÷ ã n a y nativos são (portadores

137 Detectando-se sinais de kãk¥ ou uapadëdë na aldeia, é preciso matá-los; seu canto é
mensagem de morte para algum membro do grupo. De tanto ouvir o chamado para seguir o
caminho do além, a alma de um vivente pode decidir obedecer. O canto do tucano noticia que uma
morte está prestes ou acaba de acontecer em outras aldeias. Kãk¥ designa duas espécies de
feições semelhantes que se distinguem pelo tamanho — é a menor que guia a alma. Têm vida
noturna, alimentam-se de insetos, e “sua cabeça se parece muito com a do gavião, mas não é
gavião, é um passarinho”.
138 Quase todos os Juruna dizem ignorar o nome deste c a p i t ã o , mas acredito que simplesmente
não queiram pronunciá-lo. Kadu e alguns outros o chamam de Wuba, como os Shipaya, mas não é
improvável que o façam apenas porque eu mesma lhes disse que os Shipaya assim o chamavam.
Kurewaji me disse que seu nome é W¥ra.
139 Afirma-se que essa palavra pertence apenas ao vocabulário dos ÷ï÷ãnay e designa o mundo
dos vivos, ou melhor, a luz do dia que a morte os fez perder; kaha quer dizer “ a l v o r e c e r ” ;
literalmente, sekaha talvez signifique algo como “nossa aurora”.
232

da cultura) Juruna, e que os Juruna costumam demonstrar afeto assumindo o ponto de

vista do interlocutor, as palavras do c a p i t ã o são uma recepção carinhosa. A perspectiva

da alma é ainda, por enquanto, a dos vivos. Vai-se iniciar agora sua dura experiência de

adaptação ao tempo dos ÷ï÷ãnay.

É socorrida por alguns mortos, levada para tomar um banho de rio (como os J u -

runa fazem com as visitas) e convidada a entrar em casa. Na soleira da porta pende uma

casa quebrada de marimbondos que esvoaçam para picar o desconhecido. Se em vida a alma

foi um trançador de peneiras ou uma ceramista, ela tem com que se proteger, cobrindo a

cabeça com alma de peneira ou de cerâmica, e não sofre senão algumas picadas140.

O capitão oferece-lhe uma rede onde pode descansar, ela se deita e cai em pranto.

E ele conversa com ela. “O que foi que te matou?” “Foi uma doença que me matou”, r e s -

ponde se foi este o caso, relata-lhe suas doenças e suas dores, recebe do mesmo um ben-

zimento xamânico e com isto se cura de seus males. Neste ponto, as representações se

bifurcam. De um lado, uma abordagem do reencontro com os parentes mortos: após curar o

morto, o c a p i t ã o , que como se vê é também um xamã, indaga os outros sobre seus p a -

rentes; nesse momento, a alma se dá conta de que ali não há só gente estranha e lembra-se

de seus finados “É mesmo! Onde está minha mulher? Onde está minha mãe?” A saudação

lacrimosa marca o reencontro. Assim as famílias vão se recompondo pouco a pouco. De

outro lado, o tema da separação: a alma chora inconsolável com saudade da família, que

busca incansavelmente e não encontra. Parece ignorar ou querer ignorar que morreu e que

a distância é insuperável. Se é criança, não pára de chorar e procurar a mãe, se é uma

mulher, não pára de chorar e dizer que quer o filho. E toda vez que lhes dizem “tua mãe

está longe” ou “teu filho está longe”, choram profundamente141.

Embora curado da doença, o morto permanece fraco durante muitos dias, conva-

lescendo, e só se fortalecerá lentamente, à medida que for se adaptando ao “dia” dos

֕֋nay. Sofre grande melancolia e tenta retornar para o mundo dos vivos. Aqui diversos
motivos se tecem, em todos os quais o xamã dos vivos é o mediador. Primeiro: o morto

desconhece o caminho que pode reconduzi-lo aos vivos. Ao xamã conhecido que em sonho lhe

140 Isto daria ensejo ao modo de falar aos jovens que é preciso praticar cestaria (masculina) e
cerâmica (feminina): “Faça peneiras, senão os marimbondos te ‘matam’ quando você morrer!” A
aplicação ao trabalho ao longo da vida garante que haja alma de peneira ou cerâmica para seguir
com o morto. Os Juruna não dizem que o marimbondo pica (iduku), sim que mata (abaku).
141 Note-se que o motivo da mudança de idade sofrida no caminho carece de implicações. Em
tese, a sociedade dos mortos seria desprovida de crianças, mas não é esse o caso. O motivo
fundamenta, contudo, a abundância de mulheres jovens e a virilidade dos matadores, conforme
será visto adiante.
233

faz uma visita, ele implora que diga a direção de sua aldeia, que o leve consigo; diz-lhe que

sua dor é insuportável, quer visitar os parentes, voltar para casa. O xamã tenta mostrar-

lhe que isso não é possível: “Você morreu! Eu vim para visitá-lo, você vai viver aqui,

pois você está morto!” Se isso ainda não o convence, o xamã aceita conduzi-lo até sua

antiga casa para mostrar-lhe a sepultura. O morto constata então que não há mais como

viver ao lado dos parentes e retorna para o exílio142. Segundo motivo: o morto retorna por

sua própria conta e é visto em um caminho nas cercanias da aldeia por um xamã. I n i -

cialmente, tudo o que se pode ver é um vulto; apura-se a vista mas o vulto desaparece. O

xamã acende um cigarro para defumar a alma, o perfume da fumaça reanima-a um pouco.

Em um minuto, vê-se um passarinho moribundo no chão, à beira do caminho; em um

segundo, esse passarinho virou uma pequenina aranha. O xamã segue soprando fumaça de

tabaco, tentando fazer a alma dizer algumas palavras. “Estou fraco. Vim visitar vocês,

aqui. Estou muito triste, estou separado de meus parentes, minha mulher, meus filhos.

Quero vê-los, estou com saudade. Estou triste por isso”. Contudo é muito raro que tenha

força para falar. Terceiro: o morto retorna transformado numa juriti e entra em casa de

mansinho, quase desfalecendo, assustado e gemendo suavemente. É preciso convocar o xamã

e advertir as crianças: “Cuidado! Não maltratem esta juriti, não toquem, isto é

÷ï÷ãnay!”. O xamã identifica quem ali se metamorfoseou e extraordinariamente consegue


trocar algumas palavras com o morto: “Vim porque vivo chorando e sofrendo de saudade.

Vim porque quero ver fulano e sicrano, estou chegando assim transformado em j u r i t i ” .

Transmite as palavras aos parentes, os quais se encontram já ao redor da juriti, e todos

choram emocionados. Em seguida, assopra fumaça de tabaco sobre o morto para que ele

volte ao seu lugar e para revigorar a juriti. Alguém, tomando-a delicadamente nas mãos,

leva-a para um cantinho do lado de fora da casa. Alguns instantes mais tarde se descobre

que desapareceu misteriosamente. Os Juruna dizem que é preciso proteger essas j u r i t i s

contra as crianças, pois se os ÷ï÷ãnay forem mortos, serão reduzidos a ventos, não

conseguirão retornar ao seu país e se perderão no mundo para sempre143.

142 É de se notar que, enquanto racionalização, o sepultamento aparece como uma variante do
canibalismo funerário encontrado alhures, onde comer o cadáver é tido como condição do
afastamento definitivo da alma (Clastres, 1972).
143 Outra versão deste retorno situa o diálogo do xamã com o morto no tempo do sonho. O xamã
conta o fato aos interessados: “Aquela juriti que veio aqui era a alma de teu filho. Ele está com
os ÷ï÷ãnay — eu o vi. Ele está com saudade de ti”. E os enlutados caem em pranto. Em qualquer
ocasião, o canto nostálgico da juriti sensibiliza os Juruna. “Quando ouvimos juritis chorando de
manhã, nós sabemos logo: Oh! os ÷ï÷ãnay estão com saudade!” O pássaro possui uma dupla liga-
234

O morto por fim se convence que não é possível retornar e passa a usar o xamã

como fonte de notícias. Quando se encontram em sonho, ele chora muito e lhe diz: “Como

vai meu filho? Eu sinto saudades. Quero ir lá como uma pessoa viva, mas não aguento,

estou fraco, o vento está soprando...”

Recobrado, ele se levanta e sai de casa. É noite lá fora. “É dia! Não vou me p e r -

der!”. Anima-se para pescar ou caçar; porém, se ventar, será derrubado, assoprado como

uma folha de tão leve que é.

É muito distinta a experiência da morte para o matador de Índio. No quadro dos

ritos de homicídio, faz-se uma muito clara oposição entre esses ritos e o canibalismo: se a

vítima fosse comida não seria preciso cumprir resguardo. No quadro do destino póstumo, o

matador é imediatamente portador de alma de carne de Índio, quer dizer, torna-se um

canibal, ainda que (ou talvez justo porque) tenha cumprido os ritos de homicídio. Vejamos.

O herói de guerra parte para o país dos ÷ï÷ãnay levando consigo o colar de dentes, o

crânio e a carne moqueada de suas vítimas; seu estado não é absolutamente o de um m o -

ribundo, nem o de um melancólico. “Você matou Índio?”, interrogam-no. “Sim, eu matei

Índio!” E muita gente se reúne em torno dele para o admirar. Impõe respeito, ninguém

ousa lhe dirigir as brincadeiras importunas que os mortos costumam fazer. O matador

começa a dançar e cantar, sozinho, no meio da multidão. Em um instante, os guerreiros que

lá se encontram como visitantes se reúnem para dançar e cantar com ele, depois se sentam

em roda para comer. O recém-chegado, dono da carne, convida todo mundo que se acha por

perto para a refeição. Os que em vida nunca comeram carne humana se esquivam, pensando

que terão nojo. Ao fim o matador se despede e vai para o céu, onde passa a residir em uma

aldeia de ÷ë÷ãm†, tornando-se ÷ë÷ãm† também, sem no entanto deixar de freqüentar os

֕֋nay dos rochedos144.


E o Juruna que é comido por Índios? “Ele vai viver com os ÷ï÷ãnay nos rochedos,

em uma casa separada. Em toda aldeia há uma casa separada para quem morreu na guerra”.

Não importa, pois, se foi comido, mas que morreu por mãos de inimigos. Chega aos

÷ï÷ãnay com os ferimentos à mostra, vertendo sangue, e é curado pelo sopro do c a p i t ã o .


Assim afirma Kadu. Outros contestam. Quem morre na guerra tem a mesma sorte daqueles

ção com os mortos: alguns indivíduos são metamorfoses e a espécie como um todo capta e
transmite a sua melancolia.
144 Não disponho de nenhuma descrição de sua chegada ao céu e sua incorporação à comunidade
dos ÷ë÷ãm†. Suspeito que os Juruna não desenvolvem esse tema.
235

que “apenas morrem”: reencontra-se com os parentes mortos e fica vivendo com eles, na

mesma casa.

O xamanismo também determina o destino da alma. Todo xamã magnífico vai viver

no céu. Os xamãs que celebram o festival dos ÷ë÷ãm† também (“é provável”!), e visitam

os rochedos quando têm vontade. Aqueles que celebram a festa dos ÷ï÷ãnay vão viver nos

rochedos, mas, pelo fato de que neste festival dançam com jaguares, sua vida póstuma

apresenta um regime muito distinto do que pesa sobre os mortos comuns: freqüentam a

floresta transformados em jaguar e visitam os mortos celestes.

Os ÷ï÷ãnay feitos pela morte são muito inferiores aos nativos. Estes são perfei-

tamente adaptados ao ambiente natural, aos ventos; nada dificulta sua ação neste mundo.

Sua voz, quando retransmitida pela boca do xamã, é tão sonora quanto a nossa. Já os mortos

são fracos ( ipãk†ü, literalmente: “sem ossos”), não têm voz, apenas sussuram. O c a -
p i t ã o expõe-lhes o motivo: “Vocês não têm resistência para ficar ao “dia” [ao tempo]; é

por isso que vocês não agüentam andar, não agüentam falar com seus parentes. Vocês são

fracos, nós outros somos fortes. Se eu vou lá, em uma festa, eu danço, eu converso com

eles. Eu mesmo agüento. Vocês, vocês não conseguem falar com os seus parentes”. Essa

carência de voz ora se apresenta como um fato absoluto que restringe realmente sua co-

municação (in)direta com os vivos (mesmo um xamã dificilmente tem chance de falar com

os mortos fora do campo onírico), ora se apresenta como um fato relativo. Sucede que a

morte, além de inverter a percepção do dia e da noite, opera uma inversão da percepção

auditiva: a sonoridade da voz dos vivos soa-lhes como sussurros quase inaudíveis, e os seus

próprios sussurros soam-lhes como fala sonora. Por outro lado, esse discurso do c a p i t ã o

é bastante parcial, pois, com o transcorrer dos anos, os mortos se fortalecem ao ponto de

poderem, tanto quanto os nativos, dançar, cantar e falar.

Detrás dessa falta de vigor alinham-se duas séries de fatos que se entrelaçam: a

interrupção da comunicação dos mortos recentes com os vivos, que aí encontra sua

justificativa; e sua subordinação política aos nativos, condicionadora do relacionamento

dos vivos com os ÷ ï ÷ ã n a y como um todo. Trata-se assim de um mecanismo que garante a

comunicação dos Juruna com os mortos sem memória, sem se atropelarem com os mortos

recentes cuja melancolia e apego só lhes trariam desgraças.

A seção seguinte apresenta a etnografia de seu mundo e aprofunda a investigação do

destino diferencial da alma.


236

2. Poder e sociedade além-túmulo

Um Juruna diz: “Os ÷ï÷ãnay de lá mesmo são vigorosos, se casam e têm filhos; os

que se foram daqui são fracos, não podem ter filhos”. Quase não é preciso dizer que a e s -

terilidade dos mortos implica que os nativos sejam grandes usurpadores das mulheres

jovens, as quais se encontram em grande abundância naquele mundo, uma vez que as velhas

rejuvenesceram e as meninas cresceram no trajeto ao seu país.

O c a p i t ã o tem poder de mando — é esse o significado de sua função de senhor da

porta. Os÷ï÷ãnay “vivem presos dentro do buraco da pedra”, dentro de casa, proibidos de

transitar conforme sua vontade no terreiro da aldeia, visitar moradores de outras casas,

navegar e visitar outras aldeias. Quem vai pedir ao c a p i t ã o para dar uma volta, conta por

vezes com seu consentimento. Quem ousa sair sem dizer nada, de mansinho, é repreendido

duramente. A norma ordinária é não andar senão sob seu comando. Wereade expressa com

clareza o caráter coercitivo de seu poder no modo como ele interpela os mortos por ocasião

das festas que os Juruna preparam para eles: “Ei, você, vá à festa!”. Ele premia uns e

castiga outros, com uma fórmula muito distinta daquela que os Juruna usam em circuns-

tâncias semelhantes, a saber, “fulano, nós outros vamos à festa” — um convite que deixa

ao outro a decisão de ir também. O aspecto diferencial do destino da alma que aqui se

apreende é então o seguinte: em oposição aos matadores e xamãs, os mortos comuns têm a

aldeia dos ÷ï÷ãnay como um cativeiro — especial, é verdade, uma vez que existe tendência

à recomposição das famílias, mas ainda assim um cativeiro em que o grupo familiar se

encontra mergulhado num mundo de estranhos.

A densidade populacional é outro aspecto que marca a vida além-túmulo. Aos

÷ï÷ãnay não é dada a chance de formar novas aldeias quando a divergência irrompe no
grupo — sempre divergência por causa de mulheres! Um dos fatores do inchamento popu-

lacional é decerto a escassez de território: só habitam rochedos e todos já estão superpo-

voados. Mas sua subordinação ao capitão não deixa de pesar também. O poder deste parece

inibir todo o dinamismo que a aliança matrimonial poderia desencadear no além. Não há

possibilidade, nem mesmo para os mortos que têm a chance de recompor sua família

conjugal e a sorte de preservá-la com dificuldade, de reativar as relações de aliança para

conquistar a independência e formar grupos chefiados por eles mesmos. Os ÷ ï ÷ ã n a y to-

mam suas mulheres, filhas e irmãs e assim se vive eternamente na posição de subordi-

nados dos afins.


237

A casa é um inferno de tanta gente, não cabe mais ninguém. Os Juruna dizem que só

terão chance de serem recebidos quando morrerem porque seus pais irão recebê-los e

saberão impor sua presença aos ÷ï÷ãnay , descontentes por terem de abrir espaço para

mais um. “Os ÷ï÷ãnay fazem como os Brancos, vivem uns em cima dos outros”, disse-me

um Juruna, aludindo aos prédios de apartamentos. Há vários andares de redes. Nos andares

baixos, não há mais espaço para se estender uma sequer. Quem morre atualmente arma sua

rede no alto, encostado à parede, e vive o incômodo de, além de ter de descer e subir p i -

sando nas redes dos outros, envergonhado por estar incomodando, passar esprimido entre a

parede e as redes para ir lá fora satisfazer necessidades fisiológicas. Não há espaço para se

andar dentro de casa e todos têm de ficar pendurados na rede o dia inteiro.

É imperativa a eterna convivência com estranhos, em um burburinho galhofeiro

incessante. Os mortos levam consigo as “brincadeiras” que marcam o tom das relações

entre primos cruzados e não-parentes. O além-túmulo onde estão reunidos os Juruna de

todos os tempos é lugar de muitas palavras engraçadas, ditas para o outro, às custas dele,

para a diversão de todos. Como na vida, as brincadeiras despertam um sentimento ambíguo.

São uma prova de alegria, é preciso aprender a praticá-las e a recebê-las com humor, são

o elemento básico da formação e manutenção da amizade; mas simultaneamente, muitas

vezes, aborrecem o parceiro, que não dispõe, no momento, de nenhum meio de revide. Não

se brinca com os matadores. Quer dizer, os matadores jamais são aborrecidos, antes são

respeitados e temidos.

Os ÷ï÷ãnay também têm “os seus Índios”, mortos Takümãd¥kay, um grupo e x -

tinto cujos últimos remanescentes foram absorvidos pelos Juruna. Tratava-se de uma

tribo de exímios flecheiros. Um deles, homem muito valente, morreu entre os Juruna

prometendo-lhes quebrar a casa de marimbondos que pende na soleira da porta. Conforme

seu pedido, os Juruna colocaram ao pé de seu leito de morte a borduna, e desde então as

almas não levam tantas picadas como outrora.

A aldeia não abriga apenas seres humanos. Os mortos vivem misturados com j a -

guares, os quais, neste contexto, são ditos semelhantes aos humanos145. Conhecem as c i v i -

lidades Juruna, possuem linguagem e canto, e é possível relacionar-se com eles pois não

são ferozes como os da floresta. Sua condição é a mesma dos xamãs de ÷ ï ÷ ã n a y , que se

transformam em jaguar para perambular na floresta: os jaguares não têm o rochedo como

145 Segundo Kadu, os jaguares vivem numa casa separada; segundo outros, eles vivem nas pró-
prias casas dos ֕֋nay.
238

um cativeiro e são freqüentadores das festas que os ÷ë÷ãm† promovem no mundo celeste.

Assim os ֕֋nay recepcionam matadores em suas festas e os matadores recepcionam

֕֋nay- jaguares.
Os mortos também vivem misturados com mutuns e porcos (queixada). Dos p r i -

meiros não sei muito, exceto que provocam risos com sua carreira rápida e estabanada que

os faz tropeçar e cair. Os porcos que partilham o destino póstumo dos humanos são os

xamãs-chefes de varas, mortos por engano pelos Juruna ou por ignorância pelos Índios.

Pode-se ver aqui que a proibição que recai sobre o consumo de sua carne (dita exalar

cheiro de tabaco, conforme vimos noutro capítulo) remete ao canibalismo. Tendo a chance

de se humanizar por meio do xamanismo, a morte consagra sua condição tornando-os

convivas dos ÷ï÷ãnay. Minha expressão talvez seja pouco fiel: os Juruna não afirmam

exatamente que os porcos são humanos ( dubia ), mas que são ÷ ï ÷ ã n a y , e não restringem

essa condição aos porcos-xamãs mortos; pelo contrário, mesmo em vida os porcos em

geral se aproximam da condição dos mortos. O destino dos Juruna que se transformam em

porco (como o lendário Cabeça-de-martim-pescador), caso sejam abatidos pelos porcos

na caça, ao morrerem uma segunda vez por agressão humana, recuperam o destino que

primeiramente lhes faltou, indo viver com os ÷ ï ÷ ã n a y , exceto que transformados em

alma de porco.

Há outros animais na aldeia dos mortos, mas seu estatuto é o mesmo que os bichos

têm para os vivos: animais de estimação criados aqui e que depois da morte lá vão ter com

os antepassados do dono146.

Os rochedos pequenos são galinheiros. A criação de galinhas talvez seja um modo de

compatibilizar o regime de encarceramento, a necessidade de trabalhar para viver e a

falta de tempo para fazê-lo, pois a vida dos mortos é uma cauinagem constante. Seus ga-

linheiros são ricos, mas também comem caça e peixe. Ao raiar do seu dia, alguns se l e -

vantam e vão olhar o tempo para ver se o vento sopra. Em caso negativo, vão em frente

para pescar ou caçar; jamais navegam até lugares distantes, fazem suas presas nas i m e -

diações da aldeia. Não fossem as galinhas, o vento e a cauinagem lhes imporiam duras

jornadas sem comida.

146 Obtive esta informação de muitas pessoas, mas uma vez Kadu me disse que isso não passa de
lorota contada para as crianças. Como amam os bichos de estimação e ficam tristes quando eles
morrem, os pais as incentivam a cavar em casa uma pequena sepultura para enterrá-los, d i -
zendo-lhes que a alma será vista no terreiro da aldeia dos ÷ï÷ãnay pelos avós que recolherão o
bichinho para criar: “Ah! isto é de meu neto!” Mas Kadu não nega que os mortos criam cachor-
ros, macaquinhos e pássaros diversos.
239

Aqui se distingue outro aspecto do destino diferencial da alma. Não se leva para o

outro mundo nada que se come na vida, é preciso produzir para viver. Não se leva nem

mesmo a carne de Índio que meramente se comeu em vida. Os matadores, entretanto — quer

tenham digerido a carne da própria vítima quer tenham jejuado pelo apodrecimento da

mesma —, levam carne de Índio, que é inexaurível, e não têm de produzir para viver. Todo

seu tempo assim é dedicado a cantar e dançar durante o dia e, em pequenos grupos, a pas-

sear à noite na terra dos vivos e na aldeia dos mortos dos rochedos.

Do canibalismo factual que se praticou em vida, leva-se apenas o hábito; do h o -

micídio leva-se a vítima transubstancializada em carne moqueada — esta sim é o passa-

porte de entrada no céu, ou melhor, de saída do exílio subterrâneo. Os Juruna destinam

pois um canibalismo mais verdadeiro para o além-túmulo e concebem guerra-e-caniba-

lismo como um fenômeno único, cujas duas faces só se desdobram no tempo. Lamento não

ser capaz de articular melhor o processo vivido pelo matador durante o resguardo e a

transubstanciação (eu digo, por falta de uma compreensão exata do conceito Juruna) da

vítima após a morte do matador.

Existem várias aldeias de ÷ï÷ãnay ao longo do Xingu, algumas habitadas por

÷ ï ÷ ã n a y Takunyapé147, mas as relações intertribrais não são tematizadas. Mantidas no


horizonte da tribo Juruna, as relações intercomunitárias dão-se sob o signo da cauinagem

e da festa, de que participam também ÷ ë ÷ ã m † e xamãs vivos que se transportam em s o -

nho. A aldeia que recepciona tenta impedir toda aventura amorosa. Têm grande ciúme das

mulheres do grupo e as vigiam todo o tempo por causa dos forasteiros. Isso, decerto, não

impede que os mais corajosos seduzam as mulheres bonitas. Não faltam, pois, motivos de

desentendimento entre anfitriões e hóspedes (e também entre co-residentes pois a c a u i -

nagem sempre favorece o adultério e o namoro). Assim os ÷ï÷ãnay têm seu desejo de

endogamia sempre frustrado em função de sua vida festiva intensa.

Na margem rochosa do rio, encontram-se as bacias de pedras onde as mulheres

põem a mandioca do cauim para pubar. Passando por lá, um xamã verificaria que as bacias

contêm sempre mandioca pubando e que em casa os potes estão sempre cheios de cauim.

147 Interrogando Wereade sobre a palavra karuara, utilizada por Coudreau para designar as pe-
dras sagradas dos Juruna, ele me afirmou que é um termo Takunyapé que designa justamente os
rochedos que representam “aldeias dos ÷ï÷ãnay dos Takunyapé”, os quais lhes dedicavam uma
festa muito semelhante ao festival celebrado pelos Juruna. Segundo Kadu, os Takunyapé tinham
um xamanismo muito bonito: colavam penas nos cabelos e, numa fila indiana puxada pelo xamã,
entravam na floresta cantando até que os “awã” desciam do céu. Tudo indica que os extintos T a -
kunyapé, grupo Tupi-Guarani que habitava o Xingu, conheciam a mesma divisão dos mortos.
240

Paralelamente, os vivos são seus assíduos provedores de cauim, o qual também tem vida

póstuma e um destino idêntico ao das pessoas: “Quando o cauim se acaba para nós, os

÷ï÷ãnay começam a beber alma de cauim”.


O que os ÷ï÷ãnay comemoram? Os Juruna têm que os mortos preservam todos os

aspectos de sua cultura. Entretanto, no que diz respeito às festas, não celebram nem o

festival da agricultura nem os festivais das clarinetas. Celebram unicamente o festival da

trombeta duru, também chamado (ao menos pelos vivos) “festa dos ÷ ë ÷ ã m † ” , os “donos”

da trombeta e cujas músicas falam de guerra-e-canibalismo. Os ÷ï÷ãnay e os ÷ ë ÷ ã m †

tocam e dançam juntos, com o grande destaque dos segundos, que podem exibir-se tocando

músicas inspiradas em sua história pessoal. Estas festas culminam em um banquete a n -

tropofágico. Minha expressão talvez seja um tanto forçada, pois trata-se aqui de uma festa

dos ÷ï÷ãnay e estes, por definição, não são canibais (embora haja entre eles quem o

seja). É mais exato dizer que culminam em uma oposição entre as duas categorias de

mortos, em uma encenação sempre renovada de sua diferença. Os ÷ë÷ãm† bebem o cauim

dos ÷ï÷ãnay mas não comem sua comida. Levam para a festa seu farnel de carne humana

para partilhá-la com eles, que se recusam a comer dizendo estas palavras em tom de nojo:

“Eu? Eu não como isto! Eu não gosto!”. “Pode deixar! Você não precisa comer se não gosta.

Eu, já tendo comido isso outrora, eu acho muito bom!”, respondem os ÷ ë ÷ ã m † . E assim,

em vários pontos da casa, vêem-se grupos de matadores comendo com aqueles mortos que

da vida levaram o hábito de comer a carne dos Índios que um dia outros mataram.

Nos rochedos promove-se, pois, apenas a festa centrada no elemento distintivo dos

÷ë÷ãm† : guerra-e-canibalismo. Eu não saberia dizer se os ÷ï÷ãnay celebram esse fes-


tival para os ÷ë÷ãm†, nem se a celebram a pedido seu, como é o caso dos vivos. Mas posso

assegurar que não é desprovido de religiosidade — ao menos no entendimento de Kadu, que

transpõe para o outro mundo o caráter sagrado que o festival apresenta para os vivos. “O

xamã dos ÷ï÷ãnay [o c a p i t ã o ] diz-lhes: Não tenham relações sexuais durante a festa!

Evitem! Isso provocará perebas em vocês!” Após o encerramento, quando todos os celestes

vão embora, o xamã assopra os mortos para que possam retomar sem perigo a vida amo-

rosa. É idêntica a sanção que recai sobre os vivos, assim como é idêntica a mediação do

xamã. As perebas refletem a morte e apodrecimento da alma do vivente capturada pelos

mortos, que assim punem a transgressão sexual. Punição a que os mesmos ÷ï÷ãnay dos

rochedos submetem os vivos por ocasião do festival de cantos a eles dedicado. Pode-se ver

como a transposição de Kadu não se dobra ao constrangimento imposto pela condição de

alma dos ÷ ï ÷ ã n a y , pois fosse esse o caso o capturado deveria simplesmente desaparecer
241

sem deixar sombra de si “apodrecendo” sob o olhar dos outros. Mas tudo se passa como se

mortos não fossem uma simples e única alma: um ÷ï÷ãnay pode ter a alma roubada e

subsistir como uma pessoa sem-alma, destinada por isso a morrer em breve. Neste sen-

tido, ao menos quando confrontados com os celestes, os mortos dos rochedos são pessoas

para quem a alma representa uma parte de si.

Isto revela um elemento novo na etnografia da vida social no além: a relação

÷ï÷ãnay/÷ë÷ãm† reproduz a relação vivos/mortos. Os ÷ë÷ãm† e os ÷ï÷ãnay são todos

almas apenas do ponto de vista dos Juruna; mas, de acordo consigo mesmos, os ÷ ï ÷ ã n a y

não apresentam a mesma condição ontológica dos ÷ë÷ãm†, aos quais vêem como almas.

Vamos ao céu.


O termo ÷ë÷ãm† conhece a mesma segmentação do termo ÷ï÷ãnay, sendo contudo

mais extenso do que este. No capítulo 2, mencionei a existência de uma população terrestre

de ÷ë÷ãm†, que habita os cimos dos montes e, no nível do rio, os terrenos isentos de mato

intrincado, seja em ilhas seja no continente. Esses ÷ë÷ãm† terrestres (1) compartilham

+ Vida -

Celestes (2) Terrestres (1)

Celestes (3) Terrestres (4)

Vivos (5) Mortos (6)

Vivos (7) Mortos (8)

com os ÷ï÷ãnay nativos a condição de existir no mundo desde sempre, sob a forma de

alma, e se diferenciam deles por não estarem implicados no destino dos mortos (embora

existam almas de Juruna entre eles, pois praticam, como os mortos dos rochedos e do céu,

o roubo de alma de Juruna vivos). A riqueza e a importância da categoria vêm dos celestes

(2). Aqui também ela se bifurca entre os nativos (3) e os Juruna (4). Estes se bifurcam
242

novamente entre os que foram em vida (5) e os que foram mortos, como os matadores ( 6 ) .

E mais uma vez os mortos se bifurcam entre os que ressurgiram como viventes, porque

além de canibais são xamãs magníficos (7), e os que permanecem mortos — embora não

sem ambiguidade (8).

A geografia do céu é semelhante à terrestre, inclusive do ponto de vista da ocupação

humana; lá existem inúmeras aldeias habitadas por ÷ ë ÷ ã m † , com casas de palha de b a -

baçu, semelhantes às casas tradicionais dos Juruna. Todos os animais que existem aqui

existem lá — o ogro pa÷¥ inclusive.

A população humana nativa é o povo a∂apa, cujo principal é designado pelo mesmo

termo. São seres tão concretos quanto nós, aspecto pelo qual diferem dos ÷ï÷ãnay e dos

÷ë÷ãm† terrestres que são somente alma. Se os últimos são seres que nunca morreram,
como dizem os Juruna, é tão simplesmente porque jamais foram viventes. Os a∂apa são

vivos e imortais. Sua imortalidade, como a de Seµã÷ã, é adquirida em águas de fontes

especiais, onde qualquer homem poderia se tornar imortal se pudesse aí tomar um banho.

No céu vive também um grupo de Juruna (e seus descendentes) que ascendeu em

vida, através do xamanismo. Reconhece-se aí o tema central da religião Guarani: busca da

ascenção humana à região da imortalidade por meio de dança. Mas para os Juruna não se

trata absolutamente de uma busca, mas de um efeito indesejável da transgressão do s i -

lêncio por ocasião da viagem onírica do xamã ao céu, e cujo mito, na apreensão indígena,

simplesmente justifica a proibição do barulho. Os Juruna tomam o ruído como um meio de

conjunção entre a terra e o céu. Assim se conta que um xamã estava um dia dormindo,

depois de uma noite inteira de danças ao som do maracá e de embriaguez provocada por

sumo de tabaco e de huririko misturados com cauim. Da dança participavam muitos con-

cidadãos, todos tão embriagados quanto ele. Quando um xamã consome huririko e/ou cho-

calha o maracá (cuja função é convocar os celestes) não se pode produzir determinados

ruídos sem por em risco sua permanência neste mundo. Caso esteja vivendo uma expe-

riência onírica no céu, a barulheira pode acordá-lo repentinamente antes do retorno de

sua alma, e o xamã, separado dela, morre. Naquele dia, crianças brincavam com um pedaço

de pau batendo na parede da casa do xamã, que dormia, batendo em todo o redor da casa. Os

adultos decerto tinham advertido para não se fazer barulho, “crianças, no entanto, não

têm entendimento”. O xamã se levantou, pegou o maracá, começou a cantar e bater o m a -

racá na parede, do lado de dentro, em todo o redor. A casa foi-se desprendendo da terra até

que, cumprida toda a volta, levitou. Os moradores da casa começaram a cantar também; os
243

outros, quando a viram suspensa, correram e ficaram pulando para alcançá-la e descê-la

ao chão. Foi impossível.

Aqueles que estavam cantando, ele os levou,


Foram-se na casa solta no ar,
Cantando,
Foram-se para lá longe, o alto.
Eles não morreram, estão lá no alto.
Xamãs adormecidos iam até eles e nos contavam:
“Eles estão lá,
Não morreram,
São numerosos”.
Então, quando o xamã bebe o sumo da droga [huririku], diz-se:
“Cuidado! Não façam barulho! Não batam paus na casa!
Evitem, senão ele sobe!”

Por que esses Juruna não morreram? Não se morre no céu. Teriam tomado um

banho especial? Os Juruna não se preocupam em limitar o dom da imortalidade às águas

maravilhosas, bem como não formulam uma articulação abrangente das representações

relativas à vida no mundo celeste e seus diversos habitantes (exceto que uma tal articu-

lação exista em desconhecimento meu). Que o céu seja a região da imortalidade é um

princípio geral que dispensa razões suplementares.

Ninguém se torna ÷ï÷ãnay se não morrer, contudo é possível tornar-se ÷ ë ÷ ã m †

sem experimentar a morte. E os que experimentaram a morte? Há mortos que “não

morreram realmente”, foram para o céu: almas de xamãs que estavam prestes a se tornar

magníficos (imortais e capazes de tornar os outros imortais também), mas morreram

precocemente por imprudência alheia. Aqui, “ir para o céu” e “não morrer realmente”

parecem sinônimos, e, até onde sei, a operação que permite ao morto ressurgir como vivo

lá no céu não é complicada: lá chegando, tem-se corpo e alma, está-se destinado a não

morrer jamais148.

A condição ontológica dos matadores não é tão simples. Na oposição vivos/mortos, o

lugar que lhes cabe parece ser o de cambiar de um a outro pólo. São decerto ÷ ï ÷ ã n a y ,

148 Seria mais justo dizer que quem não se torna ÷ï÷ãnay não morre de verdade Isto vale não
apenas para os mortos que ressurgiram no céu mas também para os que se transformaram em
selvagens ãwã da floresta. Ao contrário, contudo, dos que se tornam ÷ë÷ãm†, os Juruna que se
tornam ogros não são imortais: a alma morta do ogro, também chamada ãwã, assombra e vaga na
floresta para todo o sempre. Quando mortos, os ãwã da floresta que não são transformações de
Juruna transformam-se em veado morto destinado a extinguir-se completamente com a decom-
posição.
244

mais exatamente ÷ï÷ãnay nana, “outros (iguais aos) mortos”, como dizia Kadu. Mas seu

papel é dissolver a diferença entre a condição de vivente e a de morto — o que já se anuncia

com sua passagem pelos rochedos e sua partida para o céu.

A comunidade a que pertencem os matadores inclui também gaviões e é chefiada por

Kumahari. “Outrora, no tempo em que os Juruna foram criados, no tempo em que os Índios

foram criados, ele [Seµã÷ã], o pai de todos nós, comia carne de Índio moqueada. Os Juruna

comiam com ele. Por isso, depois que Seµã÷ã foi embora, quando matavam Índio, os J u -

runa o comiam”. Seµã÷ã está na base desta racionalização, porém não é ele o canibal-

mor. Esse papel cabe ao magnífico xamã Kumahari.

Ele morreu enfeitiçado por seus concidadãos, revoltados com as desgraças que

provocou com o seu grande poder xamânico, que lhe permitia — como é o caso ainda hoje —

dominar o vento e a chuva. Aplicam-lhe mesmo os epítetos “Senhor do Vento” e “Pai do

Vento”. Era magnífico e, como era também canibal, gostava de promover guerras. Conta-

se que enviou uma vez um grupo para matar Índios, mas os guerreiros não encontraram

ninguém na aldeia visada e retomaram o caminho de volta. Ele, adivinhando que voltavam

sem comida, fez cair uma tempestade devastadora sobre a árvore embaixo da qual os

guerreiros acamparam para passar a noite. Os guerreiros morreram.

Uma noite, os homens foram conversar com Kumahari dizendo-lhe que desejavam

matar Índios. Ouvindo isso, ele ficou “embriagado”. Então repetiram-lhe as palavras:

“Nós estamos com vontade de sair para matar Índios”. “Vocês podem ir”, disse ele em

êxtase. A conduta dos guerreiros era a de praxe: noticiar a guerra ao xamã, à espera de que

ele o dissesse aos seus aliados ( ÷ i ÷ u ÷ i a ) , obtendo destes seja uma leitura do futuro que

dizia se a expedição iria implicar perdas para o grupo (em caso positivo o ataque era

suspenso), seja uma atuação em prol da fixação dos Índios visados na aldeia. Mas sucedeu

que os guerreiros partiram silenciosamente numa madrugada sem chamar Kumahari para

participar do ataque. Ora, “ele era um pajé que só pensava em matar Índio” e ficou f u -

rioso. Fez com que todos os Índios conseguissem sair de casa e fugir para a floresta. Os

guerreiros pernoitaram embaixo de uma grande árvore tauari; Kumahari “soprou vento e

chuva para eles” e, é claro, não noticiou a ninguém o seu regresso. O tempo passou, os

guerreiros, esmagados pela árvore, não voltavam, e, uma vez que Kumahari aprovara o

ataque, parentes dos guerreiros ficaram bravos e decidiram matá-lo com feitiçaria. Todos

os feitiços deixados à porta de sua casa foram descobertos e quebrados. “Vocês não conse-

guirão me matar porque eu, eu sei!” Teve-se enfim a idéia de colocar o feitiço dentro

d’água, na beira do rio. E Kumahari se levantou de manhã, entrou no rio para tomar um
245

banho e foi “flechado” na barriga pelo feitiço. Gritou para valer — com o corpo curvado, o

peito quase tocando as pernas, não podia erguer o tronco de dor. Morreu149.

Kumahari ressurgiu no céu. Quer dizer, ele é mais do que alma. Kadu ora afirma

que ele mora na aldeia de A∂apa (uma forma talvez de reforçar seu ressurgimento à vida),

ora que vive numa aldeia independente, povoada de mortos, onde as casas não estão assen-

tadas diretamente na terra: penduradas em cipós, sustentam-se no ar à distância do chão.

Seu cargo é análogo ao do capitão dos ÷ï÷ãnay: é o “dono da palavra”, exceto que jamais

atua como “dono da porta”, pois a lei que funda seu grupo não é a do cativeiro. Os mata-

dores são livres, duplamente livres: por oposição aos ÷ï÷ãnay e por qualificação para

voar em nosso mundo como gavião. O gavião está para os mortos celestes como o jaguar

para os mortos dos rochedos: participa de sua vida como um igual. E está para o matador-

e-canibal como o jaguar para o xamã dançarino de ÷ï÷ãnay.

Há nuances nesses destinos. O matador se transforma em alma de gavião e voa sobre

nós apenas à noite; o dançarino se transforma em jaguar vivo e passeia na floresta tanto de

dia quanto de noite. Kumahari é xamã e pode virar “gavião de verdade” a qualquer hora. Os

matadores seriam gaviões falsos? Não, simplesmente sua transformação não chega a

franquear a realidade da vida. Só a transformação dos xamãs atravessa o limiar da vida150.

Os gaviões celestes (eu digo, mas talvez só haja gavião celeste, como talvez só haja

urubus celestes) vêm cotidianamente à terra também, durante o dia. Praticam o roubo de

alma de crianças para criar como xerimbabo — nisto “se parecem com os humanos”. Isto

sucede com o céu azul, o sol brilhante: eles irrompem no real. A criança fica ofegante, com

falta de ar e acorda à noite diversas vezes dizendo que tem sede, pois alhures não tem b e -

bida fermentada para ela tomar. Os jaguares celestes também visitam nosso mundo, mas só

o fazem enquanto alma e, até onde sei, somente quando a comunicação entre o céu e a terra

é aberta pelo xamã. Também capturam Juruna como humano de estimação, em circuns-

tâncias que desconheço. O tema importa no que por seu intermédio se distinguem os j a -

guares e os gaviões. Os últimos freqüentam os mortos canibais e Kumahari tem ascen-

dência sobre eles, de modo que os Juruna que capturam podem ser resgatados pelo xamã em

149 Este mito também me foi narrado para justificar o costume de se levar o xamã à guerra. “ O s
Juruna dizem: Vamos levar ele, senão acontece conosco o que aconteceu com o pessoal antiga-
mente”. A consulta aos ÷i÷u÷ia é feita a caminho da guerra. Em se tratando de um xamã velho —
“ele não mata mais Índio” —, fica esperando a boa distância da aldeia que será atacada, escon-
dido na floresta.
150 Desejo porém registrar que eu não poderia assegurar que o destino dos xamãs de ÷ ë ÷ ã m †

implique realmente a transformação em gavião vivo.


246

um rito idêntico ao que se destina ao resgate de almas roubadas pelos próprios mortos ( v e r

abaixo). Já os jaguares são autônomos, não se deixam domar por ninguém. Nisto também

diferem dos similares terrestres que se aliam de tão bom grado ao xamã quando este dá os

seus primeiros passos no xamanismo. O jaguar verdadeiramente feroz é o que vive no céu:

é um jaguar mesmo para os ÷ë÷ãm†, ao passo que o jaguar terrestre e os ÷ ï ÷ ã n a y são

mutuamente indiferentes às suas diferenças.

O motivo do destino póstumo dos xamãs de ÷ï÷ãnay pode ser aqui detalhado melhor.

Em vida, o xamã freqüenta jaguares que se transformam em humanos para ele, no mundo

do sonho; morto, ele se tranforma em jaguar para os Juruna no mundo real. Mas seu des-

tino póstumo não é apenas o correlato da experiência onírica, pois todo xamã, indepen-

dentemente de sua especialidade, experimenta em maior ou menor grau a companhia do

jaguar, e nem todo xamã tem esse destino. Este é traçado também na ou pela celebração do

festival dos mortos dos rochedos, no qual o xamã dança com ÷ï÷ãnay- jaguares, ocasião

em que sua jaguarização já franqueia o real da festa.

O caso de Kumahari é único. Ele não vem a este mundo somente na condição de ga-

vião, ele se tranforma em humano também. Os Juruna dizem de fato isto: dubia–ha maku,

assim como dizem ëkü-ha maku, cujas glosas são: “ele vira igual gente”, “ele vira igual

gavião”. Não é mais verdadeiramente ele mesmo quando se torna homem, nem menos

quando se torna gavião. Ele é a potência de cruzar o gavião sem deixar de ser homem, e de

cruzar o homem sendo gavião.

Já é possível buscar-se uma apreensão sintetizadora da categoria ÷ë÷ãm†, pois os

diferentes seres que abarca acabam de ser apresentados. Tomando a categoria como um

todo, é tentador aplicar-lhe uma expressão cara às etnografias Tupi-Guarani, a ambiva-

lência, para não dizer que é rebelde a uma definição homogênea. Abarca seres de condição

muito heterogênea, celestes e terrestres, divinos e humanos, xamãs e matadores, humanos

e animais, vivos que não morreram, mortos que reviveram, mortos que não são mais do

que mortos, ÷ï÷ãnay, ao mesmo tempo em que não são menos ÷ë÷ãm† . No entanto, existe

uma definição homogênea e esta é a própria divinização cuja outra face é a imortalidade.

Esta definição em compreensão dota como que por depois todo o conjunto de homogeneidade

e não exclui — bem ao contrário — a gradação.

Interroguemos mais uma vez o que são os matadores nesta ordem. Seria ousado

dizer que os Juruna não sabem bem, exatamente. Sua chegada ao céu implica “um pouco” a

anulação de sua morte, no sentido de que sua condição “talvez” não seja simplesmente

alma. Não tive sucesso em explorar o problema mais do que isso; os Juruna se contentam,
247

parece, com uma equação escatológica plena de indeterminação. Se me perdoam uma i m a -

gem extravagante, eu diria que as almas dos matadores estão para os ÷ ë ÷ ã m † como os

santos estão para Deus: elas são um pouco divinas, por seu pertencimento à sociedade de

Kumahari e sua localização no céu de A∂apa. O grau a mais de divindade de que carecem

implica, contudo, muito justamente sua maior espiritualidade. Seu pertencimento s i -

multâneo à esfera da morte e a uma sociedade da qual participam também viventes, como o

magnífico xamã canibal, seus filhos e esposas, aponta a possibilidade de um mundo onde

vivos e mortos se acham maravilhosamente reunidos. Haverá ocasião de mostrar ao fim

deste capítulo que essa maravilha vigente no além celeste, os Juruna sonham com ela para

este mundo (os ֕֋nay poderiam se tornar viventes sem deixarem de ser ֕֋nay).

Vejamos agora as relações entre os vivos e os mortos.


248

3. A política com os mortos

Conta-se que uma vez Kumahari irrompeu em carne e osso na frente de um homem

que navegava de manhã cedinho, chamando-o para comer as frutinhas doces de um arbusto

que cresce na beira do rio e dizendo-se criador das frutas silvestres. Apareceu-lhe para

fazer dele um xamã, para torná-lo um companheiro seu, e acabou se hospedando um longo

tempo na casa do Juruna. Durante o dia, o homem, que antes da visita já “xamanizava um

pouquinho”, não tinha qualquer percepção do hóspede. Kumahari morava com ele, mas só

podia ser visto no tempo do sonho.

Assim como a alma do xamã faz viagens ao além, Kumahari, que vive no céu como

um vivente, faz viagens xamânicas até este mundo. Ele permanece sendo por isso um xamã

dos vivos e põe seus serviços terapêuticos à disposição daqueles que o têm como ÷ i ÷ u ÷ i a :

“Chamem-me quando alguém estiver morrendo”. É chamado através do maracá, examina o

doente e instrui o xamã acerca da cura. “Estou vendo a doença, há uma doença aí. Ei-la! Foi

algum peixe que ele comeu”. Então o xamã vê nitidamente a doença movente sob a pele,

aproxima os lábios, suga-a, depois cospe-a na palma da mão. Aí se vê um pequeno verme

sanguinolento. “Isto é a doença”, Kumahari diz ao xamã, “Se não fosse eu ele terminaria

de morrer. Não morrerá mais; estará melhor amanhã”. Por sua vez, diz o xamã ao pai do

doente: “Se eu não fosse xamã ele terminaria de morrer, eu o curei. Acordará amanhã

dizendo que tem sede, mais tarde dirá que quer comer um pouquinho. Dêem-lhe comida, ele

se recobrará”.

A morte tampouco impedia Kumahari de se casar com mulheres Juruna e ter filhos.

“Ih! Kumahari não pode ver uma mulher bonita sem sentir desejo!” O xamã intermediava

a negociação do casamento; ou melhor, não havia negociação, porque o pai da moça não

dizia não, com medo de algum acidente mortal que o xamã celeste lhe traria se fosse r e -

cusado como genro. A esposa jamais via o marido, mas apreciava muito ser casada com ele,

que vinha deitar-se com ela toda noite e lhe dava filhos xamãs.

A mulher assim escolhida não podia ser tomada como esposa nem como amante por

nenhum vivente. “Evitem esta mulher, não a procurem, não se deitem com ela, senão um

Índio flecha vocês, ou uma cobra pica vocês, ou vocês são mortos por uma doença qual-

quer... Evitem esta mulher, é muito arriscado, o marido dela mata vocês com Índio ou com

cobra”, dizia o xamã aos homens. E caso o marido ficasse zangado com ela, por motivo de

adultério ou por ingerir alimentos proibidos, como o tucunaré, ele a matava também. Todo
249

mundo lhe dizia: “Cuidado que você morre! ele te levará como esposa!” Solteira na vida

desperta, ela assim se tornava “cozinheira do xamã” e preparava os alimentos — que o

próprio xamã jamais consome — e bebidas oferecidos aos aliados do xamã, cujo principal

era seu marido.

A dieta das mães de crianças celestes, durante a concepção e após o parto, é a

mesma que marca a gravidez comum, exceto que as restrições de caça se prolongam até que

a criança tenha uns 10 anos. O odor de caça queimada (carne e pelos) é extremamente p e -

rigoso para tais crianças, bem como para as mães, que morreriam pelo odor. Contudo, “na

verdade, estas crianças [como suas mães] não morrem, simplesmente vão para a com-

panhia do pai”. Quando atingem a idade adulta, sem passar por qualquer iniciação, os filhos

de Kumahari demonstram uma potência xamânica fabulosa.

A morte tampouco interrompeu sua vida de canibal no mundo da realidade humana.

Quando os Juruna matam Índios, ele desce, ocasionalmente, para se abastecer de carne.

Transforma-se em gavião e vem pousar sobre a vítima, bicando uns pedaços se estiver

com fome; depois arranca pernas e braços, quando não quer levar o Índio inteiro, e volta

para o céu, onde moqueia a carne e “com certeza, se está com vontade de tomar o caldo,

separa uma porção para cozinhar”. Quando os Juruna voltam ao lugar do combate para

examinar o estado do cadáver, ou não o encontram mais, ou o encontram sem os membros.

“Foi Kumahari, nós imaginamos logo”. Ele dizia ao xamã que o visitava em sonho: “ E u

gosto que vocês matem Índios, eu os como!”. Isto para o caso de o matador achar-se j á

distante do local do combate, pois se o encontrasse no campo de batalha, poderia aparecer-

lhe transformado em homem: “Que bom, que bom que você matou Índio, eu vou levar para

comer!” “Sim! Pode levar! Se você quer, pode levar!”

Como os Shipaya, os Juruna têm a comunicação com Kumahari como um grau s u -

perior do xamanismo. Seja porque ele é incomparavelmente mais potente do que os

÷ï÷ãnay, seja porque a comunicação entre o céu e a terra é muito mais difícil — “o céu é
longínquo!” — e perigosa — “eles são ÷ë÷ãm†!” — que a comunicação com os ÷ ï ÷ ã n a y

dos rochedos. Mas, diferentemente dos Shipaya, o xamanismo de Kumahari não é para os

Juruna o auge da potência xamânica. O auge é o xamanismo de Seµã÷ã, menos elaborado

ritualmente, inteiramente situado no sonho, e contudo mais radical na idéia que o funda:

tornar-se o substituto do criador aqui na terra, definir de novo a condição humana.

Compreende-se facilmente a diferença, pois os Shipaya não distinguem o criador daquele a

quem Nimuendaju chamou de demônio, (Kumãψari, “o demônio nacional da tribo”).

Nimuendaju acreditou ter encontrado elementos de um “verdadeiro culto” a Kumãψari:


250

pessoas eram-lhe “consagradas” — xamãs, auxiliares de xamãs e esposas151 — e índios

eram “sacrificados” para ele152. “Hoje, que o último pajé iniciado desapareceu, extin-

guiu-se esse notável culto, exceto na memória de seus antigos adeptos” (Nimuendaju,

1981: 24). Contudo, só fornece alguns fragmentos da cerimônia central deste culto — a

dança Zetábia (duas compridas e grossas flautas, pau zunidor, estátua de cabeça humana

entalhada em madeira, abstenção de relação sexual, formalização de relação de amizade; as

pessoas consagradas, naturalmente, tomavam parte ativa). “Não sei exatamente como esta

festa se desenrolava”, diz, e do culto propriamente não há senão a sombra.

Interrogados por mim, os Juruna demonstraram completa ignorância desta festa e

suas flautas, corrigindo-me, aliás, a pronúncia: betab¥a (o que, como se verá adiante, não

designa senão os alimentos e as bebidas oferecidas aos ÷ï÷ãnay e ÷ ë ÷ ã m † ) . Confirma-

ram-me que a única dança de Kumahari que praticavam é a dança das trombetas duru.

Por outro lado, Wereade sustenta que os Juruna matavam Índios para Kumahari, a

pedido seu, e isso ensejava a dança duru. É verdade que me foi impossível obter dele o nome

próprio da potência em cujo benefício se sacrificava o Índio, pois quase nenhum Juruna

pronuncia o seu nome, por medo de chamar sua atenção. Mas eu posso assegurar que era

em Kumahari que Wereade pensava ao referi-lo como ÷i÷u÷ia (espíritos auxiliares do

xamã), uma vez que os canibais são os ÷ë÷ãm† e que Kumahari é o seu “dono da palavra”.

Kadu, sem contestar Wereade, diz desconhecer o fato. Divergem, pois, suas representa-

ções: um situa o antropofagia no xamanismo, embora não deixe de afirmar que isso tam-

bém era praticado por iniciativa própria dos guerreiros; o outro diz que isso era uma

prática não-coletiva, que não chegava sequer a motivar cauinagem — muito pelo contrá-

151 As jovens escolhidas por Kumãψari iam morar na casa do xamã, não podiam mais trabalhar

em atividades outras que a do “culto” e tampouco se casar ou ter amantes. Não dormiam em r e -
des mas em um jirau partilhado por todas. À noite, o marido vinha ter com elas sem que nenhuma
se desse conta disso. Concebiam crianças bonitas e de pele clara. Seu papel no culto era ornamen-
tar “ídolos” de madeira com uma cabeça humana entalhada e segurar as flautas zetábia na festa
de mesmo nome. Entre os Juruna, a mulher não pode tocar nas trombetas dos ÷ ë ÷ ã m ¥ , sob pena
de hemorragia fatal. Os entalhes de figuras humanas de que tenho notícia são brinquedos infantis.
152 Kumãψari “exigia, através de seu pajé, carne humana fresca. Os Ωipáia realizavam, então, a

esta ordem, uma expedição contra uma tribo inimiga, faziam um prisioneiro e o sacrificavam ao
demônio. A carne era preparada e colocada para o demônio nos rochedos. Mas assim como no
mito, em que, quando Kumãψari exige k a ≈ i r í , eles mesmos tomam parte bem ativa, assim tam-
bém os Ωipáia comiam os prisioneiros de guerra abatidos para Kumãψari” (Nimuendaju, 1981:
22).
251

rio, a embriaguez de cauinagem é que casualmente suscitava o homicídio e o canibalismo.

“Não se fazia festa para comer carne de Índio, era como comer carne de caça”153.

Wereade e Kadu discordam também sobre a função das mulheres postas à disposição

do xamã celeste. Segundo o primeiro, Kumahari exigia celibatárias para se tornarem não

suas esposas, mas i÷ua, “cozinheira” ou “empregada”, segundo as glosas propostas pelo

mesmo informante. O xamã tinha dificuldade de recrutar i÷ua , porque raras eram as

moças que desejavam permanecer solteiras, como exigia o ofício. Porém o ÷ i ÷ u ÷ i a acei-

tava de bom grado substituir seu pedido de uma moça por carne de Índio, dizendo ao xamã:

“Um Txukahamãe está bom! Queremos comer um Txukahamãe!”. Mas nem todo pedido de

carne estava assim subordinado ao pedido de uma serviçal.

O xamã organizava a emboscada para a captura de um Índio vivo. Encomendava a um

homem uma corda de algodão comprida e grossa ( pãrã≈ümünühã ) para amarrar as mãos

do Índio e conduzi-lo do local da captura até a aldeia. O Índio era morto na aldeia por um

homem armado deste modo154: uma longa lâmina de taquara, no formato de uma ponta de

flecha, desenhada com labirintos, encaixada na parte inferior do braço, desde o cotovelo, e

amarrada ao braço com várias voltas de barbante; a ponta da arma estendia-se para além

da mão. Cravava-se esta espada no coração do Índio. A carne era comida por qualquer um

que desejasse: xamã, captor, matador, homem, mulher, criança. Esta era a única regra que

se impunha: tinha-se de comer toda a carne, até deixar os ossos completamente limpos, a

fim de evitar o apodrecimento de qualquer pedaço da vítima, pois isso exigiria de todo

mundo o cumprimento do resguardo por homicídio155.

153 Quero resgistrar que somente após dez meses de campo, apesar de minhas insistentes
perguntas, um Juruna (Kadu) decidiu revelar-me em que consistem os ÷ë÷ãm¥ (até então
definidos como espíritos de animais celestes). Eu não me surpreenderia se Kadu revelasse no
futuro fatos novos sobre os mesmos. Já Wereade, capaz de relatar os fatos se nega a relacioná-
los com as potências envolvidas.
154 Uns dizem que o nome da arma é ˚¥zaka (Wereade, por exemplo), outros que é ˚azaka (Kadu,
por exemplo). A arma e a corda eram utilizadas também em guerra e homicídio na aldeia promo-
vidos por não-xamãs e sem relacão com os ÷ë÷ãm†.
155 Os fatos relatados por Nimuendaju são mais ricos do que os meus. O prisioneiro fica
amarrado pelo pescoço com a corda de algodão cuja ponta se amarra num travessão alto, dentro
de casa; põe-se mandioca de molho para fazer o cauim; o prisioneiro é alimentado pelas
mulheres. Quando o cauim está pronto se marca o dia do sacrifício; na véspera lhe informam seu
fim próximo: “Serás sacrificado à vingança”, e todas as mulheres levam-lhe comida; ao
anoitecer todos se reunem em torno do captor, cujo corpo está decorado, e ele canta sua proeza
e é aplaudido pelo grupo; por fim ele entrega o prisioneiro ao grupo. No dia seguinte de madrugada
as mulheres e as crianças batem e insultam o prisioneiro, e o captor canta uma última vez; os
homens se armam de arco e flechas e se põem a flechar o prisioneiro no peito, um de cada vez; o
captor não participa da execução e as mulheres e crianças entoam uma zombaria contra os
252

Como participam os ÷i÷u÷ia deste banquete, e por que dele poderia participar

mesmo o xamã, é misterioso para mim. O primeiro ponto poderia ser inferido de contextos

do mesmo tipo que serão relatados abaixo: em sonho, os ÷i÷u÷ia diriam ao xamã que co-

meram e apreciaram muito, ou viriam até o mundo dos vivos, comeriam a alma para mais

tarde os Juruna comerem o corpo. A regra Juruna universal das oferendas de alimentos às

potências xamânicas é justo que o xamã não come. Assim, o segundo ponto parece colocar

sob suspeição a informação de Wereade, ou então se trata de um engano meu, pois, quando

o dado foi coletado, minha atenção estava inteiramente voltada para o que então parecia

surpreendente por diferir da regra básica da antropofagia ritual Tupinambá: a p a r t i c i -

pação do matador no banquete.

Quero frisar que a ligação de Kumahari com o canibalismo não necessita de uma

emboscada especial e execução ritual na aldeia para ser traçada, uma vez que ele pode

simplesmente descer para se abastecer de carne por ocasião de guerras ordinárias. De toda

forma, a corda pãrã≈ümünühã (que “corresponde”, afirma Nimuendaju sobre seu aná-

logo Shipaya, a para≈ánõenõe, “rigorosamente à muçurana dos antigos Tupinambá!”), e a

espada ˚¥zaka utilizada para a execução na aldeia são dois índices seguros de que o h o m i -

cídio e o canibalismo não deixavam de ser objeto de um investimento social e ritual que

superava o puro pendor individual por carne de Índio, como insiste Kadu. Como os troféus

de guerra, a corda de algodão segue com a alma do matador para o além celeste. Veremos

ainda neste capítulo o uso que os ÷ë÷ãm† dão a ela no festival das trombetas.


Galinhas- isãm† é o nome da aldeia de ÷ï÷ãnay mais próxima de Tubatuba; dista

alguns quilômetros das corredeiras von Martius, que já apontei como limite norte do

território. Do ponto de vista de quem navega para montante é a última aldeia dos mortos

que se encontra no Xingu. Seu nome foi motivado pelo canto de galinhas fantasma que aí se

ouvia de madrugada, há muito tempo atrás, quando os Juruna chegaram pela primeira vez

à região (ver mapa de Yawajiwa, Apêndice 3).

atiradores por terem eles matado a presa de outrem. A vítima é escaldada, cortada em pedaços
para cozinhar ou assar; uma panela da carne é deixada para Kumãψari em cima de um rochedo no
rio; o restante é comido por “quem desejar”. Não se segue nenhuma “cerimônia de expiação”,
ao contrário do que exige o homicídio não-ritual: um jejum severo por alguns dias, concluído por
ingestão de uma droga para vomitar; isto somente para o matador (Nimuendaju, 1981: 23).
253

Os Juruna, que não traçam fronteiras entre seu território e o dos grupos vizinhos,

afirmam que o território dos mortos deve ser respeitado enquanto tal. Isto é, não deve ser

explorado, e caso o seja, deve-se ser muito moderado, explorando-se apenas aqueles r e -

cursos que não são encontrados fora de lá. À exceção dos peixes, tudo é dito pertencer aos

÷ï÷ãnay. Mas aí só se pesca moderadamente, o suficiente para encher a barriga na hora,


sendo mesmo preferível pescar antes de chegar lá, exceto que se manda os meninos mata-

rem, nas locas das bacias de pedra onde puba a mandioca dos mortos, o peixe cascudo,

muito apreciado e suposto causar esquecimentos súbitos de afazeres e nomes de coisas. Nas

mesmas bacias, os Juruna também tomam um banho rápido. Acampam algumas horas na

proximidade do porto, sem barulho, acendem um fogo para esquentar ou cozinhar a r e -

feição, como se não desejassem chamar a atenção das almas que estão dormindo dentro dos

rochedos. Fazem uma visita rápida à aldeia propriamente dita, admirando a vida vegetal

que “nasce na rocha”, a “limpeza” da aldeia, a grande altura das casas, exclamando quando

divisam uma caça, um passarinho, uma colméia etc. que pertencem aos ÷ï÷ãnay; mos-

trando-se as drogas do porco, da galinha, do xamanismo. Lembra-se que um xamã poderia

ver a porta das casas e entrar, e que esta travessia durante a vigília, ou melhor, fora do

sonho, implicaria uma percepção singular, distorcida, das cuias de cauim: “Suas cuias são

miudinhas [do tamanho de uma xícara de café] quando nós as vemos à luz do dia”. O xamã,

no entanto, constata que são grandes, pois não consegue sorver todo o cauim que lhe ofere-

cem; ele bebe e passa a pequena cuia para um ÷ï÷ãnay que bebe também e a passa adiante,

de mão em mão.

Em dez ou quinze minutos declara-se que tudo já foi bem visto, deixa-se o local e

após alguns minutos remando por um braço do rio toma-se o longo caminho na floresta,

aberto há muitos anos por Bisaka, e que desemboca no grande e viçoso taquaral dos

÷ï÷ãnay para cortar instrumentos de sopro os mais diversos: flautas de Pã, flautas

transversas e clarinetas, cujas músicas contudo os Juruna executam para o seu próprio

deleite. Esse taquaral é considerado fornecer os únicos instrumentos dignos para a música

de sopro dos Juruna.

Duas vezes fiz esta viagem e tive a impressão de que os Juruna cortaram taquara à

vontade, mas não é o que eles diziam. Lá, vão dizendo alto cada um para si mesmo que vão

cortar um pouquinho, que ainda não cortaram nada, que é bom que crianças tenham ido ao

taquaral pois assim saem brotos cheios de viço, que vão cortar mais um pouco, mais uma,

pronto, já chega, mais uma só, tem uma bonita ali... Querem fazer crer aos ÷ï÷ãnay que

não cortaram nada. Quando chegarem à aldeia, porém, ver-se-á que a provisão é s u f i -
254

ciente para distribuir entre todo mundo que não foi à expedição. Ao fim, os Juruna remam

para não pernoitar em Galinhas- isãm†, parando, para uma visita breve, na ilha Colônia

das Formigas, sítio de uma aldeia antiga, de onde se poderia ouvir de madrugada o canto das

galinhas dos mortos. Este lugar tampouco é muito bom de se ficar, pois lá estão enterrados

dois xamãs. Se estivessem com um motor de popa, os Juruna iriam passar a noite muito

longe dos ֕֋nay.

A moderação no uso dos recursos naturais dos mortos, ao menos em parte, é devida

à atual impossibilidade de “pagar” por eles. No passado, o xamã primeiro chamava os

֕֋nay para comer peixe com os vivos, coibindo sua hostilidade, e depois se viajava para
cortar as taquaras.

Os ÷ï÷ãnay não são inimigos dos Juruna, mas também não se pode dizer que sejam

amigos. Eles o são, a bem da verdade, mas somente tendo em conta que toda amizade é tensa

e instável. Mesmo o xamã teme os mortos. Chegando à casa deles, cuida de manter-se perto

da porta, desconfiado, não ousa ir até o centro com medo de que fechem a porta e não o

deixem sair nunca mais. Eles querem amizade, convivência, e o xamã consente nisso.

“Quando é que você vai me convidar para comer um peixe em sua aldeia? Quando é que eu

posso aparecer em sua aldeia para beber um cauim? Eu ando com vontade de dar um pas-

seio!” Os Juruna garantiam sua saúde satisfazendo a vontade dos mortos, supostos envia-

rem doenças quando não são agradados e reforçados os laços de amizade. (Pode-se indagar-

lhes por que os mortos hoje não lhes causam doenças, uma vez que desde muito não rece-

bem peixe nem cauim. Respondem de um modo simples que nenhum xamã os freqüenta,

logo não pedem nada a ninguém.)

As relações com os mortos dos rochedos e os canibais — os ÷i÷u÷ia do xamã — são

mediadas por prestações alimentares a que se aplicam o qualificativo - betab¥a. São

alimentos que os Juruna fazem para os mortos e não os podem consumir senão depois de

assoprados pelo xamã, sob risco de adquirirem um mal derrisório: o lábio inferior relaxa

e pende. Também são - betab¥a o moquém, a lenha, as chamas, as brasas, a fumaça e as

cinzas do fogo. Assim como não se deve beliscar o peixe, não se deve acender o cigarro no

fogo dos mortos. Conforme o grau de exigência dos ÷ i ÷ u ÷ i a , as flechas de pesca e caça, as

canoas de armazenar o cauim e inclusive a roça de mandioca podem vir a ser - betab¥a ,

cada um dos quais só poderia ser utilizado quando o produto fosse destinado aos mortos.

As oferendas feitas no quadro de um festival exigem a participação de todos os

membros do grupo, na produção como no consumo, e exigem, por outro lado, em ambos os

momentos e mesmo fora do festival, a exclusão do xamã. Passa-se então o seguinte: de um


255

lado os Juruna fazem a comida dos mortos, que será consumida “verdadeiramente” por

eles mesmos reunidos em grupo, de outro lado fazem em separado um pouquinho de comida

para o xamã. O contacto com coisas-betab¥a pode provocar sua morte, ao fim de um p e -

ríodo de um sofrimento que lhe atinge a garganta ou as pernas, conforme ele coma de um

alimento ou aspire a fumaça, ou pise em restos de comida ou vestígios do fogo. A última

regra é que os homens e as mulheres não podem comer juntos, os dois grupos se separam

para comer à distância um do outro.

As oferendas de comida podem implicar ou não um contexto festivo, com perfor-

mance xamânica. Em caso negativo, o próprio xamã é o “dono” do banquete; em caso p o -

sitivo este papel é desempenhado por um homem não-xamã, que age como um interme-

diário entre o xamã e o grupo e como líder do trabalho coletivo. Quando os ÷ï÷ãnay s i m -

plesmente pedem peixe, todos os homens saem individualmente ou em dupla para pescar e

dão uma parte do produto ao xamã, ou melhor, à esposa dele. À tardinha, o peixe é cozido

em duas porções — uma para os homens, outra para as mulheres —, beiju e farinha d’água

fresca são assados, o xamã assopra os alimentos e convida depois todos os Juruna para a

refeição, no pátio da aldeia, os homens de um lado e as mulheres do outro. Os ÷ ï ÷ ã n a y

estão lá comendo também, imperceptivelmente. À noite, dormindo, o xamã será noticiado.

“Nós comemos!” “Sim”, diz o xamã. “Eu fui comer com vocês. Fiquei com vontade de

comer com vocês, de sua comida. Como comi bem!” E no dia seguinte o xamã comunica aos

Juruna: “Os ÷ï÷ãnay vieram comer conosco”.

Os ÷ë÷ãm† também exigem comida e lançam doenças quando não são atendidos. E

mais: sopram vendavais que tornam as chuvas tempestuosas. Diferentemente dos ÷ ï ÷ ã n a y ,

que só bebem cauim fermentado, eles apreciam o cauim dubia (não-fermentado) e e n -

comendam isso ao xamã. Mal as mulheres acabam de fazer a bebida, o xamã assopra o

cauim, de que ele não toma sequer um gole — “está doce!” — e chama todo mundo para

beber. O bagaço resultante do peneiramento é misturado com uma porção do caldo ralo para

ser consumido à parte, também depois de assoprado pelo xamã, pelas mulheres e meninas.

Somente elas podem consumir esta parte; os do outro sexo seriam comidos por Índios. É

por esta mesma razão que o cauim não pode fermentar. Os Juruna, cuja preferência por

cauim fermentado os aproxima dos ÷ï÷ãnay, não podem ficar se demorando para beber o

cauim doce: ao longo da fermentação, Índios se poriam em fúria contra eles e, ao cabo de

uns poucos dias, atacariam a aldeia à procura de Juruna para comer. A noite é dedicada a

beber esse cauim; de vez em quando o xamã grita: “Venham beber! Venham beber!” No dia

seguinte, todos os Juruna lhe indagam: “Você viu o cauim ser bebido?” “Sim!”.
256


Não é a doença a principal e típica forma da hostilidade dos mortos; é a captura de

alma. Certamente, a perda da alma implica vulnerabilidade às doenças, não recuperá-la

implica morte, mas não se define como doente (kanea÷ua jo) o sem-alma, isãw†ü, cujos

sintomas são emagrecimento, melancolia (acrescida de choro, se se trata de criança),

inapetência, febre intermitente no princípio e constante no fim. Um pai morto captura,

quando pode, o filho pequeno aqui deixado. Mas o principal é que qualquer morto antigo e

desconhecido rouba Juruna para o ter como imimãzaha, prisioneiro de guerra ou estran-

geiro que se adota como filho. A captura pode ser feita diretamente sobre o vivente, mas o

caso freqüente é capturarem a alma já separada, em sonho, ou em circunstância de medo na

vigília. As crianças são mais apreciadas que os adultos156. Em geral, os mortos não p r a t i -

cam o homicídio, a captura é a única parte da guerra levada para o além-túmulo, com a

distorção significativa de que não é entre os Índios que se procuram estrangeiros, mas

entre os vivos, os Juruna. Além disso, a captura é um empreendimento individual furtivo,

a que o capitão faz vista grossa enquanto o xamã não se empenhar em resgatar a alma.

Os sintomas de perda de alma exigem o xamanismo propriamente dito, exceto que o

xamã tenha sucesso em trazê-la por ação onírica. O primeiro passo é fumar com intenção

de ir até os ÷ï÷ãnay em sonho e preparar um receptáculo próprio para transportar a

alma: uma concha de caramujo é recheada de algodão e deixada embaixo da rede. Chegando à

casa dos mortos, o xamã procura-a com um simples olhar, disfarçadamente; vendo-a,

seguro de que ninguém a vigia, chama-a para voltar. No dia seguinte ela está encerrada na

concha, ele a leva para o dono, aproximando o receptáculo do peito dele e assoprando-a

para introduzi-la aí dentro.

O processo dificilmente é tão simples. O captor cuida de esconder a alma num

grande vaso de cerâmica mantido tampado. O xamã procura junto ao c a p i t ã o notícias da

alma. Muitas noites de sonho se passam e, se o c a p i t ã o lhe dá uma resposta positiva, ele

tenta trazê-la em sonho, mas raramente o captor lhe dá chance para isso, pois não sai de

perto dela. O xamã não ousa afrontá-lo. Trata então de convidar o c a p i t ã o para ir com os

156 O tema dá ensejo ao discurso de que não se deve bater em crianças, porque o choro é ouvido

pelos mortos celestes, cujo interesse por Juruna é assim despertado. O medo da surra faz a alma
sair de si, tornando-se uma presa fácil para os ÷ë÷ãm†.
257

seus beber cauim com os Juruna, na certeza de que o captor irá também levando consigo o

prisioneiro.

Um parente próximo do sem-alma, via de regra o pai, torna-se “dono” da r e -

cepção, melhor dizendo, da “festa”, cujo desenrolar depende do tempo de produção do

cauim, e que consiste em uma unidade temporal do festival dos ÷ï÷ãnay. Como este será

descrito abaixo, limito-me à apresentação da recepção propriamente dita. O cauim e as

comidas betab¥a são rotulados nesse contexto de pasãw† itaha: armadilha de alma viva. No

dia em que o cauim está fermentado, ao entardecer, os ÷ï÷ãnay aportam suas canoas na

aldeia dos Juruna e entram todos na casa do cauim, onde o xamã os espera sozinho. O c a -
pitão, agenciado à pessoa do xamã, é recebido pelo dono da festa que lhe fala do cauim e da

comida que as mulheres estão acabando de preparar. Os mortos decidem que é melhor

deixar para beber depois da refeição. A comida é servida a eles dentro de casa, e, em s e -

guida, o c a p i t ã o toma a direção da cauinagem e serve bebida aos seus companheiros. A

primeira cuia, grande (4-5 litros), ele enche para o captor, com o propósito de e m -

briagá-lo rapidamente. O captor está lá, segurando o braço do prisioneiro, ou quando

menos sem tirar os olhos de cima dele. Embriagado, esquece-se dele. O c apitão está atento

a isso e tão-somente vê que a alma está livre, corre e segura-a e vai dizer ao captor: “ P o r

que você capturou este rapaz? Você não deve fazer isso não”. Envergonhado e aborrecido, o

captor vai embora com a mulher e os filhos, se os têm — não quer mais saber de festa. O

xamã volta a agir como ele mesmo, guarda a alma em uma concha de caramujo e manda

chamar o “dono” dela. Este é levado à porta da casa, o xamã aproxima a concha do peito

dele, assopra-lhe a alma, e lhe diz para ir se deitar de novo.

A cauinagem prossegue com a entrada dos Juruna em cena. O capitão, depois que os

seus estão bêbados, começa a embriagar os vivos, dando ao dono da festa cuias de bebida que

ele transfere para os seus. Se o xamã for um dançarino de ÷ï÷ãnay, a festa progride com

dança e canto de inúmeros mortos até o amanhecer, hora em que partem porque estão

muito bêbados e porque a noite vem. Ao fim o xamã benze novamente o doente e lhe diz que

dentro de um mês já terá engordado e se fortalecido de novo.

Os Juruna dizem que o primeiro lugar onde se procura uma alma capturada é entre

os ÷ ï ÷ ã n a y ; não estando ela lá, procuram-na entre os ÷ë÷ãm†. No céu, a busca é mais

difícil, pois não são apenas mortos que roubam, os jaguares e os gaviões celestes também,

e porque, sobretudo, a alma se acostuma — “fica mansa” — facilmente e não quer mais

voltar. Além disso, a comunicação entre o céu e a terra é um empreendimento mais p e r i -

goso, exige um trabalho mais longo e um rito menos trivial do que o destinado aos
258

÷ï÷ãnay. O último xamã a realizá-lo era chefe da tribo por ocasião da pacificação e
morreu pouco tempo depois, há quase 40 anos. Os Juruna que o descreveram para mim

assistiram-no, pois, somente quando eram jovens ou crianças (como preferem dizer), e

alguns detalhes não são precisados. O xamã negocia o resgate com Kumahari, enquanto aqui

o estado do doente é cada vez mais grave. Quando o magnífico xamã descobre a alma, e n -

trega-a ao xamã: “Aqui está quem você procura, pode levar!” “Não, você mesmo o levará,

haverá uma cauinagem!”.

E começam a xamanização e o preparo da recepção. Ao longo de vários dias o xamã,

ao entardecer, chocalha o maracá ao pé do doente para propiciar a descida da alma. P o r

vontade própria ela não voltará. O xamã vai encontrar-se com ela em sonho. “Eu não vou.

Estou achando este lugar muito bom. Não quero voltar!”. O captor e sua mulher aprovam-

no: “É mesmo, fique conosco. Não volte, não. [E, dirigindo-se ao xamã:] Estou cuidando

dele como de um filho”. O xamã responde: “Mas a mãe dele está com saudade. Ele tem mãe e

ela está à sua espera”. Depois de muita conversa os pais adotivos concordam: “Está bem,

pode levá-lo”, chorando de desgosto todos os três. Concomitantemente, o estado do sem-

alma é cada vez mais grave: imagem invertida da vitalidade com que longe a alma se e x -

pande. Não come e não bebe porque ela o faz no outro mundo; não conversa e não ri porque

lá ela é tagarela e alegre; está magro e arde de febre porque ela está ausente desde muito.

Trata-se de preparar cauim para “atrair” e “engodar” a alma, quer dizer, a isca

própria para fisgar Juruna que se desgarra: cauim doce para criança e fermentado para

adulto. Prepara-se também muita comida e uma caixinha feita de pedaços de cana de flecha

rachada ao meio e amarrados com barbante, chamada pa˚awãrï, cuja função é análoga à da

concha de caramujo do rito de resgate da alma que se encontra no mundo dos rochedos. O

cauim, a comida e a caixinha são todos definidos como “armadilha de alma viva” ( pasãw¥

itaha).
Como o xamã xamaniza todo dia ao pé do sem-alma, a abertura da comunicação

entre céu e a terra vai produzindo resultados: os animais celestes descem e pousam na

aldeia dos Juruna, a despeito da vontade destes. Os jaguares circulam lambendo espinhas de

peixe recém-jogadas no barranco (como os cachorros da aldeia). Chegam também p r e -

guiças, gaviões, urubus... e passarinhos diversos. O xamã os assopra e os faz subirem n o -

vamente, porque são capturadores potenciais de alma.

Quando o cauim está fermentado, preparam-se farinha d’água assada, beijus e

beijuzinhos com uns 10 cm de diâmetro, ditos “semelhantes a sapo”, e ainda uma pequena

porção de cauim doce como “armadilha de alma viva” para o conjunto das crianças da a l -
259

deia, pois tudo se passa como se todas pudessem ter a alma capturada pelas potências que

vão descer no momento do rito.

Ao entardecer o xamanismo recomeça. A armadilha pa˚awãrï é enfeitada com duas

penas de papagaio, forrada com um floco de algodão no mesmo formato e tamanho dos b e i -

juzinhos sapo, dos quais se coloca um sobre o disco de algodão, e finalmente pendurada por

um longo barbante num esteio alto da casa, diretamente acima do cauim pasãw¥ itaha (seja

a canoinha de cauim doce se a alma for criança, seja a canoa grande de cauim fermentado,

se a alma for adulta). Ao lado das canoas de bebida, são arrumadas porções dos diversos

peixes e caça, um cesto de farinha assada e um cesto de beijus, onde os comuns são colo-

cados embaixo da pilha dos beijuzinhos sapo.

Os celestes, animais e humanos, vão chegando ao longo da noite e entrando em casa

pelo teto. Eles se desfiguram ao atravessarem o teto, o xamã assopra-os e eles se r e -

compõem novamente. Quem é bicho é mandado de volta, quem é humano é cumprimentado e

convidado a comer e beber. Não posso detalhar os procedimentos empíricos deste processo.

Quando vem a madrugada o xamã avista a alma nas alturas, como se estivesse a ver

o firmamento através do teto da casa, e a chama com insistência: “Venha! Venha logo!

Desça! Desça logo! Nós outros temos cauim para você! Tem cauim, venha!” Isto dura um

longo momento. A alma desce pelo fio onde pende o pa˚awãrï e fica presa aí dentro. O xamã

(ou será Kumahari?) diz ao captor: “Por que você levou esta criança?” “Ela estava

chorando, foi por isso que a levei comigo!”, e diz à alma: “Não saia nunca mais daqui”. Se

o captor for um humano ele ficará para comer e beber, se for um gavião será mandado

para o alto de novo. (E se for um jaguar? Neste caso, o rito talvez nem se realize, pois o

jaguar não devolve absolutamente uma alma roubada.) Então o xamã retira com cuidado o

beijuzinho da caixinha, leva-o ao peito do sem-alma e assopra-lhe sua alma; dá a ele uma

cuia de cauim, doce ou fermentado, segundo sua idade. Em seguida, todas as crianças são

levadas à casa; para cada uma o xamã toma um beijuzinho da cesta, cumpre o mesmo gesto

de reposição da alma, entrega o beiju nas mãos dela e lhe oferece uma cuia do cauim doce.

Ao fim, o xamã convoca todas as mulheres: “Vocês não batam mais nas crianças, vocês

parem de se enfadar com seus filhos. O pessoal que vive lá no alto escuta o choro delas.

Vocês tratem bem as crianças”.

Os beijuzinhos são guardados com os pertences das crianças, indefinidamente,

enquanto o tempo não os destruir. A caixinha pa˚awãrï com seus atavios é amarrada na

alça da rede do dono da alma e aí deixada indefinidamente também. Os dias passam e a pessoa

recobra a vida e engorda; as crianças seguem saudáveis.


260

Eis o comentário de um Juruna sobre o ritual: “Um pajé ruim, ele pode matar

muita gente com os seus próprios ÷ i ÷ u ÷ i a ” . Simplesmente, ele pode fazer vista grossa

permitindo que seus companheiros do além capturem as pessoas que desejarem.


Apontam-se dois contextos para a celebração dos festivais dos mortos. Primeiro,

são ligados ao calendário agrícola: a roça de mandioca é inaugurada em abril-maio, começo

do verão, com o festival dos ÷ï÷ãnay; a roça de milho é inaugurada no inverno, em de-

zembro, com o festival dos ÷ë÷ãm†. Porém os Juruna não se movimentariam para r e a -

lizar o festival se o xamã não testemunhasse que eles já estão se movimentando para isso

no mundo do sonho. O xamã sonha com a mandioca nova ou o milho verde, sonha com os

Juruna indo à roça nova. Isso é mensagem de que haverá uma festa. Não comunica de i m e -

diato o sonho ao conjunto dos Juruna. Narra-o apenas para a esposa, que conta para a l -

gumas mulheres, que vão contando para as outras e para o marido. Um homem acabará

tomando a iniciativa de procurar o xamã para indagar acerca do sonho, e se tornará, por

isso, o “dono da festa”. Em tese, qualquer homem pode tomar essa iniciativa, mas o papel é

vitalício e é assumido por aquele que se destaca como um grande apreciador da festa. O

finado pai de Saadea foi durante anos o dono de ÷ë÷ãm† karia. Depois de sua morte, Saadea

mesmo se apoderou do cargo, pois ele ama, diz-se, as músicas da trombeta. Se o xamã, seu

sogro, não tivesse morrido, Saadea hoje seria aquele a tomar a iniciativa de indagar os

sonhos dele. Por outro lado, o apreciador de ÷ï÷ãnay karia é seu irmão, Yawajiwa; é a ele

que os Juruna atribuem o papel de dono virtual desta festa. O apreciador procura pois o

xamã: “Como foi que você sonhou?” “Sonhei com mandioca. Vocês vão arrancar mandioca,

vai haver festa!” “Então vamos arrancar mandioca! vamos fazer a festa!”

A destinação da mandioca nova e do milho verde aos mortos é uma forma de i n i b i r

sua hostilidade para com os vivos, de garantir um verão e um inverno felizes, sem doenças

nem captura de alma. Diz-se assim que se zangariam se os Juruna consumissem os p r o -

dutos das roças sem os convidar para beber todos juntos.

A celebração dos festivais não se restringe ao calendário agrícola. Podem ser c e -

lebrados em qualquer época do ano, por iniciativa dos próprios mortos.


261

4. O festival dos ֕֋nay

Abertura

Ao cair da tarde, o dono da festa grita o nome de todos os homens e lhes diz que vai

dançar. Pouco a pouco, todo mundo se reúne com ele no pátio defronte a sua casa, onde dois

homens se destacam para dançar e tocar as flautas b¥a . São três tabocas finas como um

dedo, abertas nas duas extremidades, e medem aproximadamente 20, 25 e 30 cm cada; as

duas menores estão unidas por um barbante e são tocadas pelo mesmo homem; a outra

ponta deste barbante, comprido de dois a três metros, é amarrada na taboca maior que é

tocada pelo segundo homem. Alguns gostam de atribuir-lhes nomes que outros contestam,

mas cujo efeito poético é indubitável: “avô” e “filho”, as menores unidas, e “pai”, a

maior distanciada. A impressão que se tem é que um único homem poderia executar a

música, que lembra a flauta de Pã andina e é muito bonita. Os dois músicos estão um ao

lado do outro, dançando com as pernas dobradas e marcando o ritmo rápida e ruidosamente

com os pés. Os outros estão por perto sem fazer nada, todo mundo portando algum adorno

na cabeça. O xamã fuma sentado sozinho no interior da casa.

Na aldeia dos mortos, ouvem-se gritos. É a música que está chegando lá como g r i -

taria. “Estão gritando! Estão nos chamando! Eu vou ver o que está acontecendo”. É por isto

que a festa tem início ao começo da noite, pois se ouvissem a gritaria durante o dia diriam:

“Que escuridão! Eu não vou sair no escuro para ver o que é!”. Não demora muito e um

pequeno grupo de ÷ï÷ãnay irrompe na aldeia Juruna, o xamã os recebe assoprando-lhes

fumaça de tabaco “para fortalecê-los um pouco”. “O que foi que houve aqui? Ouvimos seus

gritos nos chamando, chegamos para saber o que houve”. “Não houve nada. As crianças

querem dançar, é apenas isso”. “Muito bem! Se querem dançar, nós vamos dançar. Eu vou

voltar para avisar todo mundo, pois assim muita gente vem dançar e cantar”. Neste m o -

mento, diz-se, vê-se um vento — é tudo o que os Juruna podem ver dos ÷ï÷ãnay.

Os mortos estão convidados, a festa já começou. A música prossegue por um i n s -

tante e se volta para casa. Doravante não se terá relação sexual e só se comerá comida que

os mortos tenham por alimento, quer dizer, não se comerá tucunaré.

Primeiro movimento

No dia seguinte, à mesma hora, o xamã fuma em casa e a música é tocada e dançada

lá fora. Ele pendurou o manto da dança no alto, o abeata que o esconde quase por completo. É
262

um tecido frouxo de fios de barbante que correm no sentido do comprimento, recobertos

um a um com floco de algodão, costurados com um barbante fino a intervalos regulares de

uns quatro dedos. Na extremidade inferior, há uma franja que desce dos joelhos aos pés

feita dos mesmos fios de algodão arrematados em penas de mutum, negras com listas

brancas. A extremidade superior é costurada a uma touca de floco de algodão, sustentada

por uma armação interna de uma vareta fina e flexível; esta touca é coroada por um cocar

de penas de papagaio e dela pende uma franja que cobre o rosto até a altura da boca, com-

posta de 5 ou 6 tubos de cana de flecha de pesca recobertos com barbante grosso e de cujo

interior saem tufos de plumas de mutum. Na parte posterior, abaixo dos ombros, pendem

uma de cada lado duas fiadas de algodão retorcido, definidas como “corda” e designadas

pãrã≈ününü, para serem seguradas por duas mocinhas com o fim de guiar o dançarino157.
Na prática, contudo, as mocinhas só teriam mesmo de se apresentar na dança de um morto

chamado Cobra-guariba, e qualquer adulto pode segurá-las: o principal é que um vivo

fique na retaguarda do dançarino, pois o morto não tem noção do caminho e pode se perder.

O dono da festa aguarda na porta da casa para receber e cumprimentar um a um os

÷ï÷ãnay que vão chegando: “Você chegou?” “Sim, eu cheguei”. O “dono da palavra”158,
primeiro a chegar, dirige-se a ele: “O que está acontecendo?” “Nada. Nós outros estamos

fazendo uma festa!” “Está bem, vamos todos participar”. A organização sócio-política da

festa mostra-se com clareza nestes cumprimentos: de um lado os vivos com o seu r e p r e -

sentante, o dono da festa, reunidos no terreiro da dança; de outro, os ÷ï÷ãnay com o seu
c a p i t ã o ou “dono da palavra”, encerrados na casa. Todo o diálogo será travado entre os

dois representantes.

Lá fora todos escutam o c a p i t ã o se dirigir aos de sua comitiva: “Vamos dançar?”,

e como eles se agitam e sussuram de modo incompreensível. A música não se interrompeu.

O xamã veste o manto e começa a cantar; um instante depois sai para o pátio onde estão os

Juruna. Atrás dele, os homens se juntam para dançar num cortejo, as mulheres formam

uma fileira e dançam de braços dados, com meninos pequenos no colo e com as crianças

maiores misturadas a elas. Se o canto é novo, tenta-se aprender a letra. E sobretudo

157 Este manto não é betab¥a. Um Juruna explica porque: pertence ao xamã, é feito por ele, ele o
usa; não é coisa feita pelos Juruna para os ÷ï÷ãnay. No inverno de 1988-89 alguns homens con-
feccionaram mantos para vender em Brasília e comprar ou espingarda ou máquina de costura. Não
se fizeram as cordas em nenhum porque não eram mantos de verdade. Chamaram-me a atenção
para a diferença entre o abeata Juruna e o Shipaya visto na ilustração de Nimuendaju (1981:
13), onde em lugar das cordas há um adorno de plumas em forma de V.
158 Nimuendaju sugere que, entre os Shipaya, “dono da palavra” é designação para o dono da
festa, o vivo.
263

aprova-se, diz-se que é bonito, para envaidecer o ÷ï÷ãnay e fazê-lo repetir quatro ou

cinco vezes. O cantor volta para casa, tira o manto e com um salto pendura-o de novo no

alto. Sem demora, outro ÷ï÷ãnay salta para pegar o manto, dançar e cantar.

Os ÷ï÷ãnay dançam um de cada vez com do-jiπa, “o seu próprio jiπa”, termo pelo

qual o xamã é predominantemente referido nas descrições que os Juruna fizeram para

mim, e que glosam como “dono de ÷ï÷ãnay”. Não posso propor uma glosa melhor, mas

noto que ijiπa se distingue dos termos iju÷a (líder de grupo, chefe) e iwa (dono de obje-

tos, palavras, gestos, costumes, atividades). Noutros contextos, o xamã ou é porta-voz dos

vivos perante os mortos, ou o porta-voz dos mortos perante os vivos. Mas no domínio da

festa, o c a p i t ã o dos ÷ï÷ãnay e o dono da festa, então tornado capitão dos vivos, falam

diretamente um com o outro. Enquanto ijiπa, o xamã não é mais enunciador de um discurso

citado, os ÷ï÷ãnay falam em nome próprio suas palavras e suas cantigas, estabelecendo

com os vivos o mais direto contato que é possível.

A festa dos ÷ï÷ãnay tem assim algo de teatro, porém esse teatro se sustenta por

um ator muito singular que não me gabo de compreender, mas sobre o qual posso asse-

gurar que sua experiência difere do que entendemos vulgarmente por possessão. O xamã

não é possuído pelas almas dos mortos, não é um cavalo seu. Antes, é acompanhado pela

alma de muito perto, “tão pertinho que ele usa a boca do ÷ ï ÷ ã n a y ” , explica Mareaji. Vale

trancrever o trecho da conversa. “Você está dizendo que o pajé usa a boca do ÷ ï ÷ ã n a y ?

Não é o ÷ï÷ãnay que usa a boca dele?” “Não. O pajé está usando a boca da alma, porque o

pajé não sabe [o canto], a alma está com ele, a alma é que dá o canto a ele, primeiro ela

sopra na boca dele, para o pajé não errar o canto dela; porque ela está pertinho, eles can-

tam juntos, a alma canta pertinho da boca dele”. A performance do xamã consiste pois em

uma atuação conjunta com o ÷ï÷ãnay. Seu ponto mais eminente se dá quando o cantor que

se aproxima assim de tão pertinho é um ÷ï÷ãnay- jaguar; neste momento o ijiπa vive a

experiência antecipada do que ele será na vida póstuma: um jaguar. As palavras obtidas de

um xamã Shipaya por Nimuendaju ilustram seguramente o efeito que a função engendra

para o xamã e trazem um aspecto que não cheguei a registrar: a excorporação159. O xamã,

ele que é o ator principal, o dialogador, o dançarino e cantor, afirma-se alienado da festa,

em uma intensidade que o faz saltar o limiar de sua própria humanidade.


“O pajé Mãwaré me disse clara e distintamente: os i á n a i não podiam dançar e beber
como os vivos, e por isso tomavam seu corpo, e enquanto ‘ele mesmo’, incapaz de
fazer qualquer coisa, permanecia dentro da casa da festa, os i á n a i dançavam lá

159 Os Juruna negaram-me que isso seja possível fora do sonho.


264

fora com seu corpo. Perguntei-lhe então como se sentia nesta ocasião, e recebi a
resposta: ‘Às vezes me parece que eu sou, neste momento, um jaguar’”
(Nimuendaju, 1981: 32).
Nesta primeira noite são poucos os ÷ï÷ãnay que cantam, não há cauim para

apimentar seu ânimo, estão apenas ensaiando para a verdadeira noite de festa. Depois de

uma ou duas horas eles se vão de novo; voltam no dia seguinte à mesma hora para dançar

até mais tarde, por volta das onze horas; no próximo dançam até uma ou duas da manhã;

depois até a madrugada e na noite seguinte amanhecem o dia dançando.

Este primeiro movimento prepara a colheita de mandioca para o cauim. Os mesmos

֕֋nay repetem os seus cantos todas as noites, ao mesmo tempo em que toda noite apa-
recem novos cantores. Os Juruna pouco a pouco vão aprendendo os cantos, pois, conforme

alguém comparou, assim como os Brancos não repetem canções em seus discos, os

÷ï÷ãnay geralmente compõem canções novas para cada festival.

Segundo movimento

Tendo os ÷ï÷ãnay dançado até o alvorecer, os Juruna saem direto para a roça de

mandioca do dono da festa, que os chama a cada um para isso, ao xamã inclusive. Este é o

movimento em que se dançará para pubar a mandioca. Quando as canoas aportam na roça, o

xamã toma a frente do grupo, e todos rumam cantando até os pés de mandioca. Lá, o proce-

dimento é o comum: os homens cortam as ramagens, afrouxam o caule e limpam o terreno,

as mulheres cavam e extraem as raízes. A maioria do grupo está ocupada com a mandioca do

cauim e uma minoria cuida de extrair as raízes da mandioca wãwaru para os beijus. Duas

ou mesmo três canoas são enchidas de mandioca. Quando os Juruna aportam na aldeia, os

homens, comandados pelo xamã, amarram duas ou três raízes de mandioca com uma e m -

bira comprida formando uma alça que enfiam no ombro e dançam e cantam no mesmo pátio

das danças noturnas para propiciar a puba da mandioca. Ao fim disso, a mandioca fica ao

cuidado das mulheres que, sentadas nas bordas da canoa, cortam as extremidades das r a í -

zes, cortam ao meio as raízes grandes, e vão jogando em cercados de pedras na beira do

rio, ou em canoas com água se a estação é a das chuvas e o rio está muito alto.

À noitinha, o tempo da festa está no ponto de partida de novo. Os ÷ï÷ãnay cantam

uma ou duas horas nesta noite, cantam até mais tarde na seguinte e viram a noite cantando

quando se sabe que de manhãzinha a mandioca estará no ponto de ser transformada em

cauim. Neste ínterim, após a dança, antes de dormir, o dono da festa diz a cada companheiro

que sua intenção é sair no dia seguinte ou no próximo para pescar e caçar. Os homens se

preparam para sair em busca da carne do banquete, tarefa na qual o xamã não tem papel
265

expressivo, ou melhor, ele o tem na medida em que é excluído de todo contato com os

alimentos dos mortos. Conversa antecipadamente com o dono da festa e lhe diz o que é

preciso matar e o que não se deve matar: tucunaré não, porque os ÷ï÷ãnay repudiam,

macacos não, porque isto é alimento dos mortos celestes; que ele providencie alimentos os

mais variados: pacu, matrinxã, jacamim, mutum, jacu... e também tracajá e jaboti para

os ֕֋nay- jaguares.

No dia combinado, de manhã bem cedo, os homens partem sozinhos, acompanhados

de filhos pequenos, ou em dupla. Retornam à tarde, deixam o produto na canoa e mais tarde

vão dizer ao dono da festa o que trouxeram para ele; o dono vai dizer ao xamã o que há para

ele, o xamã; e este por sua vez se encarregará de contar para os ÷ï÷ãnay que comidas eles

terão. A esposa do caçador vai até a canoa separar uma parte para a família e uma parte

para os mortos, a assim chamada betab¥a, que ela mesma leva para a esposa do dono da

festa160. Num canto da aldeia, a céu aberto, são armados dois ou três moquéns grandes,

controlados pela esposa do dono da festa, porém operados pelo conjunto das mulheres.

Quando todos os alimentos dos mortos estão bem assados, são arrumados em cestos e

guardados na casa do dono da festa.

Terceiro movimento

A festa volta ao ponto de partida com danças pela fermentação do cauim. Este cauim

betab¥a é processado em uma só porção pelo conjunto das mulheres, dirigidas pela esposa
do dono da festa, e todos os restos da mandioca são cuidadosamente varridos do chão,

principalmente o chamado bagaço. Como igual medida de proteção da vida do xamã, os

vestígios do fogo também são cuidadosamente varridos. Depois que a bebida fica pronta, as

mulheres comunicam ao dono da festa, que naturalmente vai dizer isso ao xamã, e ele o

dirá aos ÷ï÷ãnay.

No dia seguinte, a regra diz que é momento da expedição coletiva para a colheita do

jenipapo de que se extrairá a tinta para a pintura corporal. Os Juruna aboliram esta parte

do festival muito antes do desaparecimento de seu último ÷ï÷ãnay jiπa, falecido em 1974.

“Depois que os nossos mais-velhos morreram [os adultos da época do contato com Cláudio e

Orlando Villas-Boas] nós não fizemos mais isto, deixamos isso de lado e só ficamos com a

dança”, afirma Areãdü, um dos poucos participantes da expedição e dos ritos a que a

pintura dava ensejo. As canoas aportavam no local onde antes se divisara um pé de jenipapo

160 Esta divisão não tem lugar caso se utilizem flechas-betab¥a.


266

carregado de frutos, os Juruna começavam a cantar acompanhando o xamã e nisso se

prolongavam, enquanto alguém subia à árvore para arrancar os frutos com as ramas, e

retornavam às canoas cantando da mesma forma. Na aldeia, cantavam e dançavam nova-

mente com jenipapos no ombro, amarrados com embira, e ao fim as mulheres destacavam

as ramas dos frutos e entregavam as primeiras ao xamã, que as amarrava em um buquê e

pendurava num esteio alto da casa, acima das canoas de cauim. Os frutos eram então r a -

lados para extrair a tinta.

Todos os Juruna eram desenhados pelas mulheres com belos motivos de labirinto.

Os homens e as crianças de ambos os sexos eram desenhados do ombro até os tornozelos,

enquanto as mulheres se marcavam segundo seu estatuto. As jovenzinhas de seios pequenos

tinham o corpo inteiro desenhado (como os homens); as moças de seios crescidos e m u -

lheres casadas sem filhos eram desenhadas da cintura até os tornozelos, e aquelas que j á

tinham se tornado mãe ao menos uma vez tinham apenas as pernas desenhadas.

“Desamarrávamos a saia, a saia caía no chão, ficávamos nuas para uma outra nos pintar.

Depois amarrávamos rápido a saia de novo”.

O final

“No dia seguinte acordava todo mundo bonito. A festa já vai acabar”. Ao cair a noite

o xamã está sozinho em casa fumando, o dono da festa está ao lado da porta, os músicos

estão tocando e produzindo gritaria na aldeia dos ÷ï÷ãnay. A certa distância, os moquéns

betab¥a estão armados e o fogo está aceso para esquentar o peixe e a caça moqueados. M u -
lheres estão preparando a massa da farinha d’água para assar e o polvilho dos beijus está

sendo peneirado. Os ÷ï÷ãnay estão chegando. Até a comida ficar pronta as mulheres vão se

revezar entre um lugar ao pé do fogo e sua aparição no pátio da dança.

Quantas almas de canoas são amarradas no porto dos Juruna? Dez, vinte, mais de

vinte, os Juruna dizem, cada qual repleta de mortos. Canoas não vão parar de aportar a

noite inteira, assim como muitas vão partir antes de acabar o cauim. O c a p i t ã o entra na

frente do grupo e responde o cumprimento do dono da festa, este segue dizendo a gentileza

para uma infinidade de almas: “Você chegou?” “Cheguei”, até que o c a p i t ã o faz calar a

voz dos mortos dizendo ao Juruna: “Pronto, você já cumprimentou todo mundo, não tem

ninguém mais”. Não é verdade, ele simplesmente não quer que o Juruna cumprimente todo

mundo. Afinal, são tantas as almas que se perderia a noite cumprimentando-as e

os÷ï÷ãnay não vão parar de chegar, oriundos das diversas aldeias de pedras.
267

O Juruna diz ao c a p i t ã o : “Eis o cauim. Não sei se já fermentou o suficiente... Não

sei se está forte”. Não há sinceridade nisso; nenhum cauim fermenta tão bem quanto o dos

mortos, favorecido pelas danças noturnas; cumpre-se aqui a regra de etiqueta segundo a

qual não se gaba a força do cauim que se dá aos outros. Em todo caso, o cauim ainda não está

pronto, o c a p i t ã o ainda vai temperá-lo. Lá dentro da casa, faz-se uma algaravia apenas

sussurada. Os ÷ï÷ãnay procuram se acomodar; os que vêm para beber sem pressa armam

suas redes e se deitam, uns sozinhos, uns ao lado da esposa ou da namorada; os que não

pretendem demorar se sentam onde podem ou ficam de pé mesmo. Desentendimentos não

tardam a surgir: encontram pessoas por quem guardam velhas inimizades, adquiridas no

além ou levadas deste mundo. “É que tem ÷ï÷ãnay que já chega bêbado; os que já estavam

bebendo e saíram atrás de festa, atrás de moça... chegam aqui trazendo o bêbado deles”, diz

Mareaji no seu português que traduz literalmente a sintaxe Juruna. Querem divertimento,

porém, uma vez bêbados, acabam se aborrecendo com as brincadeiras irônicas, brigam e

voltam cedo, às vezes antes de provar o cauim.

O c a p i t ã o vai ver a bebida que o anfitrião lhe anuncia. Afasta as folhas de pacova

que cobrem as canoas, constata e exclama que o cauim está espumante, toma a cuia de 4 - 5

litros, tira para si uma pequena prova e diz que o cauim está de fato forte. Em seguida,

pega o cauim trazido por sua esposa (ou por uma mulher qualquer de seu bando) e derrama

no cauim Juruna, mexendo todo o conteúdo com a grande cuia para assegurar-se de uma

boa mistura, um bom tempero, e assopra a bebida. O cauim, que já está forte, agora ficará

de “amargar”. Diz-se assim que o cauim tem dois donos: “um dono vivo e um dono alma”.

Assim também os ÷ï÷ãnay propiciam aos Juruna o mais forte cauim jamais visto.

Ainda os músicos tocam. Os apressados, os que têm em seu mundo coisas deixadas

por fazer, estão com vontade de dançar logo, para sair cedo. Vão tomando o manto da dança e

fazendo sua apresentação no pátio. Os Juruna já aprenderam sua canção e acompanham-no

cantando e dançando, os homens amontoados atrás dele e a linha de mulheres ao lado. Can-

ções desconhecidas também se entoam; mal os Juruna os ouvem cantando em casa antes de

sair, pois antes eles dão duas ou três voltas cantando em torno das canoas de cauim, inda-

gam quem é o dançarino; o dono da festa repete alto esta indagação e respondem lá de dentro

que é um tal de uma aldeia a jusante muito distante, ou mesmo o seguinte. “Eu também não

sei quem ele é, é alguém que morreu lá no Pará”.

A casa está cheia de ÷ï÷ãnay mulheres, mas elas não dançam — só o fariam se o

ijiπa fosse mulher. Tampouco dançam as almas que morreram recentemente, isto é, que
têm parentes entre os vivos, ou de cuja vida se tem lembrança. São fracas, não têm r e -
268

sistência para dançar nem voz para cantar. Estão contudo em casa, cônscios do lugar em

que se encontram, e não têm permissão do c a p i t ã o para ir lá fora procurar os parentes.

Sucede na casa da festa o mesmo que na casa de pedra: o c a p i t ã o toma conta da porta para

não deixar ninguém sair. Tais almas então pedem notícias dos seus ao xamã: “Meus filhos

estão aí?” E mais tarde o xamã transmite a pergunta aos interessados, que se emocionam e

choram muito discretamente. A festa não é para se ficar triste.

As mulheres estão acabando de preparar a comida. Em dois fogos contíguos, põem

para cozinhar duas panelas de peixe moqueado, referidas cada uma como peixe dos homens

e peixe das mulheres. Quando esse peixe esfria “os ÷ï÷ãnay não comem comida quente” —

o dono da festa vai dizer ao ijiπa que a comida está pronta. Ao cabo de um momento, o xamã

lhe diz que já pode servir. A música cessa.

Mulheres e homens levam para a casa da festa porções dos diversos alimentos,

depositando-os no chão ao pé das canoas de cauim; o dono diz ao c a p i t ã o que a comida está

servida, e ele transmite isso aos mortos. Os mortos se agitam de contentamento, dão g a r -

galhadas sussuradas ao verem os pratos que vão comer, ha÷ ha÷ ha÷. As ÷ï÷ãnay apro-

ximam-se e vão tirando uma porção e levando para um canto onde cada uma come com o

marido e os filhos solteiros161. Os mortos comem sem cerimônia, rapidamente, espalhando

espinhas por todo lado. Lá fora, os Juruna se afastam da casa, ninguém se encosta na p a -

rede, na certeza de que se uma espinha atravessar as frestas e atingir alguém, uma ferida

purulenta incurável brotará no lugar atingido pela alma da espinha.

É ao seu c a p i t ã o que os ÷ï÷ãnay agradecem a refeição que acabam de fazer. O


capitão transmite a notícia ao dono. “Nós já comemos. As panelas vazias estão aqui, vocês

podem pegá-las para guardar”. Mareaji comenta: “Os ÷ï÷ãnay comem a comida, mas não

comem, não. Eles dizem que as panelas estão vazias, é mentira deles! Para si próprios a

comida acabou, para nós próprios a comida está lá. Eles só comem a alma do peixe, e,

comendo, a alma acaba para eles. ‘O peixe acabou! As panelas estão vazias! Vocês podem

comer também... se sobrou... vocês podem comer’, dizem eles”. Os Juruna recolhem os

pratos de alimentos sem alma para devolver ao fogão e ficam esperando a chegada do xamã.

O dono da festa oferece mais uma vez o cauim ao capitão e este começa a servir bebida aos

seus.

161 Um Juruna diz também que aquelas mulheres cujos maridos saíram para pescar guardam a
comida para comer mais tarde, quando o marido voltar.
269

Toda a comida está posta em um só lugar, o xamã assopra-a para dissipar todo mal

que poderia provocar em função do contato das mãos dos ÷ ï ÷ ã n a y , e orienta a divisão em

duas partes, uma para os homens e outra para as mulheres. Diz ao dono que ele já pode

comer e volta para a casa onde estão as almas.

O dono da festa convida os homens para comer, sua esposa convida as mulheres, e os

dois grupos se formam à distância um do outro. (Por que os homens e as mulheres comem

em separado? “Se a gente comesse todo mundo junto... não sei... acho que a gente m o r r e -

ria!”.)

“É ótimo”, diz Areãdü. “Os alimentos são variados e fartos, o peixe moqueado

cozido fica delicioso, é deliciosa a comida dos ÷ï÷ãnay!” Yawajiwa, marido dela, i n t e r -

rompe, com uma grande risada: “Sua prima está mentindo! Não acredite nisso, é uma

brincadeira. É ruim! Nós nos pomos a comer de mentira, pois o cauim está lá à nossa e s -

pera! Comemos antes de beber, bebemos muito e ficamos vomitando. É ruim!”

Enquanto os ÷ï÷ãnay se embriagam os Juruna comem. A refeição é interrompida

com a chegada abrupta do c a p i t ã o , à procura do dono da festa com uma cuia grande cheia

de cauim: “O pessoal lá já está bêbado, vocês não bebem, não?”. Os homens param de

comer e vão se aproximando do lugar da dança. As mulheres também, mas antes reúnem

toda a comida de novo, repartem-na entre as várias famílias, e cada uma guarda sua

porção em casa. Limpam o local de todos os farelos e espinhas, jogam-nos no rio, para que

nada possa fazer mal ao xamã; lavam as mãos e, para perfumá-las e eliminar comple-

tamente o cheiro de peixe, amolecem um pedacinho da resina aromática com óleo, pas-

sando-as depois no cabelo para tirar o excesso. Passam o pente na cabeleira e vão para a

festa.

Na porta da casa, o dono está em pé recebendo das mãos do c a p i t ã o a cuia de cauim

e passando-a aos homens. Contém uns 4 litros de bebida e se tem de beber tudo, dando o

gole mais longo possível, calmamente mas sem demora. Diz-se que o cauim dos ÷ï÷ãnay é

um que embriaga à primeira cuia. Depois que todos os homens são servidos vem a vez das

mulheres. “Pronto, todo mundo já bebeu”, é dito ao dono da palavra, “todo mundo quer

dançar”, e ele responde que de seu lado todos estão bêbados e querem dançar também.

A música recomeça. A cena agora deveria ser aquela relacionada com a colheita do

jenipapo, cujo buquê de ramas pendia acima do cauim. Diversos ÷ï÷ãnay, cada um de sua

vez, pegavam uma mulher para dançar, arrastando-a alegremente. Todos riam do par com

alegria também.
270

Ao menos depois que se abandonou a dança dos mortos com as mulheres dos vivos, o

ponto alto da festa são as apresentações que se dão depois das três da manhã, quando a

embriaguez toma conta de todos. Os ÷ï÷ãnay saem para dançar sem interrupção, cada um

mais galhofeiro que o outro. Os ÷ï÷ãnay- mutuns são daqueles que “espantam nosso sono

tanto nós rimos”. Sua dança rápida e estabanada os derruba no chão e desperta gargalhadas.

Os ÷ï÷ãnay- jaguares atravessam a soleira da porta em toda velocidade, pisando no pé de

todo mundo. Ninguém deve temer — “eles são completamente mansos” — e puxar o pé, pois

isto os assusta e eles arrancam com uma dentada o pé do Juruna. Conta-se que isto sucedeu

uma vez. O pé de um medroso ficou ligado à perna por uma pelezinha. Levaram-no para a

rede e o xamã foi falar-lhe da imprudência e soprar o ferimento. O resto da noite ele

passou deitado com o pé pendurado, mas ao acordar na manhã seguinte descobriu que podia

pisar e andar normalmente. “Isso passa rápido mesmo, pois foi apenas mordida de

÷ï÷ãnay. O xamã assoprou, a perna ficou boa de novo”. O acidente pode contudo ser grave
se o dançarino não for um ÷ï÷ãnay, que é mansinho, mas um jaguar da floresta. Com

efeito, almas de jaguares vivos também dançam na festa dos mortos, atraídos pela música.

Como pode um jaguar selvagem e vivo dançar com os Juruna? É que o jaguar xamaniza e,

por causa disso, tem capacidade de participar da festa, à qual chega sem convite, como

intruso; os anfitriões o recebem malgrado seu. Este é o ponto de vista dos Juruna, que

decerto diverge do ponto de vista do xamã, para quem a alma de jaguar vivo é um conviva

tão ordinário quanto os ÷ï÷ãnay. Seu companheiro da vida onírica atravessa o plano de

realidade da festa.

Um dos mais famosos dançarinos é u m ÷ï÷ãnay- jaguar, morador de Galinhas-

isãm† (conforme descobriu o finado Vítima-de-Txukahamãe, o último “grande ÷ ï ÷ ã n a y


j i ba”) , que foi morto outrora no pátio da dança por um vivo. O motivo que levou o homem
a fazer isso varia segundo o narrador. Uma versão diz que ele fora perseguido um dia na

floresta por um jaguar e quis se vingar na pessoa de um ֕֋nay -jaguar; assim flechou

um no instante da dança. Outra versão diz que ele havia se desentendido com o grupo por

causa de uma mulher e decidiu se vingar flechando o xamã, fazendo-o no instante em que

dançava uma alma de jaguar da floresta. Um narrador da primeira versão, da qual e x -

trairei um resumo da história, ressalta que um ÷ï÷ãnay não pode morrer, é impossível

matá-lo, donde a vítima foi o xamã, ao passo que ao jaguar mesmo a flechada lhe valeu um

retorno à vida. No instante em que o xamã baqueou, um enorme jaguar negro entrou em

casa carregando o manto e jogou-o para o alto como o faria ordinariamente, voltou ao p á -

tio, arrancou a parte superior do corpo do xamã — “ele, com certeza, queria uma cabeça
271

de ÷ï÷ãnay j i ba” — e partiu, penetrando na floresta em lugar de retornar ao rochedo.

“Você não sabia que só o xamã poderia morrer?”, indagaram ao matador.

Esse jaguar quase exterminou os Juruna. À noite entrava nas casas matando gente

para comer, e assim destruiu a população de três ou quatro aldeias. Na aldeia da festa,

deixou vivas uma avó e sua neta e começou a visitá-las transformado em homem, usando

para a moça o tratamento de sobrinha e o de avó para a velha. Toda vez que pisava no pátio

da dança se derramava em lágrimas, lembrando-se de que foi ali que ele [o jaguar]

“morreu”. Também pretendia matar as duas mulheres. Sua natureza ele a revelou um dia

abrindo a grande boca para a sobrinha e pedindo que cavucasse os dentes que lhe doíam. A

moça viu que só havia fios de cabelos humanos presos entre os dentes. A avó buscou uma

meio apropriado para destruí-lo. Ciente de que em se tratando dele não adiantaria a flecha

de um homem, preparou o cauim chamado ˚aka, um em que em lugar de se utilizar água

para dissolver a massa de mandioca antes da fermentação, usa-se o mingau adocicado da

mandioca venenosa wãwaru (cujo veneno é exalado em fervura, demoradamente) para

dissolver a massa de mandioca já fermentada. A velha fez o cauim com mingau mal cozido,

deixou para o jaguar, escondeu-se com a neta dentro de grandes potes para cauim e i n s -

truiu seu papagaio de estimação para dizer-lhe que tinham ido à roça, que ele bebesse

cauim se tivesse sede.

Assim foi. O papagaio lhe disse que as esperasse bebendo cauim. Ele bebeu e logo se

mostrou impaciente: queria ir atrás delas na roça. Foi em uma, não achou ninguém e i n -

terrogou o papagaio outra vez. Este invocou incerteza, refletiu um momento e disse que

talvez estivessem rodando todas as roças velhas à cata de mamão. O homem bebeu mais uma

cuia e saiu, já um tanto alterado. Quando reapareceu, apresentava sinais de desequilíbrio,

vomitava e andava às tontas, em círculo, na aldeia. Percebeu que o cauim ia matá-lo.

Morreu. Nesse instante assumiu o aspecto de um enorme jaguar negro.

O papagaio duvidava que a morte fosse real e espreitou um longo momento, à espera

de algum movimento furtivo. Desceu do esteio e examinou atentamente os possíveis sinais

involuntários: bicou-lhe o focinho — nada; bicou-lhe os testículos — nada. Mandou as

mulheres saírem das panelas e saiu para levar a notícia aos Juruna das aldeias sobrevi-

ventes (“Vovó matou o jaguar que estava nos exterminando! Vovó matou...”), mostrando-

lhes também a prova concreta: a manchinha de sangue de jaguar no alto das asas que a avó

lhe fez para que os Juruna acreditassem na mensagem. “E todos foram ver o enorme j a -

guar negro — foi há muito tempo que isto aconteceu”. Após a morte, diz um narrador da
272

outra versão, este jaguar ficou fraquinho, mansinho, foi viver com os ÷ï÷ãnay e dança

nas festas sem despertar nenhum temor.

Existe outra personalidade famosa na festa. É um finado Juruna conhecido por um

apelido que já levava em vida: Cobra-guariba. Ele é algo assim como o palhaço do festival e

da sociedade dos ÷ï÷ãnay, destino que é o seu desde a vida. Conta-se que foi um sujeito que

jamais se ofendeu com brincadeiras; ria tão ingênua e profundamente de todo tipo de p a -

lavra maliciosa que lhe diziam que desmaiava de rir. Mantém o mesmo caráter no além-

túmulo. Seu riso é um que faz rir aos Juruna até quando se lembram dele para me contar.

Sua dança denota grande falta de agilidade e mesmo de controle do corpo, tenta dançar e

tropeça, tenta de novo e tropeça, sempre ridente. E os Juruna exclamam: “Você parece um

camaleão!”, dão uma risada, e Cobra-guariba cai desmaiado. Aplicam-lhe também o ape-

lido ÷ï÷ãnay- fracote, a ele de quem se diz que foi um homem fortíssimo. O que é tão e n -

graçado é menos a fraqueza, a falta de jeito, do que o que se produzia em torno dele no

tempo em que era vivo. Seus concidadãos gostavam de brincar com ele nestes termos:

“Cobra-guariba, você é camaleão! Você leva sua mulher quando sai para pescar, logo você

é camaleão. Ô camaleão! Por que você não sai para pescar sozinho? Você é camaleão, Co-

bra-guariba”. Assim buscavam aborrecê-lo? Absolutamente. Cobra-guariba tinha um

bom humor inabalável, o que se buscava era despertar esse humor! Pouco importa se,

como todo Juruna faz de vez em quando, levava a mulher para a pesca. O que os compa-

nheiros queriam era tornar ridículo o fato, taxando de camaleão o costume de não largar a

esposa, apenas para ele deixar a mulher na aldeia e eles fazerem sexo com ela. Mais do que

isso, conta-se que os prazeres que desfrutavam com ela tinham lugar quase em sua p r e -

sença mesmo; assim que ele estatelava no chão desmaiando de rir, o companheiro puxava a

mulher para um canto... Para isso faziam-no rir. Sua apresentação é aquela em que con-

vém que uma ou duas mocinhas segurem as cordas do manto da dança.

Há coisas que os Juruna não podem fazer durante a apresentação dos dançarinos.

Primeiro: comer. O ÷ ï ÷ ã n a y se engasgaria com farinha ou beiju, deixaria o pátio tos-

sindo, “como se estivesse engasgado com espinha de peixe”, e diria ao xamã que alguém lá

fora deseja prejudicá-lo; depois de o benzer para o livrar do mal, o xamã sairia à procura

do comedor para dizer-lhe que o ÷ï÷ãnay está reclamando e que ele páre de comer. S e -

gundo: falar muito alto ou muito baixo. Falando-se baixo demais, os mortos ouvem gritos

estridentes; falando-se muito alto, ouvem sussurros incompreensíveis; em ambos os casos

ficam com medo dos vivos. Deve-se falar pausadamente e numa altura normal de voz, para

que entendam o que se diz e não sintam medo; amedrontando-se, podem ficar agressivos e
273

capturar a alma daquele cujas palavras não compreendem. Terceiro: cochichar. O ÷ ï ÷ ã n a y

ficaria ofendido, pararia de cantar, capturaria a alma e diria ao xamã que lá fora tem

alguém com segredinhos, falando de sexo. O xamã atravessa a soleira da porta para contar a

queixa, lembrando que é preciso proceder direito para não despertar a agressividade dos

mortos.

Acontece também de capturarem pessoas sem que nenhuma ofensa seja feita. Des-

cobrindo almas de vivos dentro da casa, o xamã leva-as para o pátio e devolve com um

sopro aos seus respectivos donos. Mas não encontram facilidade para fazer isso, porque o
capitão, durante as danças, fica em pé na entrada da casa vigiando os seus e impedindo sua

saída. Em se tratando de sexo, contudo, é o próprio c a p i t ã o que se torna hostil para com

os vivos.

Quarto: as relações sexuais ficam proibidas, como já foi dito, ao longo do festival.

Os mortos detectariam os sinais da cópula, os quais não sei, contudo, determinar. Durante

sua presença na aldeia, é proibido, além disso, o mero toque no corpo de uma mulher,

exceto que os esposos também podem dançar de braços dados, exceção máxima da regra de

que é preciso manter as mulheres dançando ao largo do cortejo masculino. Os ÷ ï ÷ ã n a y

interpretam o contato corporal como índice de desejo sexual, como convite para o amor, e

roubam a alma do homem em cujo corpo dentro em breve surgirão perebas incuráveis

produzidas por almas de vermes que o vão comendo até a morte: o sem-alma simplesmente

“apodrece”. E se o ato sexual suceder durante a presença dos mortos a sanção é a mesma,

com o agravante de irem embora furiosos no mesmo instante: “Estão estragando nossa

festa, vamos partir, vamos, estão nos aborrecendo, vamos...”162. Os mortos que estão lá

amontoados em casa e que já têm entre si suas brigas por ciúme, descontentam-se também

com os Juruna.

Por que isso? Wereade propõe uma explicação parcial. É ciúme também. Os

÷ï÷ãnay são como os vivos, pois levaram consigo o hábito do ciúme que impregna a

existência dos Juruna. “Nós somos assim: a mulher não deixa o marido namorar outra, o

marido não deixa a mulher namorar outro; por isso os ÷ï÷ãnay são assim, quando morre

a alma fica assim ciumenta”. Parcial porque restringe o problema ao ciúme conjugal. A

162 Nimuendaju registra também, para os Shipaya, engasgamento do i a n á i com esperma. Os J u -


runa conhecem apenas engasgamento com farinha ou beiju. O castigo implica um destino singular
para a alma: “Wubá, escreve o autor, castiga a transgressão arrebatando o i s ã w ï do culpado e
o prendendo numa fenda no alto de um rochedo, do qual retira a escada (tronco com entalhes para
pisar). O dono morre depressa, e Wubá transforma o i s ã w ï num redemoinho de folhas”
(Nimuendaju, 1981: 33).
274

marcação diferencial das mulheres pela pintura de jenipapo e a dança em parceria com os

֕֋nay sugerem antes que se trata de uma certa disputa latente entre os mortos e os
vivos, como já há entre os primeiros e como há entre os segundos nas cauinagens feitas

para si mesmos. A festa põe em cena a relação entre uns e outros como uma relação entre

dois grupos mediada pelas mulheres, as quais os mortos querem que sejam colocadas à sua

disponibilidade. A atitude dos Juruna diante dos mortos corrobora isto. Meus dados p a r e -

ceriam escassos neste ponto, porque o que prevalece no discurso indígena é a atitude dos

mortos entre si. Mas o registro de Nimuendaju, que foi testemunha ocular da festa entre os

Shipaya, comprova que o essencial os Juruna me contaram: que é preciso vibrar de alegria

na frente dos mortos, rir, encarar tudo como brincadeira. Os mortos ficam orgulhosos e

cada vez mais animados em suas apresentações. É mesmo um show que os Juruna querem,

os mortos lhes proporcionam isso, querendo de sua parte um tanto mais. Numa palavra, os

Juruna se comportam como afins dos ֕֋nay, mais precisamente, como potenciais

doadores de mulheres. Há uma dose de fingimento nisso, segundo o reconhecem os próprios

Juruna. É preciso jogar o jogo dos mortos, fazer de conta que a vida é o que eles pensam,

que a morte não impede sua participação plena neste mundo.

Por volta das cinco horas da manhã os ÷ï÷ãnay começam a se agitar para partir

dizendo, em gíria sua, que “vão procurar o rato”, que vão para casa dormir pois a noite

vem. O c a p i t ã o diz ao dono da festa que os mortos estão muito bêbados e vão partir, que

alguns vão ficar um pouco mais, e convida-o a entrar em casa com os seus e beber. “Meu

pessoal já está bêbado, e vocês? Tem cauim ainda aí, bebam! Quero ver se vocês agüentam

este cauim. Vocês não agüentam!” E os Juruna entram na casa agora quase vazia e bebem

cada um uma cuia servida pelo dono festa. “Eles estão lá com a gente, mas a gente não os

vê!” As crianças, entretanto, permanecem do lado de fora por temor de que se lhes r o u -

bem.

Revigorados, os Juruna saem para cantar sozinhos as canções dos mortos, e é então

que se embriagam para valer: o cauim agora é quase todo seu. O dia não tardará a ama-

nhecer, e enquanto isso, um ou outro ֕֋nay retorna do meio do caminho, fala com o

xamã e sai para dançar e cantar ainda uma vez. O dia amanhece, o c a p i t ã o se despede d i -

zendo que consigo irão todas as almas que ainda não partiram. “Meus concidadãos dança-

ram. Eu fiquei tomando conta deles, sou seu c a p i t ã o . Vocês terão saúde, nada vai lhes

acontecer. Eles já dançaram, nós outros estamos de partida, nós outros já vamos embora”.

“Eles passam a soleira da porta como vento, eles vão embora como vento, eles

estão partindo agora, como vento, o xamã nos diz; para si próprios, eles partem de canoa,
275

eles estão partindo como vento”. E o xamã benze todo mundo para que nada aconteça a

ninguém.

Os Juruna bebem e cantam até o cauim acabar. O sol está alto no céu. Neste dia

acordam perto do pôr do sol, esquentam as sobras da festa e fazem sua refeição no seio da

família nuclear, voltando logo a se esticarem nas redes. Com a noite caindo, com o silêncio

que neste momento cai também, é hora de se mergulhar na nostalgia, “pois uma festa,

quando acaba, não pode continuar...”


276

5. O festival dos ÷ë÷ãm†

Esta é uma diferença importante entre festa dos ÷ë÷ãm† e a dos ÷ï÷ãnay: os

Juruna não “dançam de mentira” com as trombetas duru, mas o fazem com as canções dos

÷ï÷ãnay, os quais não se ofendem com isso desde que cantem sem derrisão e num estado de
muita embriaguez. Já a trombeta é um objeto que não se pode pegar à toa e soprar sem por

em risco a ordem cósmica, um som qualquer que se extraísse fora do contexto da festa faria

o céu desmoronar163. Ambos os festivais obedecem ao mesmo esquema de preparação e

marcação temporal e aos mesmos tabus. Diferem, parece, em um ponto específico: os

÷ë÷ãm† só comparecem no dia do encerramento, ou pelo menos se comparecerem antes —


pois isto é possível, uma vez que a música, veículo de comunicação com eles, está sendo

tocada — não participarão significativamente.

Eis como Kadu recria a palavra do xamã no diálogo inicial com o dono da festa:

“Pois bem. Se vocês desejam dançar, façam uma simulação, cortem as trombetas sem
compromisso, toquem e interrompam cedo. Sigam fazendo assim: no primeiro dia
toquem pouco tempo e vão dormir; no outro dia toquem até mais tarde um pouco; no
outro toquem até mais tarde ainda; no outro avancem tocando noite a dentro até perto do
alvorecer; no outro toquem até o alvorecer e vão arrancar mandioca para a bebida.
Ponham a mandioca para pubar e comecem de novo: toquem um pouco e interrompam;
no dia seguinte toquem até mais tarde; no outro toquem até perto da madrugada; toquem
até o alvorecer quando a mandioca estiver mole e descasquem a mandioca e façam o
cauim. Enquanto [o cauim] fermenta, toquem e interrompam cedo e durmam. Virem a
noite tocando quando o cauim estiver forte; toquem, bebam e comam — é hora de acabar
a festa.”

Por que fala o xamã em simulação? Ele não acredita que os Juruna terão coragem

de fazer a festa do começo ao fim, segundo o comentário de Mareaji. Os matadores querem

dançar com os Juruna, os Juruna talvez se esquivem de medo. Os próprios mortos dos

163 Sobre esta propriedade da trombeta, obtive de Wereade um desenvolvimento particular que
vários Juruna tomaram como insensatez. Numa tempestade em que se perceber que o céu está
prestes a desmoronar, é preciso produzir imediatamente o som estrondoso de duru para Seµã÷ã
dar-se conta da presença de Juruna remanescentes na terra e não derrubar o céu. Outros Juruna
contestam dizendo que os ÷ë÷ãm† se zangariam e o céu acabaria desmoronando mesmo.
277

rochedos não chegarão para a festa, com medo de Kumahari; não querem sequer sociedade

com um ÷ë÷ãm† jiπa, de medo dele também164.

A trombeta duru é uma seção de taquara grossa com uns quatro palmos de com-

primento, cortada de modo a preservar a membrana da extremidade superior, onde se faz o

furo de soprar; a extremidade inferior é aberta, raspa-se a casca de um terço do tamanho

para baixo e aí se passa uma tintura preta feita com um sumo vegetal e carvão de fundo de

panela. O conjunto instrumental é formado idealmente por umas vinte trombetas, das quais

há dez maiores chamadas “pai”, e dez menores chamadas simplesmente i˚ia 165.

Após diálogo com o xamã, o dono da festa ou providencia a confecção de trombetas

novas ou desce seu conjunto de trombetas velhas do alto do jirau onde fica guardado, l a v a -

as para tirar toda sujeira, passa uma tinta nova na parte inferior e ao cair da tarde grita o

nome de todos os concidadãos chamando-os para a festa. Os homens logo se juntam à porta

de sua casa, escolhem cada um uma trombeta e se organizam em duas linhas, uma de frente

para a outra, para tocar e dançar, avançando até as filas se aproximarem e recuando de

novo um número igual de passos. Os casados dançam de braço dado com a esposa. Neste dia

tocam umas quatro músicas e se recolhem novamente. As mulheres não devem pôr a mão

na trombeta, isso provocaria hemorragia uterina inestancável.

Isto se repete todo dia segundo o padrão apontado acima por Kadu. A viagem de canoa

que leva à roça para arrancar a mandioca do cauim é feita ao som das trombetas, e é tam-

bém esta música que se toca na presença do xamã, no terreiro da aldeia, antes de colocar as

raízes para pubar. O xamã se limita a dançar e defumar a mandioca com fumaça de tabaco,

e a indicar a música que deve ser tocada. Ele não toca, sob pena de morrer com a garganta

inchada.

Durante as danças noturnas o dono da festa consulta-o pedindo a indicação da peça

que deve ser executada. O outro papel que lhe cabe até o dia do encerramento é sonhar com

os ÷ë÷ãm†, confirmando sua boa disposição para com os vivos, e informando sobre o a n -

damento da festa: “amanhã vão arrancar mandioca”; “a mandioca está pubando”; “o cauim

164 Era esta, segundo Naariw, a razão pela qual seu finado pai, xamã de Kumahari, não celebrava
a festa dos ÷ï÷ãnay. Era por isto também que o Pai-de-Manako, xamã de ÷ï÷ãnay, não buscava
associação com Kumahari: para não intimidar seus ÷i÷u÷ia antigos. Há por outro lado casos de
xamãs que se associaram estreitamente com ambos os grupos e celebravam ambas as festas.
Estes xamãs são por isto tidos como muito poderosos. Era este o caso do finado Vítima-de-
Txukahamãe.
165 Kadu afirmou-me que duru não contém o instrumento “avô” e, como vários outros me a f i r -
maram também, não consiste senão em duas vozes. Saadea, antigo dono das festas que o pai do
primeiro celebrava, disse-me porém que as trombetas formam três vozes.
278

está fermentando”; “mataram muitos macacos-coatá”. “Bem, quando o cauim estiver

forte nós vamos lá beber, vamos espiar a festa”, diz-lhe Kumahari.

Tive a oportunidade de ouvir alguns minutos de gravação do último festival,

transcorrido nos idos da década de 70, uma fita gravada por Mareaji e hoje ciumentamente

guardada por sua irmã, Ωidudu. Numa visita ao Rio de Janeiro em 1987, ela trouxe a fita

para eu ouvir e consentiu que eu fizesse uma cópia, com a condição de não levar para tocar

na aldeia, para evitar acidentes de picada de cobra com os Juruna e comigo mesma;

aconselhou-me também a guardá-la sem ouvir, para evitar atropelamento de carro. Antes

de por a fita a girar, Wereade (seu marido) entoou uma fala cujo tom de seriedade e uma

expressão vaga do olhar fizeram-me pensar que se tratava de uma prece. Quase não

compreendi o que dizia, apenas que a música seria ouvida porque uma mulher dos Brancos

estava pedindo para escutar. Suas palavras, disse-me, eram dirigidas a Seµã÷ã (não,

portanto, a Kumahari), o dono último da trombeta, pois foi com ela que o magnífico xamã

comemorou com os filhos a matança dos Índios-sem-ânus nos tempos primordiais. Na hora

em que o gravador foi ligado, Ωidudu me disse que estava amedrontada porque o Rio de J a -

neiro tem muitas serras, provavelmente povoadas por ÷i÷u÷ia — ÷ë÷ãm†, posso i n f e r i r

— que escutariam a música e seriam atraídos por ela até minha casa. Ouvimos juntas a fita

uma vez: sete peças de música instrumental, das quais contudo existem letras que pode-

riam ser cantadas por um coro feminino166. Soletrou-as para eu escrever. (Assinalo com

um asterisco aquelas que tomo a liberdade de traduzir um tanto afoitamente... não porém

sem reflexão.)

awari ri ri bebida da da
awari awari ri bebida bebida da

abaku ñë matar ñë
awari da abakuï pwã pwã matar wï com bebida pwã pwã

ãwã a˚a i≈u ba comer carne de fantasma


bita üna a∂o ba ãwã a˚a i≈u vou ficar um pouco e comer carne de fantasma

166 Segundo Kadu, contudo, os cantos não são jamais executados: sua função é simplesmente
mnemônica, como os cantos das músicas de clarinetas. À exceção das flautas transversas, que
são de uso privado, toda peça de música instrumental é traduzível em um canto curto e simples
que arquiva a memória da melodia e do ritmo e marca a entrada dos instrumentos distintos, como
pude constatar nos festivais das clarinetas. Nestes, o velho convidado a determinar a peça que se
deve executar canta baixinho a pedido do dono da festa; então se inicia um ensaio do qual se passa
insensivelmente à performance final.
279

ãwã pãk† osso de fantasma


pãk† na ba pwã *eu sou osso pwã

õrõkõrï azaha në parece ornamento de urubu-rei


opo azaha në parece ornamento de urubu

a∂o kã na arehu ∂a assim estarei quando ficar bêbada

umita minha vítima


mita ãñã de ∂a sobre os dentes da vítima

Toda peça musical de duru remete ao canibalismo e à cauinagem. Mas se o cauim é

um tema ordinário de todo corpus musical, o canibalismo é específico da trombeta.

Na noite do encerramento os Juruna estão copiosamente adornados quando se r e ú -

nem para tocar e dançar. Os moquéns estão cheios de pacu, matrinxã, curimatã (nada de

tucunaré, nem de trairão), mutum, e, principalmente, macacos moqueados inteiros —

“não se deve cortar a caça dos ÷ë÷ãm†”; macacos coatá e guariba apenas, pois os celestes

não comem macaco-prego alegando que os dentes desta caça mordem-lhes o coração.

Os Juruna estão dançando quando os canibais, precedidos por Kumahari, chegam do

céu acompanhados de animais celestes os mais variados. Atravessam o teto da casa e são

recebidos pelo xamã que lá os espera, sozinho, sentado em completa escuridão — ele não

precisa de luz, está xamanizando neste momento, e vê a noite clara como o dia. Oferece-

lhes cauim, eles se aproximam das canoas e tomam.

Duas panelas de macaco moqueado e cozido são levadas depois de frias ao terreiro de

dança, o xamã assopra a comida, os homens se reúnem para comer a parte que lhes cabe e

todos gritam ôôôôô...

Os ÷ë÷ãm† comem? Claro, dizem alguns Juruna; é provável, dizem outros. Onde?

“Lá em cima [no céu]. Para si próprios, eles comem a alma dos macacos”. É importante a

dúvida que se abre a respeito de sua alimentação, e que a comida não lhes seja servida em

primeiro lugar. Eles trazem carne de Índio, comem disso no interior da casa dos Juruna e

depois bebem o cauim que o xamã lhes oferece. O xamã come com eles? Os Juruna nunca

deram uma resposta clara e direta, invocando, em lugar disso, que os ÷ë÷ãm† alimentam

o xamã com carne de Índio quando ele os visita no céu. Todo xamã de Kumahari é decerto

canibal em sua vida onírica. O cauim, isto, sim, sem dúvida bebem aqui. Para si próprios,

bebem todo o cauim, assim como os ÷ï÷ãnay comem toda a comida, e agradecem ao xamã,

dizendo que estão muito bêbados e que a bebida já acabou. Aliás os Juruna consideram que o
280

estado ordinário dos canibais é de embriaguez. Sempre dizem sim quando interrogados

sobre isso, ainda que tenham acabado de chegar para a festa.

É então que os Juruna começam a beber. O xamã, diante das canoas transbordando,

pois ele próprio não bebeu nada, entoa um canto que os Juruna dizem ser belíssimo, a s -

sopra o cauim, enche duas cuias, e sai de casa dançando o passo chamado tatahu para e n -

tregá-las ao dono da festa. Uma destas cuias é grande, contém uns quatro-cinco litros de

cauim, a outra, pequena, um litro e meio, é rotulada de imãmit†ma, “companheira dela”.

O dono da festa oferece esse cauim ao chefe da aldeia ou ao mais velho, e segue servindo todo

mundo, primeiro os homens, depois as mulheres, sem a mediação do xamã, que permanece

enquanto isso fora de casa. Depois que todos os homens e todas as mulheres “foram e m -

briagados”, o dono traz uma cuia para o xamã e lhe diz para beber, e ouve dele uma e x -

clamação de surpresa. O xamã bebe e “se vinga”, trazendo para o dono do cauim uma cuia

cheia. Os Juruna tanto ressaltam que o xamã não bebe nesta festa (“ele morreria!”) que

isto diz o quanto o cauim bebido pelos ÷ï÷ãnay no seu festival é bebido no real. Lá como o

xamã bebe!, testemunhou Nimuendaju entre os Shipaya. Que o ÷ë÷ãm† jiπa não beba,
entretanto, quer dizer que não o faz por sua própria conta, enchendo a cuia para si; mas

não somente isto: o sentido último de sua abstenção é que os ÷ë÷ãm† bebem apenas alma de

cauim.

A música recomeça. E os ÷ë÷ãm†? Estão fazendo sua festa para si, no interior da

casa, tocando das mesmas trombetas, cujas almas trouxeram do além, e cantando por vezes

cantos de celebração de guerra-e-canibalismo. Eles estão fazendo sua festa entre s i

mesmos unicamente do ponto de vista dos Juruna! Pois para si próprios é uma só e única

festa, há um só concerto sendo tocado por mortos e vivos. “Nós não os vemos, não os o u -

vimos, mas eles nos ouvem e nos vêem”. E o xamã, duplamente vivo e morto, é o regente

dos músicos que tocam do lado de fora. Sua função de ijiπa se desdobra aqui em audição da

música que os canibais estão tocando e em dizer aos Juruna que peça estão tocando no

momento para que possam acompanhar. Várias vezes a música é interrompida lá dentro da

casa, e o dono da festa, nestes intervalos, fica a entrar e sair de casa para servir cauim a

todo mundo. Já é noite alta. De madrugada até ele mesmo está embriagado — o xamã não,

não por bebida, porém sim na medida em que o êxtase xamânico é embriaguez.

Nesta festa, nada da intimidade galhofeira que marca a conduta dos Juruna diante

dos mortos dos rochedos. Nada de performance de ÷ ï ÷ ã n a y para divertir vivos. Nada

tampouco de muita troca de palavras entre o dono da palavra dos vivos e o dono da palavra

dos mortos.
281

É declaradamente proibido rir durante a presença dos canibais. “ Duru é realmente

perigoso para nós outros! Os donos, se nós rimos, nos dão uma surra com a corda que t r a -

zem consigo, nós ficamos todos duros!” Os canibais vêm à festa com suas cordas de

amarrar Índio, as chamadas pãrãsümünühã, prontos para bater e mesmo capturar os

Juruna, se estes desobedecerem às regras. Capturam-nos lá fora — pois, embora estejam

reunidos dentro de casa, tocando e dançando, muitos saem quando têm vontade —, levam-

nos para o interior da casa e amarram-nos com a corda, imobilizando os braços. Lá fora, o

dono da alma se enrijece, os braços caídos e colados no flanco, sentindo a amarradura. O

xamã resgata a alma, desamarra-a e devolve-a ao dono.

Tampouco se pode dar um grito — o dono da voz perde a alma e fica rouco, absolu-

tamente rouco, até vir o socorro do xamã. E o sexo? “Nós apenas desejamos!”, diz Saadea

sem perder seriedade. A sanção deste tabu toma ares mais graves na presença dos canibais.

O cochicho e o contato corporal são punidos tão gravemente como o ato sexual. Tem-se a

alma capturada e nenhum xamã tem poder de resgatá-la, pois é o próprio Kumahari que se

zanga e a leva consigo, deixando a festa. No começo é uma grande melancolia, depois o

emagrecimento, perebas afloram e um dia o homem “começa a rachar como macaco co-

zido”. A mulher de Saadea explica por quê: “Com certeza, o dono nos moqueia!”.

Eles comem Juruna?, eu lhe indago. “Não! Eles comem Índio”. O que é isso então de

os ÷ë÷ãm† moquearem as almas que capturam por quebra de tabu sexual? No campo,

escapou-me o questionamento pertinente para o contexto: e esta alma capturada que m o -

queiam, eles comem? Parece claro que não é a mesma coisa comer esta alma e não comer

Juruna. Um é um fato contingente, o outro exprime uma regra. A assertiva cultural que

afirma o canibalismo de carne de Índio em nenhum contexto exclui, como será visto no

próximo capítulo para o contexto da política intercomunitária, o canibalismo de carne de

Juruna. Que os ÷ë÷ãm† não comem Juruna, é claro: eles não são Índios matadores de

Juruna, mas o contrário. Se comessem, como o fazem os ãwã, já não se poderia travar

relações ÷i÷u÷ia com eles. Entretanto, podem comer, e é como ambíguos canibais que são

encarados. É por isso que são temidos, é por isso que são temidos mesmo pelos ÷ ï ÷ ã n a y

dos rochedos. Eu induzo que os ÷ë÷ãm† não assariam a alma se não fosse para comê-la,

não obstante seja de se notar que tal indução se defronta com uma dificuldade: por que a

assariam somente depois de apodrecer? Talvez isso não passe de uma falsa contradição: no

quadro do destino da alma, a carne humana moqueada do além é a imagem refletida do

apodrecimento da vítima aqui na terra.


282

Os ÷ ï ÷ ã n a y e os ÷ë÷ãm† praticam pois dois tipos de captura. Uma é furtiva e

motivada pelo desejo de possuir um prisioneiro ou filho adotivo. A alma roubada perma-

nece viva, o xamã descobre sua pista e negocia seu resgate. Ele pode não o conseguir, é

certo, mas o sem-alma morrerá de febre. A outra se dá sob o olhar do xamã e é efetuada

pelo próprio c a p i t ã o dos mortos em punição ao ato sexual durante os festivais. O xamã

não a resgata, não pode resgatá-la porque ela não vive mais, foi morta, e apodrece nalgum

recanto obscuro, conforme sinaliza o apodrecimento em vida do sem-alma aqui. Neste

contexto, sua tristeza não é a imagem invertida da alegria da alma no além; ela reflete sem

inversão a melancolia do morto. A inanição e secamento espelham sua morte antecipada, as

perebas o seu apodrecimento. O sem-alma capturado no festival dos ֕֋nay apodrece

também, como já foi dito, mas ele não racha como um macaco moqueado — somente os c a -

nibais possuem o segredo da transubstanciação da vítima que apodreceu em carne m o -

queada.

“Os ÷ë÷ãm† partem na hora em que o cauim se acaba para nós”. O dia está s u r -

gindo — cai a noite — é o fim da festa. Os Juruna não podem continuar se deliciando com

sua música depois que eles vão embora167.

167 Pós-escrito. Segundo me contou Mareaji em julho de 1992, no final de abril de mesmo ano,

no dia em que Kadu retornou de seu encontro com o Inuit Leo Angotinguar no Rio de Janeiro, os
Juruna tocaram as trombetas duru. Era noite de cauinagem. Uma irmã de Kadu lhe pediu
permissão para isso, exprimindo os comentários que se andara fazendo sobre as crianças não
conhecerem a música dos ÷ ë ÷ ã m † . Ele disse sim e a simulação foi muito emocionante, dando
vontade de chorar. As trombetas têm mais de 20 anos, e Saadea, seu dono, nunca me permitiu
vê-las.
283

6. Os mortos são Outros

“Para o homem, como para as flores e os bichos e os pássaros, o


triunfo supremo consiste em estar vivo o mais intensa e mais com-
pletamente. Por mais que os não-nascidos e os mortos possam sa-
ber, eles não podem conhecer a beleza, o milagre de estarem
vivos na carne”. D. H. Lawrence

Afim de extrair algumas conclusões, tentarei, primeiro, inserir a escatologia

Juruna na problemática definida por Manuela Carneiro da Cunha em seu estudo sobre a

escatologia Krahó. Trata-se uma problemática construída por meio de um contraste entre

os Jê e a África, no que diz respeito ao chamado culto dos ancestrais. Farei isso porque à

primeira vista os Juruna compartilham aspectos dos dois modelos investigados pela a u -

tora168.

Ela efetua uma abordagem conjugada de estrutura social e religião, cujo principal

interesse, entre outros, é superar a perspectiva para a qual a segunda não passaria de

projeção da primeira. Segundo afirma, a religião pode ser encarada como uma reflexão

sobre a sociedade, antes que como seu reflexo. O problema é desenvolvido nos termos de um

confronto entre o modo como se concebe os mortos e a construção das identidades sociais; a

lógica subjacente à concepção dos mortos vem a ser considerada como um mecanismo, p o -

sitivo ou negativo, da reprodução das identidades sociais. À África com linhagens e culto

dos ancestrais corresponderia o pólo positivo; aos Jê, sem culto de ancestrais, na ausência

ou presença de linhagens, corresponderia o pólo negativo.

Na África, os mortos são pensados a partir da noção de continuidade, prolongamento

e permanência dos laços com os vivos; estes laços seguem sendo postos a serviço de iden-

tidades sociais no mundo dos vivos, pois, ainda que exista em algum nível recurso à opo-

sição global vivos/mortos, esta oposição não representa, no sistema, a função lógica

primária. Entre os Jê, os mortos são pensados em sua disjunção, oposição e antagonismo

relativamente aos vivos, em sua exterioridade. Esta concepção — isto é o principal — tem

primazia sobre os laços que durante um tempo restrito ainda se consideram entre mortos e

168 Nem é preciso dizer que lhe tomo também o título; o trecho de Lawrence (Apocalipse) r e s -

ponde ao seu Valéry (“Nous autres, civilisations, nous savons à present que nous sommes
mortelles...”).
284

vivos, laços que a máquina funerária e escatológica visa justamente suprimir. Nenhum

espaço, pois, para culto dos mortos.

Carneiro da Cunha faz, pois, uma articulação entre meios de identificação social e

formas de relações com os mortos, sendo suficientemente cuidadosa para não vincular

mecanicamente a instituição religiosa ao sistema de linhagens. Critica, assim, a tentativa

por muitos antropólogos ingleses de limitar a noção de ancestral aos mortos da linhagem, e

o grupo de culto aos vivos da linhagem, ressaltando que embora isto seja um aspecto de fato

recorrente em sistemas africanos, a vida religiosa freqüentemente transborda este m o -

delo, cujo principal defensor foi Meyer Fortes. Entre os Tallensi mesmo, ela lembra com

enfâse, as práticas relativas aos mortos da linhagem se dão paralelamente a outras r e l a -

tivas aos mortos na filiação complementar, e a outras ainda relativas a mortos não-

individualizados, as quais são, portanto, inteiramente descoladas dos sistemas de l i n h a -

gens. Desse ângulo, nada justificaria recusar o rótulo culto dos mortos para os festivais

Juruna em nome da ausência de sistema de linhagens. Na linha de seu argumento, mais

importante que a existência de grupos corporados ou posições sociais reificadas, seria a

categoria lógica subjacente às representações relativas aos mortos. É preciso então de-

duzir dos fatos Juruna esta categoria.

Os mortos não prolongam identidades no mundo dos vivos, no limite porque iden-

tidades sociais de caráter global ao modo africano não existem. Tampouco são substituídos

pelos vivos (conforme a expressão de Da Matta), ao modo Jê, no limite porque a sociedade

não se traduz em sistema de nomes, posições ou papéis sociais. Entretanto, os Juruna

parecem conhecer as duas perspectivas. Combinam de fato elementos aí presentes, f o r -

mando uma síntese nova. No que toca à África, refiro-me não aos elementos que Fortes

erigiu em núcleo do culto dos ancestrais, mas ao que pôs de lado como secundário para não

desmistificar (como mostra a autora) seu modelo da reprodução social pela estrutura

social empírica, reificada como sistema de linhagens, e sua expressão como culto dos a n -

cestrais. Isto é, refiro-me ao aspecto em que os ancestrais não são individualizados, não

se traçam relações genealógicas definidas, e que não opera por conseguinte como meca-

nismo de reprodução das identidades sociológicas em suas relações diferenciais. No que

toca aos Jê, refiro-me à descontinuidade de base entre vivos e mortos, e também, no que

diz respeito aos mortos do grupo, aqueles mortos individualizados que assombram a m e -

mória dos vivos, eles são objeto de um trabalho de alheamento análogo ao realizado pelos

Krahó, assim como são igualmente marcados pelos signos do antagonismo e da disjunção.
285

Pode-se objetar que a relação com a África que aqui traço é adventícia, uma vez que

se reduziria ao fato da existência de comunicação com os mortos. De fato. Mas esta relação

serve ao menos de pano de fundo para se compreender como as noções de descontinuidade,

antagonismo e disjunção, todas presentes na escatologia Juruna, culminam em formas

institucionalizadas de comunicação com os mortos. Os Juruna, já afirmei, têm os defuntos

na mesma conta que os Krahó têm os seus, porém enquanto estes tratam de afirmar a de-

saparição dos mortos antigos no tempo, com crenças em metamorfoses sucessivas que

culminam em sua conversão em “pedra, raiz, cupim ou toco de árvore” (Carneiro da

Cunha, 1978: 115)169, os Juruna afirmam sua permanência e a possibilidade de p a r t i -

ciparem da vida dos vivos, após sua integração à sociedade dos ÷ï÷ãnay.

À diferença dos Jê, portanto, a oposição entre vida e morte não é comparável à

oposição ser/não-ser. Que a vida dos mortos seja uma continuação da vida social, parece

com efeito ser uma teoria Juruna. Como é fácil descrever sua cauinagem, o luto vivenciado

pelo defunto, o temor e o respeito pelos canibais, sua alegria quando vêem as comidas do

banquete, as canoas transbordando de cauim, as moças bonitas! Isto remete ao fato positivo

e crucial de que os mortos prolongam a cultura — o que não é o mesmo que prolongar os

laços com os vivos — e são em certos aspectos, ao menos talvez por causa das perdas

propiciadas pelos Brancos, os grandes protetores dela, e o espelho no qual os Juruna se

reconhecem como cultura singular.

À diferença do modelo africano, contestam que a morte não introduza descontinui-

dades no mundo do ser, suficientes para produzir com os mortos outras relações que as que

se dão sob o signo da paternidade ou ancestralidade. Aqui a morte não produz ancestrais,

quer-se fazê-la produzir afins. Voltaremos a este ponto.

Viveiros de Castro chamou a atenção para nuances Tupi frente à perspectiva de

oposição rígida que os Jê se traçam entre mortos e vivos. Comentando a análise do c a n i -

balismo Tupinambá por Florestan Fernandes, que o entende como “culto dos antepassa-

dos”, ele escreve que a “relação com os mortos pode se dar de outro modo que como um

‘culto’, sem se mostrar como disjunção absoluta vivos/mortos, ao modo Jê” (Viveiros de

Castro, 1986: 86 n. 3). E sugere que a questão pertinente para o caso Tupi-Guarani não

são os mortos mesmos, mas a morte. Com efeito, os Juruna chegam mesmo a desenvolver

esse tema mais além do conceito abstrato de morte, criando personagens objetivos da

169 DaMatta registra para os Apinayé: “... depois de passar algum tempo na aldeia dos mortos,
as almas finalmente morrem e a alma-da-alma entra num toco de pau ou em corpos de animais
que, mortos, fazem com que elas desapareçam da natureza” (DaMatta, 1976: 86 n.14).
286

morte — os ÷ï÷ãnay nativos — que mostram que ela não carece de mortos para se tornar,

desculpem o trocadilho, termo de relação com a vida.

Para facilitar minha argumentação, eu gostaria de parafrasear a observação i n -

teressante de um estudioso da visão de mundo Bantu, I. Kopytoff, mencionada por Carneiro

da Cunha:
“segundo ele, seria uma distorção etnocêntrica da visão de mundo africana a de i n -
sistir na primazia conceptual da divisão entre vivos e mortos (…); afirma que, pelo
menos entre os Suku do Congo e outros povos bantos, não há diferença qualitativa
e l d e r s ) e ancestrais: ‘o termo ‘ancestral’ coloca uma
entre anciãos da linhagem (e
dicotomia onde há na realidade um continuum’ (…)” (Carneiro da Cunha, 1978:142).
Eu diria que o termo “morto” não traduz suficientemente a dicotomia que existe entre os

vivos e os ÷ï÷ãnay, pois, a rigor, “os que sempre viveram no ôco da pedra” têm primazia

sobre “os que se foram daqui” quer no plano ontológico quer no domínio da festa. Estes só

participam do festival à medida em que assumem qualidades próprias daqueles. O festival

não é celebrado em intenção dos mortos cuja identidade a memória preserva. Com efeito,

os finados estão presentes, mas sem qualquer chance de manifestação direta. Com efeito

também participam ativamente mortos cuja memória se perdeu no tempo, ou jamais

existiu em função da distância espacial. Mas o festival só pode ser celebrado porque e x i s -

tem mortos sem passado, alheios a toda memória e que encarnam a morte em estado puro.

(O festival dos ÷ë÷ãm† introduz alguns deslizamentos neste modelo, mas não se

pode dizer que o resultado seja distinto. O que o condiciona não é a concepção de um espaço

primário da morte, mas aquela segundo a qual, de um lado, existe um lugar onde não há

morte e, de outro, os mortos são convertidos em vivos. Wuba é o oposto de Kumahari, ele

nunca viveu, não é portanto um cuja participação na vida dos Juruna se faz impossível.

Kumahari morreu, mas encontra-se vivo, e pode, por isto, participar de forma ainda mais

diversificada do mundo dos vivos. Estes dois delegados negam cada um a seu modo a relação

temporal entre vida e morte e, nisto, possibilitam a comunicação entre os vivos e os

mortos.)

A celebração dos ÷ ï ÷ ã n a y têm tudo de encontro festivo entre dois grupos p o l i t i -

camente autônomos. Sua organização é tal que a categoria sagrada é perfeitamente análoga à

categoria social: o dono da palavra dos mortos e o dono da palavra dos vivos — interligados

pelo xamã. Os interesses e problemas que atingem os primeiros são os interesses e p r o -

blemas estritamente humanos que atingem os outros. Reúnem-se para alegrar-se. O modo

de exprimir-se da religião Juruna é um onde são os “deuses” que buscam o contato com os
287

homens, onde o que se visa não é a comunhão humana no elemento do divino, mas a co-

munhão do divino no humano.

Os mortos são Outros. O que isso quer dizer? É evidente que sua alteridade não é

concebida sob o ângulo Jê, como o oposto complementar. Trata-se de um simples E u - O u -

tro, ou mais simplesmente um outro eu. Antes de significar descontinuidade e disjunção

absolutas, a morte é tema de desterro e diferenciação. Mudam-se de grupo e se abole seu

passado (ou os laços de parentesco com os vivos). É este duplo processo que os converte em

Outros, dos quais somente importa a vida presente, que é uma vida nova. Virtualmente, são

amigos (isto é, não-parentes) que podem agir traiçoeiramente (como aliás é típico da

amizade).

Ser Juruna não é uma qualidade que se restringe aos vivos. Isso abrange por

princípio e definitivamente os ÷ ï ÷ ã n a y nativos (e, por extensão, as almas dos mortos),

bem como os humanos celestes imortais. É esta correlação, definida como identidade c u l -

tural entre vivos, ÷ ï ÷ ã n a y e ÷ ë ÷ ã m † , que se acrescenta e se articula à oposição

vida/morte, formando com ela a dupla categoria que engrena a comunicação com os mortos.

Mas isso não basta para se compreender o justo significado da instituição religiosa.

Qual é o valor, no sentido saussuriano do termo, do festival dos ÷ ï ÷ ã n a y ? Pois,

com efeito, uma coisa é o ritual que visa a conservação da ordem, outra coisa é o que

pretende modificar a mesma170. Do mesmo modo, uma coisa é a religião em que sacerdotes

e divindades são incomensuráveis, outra é a religião em que uns e outros se definem e s -

sencialmente como potências de natureza idêntica (ainda que o recurso ao grau de potência

seja essencial). Hélène Clastres escreveu que os antigos Tupi só afirmavam a oposição

entre deuses e homens para superá-la, para transformarem-se eles mesmos em deuses. A

noção subjacente aos materiais Juruna não é muito diferente. A oposição entre mortos e

vivos também é posta para ser superada, em benefício dos primeiros, por um lado, e dos

segundos por outro.

Antes de abordar a superação, vejamos que múltiplas mediações à mesma oposição

intervêm até a vertigem. A existência humana é escalar: há mais ou menos vida, há mais ou

menos morte. Tomemos estes oxímoros de Kadu.

170 Adapto, como exige o contexto, uma observação de Vernant, primeiramente formulada por

Haudricourt, sobre a necessidade de se considerar “a oposição entre povos para quem a potência
é primeira, toda ordem supondo um poder fundador, e aqueles que, ao contrário, pensam religio-
samente em termos de ordem, o melhor poder sendo o que não tem que agir” (Vernant, 1979:
17). Os Juruna, naturalmente, incluem-se entre os primeiros.
288

“Não é verdade que morremos, o que se passa é que deixamos os ossos aqui e vamos
viver em outro lugar”.

A noção de imortalidade da alma vem abafar a noção de morte como extinção. Mas a alma de

um morto pode morrer, virando vento, dissolvendo-se na imensidão. Do mesmo modo, um

vivo pode não estar plenamente vivo, caso sua alma tenha sido levada para outro lugar sem

ter por isto aqui deixado apenas os ossos. Conhece-se ainda a morte antecipada, por h o -

micídio da alma efetuado por ÷ï÷ãnay ou ÷ë÷ãm†. Por outro lado, a imortalidade da alma

não quer dizer que no homem há uma parte que morre, e uma parte imortal. A própria

alma é a parte que morre, sendo o corpo o mero efeito disso.

“Assim morreu o xamã. Eu não acredito que o xamã tenha morrido. Para mim, ele
atingiu o céu dentro do próprio corpo”.

Sob a história que acaba de relatar, irrompe em Kadu a súbita compreensão da i m o r t a l i -

dade, afirmada tão positivamente que se estilhaça o real da morte, e transforma em doce

ilusão o episódio vivido pelos outros, que alguma coisa tiveram de fazer com o cadáver aqui

deixado.

Assim como a disjunção entre os vivos e os mortos não é absoluta, a oposição

vida/morte tampouco o é. A morte pode ser representada como dissipação total da alma que

morre pela segunda vez. Esta segunda morte não é porém um indíce de transferência para o

outro mundo da condição mortal do homem, visto que ela tanto é meio da extinção absoluta

como meio de retorno à vida, como mostra o mito da morte do xamã/ ÷ï÷ãnay -jaguar

durante a celebração do festival. Matar um ÷ï÷ãnay seria impossível, só se poderia fazê-

lo ressurgir de novo, segundo cogita Wereade. A morte pode ser o não-ser relativo, p r o -

duto da ótica que os vivos têm sobre os mortos, os quais simplesmente vão viver noutra

parte. E pode ser passagem para uma condição absoluta do ser, morrer para des-morrer

além deste lugar, como sucede aos xamãs que sustentam relações com Seµã÷ã e cuja morte

os torna magníficos (÷ë÷ãm†).

Para concluir, resgatando o valor do festival dos ÷ ï ÷ ã n a y a partir do que há em

torno dele, os mitos e o pensamento religioso mais abrangente permitem-nos afirmar que

o festival simplesmente preenche o vazio deixado pelo impossível, a saber, a afinidade

entre mortos e vivos. Os Juruna põem em ritual o que não pode ser posto em realidade. Ou

melhor, o que não pôde ainda. O sem-retorno da viagem dos pais, irmãos ou filhos poderia

vir a ser revogado e uma nova ordem instaurada. O desterro em uma outra esfera do
289

cosmos poderia ser convertido em desterro em nossa própria esfera. A morte poderia ser

posta a serviço da vida social plena, produzindo genros, cunhados e esposas.

Trazer os mortos da Morte é um tema que conflui no xamanismo de Seµã÷ã, e que

foi desenvolvido no capítulo 1 como uma variante do tema da Terra sem Mal. A promessa de

um tempo novo, conforme vimos, é feita por xamãs que a condicionam à sua própria

morte-e-ressurreição como o acontecimento inaugural da nova condição humana. E n -

quanto eleitos por Seµã÷ã, estes xamãs são os xamãs verdadeiros, ou pelo menos aqueles

frente aos quais todos os outros aparecem como imitadores, senão fingidores, por ser sua

potência limitada à capacidade de tratar os problemas e desejos humanos no nível e s t r i -

tamente ritual.

Aqui veremos um mito que ilustra uma faceta distinta da mesma utopia sociológica.

Trata-se de uma das mais belas narrativas que ouvi de Kadu e de que Mareaji teve a gen-

tileza de rever a tradução. Aí se encontra a razão da impossibilidade de se viver em um

regime diferente do vigente na vida real. Trata-se do sexo. Aqui como alhures, dado que o

sexo existe a vida implica a morte. Mas, conforme notaremos, os Juruna são um tanto

barrocos. Inscrito na natureza humana por Seµã÷ã, o sexo não é a função de que deriva a

morte enquanto acontecimento na vida individual, mas a função de que deriva a perma-

nência dos mortos na Morte. Enquanto acontecimento na vida individual, é preciso que ela

seja irremovível da condição humana e não é de sua superação que o mito fala. Fala da

superação da Morte dos mortos: a existência na noite, a impossibilidade de emergir à luz

do dia, não estar vivo no corpo para dar e receber uma mulher.

Sucedeu isto em uma festa dos ÷ï÷ãnay que Então disse o xamã:
os antigos vinham celebrando: “Tratem-nos bem!
O xamã vinha assoprando fumaça de tabaco Procedam mal, e eles partirão.
sobre os ÷ï÷ãnay, Não peguem mulher perto deles,
Eles vinham dançando diariamente. Evitem! Esperem o tempo passar!
Sua demorada estadia os levou a não querer Peguem mulher, e eles irão para muito
retornar mais para os rochedos. longe.
Declinando o sol, os ÷ï÷ãnay ficavam Quando quiserem mulher, vocês se afastem
conversando dentro de casa. para longe.
Caindo a noite, saíam para pescar, Eles dizem que pegar mulher perto deles é-
Pois não usavam sair ao dia. lhes nefasto.
Diziam que para si próprios a noite era o dia. Eles poderão partir”.
Quando o sol está a pino é a escuridão No entanto um Juruna não obedeceu.
profunda para eles. Havia naquele tempo tanta gente que alguns
Saíam, pois, na noite para pescar. não escutaram.
E continuavam a chegar ֕֋nay para a E um tal que pegara mulher foi ter com eles
festa. à tarde, depois da pesca.
290

Eles palestravam e se mexiam. Vocês não voltarão jamais depois da morte,


“Oh não! Por que tu te aproximas de nós? Vocês não poderão jamais voltar para cá de
Por que vens nos separar?” novo”.
Eles sabiam. E desapareceram.
“Nós já lhes falamos que vocês não Os ÷ï÷ãnay foram-se.
deveriam agir desse modo conosco, Então disse o xamã:
Procedam assim, e todos nós iremos mal, “Foi por isto que eu lhes disse:
Não peguem mulher! Teria sido bom se todos nós nos tivéssemos
Vocês não atenderam. estabelecido assim,
Teriam ficado aqui todas as almas dos que Para sempre.
morreram, Ao morrerem, vocês poderiam ressurgir ao
Teriam casado com as mulheres destes cair da tarde.
lugares, Porque vocês não ouviram as palavras,
Poderiam tomar esposas aqui. Vocês pegaram mulher,
E os homens destes lugares casariam com as Será mau doravante.
mulheres dos ֕֋nay, Eles partiram.
E os ÷ï÷ãnay casariam com as mulheres Jamais, jamais terá sido assim”.
daqui. E assim não foi de fato.
Assim para sempre, teria sido bom! Ninguém jamais retornou depois de morrer.
Teria sido assim! Ele havia dito:
Vocês, vocês não lhes ouviram as palavras, “Não pesquem tucunaré,
Eles foram-se. Evitem tucunaré,
Ao morrermos, poderíamos ressurgir ao Comamos só peixes bonitos.
cair da tarde, Pesquemos tucunaré, e os ÷ï÷ãnay lançarão
Ao morrermos, poderíamos todos nós doença sobre nós,
ressurgir ao cair da tarde, Poderemos morrer,
Jamais vocês iriam morrer. Evitem!
Agora estaremos mal, Dancemos com eles, nada mais!
Ao morrermos, não retornaremos, O xamã assoprará fumaça de tabaco sobre
Vocês terão de permanecer no país dos eles,
÷ï÷ãnay !” Há de ser bom!”
Os ֕֋nay haviam partido. E todo mundo ficou triste,
Ficara um único que conversou conosco, E todo mundo ficou zangado com o tal que era
Era o c a p i t ã o deles. viciado em mulheres:
“Vocês procederam assim, por isto não “Tu não ouves as palavras!
será bom, O que tens? És um louco!”
Ao morrerem, vocês não retornarão. E ele chorou.
Vocês, vocês permanerão lá longe.
Por isto queríamos aparecer todos aqui.
Aqui permanecendo,
Aqui reproduzindo,
Vivendo à luz do dia, eles poderiam
recuperar-se,
E depois poderiam casar com as mulheres
daqui,
E vocês poderiam casar com as mulheres
dos ֕֋nay,
Para sempre.
291

O desenvolvimento do tema da superação da condição humana no quadro do festival

dos ÷ï÷ãnay é muito criativo, conforme mostram as glosas que pude obter. Danças e f u -

maça de tabaco em um festival que se alonga muito além do ordinário propiciariam a e n -

carnação, a princípio muito tênue, de toda a coletividade dos ÷ ï ÷ ã n a y . Somos tentados a

reconhecer aí, nesse adensamento das almas e sua ascensão ao nosso mundo, uma simetria

e uma inversão do tema Guarani da leveza do corpo e ascenção ao mundo celeste, em corpo e

alma.

Em seguimento a esta tênue encarnação, um novo tema intervém, a saber, a n e -

cessidade de evitar sol por um período, até se poder começar a curtir a pele nova, com

vagar e progressivamente. Finalmente, a troca de pele estaria garantida para todo o

sempre. Os ex-mortos simplesmente trocariam de pele ao envelhecimento.

Os vivos morreriam quando fosse chegada a hora de cada um. Mas o caminho do país

dos mortos não lhes seria fechado após a ida, não seria um caminho de mão única, e, ao

cabo de algumas horas, o morto retornaria sobre os próprios passos e reassumiria seu

corpo... Tamariko aqui se embaraça: não está seguro de que seja o mesmo corpo, é possível

que a emergência seja feita em corpo novo e frágil. Em todo caso, o sujeito estará de pele

nova — ninguém ressuscitaria com as marcas da decrepitude — e destinado a não morrer

nunca mais. O cuidado com o sol é da mesma forma um complemento essencial que voltará a

se impor por ocasião das futuras trocas de pele.

Os Juruna assim postulam que morrer é essencial para se atingir a imortalidade. E

também postulam que o homem que passa por esta experiência não é mais o mesmo homem.

A morte individual não é de maneira alguma destituída de consequências, o morto não

ressuscitaria para retomar seu lugar na rede de relações de parentesco, e não poderia

simplesmente ocupar o seu lugar no seio da aldeia. O mesmo retorna Outro, seu lugar é

entre os ÷ ï ÷ ã n a y (ressuscitados) e deve procurar seu novo grupo. Mais tarde, sarado

completamente da morte, será aceito como cunhado em seu grupo de nascimento.

O mito fala assim de uma chance que um dia os Juruna tiveram e perderam. Trazer

à superfície do rio Xingu todos os que vivem no subterrâneo de suas margens rochosas. O

rio povoado de aldeias Juruna, habitadas por homens que trocam de pele e se casam entre

si. Não sei que sentido sociológico esta utopia apresentava no tempo em que os Juruna não

estavam confinados à vida social atual, reduzida a relações culturalmente superficiais com

os vizinhos. Mas a vida atual sugere quase naturalmente o que isso pode representar em

um mundo do qual desapareceram os Outros que comungavam a mesma civilização: uma


292

utopia sociológica segundo a qual a sociedade pode ser dotada de um duplo mecanismo de

reprodução. O sexo produz o mesmo, a morte produz o Outro.

Talvez seja preciso dizer que não carecem de doçura quando ligam a ordem atual do

mundo a uma fraqueza sua, ao prazer mais fugaz de que só se lamenta quando já é tarde. E

quando, assim, pensam a subversão da ordem do mundo nos termos de uma problemati-

zação de suas dimensões e gradações: só permitem experiências parciais, só propõem

meias verdades. Por que não um regime de verdades e experiências completas, mais (ou o

serão menos?) humanas em suma?


293

CAPÍTULO V

O Mundo das Pessoas


294

1. Qual é o nome dele?

Os Juruna gostavam de me dizer que os antigos diziam que as pessoas têm nomes

para serem chamadas apenas pelos outros, pois pronunciar o próprio nome é arriscar-se

à morte. Mais do que identificar-se para os outros, dizer o próprio nome é chamar-se a s i

mesmo e, portanto, significa supor uma separação entre o portador e o nome. A distância

de si que aí se traça poderia acabar se concretizando. Inversamente, dizer o nome de um

morto poderia desencadear o seu retorno: por isso (entre outras razões) os nomes dos

mortos são proibidos.

Há dois processos complementares de identificação pessoal: a nominação e a a l -

cunha. A primeira tem como fonte um repertório dito escasso de nomes próprios, p e r -

tencentes aos mortos e usurpados pelos vivos. A segunda é, em muitos casos, concebida

como um recurso provisório e se alimenta da inventividade, fundada muitas vezes em

características individuais ou em circunstâncias vividas pela criança. A mãe ou irmãos do

bebê buscam um “nome de mentira” para chamá-lo até que esteja suficientemente forte

para portar um “nome verdadeiro”. A mãe achou o bebê coberto de formigas e passou a

chamá-lo Formiga; como a menina nasceu cega de um olho chamam-na Cegueira; como o

menino foi enterrado porque a mãe desejava uma menina e desenterrado a tempo, cha-

mam-no O Indesejado; como o outro tem um olhar esquisito chamam-no Olho de Arraia, e

assim por diante. Alguns apelidos duram a vida inteira, outros caem em desuso e sua

lembrança por terceiros é uma forma de brincadeira que envergonha o portador, e à qual

se reage repetindo insistentemente que “este nome já acabou”. Por vezes, o ofendido pode

vingar-se, lembrando o apelido do ofensor, e a coisa pode evoluir para uma pequena sessão

de acusações de nomes envolvendo uma rede de pessoas, e onde o divertimento prevalece

sobre a vergonha.

Também há apelidos que surgem da gozação alheia, podendo ter origem até mesmo

depois que a criança tem nome, e há apelidos que surgem por ocasião do casamento: a e s -

posa, querendo, pode apelidar o marido com o intuito de o distinguir com um falso nome,

para impedir o desgaste do nome verdadeiro. Há quem teve a sorte de inventar para o m a -

rido um apelido que é usado por todos, e há quem permanece sendo a única a chamá-lo a s -

sim. Mas isso é mais ou menos relativo, pois quando se fala com alguém de uma pessoa,

esta é geralmente designada pelo nome que o interlocutor aplica a ela.

Muitas vezes o significado de um apelido se deteriora com o uso, de modo que é


295

preciso conhecer sua história para saber o que quer dizer. Achava-se de uma menininha

que ela tinha a “cabeça fedorenta”, isto é, começou-se a chamá-la de Taba iaku. Para

brincar com ela, fazia-se um jogo verbal com as duas palavras, duplicando-as e i n v e r -

tendo a ordem; obtinha-se uma brincadeira bastante agradável do ponto de vista do som,

mas um tanto grosseira do ponto de vista do sentido: iaku itaba, itaba iaku; iakü taba-taba

iaku, “fede a cabeça dela, a cabeça dela fede, fum! cabeça-cabeça fedorenta”. O apelido
firmou-se como Akü, que não tem em si mesmo nenhum significado em função da queda da

vogal inicial da exclamação usual de fedor, iakü . O apelido Ωadaka não é menos interes-

sante: há quem o interprete como nome próprio, uma vez que não quer dizer nada senão

para quem sabe que assim Ωadaka começou a ser chamado porque tinha o pênis tão miúdo

que lembrava a lagarta do coco de inajá: u≈a daka. A queda da vogal inicial e também,

provavelmente, sua semelhança com outros nomes próprios como Ωadaha e Ωadawa t o r -

nam-no aceitável como tal. Com efeito, no repertório de nomes próprios encontram-se

diversos conjuntos de nomes com relações anagramáticas e/ou diferenciados por apenas

um fonema: Kadayu, Kayadu, Kuyadu, Dukayu, Yakaydu, Yakayru, Kuyawa, Kudawa...

Afirma-se que os apelidos desaparecem com a morte do portador, e que apenas os

nomes próprios passam dos mortos para os vivos. Mas, uma vez que o uso pode dar origem

a um termo que fica a meio caminho de um nome próprio e de um termo comum, e que não

é seguro que existam mecanismos efetivos de controle da confusão entre os dois tipos de

nome, não me parece de todo improvável que a apelidação propicie o surgimento de novos

nomes. Mas esta é uma hipótese que os Juruna negam enfaticamente, e que parece ofendê-

los. Registrei contudo o caso de um apelido que foi elevado ao estatuto de nome próprio. A

avó materna de Payawa apelidou-o com um “nome próprio de macaco”, Payawari, que

remonta ao tempo em que os macacos eram humanos. A última sílaba caiu com o uso, e,

segundo me contou o pai do menino, as mulheres acabaram achando que o falso nome — na

verdade, um falso apelido — dava um bom nome verdadeiro e sugeriram que o menino o

portasse como tal, decidindo que ele não receberia outro nome além deste171.

Quando uma pessoa morre, os seus nomes, incluindo o(s) apelido(s), deixam de ser

pronunciados. O morto passa a ser identificado como “o finado” ( urahay) , e, quando isto

não é suficiente para se fazer a identificação, por um tecnônimo formado pelo nome de um

filho ou filha; por exemplo, Pai-de-fulano. Quando os seus filhos por sua vez morrem

também, ele vem a ser identificado como Avô-de-fulano. As pessoas que morrem sem

171 O nome do pequeno Tamakade também foi tomado de animal (porco).


296

deixar prole são identificadas através de sua relação com a mãe, e em geral são esquecidas

mais rapidamente. Quem morre vitimado por Índio ou jaguar (ou mesmo envenenado por

mandioca, como um caso que registrei), passa a ser chamado de Vítima de Txukahamãe,

por exemplo. A recíproca não é verdadeira. Ou melhor, os Juruna desconhecem a prática

vigente em outros grupos Tupi de acordo com a qual o homicídio motiva a aquisição de nome

pelo matador. Se alguma ligação existe entre inimigos e nomes, o que a regra diz é que o

inimigo capturado (ou qualquer outro estrangeiro atraído para o grupo por meios pacífi-

cos) deve ser nominado segundo o mesmo procedimento utilizado para com um bebê: deve

receber nome de um Juruna morto (no caso de um antepassado do captor).

A evocação dos nomes dos mortos não se justifica somente pela ameaça do retorno

das almas que mencionei acima. Dizer o nome de um morto é uma grande falta de respeito

para com os seus parentes: isto causa saudade do finado e raiva do pronunciador, sendo uma

razão muito justa para se brigar. Para os Juruna, a proibição religiosa e o respeito pelos

parentes do morto são elementos independentes, de forma que quando se tematiza o r e s -

peito, afirma-se que não é absolutamente perigoso pronunciar o nome dos mortos; apenas

sucede que o respeito mútuo é efetivamente um traço da conduta de todos. Para provar-me

a inexistência de tal perigo uma gentil amiga recitava-me os nomes que eu desejava saber,

muito baixinho, às escondidas, pedindo absoluto segredo e jamais pronunciando os nomes

de seus mais próximos. Por outro lado, diz-se que querendo-se saber o nome dos finados,

deve-se perguntar aos seus descendentes mais próximos que eles contam; nunca ousei

fazer a experiência, mas aceitei de bom grado o convite de Hürïkã para ouvir de Madayu,

mãe dele, os nomes dos antepassados dela e do pai dele. Ela os recitou com toda naturali-

dade.

Sucede que os mortos têm ciúme de seus nomes e são capazes de prejudicar o novo

portador, causando doença e quem sabe morte. No passado recente, podia-se “pagar” ao

morto, convidando-o, por intermédio do xamã, para uma refeição. O morto se alegrava por

ser tratado como um conviva e concordava em emprestar o nome, desistindo de prejudicar

o novo portador. A idéia geral subjacente ao sistema de nominação é portanto a de que os

vivos se apropriam dos nomes dos mortos contra a vontade destes. Por isso, só se deve

transmitir nomes de pessoas que morreram há muito tempo (pelo menos, e aproxima-

damente, há uns dez anos), e já estão bem adaptadas à sociedade dos mortos. E só se deve

nominar a criança a partir dos cinco ou seis meses, porque então ela já tem alguma força
297

para suportar o possível mal provocado pelo morto172. Além disso, não se deveria dar ao

filho o nome de um morto qualquer, mas daqueles de quem se está mais ou menos seguro de

que não se incomodarão em doar o nome à criança. Estes mortos são os bisavós ou os avós

da criança.

Mas não há apenas isto. Define-se um direito segundo o qual os homens têm

prerrogativa sobre os nomes dos próprios avós (paternos ou maternos, não importa) para

nominar os filhos. Assim, a condição de uma criança de pai desconhecido é a de alguém sem

direito a nome. A criança deveria receber nome de bisavós (ou avós) paternos exclusi-

vamente, e se nomes de parentes maternos lhe forem dados, há lugar para a atribuição de

roubo de nomes que de direito caberiam aos filhos do irmão da mãe. Este roubo não chega a

gerar nenhuma disputa aberta, e os casos que me foram contados eram meras fofocas,

feitas aliás quase sempre por pessoas que não eram os próprios lesados.

Duas pessoas vivas não deveriam portar o mesmo nome. Se os nomes a que se tem

direito foram tomados por outrem, ou se não há um morto sobre cujos nomes se tem d i -

reito, é preciso encontrar nomes pertencentes a um morto qualquer. Os dois casos

atualmente existentes de pessoas portando o mesmo nome implicam crianças nascidas de

casamentos com Suyá que não residem em Tubatuba, nominadas pela avó Juruna em r e -

presália à usurpação de nomes por pessoas residentes em Tubatuba.

Pode-se ter um, dois, três e extraordinariamente quatro nomes, como se pode

também, mas isto é raro, não ter nome algum, exceto um apelido. É possível receber

nomes de mais de um finado, assim como os nomes de um mesmo finado podem ser dados a

duas ou mais pessoas; e é possível receber nomes de mais de um nominador.

Os Juruna sofrem uma grande escassez de nomes, seja, conforme dizem, por falta

de antepassados com nomes disponíveis, seja por falta de conhecimento de nomes dos

mortos. Encomendaram-me mesmo numa viagem que fiz em fevereiro de 1989 a Altamira,

na companhia de cinco homens, nomes de Juruna ou de Shipaya mortos, o que, para l a -

mento de todos, não me foi possível obter. Nos anos 70, Kadu fizera uma viagem a Altamira

e lá uma velha Shipaya lhe deu os nomes dos mortos parentes dela, os quais foram d i s -

tribuídos entre quem não tinha, como Taykap¥ e Dukare.

172 Há crianças que recebem nomes antes disso — aos dois meses, por exemplo; e há crianças de

oito ou nove meses, e mesmo mais, cuja mãe, indo indagar o nome dela junto a uma nominadora,
obtém como resposta que está muito cedo ainda. Geralmente, a nominadora só age deste modo
quando o pedido lhe é feito por uma filha ou neta, como se fosse um tanto descortês lembrar a
outrem que é cedo para dar nome ao bebê.
298

O repertório de nomes está sujeito ao empobrecimento por mais de uma razão. Em

primeiro lugar, os nomes de xamãs e esposas de xamãs são indesejados, porque eles têm

mais poder que os mortos comuns para prejudicar o novo portador. Em segundo lugar,

dentre os nomes de um finado, há um que é dito ïküdãmã, o nome do “esquecimento”:

aquele que se utilizava cotidianamente para chamar o finado. Segundo alguns Juruna, este

nome sai definitivamente de circulação. Há contudo indícios de que isto não é uma regra

absoluta, pois, conforme alguns casos que registrei, ele pode ser reivindicado e mesmo

transmitido. Wereade, cuja filha tem dois nomes, dos quais um era o nome da mãe dele,

disse-me que o nome de esquecimento da falecida também pertence à menina, que o des-

conhece inteiramente. Ela teria então três nomes, um dos quais é esquecido, jamais lhe

será revelado, de forma que não poderá ser retransmitido a um descendente dela. A n o -

minadora desta menina, Madayu (irmã da mãe de Wereade), disse-me contudo que ela

possui unicamente dois nomes. De acordo com Wereade, a imposição forte seria que n e -

nhum contemporâneo do morto jamais visse o nome de esquecimento ser portado por o u -

trem. Mas isto tampouco é uma regra absoluta, pois conforme assegurou-me Madayu, o

nome de esquecimento de sua mãe (que ela bem conheceu), Adaku, ela o deu à filha do filho,

único nome da menina e pelo qual ela é chamada. Para mim, o chamado nome de esqueci-

mento permanece uma noção confusa, ou, quando menos, apresenta uma instabilidade n o -

tável. Para uns é um nome do morto que é mantido em segredo e está destinado a não ser

mais transmitido; para outros é um nome transmitido e desconhecido; finalmente, é uma

especificação de um dos nomes portados por uma pessoa viva e que é conhecido. P o r

exemplo, Madayu afirmou-me que Areãdü é o “nome de esquecimento” de sua cunhada,

uma viva, no sentido não de que seja aquele que se destina a ser esquecido, mas que foi

segredado no passado e é hoje conhecido173.

Crianças que recebem dois ou mais nomes têm, por vezes, os nomes pelos quais não

são chamadas tomados e transmitidos a um irmão (real ou classificatório). Além deste

remanejamento, também é possível, e inclusive bastante comum, um vivo dar o seu nome

a outro, com a justificativa de que há carência de nomes. Neste caso, às vezes os nomes que

se passam a outrem não são mais atribuídos ao nominador, às vezes o próprio nominador

diz que o seu nome está com outrem, como se se tratasse de um empréstimo. A carência é

173 Presumo que possa tratar-se também de um nome que só é posto de reserva para ser
transmitido em vida, seja pelo próprio portador, seja por um mais velho seu. Foi aliás o que
ocorreu com o nome esquecido da filha de Wereade. Nascendo-lhe uma filhinha em 1994, Wereade
nominou-a com o nome Kureda, pertencente à sua mãe.
299

ambígua e pode dar lugar a uma generosidade não menos ambígua, como mostra o caso l i -

mite de Kurewaji, cujo filho não tinha senão um apelido; ele deu seu único nome

(Kurewaji) ao garoto, ficando ele próprio simplesmente com um apelido. Segundo se

comenta, ele assim agiu por não fazer questão alguma de ter nome. Já sua filha não tem o

mesmo desprendimento. Ela se chama Darimi e é conhecida pelo apelido, nome de um

peixinho. Em 1990, comentava-se que ela não queria mais se chamar Darimi. Reivindi-

cava o nome da mãe do pai, em sua opinião muito mais bonito. Ninguém entretanto se de-

cidia a batizá-la com o novo nome.

O procedimento mais comum é dar nomes quando se tem em quantidade, e não n e -

cessariamente por causa de uma carência real de nomes de finados. A filha de Wereade,

como disse há pouco, foi nominada por Madayu, que lhe deu um nome pertencente à sua

finada irmã, avó paterna da menina, e o outro pertencente a ela mesma, pelo qual aliás a

menina é conhecida. À filha do irmão de Wereade, Madayu deu outro de seus nomes, r e s -

tando-lhe ainda este, herdado de sua avó materna, e um outro pelo qual é conhecida.

Não é comum alguém se interessar em saber como os mortos se chamavam, muitos

dizem desconhecer o nome dos avós. O conhecimento de nomes é uma prerrogativa dos v e -

lhos. Duas mulheres, Madayu e Yawakidu, além de Kadu (marido da primeira), nominam

atualmente os filhos de quase todo mundo, porque quase todo mundo se diz carente de nomes

para dar aos filhos e considera os três acima citados como conhecedores. A idade não é o

único ponto em consideração: não basta ter conhecido pessoas que hoje estão mortas e

conhecer os nomes, é preciso também ter nomes para dar, e os dois outros velhos (um

homem e uma mulher), mais velhos ainda do que os citados, enquanto descendentes de dois

irmãos Trumai, são considerados como pessoas que não possuem nomes para dar.

Os três reputados nominadores afirmaram-me que o nome do morto se transmite

tal qual a um vivo. Wereade advertiu-me que não é bem assim, que o nome sofre (ou pode

sofrer) uma pequenina transformação.

A nominação é um acontecimento bastante simples que não chama a atenção de

ninguém: apenas por acaso vi três crianças serem nominadas — duas vezes em dia de

cauinagem e sob pedido da mãe. “Qual é o nome dele?”, a mãe da criança perguntou à sua

sogra. Esta se dirigiu então a um dos filhos perguntando-lhe se concordava em dar o nome

de seu pai ao filho do irmão; ele respondeu que sim e ela, voltando-se para a nora, disse:

Ωadawa. Talvez porque o cauim, aquela noite, estivesse muito forte, os filhos do finado

Ωadawa ficaram com os olhos cheios de lágrimas; pronunciaram para mim com grande

emoção o nome do pai que então se aplicaria a um “filho”. Os irmãos do pai da criança
300

exclamaram que não estavam nem um pouco bravos, pois o nome estava passando para o

filho de um irmão. Nenhuma palavra foi dita sobre o nome de esquecimento do morto.

Na segunda vez, a mãe da criança perguntou a Madayu (sua FZ classificatória; a avó

paterna da criança é morta e seu avô paterno é reputado carente de nomes de finado, por

ser filho de um Trumai capturado), qual era o nome da filha. Após um breve instante de

reflexão, Madayu respondeu: Arëdã. Nome que dias mais tarde me disse ser de sua mãe,

cujo outro nome, Adaku, ela dera uns nove anos antes à filha de um filho. Ao longo de vários

dias, a mãe de Arëdã (eu morava em sua casa) ficava a brincar com ela na rede chamando-

a repetidas vezes pelo nome. Assim as pessoas — inclusive o pai da menina — foram to-

mando conhecimento do nome dela. Perguntava-se “quem a nominou?”, “Madayu a n o -

minou!” Ninguém, nem mesmo a mãe, mostrou interesse em saber — exceto que fosse j á

do conhecimento de todos — que relação havia entre a “Arëdã antiga”, como diriam, e a

pequena. É que a relação entre o finado e a criança só costuma ser mencionada quando o

nome vem de um bisavô ou avô, quer dizer, quando se pode ressaltar o direito da criança ao

nome.

No terceiro caso, Yawakidu tomou a iniciativa, dizendo à mulher do irmão que a

garotinha sua sobrinha se chamaria Kayadu. A gentileza da cunhada estava, talvez, fora de

dúvida, mas a mãe da criança nada disse. No dia seguinte se comentava que não tinha gos-

tado do nome. Era verdade. Isto não me surpreendeu: surgira alguma coisa no ar no i n s -

tante em que o nome foi dito e eu pressentira que o nome não agradaria à mãe por lembrar

o de um finado com quem ela foi casada no passado, o xamã Kaya. Como as crianças costu-

mam abreviar o nome umas das outras ou às duas sílabas iniciais ou às duas finais, a

menina poderia vir a ser simplesmente chamada de Kaya, tanto mais porque outras

crianças têm já seu nome abreviado para Ádu (Ωaradu) e Adú (Adua∂a)174. Fui falar com a

mãe do bebê, que sem mais me interrogou: “Qual é o nome dela?” “Mare∫ira! um nome

Tapirapé”, que eu ouvira numa aula de Yonne Leite. O nome pegou, tal qual durante certo

tempo. Porém, malgrado meu, muitos entenderam que se tratava de Maria Elvira, e um ano

mais tarde a pequena era chamada por todos de Mariá, embora soubesse muito bem atender

por Mare∫ira. Tinha recebido também um outro nome, Ka∫i∂u, atribuído por sua própria

174A redução de sílabas talvez seja um fator de multiplicação dos nomes. Pude observar que

entre os nomes atribuídos a uma pessoa computa-se, por vezes, tanto o nome como a forma
abreviada; diante de minha surpresa, os Juruna esclareciam que se tratava mesmo de dois nomes
diferentes. Nomes como Dukare e Wãdukare, ou Tanajiwa e Tanaji pertencem a pessoas distintas.
Wãdukare é filho da irmã de Dukare, e Tanaji é filho da filha de Tanajiwa. Indagar às mães destas
crianças se seus nomes eram os mesmos do tio ou do avô, foi, parece, uma indelicadeza minha.
301

mãe e pertencente à mãe desta.

Quando se dá um nome e esse nome é recusado, ou quando se tem um nome e se diz

que não o deseja mais, estes nomes como que ficam disponíveis para quem quiser pegar.

Assim, uma outra irmã do pai de Mare∫ira tinha uma filhinha sem nome e pegou o nome

Kayadu para a menina. De fato, como eu imaginara, um ano mais tarde a priminha de

Mare∫ira era chamada de Kaya pelas crianças e jovens que não conheceram o velho Kaya.

Há crianças cuja mãe não solicita nome para elas, e se uma nominadora não toma a

iniciativa de dizê-lo, a criança fica sem nome até muito grande, podendo mesmo chegar à

vida adulta sem possuir um, circunstância que então apressa a nominação. Isto sucedeu a

Pi≈ãñã: ele chegou à idade adulta portando apenas um apelido; seu finado pai lhe dizia cheio

de pena: “Meu filho, você vai se casar e não tem nome!” O lamento acabou chegando aos

ouvidos do seu avô paterno classificatório, que o batizou como Pi≈ãñã.

Depois que nominei Mare∫ira, mães começaram a desejar nomes de Índios para os

filhos, mas sob uma condição explícita: não queriam nome dotado de significado. Uma i r m ã

da mãe de Mare∫ira me pediu para nominar seu filho e sua filha. Dei-lhes dois nomes Y a -

nomami, tomados d’O Círculo dos Fogos de Jacques Lizot, Hebew¥ e Hiyomi. Alguns meses

mais tarde nasceu um filho de Ωidudu, e ela me pediu um nome Yanomami. Passei horas

folheando o livro e recitei dezenas de nomes, e ela foi recusando um a um, até que chegando

à última página disse-me que o que queria mesmo era o nome Hebew¥, mas como eu o tinha

dado antes ao filho de outra (uma prima cruzada dela), chamaria o filho de Calango (em

homenagem, creio, a um calango de estimação que ela criava com carinho, guardado numa

sacola — o bichinho havia desaparecido há poucos dias).

Outras mulheres também me encomendaram nomes de Índio, lembrando sempre a

carência vivida pelos Juruna, mas à exceção de Mare∫ira, Hebew¥ e Hiyomi, os nomes não

pegaram, e eu percebia que o que as mães (ou avós) queriam era menos um nome que fosse

usado por todos que o estabelecimento de uma relação dual entre a criança e eu: queriam

um nome para ser dito apenas por mim, e se divertiam muito primeiro ensinando a

criança a atender, e depois quando a criança atendia espontaneamente.

Não compreendo muito bem o que leva um Juruna a não querer mais seu nome.

Mencionei acima o que me pareceu um mero capricho de Darimi, mas isso também atinge

pessoas que não parecem nada impulsivas. Kadu mesmo me disse um dia que um de seus

nomes e seu apelido (livremente inventado por sua esposa) estão demasiado gastos, que j á

está entediado de atender por eles, e desejava muito ser chamado doravante por um de seus

dois outros nomes, sobretudo por Kadu. Tampouco chego a compreender o que leva uma
302

pessoa a preferir não possuir nome a aceitar o que lhe dão. Assim é uma jovem mulher

apelidada Sïãmã. Em 1984, sua mãe recitou-me os dois nomes que ela possuía. Um foi

dado por Yawakidu, que é irmã da pai de Sïãmã. Como a sobrinha não tinha nome,

Yawakidu lhe deu um dos próprios nomes dela, Dukayu. Segundo me disse naquele ano a

própria mãe de Sïãmã, ela mesma, a mãe, não gostou e não queria este nome para a filha.

Em 1988, o nome (Dukayu) foi pego por uma irmã classificatória de Sïãmã que com ele

nominou a filha. O que se contava então é que a “dona” (Sïãmã) não o queria mais por

achá-lo demasiado parecido com o de seu primo cruzado, Dukare, nome Shipaya obtido em

Altamira por Kadu. Uma recusa, diga-se aliás, deveras extravagante, considerando-se a

grande semelhança que há entre os nomes. Sïãmã teria ainda um outro nome, Iodi, dado

pelo avô materno. Tampouco este era atribuído a ela em 1988 e 1990. O nome lhe fora

dado por engano: já pertencia a sua prima cruzada, Nuyã. Resultou que nem Sïãmã acei-

tava chamar-se Iodi, porque o nome tinha dono, nem a primeira portadora o queria mais

por ter sido dado a Sïãmã. O nome continua entretanto sendo atribuído a Nuyã, que de-

monstrava um forte constrangimento — ficava a ponto de chorar — quando eu o mencionava

para ela. Um engano como este não é de todo raro e pode acontecer porque, parece, ninguém

costuma guardar na memória todos os nomes de todas as pessoas. Quando isso acontece, o

primeiro portador poderia simplesmente calar-se, mas se lhe acontece dizer que o nome é

seu, e isso chega ao conhecimento do segundo portador (ou de sua mãe), este de modo algum

o aceita mais. A história contudo não morre aí: se o tema vem à tona, o segundo portador

lembra, num certo tom de superioridade, que tal nome lhe foi dado, mas alguém reclamou-

se dono, e ele deixa o nome para o outro.

Tanto quanto se brinca com um apelido e isso dá origem a um termo sem significado

que não chega a ser um nome, pode-se brincar com um nome tentando-se recuperar um

significado oculto. Podu, por exemplo, suscitava a expressão Podu-duka-duka, que aponta

para um significado no mínimo virtual, pois poduka significa ‘caminhar’. Yakaripi se

tornava Ñãkare pi˚a, “peixe-jacaré”, nome de um peixinho.

O nome não é vinculado a nenhum papel social. Quem carece de um não é excluído de

nenhuma experiência, e o apelido cumpre integralmente as exigências da identificação.

Quem tem muitos nomes parece orgulhar-se disso, quem não tem nenhum quer fazer c r e r

que faz questão de não ter, e de fato não tem porque recusou o que lhe deram. Assim um

dinamismo se estabelece entre dois pólos: enquanto uns valorizam e reclamam nomes,

outros os desprezam e parecem exclamar: nome para quê?

Acredito que a escassez de nomes seja uma ficção mais do que uma realidade. E que
303

mais importante que a reputada pobreza do estoque, é a deficiência intrínseca ao nome ou

sua suscetibilidade a gastar-se com o uso, e também sua quase nula aderência a formas

mais desenvolvidas de classificação. Foi aliás uma Juruna que chamou minha atenção para

o fato de que o processo de nominação não corresponde ao que ele concebe por ideal. Seu

nome é Ωidudu e sua filha se chama Darãni. A antiga Darãni morreu na infância, afogada,

na ilha Colônia das Formigas: a mãe bebeu tanto cauim que descuidou da filha. “Como se

chamava a mãe da antiga Darãni?”, ela me interroga então, rindo, até que eu adivinhe que

se chamava Ωidudu. Parece que na verdade não se chamava assim, mas deveria. Que os

nomes estivessem ligados uns aos outros por relações familiares definidas desde sempre,

ou que as famílias tivessem uma existência nominal a atravessar a história, reprodu-

zindo-se indefinidamente por meio dos nomes, traduz com efeito um ideal Juruna que

outros exemplificaram com a relação dos nomes Tarinü e Yanawa — dois irmãos antigos, e

dois irmãos atuais. Se os nomes correspondessem a relações familiares estáveis e u n í -

vocas, seria bonito ou correto.

A realidade porém é outra. Um sistema que não é mais do que o produto de um a r -

ranjo de processos diversificados, que só funciona deficitariamente, ou se alimenta de sua

própria precariedade. Os nomes vêm dos mortos, mas os vivos não cultivam uma memória

dos nomes; não existe uma regra segura de transmissão que garanta nomes a todos; a

memória se torna um direito exercido por uns poucos, os quais não se limitam a

transmitir nomes dos mortos mas transmitem os seus também; muitos querem parecer

generosos e ninguém está livre de ser considerado avaro; é uma questão de honra dos

velhos não deixar ninguém sem nome porque, se os mortos são malevolentes, eles são

generosos e podem dar não só os nomes que conhecem como os que portam; nomes vão sendo

reivindicados, emprestados, recusados, jogados fora e, suspeito, inventados.

A singularidade da nominação Juruna deixa-se ler através da escassez fictícia de

nomes e sobre isso eu gostaria de apresentar uma hipótese. O fenômeno talvez seja e n -

gendrado, paradoxalmente, por uma identidade a mais que o grupo captura no exterior. Sob

um certo ângulo ao menos, a captura de Índios que são incorporados ao grupo, e nominados,

produz nas gerações seguintes um efeito de escassez. Quem descende de Índio não dispõe de

nomes de antepassados para dar aos filhos; estes recebem nomes Juruna, os quais cabe-

riam de direito a outros, que assim vão encontrar o seu tomando o que de direito cabe a

outrem. É assim que se constitui a experiência que os Juruna vivem em torno dos nomes

pessoais: tomando para si os nomes dos mortos, vão tomando ao mesmo tempo os nomes uns

dos outros, produzindo uma falta que se fará sentir mais adiante e, enquanto isso, quase
304

todos os filhos dos Juruna vão sendo incorporados ao grupo como se fossem estrangeiros.

Desta forma, podemos observar que se do ponto de vista individual um Índio traz um déficit

de nomes para alguém, do ponto de vista global ele propicia um excedente de

“estrangeiros” para a sociedade, no sentido de que o grupo, ao nominar os seus descen-

dentes, nomina “Índios” por muito tempo, e assim vai incorporando-os a si175.

175 Devo registrar uma lacuna de minha investigação. Eu não poderia afirmar com certeza que a

identidade sexual dos portadores de um nome seja um traço pertinente. É verdade que para os
nomes de que tenho informações o antigo portador e o portador atual são do mesmo sexo. Mas
nunca vi os Juruna distinguirem os nomes em masculinos e femininos, e uma jovem mulher porta
um nome pertencente a um homem vivo. Quero registrar também que existem menos relações
anagramáticas (e relações similares) entre os nomes dos homens que entre os nomes das mulhe-
res.
305

2. Vocabulário de parentesco

A terminologia de parentesco Juruna é uma variante de um tipo bastante difundido

na Amazônia e convencionalmente chamado de dravidiano por sua relação estrutural com o

sistema dravidiano da Índia do Sul (Dumont, 1975; Viveiros de Castro, 1993)176. Eu

passo aos dados dos quais forneço a listagem, diagramas e tabelas. Os termos aqui

apresentados são termos de referência e estão flexionados na primeira pessoa do singular,

conforme indica o sufixo de posse u- ou w- (este último é uma fricativa bilabial, sonora,

que em outros contextos eu grafo como ∫ ). Os termos marcados na listagem com um

asterisco apresentam denotata de gerações distintas. A colocação de denotata entre

parênteses indica que sua classificação pelo termo 6 é proibida apesar de logicamente

correta; o colchete indica que são classificados pelo termo 5 para suprir a exigência da

proibição.

Ego Masculino

1. we÷ãm¥ FF, MF, MMB, FFB, MFB

2. we÷ae FM, MM, FFZ, MFZ, MMZ, FMZ

3. upa F, MH, MZH


3.1. upa nana FB
3.2. upa i÷uraha /upa iza eFB/yFB

4. uja M, FW, FBW


4.1. uja nana MZ
4.2. uja i÷uraha / uja iza eMZ/yMZ

5. uaha* MB, WF, FZH [WM], MFBS, MMZS,


WB, ZH
ZS, DH, ZDH [SW], FBDS, MZDS,

6. uãïw¥a * (WM), MBW, WFZ


BW,WZ,WBW, MBSW, FZSW, WMBD, WFZD
(SW), ZSW, WBD

7 ua÷ida FZ, FFBD, FMZD

176 Em linhas gerais, por sistema terminológico dravidiano entende-se um sistema baseado numa

dicotomia entre consangüinidade e afinidade e que exprime uma regra de casamento entre primos
cruzados bilaterais, ou aliança simétrica. O termo consangüinidade não é usado aqui na acepção de
laço de sangue, e designa unicamente uma categoria terminológica oposta à da afinidade. Para
designar uma relação de sangue utilizarei o termo cognação.
306

8. u÷uraha eB
8.1. u÷uraha nana eFBS, eMZS

9. wiza yB
9.1. wiza nana yFBS, yMZS

10. uãïbi Z
10.1. uãïbi nana FBD, MZD
FMB
11. umã* MBS, FZS, MFBSS, MMZSS, FFBDS, FMZDS
ZSS

12. uza∂a * MBD, FZD, MFBSD, MMZSD, FFBDD, FMZDD


ZSD

13. umãmït¥mã WZH, MBDH, FZDH

14. uãnïa W

15. u∂ap¥ka S, MBDS, MBSS, FZDS, FZSS


15.1. u∂ap¥ka nana BS
15.2. u÷uraha iap¥ka / wiza iap¥ka eBS/yBS

16. ua÷ia D, WD, MBDD, MBSD, FZDS, FZSD


16.1. ua÷ia nana eBD/yBD
16.2. u÷uraha ita÷ia /wiza ita÷ia BD

17 we÷at¥ ZD, FBDD, MZDD

18 umitãma SCh, DCh, ZDCh

Ego Feminino

Os termos 1, 2, 3, 4 são os mesmos usados por um Ego masculino. Os termos 5, 6, 8, 12 e

13 apresentam denotata distintos:

5. uaha* HM, MBW, [HF]


BW, HZ
SW, BSW, [DH]

6. uãïw¥a * (HF), FZH, HMB


ZH, HB, HZH, MBDH, FZDH, HMBS, HFZS
(DH), BDH, HZS

8. u÷uraha eZ
8.1. u÷uraha nana eFBD, eMZD

9. wiza yZ
9.1. wiza nana yFBD, yMZD
307

FMB
12. uza∂a * MBS, FZS, MFBSS, MMZSS, FFBDS, FMZDS

13. umãmit¥ma HBW, MBSW, FZSW

19. udiia MB, MFBS, MMZS

20. uase FZ, FFBD, FMZD

21. uajija B
21.1. uajija nana FBS, MZS

22. usiua MBD, FZD, MFBSD,MMZSD,FFBDD, FMZDD

23. umãb¥a Ch, HCh, MBDCh, MBSCh, FZDCh, FZSCh


23.1. umãb¥a nana ZCh
23.2. u÷uraha mãb¥a/wiza mãb¥a eZCh/yZCh

24. unumã BS, FBSS, MZSS

25. umãb¥at¥ BD, FBSD, MZSD

26. umik† ChCh, BSCh, BDCh

27. umena H

Termos de aliança descritivos

Os termos que se seguem são aplicados a posições já classificados pelos termos 5 e

6 — sendo que o termo 6 é proibido. Trata-se, talvez, menos de um conjunto separado de

termos que de uma discriminação suplementar da classe uaha; o que compensaria tanto a

ausência de conteúdo geracional desta classe, como o recalque ideológico do conteúdo da

diferença sexual entre sogra e genro, e sogro e nora. Não são termos descritivos no sentido

estrito, pois se aplicam também a sogros e genros de irmãos do mesmo sexo, e à esposa de

MB (h.f.), ainda que ela não seja efetivamente uma sogra. São compostos com os termos

para F, M, S, D e Ch e os termos para cônjuge, os quais diferem conforme o sexo do f a -

lante, a saber: H é ap¥aka , W é ãnïa no vocabulário dos homens; H é mena e W é uai , no

vocabulário das mulheres.

Ego masculino Ego feminino

28. uãnïã itupa WF 32. umena itupa HF


29. uãnïã ija WM, MBW 33. umena ija HM
30. ua÷ia ap¥aka DH 34. umãb¥a mena DH
31. u∂ap¥ka ãnïa SW 35. umãb¥a uae SW
308

As tabelas abaixo fornecem uma visão aproximada do caráter sistemático do v o -

cabulário, ao preço da exclusão dos termos para os pais-, irmãos- e filhos- nana

(“classificatórios”), e do termo 13, umãmit¥ma , que não designa primariamente um

cognato, mas um afim de afim.

Termos de Parentesco - Ego Masculino

Homens Mulheres

Consangüíneos Afins Consangüíneos Afins

G+2 we÷ãm† umã we÷ae


FF, MF, MMB FMB FM, MM, FFZ, MFZ

G+1 upa uaha uja ua÷ida uãïw¥a


F, FB MB, WF, FZH, M, MZ FZ MBW
u÷uraha
GO eB, eFBS umã uaha uãïbi uza∂a uãïw¥a
wiza MBS, FZS WB, ZH Z, FBD MBD, FZD WZ, BW
yB, yFBS

G-1 u∂ap¥ka uaha u÷aia we÷at¥ uãïw¥a


S, BS ZS, DH, WBS, ZDH D, BD ZD ZSW

G-2 umã umitãma uza∂a


ZDS ChCh, BChCh, ZChCh ZDD

Termos de Parentesco - Ego Feminino

Homens Mulheres

Consangüíneos Afins Consangüíneos Afins

G+2 we÷ãm† uza∂a we÷ae


FF, MF, MMB FMB FM, MM, FFZ, MFZ

G+1 upa udiia uãïw¥a uja uase uaha


F, FB MB FZH M, MZ FZ MBW, HM
u÷uraha
GO uajija uza∂a uãïw¥a eZ, eFBD usiwa uaha
B, FBS MBS, FZS ZH, HB wiza MBD, FZD BW, HZ
yZ, yFBD

G-1 umãb¥a unumã uãïw¥a umãb¥a umãb¥at¥ uaha


Ch, ZCh BS BDH Ch, ZCh BD DH, BSW

G-2 umik†
ChCh, ZChCh, BSCh, BDCh

A fim de facilitar a exposição, tomemos um trecho conclusivo da análise de Dumont


309

que consideraremos como um modelo canônico do sistema dravidiano, para confrontá-lo

com o sistema Juruna.


“le vocabulaire de parenté dravidien, et avec lui les autres du même type, peut être
consideré dans ses grands traits comme résultant de la combinaison dans des
configurations précises de quatre principes d’oposition: distinction des générations
(construites en une échelle ordonné), distinction de sexe, distinction de
consanguinité identique à la relation d’alliance, et distinction d’âge.
La troisième distinction, la seule qui ne soit en rien biologique, est la plus
importante: le sistème contient une théorie sociologique du marriage sous la forme
d’une institution liée à la succession des générations, et suppose aussi bien que
favorise la règle du mariage des ‘cousins croisés’ comme un moyen de la mantenir.
D’où aussi le fait, bien conservé dans les groupes indiens, que les deux catégories
des consanguins et alliés comprennent tous les parents, sans tierce catégorie. On
peut comprendre cela sans avoir recours à l’organisation dualiste; l’opposition entre
consanguin et allié constitue un tout — un allié de mon allié est mon ‘frère’ —, le
marriage est en un sens la totalité de la societé, qu’il unit et en même temps sépare
en deux du point de vue d’un Ego.
Comment s’etonner dès lors si l’Inde en fait la cérémonie par excellence? Là est
peut-être aussi l’explication de la stabilité et de la vitalité du vocabulaire dravidien,
qui a intrigué bien des anthropologues depuis Morgan” (Dumont, 1975: 99-100).

No sistema Juruna atuam todos os quatro princípios de oposição aí apontados; no entanto,

eles não se aplicam de modo idêntico às categorias da consangüinidade e da afinidade, s e -

gundo Ego seja homem ou mulher. Com efeito, ao lado das distinções usuais do sexo de

Alter, o sexo de Ego é uma variável importante, que responde por várias assimetrias entre

o vocabulário masculino e o feminino, sendo que este último é mais próximo do modelo

canônico que o primeiro. Idade: a idade relativa só distingue consangüíneos do mesmo

sexo177. Geração: não há escalonamento ordenado, de modo que nem todas as distinções na

categoria da consangüinidade têm correlatos na categoria da afinidade — MB e ZS (h.f.) são

classificados por um mesmo termo ( uaha ), também utilizado para cunhados, sogro e

genro, exceto que o MB é diferenciado por um vocativo (aapa)178. Eu não saberia dizer se

o significado focal do termo uaha é irmão da mãe ou pai da esposa, mas estou certa de que

177 O termo u÷uraha, aplicado por um homem a eB e por uma mulher a eZ, tem um emprego muito

mais vasto; segundo o contexto pode significar irmãos do sexo oposto mais velhos, os pais, os
avós e, finalmente, o homem mais velho do grupo, para marcar seu estatuto natural de chefe.
Neste caso o termo é flexionado na primeira pessoa do plural. O termo c a p i t ã o , amplamente uti-
lizado em narrativas, é sinônimo de i÷urahase (“o mais velho deles”).
178 À exceção do MB, todos os uaha são tratados pelo nome. Porém, quando se está muito

bêbado, emprega-se o próprio termo de referência como vocativo.


310

não é cunhado179. De todo modo, quando apontam a categoria casável, os Juruna — quer

dizer, os adultos, pois as crianças e os jovens têm como única premissa que todo uza∂a

(“primos cruzados do sexo oposto”) é cônjuge virtual —, geralmente especificam a

M B D180. Ademais, a condição de sogro do M B é apontada na classificação de sua esposa


pelo termo de aliança descritivo W M . O casamento avuncular é proibido, mas tolera-se o

casamento com a filha de irmã classificatória. O termo que designa cunhados do sexo oposto

( u ã ï w ¥ a ), aplicado a posições das três gerações centrais, apresenta um conteúdo de

conjugalidade virtual e é por isto cercado de cuidados, conforme veremos na seção

seguinte.

Apresenta ainda outros aspectos que o afastam do modelo canônico. Primeiro, a

presença de “primos cruzados” nas gerações distais. Conforme demonstra Dumont, o s i s -

tema dravidiano opera uma “fusão” das categorias da consangüinidade e da afinidade nas

gerações distais, de forma que a relação “avô/neto” não traduz uma oposição entre tais

categorias181. A operação de fusão permanece incompleta no sistema Juruna:

Ego masculino: FF = MF = MMB ≠ FMB (= MBS/FZS); FM = MM = FFZ = MFZ;


SCh = DCh = ZDCh ≠ ZSS, ZSD (= MBS, MBD/FZS, FZD);

Ego feminino: FF = MF = MMB ≠ FMB (= MBS/FZS); FM = MM = FFZ = MFZ;


ChCh = BDCh = BSCh
Além disso, ela, a fusão, não é idêntica quando se passa do homem à mulher.

A situação dos “primos cruzados” destas gerações é a seguinte: quase todos os

homens ignoram (ou pelo menos fingem ignorar) como se classifica a relação FMB-ZSS, e

as mulheres dão preferência a outras possibilidades de leitura. Kadu, por exemplo, disse-

me ser avô ( w e ÷ ã m ¥ ) de um determinado ZSS porque o menino assim o chamava. De um

outro ZSS, afirmou ignorar o termo apropriado, lembrando que Alter não se dirigia a ele

179 Baseio-me no fato de que sempre que pedi aos Juruna para descreverem a relação uaha men-

cionada em relatos (que eu naturalmente subentendia como ‘cunhados’), obtinha a descrição i r -


mão da mãe/filho da irmã, ou sogro/genro. Eu diria que, grosso modo, em relatos, a relação de
afinidade na mesma geração é rotulada pelo termo umã.
180 Quando aparecem em itálico e negrito, estas abreviaturas não designam necessariamente po-

sições genealógicas; antes, traduzem expressões dos Juruna, que, aliás, as constróem na mesma
seqüência da língua inglesa: uja ajija itaia quer dizer “mother’s brother’s daughter”. São usadas
por eles tanto para precisar uma relação genealógica quanto para designar uma relação classifi-
catória.
181 A propósito, estendem-se os termos destas gerações para G + 3 e G - 3, acrescentando-se,

ou não, a palavra “mais”; por exemplo: bitu-umik† .


311

por um termo de parentesco, e pediu um momento para interrogar a esposa. A resposta

desta foi automática: é um primo ( umã ); entretanto, acrescentou, como Alter é filho de

uma uza∂a (FZD), ele deve ser tido como S . Interrogando-a a respeito do termo indicado

para um terceiro ZSS do marido, ela disse que ele também é um primo, porém sendo ao

mesmo tempo um y Z D S dela mesma, o menino tem ao seu marido e a ela como avô e avó

( we÷am¥ e we÷ae ).

Além desta precedência de outras relações sobre a afinidade virtual nas gerações

distais, cabe notar que a troca de irmãs e o casamento com M B D impossibilitam a i r -

rupção da afinidade nestas gerações: se Ego se casa com MBD, seu MB será MF de seus f i -

lhos (e também FMB dos mesmos). Note-se finalmente que do ponto de vista da aliança o

FMB e o ZSS são estruturalmente muito diferentes: o primeiro não é irmão de uma

“prima” e sim de uma “avó”; enquanto este é um puro tomador potencial, o outro é um

puro doador. Viveiros de Castro (comunicação pessoal) chama a atenção para o fato de que

o que se tem aí é um deslocamento de um grau do avunculato: assim como o casamento com

FZD pode ser interpretado como um deslocamento do mesmo tipo (eu não me caso com ZD,

mas meu filho sim), a equação dos Juruna (cuja ideologia proíbe o casamento com ZD)

permite a possibilidade de casamento com a filha de ZS.

Um procedimento típico nos sistemas dravidianos, e que se toma como índice de

aliança simétrica, é a classificação de filhos dos primos cruzados de sexo oposto pelos

termos que Ego aplica aos próprios filhos, uma vez que só podem ser gerados por irmãos

do mesmo sexo de Ego. Em contrapartida, os filhos dos primos cruzados do mesmo sexo são

classificados, por um homem, como equivalentes a ZS e ZD (e por uma mulher como BS e

BD), uma vez que gerados por irmãos de sexo distinto de Ego. No sistema Juruna, a s i -

tuação é diferente: quando os primos cruzados do mesmo sexo não atualizam a afinidade,

casando-se com uma irmã (ou um irmão) de Ego, seus filhos são equivalentes a Ch. D i s -

sipa-se assim a variável sexual na classificação dos filhos de primos cruzados. A relação

de afinidade entre primos cruzados, portanto, só é transmitida para a geração seguinte por

aqueles que efetuaram uma relação de aliança, tornando-se uaha. Meus filhos só são afins

virtuais dos meus afins atuais, e se tornam consangüíneos dos meus afins virtuais e seus

filhos. A afinidade atual se transmite, ao passo que a afinidade virtual se muta em con-

sangüinidade. O sistema parece pois obrigar a aliança a passar apenas entre grupos obje-

tivamente ligados por casamento nas gerações superiores.

Uma das contribuições mais importantes da análise de Dumont vem de sua de-

monstração de que não existe um vínculo necessário entre organização dualista e sistemas
312

terminológicos de tipo dravidiano, rotulados por Needham de “sistema de duas seções”, e

da distinção entre sistemas que operam com fórmula global e sistemas, como o dravidiano,

que operam com fórmula local (Viveiros de Castro, 1990 e 1993). Para o segundo tipo,

Dumont sustenta a existência de um nível de integração mental, onde opera uma lógica

dicotômica formulada nos seguintes termos: (a) consangüíneo de consangüíneo é um con-

sangüíneo, (b) consangüíneo de afim é afim, (c) afim de consangüíneo é afim, (d) afim de

afim é consangüíneo (Dumont, 1975). O sistema Juruna não se deixa reduzir a estas

equações, de sorte que a noção de organização dualista é um recurso analítico não somente

desnecessário como não-pertinente.

Dito de outra forma, embora existam equações que exprimem o casamento com a

prima cruzada bilateral — como MB/ZS = FZH/WBS = WF/DH, MBD = FZD, MBS = FZS

—, não se trata de um sistema de duas seções. Pois FZ ≠ MBW. Tomando-se o ponto de vista

feminino, a noção de duas seções dissipa-se ainda mais claramente: MB ≠ FZH, FZ ≠ M B W

(onde FZH é um cônjuge virtual indisponível). Observa-se o mesmo na geração de Ego. Em

lógica dravidiana ortodoxa, a esposa de meu primo é minha irmã; contudo sua posição no

sistema Juruna é a de afim: as esposas dos primos cruzados também são cônjuges poten-

ciais (uãïw¥a). Tampouco o termo que se aplica ao MBDH ou FZDH deriva da categoria da

consangüinidade; trata-se da relação umãmit¥ma , que significa afim de afim e é marcada

como relação de companheirismo.

Aqui o parentesco conflui com o político, pois este é um termo que se aplica tam-

bém aos estrangeiros com quem se tem relações amistosas, e que por isto os Juruna glo-

sam como “amigo”182. Uma mulher, Duyadi, provocando muito riso às outras que assis-

tiam à nossa entrevista, definiu com a máxima clareza o que é uma umãmit¥ma (para um

Ego feminino: MBSW, FZSW): umiw¥ — termo de referência usado outrora por mulheres

que partilhavam o mesmo marido183. O amigo, este “terceiro incluído” (‘includente’ ou

‘inclusivo’; Viveiros de Castro, 1993), é de fato irredutível a cada uma das duas catego-

rias básicas, consangüinidade e afinidade, no que ela é uma síntese de ambas. Segundo

Mareaji, o amigo é semelhante ao primo; ele está no lugar de irmão, segundo Areãdü. Se as

categorias consangüíneo/afim operam situando diferentemente os homens segundo sua

relação diferencial com as mulheres, a categoria amigo faz o seguinte: como um par de

irmãos, dois amigos podem partilhar (ou concorrer por) uma mulher — teoricamente

182 Quando esta relação une ou dois Juruna ou dois objetos, prefere-se a glosa “companheiro”.
183 As Juruna afirmam que a poliginia só seria inteiramente correta se também as co-esposas

fossem primas entre si.


313

mesmo trocar de esposas — e, como dois primos, podem trocar irmãs. Nesta geração tem-

se portanto 2 +1 termos de afinidade: primos, cunhados e amigos.

Há portanto índices de que o sistema supõe que a aliança se trave entre um mínimo

de três grupos. Assim compreendo a classificação dos cônjuges de afins como cônjuges

virtuais e a classificação dos afins de afins como afins. Parece-me, pois, que existe e x -

pressão terminológica do “regime de aliança” dominante na Amazônia, entre os grupos que

operam com terminologias de tipo dravidiano: a troca multibilateral, cujo sistema “pode

ser minimamente representado por um modelo a três parceiros A, B e C que se casam b i -

lateralmente entre si, de tal forma que aliado de meu aliado também é aliado ”(Viveiros de

Castro, 1990: 46); e cujas estratégias de aliança “conjugam dispersão sincrônica e

reiteração diacrônica, criando campos matrimoniais ‘estrelados’, concêntricos, onde a

transitividade do cálculo dravidiano AA=C conhece limites muito estreitos, se é que se o

aplica...” Viveiros de Castro, idem: 76)184.

A classificação dos filhos dos primos cruzados do mesmo sexo revelava-nos já uma

relativização dos princípios (b) e (c) da lógica dicotômica do modelo canônico: o consan-

güíneo de afim atual é afim, enquanto o consangüíneo de afim virtual é consangüíneo. A

classificação dos cônjuges de afins como cônjuges potenciais, e a aquela dos afins atuais de

afins virtuais como amigos revelam uma relativização do princípio (d): afim de afim

também é afim. A mesma lógica também se exprime na classificação da relação ZDH-WMB

(h.f.) pelo termo uaha185.

A categoria da afinidade aparece-nos então como algo mais que termo unívoco de

uma oposição com a categoria da consangüinidade. Uma dimensão do sistema é a oposição

184 Viveiros de Castro propõe, também, uma distinção dos sistemas de troca restrita segundo o

caráter global ou local da fórmula de troca: o primeiro tipo corresponde à troca restrita exclu-
siva (isto é, ao clássico modelo lévi-straussiano da troca restrita), e o segundo à troca restrita
inclusiva ou multibilateral. Além disso, acrescenta: “Há duas situações de multibilateralidade a
distinguir (…). Na primeira, os parceiros de cada troca singular não são redutíveis a segmentos
de uma bipartição global da sociedade, mas o sistema respeita o cálculo inerente ao tipo ‘troca
restrita exclusiva’: aliados de aliados são interditos. Este seria o caso da Índia do Sul (Dumont,
1975: 100), onde a terminologia assimila aliados de aliados a consangüíneos. Ainda assim,
Dumont registra que tal automatismo é limitado (…). O segundo tipo de multibilateralidade é
aquele onde aliado de aliado não é classificado como consangüíneo, mas como ‘não-parente’, e
assim com aliado potencial. Tal parece ser o caso de muitas sociedades sul-americanas (…); aqui,
a natureza ‘local’ do sistema de troca restrita inclusiva se manifesta plenamente” (Viveiros de
Castro, 1990: 93-4 n. 53).
185 Registre-se ainda que os pais de uma pessoa que se casa com um estrangeiro classificam os

pais deste como ‘amigo’ e ‘cunhado do sexo oposto’.


314

fundamental instauradora da aliança — a dicotomia entre consangüíneos e afins. Outra

dimensão, articulada à polarização entre afins virtuais e afins atuais, é a oposição entre o

domínio do parentesco e o domínio de uma afinidade suplementar, excedente, exprimida

segundo o princípio de que afim de parente (de não importa que categoria) é afim.

Os fatos da Índia do Sul que Dumont ressalta, no trecho acima citado, como decor-

rentes da estrutura dravidiana, naturalmente, não se encontram entre os Juruna. Há lugar

para uma “terceira categoria”, ou pelo menos uma terceira posição: “o aliado de meu

aliado” não “é meu ‘irmão’”, nem bem exatamente meu afim. O casamento não “é a tota-

lidade da sociedade” nem “a cerimônia por excelência”, muito embora a afinidade virtual

ou potencial seja o pano de fundo do rito sociológico elementar: a cauinagem. Finalmente, a

“a estabilidade e a vitalidade do vocabulário” estão fora de questão, mas chocou-me o fato

de que ele não parece satisfazer inteiramente os anseios dos (homens) Juruna: estes u t i -

lizam freqüentemente o termo estrangeiro p r i m o como forma de tratamento de consan-

güíneos classificatórios e afins classificatórios das gerações do MB e do ZS, a fim de

produzir uma espécie de excedente de afinidade que ora está aquém ora além das possibi-

lidades conjunturais ou estruturais do casamento186.

Na seção seguinte investigaremos, etnograficamente, outros aspectos do problema

tratado aqui de um ponto de vista apenas formal.

186 Para uma análise das inflexões do paradigma dravidiano nas sociedades amazônicas, v e r

Viveiros de Castro, 1993.


315

3. Mamãe chama meu marido de nora e outras confusões

Quando perguntei a Mareaji se ele podia responder ao meu interrogatório dos

termos de parentesco que aplicava ou podia aplicar às pessoas, ele me aconselhou a desistir

da investigação afirmando que havia tanta complicação nas relações que era impossível

decidir quanto ao modo correto de classificar as pessoas. Esta complicação derivaria de

casamentos impróprios:

— No começo foi que estragou assim, porque a gente casa quase com prima, quase com
irmã, pode dizer...
— Você quer dizer com prima ou com irmã?
— Quase com irmã... então estragou tudo, então não está certo mais. É por isso que
agora está complicado.
— Esses casamentos foram feitos no tempo em que os Juruna quase acabaram? [Pensei
nisso porque dois casamentos com filhas do irmão do pai foram contraídos no começo da
década de 50 quando a população do grupo se achava muito reduzida. A década de 40 é
dita “o tempo em que os Juruna quase acabaram”.]
— É. Os homens casavam quase com irmãs. Não com irmãs de verdade, não, quase-
irmãs. Ele gostava dela e ela dele, e faziam o casamento. Foi isso aí que não deu certo.
Não dá para saber mais bem direitinho, está assim meio complicado.
— E antigamente não era complicado, não?
— Parece que faz tempo... ah! sempre foi assim complicado, porque quando tinha muita
gente não era bom, não. (...)
Como é geral aos homens, Mareaji não é um bom conhecedor de equações t e r m i -

nológicas, não cultiva a memória dos usos dos termos pelo conjunto dos Juruna, e detesta

falar de parentesco. Por isto, depois de me dizer o que transcrevi acima e querendo por

logo um fim à entrevista, afirmou que tinha apenas dois p a r e n t e s , Yãrunaë (MZS) e

Kurewaji (FBS). Lembrei-lhe de imediato a existência de Üdüku (B), concordou que este

era seu p a r e n t e também, mas não deixou de repetir bastante enigmaticamente que seus

únicos p a r en t es eram os dois anteriormente citados. De outra vez, ele me interpelou com

uma questão intrigante: queria saber se sua vida era muito grande, porque, esclareceu em

seguida, ele era o homem que mais tinha p a r e n t e s : ninguém tinha tantos cunhados quanto

ele (sua esposa é irmã do mais numeroso grupo de irmãos que há na tribo — ela tem 7

irmãos do sexo masculino!).

Minha investigação da classificação de parentesco achava-se, parecia-me, d u -


404

Os Panara, em 1990, após sua mudança para o rio Arraia, geralmente pediam pouso aos

Juruna nas viagens que faziam Xingu abaixo até sua antiga aldeia. À exceção de um jovem

que usava o português para se comunicar com os Juruna, ninguém desse grupo era con-

vidado para beber, em respeito ao seu pouco interesse por cauim e, principalmente,

porque se invoca, com base numa tragédia que atingiu os Panara, anos atrás, matando por

envenamento três ou quatro pessoas, que eles não são donos de mandioca. Mas todos eram

recebidos com amizade.

No verão de 1990, vários grupos de Panara desceram o rio em busca de tracajá,

conforme entenderam os Juruna. E vários subiram o rio levando os seus tracajás, que

despertavam o olho grande dos Juruna. Num dia de cauinagem, um grupo de umas dez

pessoas chegou em um barco de metal que conduziam a remo, com uma grande carga c u i -

dadosamente coberta com plásticos, cobertores e roupas. Os Juruna estavam bêbados, os

homens tiveram a idéia de saqueá-los, gritando para todo lado ao avistar o barco. Foram à

beira do rio cumprimentá-los amistosamente e trocaram brincadeiras com o jovem que

falava português. As mulheres e meninas começaram a chegar ao porto de pouco em pouco,

cada uma com uma porção de farinha para trocar por um tracajá. As Panara mal puderam

esconder seu descontentamento, mas como se fosse impossível furtar-se à transação

acabaram perdendo bem umas 50 unidades. Já que a transação estava em curso, o piloto do

barco pediu gasolina para seguir viagem até a aldeia. Foi-lhes dito que eles próprios não

tinham, mas eu sim263. Dei-lhes a gasolina para diminuir sua decepção e fui incentivada a

tomar mais um tracajá. O resto da jornada se passou divertindo-se com o saque e a leitura

pornográfica que isso suscitou. Perguntava-se um ao outro se ele, ou ela, apreciava cabeça

de tracajá, atribuía-se este desejo ao companheiro, alguns exclamavam em bom português

que não eram viados. Perguntava-se às mulheres se queriam cabeça de tracajá, os homens

263 Havia 100 litros de gasolina na aldeia, comprados por mim; 80 litros eu dera aos Juruna e
20 eram meus; minha parte foi levada pelos Panara, os quais, contudo, pagaram-me tão logo
puderam a gasolina. Naturalmente, o que quer que eu representasse para os Juruna, eu também
ficava muito suscetível ao conflito. Se ordinariamente tentavam proteger o que eu possuía,
bêbados, ocasionalmente podiam colocar minhas coisas à disposição dos Índios quando estes lhes
pediam algo que eles possuíam e não queriam dar. Revoltei-me um dia em que minha única
lanterna fora “emprestada” a um Kayabi. De resto, para mim, a cauinagem já foi a encarnação
do (e o exercício sobre o) que eu havia lido no (ou a propósito do) Ensaio sobre a dádiva. Isso me
deixava apavorada. No início da pesquisa, parecia-me que os bens que eu guardava para “pagar
informantes” estavam prestes a ser predados. O chefe tem o dever de informar o antropólogo, e
este tem o dever de pagar com bens industrializados ao grupo do chefe, e o melhor é fazer isso
de um golpe, na chegada, e não guardar nada. No caso de uma mulher, a melhor moeda para se
pagar informação é mesmo o cauim: este constrange o recebedor a se comunicar muito mais
facilmente do que bens ou dinheiro.
405

dando gargalhadas, as mulheres risos envergonhados, algumas mesmo cuspindo para bem

exprimir nojo.

A recepção alegre aos Índios compõe a política de boa vizinhança. Contudo, bêbados

podem aproveitar-se da ocasião para resolver atritos particulares surgidos durante a

cauinagem ou no passado. Atritos que dizem respeito a si próprio ou aos parentes próximos

ou distantes. Assim um rapazinho decidiu acertar as contas com um Suyá que recentemente

ironizara um Juruna impossibilitado de andar por uma grande ferida na perna, e com cuja

filha o Suyá fora casado por alguns meses havia já uns dois anos. No Diauarum, para onde

fora levado o doente, jogava-se uma partida de futebol, quando o Suyá disse ao doente:

“Levanta! vem jogar bola!”. O rapazinho bêbado, acompanhado de um pequeno bando,

abordou o Suyá com uma cuia na mão, cheia d’água suja, molhou-o e derrubou-o com um

empurrão. O fato chegou no mesmo instante ao conhecimento dos adultos. Mareaji apres-

sou-se e afastou o Suyá do rapaz, dizendo ao último que não devia matar o Índio, porque o

tempo da guerra havia passado e todos hoje são “amigos”. Pensar-se-ia com razão que

todos os adultos estavam de acordo com a intervenção, mas ao mesmo tempo nem por isto se

deixou de dizer momentos depois ao s a l v a d o r d e Í n d i o (como foi chamado de forma

irônica) que o seu gesto fora o de um tolo: ele salvou um Índio e um Índio jamais o salvaria

numa circunstância semelhante.

Comigo também, um homem entendeu que era bom me matar. O caso se passou no

verão de 1990 e me parece singular por não ter se passado durante a embriaguez coletiva.

Havia nesse dia dois cauins, um motivado por um trabalho coletivo, o outro motivado

apenas pelo prazer de beber, e cuja dona era justo a mãe daquele homem e dona da casa

onde eu morava, prima minha. Deste ponto de vista, ele era meu filho; do ponto de vista de

minhas irmãs, ele era meu irmão: do de sua mulher, minha irmã, ele era meu cunhado;

nós mesmos nunca nos tratamos por uma relação (ou atitude) de parentesco e nos consi-

derávamos grandes amigos — embora seja verdade que em toda aquela etapa de campo ele se

mostrava demasiadamente brincalhão (como se pautasse sua conduta pela relação

“cunhados de sexo oposto”), enquanto eu não só não era receptiva como não escondia que

achava seus ditos muito grosseiros (“seu marido está comendo puta na cidade”, era uma

nota constante). O cauim do trabalho coletivo foi aberto ao amanhecer. No meio da manhã

todos os homens saíram para o trabalho, levando uma boa porção para tomar durante a

navegação, exceto o meu amigo, que não podia participar por causa de uma seqüela adqui-

rida numa cirurgia de um tumor cerebral; sua perna estava semi-paralisada. Eu tinha

comprado no dia anterior uma porção de munição sob pedido (feito numa cauinagem) e
406

orientação do irmão de meu amigo. Ele listara as armas existentes na aldeia, 22 armas,

com o nome dos respectivos donos e definira que tipo de munição era preciso comprar em

função dos diferentes tipos de arma. Eu temia que o retorno dos homens, culminando com a

abertura do outro cauim, implicasse um saque da munição e eu fosse responsabilizada por

aqueles que não conseguissem avançar, que então ficariam me pedindo a sua parte sem que

eu tivesse o que dar. A munição foi dividida em 22 partes fracionadas quase matemati-

camente, como parece ser necessário na opinião de um branco. Cada parte foi entregue à

esposa ou mãe do dono da arma, toda a divisão tendo sido facilitada por várias mulheres que

ajudaram a medir o chumbo com uma cuia. Ao fim, a filha de meu amigo veio me dizer que

seu pai mandara pedir pólvora. Seu nome não estava na lista, fato que eu nem tinha p e r -

cebido, e imaginei que seu irmão não o considerara porque ele estava impossibilitado de

caçar. Mas a verdade era antes que ele não tinha arma, como vim a saber pelas mulheres,

que compreenderam tanto quanto eu que não houvera injustiça. Houve contudo. Minha mãe

estava torrando farinha, minhas irmãs estavam ao lado dela observando, meu amigo estava

presente com os filhinhos e a esposa. Eu quis me juntar a elas. Chegando, levei do meu

amigo que estava sentado num banco um forte tapa na perna. Cravei as unhas nas costas

dele e deslizei a mão, arranhando-o feio. Ele se levantou tomando o facão que estava ao lado

e trouxe o facão ao meu pescoço. Primeiro falou ele, e quando eu mesma comecei a falar ele

ficou mudo, porque eu bem diria que os Juruna não parecem conhecer o bate boca. Disse

que me mataria, passara o tempo em que eu era generosa, ele precisava da pólvora justo

porque estava impossibilitado de trabalhar, a pólvora seria utilizada para trocar com

Índios por coisas que ele não podia comprar. Sua esposa ficou nervosa, minha família ficou

tensa mas impassível, a esposa disse várias vezes que ele estava bêbado, que estava falando

à toa, bravo à toa, meu amigo estava furioso. Eu sabia que ele gostava de mim e que ele

sabia que eu gostava dele. Não acreditei que o facão cuja lâmina roçava meu pescoço che-

gasse a fazer minha cabeça rolar. Mas também acreditei, lembrando-me do que me dissera

tempos antes um Juruna: “Eu estou vivo para morrer”. Era verdade. Desafiei meu amigo,

porque se ele estava bêbado eu também tinha bebido, e minha conduta foi horrível, e n -

vergonhante: desenvolvi o argumento de que ele era ingrato. Lembrei-lhe as duas visitas

que lhe fiz em Brasília por ocasião da cirurgia, as roupas, as comidas, o leite e os choco-

lates que lhe comprara, as lágrimas de pena quando o vi hemiplégico. Frisei que apenas ele

era ingrato, que todos os Juruna podiam contar comigo quando estivessem sofrendo na c i -

dade; que ele que ficasse doente de novo, que precisasse de mim e esperasse o meu dinheiro

e minha visita. Gritei mais do que ele, olhos nos olhos, e de vez em quando ele retraía o
407

facão e trazia-o de novo ao meu pescoço. Podia-se talvez ouvir o escândalo em qualquer

ponto da aldeia, mas nenhuma mulher e nenhuma criança veio até nós. Um grito distante

dizendo que a canoa do dono do trabalho apontara na curva do rio pôs fim a nossa briga. Não

voltei mais em minha casa, fiquei ao léu entre uma casa e outra onde nada me foi pergun-

tado. Mais tarde, com a chegada dos homens, três deles com quem eu bebera de manhã

sentaram-se comigo à porta da casa do chefe e me pediram para relevar o fato porque a

operação na cabeça deixara o meu amigo bobo ( ÷ ë ü ) , acentuando uma tendência que ele j á

apresentava uma vez que se casou com a irmã. A cauinagem à porta de minha casa estava

em curso, uma parte dos Juruna decidiu me embriagar, meu amigo estava em minha casa,

na companhia da outra parte dos Juruna; nem ele saiu nem eu entrei. Ao entardecer co-

meçou a dança. Eu me dava conta de que todos os Juruna estavam reunidos do lado de fora, à

exceção dele, que devia estar sozinho dentro da casa. Um Kayabi, casado com a prima dele e

morador de Tubatuba, me chamou para entrar, hesitei, refleti e fui. Lá, o Kayabi me disse

que ele, o outro, queria falar comigo; já me aproximando, ele mesmo disse: “Vamos amigar

de novo”. Perguntei se podia lhe dar um beijo, desculpando-me de os Brancos serem a s -

sim, ele estendeu-me o rosto. Disse-me em tom muito amistoso tudo o que queria; p e r -

cebi, por inúmeros indícios, que tudo resultava também de uma rede de fofocas que se

difundia a meu respeito e que, na verdade, todos os Juruna queriam me dizer o mesmo.

Tratava-se de minha conduta que havia mudado sensivelmente. Era minha última viagem de

campo, eu sabia que não tinha tempo a perder fazendo cauim, navegando, dando aulas para

homens e crianças. Passava grande parte do dia traduzindo, conferindo traduções, p r e -

enchendo uma lista de questões que a leitura do manual de etnografia de Marcel Mauss

suscitava. Eu estava, pois, diferente: Será que você ficou preguiçosa? será que você não

gosta mais da gente? as mulheres estão pensando isso… — questões que talvez tenham sido

comentadas longamente, naquela mesma tarde, entre os que ficaram bebendo em casa com

ele.

Parece existir também a possibilidade de mulheres bancarem o papel de guer-

reiras. Eu nunca vi o fenômeno, mas acabei envolvida num, embora estivesse ausente da

aldeia havia 17 meses. Um grupo de cinco homens, dentre os quais desta vez estava o chefe,

deixou uma cauinagem no meio, para partir em direção a uma cidade chamada Marcelândia,

bem distante de Tubatuba, com o fim de fazer-me uma consulta por telefone. Eu não estava

em casa e um Juruna que conhecia meu marido conversou com ele. Duas histórias se

cruzavam. Achava-se entre os Juruna uma pesquisadora, e um Índio teria dito a eles, por

ocasião da sua chegada, que eu tinha ficado rica com dinheiro ganho do Museu Nacional e
408

não voltaria mais para sua aldeia. Os Juruna, alegando falta de generosidade, não queriam

a pesquisadora (cujo projeto era parte de um projeto mais amplo que fora assumido pela

administração do Parque como sendo de interesse das comunidades). Durante a cauinagem,

as mulheres entenderam que deviam matar a Branca a pancadas. Eu não sei como se chegou

a um acordo entre elas e os homens, mas o fato é que o homicídio foi submetido a uma

condição: caso fosse verdade o que dissera a meu respeito o Índio, isto é, caso fosse verdade

que eu não voltaria mais a Tubatuba, as mulheres matariam a Branca, e caso eu fosse

voltar ela ficaria livre para voltar para a casa dela. Naturalmente, meu marido disse que

eu voltaria sim, as mulheres não deviam matar a pesquisadora. Nunca, contudo, ao r e -

tornar ao campo, obtive uma palavra positiva sobre esta história, ninguém tinha visto,

ninguém sabia de nada, simplesmente que ela lá dormiu seis noites e foi embora com a

promessa de voltar. Um homem me disse que ela era muito boa, pois lhe tinha dado antes de

partir o seu canivete; e uma mulher se disse amiga da moça, desde que esta última a salvou

do ato de suicídio que estava prestes a cometer durante uma cauinagem. O marido dessa

mulher encontrava-se em um Posto havia alguns meses, ela estava se sentindo tão aban-

donada que pretendeu morrer afogada (os Juruna, a propósito, são grandes nadadores). As

duas ficaram tomando banho de rio durante (parece) horas, a Juruna sendo consolada e

estimulada a esquecer seus pensamentos sombrios.

Por outro lado, a agressividade está longe de não transbordar no próprio grupo. Um

traço notável da cauinagem é que, sob a alegria da sociedade, se desenrola uma variedade de

afetos. Enquanto fim visado e atribuído à embriaguez, a alegria percorre a cauinagem desde

a reunião dos homens, crescendo na reunião das famílias nucleares, para ser finalmente

apreendida, dominada e usada — experimentada — como canto e dança coletiva. Existe

contudo de fato um limiar em que a alegria de uns começa a incomodar outros. Casais co-

meçam a reclamar no cônjuge, e pais nos filhos solteiros, o fato de que ele (ou ela) está

bêbado, como se não fosse para estar, e como se a embriaguez fosse desonrosa. É que o

cauim não é fonte de alegria sem despertar ao mesmo tempo, de um lado o ciúme, de outro o

desejo sexual ilícito. Conforme me disse uma mulher, os homens se interessam muito por

vagina nova. Resulta assim que, vendo-se de longe, os Juruna formam um alegre bando de

bêbados, onde se dança, canta, bebe e fala. Entrando-se nesse bando, vários são os pequenos

dramas pessoais em que uns chateiam e outros são chateados por causa de sexo, em que se

chora de insatisfação, com alguns se deprimindo tanto que confidenciam, às vezes em

pranto, seu desejo de ir embora, para viver entre Índios, ou morrer.

Tanto quanto a alegria começa a ser minada de fora, por outrem, há um fator ligado
409

à própria lógica da embriaguez que mina a alegria de dentro. Em alguns indivíduos, a

embriaguez evolui da alegria para um sentimento indomável, anti-social, uma chamada

“raiva”, como o seu ponto culminante. Uma categoria social específica, os homens jovens

(na apreensão Juruna, isso inclui todos os que não são avós), atravessa esse limiar ou

atinge este cume. Sua experiência é assim comparável àquela vivida pelas velhas. Estas

rememoram os finados seus parentes e sofrem uma tristeza doce, aqueles se lembram de

seus inimigos, mostram-se violentos, com vontade de matar. A experiência dos velhos é

bela e desperta alegria, a dos jovens é feia e intimida todo mundo. Às vezes, a raiva se

exprime em longos monólogos (em português tanto quanto em Juruna), em que se conta a

história da morte de um ou mais antepassados mortos por Índios e em que se promete

vingança. O olhar do Juruna nestes momentos é tão ameaçador, seus gestos, nos quais se

esmera para produzir uma bela performance, são tão bruscos que nunca me senti à von-

tade para gravar suas falas. Às vezes, e este é o caso mais freqüente, a experiência consiste

numa violência muda, em que não se chega a saber o que se passa na mente do bêbado. O

corpo enrijecido, o olhar furioso, um gesto brusco, um balbucio de palavras trôpegas e

indelicadas. A notícia se propaga no mesmo instante, fulano está bravo, a música cessa,

todos acorrem à casa do cauim, porque, seja coincidência ou não, geralmente ele se e n -

contra diante da canoa, tendo por vezes ainda uma cuia com bebida na mão. Todos acorrem

dizendo e repetindo que fulano está bravo, em um clima de pânico (mas os homens não

entoam o alarido ensaiado por ocasião do emborcamento acidental de uma cuia). As crianças

que vêem o pai bravo se amedrontam, as menores chorando por não entenderem o que se

passa, as maiores fugindo com pavor, a esposa fica branca de medo, os pais perdem a cor da

face de tanta vergonha (e não sei se também por intimidamento). Aos Juruna não importa

o motivo que poderia ter despertado o ódio. Somente a mim podia ocorrer a pergunta: está

bravo por que? Está bravo porque está bêbado — o que poderia ser melhor formulado a s -

sim: ele está bravo, logo está bêbado.

Mas existe bem, conforme explicou-me Wereade, uma trama que fornece conteúdo

ou razão subjetiva para a raiva264. Na linha de frente, situa-se a “fofoca feminina”, e

atrás o que se ouve sob a forma de brincadeira. O bêbado se ofende com brincadeiras, não,

porém, com alguma que se faça com ele naquele momento, mas com alguma da qual se

“recorda” e que pode ter sido dita numa outra cauinagem. As brincadeiras, como os p r ó -

264 Sempre me pareceu que seria indelicado de minha parte investigar diretamente os episódios
de raiva com os envolvidos.
410

prios Juruna sabem, não se esgotam nos ditos firmados como tradição, mas envolvem

observações a respeito de fatos da vida individual feitas com o duplo intuito de brincar e

ridicularizar. Em suma, sob o bom humor característico, faz-se passar também muita

ironia; a ironia é uma coisa que as pessoas relevam (embora guardem a lembrança por

muito tempo), mas de que os bêbados podem se recordar furiosamente. Esta interpretação

não dá conta do fato mais importante, a saber, que as razões do bêbado não vêm jamais à

baila, ninguém quer saber suas razões, que passam como se não existissem. Na expe-

riência da raiva, não há uma linha de separação entre aqueles de quem se está com raiva e

os outros. Não quero dizer que subjetivamente o indivíduo experimente o apagamento desta

linha; afirmo apenas que a separação é anulada enquanto a raiva é tomada como um aconte-

cimento singular pelos outros. Está-se com raiva por uma recordação e pela embriaguez

levada ao auge; isso poderia levar não à violência contra esse ou aquele, mas sim contra

um “nós” coletivo, contra o grupo como um todo. Pode-se por exemplo, em um caso e x -

tremo, recordar que Índios mataram o avô, ficar-se com raiva e acabar batendo na mãe,

pelo simples fato de ter sido ela a intervir para acalmar e levar o bêbado para casa; quem

aparecer em seguida para dominá-lo, apanha também. Um homem assim violento, mal se

dá o alarme, é retirado da cauinagem. Os parentes mais próximos como o pai, a mãe e o

irmão mais velho cumprem o papel de proteger o grupo e ao mesmo tempo o fazem de um

modo que o bêbado não se machuca mais do que eles mesmos. Levando socos que não r e v i -

dam, tentam dominá-lo, dominam-no e o põem para dormir em casa reclamando com ele

por estar embriagado.

Existe contudo uma personagem para a qual se dirige freqüentemente a fúria da

embriaguez. Trata-se da esposa, sendo em seu corpo que a violência deixa as feridas mais

graves. A recíproca é verdadeira, a mulher também bate no marido, e eu antecipo de golpe

que talvez minha compreensão dos fatos seja insuficiente por não conduzir a uma i n t e r -

pretação capaz de dar conta da irrupção da raiva tanto no homem quanto na mulher. Alega-

se um único motivo: a infidelidade265. O parceiro alega, e/ou outros alegam por ele (ou

ela) — o que faz da infidelidade o único tema capaz de passar pela filtragem, digamos

assim, a que o grupo submete as razões pessoais. As mulheres perdem dentes e ganham

feios hematomas no rosto; os homens derramam sangue em cortes causados por golpes de

cabo de machado ou mão de pilão.

265 Mesmo quando se briga invocando outros motivos ligados aos deveres usuais da vida
conjugal, como a falta de cuidado com uma criança, está-se brigando por infidelidade, pois a
desatenção com qualquer dever da vida familiar aparece então como indício de adultério.
411

A dança e o canto de um lado, os homens e as mulheres reunidos uns ao lado dos

outros. A guerra de outro lado, os homens coesos e em prontidão para matar os inimigos. E

de outro lado ainda, a insatisfação de alguns e algumas, a raiva de um ou outro homem

contra o grupo e contra todos. O grupo sempre coeso para proteger-se da raiva do bêbado.

São estas as cenas que sustentam a cauinagem até o fim. Por vezes, o estado de alegria é tão

forte e generalizado que ela prossegue até horas depois de consumido todo o cauim.


Seria preciso relativizar o que apresentei sob a forma de relatos. Sendo de fato

episódios, não é todos os dias que sucedem fatos semelhantes, e considerar que, dentre os

episódios que registrei, selecionei para este trabalho aqueles que me pareceram mais

significativos, e talvez mais pitorescos, ao mesmo tempo em que busquei apresentar um

quadro completo dos diferentes tipos de acontecimentos que me foi dado observar. De uma

perspectiva menos preocupada com os eventos singulares, o verdadeiro é que há um certo

cotidiano próprio à embriaguez, e eu creio ter dado conta deste cotidiano e chegado a d i s -

tingui-lo da ordem dos eventos usando uma linguagem mais descritiva que narrativa. A

insatisfação e a raiva também merecem ser relativizadas, porque, se do ponto de vista

global compõem com efeito o cotidiano da embriaguez coletiva, do ponto de vista da expe-

riência individual tudo se passa também como evento: existe uma certa circulação da e x -

periência da raiva entre os indivíduos, havendo inclusive aqueles — os velhos e as velhas

— que não a experimentam mais, nem mais exprimem tédio, e desempenham um papel

chave no mal-estar vivido pelos mais jovens, no sentido de que uma ironia sua ofende os

jovens mais profundamente.

Ao longo do texto fui deixando, malgrado meu, a falsa imagem de que o cauim incide

apenas sobre relações sociais e políticas, quando ele também estimula a relação com o

outro mundo. Tenho assim mais uma história (ou duas) para contar, pois primeiramente

quero registrar que a partir de 1988 os Juruna começaram a realizar farsas da festa dos

÷ï÷ãnay (os mortos dos rochedos)266. O papel do xamã pode ser desempenhado por vários

266 Não quero dizer com isso que só agora os Juruna começaram a fazer farsas da festa dos

mortos. Eles afirmam que sempre as fizeram e que os mortos aceitam de bom grado o uso de seus
cantos, desde que a brincadeira seja feita durante a embriaguez. A cauinagem assistida por
412

homens em seguida, que usam para tal seja uma cobertor velho para fazer as vezes de

manto, seja um manto propriamente dito, feito (diz-se) para vender aos Brancos. Nessas

farsas, até onde pude observar, não há lugar para explosão de raiva. Para os Juruna, são

seguramente uma forma de alegria, mas, em minha opinião, eles as fazem tristes (flagrei

muitos velhos chorando). Trata-se apenas de grande emoção.

O fato que quero narrar se passou em agosto de 1990, ao fim de uma festa de

“clarinetas pequenas” cujo cauim principal (900 litros) foi dado por mim. A dança co-

meçara ao entardecer e foi encerrada no meio da manhã do dia seguinte. Um cauim s u -

plementar (160 litros) foi aberto então, ao fim da festa, mas todos estavam deveras

mortos por causa de meu cauim. O grupo se dispersou por algumas horas para descansar, e

a diversão continuou para alguns garotos e homens adultos. Entre estes últimos, o dono do

meu cauim, um irmão dele — dono do cauim suplementar, que não podia ir dormir porque

não se abandona uma bebida que já foi aberta —, e Kadu, irmão da mulher do primeiro. E

eu, finalmente, porque meu campo se esgotava, minha viagem estava marcada para daí a

dois dias, e eu tentava ir contra a corrente para agarrar a festa que mal pude “observar”

como convinha, em função de meu papel de dona do cauim e da própria festa. Meus a m b i -

cionados informantes — os três que estavam acordados eram tudo de que eu precisava —

encontraram, porém, uma forma mais interessante para matar o tempo, o sono e o can-

saço. Os dois irmãos pediram a Kadu para contar histórias, e ele contou uma que os o u -

vintes entrecortaram inúmeras vezes com uma mesma frase, dita à guisa de interjeição e

alegria: aquela era uma história que se passara “no tempo em que os Juruna não usavam

calção”. Era o relato de uma viagem de canoa desde as corredeiras Von Martius até Alta-

mira, da qual participaram, entre outros, um tal que era o chefe e que se identificava com

um nome de finado: “Vítima de mandioca”, e o finado xamã Pai-de-Manako. Os viajantes

passaram grandes apertos com a polícia em Altamira, apertos dos quais as pessoas então

riam muito, e foram salvos por um Branco identificado como “Amigo de Índio”, no qual eu

queria reconhecer Nimuendaju, com base no fato de que ele realmente conheceu em A l -

tamira, no ano de 1916, pessoas do grupo Juruna que então havia se deslocado em direção

ao alto curso do rio, para a cachoeira Von Martius. Não fui capaz de compreender a con-

tento o relato de Kadu, mas ele me explicou muito bem como o velho chefe foi morto pela

mandioca. Pela razão simples de que a macaxeira pode, quando plantada próximo à man-

Steinen na aldeia do velho Nunes culminou, segundo posso deduzir, em uma farsa da festa dos
֕֋nay (Steinen, 1942: 312).
413

dioca brava, tornar-se venenosa. O velho comeu do aipim que não era mais aipim e morreu

envenenado, sendo por isto chamado de Vítima de Mandioca (brava).

No meio da tarde as pessoas acordaram e a cauinagem recomeçou, interrompendo o

encontro. A aceleração do ritmo não tardou e já ao fim da tarde todos estavam bêbados. Uma

sobrinha de Kadu pediu-lhe para matar os animaizinhos celestes que andavam perturbando

o sono de sua filhinha; uma filha dele reforçou o pedido da prima, lembrando que o seu

filhinho também andava dormindo mal, sonhando muito e podia mesmo ter a alma roubada.

Kadu em um segundo fora feito xamã. O grupo se dividiu então em dois bandos quando, após

ausentar-se por um instante, o xamã apareceu com alguns ramos da perfumada folha

ünãhã: no interior da casa, as duas mães se sentaram em redes próximas uma da outra,
cada uma com a criança no colo; o xamã ficou de pé defronte a elas e começou a cantar e

todos os adultos em um minuto os rodearam; no terreiro, os mais jovens começaram a

dançar e cantar músicas de Índios, mais ou menos alheios ao que se passava dentro de casa,

pois sua performance não tinha a ver com o rito senão pelo fato de que os emocionara,

trazendo-lhes o desejo de dançar. Na casa, todos cantavam com o xamã para ajudá-lo a

atrair os animais celestes; eu fui requisitada para enrolar cigarros para o xamã e todos os

outros, as mulheres inclusive, e também para ir ao mato que circunda a aldeia arrancar

mais ramos de ünãhã. Esses ramos foram distribuídos entre as pessoas que cantavam com

o xamã, e, como ele, todos os agitavam para fazer as folhas farfalharem. Algumas pessoas

tinham os olhos cheios d’água, da emoção que os cantos faziam aflorar em função dos vários

anos que se passavam desde sua última execução pelo finado Pai-de-Kadu; e, à exceção do

xamã, ninguém deixou de me instruir a respeito do que se passava e me apressar para

enrolar rápido os cigarros, cuja fumaça era assoprada sobre as duas crianças e suas mães.

Uma cortina de fumaça rapidamente isolou o local, tornando difícil a respiração, e cantos

tristes foram entoados ao longo de meia hora. Uma outra parte dos ramos foi utilizada para

forrar o chão ao pé das redes e do principal cantor, onde os bichinhos começaram a chegar.

O xamã foi matando um a um, torcendo-lhes o pescoço com um gesto muito leve em função

da pequenez, amontoando-os num cantinho sobre as folhas; ao fim, tomou a braçada de

ramos e saiu da casa para jogar no barranco da aldeia tudo o que tinha matado e que con-

sistia, segundo me contou no dia seguinte, em passarinhos de diversas espécies, que ele v i u

com os seus próprios olhos potencializados pelo fumo. As pessoas seguiram cantando até o

retorno do xamã, que cantou por mais um breve momento, enquanto lá fora a animação

ganhava um ritmo cada vez mais acelerado; tanto mais porque alguns rapazinhos imberbes

tiveram bons momentos de amor durante a celebração do rito e estavam muito alegres e
414

ansiosos para mostrar que estavam bebendo, cantando e tratando-se uns aos outros como

homens.

Eu queria acreditar que a cauinagem abrira a consagração de Kadu no xamanismo.

Ele, que dizia desejar ser xamã, era afinal reconhecido como tal. Em 1992, em sua visita

ao Rio de Janeiro, perguntei-lhe se vinha praticando o xamanismo, respondeu-me que

não, que está aprendendo ainda e o seu saber é um pequeno grão. Pode ser que me engane,

mas penso que nunca os Juruna estarão satisfeitos com o saber humano.


Esta etnografia estaria completa caso eu registrasse que um modo possível de se
encerrar a cauinagem é dar início ao preparo do que nesse contexto é chamado de “o subs-
tituto”. Enquanto os homens ainda se alegram em torno de um cauim inteiramente con-
sumido, as mulheres saem em grupo para a roça de alguém a fim de colher mandioca para o
próximo. Cada uma que vai atravessando a aldeia com o cesto pesado em direção ao porto,
onde põe a mandioca para pubar, é recebida com alaridos de dois ou mais do outro sexo, que
assim pretendem chamar a atenção dos outros para o fato. Então os Juruna vão dormir.
Ocorre-lhes por vezes sentirem-se bêbados até minutos depois de acordar. Quem beber o
seu cauim comprovará que isso não é um simples modo de dizer267.

267 A ação do cauim é sensivelmente diferente da ação de nossas bebidas, se é que se pode gene-
ralizar uma experiência individual. Eu diria que nossas bebidas agem primeiro no espírito, o
cauim começa a agir no corpo, provocando um formigamento que se propaga e intensifica, e uma
vontade quase incontrolável de deitar. Contudo, movimentar-se é uma resposta possível para
este mal-estar, de modo que o que não se consegue mesmo é ficar parado em pé, ou sentado des-
confortavelmente. Eu podia sentir muitas vezes que estava perfeitamente sóbria de espírito e
completamente embriagada de corpo. Por outro lado, em se tratando de um cauim cuja fermenta-
ção por algum motivo não dá certo, a simples saciedade que a cada instante se vê negada, quer
dizer, ampliada mais e mais, é por si só uma experiência singular que pode ser tão interessante
quanto a embriaguez. Embriagando ou não o cauim leva sempre a uma plenitude em que, de tanto
ultrapassar os limites da consciência a respeito do que o nosso corpo é capaz de conter, nos f a -
miliarizamos com o nada. Provoca uma leve inchação no rosto, perceptível sobretudo na fronte, e
manchas vermelhas no rosto que por vezes aparecem também pelo corpo — sinais que desapare-
cem após o sono. A ressaca também é bastante diferente, enquanto não consiste em dor de cabeça
e náusea. Consiste em inapetência e fraqueza (às vezes bastante fortes, como se estivéssemos
convalescendo, ou à espera de uma doença séria que se nega a mostrar seus sintomas). Extraor-
dinariamente, traz também dores nas articulações do corpo inteiro. A ressaca é referida por uma
expressão formada pela palavra “esqueleto, osso” seguida do sufixo de negação: ïpãk¥ü na a∂o,
que se traduziria literamente como “estou sem esqueleto” — condição de uma alma morta. Duas
mulheres são especialistas em uma massagem muito eficaz contra as dores nas articulações,
desde que provocadas pelo cauim: massageiam com a ponta dos dedos a parte inferior da coluna,
na região lombar, em um pressionamento muito leve, detectando um “osso quebrado”.
415

3. Margens da alegria

“Sim, quando se transpõe a fronteira, o riso ressoa, fatídico. Mas


quando se vai ainda mais longe, ainda além do riso?”
Milan Kundera

Se há cauim para tudo, se a curtos intervalos há cauinagens que tomam dia e noite,

é claro que, ao lado de seus momentos lúdicos e rituais, a cauinagem absorve a vida coti-

diana dos Juruna. É ocasião de arrumar nome para as crianças; casamento para uma filha,

irmã ou sobrinha; namorada, noiva, casar-se; decidir viagem, localização das roças, c a -

çadas, decidir o que é ou pode vir a ser de interesse coletivo. É palco para uma m u l t i p l i -

cidade de gestos e palavras que celebram comportamentos tidos por muito antigos, como,

por exemplo e sobretudo, a dramatização do amor ao cauim. A cauinagem exprime também

uma modalidade de relação dos Juruna com sua cultura, um certo estilo que se imprime à

vida social, e que responde, aliás, pela admiração que podemos ter por eles, como senhores

de experimentos sociais extremos que não rompem a sociedade. É a ocasião ideal para se

perceber o modo singular como a sociedade se relaciona consigo mesma, como que se

transformando num laboratório de experiências sociais e políticas que desencadeiam tanto

os processos da vida individual e coletiva quanto a emoção estética. Encontra-se aí um

mecanismo que liga o momento presente, por um lado, com o futuro próximo e, por outro,

com o passado, do qual se pretende tirar sentido para as coisas e a vida. Um sentido que

aponta a pobreza do tempo presente, já que a forma como pintam o passado o faz parecer

tão exuberante que, por exemplo, a longa pena de arara vermelha que o bêbado enfia nas

orelhas para ficar bonito, faz lembrar que outrora os antigos usavam brincos mais v a -

liosos, os dentes incisivos superiores tomados de um Índio. Por outro lado, o tempo que o

cauim lhes proporciona acaba sendo de exuberância e os projetos que motiva são demasiado

extravagantes para serem realizados tais quais.

As explosões de raiva que podiam me chocar, e mesmo angustiar, por minha i n -

capacidade de compreender como era possível que em uma comunidade onde todos eram tão

solidários uns com os outros, de repente, numa reunião social programada para alegrar, a

revolta pessoal encontrasse expressão. No dia seguinte, tudo tinha voltado ao normal, ao

clima familiar e amistoso da refeição coletiva, mas isso não diminuía a lembrança de que

dentro de poucos dias uma nova jornada de alegria nos esperava, a abertura de um novo

cauim às vezes promovido pelo próprio furioso do outro dia, agora assumindo o papel de
416

embriagar os outros, para de novo aflorarem a insatisfação, a raiva, o medo.

A insistente questão é, assim, como se passa da alegria social ao mal estar na s o -

ciedade. Sem receio de cair num julgamento subjetivo, eu diria que a cauinagem, para a l -

gumas pessoas, friso, beira o insuportável. Ainda que ninguém atinja o limiar da raiva,

nunca a cauinagem — exceto a que se bebe com os ÷ï÷ãnay — é boa para todos. Tudo o que é

bom pode ser mau; tudo o que é bonito pode ser feio; o que é alegre pode ser irritante; o

certo pode ser errado; o verdadeiro, falso; a regra, transgressão. Um Juruna bem poderia

me dizer: estou preso no inferno, o inferno somos nós, ou melhor, eles, o pessoal, este

grupo de que faço parte (Lévi-Strauss, 1968: 422).

Exceto quando se bebe com os mortos, porque as normas rigorosas que os mesmos

impõem aos vivos garantem antecipadamente a exclusão de toda aventura amorosa e toda

palavra irônica. Ainda neste caso, o evento não é totalmente agradável senão para os vivos.

A rígida separação entre homens e mulheres só vigora para os mesmos, ao passo que os

mortos, misturados com suas mulheres, defrontados com velhos inimigos, encontram a í

ocasião de relembrar velhos antagonismos. No mais, entre os vivos, a separação dos sexos

visa justamente tornar as mulheres disponíveis para os mortos.

Eu não chegava a atinar, enquanto eu mesma fazia parte da observação, como se diz,

que o grupo possuía o pleno domínio de seus bêbados. Não atinava sobretudo que a raiva

merece ser tomada como um êxtase. Assim, sob a impressão de que não me deixaria e n -

ganar pelos Juruna, não percebia o sentido de um discurso entretanto propagado na

cauinagem, e também fora dela, e que se resumia a meu ver à pura ilusão de um povo que

faz da embriaguez a experiência social mais importante. Este discurso, em linhas gerais,

diz que hoje os Juruna não fazem mais nada numa cauinagem, pois a reunião dos homens

não existe mais, as mulheres não se mantêm mais à distância, os sexos e as gerações se

misturam, primeiro na casa do cauim, depois no terreiro de dança. Como se, outrora, o

cauim fosse apropriado por uma categoria social específica, os homens adultos e guer-

reiros. Como se a cauinagem se passasse inteiramente dentro de casa, apresentando uma

única cena: a reunião dos homens em torno do cauim. Nesta reunião, ficando-se com raiva,

matava-se um companheiro. A cauinagem de outrora, sim, era um horror! O cauim f o r -

necia palco para uma disputa entre os matadores, os quais só sabiam respeitar quem t i -

vesse dado à morte mais Índios do que eles, o pânico era o estado geral em que todos os

outros se encontravam: os pequenos matadores, os jovens, as mulheres, os forasteiros, o

Índio capturado, e o dono do Índio. A cauinagem, portanto, não era para todos. Se hoje se dá

realmente o que me disse Kadu, “Eu comecei a beber quando comecei a pescar”, no pas-
417

sado, teria sido preciso matar um Índio para começar a beber. A abertura musical era

feita com uma trombeta dotada de uma caixa de ressonância feita com um crânio de Índio.

Esta trombeta era então posta sobre um jirau acima da canoa de cauim, junto com um

colar de dentes humanos que pendia justo acima da bebida. Cada convidado prestava reco-

nhecimento ao dono do cauim, pondo o colar no pescoço, pegando a trombeta e tocando. Os

grandes matadores então faziam tremer a todos os outros. Não se falava senão para g l o r i -

ficar a si mesmo, contando as histórias de seus inimigos. A “recordação” era pois o tema.

Sua raiva é elevada à altura do seu prestígio, uma raiva igualmente cega ou bruta como a

de hoje, de modo que podia suceder-lhes matar qualquer um.

Por outro lado, em relação à briga por infidelidade conjugal, os Juruna apresen-

tam dois discursos. Um, de caráter francamente normativo e que pouco se sustenta no

conjunto mais vasto dos fatos, diz que os antigos não brigavam, no tempo atual é que os

jovens faltam com o respeito e batem nas esposas; desrespeito este que não é contra a

esposa mas contra os cunhados e sogro. O outro discurso é mais consistente com o conjunto

do saber coletivo — onde narrativas míticas mencionam o tema da infidelidade com f r e -

qüência — e tem como pressuposto que desde que se bebe cauim os homens brigam por

causa de mulher. O pressuposto é interessante: se a observação empírica apenas mostra

maridos e esposas brigando, na ordem do pensamento o que é importante é a briga entre

homens por meio de uma mulher.

Do ponto de vista da cultura, a raiva é uma experiência masculina. Do ponto de

vista empírico, seria talvez permitido distinguir esta raiva masculina de outra, conjugal,

experimentada por ambos os sexos. Mas uma tal distinção não nos conduz muito longe,

porque se de fato a raiva de uma mulher se justifica pela embriaguez, nem por isto ela

deixa de ser um fenômeno residual, desprovido de simbolismo. Além disso, mesmo a raiva

conjugal exprime um antagonismo entre homens.

Como tudo o que acontece na cauinagem é extraído de fatos ou de indícios de fatos da

vida cotidiana para ser então ampliado, distorcido, estilhaçado e dramatizado, não deixa de

ser verdadeiro que o casal cuja relação não vai bem encontra uma ocasião propícia para

brigar durante a embriaguez coletiva. Minhas impressões, contudo, são que a suspeita de

adultério prima sobre o conhecimento de uma situação de fato, que o sexo extraconjugal

não é uma prática corrente na cauinagem — muito embora meu controle disso seja d u v i -

doso. Nunca me disseram uma coisa do tipo “eu fiz amor com fulana ou com fulano”, mas

apenas que “fulano e fulana fizeram amor”. No caso de tais informações serem verda-

deiras, seria possível concluir que os Juruna fazem amor num tempo recorde: a rapidez
418

dos supostos encontros sempre me levou a pensar que nada havia se passado de fato. Eu não

saberia então dizer se a cauinagem institucionaliza, ou não, o sexo extraconjugal; em caso

afirmativo, porém, isso seria indissociável de uma forte condenação do adultério.

Existem, pois, episódios de brigas motivadas por descontentamento com o parceiro,

episódios motivados por dizeres irônicos dos parentes do cônjuge, quer dizer, pelos sogros

e cunhados, dizeres com os quais o próprio cônjuge da pessoa criticada não concorda n e -

cessariamente. Existem também, eu ousaria afirmar, violências gratuitas que não passam

nem direta nem indiretamente pela conduta sexual da esposa e nem por isto deixam de i n -

cidir sobre ela. O homem que está com raiva dos Índios que mataram seu avô não pode por

definição ser afável com a mulher, nem ao menos receptivo. A raiva se irradia até ela que

permanece muda de medo, e se está muito bêbada também pode levar um soco, às vezes

justa e simplesmente porque está bêbada. Ter um inimigo e ter uma mulher adúltera são

idéias que se implicam mutuamente. A raiva masculina, dirigida ou não contra a esposa,

problematiza sempre a virilidade guerreira. Minha hipótese, em suma, é que a própria

lógica da raiva determina o rompimento das boas relações com a mulher. Poder-se-ia

permitir tudo ao bêbado, exceto que ele se destacasse do corpo social arrastando consigo

alguém de quem ele só dispõe porque pertence ao grupo, ou que é a parte que o comple-

menta possibilitando-lhe ser parte de um grupo. Ou o grupo ou o isolamento completo —

são estas as únicas saídas numa cauinagem. Recusar a mulher é o gesto mais tímido de um

bêbado — ele poderia até matar e comer alguém. Gesto tímido e ao mesmo tempo necessá-

rio, caso entendamos, como creio ser preciso, o cume da embriaguez (a raiva) como um

êxtase268 no qual o homem se eleva para além da aliança ou do grupo. (Procurarei elucidar

mais abaixo o que quero dizer, articulando meus materiais com a interpretação proposta

por Viveiros de Castro — 1986 — para o canibalismo Tupi).

Os Juruna enfatizam então que a cauinagem dos antigos — a “verdadeira” — c u l -

minava em morte no interior do grupo. E isto é compreendido não como uma mera con-

268 Encontro em Kundera uma definição de êxtase bastante próxima do sentido que penso ter a

raiva Juruna. “O êxtase significa estar ‘fora de si’, como diz a etimologia da palavra grega:
ação de sair de sua posição (stasis). Estar ‘fora de si’ não significa que se está fora do momento
presente à maneira de um sonhador que se evade em direção ao passado ou em direção ao futuro.
Exatamente o contrário: o êxtase é identificação absoluta com o instante presente, o esqueci-
mento total do passado e futuro. Se apagamos o futuro assim como o passado, o momento pre-
sente está no espaço vazio, fora da vida e de sua cronologia, fora do tempo, independente dele. (É
por isso que se pode compará-lo à eternidade, que é, ela também, a negação do tempo)” (Kundera
1994: 77).
419

tingência, mas como uma possibilidade que se atualizava freqüentemente. Nós não neces-

sitaríamos reter disto nem a atualização nem a freqüência, mas não poderíamos perder o

elemento da possibilidade sem perder no mesmo lance a significação da embriaguez. Eu

assumo que existe uma distância menor entre o passado e o presente do que crêem os J u -

runa, porque, falando como Mauss, “salvo sombrio drama”, a cauinagem jamais resvalou

em antropofagia. De resto, considerando-se a observação de Lévi-Strauss segundo a qual

nem mesmo a manducação é critério inequívoco para uma definição antropológica da a n -

tropofagia (Lévi-Strauss, 1984: 142), a cauinagem não tem necessidade de resvalar em

antropofagia, pelo simples fato de que, em certo sentido, ela já o é.

Deste modo, as representações acerca da cauinagem antiga merecem ser conside-

radas menos como eventos do que como signos de uma estrutura. Enquanto tais, estão p l e -

namente situadas no presente. Quer dizer, a oposição entre homens e mulheres, a desti-

nação do cauim aos homens de prestígio e o antagonismo latente entre homens têm valor de

atualidade. Retornaremos a isto, para estudar a forma como estas relações se articulam,

logo após explorar a simbólica da embriaguez. Por ora, lembremos apenas o seguinte. Da

oposição dos sexos, extrai-se uma organização primeira no tempo e na lógica. Dada a

morte dos homens, que corresponde na ordem dos acontecimentos ao tumulto ou pândega em

que se dissolve a reunião social (ao momento em que não se agüenta mais ficar sentado

ouvindo a história dos outros, vários começam a brandir que estão bêbados, cada um

querendo falar e ser ouvido, visto e admirado, sem querer ouvir nem admirar ninguém;

quando ficam em suma narcísicos, os homens estão mortos), dada esta morte, como eu

dizia, a oposição entre homens e mulheres preserva-se ainda, uma vez que o canto-dança

reúne o grupo mantendo separados, de um lado, os homens e, de outro, as mulheres. Mas o

corpo formado por esta oposição e complementaridade é fluido, uma vez que há um entra e

sai da dança; esse corpo, que eu talvez definisse bem dizendo ser ele o i˚ab¥ da sociedade

(enquanto é a parte grande ou principal), opõe-se aos desgarrados: os bêbados que querem

ir além da alegria ou sentem que a alegria de outrem feriu seu interesse ou virtude. As-

sim, no movimento em que a cauinagem se acelera, e que ela segue até o fim, sua organi-

zação fundada na separação dos sexos começa a ser invadida por um caos aparente, no qual,

uma vez mortos, alguns homens se opõem entre si por causa das mulheres.

A morte por cauim não é com efeito uma pura figura de linguagem, ou, ao menos, é

mais do que uma metáfora (talvez poética e com certeza alegre). Ela determina a e m -

briaguez enquanto uma categoria cultural específica. O cauim alegra e depois mata, esse

ponto é importante. Intensifica tanto a sociabilidade, que se chega perto de superá-la,


420

tornando os homens inimigos uns dos outros; limiar que os Juruna condenam, mas nem por

isso deixam de arriscar.

O significado da embriaguez está longe de limitar-se, é claro, à experiência psico-

fisiológica provocada pelo álcool. Como diria Mauss, ela remete a um fato total, sustentado

por estreitas correlações com a natureza simbólica da bebida. Ora, o simbolismo trabalha

em prol de um objetivo único: pensar o cauim através do modelo da condição humana. H o -

mem é o sentido do cauim, não só porque lhe dá o nome como também e principalmente a

estrutura; pois, com efeito, a pessoa é homóloga ao cauim. Um ser que um homem e uma

mulher geram e destinam ao grupo como o vínculo que sela seu pertencimento ao mesmo; a

morte deste ser engendra uma alma que segue o caminho dos ÷ï÷ãnay (por quem é f i -

nalmente consumida em intermináveis cauinagens) e um corpo ou resto, que se submete a

um triplo tratamento: a exposição do apodrecimento, o cozimento, e finalmente a f e r -

mentação e consumo pelos membros mais próximos da família e pelas visitas.

Ao que tudo indica, quando comida por um morto, a própria carne de Índio é i n e -

briante. No mundo dos mortos, é possível desfrutar de uma embriaguez interminável.

Entre os ÷ ï ÷ ã n a y do mundo subterrâneo, isto se deve simplesmente ao seu modo de vida

que é uma eterna cauinagem. Mas é concebível ser ÷ ï ÷ ã n a y e estar, ocasionalmente, só-

brio. Ao contrário, a condição dos ÷ ë ÷ ã m † , mortos canibais, celestes, apresenta uma

curiosidade para a qual os Juruna chamaram-me a atenção diversas vezes, em um tom de

quem não tem para ela nenhuma explicação e a considera enigmática: a todo ÷ ë ÷ ã m † a

quem se pergunta se ele está bêbado, a resposta é positiva. Sendo verdadeiro que os

÷ ï ÷ ã n a y e os ÷ ë ÷ ã m † se distinguem por meio do cauim e da carne de Índio, e que, no


festival de trombetas, ao invés da caça e do cauim Juruna, os ÷ë÷ãm† preferem comer a

carne que trazem do além, qual é a razão da sua embriaguez, senão a carne humana assada?

Caso isto proceda, então não apenas a antropofagia é o sentido que tangencia a cauinagem,

como pode ela mesma provocar embriaguez.

O cauim não é capturado fora do grupo, não é propriamente um inimigo, mas um

filho de casal do grupo. É verdade que, precisamente falando, ele é um filho de mulher269,

mas em todo caso sua terra natal é o seio do próprio grupo que o devora. Talvez isso se

269 A relação entre o cauim e o marido da produtora (que, até onde sei, aparece como dono da

mandioca, mas não como pai da bebida) merece maior investigação de campo. Em princípio, o
cauim é análogo aos filhos de mulheres Tupinambá (gerados pelos cativos a quem os Tupinambá as
cediam antes de comê-los), que eram executados ritualmente e comidos (Viveiros de Castro, co-
municação pessoal).
421

articule com os seguintes aspectos: o evento não une em sociedade sem ao mesmo tempo

propiciar a decolagem de alguns; a reunião dos homens em torno do cauim, da qual espe-

raríamos que evocasse aos Juruna uma imagem mais próxima da realidade, evoca o não-

reconhecimento mútuo dos laços de parentesco e políticos que os unem entre si; a cauina-

gem poderia vir a ser a guerra em que um concidadão mata ou é morto por outro. Eu não

saberia como recuperar essa articulação, mas, tomando uma outra via, podemos indagar o

que é afinal que a embriaguez faz com o homem?

Os Juruna não deixam de ser contraditórios em relação ao bêbado. Tanto o consi-

deram como um sujeito capaz de grande potência agressiva como alguém que se pode abater

sem nenhuma dificuldade (donde a reputada tática de guerra de convidar para beber a fim

de matar mais facilmente). Afirma-se tanto que ele seria capaz de matar um cunhado como

que, numa pescaria com timbó, é incapaz de fincar a ponta de uma flecha num peixe mais

morto do que vivo, um peixe “bêbado” (como dizem). Talvez seja mesmo “erro de pon-

taria” o sentido do gesto de um homem que afronta os concidadãos numa cauinagem, dese-

jando destruir um não-Outro. Quem você pensa que eu sou?, lhe diriam; “eu não sou

Outro”, “eu não sou Índio”.

O que está em jogo é mesmo uma questão de comunicação com o Outro. Vejamos. A

embriaguez não é provocada apenas por álcool: xamanismo e guerra embriagam tanto

quanto o cauim. O caso do xamanismo pode-se depreender facilmente. Concebido como

embriaguez, o êxtase xamânico de que depende a comunicação com as almas dos mortos

implica a superação da percepção humana ordinária do dia e da noite, equivalente ao eixo

básico da oposição entre os vivos e os mortos. Durante o período em que percebe a noite

clara como o dia, o xamã é ÷ï÷ãnay em vida, com a peculiaridade de ser um sujeito n e -

cessariamente bêbado. O xamã apresenta, pois, a dupla condição de vivo e morto. Em s e -

gundo lugar, a mitologia xamânica que explora os temas da jaguarização e da travessia ao

mundo subaquático do ogro pa÷¥, enquanto esta travessia é condicionada pela transfor-

mação em peixe, situa a embriaguez como implicação necessária da passagem de uma c a -

tegoria à outra. Ela marca a transformação do xamã em animal, bem como os movimentos

do animal em que ele se transformou. Não há, pois, devir-jaguar ou -peixe sem e m -

briaguez.

A relação guerra-embriaguez é duplamente determinada. Assim como a segunda

pode levar à agressão, assim como o bêbado pode se tornar violento a ponto de desejar

matar os que com ele estão se divertindo alegremente, a guerra contra os inimigos, a hora

exata de matar embriaga instantaneamente. O odor de sangue de Índio é inebriante, tão


422

inebriante quanto cauim e tabaco, de modo que é preciso ter muito controle de si para fazer

uma vítima, sendo aliás por isso que guerreiros inexperientes sucumbem numa guerra:

não são capazes de domínio de si. Um episódio sucedido por ocasião de um conflito com

Brancos em 1984 (alguns meses antes de minha primeira viagem ao campo), no qual

morreram onze ou doze empregados de uma fazenda que os índios reivindicavam como

domínio do Parque Indígena do Xingu, é talvez ilustrativo do que pode decorrer da e m -

briaguez de guerra, a saber, um impasse em que já não se é capaz de saber de que lado se

está. Conta-se de um dos Juruna que participaram do conflito o seguinte. Ele, tendo sido

obrigado a afastar-se do grupo por um momento, defrontou-se (após aliviar-se), no meio

do mato, com um Branco. Este não trazia arma alguma e estava nu em pelo (tinham-lhe

tomado a roupa em um momento em que ainda não se decidira se os inimigos seriam mortos

ou simplesmente saqueados). O Juruna, borduna em punho, ficou completamente e m -

briagado. Compreendeu que o Branco tentara fugir, e ele, conhecendo as trilhas indígenas

que havia na mata, mostrou ao Branco o caminho que devia pegar e seguir para não ser

morto pelos outros. Um outro Juruna orgulha-se de ter sabido usar sua borduna para dar

o golpe de misericórdia num outro Branco, mesmo estando completamente bêbado devido ao

cheiro de sangue que havia no ar.

Os fatos sugerem então a existência de uma embriaguez sociológica ou política não

menos objetiva do que aquela, religiosa, experimentada pelo xamã. Sugerem que o êxtase

também é inerente à sociologia270. Basta a teia de representações que situam o guerreiro

como heróico matador de Índios e maldito comedor de Juruna para indicar que o guerreiro

é um ser tão ambivalente (para usar uma expressão cara às etnografias dos grupos Tupi)

quanto o xamã. Assim como este encarna a condição de morto na esfera da vida, o guerreiro

não pertence ao grupo sem estar ao mesmo tempo na iminência de voltar-se contra ele. Se

o xamã faz a síntese antropológica vida-morte, o guerreiro faz a síntese sociológica Nós-

Outros.

Ademais, os Juruna articulam de forma bastante direta a embriaguez e a a l t e r i -

dade, ao postularem uma relação entre morrer e embriagar-se. Sem contar que sonhar-se

bêbado é presságio de morte, e se estamos de acordo que a morte transforme um parente

270 Como, aliás, já sugeriu Métraux para a cauinagem Tupinambá. “Os quadros pitorescos traça-

dos para nós pelos antigos cronistas das cenas propiciadas por essas festas [de cauim] restituem
bem a exaltação selvagem que se apoderava desses índios ordinariamente tão calmos. Não há
nada de surpreendente que esse estado fosse considerado pelos Tupinambá como uma espécie de
crise mística coletiva, em que, de algum modo, todos se elevavam acima de si mesmos”
(Métraux, 1928a: 200).
423

em Outro, a idéia segundo a qual na hora da nossa morte ficamos bêbados corrobora que a

embriaguez é um signo privilegiado de todo processo de alteridade do si.

Dir-se-ia que a vida religiosa empresta seu modelo à vida social. No domínio da

religião, destaca-se um personagem que não é mais ou vivo ou morto, mas vivo e morto,

isto é, xamã; no domínio da sociologia, destaca-se aquele que não é mais ou Juruna ou Í n -

dio, mas um e outro, quer dizer, guerreiro, quer dizer também, bêbado. Parece justo

concluir que assim como existe um além com o qual o êxtase xamânico faz a comunicação,

existiria, no pensamento Juruna, um além sociológico (além do parentesco e da unidade

política) tornado acessível pela embriaguez de cauim. A comunicação com esse além, h a -

bitado por Outros, é já imediatamente tornar-se Outro.

A embriaguez, portanto, marca as mais diferentes formas do devir — peixe, j a -

guar, ÷ ï ÷ ã n a y , inimigo ou Índio. Como os canibais Tupi-Guarani caracterizados por

Viveiros de Castro, os bêbados Juruna também fazem parte de “os seres do devir”

(Viveiros de Castro 1986: passim).


Tomemos agora uma outra via (mas esperando que ela nos leve de volta aos pontos

acima examinados), para terminar. A partir de uma sugestão de Lévi-Strauss, poder-se-

ia dizer que o cauim, enquanto ser humano figurado, é (numa reprodução mais ou menos

literal das palavras do autor) um significante por meio do qual os homens simbolizam

homens (ou a masculinidade) através das mulheres, as quais são chamadas a intervir como

meio indispensável para exprimir a significação (Lévi-Strauss, 1984: 149). Sua aná-

lise, intitulada “canibalismo e travestimento ritual”, contém também a aplicação da cé-

lebre fórmula canônica:


“a função ‘mulher’ das concidadãs está para a função ‘homem’ dos concidadãos, a s -
sim como a função ‘mulher’ dos concidadãos está para a função ‘não-concidadão’ (=
inimigos) dos homens” (Lévi-Strauss, 1984: 146)271.
É tentador reduzir sem mais a cauinagem Juruna a esta lei, tanto mais porque a função

271 Para comodidade do leitor, lembro que a fórmula Fx (a) : Fy(b) :: Fx(b) : Fa-1 (y) , concebida

pelo autor como modelo da transformação mítica, consiste em: transformação de uma relação
entre dois termos (a) e (b), cujo diferencial é dado por duas funções, x e y, em uma relação
onde: um termo assume a função do outro, que, por sua vez, assume o valor de função e sofre
uma inversão de conteúdo; ao mesmo tempo em que uma função assume o valor de termo (Lévi-
Strauss, 1955: 263).
424

inimigo dos homens parece ser uma formulação muito justa do que afinal de contas o
acontecimento encerra. Mas este, conforme pretendo mostrar, implica também uma

função homem das concidadãs, correlacionada com uma função animal das mulheres. Mas o

interesse é aqui menos reduzir o ritual a uma fórmula do que utilizá-la como uma f e r -

ramenta útil para ressaltar aspectos etnográficos do primeiro, que, de outra forma,

permaneceriam na obscuridade. Assim, tentaremos articular a “mitologia implícita” com

as relações anteriormente destacadas (oposição entre homens e mulheres, rivalidade

masculina, destinação do cauim aos homens), a fim de apreender a lógica subjacente ao

desdobramento temporal da cauinagem.

Eu não saberia descrever a alegria emocionada de uma mulher quando seu marido

lhe traz uma caça importante, como a anta ou muitos porcos; sua grande felicidade leva a

pensar que isso é a melhor coisa que pode lhe acontecer; mas ela procura esconder tanto

sua emoção, que um observador branco não pode não se comover. Os Juruna bem sabem

que a caça atrai as mulheres, enquanto o cauim atrai os homens; e sabem, desejam e l a -

mentam que, nisso, os homens se tornam sedutores de mulheres.

O cauim e a caça são signos privilegiados da comunicação entre homens e mulheres.

Num plano distinto daquele onde é definido como uma pessoa, sucede ao cauim apresentar

um princípio vital, ou força predatória, que o torna análogo à caça e distinto dos alimentos

vegetais. Sob esse aspecto, ele é uma espécie de caça feminina. As mulheres parecem a s -

sumir uma função predador que cabe de direito aos homens. Essa correlação entre cauim e

caça não suprime, porém, sua oposição recíproca; trata-se bem de termos simétricos, j á

que um deles é vivo (parece-me) e mata. A função predador caracterizaria então o cauim

mais que as mulheres? Não exatamente. Sabemos que a função do cauim está fundada no

procedimento ritual a que se submetem as mulheres para garantir uma fermentação e s -

pecial de caráter simbólico. É aí que se dá a grande transubstanciação: a bebida cujo

“resto” é consumido “doce” para “nutrir” as crianças, tem o “corpo” consumido quando

fermentada para “matar” os homens. O processo de fermentação consiste assim em

transformação da bebida nutritiva em anti-alimento.

A mulher é essencialmente nutriz, tal como exprime a associação que os homens

fazem entre esposa e mãe: a esposa é uma mãe, já que alimenta o marido. Ela não poderia

ser uma nutridora nem de caça, já que isso é função masculina, nem de cauim embria-

gante, já que este não nutre. Ela é nutriz enquanto produtora de cauim refrescante, a l i -

mento que os Juruna consideram como a principal fonte nutritiva. A própria função nutriz

natural da mulher é subordinada à nutrição cultural que ela propicia: o leite materno é um
425

derivado do cauim (de qualquer tipo e grupo); ele vasa, após um curto intervalo, do peito

para a boca do bebê. Os homens, em certo sentido, jamais deixariam a infância na medida

em que durante a vida inteira dependem da função mãe da esposa.

Enquanto ser humano vivo, o cauim é tanto mais apreciado quanto maior sua p o -

tência de matar os homens. Desse ângulo, ele é o simétrico da vítima na antropofagia — a

não figurada — dos Shipaya, que são irmãos dos Juruna do duplo ponto de vista da língua e

da cultura. Segundo Nimuendaju ( supra : 243, n.19), o inimigo é uma presa masculina

viva que — à diferença da execução ritual do inimigo pelos Tupinambá — o conjunto dos

homens matavam, estando o captor tão distanciado da execução quanto, entre os Juruna, o

dono do cauim, que não deve morrer, digo, embriagar-se, para que os homens possam

fazê-lo despreocupadamente.

Resumindo. Equacionado seja como caça, seja como carne humana, o cauim responde

por uma transformação da relação ordinária entre homens e mulheres: os homens passam

de produtores a consumidores, as mulheres passam de consumidoras a produtoras. O e s -

quema ritual de base depende de uma inversão das funções masculina e feminina e consiste

em uma relação entre a função predador das mulheres e a função consumidor dos homens.

Esta relação entra em curto-circuito: por meio de sua presa as mulheres embriagam os

homens, transformando-os em inimigos, que seduzem as mulheres, transformando-as em

presas. Isso não é um mero jogo de palavras: é assim que o esquema ritual se transforma.

As mulheres dotadas de função masculina tornam-se “presa” dos homens; enquanto os

consumidores da presa feminina tornam-se predadores potenciais de homens — os Juruna,

inclusive. Assim, assumindo a função feminina, ou incorporando a feminilidade, os homens

se tornam inimigos, e, no mesmo movimento, as mulheres parece que são banidas para

fora da humanidade. Neste contexto, destaque-se também que, do mesmo modo como o cauim

dubia (ou todo aquele do qual o dubia compõe a receita) não se situa no mesmo plano das
bebidas fermentadas refrescantes, guerra e caça não representam uma mesma função; há

uma descontinuidade lógica entre elas, conforme revela o fato de que a função guerreira se

opõe menos à função feminina das mulheres que à função masculina das mesmas, e está

correlacionada com a função feminina dos homens.

É assim que partindo-se da diferença sexual chega-se ao antagonismo entre os

homens por meio das mulheres. Donde se destaca mais uma inversão do papel ordinário das

mesmas na constituição da sociedade (o papel de signos que circulam entre os homens,

garantidores da aliança, conforme o argumento de Lévi-Strauss, 1967). Ao mesmo tempo,

a função das mulheres como meio para exprimir a significação (como afirma o mesmo
426

autor — Lévi-Strauss, 1984) na simbolização ritual da masculinidade pelos homens não

vai sem que as mulheres se tornem outra coisa, conforme pretendo mostrar agora.

O cauim é um estimulante sexual e verbal. Não apenas homens seduzem mulheres,

como são seduzidos. Mas o desejo sexual feminino é uma imagem repugnante para o pen-

samento Juruna e não é à toa que se lança mão do maldoso dito “parece que ela tem pênis”.

Lévi-Strauss chamou a atenção para o enfraquecimento da diferença sexual como uma

operação comum do travestimento ritual. No pensamento Juruna, esse desequilíbrio, i n -

troduzido pela masculinização da mulher e a feminilização do homem, encontra seu des-

fecho lógico em uma projeção da condição feminina para fora do campo do humano.

Os encontros sexuais ilícitos e os jogos verbais, o esbanjamento da palavra, que


bobo,
caracterizam a cauinagem se reportam a um distúrbio designado pelo termo ÷ëü (b
doido), ofensivo e desonroso. Fala-se demasiadamente e as palavras nada dizem; toma-se

um animal por interlocutor. Deseja-se insaciavelmente, copula-se demais e sem regra: o

parceiro pode ser desde um consangüíneo até um animal. Os modelos por excelência desse

distúrbio são a esposa de Seµã÷ã, que traiu o marido com Gambá, e o menino caçula, filho

desse animal.

Não sei se é contingente o fato de em meus registros a variedade sexual do distúrbio

atingir mulheres e a verbal, homens. Não conheço indício de loucura verbal feminina e

apesar da possibilidade teórica do distúrbio sexual atingir o sexo masculino (como mos-

tram os inúmeros cuidados rituais por ocasião da paternidade e do homicídio), a conduta

dos homens taxados de libertinos de que ouvi falar é perfeitamente tolerável (como ter-se

casado muitas vezes, ou com mulheres tidas como consangüínas classificatórias). Já a

libertina tem dificuldades para se casar, ela pouco ou nada vale na troca de esposas

(havendo mesmo um registro de quem ganha uma e não quer levar). Geralmente são m u -

lheres que se casam tarde, ou garotas que se casam com velhos e representam, por isto, em

ambos os casos, presa fácil dos bêbados. Sobre uma delas, moradora recente em Tubatuba,

ouvi algo especialmente feio, dito por uma velha: como uma anta e recostada atrás de uma

casa, a jovem implorava aos homens ude ube, ude ube, ude ube... “possua-me, possua-

me...”.

Sendo verdadeiro que as duas funções estimuladas pelo cauim guardam uma relação

de paralelismo essencial no que diz respeito à comunicação, parece justo concluir que a

disfunção sexual seja um atributo feminino, enquanto a verbal seja um atributo mascu-

lino. Palavras e mulheres sofrem um desarranjo tal, que prejudicam a comunicação entre

os homens.
427

O desejo sexual masculino é um afeto típico de feras. O homem fica “feroz”, assim

como o jaguar na hora de atacar uma presa, ou como os animais de estimação e objetos da

vida doméstica ficariam ferozes e atacariam as pessoas se congelados numa tempestade de

granizo (ver capítulo II). Não se deve abandonar-se a este afeto, que supostamente a r r e -

bata por completo o libertino, muito embora o homem com distúrbio sexual evoque não o

jaguar, mas a anta (ou a galinha). Na relação sexual, o bom homem sabe que deve con-

trolar o desejo, dominar a força do afeto272.

O desejo feminino não é tão forte, nada tem de jaguar. O afeto anta que define o

distúrbio sexual (mesmo masculino) é um afeto feminino. Com efeito, o modelo do de-

sempenho sexual masculino é fornecido menos pelo animal de pênis grande e reputado

sedutor (por sociedades indígenas diversas) que pela relação jaguar-presa. Eu arriscaria

mesmo que em um sentido mais verdadeiro a virilidade não se compara de modo algum com

a incontinência sexual da anta — essa incontinência é traço de feminilidade (além do mais,

a imagem onírica mulher-nua é alma de anta).

Que as mulheres percam sua qualidade humana na cauinagem, é mesmo a compre-

ensão que tem do problema um Juruna que me disse ser o seu nome mencionado como um

exemplo de quem nunca bate na mulher. A razão de sua conduta é que ele não acha que a

mulher seja bicho, e profere isso para ela quando fica com raiva e tem vontade de bater.

Quem conhece a crueldade Juruna ou de algum outro grupo indígena talvez concorde comigo

que a declaração desse homem não deve ser compreendida pelo viés humanista que nos é

peculiar. Eu diria que ele fica a denegar um fato cultural inconsciente, a saber, a função

animal (= humano -1 ) das mulheres, decorrente da transformação das relações entre os


sexos operada na cauinagem.

É certo que, no quadro de um argumento desenvolvido a partir de Lévi-Strauss, o

homem não apresenta uma função animal. Mas é certo também que ele é tomado por um

afeto jaguar. Segundo afirma Viveiros de Castro sobre a antropofagia não-figurada dos

Tupinambá, “ela é um devir-Inimigo, que em código alimentar se traduz em d e v i r - a n i -

mal” (Viveiros de Castro, 1986: 695). Ele se inspira na célebre resposta de Cunhambebe

a Hans Staden: “Sou um jaguar. Está gostoso”. De seu cauim, os Juruna diriam apenas:

272 Deleuze & Guattari: “Os afetos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra (…)

o Eu não sendo mais que um personagem cujos gestos e emoções são dessubjetivados, com o
perigo de morrer disso” (Deleuze & Guattari, 1980: 440). Ou então: “O afeto é a descarga
rápida da emoção, a resposta; o sentimento é uma emoção sempre deslocada, retardada,
resistente. Os afetos são projéteis tanto quanto as armas; enquanto os sentimentos são
introjetivos como os utensílios” (idem: 497-8).
428

“Sou um verdadeiro Juruna. Está amargo”. Mas, talvez porque figurada, a cauinagem

Juruna opera a mesma tradução do devir-jaguar em código sexual. A ligação do homem

com o jaguar se situa, com efeito, em outro plano que a ligação da mulher com a anta. Além

do trabalho que deve e pode realizar sobre si para dominar o afeto, o próprio jaguar, e n -

quanto caçador, está além do animal, o qual, por sua vez, se define primeiramente por sua

condição de caça. A mulher usa seu afeto com a mesma finalidade da anta (o sexo), ao passo

que o homem só usa o seu para o sexo passando por uma sublimação: ele não faz como o

jaguar, não ataca nem come no sentido literal (ou oral) a presa.


O sentido da cauinagem é o mesmo sentido do canibalismo guerreiro, não só por

suas relações paradigmáticas, pelo que impele o pensamento Juruna a traçar um retrato

humano do cauim e um retrato canibal de si mesmos, mas também enquanto ambos são

paradigmáticos de forças que não pertencem menos à ordem da vida pelo fato de serem

tomadas como objeto de pensamento.

Uma inclinação (talvez demasiada) para não perder jamais a noção da experiência

vivida (que, no caso, também corresponde a um aspecto do pensamento) leva-me a enfa-

tizar dois pontos. A desvalorização lógica das mulheres — quero lembrar que não se trata

de uma desvalorização da mulher enquanto sujeito — incide sobre sua função de signo: este

sofre uma perda de espessura comparável ao desgaste das palavras que fluem sem cessar e

nada dizem. No quadro de um pensamento onde as mulheres aparecem como meio da aliança

entre os homens, é um questionamento dessa função sociológica que fornece o suporte da

rivalidade masculina.

A raiva não é uma experiência coletiva e não é bonita. A cauinagem não é um ritual

de negação da sociedade por ela mesma. É um ritual que produz e celebra a forma mais

desenvolvida da sociabilidade — a Alegria —, uma forma de relação que somente os Outros

(por sua diferença, sua distância relativa) permitem desfrutar com plenitude. Ela des-

dobra assim uma forma de relação que se situa além da consangüinidade e da afinidade

constituída — um campo aberto a relações por constituir, um leque de possibilidades. À

força de buscar uma abertura do campo social para relações outras, chega-se necessa-

riamente à rivalidade com as posições de parentesco constituídas, enraizadas na história

de cada um. Mas esta aventura, que é coletiva, tem ainda outros riscos: é demasiado e s -
429

treita a fronteira entre os Outros em que os Juruna se tornam e o Inimigo em que um deles

pode se tornar. O grupo assim, paradoxalmente, mantém prontidão para defender-se do

que ele próprio busca: a elevação da sociabilidade a limites extremos, o cume da sociabi-

lidade em que consiste a embriaguez.

A embriaguez é alegria e rivalidade. O bêbado está morto, o morto é inimigo do

parente, o bêbado tem um inimigo abstrato. Assim como os Juruna entregaram-se de corpo

e alma a comer a pessoa abstrata que é o cauim — ou se deixaram comer por ela, porque

aliás, de fato, na cauinagem, não se sabe quem come quem, havendo positivamente um

curto-circuito entre sujeito e objeto — um Juruna poderia se entregar a comer o cauim

abstrato que é o homem ao mesmo tempo concreto e genérico: dubia.

A infidelidade feminina talvez não passe de um mito, mas a rivalidade masculina

encenada na cauinagem não se resume a uma simbolização da condição masculina destituída

de experiência vivida. A embriaguez catalisa o antagonismo com o exterior, propiciando

que, mesmo num contexto de relações pacíficas com os Índios e os Brancos, um estado de

tensão e conflito se desenvolva e impregne a relação, para regozijo de uma sociedade

guerreira que perdeu a instituição da guerra por circunstâncias históricas impostas pelos

Brancos, e que vive a cauinagem como se a guerra estivesse presente ainda em seu h o r i -

zonte.

A bem dizer, o julgamento de que não há mais guerra só é verdadeiro do ponto de

vista dos brancos, quero dizer, para mim, que assistia boquiaberta ao preparo de uma

expedição que não dava em nada. Ao mesmo tempo em que era incapaz de dominar o fenô-

meno, procurava à força submetê-lo a uma única destas categorias: verdade ou mentira.

Como se entre as duas não houvesse espaço para o sentido e a vida. A decepção pessoal (pois

parece que eu queria ver sangue) mal esconde uma percepção distorcida minha, que um

argumento de Deleuze e Guattari permite aclarar. Segundo os dois autores, “guerra” é

uma instituição que nasce da apropriação da “máquina de guerra” pelo “Estado”. Assim “ a

máquina de guerra é a invenção que não tem a guerra por objeto primeiro, mas como o b -

jetivo secundário, suplementar ou sintético”. Sendo “justamente quando uma máquina de

guerra é apropriada pelo Estado que ela tende a tomar a guerra por objeto direto e p r i -

meiro, por objeto ‘analítico’ (e a guerra tende a tomar a batalha por objeto)” (Deleuze &

Guattari, 1980: 521). Deste modo, uma apreensão mais justa da cauinagem não passa pela

questão de se ela leva ou não à guerra, mas pela percepção de que ela é já uma modalidade

da política contra o Estado (como diz Clastres); dotada, enquanto tal, de uma eficácia

própria, real, que transcende o domínio da teatralização (ou do sentido que nós mesmos
430

temos da teatralização). Não é preciso haver homicídio para dar cunho de real ao que se

passa na realidade.

Os Juruna abrem a comporta do antagonismo no campo do rito e da alegria, as i n -

satisfações individuais se decidem, o controle social se exerce, mas a igualdade política se

produz por intermédio dos bêbados que, dizendo fazer e acontecer, sabem transmitir uma

verdade e impõem o seu valor pessoal diante de todos (os próprios concidadãos, os Índios

ou os Brancos): Vem que eu te como! A verdade passa sob o excesso e o drama, o excesso e o

drama são prontamente relevados — foi o cauim! —, porém a verdade fica.

No dia seguinte vem a distribuição de peixe cozido, ou mesmo uma refeição coletiva

à porta da casa de alguém. Tudo voltou à doce segurança da vida em comum, os Juruna estão

de novo introvertidos, de corpo fraco e, eu diria, com o espírito revigorado — novo

homem, nova mulher.


431

Conclusão: As verdades e os Outros

Na hora em que você atingir a base real de uma coisa qualquer, ela
se dissolverá em mil elementos problemáticos. Quanto mais
problemas você resolver, mais aparecerão outros, com o dedo no
nariz, fazendo-te de bobo. D. H. Lawrence.

1
Francis Huxley relata que durante seu trabalho de campo entre os Kaapor,

Antônio-hu perguntou-lhe se conhecia a morada do sol e do divino Maír, situada em algum

lugar nos confins do mundo. Huxley tem de dizer alguma coisa, tanto mais porque um

Tembé, seu intérprete — os Tembé e os Kaapor falam línguas muito próximas —, a p r e -

sentou-lhe a seguinte tradução: ele quer saber se você já viu o mar!


“Eu me levantei da rede e comecei a desenhar um mapa geográfico no chão. O Brasil
ficava sob os pés de Antônio-hu, a América do Norte sob nossa mesa rústica; foi
preciso desalojar um cachorro para situar a Europa; a África ficava perto do pote de
água, e, sob o rebordo do teto, a faixa de terra onde escorre a água da chuva figu-
rava a China. A Austrália contornava um tronco; quanto à Nova Zelândia, quase que
encalhada num cauim” (Huxley, 1980: 209).
Antônio-hu fica constrangido e satisfeito ao mesmo tempo; Huxley entende que o amigo
menospreza o mapa: “Os caraí me dizem que foram até o fim do mundo, mas não é verdade,
só foram daqui até Belém. O fim do mundo, é lá que Ara-yar (o Senhor das araras) vive.
Quando pergunto aos Brancos: ‘Vocês viram Ara-yar?’ Respondem: ‘Não, ninguém v i u ’ ”
(idem: 210).
Apenas uma questão: será que o intérprete estava mesmo errado? Não sei r e s -
ponder, é claro; apenas desejo utilizá-la como pano de fundo para uma ou duas palavras
sobre a experiência em que esta tese está baseada.

2
Em 1984, por ocasião de meu primeiro período de campo, trabalhando no plantio
da roça de Kadu, paramos para descansar e fumar, e ele me contou, por iniciativa própria,
em português, o mito de origem do fogo, disso passando, sem mais, a uma indagação sobre
Papai Noel. Eu lhe disse que não existia “o” Papai Noel; era uma mentira que contávamos
para as crianças. Após apresentar-lhes alguns fragmentos da lenda, pareceu-me neces-
sário falar um pouco sobre fantasia e representação, no sentido teatral do termo, pois a
questão de Kadu evocava-me a figura do Averróis recriado por Borges (“A Busca de
Averróis”). Procurei explicar o que são a fantasia e a representação de um personagem de
432

que se conta, e que conta, uma história, concluindo que Papai Noel era representado por
um homem qualquer. Kadu exclamou que Papai Noel existia, pois ele próprio o viu quando
um Branco, anos atrás, levou-o ao estádio do Morumbi em São Paulo: Papai Noel, com sua
barba branca e comprida, desceu do céu, pousou em seu helicóptero e ficou a acenar para a
multidão inimaginável de Brancos que lá estavam, frisou, apenas para vê-lo.

3
Em 1990, na sexta-feira véspera de carnaval, sentada com o casal Mareaji e

Dad¥ma em um banco da praia de Copacabana, eu vivi algo semelhante. Os Juruna natu-

ralmente queriam saber se o mar (visto pela primeira vez) tinha fim; quanto tempo

durava a travessia e quem vivia na outra margem. Falei-lhes de continentes, oceanos,

países e povos. Chegando a vez do Japão, Mareaji interrompeu dizendo que não era possí-

vel, porque o Japão ficava no mundo inferior, sob a cidade de São Paulo, precisamente.

Insisti que não, enquanto ele tentava fazer-me lembrar que eu mesma levara seu primo ao

Japão. Eu não podia recordar uma coisa que jamais acontecera, nem compreender porque

minha palavra era menos confiável que a do primo. Mareaji me contou o que seu primo

contara aos Juruna. Quando estava em São Paulo (com a mulher e uma menina de colo, no

inverno de 1987), recebeu minha visita. Entramos em um buraco e descemos várias e s -

cadas para finalmente tomar o metrô que nos levou ao Japão (ao bairro oriental da

Liberdade). Vimos, lembrava-me Mareaji, como as árvores do Japão, das quais algumas

chegam a medir apenas um palmo, atingem no máximo um metro de altura; como o rio é

um fio d’água insignificante; vimos que os peixes tampouco crescem, peixinhos miúdos e

finos como uma agulha, secados ao sol, pois, como se sabe, os japoneses não possuem fogo

de cozinha; vimos que os ÷ ë ÷ ã m † japoneses não são de carne e osso como os dos Juruna,

mas de ferro, com feições aterradoras; tampouco vivem em liberdade, mas presos dentro

de paredes de vidro. Eu disse sem mais que seu primo era mentiroso. Expliquei que assim

como descemos as escadas para pegar o trem, subimos escadas para voltar à superfície;

que na mesma rua onde visitamos o jardim miniatura dava para ver do alto de um viaduto,

lá em baixo, uma paisagem de São Paulo. Chamar um Juruna ausente de mentiroso, d e i -

xou-me depois com um peso no coração. Para mim, ele suprimira, voluntariamente ou

não, as escadas da estação Liberdade. Porém, ainda que não tivesse deixado de considerar o

fato de termos subido escadas ao sair do trem, de modo algum era óbvio que teríamos de

chegar à mesma superfície de onde partíramos. Afinal de contas, por que se haveria de i r

de um ponto a outro na mesma cidade fazendo uma incursão pelo mundo subterrâneo?
433

Em 1991, recebi em minha casa a visita de Dumade, que retornava de uma de suas

temporadas em São Paulo, onde é treinado pela Escola Paulista de Medicina para assistir

índios doentes no Parque. Dumade era duplamente bem vindo — ocorrera recentemente um

eclipse solar, eu queria notícias. Nossas conversas revelaram-me um Juruna cheio de

inquietude intelectual, debatendo-se entre uma visão de mundo relativista extremada (que

acredito ser a dos Juruna) e uma concepção, muito próxima de nós, da arbitrariedade da

cultura como ordem que se sobrepõe a um mundo natural absoluto. Por um lado, ele b u s -

cava identificar sob o universo da classificação ocidental os seres imaginários de que falam

os Juruna. Assim, por exemplo, queria saber se o tubarão era o mesmo ogro canibal que os

Juruna chamam pa÷¥. Ora, argumentei, o pa÷¥ não tem dentes, ao passo que o tubarão os

tem em número multiplicado, conforme mostrava bem a ilustração do livro que ele f o -

lheava. Saindo do túnel Rebouças na lagoa Rodrigo de Freitas, pareceu-lhe que a cidade do

Rio de Janeiro era situada na borda do mundo; chamou minha atenção para o fato de que a l i

se podia perceber nitidamente como o céu tem a forma de um guarda-chuva que se mantém

suspenso sobre majestosos rochedos. Pediu-me que confirmasse se o Rio de Janeiro era o

fim do mundo. Bem que os antigos diziam (lembrou-se ele, mencionando um fato absolu-

tamente novo para mim) que as águas se alargavam grandiosamente na borda do mundo.

Por outro lado, motivado pelo que conversamos acerca do eclipse solar, Dumade

falou sobre a completa impossibilidade de eu chegar um dia a bem compreender os Juruna.

Nada sabia sobre a repercussão do eclipse em Tubatuba — ele não estava lá. Contou-me,

porém, sobre como tratara um velho Suyá que começou a berrar de medo “o sol morreu, o

sol morreu”, andando às tontas no Diauarum. O sol não pode morrer, presume Dumade, e

ficou a rir e exclamar isso diante do pobre velho apavorado. Queria, parece, minha cum-

plicidade e, quem sabe, também a palavra dos Brancos sobre o fenômeno.

Os Juruna dizem ora que o sol e a lua “se chocam”, ora que o sol “se apaga”.

Mencionei isso com o interesse de investigar melhor a primeira imagem, pois suspeitava

que a definição do eclipse como um choque entre o sol e a lua não fosse genuína: todos os

registros relacionavam-na a uma confirmação obtida de um dos irmãos Villas-Bôas; quer

dizer, os Juruna deixavam clara sua suposição de que era assim que eu pensava também.

Esperava assim de Dumade um detalhamento dessa imagem. Mas ele não me disse uma p a -

lavra sobre isso, concentrando-se inteiramente na outra imagem e dirigindo-me uma

séria crítica. Talvez com um pouco de desprezo, talvez com certo desencanto (motivado

quem sabe por sua experiência de aprendiz de medicina em São Paulo), mas com delica-
434

deza, fez-me ver que meu trabalho estava de antemão destinado a não dar certo. Como

poderia eu acertar se digo que os Juruna dizem que o sol se apaga? O sol não apaga; o fogo,

sim; a lâmpada também — exemplificou; mas que o sol se apague é um absurdo — os J u -

runa não dizem isso. Eu tinha a transcrição fonética de uma fala de Kadu; movida por um

misto de orgulho, autodefesa e enfado, mostrei-a a Dumade: com todas as letras, o que aí se

dizia, e repetidas vezes, era que o sol se apagava. Isso não deve ser entendido ao pé da l e -

tra, lembrou-me. Dumade era sensível à dificuldade de comunicação, e, mais do que isso,

muito consciente da dificuldade de se exprimir, mesmo em sua língua materna, sobre

temas que só podem ser abordados por aproximação com aspectos da experiência empírica.

Por seu intermédio, eu também soube que o difícil diálogo entre os Juruna e eu

fora tema de conversas em Tubatuba. Falou-me do torturante trabalho mental a que

submeti Kadu com minhas perguntas. Era preciso pensar muito, comentava Kadu com os

Juruna, até encontrar a forma simples e aproximada de me explicar coisas complicadas.

Alguns afirmaram que não tinham disposição para serem meus professores — trabalho

que, segundo Dumade, não seria de fato para qualquer um. Ele próprio se considera dotado

de certo talento e, aumentando minha surpresa, exemplificou sua habilidade recordando-

me sua autoria da interpretação do nome de Seµã÷ã (a associação desse epíteto com a

palavra ïµã÷ã, ‘muda de batata’, com que me brindou nos primeiros dias de meu trabalho

de campo, em 1984), declarando que não foi nada fácil encontrar o meio mais ou menos

apropriado de explicar-me quem é Seµã÷ã.

Disseram-me, pois, que o sol se apaga, mas que ninguém pense — pois os próprios

Juruna não pensam — que isso é da mesma ordem do apagamento do fogo ou da lâmpada. As-

sim, por ironia do destino, tudo pareceu que a mim mil coisas foram ditas por pura apro-

ximação. O pior: de mim não se podia esperar que entendesse figuras de linguagem. Nada

contra mim, particularmente, como mostrava o tom afetuoso e sempre sorridente de suas

observações (na ocasião espinhosas para mim). Dumade estava ali a me sugerir que a

relação de literalidade que se esperaria existir entre a língua e a realidade levava a r e -

sultados decepcionantes; que a distância (intransponível) entre os Brancos e os Juruna é

renovada justa e paradoxalmente pelas palavras. Sem dúvida, sua experiência com a a l -

teridade levou-o para mais perto da verdade do Outro do que me leva a minha.

Em todo caso, já é valioso saber que em uma relação aberta a mal-entendidos de

todos os tipos, pelo menos isso é certo: os Juruna viram bem que estive à busca do seu

simbolismo. Se sou capaz de tomar as palavras em sua exata medida simbólica é outra

história. No mais, quanto a isso, estamos quites. A desconfiança dos Juruna encontra uma
435

espécie de parente pervertido no receio que eu mesma tive quando me vi na situação de ter

de falar-lhes sobre coisas que, visceralmente, não são por nós assumidas como simbólicas

(como é o caso do eclipse solar): os Juruna poderiam compreender bem demais em que elas

consistem realmente, e curvar-se diante da evidência. Então, na melhor das hipóteses,

projetariam nos chamados verdadeiros Yuja o seu saber demasiado antigo e (que agora s a -

bemos que o consideram) aproximativo.


Este início de conclusão mal esconde o meu desejo de silêncio. Contraditoriamente,

é temeridade expor assim à luz aspectos da experiência etnográfica que habitualmente são

mantidos em silêncio. Embora o saber antropológico se saiba e se queira baseado na e x -

periência etnográfica, ele contesta que “os dados imediatos” dessa experiência devam u l -

trapassar o círculo dos mais íntimos. Eu deveria saber conter-me, nem que fosse por ter

verificado que os Juruna têm certa razão ao incluir a temeridade na categoria da disfunção

verbal. Deveria também, ao invés do trecho de Lawrence aqui epigrafado, já que não p o -

deria ambicionar o acesso à verdadeira base das coisas, ter escolhido um verso de

Drummond — Esses pedaços de ti, América, partiram-se na minha mão — para e x p r i m i r

meu pedido de perdão por um texto fragmentado, que não posso totalizar. Assim, tentarei

aparar um fragmento cortante, de modo a fazer com que ele assuma a feição de todo.

Um mito narra a história de um povo humano que levou a dupla questão da verdade

e do Outro ao paroxismo. Os azay habitavam ilhas no rio Xingu e produziam cauim. Não se

sabe que língua falavam originalmente: adotaram a língua Juruna, mas só Deus sabe que

compreensão tinham das palavras. Sua grande distinção — responsável por sua alteridade,

grandeza e também estupidez — vinha do costume de esfregar com cuidadosa regularidade,

em toda lua crescente, focinho de capivara no nariz das crianças. Eram capazes de m e r -

gulhar como capivaras. Faziam-no por esporte nos lugares mais fundos do rio, a equipe

dentro da canoa, um mergulhando de cada vez. O pulmão do primeiro vinha à tona: “Oh,

vamos mergulhar! eu quero mergulhar também, o jaguar do rio está lá no fundo!” Ao fim,

somente a canoa vazia e os pulmões flutuando.

Quando iam caçar, os azay se entregavam à caça, não voltava ninguém, ou melhor,

“talvez voltassem um ou dois para poder contar a história aos outros”, a história de como

foram caçados pela caça.


436

Eram grandes apreciadores de farinha fina. As mulheres prepararam uma vez

inúmeros cestos de farinha para uma viagem que, segundo calcularam, seria bastante

longa: subiriam o rio Xingu até o fim. A viagem não durou nada; ignoravam o que é curva de

rio e declararam ao atingir a primeira curva: o fim do rio é aqui. Abandonaram a ração na

suposta borda do mundo; os Juruna encontraram e comeram a farinha, tão fina que e n -

gasgava.

Apreciavam a guerra. Vendo o cipó pewa-pewa, de espinhos afiados em forma de

garra de gavião, ficavam muito excitados para matar: “Índios, Índios! Vamos abatê-los”.

Avançavam contra o inimigo, furavam-se e morriam. Um Juruna casado com um mulher

azay procurava instruí-los: “Isto não é Índio! Para nós outros, isto é cipó com espinhos”.
“A nós outros nos parece que são Índios. São Índios!”

Capturaram um jovem Txukahamãe. Um dia, levaram-no à floresta, subiram numa

árvore e, um a um, exclamaram: “Rápido, rápido, fleche-me”. O Índio, embaixo da á r -

vore, matou um a um com uma flechada na bunda.

Os Txukahamãe cercaram sua aldeia e o Juruna aproveitou para lhes ensinar a

diferença. “Estes é que são Índios de verdade, vejam bem, estes são Índios, aqueles por

quem vocês se deixam matar são espinhos. Vocês não sabem de nada, vocês tomam cipó por

Índio”.

Reunidos uma manhã embaixo de uma samaúma, crescida na beira do rio e onde

havia uma colméia cujo mel pretendiam extrair, foram surpreendidos pelos Txukahamãe.

Treparam rapidamente na árvore. O Juruna lhes disse que aqueles é que eram Índios,

aqueles é que matavam gente, ao que retrucaram com ênfase: “Que é isso? Eles são nossos

semelhantes, eles são de nosso povo! (sawai )”. E um azay se assanhou, descendo da á r -

vore, grunhindo: “É ingual eu, é ingual eu”. Um dos Índios o mirou e arremessou-lhe a

borduna; o bobo se assustou e voltou a subir rapidamente. Os Txukahamãe, “desprovidos

de arco naquele tempo”, acamparam ao pé da árvore à espera de sua descida. O sol declinou,

o Juruna não pôde contê-los por mais tempo. Estavam todos amarrados com embira aos

galhos da árvore, até que um azay teve a idéia de cortar o galho de um companheiro com o

facão para que ele pudesse cair no rio e escapar. Cortavam o galho, te te te te, o galho caía

n'água, pok, os Txukahamãe se preparavam e gritavam, u u u u , com a borduna em punho,

mas não havia ninguém. Debaixo d'água, cada azay se desvencilhava da embira com que

estava amarrado ao galho e nadava velozmente, emergindo a grande distância. Quase ao fim

da operação, indagaram ao Juruna: —“Podemos cortar teu galho?” Te te te te, pok, u u u u

u. O Juruna também escapou e pôde assistir à emergência dos últimos: grunhiam como
437

capivara, k¥zi k¥zi k¥zi . E agora? A canoa fôra deixada embaixo da árvore, era preciso

recuperá-la para poder voltar à aldeia. Um azay mergulhou e foi buscá-la. E todos r e m a -

ram para valer, batendo os remos na borda da canoa, esbanjando alegria e muito orgulho:

“ A, uabaka-ri ube, uabaka-ri ube, a ” (“Ah, não me matam, não, ah”.). Uma gíria e s -

tranha, onde o (inexistente) sufixo -ri em lugar do sufixo - m ã , de negação, assinala um

emprego poético da linguagem: a negação ganha densidade, já não pode ser transparente à

realidade, pede tradução273.

Kadu retoma trechos do relato, para concluir:

“Esses azay eram numerosos, mas não viveram muito tempo — os Txukahamãe os
dizimaram. ‘Por que vocês são tão estúpidos ( ÷ ë ü )?’, o Juruna lhes perguntava. ‘É
por estupidez que vocês estão se extinguindo’. Mas eles não compreendiam. E quando
esse grupo estava quase todo dizimado, o Juruna foi embora, foi viver com outro grupo
de azay. ‘Eles são Índios! Vocês é que não sabem que eles são Índios’. ‘São nossos
semelhantes, são nosso próprio povo’”274.

O mito ressoa como uma espécie de riso fatídico a lembrar a impossibilidade de se

viver encerrado nos próprios valores. Os azay desapareceram da face da Terra porque

eram incapazes de incorporar a existência dos Outros. A cada um sua verdade... mas, ao

mesmo tempo, a arte de viver implica a consideração dos Outros. Eles ignoravam que a

verdade se constitui na relação de alteridade. Que esta, a alteridade, sob o fundo da iden-

tidade, é interior à humanidade, e deve ser tão construída quanto a relação entre caçador e

caça. Caso contrário, emula-se a si mesmo, com a estupidez mais pueril.

É preciso relacionar este mito com um fenômeno pelo qual passamos diversas vezes

ao longo deste trabalho. Tenho na lembrança proposições como: o trairão é mandioca

wãwaru para o ogro pa÷¥, o sangue é água para o gavião, a noite é dia claro para os m o r -
tos, e assim por diante. Esse fenômeno permite-nos indagar se o pensamento Juruna não

conhece o princípio geral do relativismo segundo o qual a verdade é relativa ao sujeito que

a enuncia. Sendo que esse princípio apresentaria aqui, pela própria especificidade do caso,

273“A poesia (…) é uma província onde o vínculo entre som e sentido passa de latente a patente,

e manifesta-se de maneira a mais palpável e mais intensa...” (Jakobson 1963: 241).


274 Descobrindo que eu tinha gravações deste mito (nenhuma das quais, lamentavelmente, conta

como esses caçadores se deixavam caçar pela caça), as mulhers vinham me pedir para escutá-lo
no gravador. Propus um dia que escutassem diretamente de Kadu; muitas se reuniram (levando as
crianças). Ocorreu-me perguntar por que ninguém ria de uma história tão engraçada. Não se r i ,
mas afirma-se que os antigos davam gargalhadas. É enigmático o motivo pelo qual não se r i
atualmente: “Ninguém conhece mais a história!”
438

certos desdobramentos: a relatividade da verdade ao sujeito do enunciado ou ao plano de

realidade ao qual ela se reporta. Abordando diferentes seres do ponto de vista de sua pos-

sibilidade para si, postulando que o real se desdobra em duas ou mais cenas diferentemente

subjetivadas pelos agentes, a cosmologia Juruna compreende uma diversidade interna ou

uma variação de pontos de vista que a dotam de uma feição relativista. Em que consiste esse

relativismo? Como se articula a questão da verdade à alteridade?


Em algum momento, afirmei que o tucunaré (embora ligado ao verão) é um peixe

que se come praticamente o ano inteiro. Sugeri que do ponto de vista dos mortos que h a b i -

tam os rochedos, dado esse hábito alimentar, os Juruna são canibais. Necrófagos, especi-

ficamente. Disse também que a cauinagem Juruna é uma antropofagia. Tenho pois a mesma

visão das almas dos mortos, exceto que para eles (além do tucunaré), o cauim que se des-

taca não é o mesmo que destaquei. Os mortos detestam puba seca, com a qual se faz o cauim

refrescante. Novamente, a necrofagia. Para mim, os mortos parecem tão canibais quanto

os vivos, e ambos tão canibais quanto seus temidos amigos-inimigos, as almas dos guer-

reiros. Outros necrófagos que guardam à chave o segredo da transformação do pó em carne

moqueada.

Por mais que os Juruna neguem o atributo de podre ao cauim — o podre é o inerte,

o que não mata, o impotente para embriagar (como o cauim refrescante) —, e afirmem que

ele deve ser flagrado no momento de sua raiva e ardência (no momento em que se torna

dotado de potência para matar, potência que se desgasta com o tempo), que deve ser con-

sumido a tempo para evitar o apodrecimento, o fato é que, segundo afirma um mito, um

homem que morre, na ótica de outro morto, é uma pessoa em fermentação. O mito conta a

história de um xamã, viúvo apaixonado, que consegue dar certa densidade à alma de sua

mulher xamanizando a pequena aranha em que ela se transformara. Mas o xamã acaba

sendo morto em um combate com os Txukahamãe, e a morta-rediviva, não tendo mais

motivo para voltar ao nosso mundo, diz ao marido, que não se apercebe da morte: “Você j á

morreu, você já está fermentando”. Baseava-se no fato de que a barriga (da alma) dele
439

estava inchada, e, como se sabe, o apodrecimento começa pelo intestino275.

A condição humana não fornece um meio para pensar o cauim sem que este se

preste também para pensar o destino do homem. Assim, fecha-se um sistema de relações

entre condições antropológicas e categorias culinárias.

Examinando a verbalização do canibalismo, vimos que sua condição lógica era uma

relação de alteridade entre o comido e o comedor. Porém isso ainda não é tudo; o ato a n -

tropofágico exige mais do que a alteridade entre sujeitos situados no mesmo nível cosmo-

lógico — a realidade da vida. Ressaltemos primeiro a forma como os ÷ ë ÷ ã m † , os canibais

verdadeiros, concebem sua ação. É curioso que os mortos, para quem todas os seres e

coisas de seu mundo têm o estatuto de coisas vivas e reais, apreendam a carne de Índio do

ponto de vista exato que sua condição ontológica lhes impõe: não comem carne “de Índio”,

mas “de fantasma” ( ãwã a˚a). A antropofagia é a única experiência cuja apreensão s u b -

jetiva corresponde à realidade do acontecimento, bem como à apreensão que os vivos têm

dessa realidade: os mortos só podem comer a alma da carne do Índio. Em contrapartida, o

canibalismo em vida faz os vivos “subirem-se para fora do real” — se me permitem usar

as palavras de Riobaldo. Ele é a única circunstância da vida em que os Juruna se apropriam

da ótica dos mortos, como se ela fosse a sua, e definem a coisa comida como “carne de fan-

tasma”. Mais um meio, talvez, de recalcar a necrofagia. Vivo ou morto, o canibal come o

que a morte, por definição, não é capaz de destruir: fantasmas. Forma absoluta da

manducação, por implicar a ingestão da parte física e da parte espiritual; ato de

sintetização das categorias da vida e da morte, a antropofagia (no sentido literal) implica

unidade de perspectiva entre vivos e mortos. Neste sentido, ela representa, para os vivos,

a experiência humana total, sem resto, absoluta. Análoga, desse ponto de vista, ao que a

cauinagem com os vivos representa para os mortos: no festival dos ÷ ï ÷ ã n a y , os mortos

consomem tanto a alma quanto o corpo do cauim; à diferença da comida do banquete,

ingerem o cauim sob sua própria ótica e sob aquela dos vivos.

Será que a cauinagem dos Juruna responderia pela diferença que sua escatologia

apresenta no quadro da escatologia Tupi-Guarani?276 O tema do destino diferencial das

almas é desenvolvido pelos Tupi-Guarani seja em torno de uma concepção dualista da alma

275 “É claro que você morreu, já que você está fermentando!”, queria ela dizer, segundo
Mareaji. Esta proposição não remete a um aspecto da escatologia enquanto sistema constituído:
não se pode dizer que a morte em guerra transforme os Juruna em cauim (embora de fato ela
transforme o Índio vítima dos Juruna em carne moqueada).
276 Para uma recensão e análise da escatologia dos povos Tupi-Guarani, ver Viveiros de Castro

1986: 627-46.
440

(um aspecto ligado à animalidade versus um aspecto ligado à divindade), seja em torno de

um destaque das funções do xamã ou do guerreiro. Os Araweté somam as duas possibili-

dades: a morte divide a Pessoa em um espectro da floresta e em uma alma celeste destinada

a se tornar divina; o guerreiro tem um destino póstumo relativamente especial: não libera

o aspecto ligado à animalidade e se torna divino sem ter de ser devorado pelos deuses

(Viveiros de Castro, 1986: 595-6, passim).

Em sua combinatória, os Juruna vão mais longe. Postulam uma divisão virtual da

Pessoa (entre uma alma que se torna ÷ ï ÷ ã n a y e um espectro- ãwã ), e inibem, por meio

dos rituais funerários, a liberação do espectro. Na determinação do destino póstumo d i -

ferenciado, aplicam simultaneamente as duas funções sociológicas — o xamanismo e a

guerra — que muitos Tupi-Guarani aplicam alternativamente. Relacionam, finalmente,

cada uma destas funções a dois destinos diferentes. Os xamãs se tornam (segundo sua e s -

pecialidade) seja ÷ ï ÷ ã n a y , seja ÷ ë ÷ ã m † . E cada um desses destinos faculta à alma um

duplo modo de existência: ÷ ï ÷ ã n a y na sociedade subterrânea dos mortos e jaguar na f l o -

resta; ÷ë÷ãm† e gavião (em nosso mundo). Há também uma dupla possibilidade póstuma

para o guerreiro, concebida como virtualidade: a vida eterna no céu, encarnado em

÷ë÷ãm† e a vida eterna na floresta, encarnado em ogro-ãwã — um destino resultante da


gravidez fantasmagórica que os ritos de homicídio têm por finalidade inibir. As mulheres,

por intermédio da maternidade, o xamã iniciante, por intermédio do tucunaré, bem como a

sociedade inteira, por intermédio de um cauim de mulher menstruada, não são menos

suscetíveis a essa queda na ogritude.

No quadro da escatologia Tupi-Guarani, os Juruna não participam apenas como uma

“variação” a mais num sistema de “variações de um tema”. Incorporam variações que se

acham dispersas entre diferentes grupos, fundindo-as em um todo complexo de destinos

duais, soldado pela noção de virtualidade (ou potencialidade). Não posso aqui (mas p r e -

tendo fazê-lo em breve) investigar e analisar de modo aprofundado as inflexões que esse

sistema produz na concepção da natureza humana, da sociedade, da divindade, do animal e

da organização geral do cosmos. Mas quero chamar a atenção para uma correlação entre

três originalidades Juruna no quadro da etnologia Tupi-Guarani:

• a condição humana do cauim;


• a possibilidade de controlar o destino humano, impedindo que a morte opere seja a
divisão da pessoa em um aspecto divino e um aspecto animal, seja a divisão da sociedade
entre fantasmas que se perdem para a natureza e almas que se dirigem à sociedade dos
deuses;
441

• finalmente, a existência de duas sociedades dos mortos; melhor dizendo, a existência


dos ֕֋nay 277.

Assim, uma receita de cauim, como tudo indica, é uma variável (que se acrescenta àquelas

do homicídio e do xamanismo) capaz de definir o destino do homem e a organização do

cosmos.

A gravidez fantasmagórica fornece-nos uma confirmação indireta desta hipótese.

Ela é provocada, quer por necrofagia simbólica (puba seca ou tucunaré, para o xamã),

determinada como tal por um ponto de vista do Outro, quer pelas seguintes conjunções:

• na barriga de uma grávida: bebê + queimado ou matrinxã;


• na barriga do homicida e membros de seu grupo: alma de sangue de Índio + cauim, ou
queimado;
• na barriga de uma mulher qualquer: cauim + urina (em punição por sua preguiça de
fabricar cauim);
• na barriga de todos os membros de uma aldeia: cauim + alma de sangue menstrual.

A gravidez fantasmagórica, bem como seu ponto culminante, a ogritude, acham-se assim

ligadas à conjunção de formas da antropofagia, todas elas simbólicas. O queimado e o

(gordo) matrinxã só não se enquadram aí aparentemente: são ambos ligados ao cauim por

uma mediação simbólica: o queimado cai sob a mesma categoria que define o sabor e força

do cauim (“forte-amargo”); um dos alimentos do matrinxã, o lodo, é o sabor (para o

paladar humano) do cauim produzido nas aldeias subaquáticas dos pa÷¥.

Em suma, se os Juruna afirmam que a combinação de cauim com outras formas de

antropofagia pode provocar uma queda do indivíduo ou do grupo na animalidade, e preten-

dem dominar esse perigo por meio de restrições alimentares e exclusão da mulher

menstruada do círculo daquelas que mastigam o cauim, parece perfeitamente justo a f i r -

marmos que o cauim é uma variável fundamental naquilo que sua escatologia e cosmologia

apresentam de mais singular.

277 Presente entre os Shipaya e, quem sabe, também entre outros grupos canoeiros do médio

Xingu, produtores do cauim dubia. Não há registro de que os Shipaya postulem a existência de
duas sociedades dos mortos.
442

Os Juruna (muitos sabem ler) bem poderiam incorporar à sua cosmologia o ponto

de vista dos Brancos a respeito de seu cauim. Nada muito importante. À diferença dos

mortos, não chegamos a nos recusar a comer aquilo que nos parece gente, embora seja

verdade que muitos dentre nós não gostem de saliva na bebida.

Quais são os limites desse “parecer para alguém”? É claro que... um tucunaré

assado não é um pedaço de carne humana podre... que os urubus se regalam com as vítimas

dos Juruna... que as almas dos guerreiros têm em seu poder a carne moqueada daqueles

cuja carniça comeram os urubus... que, para os urubus, eles mesmos comeram carne

moqueada.

Iniciemos a abordagem do problema através de uma transformação: existiriam

mesmo as almas dos mortos? Para si próprias, sim! Existem porque sonham sua e x i s -

tência. Acontece que seu sonho abrange os Juruna, e é por isso que os ÷ ï ÷ ã n a y existem

para os vivos: porque os vivos existem para eles. Pouco importa se, primeiramente, p a -

recem irreais para mim; o que importa é que sou real para eles. O ponto fundamental é a

capacidade do pensamento (ou dos seres dotados de alma, se não quisermos nos afastar

muito da linguagem Juruna) de engendrar realidades que são a um só tempo subjetivas e

objetivas.

A diversidade de perspectivas não implica a distinção entre o verdadeiro e o falso.

Seµã÷ã, ao gerar seus filhos, copula (segundo seu entendimento) com a esposa e injeta

sêmen na terra molhada de urina. Uma coisa e a outra, a verdade é isso e aquilo; assim

como o pai de Seµã÷ã é um humano para si mesmo e um jaguar para os humanos.

A diversidade não é concebida em termos de arbitrariedade e contraste com uma

ordem de causalidade natural. Examinemos um caso que à primeira vista não me p e r m i -

tiria afirmar isso. O guariba não perde a tranquilidade quando lhe atiram uma flecha

emplumada com uma pena de arara: vê uma arara voando em direção aos frutos da árvore

em que está trepado; em revanche, como se apavora com o vôo de uma flecha emplumada

com uma pena de gavião! Embora seja verdadeiro que a flecha-arara mate o guariba tanto

quanto a flecha-gavião, não se pode objetar ao pensamento Juruna o argumento de que, o

que quer que o guariba pense, a flecha vai derrubá-lo. O problema não é que a perspectiva

do guariba seja demasiado estreita, em comparação com as capacidades humanas. Com as

pessoas também se passam coisas semelhantes. Por vezes, revela-se que o peixe que a l -

guém matou, assou e comeu era uma pessoa da espécie dos ãwã kãnã. Revela-se que um

Índio na floresta profunda, em quem se atira uma flecha, cai morto como um veado. Um

fantasma não é Índio e não é veado; é aquele capaz de possuir e não possuir densidade,
443

pensar-se humano, encarnar-se em Índio, morrer como veado.

As perspectivas não se reportam a uma referência absoluta, a uma realidade i n -

dependente frente à qual revelariam sua maior ou menor adequação. Tampouco a teoria

opera no quadro de uma dicotomia entre verdade subjetiva e realidade objetiva. Não há

divisão estanque entre Sujeito e Objeto, nem basta dizer que Sujeito e Objeto são posições

intercambiáveis ou reversíveis. Os valores não se confrontam com a objetividade, mas

com outros valores; sua eficácia provém não da compatibilidade entre a ação dos sujeitos e

a natureza última das coisas, mas dos próprios valores. Estes são sempre, neste sentido,

objetivos. Realmente, por vezes, uma arara mata um guariba. Mas isso se deve ao fato de

que a verdade de cada um pode traí-lo. É claro que um tucunaré moqueado não é um pedaço

de carne humana podre. Mas é justo por sê-lo para alguém que pode provocar gravidez

fantasmagórica em um xamã.

O papel de critério de verdade que a Natureza desempenha entre nós é aproxima-

damente análogo àquele que os Juruna atribuem aos Outros, exceto que o caráter da verdade

do Outro não é o de verdade última. Trata-se de uma verdade relativa, em que cada ponto de

vista é limitado pelos outros, não por uma referência material ou transcendente.

Esta limitação nos põe diante de um outro aspecto, a saber, a não-equivalência dos

diferentes pontos de vista. O jogo da vida não é regido por uma lei do tipo “ou, ou, ou”,

mas pela lei do “e, e, e,”. Cada valor importa na própria medida da sua variação com o u -

tros, e só a sua soma permite dar conta da amplitude do cosmos. A cada um sua verdade...

mas por vezes a verdade está alhures.

Segundo demonstra Bento Prado (1994) em um texto muito instigante, no pen-

samento filosófico, o relativismo opera atrelado a seu oposto, o absolutismo, bem como ao

par subjetivismo/objetivismo. Protágoras nunca está só; ao seu lado, acha-se sempre

Platão, ou Demócrito, ou Sexto Empírico. Diante disso, minha utilização do termo r e l a -

tivismo para qualificar a cosmologia Juruna se defrontaria com uma dificuldade. Pode-se

ainda falar de relativismo em uma província ou ilha do pensamento humano onde

Protágoras parece finalmente estar só? Não sei; mas foi o meio que encontrei para chamar

a atenção para esse aspecto do pensamento Juruna, cujo nome não é o que mais importa278.

278 É preciso lembrar que o relativismo Juruna ultrapassa as fronteiras do cosmos Juruna. Com

base na diversidade humana, está-se sempre suficientemente alerta para a pluralidade e


diversidade dos cosmos humanos. Seja a possibilidade de penetração das forças do universo
Kayabi no cosmos Juruna, seja a possibilidade de abrir-se sob a cidade de São Paulo um
microcosmos subterrâneo.
444

Poderíamos dizer que o modelo da verdade implica ambivalência. Mas isso poderia

permitir imputar-lhes uma incapacidade de pensar clara e distintamente, quando a com-

plexidade de seu pensamento não merece ser tomada como confusão. Melhor faríamos a s -

sinalando que a verdade implica de modo essencial a pluralidade e a polivocidade; que a

projeção da verdade sobre planos cósmicos diferenciados, ou sua dispersão entre pontos de

vista diversos estão inscritas em sua própria natureza.

Era assim que os azay ignoravam que a verdade não estava apenas consigo mesmos.

A sabedoria humana é nada menos que o conhecimento da alteridade e o saber da variação. É

a capacidade de operar deslocamentos, transições entre pontos de vista incomensuráveis. É

também a capacidade de operar gradações, distinguir realidades mais verdadeiras e menos

verdadeiras; verdades mais parciais e mais totais. Não que exista uma perspectiva geral

capaz de efetuar uma gradação semelhante, mas porque a perspectiva humana, justamente

limitada por aquelas de seres que exercem seu poder sobre os homens tirando-lhes a vida,

é a que exige mais sabedoria. Aceitar submeter-se às verdades dos Outros em circuns-

tâncias específicas, mas marcadas com um traço comum: a morte, enquanto realidade ou

virtualidade.

A morte abala a ordem cósmica, intersectando os planos que compõem o cosmos.

Isso pode ou não ser desastroso, mas geralmente põe em alerta, pede a instauração p r o -

visória da lei do Outro. Assim o tucunaré torna-se cadáver no luto; assim o urubu ou a

cauinagem que sobrevêm no sonho tornam o homem vulnerável à morte próxima. Quanto ao

mais, se o sentido não se altera quando passo do sonho (extensão do mundo dos mortos)

para a vida, altero-me eu, torno-me Outro — morro.


O sol não se apaga porque é mais que fogo, nem morre porque é mais que humano.

Brilhante cocar de penas de arara, o sol é eterno. O mundo é que transitório. A vida é

condicionada pela presença contingente do astro. Seµã÷ã pode decidir levá-lo para o lado

avesso do céu. Apenas para os que vivem neste mundo, a escuridão resultante do translado

em que consiste o eclipse equivale a apagamento — doce ilusão da palavra, pois, os homens

sabem-no bem, a vida encontra-se assustadoramente ameaçada nessa prefiguração do que

lhes acontecerá quando o magnífico xamã instaurar a vida alhures.

Todo o problema talvez possa ser assim dito: os homens estão situados a meio c a -
445

minho entre a realidade e a linguagem. Fazem com uma o melhor que podem, para suportar

a outra.
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