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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

LETÍCIA PILGER DA SILVA

SUJEITOS OBLÍQUOS DE UM SOPRO DE VIDA, DE CLARICE


LISPECTOR

CURITIBA
2017
LETÍCIA PILGER DA SILVA

SUJEITOS OBLÍQUOS DE UM SOPRO DE VIDA, DE CLARICE


LISPECTOR

Monografia apresentada como requisito parcial


à obtenção do título de Licenciada, Curso de
Letras – português/inglês, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal
do Paraná.

Prof. Dr. Alexandre André Nodari

CURITIBA

2017
AGRADECIMENTOS

Antes de tudo, agradeço aos meus pais, Eliza e Denilson, que me deram o sopro
da vida, me apoiaram e me auxiliaram durante toda a vida escolar e acadêmica. Sem vocês
eu não conseguiria nada. Obrigada por me aguentarem falando da faculdade todo dia e
me aguentarem em todas as crises de ansiedade que a vida acadêmica me fez passar, pelo
apoio emocional e pelo suporte material.. Eu amo vocês demais da conta. Obrigada!
À minha vó amada, dona Selminha (also known as Palmirinha II, Dona Véia e
Doca), por absolutamente tudo, especialmente por ser a base da nossa família e por manter
todos unidos desde a vinda sofrida para Curitiba.
A todos os meus amigos, sejam aqueles que conheci no ensino médio, aqueles que
conheci aleatoriamente na vida, ou aqueles que me acompanharam na graduação, por
terem compartilhado leituras, experiências, rolês, risadas, choros, livros e conversas. Sem
amigos eu não teria conseguido. Cito nomes em especial pela presença essencial no meu
cotidiano e produção acadêmica ao longo desses cinco anos de Reitoria: obrigada, Regina,
Laura, Claudia, Ana Paula, Ana Freitag, Amy, Gabriela, Amyr, Tati, Renan, Mateus e
Mariana, por tudo!
À minha psicóloga, Flávia Pachiega, por ter me ajudado a lidar de forma mais
tranquila com essas pulsações que são a vida e a me (re)descobrir pelo monólogo-a-dois
e pelo diálogo-a-um da terapia. Você me mostrou que, apesar de a vida ser perigosa e,
como disse Clarice, não ser vivível, o sofrimento não precisa ser a infraestrutura dela e o
processo de viver vale a pena.
À professora Janice Inês Nodari, pela amizade, pelos conselhos valiosos, pelas
reuniões (para jogar conversa fora sobre a vida), pelos inúmeros livros emprestados, pelos
longos e-mails finalizados em “abração”, por ter acreditado em mim desde o começo da
graduação, por ter me ajudado a publicar meu primeiro artigo e apresentar meu primeiro
seminário em congresso, e também por ter compartilhado comigo a autoria de um capítulo
de livro. Além de, é claro, ter sido minha “chefa” maravilhosa na Revista Versalete. Saiba
que parte da minha vida acadêmica é fruto de sua docência e dedicação, Janice.
Ao meu orientador, Alexandre Nodari, pelo convite à orientação, por toda a
antropofagia durante a graduação, pelas aulas clariceanas, convites para apresentações,
livros emprestados e PDFs compartilhados, artigos publicados (seus artigos me ajudaram
muito, Nodari!), comentários na monografia, ensinamentos e orientações clariceanas
durante este ano – e pela paciência. Você disse no começo do ano que esta proposta de
pesquisa seria um desafio e um “degrau a mais” na minha vida acadêmica, então te
agradeço por ter acreditado no potencial do trabalho e na minha capacidade (foi sofrido,
mas valeu a pena) e por ter feito uma excelente orientação.
Junto a ele, veio o grupo Subspecie, cujos integrantes também agradeço por terem
compartilhado leituras comigo, me escutado, me lido – dois projetos – me auxiliado e me
ensinado muito nos encontros das quartas-feiras.
Ao PIBID e ao PIBIC – e à CAPES e à UFPR/TN –, por terem possibilitado que
eu desenvolvesse prática docente e pesquisa na graduação, além de permitirem que eu
focasse na formação acadêmica. Aqui, agradeço às minhas supervisoras no PIBID,
Silvana e Givanete, minhas coordenadoras no PIBID, Janice (de novo), Ane Cibele e
Gesualda, e ao meu orientador na Iniciação Científica, Klaus Eggensperger.
Last but not least, à Clarice Lispector, por ter dado um sopro de vida (e um monte
de estresse) e escrito o texto que (me) soprou a vida deste texto e ter permitido que eu o
soprasse novamente na leitura.
Foto: Gabriel Kleinke
Clarice e eu-eu e Clarice
Escritura-leitura
Eu-tu-ela
Nós

“Eu não sou quem escreve,

Mas sim o que escrevo:


Algures Alguém
São ecos de enlevo.”
(Décio Pignatari)

“Legião é o meu nome, pois somos muitos.”


(Marcos, 5:9)
RESUMO

O presente trabalho tem como objeto de pesquisa o livro póstumo de Clarice


Lispector, Um sopro de vida. Pretende-se analisar a subjetividade, a importância da
alteridade e as torções ulteriores das instâncias da narrativa – escritor, autor, leitor,
personagem e leitor. A partir disso, investiga-se a constituição do sujeito poético, a
heterogeneidade constitutiva da enunciação, o papel do sujeito-leitor no ato da leitura, e
também a fronteira entre a realidade e a ficção. Segundo Benedito Nunes, os dois
personagens do livro – Autor e Ângela Pralini – têm relação heteronímica com Clarice
Lispector, no entanto, a leitura aqui proposta diverge dessa análise e propõe, como
alternativa à interpretação da subjetividade, uma relação de “pseudonímia quadrática” –
termo de Giorgio Manganelli, recuperado por Giorgio Agamben. Como resultado, a
presente análise realiza uma leitura matrioskal das instâncias narrativas, pois o dêitico
“eu”, tanto enunciado pelo personagem Autor quanto pela personagem Ângela Pralini,
pode ser preenchido intercambiavelmente por ambos, por Clarice e também pelo leitor,
de modo que haveria uma heterogeneidade dêitica que culminaria em uma equivocidade
e abriria o texto para a quarta dimensão da leitura.
Palavras-chave: Clarice Lispector; pseudonímia; obliquação; instâncias narrativas.
ABSTRACT

The purpose of this work is to analize Clarice Lispector’s posthumous book Um


sopro de vida. It aims to investigate the subjective, the importance of otherness and the
tortions of the narrative instances – writer, author, character and reader. From these
aspects, it is investigated the constitution of the poetic subject, the constitutive
heterogeneity of enunciation, and the role of the reader in the act of reading, besides the
border between reality and fiction. According to Benedito Nunes, both characters of Um
sopro de vida – the Author and Ângela Pralini – have heteronimic relationship with
Clarice Lispector. However, the analysis proposed here disagrees from this analysis and
proposes, as an alternative to the interpretation of the subjective, a relationship of
“quadratic pseudonym” – Giorgio Manganelli’s, recovered by Giorgio Agamben. As a
result, this analysis realizes a matrioskal reading of the narrative instances, since the
deictic “I”, as enunciated by the Author as well by Ângela Pralini, may be occupied
interchangeably by both of them, Clarice and the reader. Thus, there would be a deictic
heterogeneity that would culminate in an equivocality and also in the opening of the text
for the forth dimension of reading.
Keywords: Clarice Lispector; pseudonym; obliquation; narrative categories.
SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO: o início do sopro .................................................................................7


2. CAPÍTULO I: A gênese do livro e da vida...................................................................10
3. CAPÍTULO II: Os sujeitos oblíquos de Um sopro de vida...........................................28
3.1. A enunciação literária......................................................................................35
3.2. A psicanálise....................................................................................................40
3.3. A criação literária.............................................................................................44
4. CAPÍTULO III: Obliquação do leitor...........................................................................62
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O fim do sopro .............................................................73
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................77
7

1. INTRODUÇÃO: O início do sopro

Tão ficcional quanto a ficção é a crença de que o ser humano é é uno e


indivisível, um in-divíduo; Como veremos, o sujeito é formado por uma
heterogeneidade constitutiva, seja na cisão constitutiva da subjetividade, isto é, uma
alteridade interna ao próprio sujeito, a diferença do sujeito consigo mesmo, na sua
constituição psicológica – consciente e inconsciente – e na discursividade – como “eu”
referente e “eu” referido da enunciação, de modo que ocupa as posições reversíveis
entre sujeito e objeto no enunciado, e na polifonia do dialogismo, pois um sujeito
produz um enunciado que sempre ecoa outros, ditos pelo locutor ou por outras vozes, de
modo que, como veremos na análise, todo ego é ecoante. Isto é, todo sujeito é vários. O
que chamamos de sujeito é uma multiplicidade de posições, pelas quais é possível
transitar.
A literatura, enquanto espaço de ficção, abre posições de sujeito e se configura
como um espaço onde podemos experienciar esse trânsito por outros “eus” e, através do
outrar-se, dividirmo-nos em egos imaginários – na escritura e na leitura. Desdobramo-
nos na palavra literária para experimentarmos outros modos de existência.
É essa experiência que Clarice Lispector traz ao primeiro plano da sua obra,
propondo disruptivamente uma nova maneira de lidar com a alteridade interna e
externa: uma posição oblíqua entre o eu e o outro, que encena, ao mesmo tempo, os
diversos conflitos envolvidos entre a compaixão e a projeção – estratégicas comumente
usadas na relação com o outro. Enquanto, em geral, no ocidente, a cisão do sujeito é tida
como dualismo hierárquico, isto é, corpo versus alma, eu versus outro, sujeito versus
objeto, consciente versus inconsciente, com a supremacia da suposta unidade do polo
mais forte de cada dualismo, na literatura de Clarice não há preponderância de um polo,
não há hierarquia, não há submissão do corpo à alma, do inconsciente (esse outro de si)
ao consciente, há um contato entre os polos, há um tensionamento e uma coexistência
desses duplos.
Assim, Um sopro de vida é um livro que, ao dramatizar a criação literária por
meio de uma “demolição de alma” e da reversibilidade das posições da enunciativa,
joga com as divisões do sujeito literário – revelando o caráter deslocado e fragmentado
da identidade do sujeito moderno, do autor que é também leitor, do autor que é
personagem, do eu que é o outro, e vice-versa. Há, no livro, várias relações entre
8

criadores e criaturas entre as várias instâncias narrativas destas “pulsações”, além da


subversão do universo da escrita e do desmascaramento da ilusão ficcional pela
estrutura da obra.
Dessa forma, o objetivo deste trabalho é analisar a escrita e a subjetividade nesse
livro póstumo de Clarice. Considerando o caráter metalinguístico da obra, também
iremos sondar como, ao falar da literatura pela literatura, estão inscritos no texto os
constituintes da narrativa – função autor (Clarice), autor-narrador-personagem (Autor),
personagem (Ângela) e leitor –, a relação (de domínio ou não) entre eles e o jogo de
identidades na criação literária. Além disso, analisaremos a ficcionalização paródica da
(própria) escrita literária, a subversão das instâncias narrativas tradicionais, a proposição
da formação de uma equivocidade literária através da investigação da enunciação
literária e a compreensão da escrita como solidão.
No primeiro capítulo, intitulado “A gênese do livro e da vida”, trataremos do
processo criativo clariceano e da composição do livro cuja análise é aqui proposta. Isto
é, serão focadas a sua construção e a sua publicação, considerando que o livro é
póstumo e Clarice não o estruturou – quem o fez foi sua amiga Olga Borelli. O processo
criativo de Clarice será investigado através de uma análise paratextual e hipertextual a
partir de algumas de suas crônicas e de textos que tratam de sua poética e de sua vida.
No segundo capítulo, “Os sujeitos oblíquos d’Um sopro de vida” investigaremos
como a subjetividade é construída dentro do livro, considerando o caráter
metalinguístico do texto, a dramatização da criação literária e a disrupção realizada no
discurso literário por meio de uma torção ulterior das instâncias narrativas – a saber:
escritor, autor, narrador, personagem e leitor – com o objetivo de questionar: quem é
que fala no livro? Para investigar a subjetividade, analisaremos a escritura, a concepção
de criação na enunciação literária, a importância da alteridade para a constituição de
uma identidade, a relação entre criador e criatura entre as instâncias narrativas e os
devir-coisa presente no texto. Neste momento, cabe uma consideração reavaliativa da
análise de Benedito Nunes, para quem a relação entre Clarice, Autor e Ângela
configuraria uma heteronímia, na qual Lispector seria o ortônimo. Ao defendermos a
impossibilidade heteronímica, propomos uma interpretação que engloba uma quarta
dimensão desta relação: a do leitor. O autor, aquele que Barthes matou e depois
recuperou, só pode voltar ao seu texto enquanto leitor, e Clarice, ao utilizar as
estratégias de reversão paródica e de intratextualidade na composição do seu livro, está
9

(se) lendo (sua obra), de modo que, como propõe Giorgio Agamben sobre o escritor
italiano Giorgio Manganelli, o nome Clarice Lispector seria um pseudônimo
quadrático.
No terceiro capítulo, “A obliquação do leitor”, ao recuperarmos a proposta de
Alexandre Nodari da literatura como obliquação em sua análise de A paixão segundo
G.H., refletiremos como Clarice joga os significantes numa escritura feita no presente e,
consequentemente, sobrepondo-a à leitura, de modo a englobar o leitor, este ser que se
obliqua nos egos experimentais da ficção e que se escreve ao ler – assim como o fez
Clarice. Nossa análise aponta para a torção/espelhamento/matrioska entre autor e leitor,
pois, assim como o Autor precisava de Ângela, um autor precisa de um leitor, pois o
texto só existe enquanto ato no momento da leitura. Por fim, faremos as considerações
finais, aqui chamadas de “O fim do sopro”, sopro este não definitivo, mas singular e
ecoável, pois mais sopros podem (e devem) vir das pulsações clariceanas, de modo a
aumentar a fortuna crítica e a análise deste livro, que foi seu último.
10

2. CAPÍTULO I: A gênese do livro e da vida

Um sopro de vida foi o último livro escrito por Clarice, entre 1974 e 1977, tendo
sido, no entanto, publicado postumamente, em 1978 – um ano após sua morte. Ela o
escreveu simultaneamente a A hora da estrela, último publicado em vida, e podemos
dizer que ambos constituem uma inflexão final na obra da autora, por colocarem foco
nos discursos metaficcionais, pois Clarice ficcionaliza a escrita a partir da própria
escrita, desdobrando e misturando todos os elementos constituintes da ficção, colocando
a nu o fazer ficcional; e também por ambos os livros desnudarem1 a autoria clariceana
na relação escrever = viver.
O contexto da publicação desse livro já permite que pensemos a configuração
do sujeito dividido e cindido que será analisada no decorrer do trabalho, por isso, aqui,
no princípio, trataremos da montagem do livro e do processo de composição da escrita
da autora – com foco no recurso da intratextualidade. Como a relação entre escrita e
vida/ ficção e realidade é essencial na obra de Clarice, principalmente para a análise da
subjetividade e da enunciação literária de seus escritos, serão tomadas na análise
considerações das biografias que contam a vida da escritora por meio da recuperação de
sua ficção, embaçando a relação entre ambas, lendo Clarice por meio de seus
personagens, transformando-a em uma personagem e, assim, desfazendo as fronteiras
entre escritor, narrador e personagens.
As palavras de Um sopro de vida são de Clarice, mas, devido à publicação
póstuma, a estrutura não é dela, mas de sua amiga, Olga Borelli, de modo que não se
sabe se Clarice teria aprovado o material publicado. Borelli conviveu com ela por oito
anos, testemunhou seu processo de criação – acompanhando seus momentos de escrita,
anotando suas frases, organizando seus manuscritos, datilografando seus textos – e, a
pedido do filho mais novo de Clarice, ordenou os manuscritos de seu último livro, como
relata no prefácio que o abre:

Durante oito anos convivi com Clarice Lispector, participando de seu


processo de criação. Eu anotava pensamentos, datilografava

1
João Camillo Penna (2010, p. 86), ao analisar Perto do coração selvagem, defende que o desnudamento
de Clarice é uma construção, pois ela sempre buscou o “despojamento da fábula” por meio de “uma
experiência nua desficcionalizada” (p. 75). Com isso, seus textos revelam o “‘nada’, o grau zero do
acontecimento” (p. 91), trazendo para o material a transcendência de modo que o epifânico seria a
“desencarnação de um mundo messiânico, nem belo nem feio, mas neutro” (p. 95) e, assim, mostrando
que o máximo da graça está ligado ao mínimo, ao baixo.
11

manuscritos e, principalmente, partilhava dos momentos de inspiração


de Clarice. Por isso, me foi confiada, por ela e por seu filho Paulo, a
ordenação dos manuscritos de Um sopro de vida.
E assim foi feito.2

A partir dessas anotações e desse acompanhamento do processo criativo da


autora3, Borelli selecionou e estruturou os fragmentos do livro, dividindo-os em quatro
partes. Dessa forma, pode-se dizer que este livro não é inteiramente de Clarice, pois as
palavras são dela, mas a estrutura é de Borelli, o que faz com que o livro tenha sido
ordenado pelo Outro, por um leitor, o que faz com que a delimitação da autoria tanto no
espaço empírico quanto no espaço literário seja duplicada. No contexto desta obra, o
sujeito que ocupa a posição de “autor(a)” está duplamente morto(a), dentro e fora do
texto, como se (co-incidentemente) a realidade empírica da vida de Clarice refletisse a
literatura, pois, por um lado, ao ter a sua morte decretada no célebre texto de Roland
Barthes4, a figura do autor enquanto instância literária perde o poder de determinar a
significação das palavras que lançou e que formam o corpo do texto, e quem passa a
deter poder é o leitor5. Por outro lado, a autora do texto morreu antes de concluir o livro
(restando a nós nos perguntarmos – perguntas estas que, no entanto, nunca serão
respondidas: será que o texto foi devidamente concluído?, será que Clarice teria
organizado da mesma forma que Borelli?, será que Clarice, como fez em livros
anteriores, teria suprimido os mesmos trechos que Borelli deixou de lado?6, será que
Clarice escreveria mais um fragmento de texto antes de publicar?).
A morte empírica da escritora antes da publicação do livro resultou na coautoria
de uma leitora e no fato de o horizonte de uma leitora constituir o horizonte dos demais
leitores, de modo que Clarice perdeu o domínio de seu texto duas vezes: na estrutura e
na significação. Ela já previra essa perda de poder dentro do livro, no diálogo entre
Autor e Ângela, como será visto no segundo capítulo, e em uma crônica, em que afirma:
“O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que
inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor

2
O texto do prefácio se encontra apenas na primeira edição do livro, tendo sido retirado na edição
vendida atualmente pela editora Rocco, feita em 1999.
3
Olga Borelli já havia ajudado Clarice a organizar os textos que originaram Água viva (MANZO, 1997).
4
BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: ______. O Rumor da Língua. 2004, p. 43-64.
5
Tal fato se desdobra dentro de Um sopro de vida, como será analisado no terceiro capítulo.
6
Os manuscritos originais do livro se encontram no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, desde
2004. Infelizmente não tivemos a oportunidade de realizar estudo minucioso dos fragmentos por questões
de localidade.Cf. http://www.ims.com.br/ims/explore/artista/clarice-lispector/no-ims
12

que na verdade ele, o leitor, é o escritor”7. Isto é, Clarice concebia as categorias


narrativas como funções e posições híbridas e reversíveis, a ponto de leitor ser
personagem e escritor, assim como o escritor será leitor e personagem – Clarice é leitora
de sua própria obra e personagem de sua vida.
Assim sendo, acerca do último livro escrito por Clarice, lemos na ordem e
estrutura dispostas por Borelli. Lemos o que Borelli leu e organizou sob o título Um
sopro de vida para ser posteriormente lido por nós. Borelli, portanto, é uma espécie de
coautora do livro8. Devido a isso, parte da crítica desconsidera o livro como obra
acabada, pois sem um autor para assinar na hora da publicação, considerando-o mais
uma compilação de fragmentos que comporiam um suporte para seus demais textos,
como A hora da estrela9.
Por tal fato, o livro possui reduzida crítica especializada, da qual devemos
mencionar: as três páginas de O drama da linguagem, de Benedito Nunes10, nas quais o
autor analisa brevemente a constituição das identidades dos sujeitos envolvidos; o
capítulo de Travessia do oposto, de Olga de Sá, no qual a autora defende o uso da
reversão paródica da ilusão ficcional na composição da obra, misturando e invertendo as
categorias narrativas, além de discorrer sobre a concepção da escrita de Clarice; e o
último capítulo da tese de Maria Lúcia Homem, intitulada No limiar do silêncio e da
letra: traços da autoria em clarice lispector, no qual a psicanalista analisa o silêncio e a
autoria no texto clariceano, os títulos propostos (por Borelli?) e a relação entre Autor e
Ângela sob o viés psicanalítico, considerando o inconsciente e o sonho.
Além destas referências, o livro Figuras da escrita, do pesquisador português
Carlos Mendes de Sousa11, lança muitos relances sobre o livro, na posição de uma das
críticas mais completas da obra clariceana, e o artigo “Um sopro de vida de Clarice
Lispector: a auto-destruição criadora do sujeito moderno”, de Joana Matos Frias12, sobre
a configuração fragmentada do sujeito literário no livro e a multiplicação identitária via
criação literária, também é relevante ao se debruçar sobre a (des)construção da
subjetividade pelos vieses linguístico, psicanalítico e poético. Tais referências serão

7
LISPECTOR, Clarice. “Outra carta”. In: ______. A descoberta do mundo. 1999, p. 78-79.
8
Como propõe: HOMEM, Maria Lúcia. No limiar do silêncio e da palavra: traços da autoria em
clarice lispector. 2011.
9
Ibid., 2011.
10
NUNES, Benedito. O drama da linguagem uma leitura de Clarice Lispector. 1995.
11
SOUSA, Carlos Mendes. Figuras da escrita. 2000.
12
FRIAS, Joana Matos. Um sopro de vida de Clarice Lispector: a auto-destruição criadora do sujeito
moderno. 1998.
13

ecoadas na análise que faremos, em um diálogo, seja como apoio crítico, ou para serem
questionadas, repensadas ou ampliadas.
A montagem do livro por Borelli, isto é, o momento posterior à sua escritura e
anterior à nossa leitura, revela a constituição cindida da subjetividade autoral e espelha a
relação, presente na obra, da identidade-alteridade, ou como Benedito Nunes disse, o
“jogo das identidades”13. Podemos dizer que há jogo de identidade dos textos
clariceanos, pois o v(e)(ó)rtice do livro é toda a obra de Clarice – seus romances, seus
contos, suas crônicas, suas notas e também sua vida14 –, a qual guiou a ordenação dos
fragmentos, de modo que o nome da autora corresponde à função autor de que fala
Michel Foucault15. Para ele, a função autor seria um nome próprio utilizado para a
delimitação dos textos que compõem determinada “obra”, nome responsável pela
reunião de textos por questões estilísticas ou temáticas, e também pela organização dos
discursos na sociedade. Como Borelli usou dos textos de Clarice e a montagem dos
demais livros16 para guiar a organização do livro póstumo, faz-se relevante que
sondemos o processo de composição da autora e nos perguntemos: como Clarice
concebia o ato de escrever?
Clarice dava a ver aos outros seu processo de composição e de organização dos
seus textos17 como algo fragmentado e descompromissado. Ela também relatava que
escrevia “só quando a ‘coisa vem’”18 e que se dava melhor “com a minha falta de
método ou planejamento”19, o que sustentava o mito de seu suposto (não-)método
apoiado na ideia de inspiração20. Clarice relata em cartas, e Olga Borelli reafirma em
seu livro, que ela não suportava o ofício de organizar/estruturar seus escritos, além de
que jamais relia o livro depois de publicado, pois livro publicado era livro morto.
Contudo, ela escreveu oito versões de A maçã no escuro, reduziu mais de uma centena

13
NUNES, Benedito. O drama da linguagem uma leitura de Clarice Lispector. 1995, p. 160.
14
Considerando que falar da obra clariceana é, muitas vezes, falar de sua própria vida, e que Olga Borelli
fez uma leitura biografizante do texto, a biografia de Clarice também marcou a constituição do livro.
15
FOUCAULT, Michel. O que é o autor? In: ______. Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura,
música e cinema. 2011.
16
Vale apontar que Olga Borelli auxiliou Clarice a organizar e a diminuir as duas versões que deram
origem a Água viva (MANZO, 1997).
17
Seja escrevendo sobre a composição de seus livros, em cartas e crônicas, seja sendo observada –
literalmente se dando a ver – por Borelli, que reafirma a versão da escritora sobre sua “forma” de
escrever.
18
LISPECTOR, Clarice apud GOTLIB, Nádia, – uma vida que se conta. 1995, p. 434.
19
Ibid., p. 343.
20
Segundo Borelli (1981), Clarice escrevia as frases que estas apareciam no verso de recibos, em
guardanapos, e também as datilografava quando estava próxima da máquina de escrever; a amiga conta
que ela chegava a parar na rua para anotar frases.
14

de páginas da primeira versão de Atrás do pensamento para Objecto gritante e,


finalmente, para Água viva, além de que republicou diversos textos ao longo da vida,
modificando trechos e alterando seus títulos – ordenação e reescrita que, ao contrário do
que se mitificou ao redor de e pela própria Clarice, demandaram leitura e releitura dos
textos, isto é, trabalho e construção.
O trabalho constante sobre os textos revela que a escrita clariceana é marcada
pela intratextualidade, uma poética da reescrita que, como defende Neiva Kadotta,
mostra a ironia da autora e, acrescentamos, a incessante e interminável procura pela
experiência do silêncio e da coisa via palavra:

A intratextualidade é talvez a marca paródica mais representativa na


obra de Clarice porque é um desdizer o seu próprio texto, é um
trabalhar num tempo reverso na busca de uma correlação entre
passado e presente, traduzidos em um único instante-já. É uma
reconfiguração de seus escritos por meio de uma “varredura” e junção
de linhas e traçados dispersos, num movimento combinatório desses
elementos em um novo sintagma. É um espelhamento da própria obra.
É o fim e a profanação da “aura” do escritor e a substituição dos
momentos de “inspiração” pela reprodução contínua das próprias
expressões numa postura crítica e irônica da “originalidade”
expressiva do autor.21

Com a poética da reescrita, nega-se palavras da escritora acerca de nunca voltar


para um livro depois de publicado (como ela também alegara não ter lido O retrato do
artista quando jovem, de Joyce, do qual retirou o título de seu primeiro romance), e
revela o fato de que o escritor volta para seu texto como leitor do outro de si – de quem
ele fora, de sua identidade outra, já que esta é fragmentada e deslocada no espaço-tempo
–, “única”22 posição que o escritor pode voltar para seu texto. Como é que Clarice volta
para seus próprios textos?
Partindo da leitura feita por Edgar Cézar Nolasco23, podemos dizer que o
processo de criação operacional de Clarice é realizado via intratextualidade por meio de
duas técnicas. A primeira delas é o palimpsesto, nas ocasiões em que a escritora
modificou um (trecho de) texto já publicado e o publicou em outro contexto. Ao

21
KADOTTA, Neiva. P. Tessitura dissimulada. O social em Clarice Lispector. 1995, p. 83 apud
HOMEM, Maria Lúcia. No limiar do silêncio e da letras: traços da autoria em clarice lispector. 2011., p.
55.
22
Colocamos entre aspas para ressaltar que tal afirmação pode ser relativizada, pois se, como Clarice, o
escritor reescreve e altera um texto de sua autoria prévia, ele transita da posição de leitor para novamente
a de “escriba”; assim como o leitor se coloca na posição de autor.
23
No livro “Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura”, Edgar Cézar Nolasco (2001) analisa a
construção de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e Água viva, respectivamente construídos como
palimpsesto e colagem.
15

recortar e colar, trabalhar com o já pronto, Clarice faz de sua obra um “patchwork”24.
Como exemplo podemos citar o conto “O ovo e a galinha”, de A legião estrangeira, de
1964, que ela republica com modificações e inversões, tomando o texto como um
quebra-cabeça e dividindo-o ao meio, nas três crônicas “Atualidade do ovo e da
galinha”, I e II, de 5, 12 e 19 de julho de 1969. A primeira frase do conto é: “De manhã
na cozinha vejo sobre a mesa um ovo”25, que foi modificada para “De manhã na cozinha
sobre a mesa está o ovo”26, ou seja, passa-se de alguém que vê um ovo para um ovo que
está e, portanto, é. O mesmo ocorre com o “Relatório da Coisa”, que teve três versões
publicadas com modificações, a saber “Anticonto” e “Objecto-Relatório-Mistério”.
Segundo Raul Antelo, em sua análise das três versões do texto, Clarice subjetiva as
coisas, colocando o objeto como o outro absoluto do humano, e faz um polimento da
“coisa” pela reescrita da palavra, definindo-o pela sua indefinição. Mesmo que a palavra
não seja um instrumento adequado para tocar a “coisa”, ela permite transporte no tempo
e no espaço. No processo da rescrita, “não se trata apenas, apenas, de duplicar o nome
como significante e significado, trata-se de dobrar o significante para atingir um além
do significado, o significado neutro ou grau zero da ficção desovam mais significantes a
cada tentativa de limitar os sentidos”27, isto é, um significado que é sempre postergado,
uma coisa – para a qual se tende via palavra – que se tenta tocar, mas cujo contato é
sempre adiado.
A segunda técnica é a da colagem, a simples reprodução de trechos (ou textos)
sem modificações, como aconteceu com contos de Felicidade clandestina28, livro
publicado por necessidades econômicas a partir de textos, e crônicas e trechos já
publicados que reapareceram em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. É como se
a escritora tivesse escrito e reescrito a mesma obra ao longo da vida, mas, diferente de
Murilo Rubião, que fez isso e reescreveu os mesmos trinta e três contos ao longo da
vida, o que fez com que sua obra completa fosse pequena, Clarice reescreveu na

24
GOTLIB, Nádia. Clarice – uma vida que se conta. 1995.
25
LISPECTOR, Clarice Lispector. “O ovo e a galinha’. In: ______. Todos os contos. 2016, p 303.
26
Op cit., “Atualidade do ovo e da galinha”. In: ______. A descoberta do mundo. p. 206.
27
Em seu texto Objecto textual, do qual foi retirada esta citação, Raul Antelo (1997, p. 19) fez uma
análise minuciosa das três versões do texto, apontando suas modificações textuais e, consequentemente,
alterações nas possíveis significações do texto.
28
Diversos contos deste livro são deslocados para o contexto das crônicas do jornal, como o conto “A
legião estrangeira”, que é transformado, sob a categoria de “(Noveleta)”, em “A princesa”; “Os desastres
de Sofia” se torna as cinco primeiras crônicas de 1970, sob o título de “Travessuras de uma menina
(Noveleta)”; “Evolução de uma miopia” se transforma nas duas crônicas intituladas “Miopia progressiva
(I) e (Final)”, e assim por diante.
16

diferença, transformou seus textos no seu avesso, parodiando e ressignificando a palavra


que já havia escrito e, consequentemente, ressignificando-se.
As modificações nos textos alteram a configuração do “eu” que enuncia e se
anuncia ao dizer “eu” na enunciação literária, a exemplo da crônica “Se eu fosse eu”, de
30 de novembro de 1968, modificada e republicada dentro de Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres, livro publicado no mesmo ano:

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se


revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel
importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas
muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a
procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria
melhor, sentir. E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você,
como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento:
a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente
locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias
de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam
inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos
não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria
mudado. Como? Não sei.29

Um dia procurou entre os seus papéis espalhados pelas gavetas da


casa a prova do melhor aluno de sua classe, que ela queria rever para
poder guiar mais o menino. [...]
Mas desta vez ficou tão pressionada pela frase “se eu fosse eu” que a
procura da prova se tornara secundária, e ela começava sem querer a
pensar, o que nela era sentir. E não se sentia cômoda. “Se eu fosse
eu” provocara um constrangimento: a mentira em que se havia
acomodado acabava de ser levemente locomotiva do lugar onde se
acomodara. No entanto já lera biografias de pessoas que de repente
passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida, pelo
menos de vida interior. Lóri achava que se ela fosse ela, os
conhecidos não a cumprimentariam na rua porque até sua fisionomia
teria mudado. “Se eu fosse eu” parecia representar o maior perigo de
viver, parecia a entrada nova do desconhecido.30

A modificação da primeira para a terceira pessoa configura mudança na


enunciação literária e problematiza a subjetividade e o preenchimento do dêitico “eu”,
fazendo-nos perguntar: quem é que fala?, quem é que se outra ao se perguntar “se eu
fosse eu”?, onde termina Clarice e onde começa Lóri? Na crônica, é Clarice quem fala,
é ela quem se questiona “se eu fosse eu”, mas no romance é Lóri, que, por sua vez, é
duplo de Clarice, de modo que a autora desdobra seu questionamento para sua
personagem, duplicando seu eu no “ego experimental” da ficção (para recuperar termo

29
LISPECTOR, Clarice. “Se eu fosse eu”. In: ______. A descoberta do mundo. 1999, p. 156, grifos
nossos.
30
LISPECTOR, Clarice. Aprendizagem ou o livro dos prazeres. 1999, p. 80, grifos nossos.
17

de Kundera)31. O palimpsesto também mostra que a posição de sujeito – aqui, ser


pensante que se outra a partir da procura de um papel – é uma posição vazia que
qualquer um pode ocupar no momento único e irrepetível da enunciação; além de serem
Clarice e Lóri, somos também nós, os leitores, que nos questionamos “se eu fosse eu”,
porque preenchemos o “eu” no momento da leitura. O texto é um potencializador de
subjetividade ao possibilitar a ocupação de várias posições e percepções via palavra
escrita-pensada-lida. Ao escrever Lóri e fazer com que esta se questione “se eu fosse
eu”, Clarice está se questionando e se escrevendo, pois, como ela fala em uma crônica,
“cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à
medida que o tempo passa é o que eu chamo de escrever e viver”32, isto é, todo livro é
um recomeço e a vida é vivida pela escrita – vida esta que, como ela escreve em Água
viva, não é autobiográfica, é bio.
Segundo relata Olga Borelli no prefácio que abre o livro, Um sopro de vida
seria, para Clarice, seu “livro definitivo”, afirmação da qual podemos fazer pelo menos
duas interpretações: (i) Clarice faria de Um sopro de vida seu último livro publicado, de
uma morte (empírica e literária) anunciada em A hora de estrela – com a morte de
Macabéa – e do câncer que lhe tiraria sua vida; e (ii) não necessariamente seria seu
último livro, mas seria um livro para o qual convergiria toda a sua obra, funcionando
como uma súmula de sua trajetória literária e de sua poética da reescrita.
De fato, Clarice radicaliza o procedimento da intratextualidade na concepção de
Um sopro de vida. Segundo Benedito Nunes (1995), Clarice realiza uma espécie de
paráfrase e paródia não apenas de sua obra, mas da crítica de sua obra e do fazer
literário. Tomando o procedimento como eixo de análise para mapear os pontos de
contato entre os livros dela, podemos observar que Um sopro de vida ecoa diversos
textos clariceanos, seja na temática, na estrutura, nos personagens e em frases colocadas
pelo avesso, como se fizesse parte de um Todo que nunca foi concluído (pois seu fim
seria impossível), mas escrito incessantemente – assim como a vida não se cessa de se
escrever, a literatura também não cessa de ser escrita, com uma perseguição
inalcançável da experiência e da “coisa” via palavra por parte de Clarice.

31
Lóri é o duplo de Clarice, assim como também é o duplo do leitor. É o ego experimental – expressão de
Milan Kundera (2009, p. 26) para se referir a personagens – de quem preencher a posição eu e ecoar o
ego da enunciação no momento da experiência da leitura.
32
LISPECTOR, Clarice. “As três experiências’. In: ______. A descoberta do mundo. 1999, p. 101-102.
18

Em uma entrevista a Tristão de Ataíde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima,


Clarice perguntou a ele o que ele achava que os livros queriam dela, ao que ele
respondeu:

– Você, Clarice, pertence àquela categoria trágica de escritores, que


não escrevem propriamente seus livros. São escritos por eles. Você é
o personagem maior do autor dos seus romances. E bem sabe que esse
autor não é deste mundo.33

Abstraindo o catolicismo da frase final, o que Alceu Amoroso Lima aponta aqui
permite que repensemos a imbricação entre vida e obra em Clarice Lispector: não se
trata simplesmente de aproveitamento de situações, reflexões, em suma, fatos da vida
individual de Clarice, mas de uma implicação e criação do sujeito pela escrita, onde real
e literário se misturam. Ao retomar textos e temas, frases e estruturas, Clarice recupera
seus “eus” divididos e textos de uma Clarice-já-morta, pois ela, ao escrever novo texto
com base em um texto já escrito, não era mais a mesma, mas outra, um eu deslocado no
espaço-tempo e no plano da significação da palavra. Ao se deslocar, dividindo e
multiplicando seu “eu”, Clarice reafirma a alteridade como topos de sua escrita e mostra
que a vida e a realidade são outras na ficção.
O texto que abre o livro A via crucis do corpo, intitulado “Explicação”34,
escancara a forma como Clarice concebia a realidade ficcional. Antes de tudo, a
classificação do texto é complicada, porque não conseguimos precisar se ele é um
prefácio, portanto, um paratexto, ou se ele já faz parte da ficção, e aqui ainda podemos
nos perguntar: é crônica ou é conto? O mesmo ocorre com as epígrafes deste livro, que
mostram trecho bíblico, trecho anônimo e trecho de seus personagens, de maneira que a
ficção adentra o paratexto, e também nos demais textos do livro, pois vemos uma
mistura de contos e crônicas e um jogo de realidades.
No começo deste texto, Clarice – ou seria a narradora-personagem? – relata que
seu editor encomendara “três histórias que, disse ele, realmente aconteceram. Os fatos
eu tinha, faltava a imaginação”35. Embora relate que tivera dificuldade na empreitada,
em um dia ela escreveu as três histórias, que compõem o livro, a saber: “Miss Algrave”,
“O corpo” e “Via crucis”. Ela compartilha que estas histórias fizeram com que ela

33
LIMA, Alceu A. apud LISPECTOR, Clarice. “Alceu Amoroso Lima (final)” In: ______. A descoberta
do mundo. 1999, p. 177, grifo no original.
34
LISPECTOR, Clarice. “Explicação”. In: ______. Todos os contos. 2016, p. 527-528.
35
Ibid, p. 527.
19

ficasse “chocada com a realidade”36, no entanto, os fatos reais que a escritora usou
aconteceram em textos literários, na realidade ficcional: “Miss Algrave” é uma
dessublimação do êxtase místico, pois o êxtase é corporal, e uma inversão de Maria
Madalena, pois a personagem é uma santa que vira prostituta; “O corpo” é uma reescrita
do conto “The tell-tale heart”, de Edgar Allan Poe, que Clarice traduziu para “O coração
delator”; e “A via crucis” é a reescrita da anunciação de Maria e do nascimento de
Cristo37.
A encomenda do editor propunha que ela ficcionalizasse a vida real, e ela
duplicou a realidade por meio de uma reversão paródica: ela escreveu sobre fatos que já
foram contados, que já aconteceram na linguagem. Isto é, Clarice faz um jogo entre
realidade e ficção – e de vida e obra. Ela dobra e redobra a vida e ficção e a escritura
vem ao primeiro plano, revelando o poder transformador da ficção.
Em um manuscrito paratextual utilizado por Borelli para estruturar o último
livro, nos deparamos com a fronteira difusa entre vida e obra, mais especificamente
entre os contornos do Autor, do seu personagem e de Clarice, que pode servir de
paratexto para a análise do texto:

Ideias para a feitura do livro


Se eu fizer o que posso fazer poderei talvez alcançar uma certa paz. O
que me inferniza é lidar com o meu possível.
Corto o dispensável e procuro apenas o clímax de mim. Cada frase
minha ou de Ângela quero que digam. Digam o quê? Só me interesso
em clímax ou o auge. Mesmo que esse auge seja uma pergunta sem
resposta.
Emendar a última frase do Autor com a primeira frase de Ângela
(Repetir as últimas palavras do Autor.)
Ou interrompe-se por causa de Ângela e retoma no diálogo o que ia
mesmo dizendo. O Autor interrompe a frase no meio com travessão ou
reticências. “Eu sinto que...
E Ângela retoma – “Eu sinto que estou à beira de um acontecimento.”
Ritmo de procura.
Estou hoje com dor de cabeça e não sei por que etc. etc. etc.
Evitar a liberdade fácil e a tentação intelectualista.
Não é um tipo. Ela é virtuosa. Endêmica.
Separar a primeira parte.
Trabalhar na segunda parte.
Cortar “sou a favor do medo”, e outras histórias.
Deixar o livro inacabado: Quanto a mim estou. É isso mesmo: estou.
Não sou. Estou.
No fim do livro:
Eu te amo de um amor maior, o amor neutro que tudo abrange 38.

36
Ibid., p. 527.
37
ARÊAS, Vilma. “Com a ponta dos dedos: A vida crucis do corpo”. In: ______. Com a ponta dos
dedos. 2005, p. 46-73.
38
LISPECTOR, Clarice apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. 1981,
p. 86-87, grifos nossos.
20

Este fragmento de texto também revela a fronteira difusa entre Autor,


Personagem e Clarice enquanto escritora empírica, e entre anotação para a feitura do
livro e trechos do livro propriamente dito. Por exemplo, não é possível diferenciar quem
é o sujeito do trecho “Corto o dispensável e procuro apenas o clímax de mim. Cada
frase minha ou de Ângela quero que digam. Digam o quê? Só me interesso em clímax
ou o auge. Mesmo que esse auge seja uma pergunta sem resposta”: seria o Autor ou
seria Clarice? De fato, são ambos, como veremos no segundo capítulo. Logo em
seguida, vem a anotação “emendar a última do Autor com a primeira frase de Ângela
[...]”, cuja enunciação aponta para Clarice enquanto escritora empírica que pensa na
montagem dos diálogos entre seus dois personagens. No entanto, essa estrutura na
forma de anotação aparece na voz do narrador dentro do livro: “Não ler o que escrevo
como se fosse um leitor”39. As frases que seguem estão com os verbos na forma
nominal e, por isso, também não têm sujeito definido, como se cada frase fosse de um
dos três sujeitos envolvidos na escritura do texto:

Evitar a liberdade fácil e a tentação intelectualista.


Não é um tipo. Ela é virtuosa. Endêmica.
Separar a primeira parte.

Seria Ângela quem recusava o intelectual e preferia o sentir ao pensar? 40 Seria o


Autor falando de um “ela” chamado Ângela? Por fim, a frase no infinitivo seria Clarice
organizando o livro? Ou seria o inverso? Ou seria tudo isso ao mesmo tempo? Além
disso, essa indefinição entre os sujeitos tem por resultado que a fronteira entre ficção e
vida na obra-vida de Clarice Lispector seja difusa. Sobre a delimitação do espaço de
fala dos três sujeitos envolvidos, Claire Varin41, em sua tese de doutorado, aponta que
muitos rascunhos foram encontrados tendo o “Ângela” rasurado e alterado para
“Autor”, isto é, as palavras ditas pelo Autor poderiam ter saído da boca de Ângela.
Claire Varin também defende que Olga Borelli também utilizou a biografia da autora
como eixo para a construção verossimilhante do livro póstumo – assim como o fizeram
seus outros biógrafos e muitos críticos que ficcionalizaram a vida da escritora pela
leitura dos textos.

39
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 20.
40
Pensemos na relação de Ângela com Eduardo no conto “A partida de trem”, que será mencionado
novamente no segundo capítulo.
41
VARIN, Claire. Langues de feu: essaisur Clarice Lispector, Lavai, ÉditionsTrois, 1990 apud SOUSA,
Carlos M. S. Figuras da Escrita. 2000.
21

Todavia, não se pode perder de vista que ao escrever, Clarice se escrevia. Para
ela, “viver” e “escrever” são intercambiáveis, porque ela escrevia para viver, como disse
certa vez em uma entrevista: “para mim, escrever é como respirar, faço para
sobreviver”42. Tendo isso em mente, a escrita de Clarice permite que questionemos: o
que é ficção e o que é a não-ficção? Qual a fronteira entre a vida e a literatura? Qual a
fronteira entre o autobiográfico e o bio-gráfico? Como estamos vendo, na escrita
clariceana, todas estas fronteiras são muito tênues e as instâncias narrativas são
subvertidas.
Assim, a escrita de Clarice Lispector permite problematizar a fronteira entre vida
real e vida imaginária, ser real e ser imaginário, sujeito e objeto, eu e tu e outras
dicotomias, pois ela desloca o fato autobiográfico do real para o imaginário, ao perceber
“realidade enviesada. (...) Agora adivinho que a vida é outra”43. Como disse Silviano
Santiago, ela realiza o deslocamento do “eixo da vida do plano real para o plano da
realidade simbolicamente estruturada, dos signos da existência, para a grafia-da-vida”44,
realidade inventada que irá modificar a realidade atual/primeira. Nesse duplo
movimento de escrita, escrevendo-se ao escrever seus personagens, Clarice cria duplos
em seus textos, configurando “outro, imaginário do mesmo”, de modo que a vida da
ficção é diferente da vida tida como real, pois “viver essa vida é mais um lembrar-se
indireto dela do que um viver direto”45.
Olga Borelli e os demais biógrafos – Nádia Gotlib e Benjamin Moser – foram os
responsáveis por tentar dar um fechamento/fim para a vida da escritora que ela em si
não pôde dar, pois o olhar do outro dá acabamento ao ser, como o autor dá contornos
aos personagens46, e na vida empírica só os biógrafos (ou os “outros” que permanecem
depois da morte do “eu”) podem tentar dar o acabamento para a vida da escritora e
fechar a narrativa da personagem que foi Clarice47. No entanto, o olhar do outro também
abre incessantemente o ser, alterando-o, como se percebe na abertura da biografia de
Clarice pelos biógrafos, que, na tentativa de compreender e reescrever sua vida via
textos ficcionais e relatos, mitificaram a vida da escritora, confirmando a figura

42
LISPECTOR, Clarice. Encontros: Clarice Lispector. 2011, p. 117.
43
______. Água viva.1998, p. 68.
44
SANTIAGO, Silviano. A vida como literatura: o amanuense Belmiro. 2006, p. 41.
45
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 1998, p. 69.
46
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. 1997.
47
SOUZA, Carlos Mendes de Souza. Figuras da escrita. 2000, p. 521.
22

misteriosa que foi construída em torno da mulher48 – imagem que, inclusive, ela
alimentava ao negar leituras, defender inspiração, ou imprecisar dados biográficos como
o local de seu nascimento49.
Devido a essa relação entre “escrever” e “viver” e à biografização da ficção
clariceana, como relata Benjamin Moser em sua biografia, Olga Borelli, na posição de
amiga, biógrafa, retratista e “coautora”, alternando e juntando leitura crítica e
biográfica, suprimiu um trecho referente à morte de Ângela por respeito aos familiares
da escritora, pois Ângela seria Clarice:

Havia a frase que Olga suprimira de Um sopro de vida – “Pedi a Deus


que desse a Ângela um câncer e que ela não pudesse se livrar dele” – e
havia sua inesperada declaração a Olga, dois anos antes: “Vou morrer
de um bruto câncer”.50

Ou nas palavras da própria Olga Borelli, em entrevista:

Ela pede para morrer. Havia uns textos em que ela pedia para a
Ângela Pralini, personagem central de Um sopro de vida, romance
póstumo organizado por mim a partir dos fragmentos deixados por
Clarice. Eu omiti uma frase. Omiti esse fato para a família não ficar
muito sofrida. Quer dizer, esse livro eram fragmentos, e um fragmento
me tocou muito, em que ela diz “eu pedi a Deus que desse a Ângela
um câncer e que ela não pudesse se livrar dele”. Porque a Ângela não
tem coragem de se suicidar. Ela precisa, porque ela diz “Deus não
mata ninguém. É a pessoa que se morre.” Clarice dizia também que
cada pessoa escolhe a maneira de morrer.51

O problema não é a personagem de ficção morrer de câncer, mas essa


personagem ser compreendida como a escritora, um ego experimental que as pessoas
não conseguem descolar dela. Matar Ângela seria matar Clarice, pois, por estarem
juntas no texto, Clarice escrevia sua vida por meio de sua ficção, e vice-versa. No
entanto, Ângela era outra, a face indireta da vida de Clarice, sua versão oblíqua e
enviesada, não exatamente ela.
Olga Borelli não conseguia descolar Ângela e Clarice e, na última parte de seu
esboço do possível retrato de Clarice, intitulada “autorretrato”52, juntou um apanhado de
fragmentos de Ângela e, invertendo o movimento de Clarice-Lóri que a escritora fizera

48
Ibid., 2000.
49
GOTLIB, Nádia B. Clarice – uma vida que se conta. 1995.
50
MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. 2009, p. 361.
51
BOLELLI, Olga apud MOSER, Benjamin, 2009, p. 349.
52
Utilizaram da mesma estratégia Olga de Sá (2004) e Berta Waldman (1992), nos seus livros Clarice
Lispector: a travessia do oposto e A paixão segundo C.L., respectivamente, fazendo o jogo invertido do
fazer literário clariceano e dando palavras das personagens ao scriptor que os colocara no papel.
23

na crônica “se eu fosse eu”, deu à autora palavras da personagem, desficcionalizando as


palavras que Clarice deu à Ângela.
Contudo, não é relevante saber se os fatos – rarefeitos ou diluídos – de fato
aconteceram com a escritora empírica, porque os fatos não importam, mas sim os seus
desdobramentos nas personagens e narradores, pois o fazer literário clariceano estranha
a realidade e a língua, fazendo um corpo-a-corpo com a palavra, tocando-a com a boca e
com as mãos. Nas próprias palavras da autora, “meus livros felizmente para mim não
são superlotados de fatos, e sim de repercussão dos fatos nos indivíduos”53; ou como ela
diz ao comentar a gênese de um conto: “tive uma ‘impressão’, de onde resultaram
algumas linhas vagas, anotadas apenas pelo gosto e necessidade de aprofundar o que se
sente”54. Pode-se dizer que a literatura e a biografia não são confundidas e sobrepostas,
porque a enunciação literária é configurada pelo outrar-se através dos personagens, da
terceira pessoa que aparece, como diz Gilles Deleuze:

As duas primeiras pessoas do singular não servem de condição a


enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nos uma
terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (o “neutro” de
Blanchot). Por certo, os personagens literários estão perfeitamente
individuados, e não são imprecisos nem gerais; mas todos os seus
traços individuais os elevam a uma visão que os arrasta num
indefinido como um devir potente demais para eles [...].55

Em um trecho de seu livro, Borelli transcreve esse trecho que Clarice ditara no
seu derradeiro dia:

A 9 de dezembro de 1977, ainda ditava suas ideias, tal a compulsão de


escrever:
“Súbita falta de ar. Muito antes da metamorfose e meu mal-estar, eu já
havia notado num quadro pintado em minha casa um começo.
Eu, eu, se não me falha a memória, morrerei.
É que você não sabe o quanto pesa uma pessoa que não tem força. Me
dê sua mão, porque preciso apertá-la para que nada doa tanto”.56

O final deste trecho é recuperado por Claire Varin em um manuscrito de Clarice,


porém, no fragmento recuperado pela intelectual canadense, há indicação de uma
terceira pessoa, isto é, uma personagem, que pensa o que Olga disse que Clarice ditou:

53
LISPCETOR, Clarice apud BORELLI, Olga, p. 70.
54
LISPECTOR, Clarice. “A explicação inútil”.In: ______.Fundo de gaveta. 1980, p. 118-121.
55
DELEUZE, Gilles. “A literatura e a vida”. In: ______. Crítica e clínica. 1993, p. 13.
56
BORELLI, Olga. p. 61.
24

“— Me dê sua mão, pensou el[?] porque preciso apertá-la para que nada doa tanto”57.
Onde seria colocado esse trecho? Seria um ele ou um ela? Comporia Um sopro de vida?
Há difusão da fronteira entre o “eu” e o “ele” assim como na passagem da crônica “se
eu fosse eu” para o romance. No dia de sua morte, Clarice dita esse trecho falando que
morrerá e quer uma mão, e no trecho é um ego experimental quem pensa. Vai-se do
ditar ao pensar. Vai-se do eu ao el[?]. Além disso, percebemos que a presença da mão é
contínua na obra de Clarice58, como um desejo contínuo e insuperável por segurar uma
mão, mão enquanto parte do corpo que permite o contato, o toque, a união com o outro,
assim como utilizava a sua mão para escrever como uma ponte entre a palavra e o papel,
a ponto de chegar a falar “eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas
minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm”59. Desejava também uma mão
para segurar no final da vida – Borelli segura-lhe a mão na hora derradeira.
Se admitirmos que Borelli não esteja mentindo acerca do ditado derradeiro,
temos o seguinte: Clarice escreveu o fragmento, uma ficção, com personagem; na hora
da morte, ela dita/encena aquilo pensado pelo personagem, ela fez-se personagem,
passou o fragmento da terceira à primeira pessoa, da escrita para a voz, e desta para a
escrita de um outro – ditando para Olga escrever. Clarice nos mostra que viver envolve
ficcionalizar e que, mesmo falando de si mesma, ela precisa criar, dividir-se em outro
ego para se escrever – como Tristão de Ataíde diz que ela faz. Marina Colosanti, sobre a
relação do corpo da escritora com o corpo de seu texto, diz que “o corpo de Clarice não
aguentava Clarice. Foi lhe cedendo o passo. Ela crescia e ele se alquebrava. [...] Ela
dava-lhe ordens, exigindo que aguentasse a alta voltagem de sua criação”60.
Certa vez, Clarice afirmou que “na literatura de livros permaneço anônima e
discreta”61, e que jamais fora pessoal em seus livros:

57
VARIN, 1986, anexos, p. 237 apud SOUSA, 2000.
58
A exemplificar pela mão sem corpo e sem rosto inventada por G.H. para segurar ao longo de seu relato,
e pela crônica do dia 11 de maio de 1968 intitulada “as três experiências”, na qual ela fala: “[...] quero
morrer dando ênfase à vida e à morte” e “Só peço uma coisa: na hora de morrer eu queria ter uma pessoa
amada por mim ao meu lado para me segurar a mão. Então não terei medo, e estarei acompanhada quando
atravessar a grande passagem.” (LISPECTOR, 1999, p. 102). Além do fato, lembrado por Carlos Mendes
de Souza, de que o epitáfio da lápide da escritora é o seguinte trecho de A paixão segundo G.H.: “Dar a
mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria”.
59
LISPECTOR, Clarice. “Declaração de amor”. In: ______. A descoberta do mundo. 1999. p. 101.
60
COLOSANTI, Marina. Artigo no Jornal do Brasil, 7/11/1992 apud ANDRADE, Ana Luíza. “O Corpo-
Texto Canibal em Clarice Lispector. 1993, p. 49-62.
61
LISPECTOR, Clarice. “Fernando Pessoa me ajudando”. In: A descoberta do mundo. 1999, p 117.
25

Um de meus filhos me diz: “Por que é que você às vezes escreve sobre
assuntos pessoais?” Respondi-lhe que, em primeiro lugar, nunca
toquei, realmente, em meus assuntos pessoais, sou até uma pessoa
muito secreta. E mesmo com amigos só vou até certo ponto. É fatal,
numa coluna que aparece todos os sábados, terminar sem querer
comentando as repercussões em nós de nossa vida diária e de nossa
vida estranha. Já falei com um cronista célebre a este respeito, me
queixando eu mesma de estar sendo muito pessoal, quando em 11
livros publicados não entrei como personagem. Ele disse que na
crônica não havia escapatória.62

Contudo, em outra crônica, quando Clarice respondeu a uma leitora que pediu
que ela não deixasse de escrever sua coluna por medo de ser pessoal, ela acaba se
contradizendo ao dizer que os outros relatavam que ela se delatava nos livros:

Quanto a eu me delatar, realmente isso é fatal, não digo nas colunas,


mas nos romances. Estes não são autobiográficos nem de longe, mas
fico depois sabendo por quem os lê que eu me delatei. [...] a
intimidade humana vai tão longe que seus últimos passos já se
confundem com os primeiros passos do que chamamos de Deus [...].63

De fato, Clarice nunca conseguiria deixar de ser autobiográfica em seus textos,


assim como nenhum outro escritor, pois, como disse John Coetzee

[...] in a large sense all writing is autobiography: everything that you


write, including criticism and fiction, writes you as you write it. The
real question is: This massive autobiographical writing-enterprise that
fills a life, this enterprise of self-construction (shades of Tristam
Shandy!) – does it yield only fiction? Or rather, among the fictions of
the self, the versions of the self, that it yields, are there any that are
truer than others? How do I know when I have the truth about
myself?64

A biografia da escritora, então, quando objetivada e transposta para a ficção,


criou outras, assim como permitiu que ela e também seus leitores vissem que o “eu” que
se vive também é uma ficção. No texto integrante do Fundo de gaveta – posteriormente
publicado em Para não esquecer – intitulado “A explicação inútil”, Clarice comenta a
gênese dos contos de Laços de família em uma espécie de depoimento da experiência
literária, e começa relatando não achar fácil se lembrar do processo de escrita dos seus
contos e de seus romances, pois depois de escritos eles desapegam dela e ela os
estranha, não por um estado de transe, mas porque “a concentração no escrever parece
tirar a consciência do que não tenha sido o escrever propriamente dito”. Segundo ela,

62
LISPECTOR, Clarice. “Vietcong”. In: Ibid., 1999, p.284.
63
LISPECTOR, Clarice. “Sentir-se útil”. In: Ibid.,1999, p. 78, grifo no original.
64
COETZEE, John M. Doubling the point: essays and interviews. 1992, p. 17.
26

por exemplo, quando questionada acerca da avó de “Feliz aniversário”, respondera que
era “[...] a avó dos outros. Dois dias depois a verdadeira resposta me veio espontânea, e
com surpresa: descobri que a avó era minha mesma, e dela eu só conhecera, em criança,
um retrato, nada mais”65. Isto é, ela reconheceu a sua família ao outrar-se na família dos
outros. No mesmo texto, ela conta que no período em que escreveu “Embriaguez de
uma rapariga”66, falou com sotaque português como a personagem, ou seja, tomou a
personagem como caminho da vida e viveu-a, outrando-se; movimento que aparece no
conto “Encarnação involuntária”, de Felicidade Clandestina. Dessa forma, escrever
seria, como lemos em sua crônica “Lembrar-Se”:

tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber


do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um
esforço de “memória”, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca
nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva. 67

Na sua crônica “Em busca do outro”, quando trata de seu caminho, Clarice diz
saber uma coisa: “meu caminho não sou eu, é outro, é os outros”68, ao que segue:
“Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de
chegada.” De modo que Clarice aponta para a importância da alteridade, para o ato de
outrar-se como forma de se conhecer, e a literatura é o espaço em que a experiência de
ser outros é possível.
Citando em uma crônica um dos expoentes da literatura moderna, Fernando
Pessoa, que rompeu o sujeito poético de forma semelhante a que faria em seus dois
últimos livros, Clarice fala sobre a relação entre falar e se desconhecer: “O que me
consola é a frase de Fernando Pessoa, que li citada: ‘Falar é o modo mais simples de nos
tornarmos desconhecidos’”69. Ambos reconhecem a necessidade de se desconhecer, pela
divisão e multiplicação do sujeito literário via palavra, fingindo a dor ou dando a dor a
outro a fim de experimentar novos modos de existência, e experimentar a si mesmo de
outra maneira. Assim o fez Clarice em sua obra toda, dissolvendo os limites entre vida e
ficção, entre corpo e palavra, tentando tocar a coisa e a experiência do mundo em si
usando a palavra como instrumento e os personagens – seus outros “eus” – como

65
LISPECTOR, Clarice. “A explicação inútil” . In: ______. Fundo da gaveta.1980, p. 118-121.
66
Op. cit.. “Embriaguez de uma rapariga”. In: ______. Todos os contos. 2016, p. 135-144.
67
LISPECTOR, Clarice. “Lembrar-se”. In: ______. Para não esquecer. 1980, p. 42.
68
LISPECTOR, Clarice. “Em busca do outro”. In: _____. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,
1999, p. 118.
69
Ibid., p. 137.
27

caminhos. Autor e Ângela, os personagens de Um sopro de vida, são egos


experimentais através dos quais, via palavra, diálogo e escrita, Clarice experienciou
outros modos de existência – e possibilitou que outros que não seus outros-duplos de
palavras, seus egos experimentais, mas aqueles que seriam os outros de seus outros no
momento da leitura, isto é, os leitores, também os utilizassem como caminho para se
conhecerem e para darem forma à sua vida via palavra e ficção.
Passemos agora da análise do processo criativo de Clarice para a análise de seu
ponto de chegada, de seu último livro, do espaço ficcional onde ela se desdobrou em
outros em busca de (salvar) seu eu, ou de descobrir quem é esse eu e por que ele(a) (se)
escreve.
28

CAPÍTULO II: os sujeitos oblíquos de Um sopro de vida

Para começarmos a discussão sobre o livro propriamente dito, podemos nos


perguntar: qual é a história das pulsações? O enredo de Um sopro de vida é diluído – se
é que se pode falar de um enredo – e se resume a um escritor não nomeado e
identificado como “Autor” escrevendo no aqui e no agora uma personagem chamada
“Ângela Pralini”, que também é uma escritora e que, por sua vez, está escrevendo um
livro chamado “História das coisas”. O livro é, portanto, metaficcional ao realizar um
corpo-a-corpo com a língua, mostrando a não-existência da realidade posposta no texto
para além de sua materialidade, isto é: por construir uma nova realidade; e também por
fazer a dramatização da criação literária através de sua estrutura dialogada entre
criador/autor e criatura/personagem, isto é, Autor e Ângela, de modo que o livro conta a
escritura do Autor e do seu homo fictus, Ângela, o diálogo entre criação e obra, e a
escritura de um livro dentro desse livro. Ademais, ao trabalhar com a criação literária de
seres imaginários (personagens), o livro mostra que a literatura abre posições dentro do
texto e propõe a reversibilidade destas posições entre os sujeitos literários, de modo a
revelar, via literatura, que a subjetividade é construção e questão de posição dentro da
linguagem, não algo previamente dado.
Além disso, percebemos uma escrita e uma subjetividade matrioskais70, pois um
livro está dentro do outro e um sujeito literário – seja autor, narrador, personagens ou
leitor – está inserido/precisa do outro para realizar a comunicação, sua formação
subjetiva e o acontecimento literário da criação literária. A escrita e a alteridade se
mesclam nesse texto, que é a dramatização da criação literária por meio de uma cena
enunciativa, uma escrita-diálogo-monólogo entre os locutores envolvidos e uma
divisão-multiplicação da subjetividade, que serão o foco deste capítulo.
Por meio da criação literária, Clarice e seus personagens multiplicam-se ao se
dividirem (e vice-versa), e, com isso, rompem com os dualismos que regem
hierarquicamente o pensamento ocidental, mostrando que os polos supostamente
binários podem se (con)fundir um nos outros (o eu é o outro do outro), o feminino e o
masculino se mesclam, o criador é criado pela criatura, assim como a cria. Os sujeitos
envolvidos no texto são, portanto, oblíquos uns em relação aos outros, mas eles não se

70
Maria Lúcia Homem (2011) já chamou atenção para a configuração matrioskal entre Autor e Ângela,
recuperando as bonecas russas para falar de uma maternidade infinita, mas aqui – mais especificamente
no terceiro capítulo – iremos aprofundar esta metáfora com a boneca russa inserindo o leitor.
29

(con)fundem de fato. Dessa forma, podemos dizer que o texto revela o topos clariceano
da existência de uma unicidade-totalidade do mundo71 que ocorre sem que as coisas, no
entanto, percam seus contornos e sua subjetividade, mas continuam in-divíduos dentro
de sua dividualidade e formam equivocidade na relação eu-tu que demanda a
comunicação encenada no texto e a confusão da lógica que rege os dualismos.
Para iniciarmos a análise dos dualismos, podemos apontar que a dualidade e o
topos da criação já são explicitados no título e subtítulo do livro – Um sopro de vida
(pulsações) –, pois o ato de soprar causa as pulsações72, e o sopro da linguagem cria
subjetividade, pois “a linguagem é a possibilidade de subjetividade”73. No entanto, a
relação de causa e consequência é reduzida em favor do movimento entre o sopro e a
pulsação, porque o sopro depende da pulsação para acontecer: a pulsação não é um polo
e simples “consequência” do sopro, mas também sua “causa”; um ato necessita do
outro, de modo que, como está colocado na página que antecede as epígrafes – “Quero
escrever movimento puro” –, não há estagnação, mas continuidade, reversibilidade,
movimento. Quando se sopra vida, há pulsação, há origem de vida, e aqui a vida é o
próprio texto, escrito no “aqui” e no “agora” da escritura-leitura, e, como o próprio
personagem Autor, na posição de narrador, fala: “em cada palavra pulsa um coração”74.
Ou seja, o texto é uma vida, possui um corpo (o significante) e uma alma (o
significado), que, no entanto, não são separados, mas são corpo-alma construído na
escritura-leitura, são fundo e forma, fundo-forma – para recuperar termos usados por
Clarice75.
Há uma rede de sopros e pulsações, pulsações e sopros que (se) criam e (se)
transformam no texto. Vemos nas epígrafes um trecho do livro Gênesis, o relato
judaico-cristão da criação do mundo e do homem, e também uma citação de Nietzsche,
o filósofo que “matou” Deus, respectivamente a dizer que o sopro de vida de Deus fez o
ser humano um ser vivente, e a definir a criação como “alegria absoluta”. Assim, as
duas epígrafes marcam a agência criadora do ser nomeado como Deus – que perpassará

71
Apontada por João Camillo Penna (2010, p. 75), em sua análise do estado de graça clariceano –
comumente chamado de epfania– como “a revelação da unicidade das coisas”.
72
Sopro esse que é o contínuo de toda a obra de Clarice, escancarando a intratextualidade que pulsa neste
texto derradeiro.
73
BENVENISTE, Emile. “Da subjetividade na linguagem”. In: ______.Problemas da linguística geral
I.1991, p. 289.
74
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978. p.16.
75
LISPECTOR, Clarice. “Literatura de vanguarda no Brasil”. In: ______.Outros escritos. 2015, p. 78.
30

nossa análise mais para frente –, e o efeito da criação, essa alegria que seria o “estado de
graça”76 clariceano. Adentremos, então, a pulsação do sopro.
O sopro de vida da criação pulsa um texto que é dividido em quatro partes. Na
primeira parte, uma espécie de prefácio, há um narrador masculino – posteriormente
desdobrado em dois personagens77: Autor e Ângela – que relata, após ter lido seu
próprio livro, sua concepção de escrita e o motivo de ter criado Ângela. O narrador diz
ter escrito esse relato inicial depois de ter lido o seu próprio livro, que é, nas palavras
dele, uma espécie de ouroboro, de um livro cíclico:

Já li este livro até o fim e acrescento alguma notícia neste começo.


Quer dizer que o fim, ele não deve ser lido antes, se emenda num
círculo ao começo, cobra que engole o próprio rabo. E, ao ter lido o
livro, cortei muito mais que a metade, só deixei o que me provoca e
inspira para a vida.78

O morder do rabo da escritura é a leitura. O narrador dá “notícia” de seu livro


depois de transitar entre as posições de escritor, autor e, finalmente, ser leitor de si,
fechando – ou reiniciando – o ciclo da literatura.
Na segunda e terceira partes, intituladas, respectivamente, “O sonho acordado é
que é a realidade” e “Como tornar tudo um sonho acordado?”, o narrador se desdobra
nos dois personagens que realizam um diálogo-monólogo entre si, em uma
dramatização do fluxo de consciência sobre a vida, a morte, as coisas, Deus e a criação
literária (e o suposto poder destes dois últimos). Na quarta e última parte, intitulada
“Livro de Ângela”, há o livro da personagem feminina criada ao longo do livro;
podemos até mesmo dizer que todo o livro é uma preparação para isso, para o livro
dentro do livro, ou seja, é o testemunho da criação da criação79.

76
Lembremos da reformulação de João Camillo Penna (2010) do termo “epifania”, muito utilizado pela
crítica especializada desde Benedito Nunes, para retirar dessacralizar a poética clariceana.
77
Pode-se especular que o desdobramento e o consequente apagamento desse narrador no texto,
lembrando que este seria o “livro definitivo” de Clarice, acompanham o caminhar de seu primeiro livro,
Perto do coração selvagem, no qual há, segundo Benedito Nunes (1995) um narrador monocêntrico e
uma gradual autonomização de Joana, que, assim como o personagem do título do livro do qual Clarice
retira o seu título – Retrato do artista quando jovem, de James Joyce –, torna-se a artista do texto e não
precisa mais de um narrador para expressá-la, pois ela se manifesta por si só. E a ela cabe as palavras
finais, em primeira pessoa, do texto. Em A paixão segundo G.H. já não há um narrador em terceira pessoa
mediando a personagem e o leitor, é a própria personagem quem narra desde o começo.
78
LISCPETOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 20.
79
Considerando a existência de um livro dentro de um livro, e, especificamente, do livro de uma criatura
dentro do livro de se criador, podemos aproximar a construção “matrioskal” – aproximação que será
melhor desenvolvida no terceiro capítulo – das pulsações clariceanas à organização do livro de Mary
Shelley, Frankenstein, publicado em 1831, que apresenta a história do enunciador via cartas, da história
por ele contada pelo criador da criatura e, no centro, da história contada pela perspectiva da criatura,
31

Na primeira parte, o narrador faz um relato acerca do seu processo de escrever


seu “isto”80, primeira palavra do livro que aponta para o próprio livro, para a
materialidade do escrito, e, considerando o uso da intratextualidade na poética
clariceana, o isto-livro que começa o texto é o it – em Água viva a narradora fala em
certo momento: “Eu pinto um ‘isto’. E eu escrevo um ‘isto’”81 –, de modo que as
palavras e a relação entre Autor e Ângela são o neutro. O que significa dizer que o texto
é o neutro? Como neutro, massa branca feita de celulose e palavras 82, o livro é o
resultado da despersonalização, sem, no entanto, que esta culmine na dessubjetivação ou
na perda identitária; o que veremos será multiplicidade.
Ao longo do texto, o narrador se constitui pelo outro, pelo processo de escrita e
pela linguagem, que, amalgamados, fazem com que seu objetivo com a escrita do livro
seja “salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria”.83 A aproximação da
escrita e da salvação pelo narrador ressoa a compreensão da escrita para Clarice
Lispector, que concebia o ato de escrever tanto como maldição, por se configurar como
um vício, e também por salvação, pela procura de entendimento que a possibilita, como
podemos ler na crônica “Escrever”:

Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro por
que exatamente eu o disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma
maldição, mas uma maldição que salva.

fechada pela retomada da voz do criador e, depois, do enunciador. Vozes dentro de vozes que delimitam a
relação de espaço e tempo na narrativa.
80
Maria Lúcia Homem (2011) aponta, sem aprofundamentos, para a intertextualidade de “isto”, primeira
palavra do livro, com o poema “Isto”, de Fernando Pessoa, que ensaia a divisão entre o sentimento do
poema e o sentimento do escritor empírico, de modo a descolar o sentimento da palavra do ser empírico
que as colocaram no papel. Utilizando este poema como chave de leitura, vale ressaltarmos a relação
vida-obra e dizer que Clarice de fato jamais fora “autobiográfica” em seus livros, pois as palavras são
resultado de sua objetivação e da subjetivação do outro; ela (re)vive os fatos rarefeitos que narra, como
diz o poema de Pessoa, por meio da imaginação:

Dizem que finjo ou minto


Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
(...)
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
(PESSOA, 1942. Disponível em:http://arquivopessoa.net/textos/4250 Acesso: 20 set. 2017)
81
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 1998, p. 74.
82
Ressoando a massa branca da barata, de A paixão segundo G.H.
8383
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p 11.
32

Não estou me referindo muito a escrever para jornal. Mas escrever


aquilo que eventualmente pode se transformar num conto ou num
romance. É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício
penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é
uma salvação.
Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que
se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é
procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o
último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador.
Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.
Que pena que só sei escrever quando espontaneamente a “coisa” vem.
Fico assim à mercê do tempo. E, entre um verdadeiro escrever e outro,
podem-se passar anos. Lembro-me agora com saudade da dor de
escrever livros.84

Apesar disso, na última entrevista que concedeu, a Júlio Lerner, quando


questionada sobre seu conto “Mineirinho” se o ato de escrever alterara algo, Clarice
disse

[...] Não altera em nada. Eu escrevo sem esperança de que o que eu


escrevo altere alguma coisa. Não altera em nada.

[Júlio] Então por que continua escrevendo, Clarice?


[Clarice] E eu sei? Porque no fundo a gente não está querendo alterar
as coisas, a gente está querendo desabrochar, de um modo ou de
outro.85

Segundo o narrador, o livro é “a sombra de mim”86, um duplo, um fragmento de


si, desse “mim” que já é duplo antes de se duplicar via palavra, pois, como ele aponta,
“A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma”87 – reversão
que desfaz a hierarquia do dualismo corpo e alma. Aqui, tanto o corpo quanto a alma se
espelham e são tão reais quanto as palavras que o narrador joga no papel dizendo que
“satisfaço-me em ser”88. Ele é corpo e alma, corpo-alma, corpalma, ele é. Essa
satisfação de ser mostra a perspectiva invertida do cogito ergo sum cartesiano: no lugar
de “penso, logo existo”, Clarice propõe “existo, logo penso”89, de modo que existir (n)o
mundo precede pensar (sobre) o mundo. Assim, o livro é sombra dessa existência, é a
materialidade do testemunho do existir no mundo.

84
LISPECTOR, Clarice. “Escrever”. 14 de setembro de 1968. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Rocco, p. 134.
85
LISPECTOR, Clarice. “A última entrevista, por Júlio Lerner”. In: ______. Encontros: Clarice
Lispector. 2011, p. 174.
86
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 11.
87
Ibid., p. 11.
88
Ibid. p. 11.
89
Essa relação invertida é apontada por João Camillo Penna (2010) em seu artigo “o nu de Clarice
Lispector”, acerca de Perto do coração selvagem.
33

Mais adiante, o narrador relata que, para alcançar essa salvação, mesmo que as
palavras tenham se esgotado, ele gostaria de escrever um livro e “prescindir de ser
discursivo” e do “fato”90, vivendo na escrita, pois “o resultado fatal de eu viver é o ato
de escrever”91, e, para ele, “escrever é uma indagação: É assim:?”92, ressoando a
procura clariceana, presente na crônica acima mencionada, de se questionar ao escrever,
de escrever ser a procura do entender – embora, como a obra dela nos mostra, esta
procura seja sem resposta.
O narrador diz que ele precisa se colocar no vazio, abdicar-se do eu – que já é
um dêitico, gramaticalmente falando – e dirigir-se para o impessoal da vida, para o
neutro, retomando o “tudo é um” de Joana e, ao mesmo tempo, a máxima de Lóri de que
“será o mundo com sua impessoalidade soberba versus minha individualidade como
pessoa mas seremos um só”93. Assim, desde o princípio de sua obra, Clarice busca o
que atravessa todos os seres, o que liga o mundo sem, contudo, criar unicidade:

será horrível demais querer se aproximar dentro de si mesmo do


límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não existir mais, a não
reivindicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida – é isso que luto
por alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão
intensamente. [...] Para escrever tenho que me colocar no vazio.94

E para escrever seu livro e salvar-se, ele diz que

O resultado disso é que vou ter que criar um personagem – mais ou


menos como fazem os novelistas –, e através da criação dele conhecer.
Porque eu sozinho não consigo: a solidão, a mesma que existe em
cada um, me faz inventar. E haverá outro modo de salvar-se? Senão o
de criar as próprias realidades? [...] escolhi a mim e a meu
personagem – Ângela Pralini – para que talvez através de nós eu
possa entender essa falta de definição da vida. [...] Eu queria iniciar
uma experiência e não apenas ser vítima de uma experiência não
autorizada por mim, apenas acontecida.95

Essa personagem – e consequentemente a experiência de escrita – é criada de


“destroços de livro” e “restos de uma demolição de alma”96, que não advém de perda,

90
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 13.
91
Ibid., p. 15.
92
Ibid., p. 14.
93
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. 1999, p.. 156.
94
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 13.
95
Ibid., p. 18, grifos nossos.
96
Ibid., p. 19.
34

mas de multiplicação e de invenção97 de uma realidade outra possibilitada pela criação


ficcional, ou, como o narrador diz: “[os fragmentos que formam o livro] são cortes
laterais de uma realidade que se me foge continuamente”98. Essa realidade oblíqua,
contudo, não é composta de fatos, pois, como o Autor diz na última parte, “Controlo-me
para não contar os acontecimentos da vida de Ângela. Mas cairia no descritivo e
discursivo e isso me causaria tédio e queda”99. Por isso, o livro será feito de “rápidos
vislumbres meus e rápidos vislumbres de meu personagem Ângela”100, em uma espécie
de duplo diário feito de anotações e flashes do aqui e do agora sobre sensações e
impressões de si e do mundo. O narrador quer, a partir desses vislumbres de sensações
duplas, se conhecer e compreender a vida. Podemos, então, nos perguntar: por que, para
se conhecer, criar um personagem é tão importante? Por que ele teve que criar uma
personagem e não simplesmente escrever sobre seus próprios vislumbres?
Em seu artigo Um sopro de vida de Clarice Lispector, a auto-destruição do
sujeito moderno, Joana Frias (1998) propõe três explicações – de que trataremos aqui,
ampliando-as e as reformulando – para a necessidade da criação de Ângela pelo Autor:
(i) as regras que regem a enunciação e a comunicação; (ii) a importância da presença do
“outro” na formação psicanalítica do “eu”, e (iii) o ato de outrar-se implícito pela
criação de personagens na experiência literária. Exploremos cada uma das explicações
que, além de esclarecerem a criação de Ângela, também demonstram a presença da
alteridade na configuração da subjetividade e a reversibilidade das posições de sujeito
no texto.

3.1. A enunciação literária


A partir da segunda parte, quando o narrador se desdobra no personagem Autor,
que dá voz à sua personagem, Ângela, o texto passa a ter estrutura teatral, pois há a
dramatização de um diálogo entre Autor e Ângela. Todavia, como exploraremos mais à
frente, temos a impressão de que não há um efetivo diálogo entre eles, pois ambos
parecem falar para si próprios, embora suas falas estejam intercaladas na materialidade
do texto. Como o próprio narrador diz na primeira parte do livro, o Autor cria Ângela

97
Tomando “invenção” como descoberta, de modo que a realidade ficcional é descoberta, encontrada,
isto é, é outra face desta realidade que chamamos de “real”.
98
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 19.
99
Ibid., p. 172.
100
Ibid., p. 19.
35

pela existência de “leis que regem a comunicação”101 e a enunciação e que determinam


a necessidade de um outro, um interlocutor para realizar um diálogo.
A enunciação é definida por Benveniste como um evento singular e irrepetível102
no qual a língua é colocada em ação e transformada em discurso, que demanda que o
“eu”, o sujeito da enunciação, isto é, o enunciador, diga algo – um enunciado – a
alguém. Assim sendo, o “eu”, dêitico sui-referencial103, “propõe outra pessoa, aquela
que, sendo embora exterior a ‘mim’, torna-se o meu eco, ao que digo tu e me diz tu”104,
de modo que o “eu” e o “tu” são posições reversíveis dentro do discurso, seja no
enunciado ou na enunciação, e constroem um diálogo, uma comunicação.
Por conseguinte, ao escrever “eu” e “tu”, ao colocar-se no vazio da palavra
escrita, o narrador abre a enunciação para os sujeitos envolvidos no evento literário se
anunciarem e, consequentemente, abre espaço para outros que não “eu”, mas que podem
posicionar-se no dêitico e viver a literatura. Benveniste105 diz que a enunciação escrita é
a abertura da enunciação para os indivíduos (se) enunciarem no texto.
Podemos, então, dizer que o narrador se desdobra em si mesmo, na forma do
personagem Autor e em Ângela por uma necessidade enunciativa: precisamos de um
outro com quem dialogar:
não é fácil lidar com Ângela, a mulher que inventei porque precisava
de um fac-símile de diálogo. [...] Será que criei Ângela para ter um
diálogo comigo mesmo?106

O monólogo do Autor começa e é desdobrado em um diálogo com Ângela, que


pode ser considerado um duplo monólogo de três “eus” – Autor, Ângela e Clarice (no
terceiro capítulo acrescentaremos mais um “eu”), pois, como o Autor fala “[...] – Eu e
Ângela somos o meu diálogo interior – eu converso comigo mesmo. Estou cansado de
pensar as mesmas coisas.”107 No entanto, como o próprio Autor fala, o diálogo entre ele
e sua criatura trata-se de um “diálogo de mudos”, pois nenhum escuta o outro:

101
Ibid., p. 15.
102
BENVENISTE, Emile. “O aparelho formal da enunciação”. In: ______. Problemas da linguística
geral II. 1989, p. 81-90.
103
O vazio do dêitico “eu” pode ser ilustrado por esta frase de Ângela: “Eu me olho de fora para dentro e
vejo: nada.” (LISPECTOR, 1978, p. 60), pois Ângela olha dentro do “eu” e vê um vazio.
104
BENVENISTE, Emile. “Da subjetividade na linguagem”. In: ______.Problemas da linguística geral I.
1991, p. 286.
105
Nas palavras dele: “Seria preciso também distinguir a enunciação falada da enunciação escrita. Esta se
situa em dois planos: o que escreve se enuncia ao escrever e, no interior da sua escrita, ele faz os
indivíduos se enunciarem” (BENVENISTE, 1989, p. 90).
106
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 28-30.
107
Ibid., p. 65.
36

[AUTOR –] [...] notei que meu diálogo com Ângela é diálogo de


surdos: um diz uma coisa e o outro diz sim mas a coisa diversa, e
venho eu dizendo não, e vejo Ângela nem sequer me contradizer.
Cada um de nós segue o próprio fio da meada, sem ouvir muito o
outro.108

AUTOR – Ei-la falando como se fosse comigo mas fala para o ar e


nem sequer para si mesma e só eu aproveito do que ela fala porque ela
é de mim para mim.109

Ao longo do texto, podemos até questionarmos se Ângela tem conhecimento da


existência do Autor. Além disso, considerando que ela é um desdobramento do Autor e
que eles se confundem sem, contudo, fundirem-se, o diálogo entre ambos se configura
como dois monólogos, forma de enunciação que, conforme explica Benveniste, é um
diálogo interiorizado em que o “eu” se desdobra em referente e referido, em locutor e
interlocutor, e ouve-se enunciar-se110. Podemos dizer, por causa disso, que a
interlocução entre eles é um “diálogo-a-um” ou um “monólogo-a-dois” e pressupõe a
enunciação, pois esta é resultado de um desdobramento que acarreta sobreposição dos
dois sujeitos e faz com que o diálogo seja composto por apenas uma voz e várias vozes
ao mesmo tempo, já que eles são desdobramentos um do outro e, ao conversarem entre
si e consigo mesmos, se ecoam – se pensarmos que todo “todo ego é também um
eco”111, pois “não só quem diz eu é sempre outro, como também todo eu ecoa um outro.
Ou melhor: outros. Pois, cada ego humano é também uma multiplicidade [...]”112.
Podemos ver uma prévia de uma encenação enunciativa de um “eu” consigo mesmo,
isto é, um diálogo internalizado no texto/crônica “Quem ela era”:

– (Eu te amo)
– (É isso então o que sou?)
– (Você é o amor que eu tenho por você)
– (Sinto que vou me reconhecer... estou quase me vendo. Falta tão
pouco)
– (Eu te amo)
– (Ah, agora sim. Estou me vendo. Esta sou eu, então. Que retrato do
corpo inteiro)113.

108
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 91.
109
Ibid., p. 40.
110
BENVENISTE, Emile. “O aparelho formal da enunciação”. In: ______. Problemas da linguística
geral II. 1989, p. 81-90.
111
NODARI, Alexandre. ““Eu, pronome oblíquo”.2015a, p. 19.
112
Ibid., p. 27.
113
LISPECTOR, Clarice. “Quem era ela”. In: ______. Para não esquecer.1980, p. 55.
37

Podemos dizer que neste texto o travessão marca o início de uma fala, mas os
parênteses – como pontuação114 que sinaliza uma informação adicional mas não
essencial, uma digressão, o que pode não ser dito – escancaram o que está para além do
dito: talvez atrás do silêncio, ou atrás do pensamento? O diálogo entre parêntese se
realiza sem palavras, mas em pensamento e por meio da poética do olhar: um alguém
está se reconhecendo ao se ver no espelho – “estou quase me vendo”. Ou, considerando
o fato de que a interlocução sinalizada acontece entre parênteses, para além do dito,
poderíamos então pensar que o diálogo encenado na crônica é um monólogo de alguém
com seu Outro refletido no espelho? O diálogo só se realiza com a presença do outro, e
este outro está presente na materialidade do enunciado: “eu te amo”. Além disso, esse
“eu” define o outro pela relação que tem com ele quando diz “você é o amor que eu
tenho por você”. Sujeito e objeto se (con)fundem. O breve diálogo acaba quando o
primeiro enunciador se vê e conclui quem é – “esta sou eu”115.
De forma semelhante, em Um sopro de vida, há o texto secundário com um
nome seguido de um travessão no início de cada fragmento marcando o enunciador (se
“AUTOR –” ou “ÂNGELA –”). Além disso, há a entrelinha/espaço em branco que
separa as falas teatralizadas de ambos os personagens, uma espécie de entrelinha
alongada que configura silêncio e intervalo subjetivo que os divide e os une ao mesmo
tempo, pois cada um se posiciona nos dêiticos quando o texto secundário os nomeia.
Cabe ao leitor ler as entrelinhas a fim de resolver a (con)fusão entre os dois personagens
– separando-os ou os diluindo – e também tentar construir coerência entre a disposição
entre os fragmentos de cada um, pois, como disse Clarice em sua crônica: “Mas já que
se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com as palavras as entrelinhas”.116
No entanto, em alguns momentos, percebemos rastros de um diálogo, que se
mostra, na verdade, um eco, um adendo um do outro, uma continuidade diferente, como
podemos ver neste trecho, quando as reticências da fala de ambos se ligam na leitura:

114
Segundo o Dicionário online Caldas Aulete, iniciar e fechar o parêntese significa: Abrir um parêntese
1. começá-lo; interromper um período de um discurso para dizer uma coisa diferente do que se dizia; pôr
na escrita o sinal (. || Fechar o parêntese 1. concluir a digressão; pôr o sinal ) na escrita. || Entre parênteses
1. por modo de digressão ou de aparte. Disponível em: http://www.aulete.com.br/par%C3%AAntese
Acesso: 05 out. 2017.
115
Semelhante ao que Narciso diz quando se dá conta de que a imagem que está vendo refletida (no
espelho d’água) é ele: “Iste ego sum” (AZEVEDO, 2004, p. 34). A recuperação de Narciso é válida pois
nos permite reforçar a ideia de que a crônica se trata de um diálogo especular (em todos os sentidos) e,
relembrando o mito, de que Narciso também é Eco, pois ecoa sua imagem na água, assim como Autor
ecoa em Ângela.
116
LISPECTOR, Clarice. “Já que há de se escrever...”. In: ______.Para não esquecer. 1984, p. 25.
38

[AUTOR –] Eu uso o homem e não o conheço. Eu me uso e...

ÂNGELA – ... e vejo tudo com perspectivas novas [...].117

Em alguns momentos nos quais o Autor toma a cena enunciativa, no meio do


fragmento de sua fala um travessão é colocado, como que sinalizando que até então ele
estivesse soliloquiamente comentando seu texto e, a partir daquele ponto, ele (tentasse)
dialogar(sse) com Ângela ou abrisse dentro de sua fala um espaço para o diálogo,
inserindo o outro pela marca gráfica:

AUTOR – Ângela significa o único ser que ela é: só existe uma


Ângela. Nenhum ato meu sou eu. Ângela será o ato que me
representará. Eu perdi de vista o meu destino. Meu pedido nunca se
esgota. Eu peço. O que peço? Isto: a possibilidade de eternamente
pedir. Eu não tenho nenhuma missão: vivo porque nasci. E morrerei
sem que a morte me simbolize. Fora de mim sou Ângela. Dentro de
mim sou anônimo. Viver exige tal audácia. Me sinto perdido como se
estivesse dormindo no deserto do Ministério da Fazenda.
– Ângela, agora estou me dirigindo diretamente a você e peço-lhe
pelo amor de Deus para você enfim chorar. Queira, por favor,
consentir e chore. Porque, quanto a mim, não aguento mais a espera.
Dê um grito de dor! Um grito vermelho! E as lágrimas rebentam a
comporta e lavam um rosto cansado.
Lavam como se fossem orvalho.118

Não são sujeitos diferentes que falam, mas vozes e camadas que formam um
mesmo sujeito, que, no entanto, não culmina na supremacia de um indivíduo uno, mas
na sua clivagem e na importância da alteridade, isto é, do outro para a constituição da
subjetividade. Como já mencionamos anteriormente, todo ego é um eco, pois, de acordo
com o dialogismo, todo enunciado carrega diversos outros enunciados ditos
anteriormente pelo próprio enunciador e por outros – configurando uma polifonia –,
ecoando os discursos que constroem e são construídos na cultura do enunciador e que
correspondem a seu horizonte identitário. Dessa forma, o locutor também é um receptor,
pois não é o primeiro locutor, mas pressupõe a existência prévia do sistema linguístico e
de enunciados anteriores, sejam estes ditos e/ou escritos por ele ou por outros119, como
o Autor mesmo diz: “Fui invadido pelas palavras dos outros”120.

117
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 93.
118
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 44, grifos nossas para enfatizar a presença do
travessão.
119
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. 1997.
120
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 93.
39

Assim, poderíamos dizer, tomando a lente cultural como horizonte, que a


interlocução é um monólogo-a-∞, conforme o Autor diz:

Eu, o autor deste livro, estou sendo tomado por mil demônios que
escrevem dentro de mim. Essa necessidade de fluir, ah, jamais, jamais
parar de fluir. Se parar essa fonte que em cada um de nós existe é
horrível.121

É uma totalidade vocal que, no entanto, não exclui a subjetividade do


enunciador. É uma primeira pessoa que é várias. Dessa forma, temos uma unidade que
porta em si uma infinitude, um indivíduo ecoado e perpassado por outros indivíduos na
experiência verbal individual, que, segundo Bakhtin,

[...] toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e


permanente com os enunciados individuais do outro. É uma
experiência que se pode, em certa medida, definir como um processo
de assimilação, mais ou menos criativo, das palavras do outro (e não
das palavras da língua). Nossa fala, isto é, nossos enunciados [...]
estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas, em graus
variáveis, pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas, também
em graus variáveis, por um emprego consciente e decalcado. As
palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom
valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos. 122

Além disso, outro fato concernente à análise da enunciação, que é


caracterizada por ser um acontecimento sempre presente, é o tempo do texto, o que nos
leva a perguntar: qual o tempo do texto? O tempo dele é o tempo da enunciação, de
modo que os enunciados são escritos no momento em que são concebidos. O texto é
construído em um presente atemporal, pois o narrador fala que “de agora em diante o
tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje”123, o que reverbera a epígrafe da própria
Clarice que abre o livro:

Haverá um ano em que haverá um mês, em que haverá uma semana


em que haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um
minuto em que haverá um segundo e dentro do segundo haverá o não
tempo sagrado da morte transfigurada.

Como o tempo do texto é sempre presente, aqui e agora, os tempos da história –


história esta que prescinde dos fatos – e do discurso são sobrepostas, de modo que a

121
Ibid., p. 80.
122
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. 1997, p.313-314.
123
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 12.
40

enunciação é o próprio tema dos vislumbres de Autor e Ângela. A cena enunciativa


proposta no tema dramatiza e escancara a enunciação literária e o ato de escrever.
O texto que lemos é o texto que dá origem ao texto, um significante infinito que
é escrito na leitura124. A sobreposição do passado, presente e futuro faz com que
enunciado e enunciação se confundam, de modo que as fases da enunciação literária –
escritura e leitura – se misturem e causem a confusão das subjetividades envolvidas em
si, que deixam de ser sujeitos concretos e passam a ser posições e funções dentro da
narrativa, de modo que a unidade ficcional de um “in-divíduo”125 é levado à
multiplicidade de uma vida que “é um único dia. E é assim que o passado me é presente
e futuro” no corpo do texto.

3.2. A psicanálise
Jacqueline Authier-Revuz126 aproxima o dialogismo bakhtiniano da psicanálise
lacaniana para tratar da heterogeneidade constitutiva do sujeito e mostrar como o sujeito
moderno é cindido duas vezes pela linguagem: primeiro, por ser produto do
interdiscurso – pela enunciação, como já trabalhado na seção anterior –, e segundo,
interiormente, em sua constituição psíquica. Assim como ela, iremos tomar a
psicanálise como segunda abordagem que explica a necessidade da criação da
personagem. Podemos começar a abordá-la recuperando o estádio do espelho de que
fala Lacan, segundo a qual a (ficção da) identidade é formada pela imagem refletida no
espelho, através da qual o bebê toma “consciência” dos contornos de si quando se olha
no espelho e descobre que a mãe não é uma extensão do seu corpo 127; ao se olhar no
espelho, o bebê reduplica a realidade via imagem, através da qual “[...] formamos
nossos laços, e é a partir dela [da imagem] que assumiremos um modo de vida, enfim, é
partir dela que iniciamos uma ficção de quem somos”128.

124
A questão da leitura será desenvolvida no terceiro capítulo.
125
Apontamos que a unidade/identidade do indivíduo é ficcional considerando a identidade fragmentada,
deslocada e clivada do sujeito devido às cinco rupturas do discurso do conhecimento que descentraram a
constituição do sujeito moderno, a ser, segundo Stuart Hall (2005): o pensamento marxista, que desloca a
noção de agência individual e constroi a ideia de ação com base na coletividade; a psicanálise, que rompe
o conceito de sujeito cognoscente e racional ao descobrir o “inconsciente”; a linguística, que propôs que a
língua é um sistema social (Saussure) e que os enunciados são polifônicos (BAKHTIN, 1997) e revelam
no enunciado e na enunciação a heterogeneidade constitutiva dos enunciadores (AUTHIER-REVUZ,
1990).
126
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. “Heterogeneidade(s) enunciativa(s)”. In: Cad. Est. Ling. Campinas. v.
19.jul/dez. 1990, p. 25-42.
127
LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. 2010.
128
CERA, Flávia. “Verbete – espelho”. In Sopro. n. 55. Jul. 2011, p. 2.
41

Da mesma forma, o autor reduplica a realidade depois de ter se olhado no


espelho chamado literatura, cujo reflexo é uma fisionomia outra que não a nossa. Ele
mimetizou sua imagem e ficcionalizou sua existência – como uma despersonalização no
espelho da ficção:

TIVE UM SONHO NÍTIDO inexplicável: sonhei que brincava com o


meu reflexo. Mas meu reflexo não estava num espelho, mas refletia
uma outra pessoa que não eu.
Por causa desse sonho é que inventei Ângela como meu reflexo? 129

Através do espelho, o sujeito tem uma visão distanciada de si e a imagem


refletida que faz com que ele regresse à realidade cindida, mostrando via reflexo que o
sujeito é radicalmente dividido130. Ângela, em certo momento, diz: “Para eu ser duas e
haver a participação do estado, olho-me ao espelho, olho a outra de mim. E vejo que
minha aparência fluida tem a graça do flutuante rosto humano”131. Essa imagem no
espelho situa o “eu” em uma forma especular, este rosto flutuante, que “é mais
constitutiva que constituída”132, de modo a nos desviar da concepção do “eu” como algo
“centrado no sistema percepção-consciência”133.
A linguagem reflete o espelhamento de Autor e Ângela também por meio de
frases repetidas, que, apesar de serem iguais, são diferentes, são muito próximas, pois o
enunciador é um reflexo e as palavras estão em uma cadeia de significantes diferente:

ÂNGELA – Para que existo? e a resposta é: a fome me justifica.


Ah, é assim, não é? Pois bem, já que é assim eu me vingarei e viverei
minha vida com brutalidade, sem piedade.

AUTOR – Para que existo? e a resposta é: a fome me justifica.134

Ângela é também concebida como o inconsciente e o sonho do Autor ao ser


descrita como “o atrás do pensamento”135 e “sonho acordado”136, dentro de uma análise
psicanalítica da obra, proposta por Maria Lúcia Homem137. O criador diz que deixa que

129
Ibid., p. 27.
130
FRIAS, Joana. Um sopro de vida de Clarice Lispector: a auto-destruição criadora do jeito moderno
1998.
131
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 142.
132
LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. 2010, p. 98.
133
Ibid., p. 102, grifo no original.
134
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 165.
135
Ibid., p. 78.
136
Ibid., p. 90.
137
HOMEM, Maria Lúcia. No limiar do silêncio e da letras: traços da autoria em clarice Lispector. 2011.
42

a personagem fale quando ele não quer pensar. Em outras palavras: quando ele abre
mão do seu consciente, de modo que Ângela é tida como o pensar-sentir e apresentada
como o ilógico, o nonsense, o inconsciente. O Autor diz que Ângela fala por ele durante
o sono, logo, que Ângela é seu sonho, o que remete à criação ficcional de uma realidade
virtual durante o sonho, uma realidade outra. Dentro de sua própria realidade Ângela
sonha, pois, como indica o texto secundário, ela divaga monologamente enquanto está
sonâmbula, de modo que ela não se ouve, talvez Autor a ouça, apesar de estar sonhando.
Contudo, só o leitor pode tentar tirar sentido do sem-sentido do fluxo da in-consciência
de Ângela, porque tal trecho não passa de uma concatenação de significantes que
desviam a cada tentativa de depreender deles um sentido. O inconsciente cria
associações entre as palavras, errando entre os signos e revelando “o jogo da criação
literária e o quanto ela é marcada pela renúncia ao controle racional absoluto da
delimitação de sentidos”138, pois a cadeia de significantes é que impõe sentidos ao
buscar dizer o impossível – o não dito:

ÂNGELA (Sonambulismo) – Cinza-escuro os teus olhos de aço que


me fascinam tua boca de rebordos mais claros que os lábios. Só me
abraças forte demais quando queres mas nunca adivinhas quando eu
quero.
As uvas, um cacho de uvas redondas e polpudas e líquidas e
falsamente transparentes porque dão a impressão de serem
transparentes, mas não se vê o lado de lá tu és inteiramente opaco
embora dês a impressão de transparência diabo pro inferno que tenho
a ver com a opacidade das coisas e a tua o touro da fazenda é grosso
as vacas cheirando a campos e campos inéditos o campo fica ao ar
livre entre o campo e o céu eu respiro o ar que voa voa leve quando
começa a brisar meu rosto nu e desgovernado louco quando as janelas
batem e batem as ventanias gosto tanto de ser brisada como de me
expor à ventania que bate as portas e janelas do casarão inteiro. Bate e
bate depressa doido nós e os criados corremos para fechá-las e dentro
do casarão fechado abafamos em luz elétrica mortiça ouvindo o ganir
do ar violento e rápido estremecem as portas e janelas fechadas. 139

Além de mostrar os desvios do inconsciente, esse trecho manifesta a


desfiguração do tempo-espaço na literatura moderna, pois o tempo é o tempo de trás da
consciência, do inconsciente, onde passado, futuro e presente se misturam. Ela é o
inconsciente do Autor, mas sua consciência também está cindida, de modo que ele
sonha e o inconsciente dele, Ângela, divaga também inconscientemente, pois “as

138
Ibid., p. 173.
139
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 87.
43

palavras de Ângela são antipalavras: vêm de um abstrato lugar nela onde não se pensa,
esse lugar escuro, amorfo e gotejante como uma primitiva caverna.”140
Ângela como sonho acordado do Autor pode ser relacionada com os dois
subtítulos das partes centrais do livro: “O sonho acordado é que é a realidade” e “Como
tornar tudo um sonho acordado?”. Isto é, Ângela é sonho e, portanto, realidade, sendo
que no sonho acordado141 “a razão se alia à procura do real por trás da mera realidade
referencial, do ângulo literário”142. Ela é o caminho para se alcançar a realidade, que é
sonho acordado, destarte, o livro dela – e, consequentemente, a literatura –é o acesso
e/ou resultado da/para a realidade. O Autor ainda diz que “qualquer um pode sonhar
acordado se não mantiver acesa demais a consciência”143. Maria Lúcia Homem também
aponta que Ângela é um reflexo do “eu ideal” do Autor, isto é, do que ele quer ser, do
seu sonho enquanto utopia. Ele cria uma realidade outra para que possa ser seu ideal:

Ângela é tudo o que eu queria ser e não fui. O que é ela? ela é as
ondas do mar. Enquanto eu sou floresta espessa e sombria. Eu sou no
fundo. Ângela se espalha em estilhaços brilhantes. Ângela é a minha
vertigem. Ângela é a minha reverberação, sendo emanação minha, ela
é eu.144

A presença do outro também é essencial para que o sujeito experiencie o início e


o fim da vida, ou seja, o nascimento e a morte, momentos que não temos consciência da
experiência. Como diz Eduardo Coelho Prado, citado por Frias:

Cada um de nós nasce e morre. Mas a minha morte e o meu


nascimento são acontecimentos que eu não consigo viver de dentro.
De certo modo, a morte e o nascimento que me são dados pensar são
sempre a morte e o nascimento dos outros. Este estatuto estabelece um
imenso desequilíbrio entre um eu e um tu. Dizer 'eu nasço' apenas
pode querer dizer que um outro nasce que não eu. Dizer 'eu morro'
apenas pode querer significar que um outro morre que não eu. Donde,
nos lugares extremos onde a minha vida se resolve, e o seu valor
primeiro ou último se decide, um outro está no meu lugar.145

140
Ibid., p. 39, grifos nossos para marcar a divisão dentro dela.
141
Podemos lembrar que Antonio Candido (2006, p. 175), em seu texto O direito à literatura, definiu a
literatura como “sonho acordado das civilizações”, de modo que, se tomarmos tal definição e
aproximarmos do fato de Ângela ser sonho do Autor: Ângela é literatura. Dentro de seu caráter de homo
fictus, ela é ficção, seja como imagem especular no espelho, seja como desdobramento do Autor e de
Clarice.
142
HOMEM, Lúcia Maria. No limiar do silêncio e da letras: traços da autoria em clarice lispector. p.
180.
143
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 83.
144
Ibid, p. 31.
145
COELHO, Eduardo Prado - Os Universos da Crítica, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 479 apud FRIAS,
1998, p. 128.
44

Em sua crônica “Lembrança de um verão difícil”, Clarice já aponta para a


necessidade do outro para se nascer e para se morrer. Precisamos de alguém que nos
conceba – um óvulo e um espermatozoide –, alguém que faça nosso parto, e também
alguém que nos enterre ou creme e, assim, damos a experiência de nosso nascimento e
nossa morte para o mundo:

[...] Minhas mortes não são por tristeza – são um dos modos do mundo
inspirar e expirar, a sucessão de vidas é a respiração da espera infinita,
e eu mesma, que também sou o mundo, preciso do ritmo de minhas
agonias. Mas se eu, como mundo, concordo com a minha morte, eu,
como a outra coisa que extremamente também sou, preciso que as
mãos da misericórdia recebam o corpo morto.146

Para experienciar a própria morte, a morte individual e não a morte do “eu


mesma, que também sou o mundo” – ecoando o “tudo é um” de Joana –, uma agência
de morte, um retirar-se da vida via suicídio, o sujeito precisa outrar-se, pois dizer
“mato-me” pressupõe um

desdobramento de que não me dei conta. O ‘eu’ é um eu na plenitude


de sua ação e de sua decisão, capaz de agir soberanamente sobre si,
sempre prestes a atingir-se e, no entanto, aquele que é atingido já não
sou eu, é um outro. Talvez a minha morte seja a morte que
negligenciei147.

Seguindo essa lógica, Autor cria Ângela para experienciar seu nascimento e sua
morte, já que essas duas experiências são sempre experimentadas via nascimento e
morte do outro. Ângela diz que a vida é um teatro no qual “na verdade nunca morremos
quando acontece a morte. Só morremos como artistas. Isso seria a eternidade?” (174) O
livro todo seria, então, uma preparação para a morte, para o sumiço do Autor, e para o
efetivo nascimento, com a autonomia e a corporificação de Ângela no final, já que,
segundo ele, “depois que eu morrer Ângela continuará a vibrar”148.

3.3. A criação literária

146
LISPECTOR, Clarice. “Lembrança de um verão difícil”. In: ______. Para não esquecer. p. 138,
grifos nossos.
147
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987, p. 104.
148
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 28.
45

Por fim, a terceira abordagem é a divisão do sujeito na criação poética, que,


conforme aponta Frias149, é um dos topos da produção literária do século XX, na qual se
insere Clarice. A condição para a autoria é o texto. Isto é, o autor é autor de algo, de
modo que precisa de escrever para ocupar a posição de autor. O texto é o meio para o
ato de outrar-se na literatura, caminho para o outro da ficção: os personagens, os
homofictus. Escrever ficção seria viver uma vida outra por meio da palavra, ou, como
Clarice escreveu em sua crônica “Lembrar-se”:

Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como


conseguirei saber do que nem ao menos sei? Assim: como se me
lembrasse. Com um esforço de “memória”, como se eu nunca tivesse
nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é
carne viva.150

O ato de escrever pressupõe, portanto, exilar-se de si mesmo e viver outro modo


de existência via literatura pelo outrar-se ficcional, que demanda a fragmentação do eu,
um desdobrar-se que culmina não na perda da identidade, mas na sua multiplicação,
assim como o Autor criou sua personagem. Ângela é a condição para a existência do
Autor e, logo, da própria literatura151. Os personagens, esses egos experimentais que
vivem vidas outras, são o resultado, segundo o narrador, na primeira parte, da inspiração
do “encontro de um mundo que está dentro de mim, eu que escrevo para me livrar da
carga difícil de uma pessoa ser ela mesma”152. Assim, a despersonalização literária é um
caminho para a “Experiência maior”, pois os personagens são o caminho para nós
mesmos – daí a necessidade da criação de uma personagem, o outro da ficção, para se
conhecer:

eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu.
Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha
experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era
eu.153

Podemos, a partir desse desdobramento que a ficção pressupõe154, nos


perguntarmos: qual a relação entre os sujeitos literários de Um sopro de vida? Qual a

149
FRIAS, Joana. “Um sopro de vida de Clarice Lispector: a auto-destruição criadora do jeito moderno”.
In Línguas e literaturas. 1998.
150
LISPECTOR, Clarice. “Lembrar-se”. In: ______. Para não esquecer. 1980, p. 42.
151
FRIAS, Joana. Op. cit. 1998.
152
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 16.
153
LISPECTOR, Clarice. “A experiência maior”. In: ______. Para não esquecer. 1980, p. 39.
154
E veremos, no terceiro capítulo, que isso também se dá na leitura.
46

relação entre a vida/realidade e a obra/ficção no texto? Quem é o “eu” e quem é o


“outro” nessa relação?
Acerca da relação das instâncias narrativas no livro, criadas pelo desdobramento
do sujeito na criação literária, Benedito Nunes defende que “a cisão do sujeito
narrador”155 nesta obra configura o Autor e Ângela como heterônimos de Clarice
Lispector, que seria o ortônimo. Ele inclui a escritora empírica pela relação entre
biografia e ficção que se costuma fazer nos textos ficcionais da escritora, como
apontamos no primeiro capítulo sobre leituras biografizantes. No entanto, defenderemos
aqui que a heteronímia não funciona na obra aqui analisada.
Para iniciarmos a conversa sobre heteronímia, podemos recuperar o poeta
Fernando Pessoa156. Pessoa é famoso por ter criado vários heterônimos, que, segundo
ele, seriam “desdobramentos de personalidade ou, antes, invenções de personalidades
diferentes”157. O escritor português aponta sua tendência para a despersonalização como
uma das quatro158 explicações para a gênese dos heterônimos. Seus heterônimos têm
estilos, temas, vidas e obras diferentes da dele, de modo que os heterônimos não são
exatamente ele. São seres autônomos, seus duplos diferentes. São nomes que delimitam
textos, de maneira que Pessoa não “dominava” Alberto Caeiro, mas se dizia discípulo
deste, a ponto de falar, em sua carta a Casais Monteiro, acerca da gênese dos
heterônimos, que escreveu o poema “Chuva oblíqua” depois de conhecer Caeiro e o
Guardador de rebanhos, sendo que o poema “foi a reação de Fernando Pessoa contra a
sua própria inexistência como Alberto Caeiro”159. Cada nome de cada heterônimo,

155
NUNES, Benedito. “O jogo da identidade”. In: ______. O drama da linguagem. 1989, p. 170.
156
Para entrar na relação entre Clarice Lispector e Fernando Pessoa, recomenda-se o artigo Olhos nos
olhos (Fernando Pessoa e Clarice Lispector), de Nádia Gotlib.
157
PESSOA, Fernando.Nestes desdobramentos de personalidade ou, antes, invenções... Disponível em:
http://arquivopessoa.net/textos/4293 Acesso: 20 nov. 2017.
158
As outras três explicações seriam: (i) resquício da lógica infantil, (ii) temperamento dramático, histeria
e (iii) auto-mediuinidade (PESSOA, 1974).
159
Trecho da carta: “Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-
Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro
como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia
em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e,
tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos
poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha
vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu
foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o
absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim
que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio,
também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e
totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi
a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.” (PESSOA, 1974, p. 96).
47

assim como do ortônimo, funcionam como “função-autor” distinta, delimitando


determinando estilo e certas características. Por exemplo, ninguém diria que Alberto
Caeiro escreveu poemas melancólicos sob o efeito do ópio, pois este autor foi Álvaro de
Campos, assim como que Alberto Caeiro não é conhecido por poemas metalinguísticos,
mas o é o ortônimo, que escreveu “Isto”, poema que citamos em nota no início deste
capítulo. A criação literária em Fernando Pessoa culmina em uma multiplicação da
subjetividade e de sua consequente independência um em relação aos outros dentro da
ficção.
Na relação de Clarice com seus personagens, não é possível traçar uma fronteira
entre eles. Primeiramente, como já apontado no capítulo anterior, Clarice transforma seu
“eu” da enunciação da crônica em um “ela” de Lóri, no livro Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres, além de que o episódio em que Lóri acorda às cinco da manhã e
esquenta café é um dos fatos mais autobiográficos da obra, segundo Carlos Mendes de
Sousa160. Na Hora da estrela, Clarice torce e desnuda o jogo das identidades de seu eu
com seus egos imaginários, desmascarando a ficção, pois, na dedicatória, lemos:

Dedicatória do autor (na verdade Clarice Lispector)

No entanto, o autor da novela é masculino e nomeado, Rodrigo S. M., de modo


que, ao desfazer a ilusão ficcional de um autor homem e falar a “verdadeira” identidade
da autoria do texto, Clarice dobra-se em Rodrigo S. M. e, considerando que este se
desdobra/espelha em sua personagem nordestina, também em Macabéa161,
intertrocando-se162, tornando-se-outro por meio da palavra. Como Rodrigo S. M.
escreve Macabéa e é escrito ao escrever esta, Clarice é também escrita na escritura de
seu texto. Ela se apresenta em terceira pessoa, quebra o pacto ficcional e, com isso,

suspende “sua máscara pública de ficcionista (...) Clarice Lispector


faz-se igualmente personagem (...) Clarice Lispector abre o jogo da
ficção – e o de sua identidade como ficcionista. Comprometida com o
ato de escrever, a ficção mesma, fingindo um modo de ser ou de
existir, demandará uma prévia meditação sem palavras e o
esvaziamento do eu.163

160
SOUSA, Carlos M. Figuras de escrita. 2000.
161
Para investigar a reconstrução e os fatos e pessoas que deram origem à Macabéa e Olímpico, bem
como aos episódios do violino e da vidente na novela, recomendamos o livro Era uma vez: Eu – a não-
ficção na obra de Clarice Lispector, de Lícia Manzo (1997).
162
Evando Nascimento (2011) recupera o verbo “intertrocar” de A hora da estrela para tratar do devir e
das trocas de posições entre os sujeitos no texto.
163
NUNES, Benedito. “Jogo de identidade”. In: ______. O drama da linguagem. 1989, p. 164-165.
48

Antes mesmo da dedicatória, na capa do livro, de forma mais sutil, em meio a


seus treze títulos o nome “Clarice Lispector” figura como um décimo quarto título,

A CULPA É MINHA
OU
A HORA DA ESTRELA
OU
ELA QUE SE ARRANGE
OU
O DIREITO AO GRITO

CLARICE LISPECTOR
QUANTO AO FUTURO
OU
LAMENTO DE UM BLUE
OU
ELA NÃO SABE GRITAR
OU
UMA SENSAÇÃO DE PERDA
OU
ASSOVIO NO VENTO ESCURO
OU
EU NÃO POSSO FAZER NADA
OU
REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES
OU
HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL
OU
SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS

como se a escritora estivesse se escrevendo, inscrevendo uma vida outra, uma


subjetividade outra nos textos e nos personagens, subjetivando-se de volta depois de se
objetivar ao subjetivar seus egos imaginários via linguagem, construindo-se no discurso,
de modo a “deslocar o eixo da vida do plano real para o plano da realidade
simbolicamente estruturada, dos signos da existência, para uma grafia-da-vida”164, isto
é, uma biografia no lugar de uma autobiografia.
Em Um sopro de vida, Clarice volta a romper o pacto ficcional quando se
inscreve no texto, não mais no meio dos títulos e na dedicatória, mas no texto em si por
meio da reversão paródica da ilusão ficcional: “arrancando-lhe a máscara: o
desnudamento da ficção, uma poética do escrever = viver, do sopro de vida, do escrever
morrendo para se salvar”165. Como que ironizando o fato de que sempre se falou que ela
só falava de si na ficção e dizendo “essa sou eu escrita”, quando Clarice tira sua

164
SANTIAGO, Silviano. A vida como literatura. 2006, p. 16-17.
165
SÁ, Olga de. Clarice Lispector: a travessia do oposto. 2004, p. 218.
49

máscara, vemos um jogo de máscaras. Assim como o Autor cria Ângela para poder
experimentar a morte e o nascimento, Clarice escreve para morrer-se e salvar-se pela
escrita e poder dizer “mato-me” ou “nasço”.
Ao se colocar no texto, Clarice não está se mostrando a outra de seus
personagens ou do próprio texto, mas (con)fundindo-se a eles, pois não é possível
separar concretamente no corpo do texto Autor, Ângela e Clarice. Clarice até mesmo
compartilha seus livros “físicos” com seus personagens:

[ÂNGELA – ] O objeto – a coisa – sempre me fascinou e de algum


modo me destruiu. No meu livro A cidade sitiada eu falo
indiretamente no mistério da coisa. Coisa é bicho especializado e
imobilizado. Há anos também descrevi um guarda-roupa. Depois veio
a descrição de um imemorável relógio chamado Sveglia: relógio
eletrônico que me assombrou e assombraria qualquer pessoa viva no
mundo. Depois veio a vez do telefone. No Ovo e a galinha falo no
guindaste. É uma aproximação tímida minha da subversão do mundo
vivo e do mundo morto ameaçador.166

[AUTOR – ] Mas se eu falo é porque não tenho força de silenciar mais


sobre o que sabemos e que devemos manter em sigilo. Mas quando
essa coisa silenciosa e mágica se avoluma demais a gente desrespeita
a lei e grita. Não é um grito triste, não é um grito de aleluia também.
Eu já falei isso no meu livro chamando esse grito de “it”. Será que eu
já morri e não notei? Será que já não existo?167

Nestes dois trechos, vemos que o Autor toma a autoria de Água viva, que
apresenta uma narradora mulher, no qual Clarice usa o it, almeja o instante-já e o toque
da coisa, assim como Ângela, pois é neste livro que ela descreve um guarda-roupa; e
Ângela toma a autoria de A cidade sitiada, do conto “O ovo e a galinha”, e
consequentemente do livro Legião estrangeira, e d’”O relatório da coisa”, de Onde
estivestes de noite. Além disso, podemos citar o fato de o Autor relata que Ângela
escreve crônicas para o jornal e que não gosta, e de que, na quarta parte, descobrimos
que o livro que Ângela está escrevendo se chama “História das coisas”, que remete a
seu texto “O relatório da coisa”, no qual aparece o despertador Sveglia.
Dessa forma, Clarice se dessubjetiva para se tornar um nome, um pseudônimo
de si, pois os leitores pegarão os livros “físicos” em questão e não lerão um nome
masculino do Autor anônimo nem de Ângela Pralini, mas de Clarice Lispector. Clarice
seria o pseudônimo de seus personagens, que, no entanto, são ela, logo, o nome “Clarice
Lispector” é um pseudônimo/nome falso que volta para o verdadeiro. Clarice

166
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 115.
167
Ibid., 1978, p. 170.
50

anteriormente utilizou de pseudônimo duas vezes em sua vida: quando publicava textos
para uma revista feminina e quando escrevia como ghostwriter para uma atriz, por
motivos financeiros; e supostamente168 tentou usar o pseudônimo de Claudio Lemos, C.
L., quando publicou A via crucis do corpo e não queria admitir a autoria do livro pelo
teor erótico dos contos – ela realiza movimento parecido com a dedicatória de A hora
da estrela, mas agora o nome aparece apenas nas iniciais, revelando o rastro do nome da
escritora – como as inicias de G. H. na valise.
Considerando tudo isso, observamos, na reversão paródica de Um sopro de vida,
o que Giorgio Agamben recupera de Giorgio Manganelli: pseudonímia quadrática ou
homoheteronímia, o extremo da heteronímia no qual o pseudônimo é idêntico ao nome
verdadeiro/próprio. Nas palavras de Agamben, na pseudonímia “não só um eu cede o
lugar a outro, mas este outro pretende não ser outro, e sim identificar-se com o eu, o
que o eu só pode negar”169. O pseudônimo quadrático é um nome que espelha a si
próprio, mas cujo reflexo é um outro de si, retomando o fluxo de Heráclito: não se entra
duas vezes no mesmo rio porque a água é sempre outra, e nós também somos sempre
outros. Clarice também era sempre outra. Agamben também diz que

todo nome próprio, enquanto nomeia um ser vivo, um não-linguístico,


é sempre um pseudônimo de grau zero; só como pseudônimo ‘eu’
posso escrever, posso dizer eu; a saber, algo que poderia ser lido ou
ouvido só por pseudônimo quadrático, que, em si, não existe, a não ser
tomando o lugar do próprio eu170.

Dessa forma, todo “eu” seria um resíduo do eu que já não vive mais, do outro
que ficou no passado e na duração do tempo culminou no eu da enunciação, seja ela
escrita ou falada. O eu é um espaço vazio, uma abertura na linguagem. De acordo com o
que Agamben propõe, podemos esquematizar os três graus de pseudonímia
quadrática171 da seguinte forma: 1º) Eu sem pseudônimo que existe, mas que não pode
escrever; 2º) Pseudônimo de grau zero que escreve o texto ilegível do primeiro eu, e 3º)
Pseudônimo quadrático que lê, relê e perde o livro nulo.

168
É válido apontarmos que Cláudio Lemos aparece no texto “Explicação”, que abre o livro A via crucis
do corpo e que, como falamos no primeiro capítulo, não nos permite dizer se é um prefácio do livro, de
modo a anteceder a ficção, ou se já faz parte da ficção, de forma que não podemos dizer se de fato o
pseudônimo C.L. era de Clarice ou fazia parte da ficção e, portanto, algo além de um simples pseudônimo
para a escritora.
169
AGAMBEN, Giorgio. O que restou de Auschwicz: o arquivo e a testemunha. p. 133.
170
Ibid., p. 134.
171
Ibid.b, p. 134.
51

Como Agamben aponta, o pseudônimo de grau zero escreve um texto ilegível


para si em um primeiro momento, e que pode ser lido apenas como testemunho da
escrita pelo pseudônimo quadrático. Dessa forma, a ação do pseudônimo quadrático é
ler e, consequentemente, seu tempo é o da leitura, pois o processo seria como que uma
subjetivação heteronímica ao qual sempre sobreviveria um rastro, um resíduo roda vez
que um “eu” diz um “eu”. Uma anedota que revela que somos sempre outros é aquele
triste momento em que lemos e relemos algo que escrevemos, um bilhete ou um número
de telefone aleatório, mas não lembramos o contexto daquele ato de escrita. Deixamos
uma suposta intenção do autor e perdemos o significado do papel, pois já não somos
aquele que o escreveu, nós podemos apenas testemunhar o fato de termos escrito aquilo.
Na sua crônica “As três experiências”, Clarice disse que gostaria de testemunhar sua
escrita como outra pessoa em outra encarnação, como um outro possível de si:

Eu queria que houvesse encarnação: que eu renascesse depois de


morta e desse a minha alma viva para uma pessoa nova. Eu queria, no
entanto, um aviso. Se é verdade que existe uma reencarnação, a vida
que levo agora não é propriamente minha: uma alma me foi dada ao
corpo. Eu quero renascer sempre. E na próxima encarnação vou ler
meus livros como uma leitora comum e interessada, e não saberei que
nesta encarnação fui eu que os escrevi. 172

Ainda podemos especular que “Clarice Lispector”, ao virar pseudônimo de si, e


dar suas obras para seu(s) outro(s), está se desfazendo da posição-autor, deixando-a
livre para quem quiser preenchê-la – seja o Autor, seja Ângela, seus personagens, ou
seja o leitor, que preencherá o “eu” da enunciação no momento da leitura, realizando
novos textos a partir dos significantes potencializados por Clarice no seu texto. Ou,
como propõe Hélène Cixous, ela nos mostra que “somos muito mais que o nosso nome
próprio nos autoriza a crer que somos”, pois “somos possíveis”173 – uma infinitude de
possibilidades por trás do nome.
Além disso, Clarice também seria aqui leitora, porque, enquanto pseudônimo
quadrático, ela só poderia reescrever sua obra enquanto leitora de suas palavras. Não
apenas Clarice é leitora de si, mas também seus personagens são leitores de Clarice,
como se pode ver no trecho a seguir, do conto “A partida de trem”, no qual Ângela
Pralini reconhece Clarice como a autora de um conto – “A procura de uma dignidade” –
, que, aliás, é o primeiro conto do livro em que o conto no qual Ângela primeiro

LISPECTOR, Clarice. “As três experiências”. In: ______. A descoberta do mundo. 1999, p. 102.
172

CIXOUS, Hélène. “Extrema fidelidade” In: LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela: edição com
173

manuscritos e ensaios inéditos. 2017, p. 161, grifo no original.


52

aparece, Onde estivestes de noite. Isto é, Ângela reconhece em Clarice um outro em


uma produção anterior à sua, e faz intertextualidade com um texto de Clarice para
descrever uma outra personagem da autora:

a velha era anônima como uma galinha, como tinha dito uma tal de
Clarice falando de uma velha despudorada, apaixonada por Roberto
Carlos. Essa Clarice incomodava. Fazia a velha gritar: tem! Que!
Haver! Uma! Porta! De saííída! E tinha mesmo.174

Podemos nos perguntar: considerando a ironia da personagem, seria “essa


Clarice” já um pseudônimo quadrático de Ângela, de modo que é Ângela falando de si
mesma ao falar de seu pseudônimo? No fluxo de consciência de Ângela dentro do conto
com narrador em terceira pessoa, Clarice já seria um outro deste “eu” chamado Ângela?
E seria Ângela já personagem do Autor? Seria o narrador do conto o Autor?
Por mais que nos perguntemos, não conseguiremos encontrar respostas, pois,
como Clarice já disse sobre o ato de escrever: é uma procura sem resposta. Por meio da
prática imaginária da escrita e pela objetivação do eu através da vida outra e do
monólogo-a-dois (ou quatro) ou do diálogo-a-um de uma escrita teatral, Clarice se olha
nesse espelho – a literatura – que reflete uma fisionomia outra, cria seus duplos e
testemunha sua escrita. E esses duplos têm sobrevida, têm autonomia no espaço-tempo
do texto literário, e se tornam realidade estruturada, nesse sonho acordado que é a
literatura, por palavras na folha de papel, apesar de não configurarem heteronímia como
em Fernando Pessoa, porque Clarice dobra e espelha inversamente a criação do outro.
Contudo, ao espelhar seus personagens, Clarice não realiza identificação ou
projeção em seus personagens, mas se reconhece neles, através de seus “pontos de
conjunção”175. Ao se desdobrar no Autor, Clarice se reconhece sua posição de criadora,
e no desdobramento em Ângela ela assume posição de criatura, que, por sua vez, é
criadora de seu criador. Assim como o narrador diz que o livro é a sombra de sua vida,
os personagens são a sombra de Clarice.
E assim a escritora testemunhou a sua criação e se escreveu no momento em que
escrevia; da mesma forma, o Autor testemunha sua criação e se escreve ao escrever. Isto
é, o Autor é tão produto do texto quanto a sua criatura, o que nos leva a perguntar: qual
a relação entre os dois personagens, Autor e Ângela, considerando que são colocados
como criador e criatura?
174
LISPECTOR, Clarice. “A partida de trem”. In: ______. Todos os contos. 2016, p. 466, grifos nossos.
175
CIXOUS, Helene. Extrema fidelidade. 2017, p. 138.
53

Bakhtin176 propõe, a partir do conceito exotopia em sua análise de Dostoievski,


que o autor dá acabamento ao herói, dando-lhe contornos e delimitando sua vida dentro
do livro, de modo que o autor (da ficção tradicional realista) é aquele que detém o poder
de seus personagens. Em Um sopro de vida, devido à configuração dos sujeitos como
agregados e clivados em várias vozes e posições intercambiáveis, e levando em conta o
fato de que Autor é escrito ao escrever, há uma quebra nessa hierarquia na relação de
poder entre autor e personagem.
O Autor, que advém do narrador e “primeiro” leitor do livro, não detém poder
fictício sobre o texto e sua criatura, pois esta lhe dá acabamento, assim como ele dá
acabamento a ela – como ambos escrevem a Clarice. O Autor não antecede o texto, mas
é escrito ao mesmo tempo em que escreve sua personagem, no momento da enunciação
literária – é um scriptor moderno –, e depende da palavra e do outro para existir. O
autor não é a categoria que precede a existência do texto e que detém poder sobre os
significantes e, consequentemente, sobre seus significados, mas é escrito ao mesmo
tempo em que escreve sua personagem e seu texto, no momento da enunciação literária,
e depende da palavra e do outro para existir, pois existe apenas durante a escritura-
leitura e morre, tão logo a leitura cesse.
Em certo momento da narrativa, o Autor chega a dizer que precisa “ficar só de
mim”, mas o resultado disso é que ele teria que deixar “em branco uma página ou o
resto do livro”177, pois não pode ser sozinho178. Logo em seguida ele retorna porque,
segundo ele:

Voltei. É que a pungência de Ângela Pralini me chamou. Diante dela –


como diante de uma obra-prima – sinto um quase intolerável aperto no
coração, uma vontade de fugir da emoção. [...] O que a nossa
imaginação cria se parece com o processo que Deus tem de criar.179

Ao pensar em Deus e na criação do mundo, ele se pergunta se é também


personagem de alguém:
Como eu ia dizendo: foi Deus que me inventou. Assim também eu –
como nas olimpíadas gregas os atletas que corriam passavam para a
frente o archote aceso – assim também eu uso o meu sopro e invento
Ângela Pralini e faço-a mulher. Mulher linda.180

176
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. 1997.
177
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 148.
178
Na primeira edição, as duas páginas seguintes a essa frase são deixadas em branco, de modo a
concretizarem na materialidade do livro físico a tentativa do Autor de ficar só.
179
Ibid., p. 151.
180
Ibid., p. 79.
54

Equiparando-se a um deus, o Autor a todo momento (se) questiona se Ângela o


considerava Deus – “Quando Ângela pensa em Deus, será que ela se refere a Deus ou a
mim?”181 – e se ela desconfiava que alguém a criara e, de fato, ela se pergunta: “Sinto
que sou impulsionada. Por quem?”182, ao que Autor comenta: “Preciso tomar cuidado.
Ângela já está se sentindo impulsionada por mim. É preciso que ela não perceba a
minha existência, quase como que não percebemos a existência de Deus.”183 Isto é, ele
quer ser Deus, quer ser o controlador.
Contudo, a dicotomia entre criador e criatura é quebrada entre Autor e Ângela
pelo fato de que eles se confundem e se diferenciam, ao se afastarem e se aproximarem
a todo momento, revelando a “dualidade ambivalente do ser”184. Sujeito e objeto,
criador e criatura, personagem e autor se confundem ao se aproximarem e se afastarem
a todo momento, quebrando as relações de poder de dominante e dominado, mostrando
que o espaço literário não é campo de dominação185 e que tudo se toca, tudo se é em
tudo, sem que, no entanto, se fundam de fato. Assim, a criatura escapa do poder do
criador – ao que o Autor reage: “[...] essa criatura frívola que ama brilhantes e pérolas
me escapa como escapa a ênfase indizível de um sonho.”186, e ganha força a ponto de se
autonomizar, ganhar corpo comandar o criador:

AUTOR. – Noto com surpresa mas com resignação que Ângela está
me comandando. Inclusive escreve melhor que eu. Agora os nossos
modos de falar se entrecruzam e se confundem. 187

Ao serem confundidos em sua constituição, mas nunca fundidos, podemos dizer


que Autor e Ângela mostram que apolíneo e dionisíaco não são duas moedas diferentes,
mas dois lados da mesma moeda. Autor fala que Ângela é o espiral dentro da pirâmide
de arestas retas:
AUTOR. – Ângela é uma curva em interminável sinuosa espiral. Eu
sou reto, escrevo triangularmente e piramidalmente. Mas o que está
dentro da pirâmide – o segredo intocável o perigoso e inviolável –
esse é Ângela. O que Ângela escreve pode ser lido em voz alta: suas
palavras são voluptuosas e dão prazer físico. Eu sou geométrico.

181
Ibid., p. 139.
182
Ibid., p. 103.
183
Ibid., p. 111.
184
HOMEM, Maria Lúcia. No limiar do silêncio e da letras: traços da autoria em claricelispector 2011, p.
172.
185
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987.
186
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 60.
187
Ibid., p. 133.
55

Ângela é espiral de finesse. Ela é intuitiva, eu sou lógico. Ela não tem
medo de errar no emprego das palavras. E eu não erro. Bem sei que
ela é uva sumarenta e eu sou a passa. Eu sou equilibrado e sensato. Ela
está liberta do equilíbrio que para ela é desnecessário. Eu sou
controlado, ela não se reprime – eu sofro mais do que ela porque estou
preso dentro de uma estreita gaiola de forçada higiene mental. Sofro
mais porque não digo porque sofro.188

Ele é lógico, reto, meia-noite, frio, racional, simples, nota musical grave. Ela é
ilógica, curva, meio-dia, sentimental, luxuosa, nota musical aguda. Esse movimento de
aproximação e afastamento e o espelhamento entre as falas dos dois – que muitas vezes
se repetem –, segundo Ana Luíza Andrade, revela a “fome de um só corpo”189, a busca
por um corpo que tenha tanto o eu quanto o não-eu, como o Autor fala: “Ângela é muito
parecida com o meu contrário. Ter dentro de mim o contrário do que sou é em essência
imprescindível[...]”190. Autor se desdobra em personagem feminina para conseguir
alcançar uma totalidade impossível.
O Autor é abstrato e vai se abstraindo ao longo do livro, indo de pessoa a
“rigoroso pleno de palavras”, pois “a palavra foi aos poucos me desmistificando”191. O
corpo feminino da personagem, por sua vez, lhe escapa a todo momento e vai se
autonomizando, pois é “conduzido ou se conduz, através do corpo a corpo consigo
mesmo”192 e com o mundo.
O trânsito do corpo-texto clariceano, esse “movimento puro” desejado, mostra
uma “economia inter(t)sex(t)ual do corpo a corpo”193 em uma escrita que

[...] expressa um corpo textual/sexual que cava entrelinhas de carência


e as preenche em excesso, na cumplicidade perversa existente entre a
vítima e o algoz na cultura do capitalismo tardio. A ultrapassagem dos
limites corporais caracteriza a insubordinação do interdito que se
define nos extremos femininos, no corpo textual clariceano. 194

Dessa forma, o texto inscreve a questão do corpo e do gênero na relação entre


criador e criatura, entre o forte e o fraco, o homem e a mulher, pois o outro criado pelo

188
Ibid., p. 46.
189
ANDRADE, Ana L. O Corpo-Texto Canibal em Clarice Lispector. 1993, p. 53.
190
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 70.
191
Ibid., 1978, p. 42.
192
ANDRADE, Ana L. O Corpo-Texto Canibal em Clarice Lispector. 1993.
193
Idem, op. cit., 1993, p. 50.
194
Idem, op. cit., 1993, p. 50.
56

Autor não é apenas um ego experimental para se conhecer, isto é, um Outro, mas ele
cria uma Outra195, ou seja, inscreve a diferença sexual.
A relação entre gêneros remete à novela A hora da estrela, pois, neste, Rodrigo
S. M., um narrador-personagem masculino que se coloca como um autor escreve
Macabéa, mulher que o é – e ambos são Clarice. Como o Autor e Ângela, Macabéa é
duplo e imagem especular de Rodrigo S. M.: “Vejo a nordestina se olhando ao espelho e
– um rufar de tambor – no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós
nos intertrocamos.”196 E Rodrigo S. M., diferente do Autor, detém poder sobre a vida de
sua personagem, a ponto de matá-la no final.
A escolha de narradores masculinos nos dois últimos livros pode ser analisada
de duas formas. Por primeiro, como a realização de um irônico distanciamento do autor-
narrador-personagem em relação à escritora empírica, ou seja, como uma forma de
ironizar aqueles que falavam da sua escrita confessional, da “pieguice” e
“derramamento do eu” por ser mulher197, e ela o faz passando para o masculino, para o
gênero que comandou a escrita por tanto tempo. Assim, não por acaso, Rodrigo S. M.
diz que ninguém pode falar da personagem dele, só “outro escritor, sim, mas teria que
ser homem, porque escritora mulher pode lacrimejar piegas”198. De forma semelhante, o
Autor não nomeado das pulsações diz que ele não deixa Ângela falar de menstruação ou
se derramar sentimentalmente, pois essas são coisas de mulher: “Controlo-a como
posso, cortando-lhe as anotações apenas tolas. Por exemplo: ela está doida para escrever
sobre a menstruação por puro desabafo, e eu não deixo”199. Ademais, Ângela poderia
ser uma potencial escritora que se derramaria ao escrever Macabéa, pois, ao falar sobre
o estilo de escrita:

AUTOR – Eu não escrevo como Ângela. Não só não tenho prática


como sou mais sóbrio, não me derramo escandalosamente. E não uso
adjetivos senão raramente.200

195
O que nos permite recuperar o trecho da crônica de Drummond: “– Como diz o outro.../ Que outro? E
desde quando ele se chama Outro? Estranho nome, este, que não identifica, não responsabiliza, não consta
de nenhum registro civil: Outro, nascido em tal data, em tal lugar, do sexo masculino. Por que nunca se
diz: Como se diz a Outra? A outra não diz nada, limita-se a ouvir o Outro, se é que ouve?”
(DRUMMOND, 1979, p. 1413-1415).
196
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 2017, p. 56.
197
MANZO, Lícia. Era uma vez: Eu – a não-ficção na obra de Clarice Lispector. 1997.
198
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 2017, p. 49.
199
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 53.
200
Ibid., p. 59, grifos nossos.
57

Curioso é que ambos, Rodrigo S. M. e Autor, dizem tais coisas no ato de se


desdobrarem em personagens femininos. Isto é, ao fazerem metamorfose inversa à de
Clarice e devirem em eu-feminino.
Para explicar a segunda hipótese da escolha de narradores masculinos,
recuperamos o “tudo é um” e a presença do mundo no eu de que falamos ao longo desta
monografia, isto é, o feminino está no masculino e o masculino está no feminino, de
modo que Clarice teve que se afastar o máximo de si e da economia feminina da escrita,
essa escrita com a ponta dos dedos e gozo oral, uma escrita de manifestação contra a
expressão da escrita masculina para comportar o tudo e o um. Em seu ensaio sobre A
hora da estrela, Hélène Cixous diz que Clarice nos faz:

[...] habitar no mundo onde o ser feminino e o ser masculino estão


juntos, se dão, se acariciam, se respeitam, são de todo incapazes de ter
o discurso da descrição exata de suas diferenças, senão que as vivem,
e onde – como no-lo diz a entrada desse texto – ser masculino e ser
feminino se entendem (não posso dizer “se compreendem”, porque
não se compreendem), é porque há o feminino, há o masculino, em
um e no outro201.

Também percebemos que a diferença entre os gêneros se dá no estilo de interagir


com o mundo e de escrever. O Autor vai se abstraindo ao longo do texto,
transformando-se em palavras e inscrevendo a economia masculina da escrita,
caracterizada pela expressão e pelo poder da abstração. Enquanto isso, ao ir se
autonomizando, Ângela vai ganhando corpo, sendo “toda”202 ao ser “tátil” e
experienciar o mundo pelo toque, como ela conta:

ÂNGELA – Sou extremamente tátil. [...] Eis um momento de


extravagante beleza: bebo-a líquida nas conchas das mãos e quase
toda escorre brilhante por entre meus dedos: mas beleza é assim
mesmo, ela é um átimo de segundo, rapidez de um clarão e depois
logo escapa.203

E assim ela vai usando o pensar-sentir de todos os sentidos para experimentar e


viver o mundo:
Um dos modos de viver mais é o de usar os sentidos num campo que
não é propriamente o deles. Por exemplo: eu vejo uma mesa de
mármore que é naturalmente para ser vista. Mas eu passo a mão o

201
CIXOUS, Hélène. Extrema fidelidade. 2017, p. 138.
202
O Autor diz: “ela é mais forte do que eu: eu sou produto de um pensamento, ela não é produto: é ela
toda. Ela rompeu meu sistema. Ela é minha ancestral e tão pré-história minha que chega a ser inumana,
embora escreva com falsa ordem. [...] é mais livre do que eu. (LISPECTOR, 1978, p. 148, grifos nossos)
203
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, 50.
58

mais sutilmente possível pela forma da mesa, sinto-lhe o frio,


imagino-lhe um cheiro de “coisa” que o mármore deve ter, cheiro que
para nós ultrapassa a barreira do faro e nós não conseguimos senti-lo
pelo olfato, só podemos imaginá-lo.204

Ela também inscreve no texto a economia feminina da escrita, caracterizada pelo


toque e pelo contato da ponta dos seus dedos, não pelo poder, de modo que o seu modo
de “derramar escandalosamente” na escrita seria como o derramar da água: a água toca
a superfície de algo quando derrama. Ângela derrama seu corpo no mundo, olhando e
tateando. Por usar o toque para a criação, o Autor diz que ela é “mulher rendeira”205. A
poética do toque aparece no trecho em que ela fala como quer pintar um quadro puro
apenas seguindo as nervuras da madeira, como que traçando os fios da renda:

ÂNGELA – Meu ideal seria pintar um quadro de um quadro.


Vivo tão atribulada que não aperfeiçoei mais o que inventei em
matéria de pintura. Ou pelo menos nunca ouvi falar desse modo de
pintar: consiste em pegar uma tela de madeira – pinho-de-riga é a
melhor – e prestar atenção às suas nervuras. De súbito, então vem do
subconsciente uma onda de criatividade e a gente se joga nas
nervuras acompanhando-as um pouco – mas mantendo a liberdade.
Fiz um quadro que saiu assim: um vigoroso cavalo com longa e vasta
cabeleira loura no meio de estalactites de uma gruta. É um modo
genérico de pintar. E, inclusive, não se precisa saber pintar: qualquer
pessoa, contanto que não seja inibida demais, pode seguir essa técnica
de liberdade. E todos os mortais têm subconsciente. 206

E é a partir dessa economia feminina, dessa poética do olhar e do contato, que


Ângela escreve seu livro. A despersonalização atravessa a criação da personagem e
ultrapassa a forma humana, levando em conta que as três primeiras partes são o
preâmbulo para a última, alcança o “Livro de Ângela”, que é um v(ó)(é)rtice para um
devir-objeto, um tornar-se-coisa207, um ponto em que os sujeitos se objetivam e
subjetivam as coisas, de modo a coisificarem a vida.
Por meio da sua despersonalização, o narrador experiencia devires e passa pelo
processo de tornar-se-outro. Primeiramente, o narrador se coloca na posição de Autor e
esse se desdobra em um eu-ela-feminino, isto é, passa por um devir-mulher, sai do
Homem com letra maiúscula inscrevendo o gênero humano208 e entra na diferença de

204
Ibid., p. 126.
205
Ibid., p. 115.
206
Ibid., p. 56, grifos nossos.
207
NASCIMENTO, Evando. Rastros do animal humano – a ficção de Clarice Lispector. 2011.
208
Lembremos que, em certo momento, o Autor fala que “Só uma coisa me liga a Ângela: somos o
gênero humano.” (LISPECTOR, 1978, p. 11.3)
59

gênero. Depois, por meio de sua personagem Ângela, há um devir-animal, já que esta dá
vida e espaço dentro do texto para seu cachorro Ulisses, não o humanizando, mas se
unindo a ele organicamente:

Ter contato com a vida animal é indispensável à minha saúde


psíquica. Meu cão me revigora toda. Sem falar que dorme às vezes aos
meus pés enchendo o quarto da cálida vida úmida. O meu cão me
ensina a viver. Ele só fica “sendo”. “Ser” é a sua atividade. E ser é
minha mais profunda intimidade. Quando ele adormece no meu colo
eu o velo e à sua bem ritmada respiração. E – ele imóvel ao meu colo
– formamos um só todo orgânico, viva estátua muda. É quando sou
lua e sou os ventos da noite. Às vezes, de tanta vida mútua, nós nos
incomodamos. Meu cachorro é tão cachorro como um homem é tão
homem. Amo a cachorrice e a humanidade cálida dos dois.209

Em seguida, quando Ângela escreve seu livro, o fundo do sopro, ela se objetiva e
subjetiva as “coisas”, os objetos inanimados, um dos grandes motes clariceanos. Ângela
anima o inanimado, ressoando o seu “Relatório da coisa”, e ela não apenas fala pelos
objetos, mas dá voz a eles, animando-os, manifestando-os no texto. Dessa forma, ela
amplia a intertroca entre os sujeitos “humanos” do texto para o mundo não-humano,
dando voz a seu cachorro, Ulisses, e às coisas, sendo que estas são o outro absoluto da
vida humana-animada. Assim, no devir-coisa proposto pelo texto, Ângela quebra mais
uma vez o dualismo sujeito-objeto, porque, para tornar-se-outro, ela precisa se objetivar,
isto é, tornar-se-objeto. Deixar-se tocar e tornar-se-coisa, fazendo contato com a coisa
de modo que “um objeto [ela ou outra coisa] pensa um outro objeto [ela ou outra coisa]
e nossas auras se confundem”210. E, de fato, ela se se escreve como objeto no
fragmento intitulado “Mulher-coisa”:

Eu sou matéria-prima não trabalhada. Eu também sou um objeto.


Tenho todos os órgãos necessários, igual a qualquer ser humano. Eu
sinto a minha aura que nesta friorenta manhã é vermelha e altamente
faiscante. Eu sou uma mulher objeto e minha aura é vermelha vibrante
e competente. Eu sou um objeto que vê outros objetos. Uns são meus
irmãos e outros inimigos. Há também objeto que não diz nada. Eu sou
um objeto que me sirvo de outros objetos, que os usufrui ou os rejeita.
Meu rosto é um objeto tão visível que tenho vergonha. [...] Esse rosto-
objeto tem um nariz pequeno e arredondado que serve a esse objeto
que sou para farejar que nem cão de caça. [...] Um objeto pensa um
outro objeto e nossas auras se confundem. E tenho, vos asseguro, tudo
o mais que faz de mim uma mulher às vezes viva, às vezes objeto.
Minha estupidez essencial no entanto quer fremir de luz, quer se
nimbar de espírito. Minha pesadez precisa da aventura da adivinhação.

209
Ibid., p. 63-64.
210
Ibid., p. 120.
60

Este ser que me chama à luz, como eu o bendirei! Eu me abrirei a ele


na minha estupidez que é um bloco de granito.211

Ângela se cria ao escrever e, por isso, ela vai se automatizando, perdendo de vez
a tarja preta que tinha sobre os olhos quando criada, ganhando um rosto – uma máscara
– e (se) subjetivando ao (se) objetivar. Assim, podemos pensar que, diferente do que
falamos no começo do capítulo, o texto não é o testemunho do parto de Ângela, mas da
separação de seu corpo-texto do Autor nesse processo de aproximação e distanciamento
que alterna entre proximidade e alheamento. Além de se autonomizar do criador,
Ângela se torna também uma criadora, já que o livro “História das coisas” é sua criação,
sua tentativa de representar na linguagem “um mundo paralelo ao das coisas”212.
Ângela, o sonho do Autor, de nome angelical, escreve e cria para tornar tudo um sonho
acordado que é realidade, e ela vive corpo a corpo com essa realidade.
Tanto Macabéa, no seu final trágico, quanto Ângela, são “estrela de mil pontas”
– isto é, dentro de seu caráter de homo fictus, fragmentadas e deslocadas. Contudo,
enquanto Rodrigo S. M. mata Macabéa no final, matando-se a si mesmo nesse processo.
Em Um sopro de Vida, o Autor morre – pois ele só pode existir enquanto escrever –, e
Ângela passa a se criar na descoberta da sua realidade e do seu futuro e, assim, ela
sobrevive ao reinventar a vida.
E, por fim, o livro termina se abrindo, como o ouroboro que é, tal qual muitos
outros textos clariceanos. Modo de finalizar este que pode ser relacionado a uma
abertura, relativa inclusive à experiência autobiográfica da escritora via escrita, de modo
que o livro seria um “pré-romance ou preâmbulo de um romance que vai se realizar fora
dos limites do texto”213. A paixão segundo G.H. começa e termina com seis travessões;
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres começa com uma vírgula e termina com
dois pontos; A hora da estrela termina com um “sim”, que seria parte do começo da
vida; e Um sopro de vida termina com reticências depois de um pronome relativo que
conectaria uma oração subordinada substantiva predicativa, isto é, algo a mais, assim
como assim como a frase de Macabéa diante da morte: “ – Quanto ao futuro”214. Fim
este que ecoa em Ângela, quando esta diz: “Tenho porque tenho que inventar o meu
211
Ibid., p. 119-120.
212
HOMEM, Maria Lúcia. No limiar do silêncio e da letras: traços da autoria em claricelispector. 2011,
p. 174.
213
PINTO, Cristina Ferreira. “Perto do coração selvagem: romance de formação, romance de
transformação” apud NOLASCO, Edgar C. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura 2001.
214
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos. 2017, p. 109.
61

futuro e inventar o meu caminho”215, e ela, no seu toque nas coisas, inventa essa
realidade-futuro.
Contudo, podemos dizer que, quanto ao futuro, só o leitor é capaz de dizer, este
sujeito que é também quem acha que...

215
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 98.
62

CAPITULO III: OBLIQUAÇÃO DO LEITOR

Os personagens do livro reconhecem a si e à vida como oblíquos e enviesados, já


que eles são habitantes de uma realidade outra e também um eco de seu ego, e vice-
versa:

[ÂNGELA –] Eu sou oblíqua como o voo dos pássaros. Intimidada,


sem forças, sem esperança, sem avisos, sem notícias – tremo – toda
trêmula. Me espio de viés. (40)216

[AUTOR –] As coisas acontecem indiretamente. Elas vêm de lado.


[...] Eu sou um abismo de mim mesmo. Mas sempre serei
enviesado.217

Contudo, não apenas os sujeitos do texto são enviesados e oblíquos,


amalgamando-se e trocando de posição na enunciação, mas também o é a linguagem
clariceana218, que, ao nos sujeitar e permitir que nos subjetivemos, reflete a obliquidade
dos sujeitos e as possibilidades de preenchimento do “eu” no texto sem que, no entanto,
haja uma univocidade. A estrutura – sintaticamente redundante219 e importante
semanticamente – escancara a relação transladada entre os sujeitos do texto e o
espelhamento entre sujeito e objeto das orações, isto é, ocupa concomitantemente as
posições de sujeito e objeto, num interesse/inter-esse220. Ser sujeito é ser um agregado –
ou, para recuperar o termo de Deleuze e Guattari221 – é ser agenciamento coletivo. Além
da estrutura verbal, a organização dramática do texto e os espaços em branco – as
entrelinhas da enunciação – entre as falas de Autor e Ângela seriam espaços de
obliquação ao permitirem que os sujeitos envolvidos no texto se obliquem.
A obliquação da linguagem revela a impossibilidade da separação entre os
sujeitos dentro do enunciado e também na enunciação, e indica a impossibilidade
heteronímica, pois, como Clarice diz, há a criação de uma zona “tão volátil e quase

216
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 40.
217
Ibid., p. 79-84.
218
NODARI, Alexandre. “A vida oblíqua”: o hetairismo ontológico segundo G.H. 2015a.
219
Redundante se pensarmos na estrutura sintática da frase, por exemplo na frase (1) da próxima página –
“eu te respiro-me”: o verbo respirar é intransitivo ou transitivo direto (respirar algo), não transitivo direto
e indireto, como se vê nesta frase.
220
Alexandre Nodari (2015b) recupera a palavra “inter-esse” em seu texto Eu, pronome oblíquo para falar
do intercâmbio da posição sujeito na enunciação. É interessante que pensemos na origem da palavra:
“interesse”, de origem latina, se forma a partir de “inter”, que significa “entre”, e “esse”, que é
“ser/estar”, de modo que, etimologicamente falando, interesse significa “estar entre”. Disponível em:
http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/interesse. Acesso: 11 out. 2017.
221
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. 1995.
63

inexistente que fica entre mim e eu”222, um terceiro espaço de intertroca223 de posições,
um inter-esse. Como resultado do ato de obliquar-se na linguagem, podemos recuperar
este trecho de A paixão segundo G.H. no qual a narradora fala que está passando por
uma “metamorfose de mim em mim mesma [...] em que perco tudo o que tinha, e o que
eu tinha era eu”224, que culminará no ato de responder toda vez que alguém falar “eu”
de Lóri, revelando que o tu do “eu” enunciado por outro também é um eu ao se
(a)(e)nunciar225. O dêitico “eu” é uma possibilidade enunciativa, não de quem fala, mas
“do lugar de onde se fala, do mundo onde se fala”226, revelando que não é o “(mundo-
para-um-sujeito)”, mas um “(mundo-de-um sujeito)”227. A obliquação, de acordo com
Alexandre Nodari, é uma experiência que permite multiplicidade e reconhecimento de
um mundo que não o “meu”, no qual o “eu” é Outro. Analisemos as frases a seguir,
ditas por Ângela e Autor, respectivamente, para desmembrarmos a obliquidade do texto:

(1) “Eu te respiro-me. “228


Clarice Ângela Autor
.....Autor ....Clarice ......Ângela
........Ângela ........Autor ........Clarice
.............Autor .........Ângela ..........Clarice
(...) (...) (...)

(2) “Ela é eu.”229


Clarice
.......Autor
...........Ângela

Na frase (1), o ato de respirar tem um sujeito, um “eu”, e um objeto na forma de


pronome oblíquo átono, um “te”, isto é, um “eu” respira um “te”. No entanto, por ter um

222
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 1999, p. 21.
223
Ecoando a palavra que Evando Nascimento (2011) recupera de A hora da estrela para falar da
subjetividade que já revela o “movimento” de troca “entre” as posições.
224
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 1999, p. 66.
225
O sujeito se anuncia ao (se) enunciar, constituindo a sua subjetividade na e pela linguagem.
226
NODARI, Alexandre. Eu, pronome oblíquo.2015a, p. 19.
227
Ibid., p. 19.
228
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 40
229
Ibid., p. 31.
64

outro pronome oblíquo átono – “me” – amalgamado ao verbo, há dois objetos


respirados, e, por isso, o “te” e o “me” são espelhados. O sujeito respira e é respirado ao
respirar. Porém, ele necessita do outro para cumprir o ato de respirar, o “te” abre espaço
para o “me”. Haveria duas possibilidades de paráfrase: (i) [Eu respiro você em mim] e
(ii) [Eu me respiro ao respirar você], que, juntas, resultariam em (iii) [eu me respiro
você em mim ao respirar você]. Apesar de tal sentença ser enunciada pelo Autor,
considerando a obliquidade dos sujeitos do texto, podemos nos perguntar: quem respira
quem? Quem é o “eu”, o “te” e o “me”? Como apontado no esquema230, há diversas
possibilidades de mundo enunciadas, que já mostram a variedade de mundos dentro de
uma mesma frase. A cada possibilidade de “eu”, se considerarmos os três sujeitos
escancarados no corpo do texto até agora, há pelo menos duas (dentro de uma infinidade
de) possiblidades de obliquação. Uma única frase permite diversas perspectivas e cada
preenchimento do dêitico eu e do seu interlocutor abre/encavalga/obliqua novas
possibilidades231 e outros corpos, pois “não só quem diz eu é sempre outro, como
também todo eu ecoa um outro. Ou melhor: outros. Pois, cada ego humano é também
uma multiplicidade, um mundo: “nosso” corpo é formado por (é a casa de) infinitos
corpos alheios […]”232.
Na frase (2), há um “eu” que se define como um “ela”, que, no caso, pode ser a
personagem Ângela, mas que também pode ser Clarice – como personagem de si. O
“ela” desta frase mostra a criação da literatura pela passagem da primeira pessoa para a
terceira. Como todo ego é um eco, e o personagem é um “ego experimental”233, de
forma que se configura não como um ser não existente, mas como uma experiência
literária que permite o outrar-se por meio da ficção e da palavra. Além disso, o “eu”
aqui é definido em relação ao outro, isto é, lemos “ela É eu”, não “eu sou ela”, como
que ecoando o famoso verso de Rimbauld: “eu é um outro” (no original: “je est un
autre”)234.
Na apresentação de Ângela – seu “outro-ela” – como ego experimental, como
sujeito ficcional, o Autor prefigura uma quarta dimensão no texto e, portanto, uma
230
As possibilidades de preenchimento estão dispostas de forma enviesada com o objetivo de mostrar
graficamente a obliquação na relação entre as posições e os elementos envolvidos no inter-esse do texto
clariceano.
231
Tentamos mostrar esse encavagalmento – como uma espécie de enjambement ou encabalgamiento dos
sujeitos – das posições por meio da posição oblíqua de uma linha abaixo da outra, de modo a ilustrar que
uma possibilidade de sujeito abre obliquamento outra alternativa de preenchimento.
232
NODARI, Alexandre. Alterocupar-se, 2017, p. 16.
233
KUNDERA, Milan. A arte do romance. 2009, p. 26.
234
RIMBAUD, Arthur. Correspondência. 2009.
65

quarta possibilidade de preenchimento do “eu” para além dos três sujeitos figurados no
esquema da frase (1):

ÂNGELA

A ÚLTIMA PALAVRA será a quarta dimensão.


Comprimento: ela falando
Largura: atrás do pensamento
Profundidade: eu falando dela, dos fatos e sentimentos e de seu atrás
do pensamento.

Eu preciso ser legível quase no escuro.235

Podemos pensar que o comprimento, quando Ângela está falando, seria o dito, o
consciente; a largura seria, como “atrás do pensamento”, o não-dito, o inconsciente; e a
profundidade seria o ato de narrar, de falar tanto do dito, por meio da citação, e do não-
dito, pela escrita. Por fim, no final, a “última palavra”, o resultado, seria a quarta
dimensão: que dimensão seria essa? Que palavra última seria essa?
Na física moderna, a partir da teoria da relatividade de Einstein, o tempo é
descrito como a quarta dimensão considerando sua relação com a espacialidade, e
também a duração e simultaneidade/sobreposição dos tempos236. Tal tempo é relativo a
um ponto de coordenadas, isto é, um ponto do espaço-tempo, e sua duração depende da
percepção das pessoas. Ao considerar o tempo como quarta dimensão, podemos pensar
na temporalidade do texto: escrito no aqui e no agora, no presente que é o passado e o
futuro da escritura. O texto é o ponto de coordenadas do espaço-tempo na leitura. A
leitura seria, portanto, a quarta dimensão, o momento em que o texto é enunciado no
espaço-tempo e, portanto, um tempo relativo237, um espaço-tempo transicional no qual

[...] contextos, mundos, se encontram, chocam ou equivocam, em que


[...] a continuidade espaço-temporal dá lugar à contiguidade, e cuja
dimensão temporal chamei de estoricidade ou temporalidade
originária, em que os tempos e as temporalidades estão se
rearranjando, se refazendo a partir do seu encontro com o presente. 238

235
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 25.
236
BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade. 2006.
237
Durante debates entre professor e alunos a respeito de Água viva, em um curso sobre Clarice
Lispector, na UFPR, ficou patente a variação do tempo psicológico da leitura, e mesmo a sua duração,
pois alunos convergiram ao compartilharem a experiência temporal da leitura: houve quem disse que a
leitura era pausada pelo estilo das frases, para tentar compreendê-las, e houve quem disse que leu o livro
“de supetão” para conseguir seguir o fluxo do texto.
238
NODARI, Alexandre. Alterocupar-se. p. 12, grifo no original.
66

Blanchot disse que a atividade artística possibilita “exilar-se das dificuldades do


tempo e do trabalho no tempo sem renunciar, porém, ao conforto do mundo”239, e
Clarice, que escrever é prolongar o tempo. Ampliando a atividade artística de que fala
Blanchot para a leitura, a sombra da escrita definida por Clarice, podemos dizer que ler
é entrar em outro espaço-tempo cujo ponto de coordenadas é o texto. Podemos
aproximar o texto do buraco negro, pois lê-lo implica dilatar ou contrair o tempo,
experimentar o tempo em relação ao texto, em uma realidade oblíqua. Dessa forma, o
tempo do leitor é relativo: um tempo durante a leitura, outro fora, na vida cotidiana.
Quando lemos, pausamos nossa vida cotidiana e entramos no texto como que em um
buraco negro, para viver outra vida em uma temporalidade outra, em um outro espaço
com outro ritmo, em uma realidade oblíqua.
Assim, o ato da leitura coloca um quarto sujeito na clivagem: o leitor. O Autor,
em Um sopro de vida, é consciente da existência do leitor, e chega a se perguntar:

[AUTOR] – Foi Deus que me inventou e em mim soprou e eu virei


um ser vivente. Eis que apresento a mim mesmo uma figura. E acho,
portanto, que já nasci o suficiente para poder tentar me expressar
mesmo que seja em palavras rudes. É o meu interior que fala e às
vezes sem nexo para a consciência. Falo como se alguém falasse por
mim. O leitor é que fala por mim?240
Eu não me lembro de minha vida antes, pois que tenho o resultado que
é hoje. Mas me lembro do dia de amanhã.241

De fato, só o leitor pode tentar, embora consciente de que nunca esgotará a


obra242, escrever/falar a última palavra – não que o sentido escape para outro sentido,
como que sempre postergado, mas escapa “no outro de todos os sentidos”243, isto é, o
sentido é construído pelo leitor, o outro do Autor. Tendo em mente a existência do
leitor, o Autor diz que precisa ser “legível no escuro”, ou seja, ser compreendido pelo
leitor que ele desconhece e que o lerá já que inscrito no texto. O Autor não apenas
precisa criar Ângela para se constituir, mas, ao escrever, ele precisa inscrever um leitor
– “[...] esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que

239
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987, p. 46-47.
240
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 95.
241
Ibid., p. 28, grifo nosso.
242
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987.
243
Ibid., p. 265.
67

constituem o escrito” 244 –, uma posição-leitor no texto que mostra que o texto demanda
ser lido, mesmo que diga querer esquecer esse sujeito:

[AUTOR:] Quero esquecer que existem leitores – e também leitores


exigentes que esperam de mim não sei o quê. Pois vou tomar a minha
liberdade nas mãos e escreverei pouco-se-me-dá-o-quê?, ruim mesmo,
mas eu.245

Ele deseja esquecer o leitor, embora não consiga, porque o leitor, enquanto
posição ficcional, é o sujeito que possibilita a existência do texto como “possibilidade
de uma dialética”246, configurando-se como uma espécie de dêitico ocupado pelos
leitores singulares, empíricos, cada qual com seu horizonte e expectativas de leitura. O
Autor diz que criou Ângela para salvar a vida de alguém, contudo, ele (se) (a) escreve
para ser lido, pois o livro – e, consequentemente, ele – só ganha existência pelo leitor, a
ponto de se dirigir ao leitor: “Quem és tu que me lês? És o meu segredo ou sou eu o teu
segredo?”247. A escrita existe porque há a leitura (e vice-versa). Escrevemos para que
alguém leia, mesmo que esse alguém seja nosso pseudônimo quadrático – nós mesmos
em outro momento. Pensando a existência do leitor, Blanchot fala que a obra de arte é
sempre original porque não tem começo nem fim – assim como o narrador, sujeito
textual, ou seja, obra de arte clariciana, diz que ele não tem início: “Redondo sem início
e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final”248.
Clarice Lispector, em uma crônica na qual responde o pedido de um leitor do
Jornal do Brasil de que não tire sua intimidade de suas crônicas, duplica no leitor a
figura do escritor, pois, segundo ela:

Quanto a eu me delatar, realmente isso é fatal, não digo nas colunas,


mas nos romances. Estes não são autobiográficos nem de longe, mas
fico depois sabendo por quem os lê que eu me delatei. […] a
intimidade humana vai tão longe que seus últimos passos já se
confundem com os primeiros passos do que chamamos de Deus.
O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo
tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão
terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o
escritor.249

244
BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: ______. O rumor da língua. 2004, p.64.
245
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 95.
246
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 1987, p. 9.
247
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 81.
248
Ibid., p. 11.
249
LISPECTOR, Clarice. Outra carta”. In: ______. A descoberta do mundo. 1999, p. 78, grifo no original.
68

Parafraseando a frase clariciana “escrever é tantas vezes lembrar-se do que


nunca existiu”250, Alexandre Nodari, sobre o ato de alterocupar-se da leitura – uma
experiência em que a “ocupação de si envolve um outrar-se” 251
, pois “na leitura
pensamos os pensamentos de um outro”252 – diz que “ler (literatura) é, tantas outras,
lembrar-se do que nunca se escreveu”253, pois, como disse Barthes, o leitor não
decodifica nem decifra, mas sobrecodifica e cria o texto. Dessa forma, o ato de ler pode
ser mais criativo que o ato de escrever254, e também se configura como um trabalho; e,
considerando que toda leitura, como a enunciação, é única – até mesmo a releitura por
um mesmo leitor –, um novo texto é escrito a cada nova leitura. E a cada texto criado,
cria-se um novo mundo – o mundo-de-um-sujeito.
Ao ser inscrito no texto, o leitor não precisa da pessoa do outro, mas do seu
espaço dentro do texto255. Dessa forma, o leitor é esse sujeito que transita por todas as
perspectivas presentes no texto e preenche os espaços vazios e indeterminados256. Ele
preenche o “eu” enunciado pelo Autor e por Ângela, e volta ao Autor e, em seguida, à
Ângela, e assim até o final, atravessando os silêncios e as entrelinhas do monólogo-
diálogo entre as personagens. De fato, Ângela e o Autor só podem conversar, só têm o
silêncio cortado no monólogo-diálogo pela leitura do leitor, pois é ele quem preenche as
entrelinhas da conversa entre os dois, preenchendo os espaços em branco e os locais
indeterminados da cena-jogo que é a leitura. Quando Clarice diz “mas já que se há de
escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”257, ela aponta
que é preciso deixar espaço para a posição do leitor no texto, para que este dialogue
com o texto.
Em Um sopro de vida, além do diálogo encenado entre criador e criatura no
texto, há também o diálogo virtual entre Autor e leitor na forma de um monólogo-

250
Retirada da crônica, “Lembrar-se do que não existiu”, cujo título também pode ser colocado para a
frase de Nodari. Achamos válido colocar aqui a crônica inteira: “Escrever é tantas vezes lembrar-se do
que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com
um esforço de memória, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e
a lembrança é em carne viva” (LISPECTOR, 1999, p. 386, grifo nosso). Grifamos a última frase para,
assim como o Autor diz que ele começou do médio, “nunca nasci, nunca vivi”, pois nascemos a todo
instante-já, a todo presente como continuação da memória, e se vive – como diz a narradora de Água viva:
“Mesmo que eu diga ‘vivi’ ou ‘viverei’ é presente porque eu os digo já” (LISPECTOR, 1999, p. 18).
251
NODARI, Alexandre. Alterocupar-se, 2017, p. 15.
252
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2. 1996, p. 41.
253
Idem, op. cit., p. 15.
254
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987, p. 196.
255
______. O prazer do texto. 1987.
256
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2. 1996.
257
LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. 1980, p. 25.
69

solilóquio258, porque Autor tece comentários sobre Ângela que não são direcionados a
ela (indo além da estrutura dialogada do texto entre os dois e inserindo um diálogo nas
entrelinhas da cena enunciativa), mas a si mesmo e, considerando a equivocidade do
discurso e a leitura como contraparte da escrita, também ao leitor, que o perspectiva
durante a leitura.
O leitor é esse quarto sujeito que preenche o “eu” da enunciação literária, que
performa o outro e se configura como travessia. Ele é o vértice259 do texto. Tendo a
quarta dimensão em mente, analisemos mais uma sentença que mostra obliquação:

(3) “Eu sou vós. “260


Leitor Autor
(...) Ângela
Clarice

Esse “eu” pode ser preenchido por Ângela, Autor, Clarice, e também pelo leitor.
Este, ao ocupar o “eu” toda vez que aparece, é vós, isto é, os demais, juntando todas as
perspectivas do texto. Ele é o “eu” do “eu é ela” e do “eu te respiro-me”, também sendo
o “ela” e o “te”. Considerando a relação de homofonia entre o pronome pessoal “vós” e
o substantivo “voz”261, podemos dizer que o “eu” é vós e também voz, isto é, abertura
de um espaço de fala – a vez e a voz da enunciação –, assim como o grito, que é usado
para definir o livro pelo narrador na primeira parte262, que está entre a voz humana e o

258
Decidimos justapor monólogo e solilóquio por estarmos tomando os sujeitos como oblíquos, e, por
isso, encavalgados, de modo que vemos a fronteira e a distinção em solilóquio e monólogo interior como
tênue e difusa. Para fins de explicação, podemos recuperar a definição de Massaud Moisés dos termos em
seu Dicionário de termos literários (2004): o monólogo interior se refere ao inconsciente, sem intenção
de organização racional, sendo dividido entre direto e indireto – o direto é estruturado em primeira
pessoa, e o indireto, em terceira –, enquanto que o solilóquio é a manifestação do pensamento coerente e
lógico, ainda que psicológica e não-racional, da personagem, que se comunica com o leitor.
259
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2, 1999, p. 15.
260
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 164.
261
Podemos dizer que a homofonia é o contrário da heteronímia – que, como aponta Nodari (2017, p. 18),
em francês e inglês pode significar “1) uma palavra com mesma grafia, mas pronúncia e sentido
diferente” –, pois as palavras têm a mesma pronúncia, mas grafia e sentido diferentes. Isto é, “vós” e
“voz” são diferentes na grafia e no sentido, mas iguais na pronúncia, demandando um contexto, quando
oralizadas, para que o interlocutor decida qual o sentido e qual a grafia. Além disso, podemos dizer que o
equívoco sonoro entre vós e voz espelha a equivocidade dos sujeitos envolvidos no texto, a exemplificar
pela relação entre as instâncias leitor e autor, que, embora diferentes, são igualmente ativas e produtoras
no contato com o texto.
262
“É um grito de ave de rapina” (LISPECTOR, 1974, p. 11).
70

silêncio, entre o urro e a palavra articulada. Dessa forma, podemos dizer que o a leitura
é o entre-lugar da voz de muitos.
Ao aproximar o dêitico “eu” da voz, podemos dizer que o livro é um objeto de
equivocidade, pois, como dizem Deleuze e Guattari263, é sempre a mesma voz – aqui,
palavra escrita –, embora sempre diferente. Com isso, podemos recuperar a
consideração de Blanchot de que “ler seria, pois, não escrever de novo o livro, mas fazer
com que o livro se escreva ou seja escrito (...) sem ninguém que o escreva”264,
presentificando-o, já que o texto não existe por si só – o leitor “ativa a interação pré-
estruturada das frases”265. Nenhuma pessoa disse a frase, a voz da frase é a escrita. A
multiplicidade de textos no texto se reúne no leitor, que é, dentro do texto, como
posição fictícia-implícita, “um homem sem história, sem biografia, sem psicologia –
apenas esse alguém que tem reunido num mesmo campo todos os traços que constituem
o escrito”. Sem abandonar lugar extra-textual e sem se confundir com ela, essa posição
é encarnada266, no ato da leitura, pelo leitor de carne e osso, que é um sujeito formado
pela combinação de elementos sócio-históricos e biográficos que luta corpo a corpo com
o texto para atravessá-lo e, nessa luta, obliqua-se, pois a palavra é a queda do ego267.
Daí a existência de diversos textos – cada leitor singular lê um texto.
Para ilustrar o jogo das subjetividades, podemos desenhar um esquema
matrioskal268 para ilustrar as transições da subjetividade em Um sopro de vida (Figura
1). A aproximação dos sujeitos envolvidos no texto com a boneca russa é produtivo
porque, assim como a boneca, um sujeito está dentro do outro e de si, (alter)ocupando(-
se) as posições de sujeito e de objeto ao mesmo tempo:

263
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. 1995.
264
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987, p. 193.
265
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2. 1006, p. 15.
266
Para conversar com a crônica “Encarnação involuntária”, na qual Clarice reporta sua prática de
encarnação na qual ela não sai de seu corpo nem ocupa o corpo alheio, como faz o leitor empírico na
leitura. Para fins de ilustração, citamos seu parágrafo inicial: “Às vezes, quando vejo uma pessoa que
nunca vi, e tenho tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-
la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria autoacusação: ao
nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdoo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar
numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesmo”
(LISPECTOR, 1999, p. 295-96).
267
BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 30.
268
Maria Lúcia Homem (2012) aproxima o livro A hora da estrela da boneca russa, mas não inclui o
leitor. Quando trata de Um sopro de vida, ela aponta para o leitor fictício, mas sem aproximar leitura e
escritura.
71

FIGURA 1 – Matrioskas clariceanas


Fonte: a autora

Assim como as matrioskas são todas iguais mas têm tamanhos diferentes, os
sujeitos envolvidos nas pulsações clariceanas são iguais em sua diferença, pois todos
eles podem ocupar a mesma posição dentro do “eu”, concomitante e
intercambiavelmente. Assim, cada sujeito abre um monólogo-a-∞ em cada posição.
Clarice, enquanto escritora, se desdobra em narrador, Autor e Ângela, e também
inscreve o leitor em seu texto. O narrador é desdobramento de Clarice e se desdobra em
Autor, Ângela e no leitor implícito. Ângela é desdobramento de todos os supracitados e,
na posição de autora de seu livro “História das coisas”, se desdobra no leitor implícito
que a lerá e redobra todos os que se desdobraram nela. Daí o texto como uma
equivocidade matrioskal, como podemos ver na Figura 2:

FIGURA 2 – Equivocidade matrioskal


Fonte: a autora

O leitor, neste esquema, aparece em duas posições matrioskais diferentes. Ele é a


maior boneca por se configurar como a contraparte da escritura, presentificando o texto
72

pela leitura – Clarice Lispector só é Clarice Lispector na interlocução com o leitor, pois
depende desse para existir, assim como esse depende de Clarice para experimentar
outros modos de existência via ego experimental e palavra. Ao ler, o leitor se
despersonaliza para experienciar a multiplicidade subjetiva proposta pelo texto. O leitor
é também o vazio – a sombra do texto – que preenche o interior da menor boneca, pois é
uma posição textual que une das perspectivas de todos os sujeitos envolvidos. Dessa
forma, o leitor ocupa essas duas posições ao se dividir na leitura, enquanto função leitor
(para ecoar a função-autor do Foucault) e como sujeito “real” que contrapõe a “Clarice
empírica” e que realiza a leitura de fato. Muitos dos efeitos do texto se dão a partir do
jogo que ele mobiliza ao entrar em cena entre essas duas posições – um leitor implícito
e um leitor empírico269.
Chegando ao fim da leitura, o leitor desperta – nós despertamos –,
des(alter)ocupa sua posição na matrioska e volta à realidade com “a sensação de
sairmos transformados da leitura, embora nada mude ‘de fato’”270. Por que temos essa
sensação? De acordo com Iser, isso se deve ao fato de que “é o próprio leitor que está
sendo construído”271, de modo que a leitura mostra como o sujeito não é algo dado, mas
construído, dando-nos a oportunidade de nos formularmos a partir da experiência da
palavra e do pensamento dos egos experimentais que habitam e são incorporados no
texto que (nos) escrevemos enquanto lemos. No capítulo dois dissemos que Um sopro
de vida é uma espécie de testemunho da criação de Ângela, que vai, pouco a pouco, se
autonomizando, mas também podemos dizer que o livro é o espelho-testemunho da
(re)criação de nosso mundo e de nós mesmos por meio dos egos experimentais
clariceanos e da própria Clarice.

269
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2. 1996.
270
NODARI, Alexandre. Alterocupar-se. 2017. p. 16.
271
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2, p. 80.
73

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FIM DO SOPRO

O objetivo deste trabalho foi analisar a subjetividade dentro do último livro


escrito por Clarice Lispector. Investigamos a forma como Clarice lidava com a escrita e
o outrar-se do seu processo de criação – a escritora vivia uma realidade outra através
dos egos experimentais da ficção, inscrevendo a vida na linguagem imaginária e se
reposicionando em relação a si mesma através da alteridade. Tratamos o fato de a
escrita clariceana inscrever a vida não como um reflexo da biografia da escritora, mas a
vida e a literatura como sombras uma da outra, o que está por trás, em uma posição
oblíqua, pois cada uma habita sua realidade, seja a realidade empírica da vida ou a
realidade enviesada da escrita. Assim, em nossa análise, defendemos que não é
importante se os fatos realmente aconteceram na vida da escritora, mas sim a forma
como ela os tratou via linguagem.
Na análise do livro propriamente dita, analisamos a divisão do livro em quatro
partes, sendo que na primeira há um narrador relatando, na posição de leitor, que
escreveu o livro para salvar a vida de alguém, e, como consequência disso, criou uma
personagem chamada Ângela Pralini. A partir da segunda parte, o narrador se divide em
dois personagens que realizam um diálogo de mudos: Autor e Ângela. Exploramos
então os motivos para a criação de Ângela pelo Autor a partir de três abordagens: na
perspectiva da teoria da enunciação, segundo a qual a enunciação é um ato irrepetível
que acontece no presente e demanda dois interlocutores, um “eu” locutor e um “tu”
interlocutor, sujeitos estes que ocupam posições reversíveis na enunciação; a partir desta
perspectiva, defendemos a clivagem do sujeito na linguagem, analisando o monólogo
como um diálogo interiorizado no qual o “eu” conversa com um “tu”, que é seu
desdobramento. A análise da enunciação também mostrou a importância da alteridade
na constituição de um sujeito, pelo dialogismo, já que todo “ego” é um “eco” polifônico
e todo enunciado é perpassado por diversos outros enunciados – ditos pelo sujeito que o
enuncia ou por outros sujeitos –, e também pela inexistência de discurso indireto, que,
segundo Deleuze e Guattari, gera uma equivocidade dos agenciamentos coletivos da
enunciação. A partir disso, tomamos o texto como um espaço de equivocidade no qual
os sujeitos, dentro da obliquação, realizam um monólogo-a-∞, tanto tomando o infinito
como um paradoxo do monólogo, já que são infinitos (= vários sujeitos) que
monologam entre si, já que o eu monologante é vários, e também o infinito enquanto o
74

tempo eterno desse monólogo, que se escreve infinitamente já que a cada nova leitura o
monólogo será reiniciado pelo vórtice dos vários sujeitos.
Na perspectiva psicanalítica, explorada a partir das análises de Joana Frias e
Maria Lúcia Homem e com respaldo na “heterogeneidade constitutiva e enunciativa” de
Jaqueline Authier-Revuz, exploramos a constituição deslocada e fragmentária da
psique: consciente e inconsciente, de modo que o Autor seria, dentro de sua lógica, sua
formação em física e com sua forma triangular e reta, o lado apolíneo e consciente,
enquanto Ângela, como sonâmbula, sonhadora, ilógica e com sua forma espiral, seria o
lado dionisíaco e inconsciente. Cada um seria, dessa forma, um representante do polo
do sujeito dividido, incluindo aqui também a divisão de gênero, pois o Autor é
masculino e Ângela é feminina. Além disso, Ângela é não apenas criatura, ou seja,
criada pelo Autor, mas é por ele descrita como seu sonho, seu inconsciente, sua
manifestação no sono e seu reflexo, pois o Autor relata que vira outra fisionomia que
não a sua no espelho, como uma experiência de desrealização e despersonalização que
fez com que a criasse – de forma que a literatura se configura como aquele espelho no
qual olhamos e vemos outra fisionomia refletida que não a nossa, mas uma fisionomia
outra. Contudo, por estarem amalgamados/mesclados, sendo difícil traçar uma fronteira
entre ambos, eles são antitéticos, isto é, Autor é logicamente ilógico e ilogicamente
lógico, e Ângela também o é. São fragmentos de um eu. Também tratamos da hipótese
de que Ângela foi criada pelo Autor para que ele vivesse o seu nascimento e sua morte,
experienciáveis apenas pela vida alheia, pois, como apontou Blanchot, quando falamos
“mato-me”, o “eu” é sempre um outro, como que a água do rio de Heráclito.
Considerando ambos como tendo gênero opostos e a relação entre criador e
criatura, analisamos a relação de poder e de concepção de arte entre os gêneros e vimos
que o Autor, enquanto função textual, não tem, como Deus, poder sobre seu
personagem, pois esta lhe escapa, sendo o mesmo com as palavras do texto, porque o
autor não tem controle sobre o significado dos significantes jogados no espaço literário,
de modo que a tão procurada “intenção do autor” pouco importa. Quem constrói o
sentido das palavras é o leitor, que também constrói o autor, já que este não é anterior
ao texto, mas é construído ao mesmo tempo que escreve e, consequentemente, na
leitura.
A terceira abordagem se refere à criação do sujeito literário e à investigação da
fronteira entre os sujeitos literários envolvidos no texto. Refutamos a proposição de
75

Benedito Nunes acerca de uma relação heteronímica entre Autor, Ângela e Clarice, na
qual esta seria o ortônimo e os dois primeiros seriam heterônimos. A partir da
aproximação da obra clariceana com Fernando Pessoa e da análise de Agamben,
propomos que Clarice é pseudônimo quadrático, pois não ela se separa de seus
personagens, e chega a eles a autoria de seus livros. Por isso, Clarice se coloca como
leitora de sua obra, pois é apenas na posição de leitor que o escritor pode voltar ao texto
– que, vale ressaltar, nunca cessa de ser escrito na(s) leitura(s).
A partir da (con)fusão dos sujeitos na textualidade, ampliamos as análises já
realizadas do livro, seja pela enunciação, psicanálise ou heteronímia, e também pela
temporalidade do texto, e acreditamos que o diferencial de nossa análise foi chamar a
atenção para a “quarta dimensão” presente no texto, a dimensão da leitura e a presença
de um quarto sujeito que adentra a criação literária – o leitor –, de modo que o
monólogo-a-três ou do diálogo-a-um ganham um a-quatro dentro do monólogo-a-∞.
Assim, por via da literatura, o texto de Clarice permitiu que repensássemos a teoria
literária: o escritor empírico só retorna para seu texto como testemunha da escrita, como
sujeito oblíquo, como aquele que já não é o que foi e que nunca alcançará o significado
último daquilo que escreveu, de modo que, assim como escrever “é lembrar-se do que
nunca existiu”, como disse Clarice, ler é “lembrar-se do que nunca se escreveu”, como
reescreve Nodari. Ao ser escrito no aqui e no agora, o livro é escrito na sua leitura, e o
leitor é o sujeito que “amarra”, que une em si todas as perspectivas jogadas no texto, de
forma que multiplica em si a constituição fragmentária de todos os sujeitos que
compõem o texto e, assim, outrando-se através da leitura, obliquando-se ao ler.
Esperamos que o trabalho em questão contribua para a fortuna crítica de Um
sopro de vida, e, considerando este como o “livro definitivo” de Clarice, que consiga
lançar luz sobre toda a obra clariceana, revelando como Clarice lidava com a escrita,
como ela (re)escreveu sua vida-obra por toda a vida, como os sujeitos literários são
constituídos, seja considerando a enunciação, a constituição psicanalítica e a alteridade
e o desdobramento necessários na criação literária. Clarice propõe, via ficção como
exercício, uma nova forma de lidarmos com a subjetividade e com a alteridade que não
apenas pela projeção ou pela empatia e compaixão, mas pelo trânsito nas posições da
enunciação em relação ao outro por meio da literatura.

***
76

Como reflexão final, abro agora um espaço para que eu, autora-escriba dessa
monografia, escreva a minha experiência com Clarice e, portanto, minha grafia-da-vida:
Clarice me inquietou, me mobilizou, me colocou em crise e me desafiou, mas ela
também me ensinou e me salvou, ela me fez ver que não só a escrita é salvação, mas
também sua contraparte, a leitura. A literatura salva ao mostrar que a vida não é uma
coisa amorfa, mas é um significante em constante construção. Aqui, fiz uma leitura do
que Clarice me soprou, da vida que o texto me soprou, e essa vida me mostrou que eu
preciso do outro para descobrir quem sou, para conversar sobre a vida, e para me olhar
no espelho do humano e do animal, do vivo e do neutro. Esse texto é uma equivocidade
das vozes que me perpassaram ao longo do ano, vozes literárias, vozes teóricas, vozes
empíricas e vozes inconscientes. Espero então que minha leitura sopre outros sopros e
que Clarice continue pulsando outras vidas com Ângela Pralini.
77

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