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Sujeitos Obliquos de Um Sopro de Vida de PDF
Sujeitos Obliquos de Um Sopro de Vida de PDF
CURITIBA
2017
LETÍCIA PILGER DA SILVA
CURITIBA
2017
AGRADECIMENTOS
Antes de tudo, agradeço aos meus pais, Eliza e Denilson, que me deram o sopro
da vida, me apoiaram e me auxiliaram durante toda a vida escolar e acadêmica. Sem vocês
eu não conseguiria nada. Obrigada por me aguentarem falando da faculdade todo dia e
me aguentarem em todas as crises de ansiedade que a vida acadêmica me fez passar, pelo
apoio emocional e pelo suporte material.. Eu amo vocês demais da conta. Obrigada!
À minha vó amada, dona Selminha (also known as Palmirinha II, Dona Véia e
Doca), por absolutamente tudo, especialmente por ser a base da nossa família e por manter
todos unidos desde a vinda sofrida para Curitiba.
A todos os meus amigos, sejam aqueles que conheci no ensino médio, aqueles que
conheci aleatoriamente na vida, ou aqueles que me acompanharam na graduação, por
terem compartilhado leituras, experiências, rolês, risadas, choros, livros e conversas. Sem
amigos eu não teria conseguido. Cito nomes em especial pela presença essencial no meu
cotidiano e produção acadêmica ao longo desses cinco anos de Reitoria: obrigada, Regina,
Laura, Claudia, Ana Paula, Ana Freitag, Amy, Gabriela, Amyr, Tati, Renan, Mateus e
Mariana, por tudo!
À minha psicóloga, Flávia Pachiega, por ter me ajudado a lidar de forma mais
tranquila com essas pulsações que são a vida e a me (re)descobrir pelo monólogo-a-dois
e pelo diálogo-a-um da terapia. Você me mostrou que, apesar de a vida ser perigosa e,
como disse Clarice, não ser vivível, o sofrimento não precisa ser a infraestrutura dela e o
processo de viver vale a pena.
À professora Janice Inês Nodari, pela amizade, pelos conselhos valiosos, pelas
reuniões (para jogar conversa fora sobre a vida), pelos inúmeros livros emprestados, pelos
longos e-mails finalizados em “abração”, por ter acreditado em mim desde o começo da
graduação, por ter me ajudado a publicar meu primeiro artigo e apresentar meu primeiro
seminário em congresso, e também por ter compartilhado comigo a autoria de um capítulo
de livro. Além de, é claro, ter sido minha “chefa” maravilhosa na Revista Versalete. Saiba
que parte da minha vida acadêmica é fruto de sua docência e dedicação, Janice.
Ao meu orientador, Alexandre Nodari, pelo convite à orientação, por toda a
antropofagia durante a graduação, pelas aulas clariceanas, convites para apresentações,
livros emprestados e PDFs compartilhados, artigos publicados (seus artigos me ajudaram
muito, Nodari!), comentários na monografia, ensinamentos e orientações clariceanas
durante este ano – e pela paciência. Você disse no começo do ano que esta proposta de
pesquisa seria um desafio e um “degrau a mais” na minha vida acadêmica, então te
agradeço por ter acreditado no potencial do trabalho e na minha capacidade (foi sofrido,
mas valeu a pena) e por ter feito uma excelente orientação.
Junto a ele, veio o grupo Subspecie, cujos integrantes também agradeço por terem
compartilhado leituras comigo, me escutado, me lido – dois projetos – me auxiliado e me
ensinado muito nos encontros das quartas-feiras.
Ao PIBID e ao PIBIC – e à CAPES e à UFPR/TN –, por terem possibilitado que
eu desenvolvesse prática docente e pesquisa na graduação, além de permitirem que eu
focasse na formação acadêmica. Aqui, agradeço às minhas supervisoras no PIBID,
Silvana e Givanete, minhas coordenadoras no PIBID, Janice (de novo), Ane Cibele e
Gesualda, e ao meu orientador na Iniciação Científica, Klaus Eggensperger.
Last but not least, à Clarice Lispector, por ter dado um sopro de vida (e um monte
de estresse) e escrito o texto que (me) soprou a vida deste texto e ter permitido que eu o
soprasse novamente na leitura.
Foto: Gabriel Kleinke
Clarice e eu-eu e Clarice
Escritura-leitura
Eu-tu-ela
Nós
∞
“Eu não sou quem escreve,
(se) lendo (sua obra), de modo que, como propõe Giorgio Agamben sobre o escritor
italiano Giorgio Manganelli, o nome Clarice Lispector seria um pseudônimo
quadrático.
No terceiro capítulo, “A obliquação do leitor”, ao recuperarmos a proposta de
Alexandre Nodari da literatura como obliquação em sua análise de A paixão segundo
G.H., refletiremos como Clarice joga os significantes numa escritura feita no presente e,
consequentemente, sobrepondo-a à leitura, de modo a englobar o leitor, este ser que se
obliqua nos egos experimentais da ficção e que se escreve ao ler – assim como o fez
Clarice. Nossa análise aponta para a torção/espelhamento/matrioska entre autor e leitor,
pois, assim como o Autor precisava de Ângela, um autor precisa de um leitor, pois o
texto só existe enquanto ato no momento da leitura. Por fim, faremos as considerações
finais, aqui chamadas de “O fim do sopro”, sopro este não definitivo, mas singular e
ecoável, pois mais sopros podem (e devem) vir das pulsações clariceanas, de modo a
aumentar a fortuna crítica e a análise deste livro, que foi seu último.
10
Um sopro de vida foi o último livro escrito por Clarice, entre 1974 e 1977, tendo
sido, no entanto, publicado postumamente, em 1978 – um ano após sua morte. Ela o
escreveu simultaneamente a A hora da estrela, último publicado em vida, e podemos
dizer que ambos constituem uma inflexão final na obra da autora, por colocarem foco
nos discursos metaficcionais, pois Clarice ficcionaliza a escrita a partir da própria
escrita, desdobrando e misturando todos os elementos constituintes da ficção, colocando
a nu o fazer ficcional; e também por ambos os livros desnudarem1 a autoria clariceana
na relação escrever = viver.
O contexto da publicação desse livro já permite que pensemos a configuração
do sujeito dividido e cindido que será analisada no decorrer do trabalho, por isso, aqui,
no princípio, trataremos da montagem do livro e do processo de composição da escrita
da autora – com foco no recurso da intratextualidade. Como a relação entre escrita e
vida/ ficção e realidade é essencial na obra de Clarice, principalmente para a análise da
subjetividade e da enunciação literária de seus escritos, serão tomadas na análise
considerações das biografias que contam a vida da escritora por meio da recuperação de
sua ficção, embaçando a relação entre ambas, lendo Clarice por meio de seus
personagens, transformando-a em uma personagem e, assim, desfazendo as fronteiras
entre escritor, narrador e personagens.
As palavras de Um sopro de vida são de Clarice, mas, devido à publicação
póstuma, a estrutura não é dela, mas de sua amiga, Olga Borelli, de modo que não se
sabe se Clarice teria aprovado o material publicado. Borelli conviveu com ela por oito
anos, testemunhou seu processo de criação – acompanhando seus momentos de escrita,
anotando suas frases, organizando seus manuscritos, datilografando seus textos – e, a
pedido do filho mais novo de Clarice, ordenou os manuscritos de seu último livro, como
relata no prefácio que o abre:
1
João Camillo Penna (2010, p. 86), ao analisar Perto do coração selvagem, defende que o desnudamento
de Clarice é uma construção, pois ela sempre buscou o “despojamento da fábula” por meio de “uma
experiência nua desficcionalizada” (p. 75). Com isso, seus textos revelam o “‘nada’, o grau zero do
acontecimento” (p. 91), trazendo para o material a transcendência de modo que o epifânico seria a
“desencarnação de um mundo messiânico, nem belo nem feio, mas neutro” (p. 95) e, assim, mostrando
que o máximo da graça está ligado ao mínimo, ao baixo.
11
2
O texto do prefácio se encontra apenas na primeira edição do livro, tendo sido retirado na edição
vendida atualmente pela editora Rocco, feita em 1999.
3
Olga Borelli já havia ajudado Clarice a organizar os textos que originaram Água viva (MANZO, 1997).
4
BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: ______. O Rumor da Língua. 2004, p. 43-64.
5
Tal fato se desdobra dentro de Um sopro de vida, como será analisado no terceiro capítulo.
6
Os manuscritos originais do livro se encontram no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, desde
2004. Infelizmente não tivemos a oportunidade de realizar estudo minucioso dos fragmentos por questões
de localidade.Cf. http://www.ims.com.br/ims/explore/artista/clarice-lispector/no-ims
12
7
LISPECTOR, Clarice. “Outra carta”. In: ______. A descoberta do mundo. 1999, p. 78-79.
8
Como propõe: HOMEM, Maria Lúcia. No limiar do silêncio e da palavra: traços da autoria em
clarice lispector. 2011.
9
Ibid., 2011.
10
NUNES, Benedito. O drama da linguagem uma leitura de Clarice Lispector. 1995.
11
SOUSA, Carlos Mendes. Figuras da escrita. 2000.
12
FRIAS, Joana Matos. Um sopro de vida de Clarice Lispector: a auto-destruição criadora do sujeito
moderno. 1998.
13
ecoadas na análise que faremos, em um diálogo, seja como apoio crítico, ou para serem
questionadas, repensadas ou ampliadas.
A montagem do livro por Borelli, isto é, o momento posterior à sua escritura e
anterior à nossa leitura, revela a constituição cindida da subjetividade autoral e espelha a
relação, presente na obra, da identidade-alteridade, ou como Benedito Nunes disse, o
“jogo das identidades”13. Podemos dizer que há jogo de identidade dos textos
clariceanos, pois o v(e)(ó)rtice do livro é toda a obra de Clarice – seus romances, seus
contos, suas crônicas, suas notas e também sua vida14 –, a qual guiou a ordenação dos
fragmentos, de modo que o nome da autora corresponde à função autor de que fala
Michel Foucault15. Para ele, a função autor seria um nome próprio utilizado para a
delimitação dos textos que compõem determinada “obra”, nome responsável pela
reunião de textos por questões estilísticas ou temáticas, e também pela organização dos
discursos na sociedade. Como Borelli usou dos textos de Clarice e a montagem dos
demais livros16 para guiar a organização do livro póstumo, faz-se relevante que
sondemos o processo de composição da autora e nos perguntemos: como Clarice
concebia o ato de escrever?
Clarice dava a ver aos outros seu processo de composição e de organização dos
seus textos17 como algo fragmentado e descompromissado. Ela também relatava que
escrevia “só quando a ‘coisa vem’”18 e que se dava melhor “com a minha falta de
método ou planejamento”19, o que sustentava o mito de seu suposto (não-)método
apoiado na ideia de inspiração20. Clarice relata em cartas, e Olga Borelli reafirma em
seu livro, que ela não suportava o ofício de organizar/estruturar seus escritos, além de
que jamais relia o livro depois de publicado, pois livro publicado era livro morto.
Contudo, ela escreveu oito versões de A maçã no escuro, reduziu mais de uma centena
13
NUNES, Benedito. O drama da linguagem uma leitura de Clarice Lispector. 1995, p. 160.
14
Considerando que falar da obra clariceana é, muitas vezes, falar de sua própria vida, e que Olga Borelli
fez uma leitura biografizante do texto, a biografia de Clarice também marcou a constituição do livro.
15
FOUCAULT, Michel. O que é o autor? In: ______. Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura,
música e cinema. 2011.
16
Vale apontar que Olga Borelli auxiliou Clarice a organizar e a diminuir as duas versões que deram
origem a Água viva (MANZO, 1997).
17
Seja escrevendo sobre a composição de seus livros, em cartas e crônicas, seja sendo observada –
literalmente se dando a ver – por Borelli, que reafirma a versão da escritora sobre sua “forma” de
escrever.
18
LISPECTOR, Clarice apud GOTLIB, Nádia, – uma vida que se conta. 1995, p. 434.
19
Ibid., p. 343.
20
Segundo Borelli (1981), Clarice escrevia as frases que estas apareciam no verso de recibos, em
guardanapos, e também as datilografava quando estava próxima da máquina de escrever; a amiga conta
que ela chegava a parar na rua para anotar frases.
14
21
KADOTTA, Neiva. P. Tessitura dissimulada. O social em Clarice Lispector. 1995, p. 83 apud
HOMEM, Maria Lúcia. No limiar do silêncio e da letras: traços da autoria em clarice lispector. 2011., p.
55.
22
Colocamos entre aspas para ressaltar que tal afirmação pode ser relativizada, pois se, como Clarice, o
escritor reescreve e altera um texto de sua autoria prévia, ele transita da posição de leitor para novamente
a de “escriba”; assim como o leitor se coloca na posição de autor.
23
No livro “Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura”, Edgar Cézar Nolasco (2001) analisa a
construção de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e Água viva, respectivamente construídos como
palimpsesto e colagem.
15
recortar e colar, trabalhar com o já pronto, Clarice faz de sua obra um “patchwork”24.
Como exemplo podemos citar o conto “O ovo e a galinha”, de A legião estrangeira, de
1964, que ela republica com modificações e inversões, tomando o texto como um
quebra-cabeça e dividindo-o ao meio, nas três crônicas “Atualidade do ovo e da
galinha”, I e II, de 5, 12 e 19 de julho de 1969. A primeira frase do conto é: “De manhã
na cozinha vejo sobre a mesa um ovo”25, que foi modificada para “De manhã na cozinha
sobre a mesa está o ovo”26, ou seja, passa-se de alguém que vê um ovo para um ovo que
está e, portanto, é. O mesmo ocorre com o “Relatório da Coisa”, que teve três versões
publicadas com modificações, a saber “Anticonto” e “Objecto-Relatório-Mistério”.
Segundo Raul Antelo, em sua análise das três versões do texto, Clarice subjetiva as
coisas, colocando o objeto como o outro absoluto do humano, e faz um polimento da
“coisa” pela reescrita da palavra, definindo-o pela sua indefinição. Mesmo que a palavra
não seja um instrumento adequado para tocar a “coisa”, ela permite transporte no tempo
e no espaço. No processo da rescrita, “não se trata apenas, apenas, de duplicar o nome
como significante e significado, trata-se de dobrar o significante para atingir um além
do significado, o significado neutro ou grau zero da ficção desovam mais significantes a
cada tentativa de limitar os sentidos”27, isto é, um significado que é sempre postergado,
uma coisa – para a qual se tende via palavra – que se tenta tocar, mas cujo contato é
sempre adiado.
A segunda técnica é a da colagem, a simples reprodução de trechos (ou textos)
sem modificações, como aconteceu com contos de Felicidade clandestina28, livro
publicado por necessidades econômicas a partir de textos, e crônicas e trechos já
publicados que reapareceram em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. É como se
a escritora tivesse escrito e reescrito a mesma obra ao longo da vida, mas, diferente de
Murilo Rubião, que fez isso e reescreveu os mesmos trinta e três contos ao longo da
vida, o que fez com que sua obra completa fosse pequena, Clarice reescreveu na
24
GOTLIB, Nádia. Clarice – uma vida que se conta. 1995.
25
LISPECTOR, Clarice Lispector. “O ovo e a galinha’. In: ______. Todos os contos. 2016, p 303.
26
Op cit., “Atualidade do ovo e da galinha”. In: ______. A descoberta do mundo. p. 206.
27
Em seu texto Objecto textual, do qual foi retirada esta citação, Raul Antelo (1997, p. 19) fez uma
análise minuciosa das três versões do texto, apontando suas modificações textuais e, consequentemente,
alterações nas possíveis significações do texto.
28
Diversos contos deste livro são deslocados para o contexto das crônicas do jornal, como o conto “A
legião estrangeira”, que é transformado, sob a categoria de “(Noveleta)”, em “A princesa”; “Os desastres
de Sofia” se torna as cinco primeiras crônicas de 1970, sob o título de “Travessuras de uma menina
(Noveleta)”; “Evolução de uma miopia” se transforma nas duas crônicas intituladas “Miopia progressiva
(I) e (Final)”, e assim por diante.
16
29
LISPECTOR, Clarice. “Se eu fosse eu”. In: ______. A descoberta do mundo. 1999, p. 156, grifos
nossos.
30
LISPECTOR, Clarice. Aprendizagem ou o livro dos prazeres. 1999, p. 80, grifos nossos.
17
31
Lóri é o duplo de Clarice, assim como também é o duplo do leitor. É o ego experimental – expressão de
Milan Kundera (2009, p. 26) para se referir a personagens – de quem preencher a posição eu e ecoar o
ego da enunciação no momento da experiência da leitura.
32
LISPECTOR, Clarice. “As três experiências’. In: ______. A descoberta do mundo. 1999, p. 101-102.
18
Abstraindo o catolicismo da frase final, o que Alceu Amoroso Lima aponta aqui
permite que repensemos a imbricação entre vida e obra em Clarice Lispector: não se
trata simplesmente de aproveitamento de situações, reflexões, em suma, fatos da vida
individual de Clarice, mas de uma implicação e criação do sujeito pela escrita, onde real
e literário se misturam. Ao retomar textos e temas, frases e estruturas, Clarice recupera
seus “eus” divididos e textos de uma Clarice-já-morta, pois ela, ao escrever novo texto
com base em um texto já escrito, não era mais a mesma, mas outra, um eu deslocado no
espaço-tempo e no plano da significação da palavra. Ao se deslocar, dividindo e
multiplicando seu “eu”, Clarice reafirma a alteridade como topos de sua escrita e mostra
que a vida e a realidade são outras na ficção.
O texto que abre o livro A via crucis do corpo, intitulado “Explicação”34,
escancara a forma como Clarice concebia a realidade ficcional. Antes de tudo, a
classificação do texto é complicada, porque não conseguimos precisar se ele é um
prefácio, portanto, um paratexto, ou se ele já faz parte da ficção, e aqui ainda podemos
nos perguntar: é crônica ou é conto? O mesmo ocorre com as epígrafes deste livro, que
mostram trecho bíblico, trecho anônimo e trecho de seus personagens, de maneira que a
ficção adentra o paratexto, e também nos demais textos do livro, pois vemos uma
mistura de contos e crônicas e um jogo de realidades.
No começo deste texto, Clarice – ou seria a narradora-personagem? – relata que
seu editor encomendara “três histórias que, disse ele, realmente aconteceram. Os fatos
eu tinha, faltava a imaginação”35. Embora relate que tivera dificuldade na empreitada,
em um dia ela escreveu as três histórias, que compõem o livro, a saber: “Miss Algrave”,
“O corpo” e “Via crucis”. Ela compartilha que estas histórias fizeram com que ela
33
LIMA, Alceu A. apud LISPECTOR, Clarice. “Alceu Amoroso Lima (final)” In: ______. A descoberta
do mundo. 1999, p. 177, grifo no original.
34
LISPECTOR, Clarice. “Explicação”. In: ______. Todos os contos. 2016, p. 527-528.
35
Ibid, p. 527.
19
ficasse “chocada com a realidade”36, no entanto, os fatos reais que a escritora usou
aconteceram em textos literários, na realidade ficcional: “Miss Algrave” é uma
dessublimação do êxtase místico, pois o êxtase é corporal, e uma inversão de Maria
Madalena, pois a personagem é uma santa que vira prostituta; “O corpo” é uma reescrita
do conto “The tell-tale heart”, de Edgar Allan Poe, que Clarice traduziu para “O coração
delator”; e “A via crucis” é a reescrita da anunciação de Maria e do nascimento de
Cristo37.
A encomenda do editor propunha que ela ficcionalizasse a vida real, e ela
duplicou a realidade por meio de uma reversão paródica: ela escreveu sobre fatos que já
foram contados, que já aconteceram na linguagem. Isto é, Clarice faz um jogo entre
realidade e ficção – e de vida e obra. Ela dobra e redobra a vida e ficção e a escritura
vem ao primeiro plano, revelando o poder transformador da ficção.
Em um manuscrito paratextual utilizado por Borelli para estruturar o último
livro, nos deparamos com a fronteira difusa entre vida e obra, mais especificamente
entre os contornos do Autor, do seu personagem e de Clarice, que pode servir de
paratexto para a análise do texto:
36
Ibid., p. 527.
37
ARÊAS, Vilma. “Com a ponta dos dedos: A vida crucis do corpo”. In: ______. Com a ponta dos
dedos. 2005, p. 46-73.
38
LISPECTOR, Clarice apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. 1981,
p. 86-87, grifos nossos.
20
39
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 20.
40
Pensemos na relação de Ângela com Eduardo no conto “A partida de trem”, que será mencionado
novamente no segundo capítulo.
41
VARIN, Claire. Langues de feu: essaisur Clarice Lispector, Lavai, ÉditionsTrois, 1990 apud SOUSA,
Carlos M. S. Figuras da Escrita. 2000.
21
Todavia, não se pode perder de vista que ao escrever, Clarice se escrevia. Para
ela, “viver” e “escrever” são intercambiáveis, porque ela escrevia para viver, como disse
certa vez em uma entrevista: “para mim, escrever é como respirar, faço para
sobreviver”42. Tendo isso em mente, a escrita de Clarice permite que questionemos: o
que é ficção e o que é a não-ficção? Qual a fronteira entre a vida e a literatura? Qual a
fronteira entre o autobiográfico e o bio-gráfico? Como estamos vendo, na escrita
clariceana, todas estas fronteiras são muito tênues e as instâncias narrativas são
subvertidas.
Assim, a escrita de Clarice Lispector permite problematizar a fronteira entre vida
real e vida imaginária, ser real e ser imaginário, sujeito e objeto, eu e tu e outras
dicotomias, pois ela desloca o fato autobiográfico do real para o imaginário, ao perceber
“realidade enviesada. (...) Agora adivinho que a vida é outra”43. Como disse Silviano
Santiago, ela realiza o deslocamento do “eixo da vida do plano real para o plano da
realidade simbolicamente estruturada, dos signos da existência, para a grafia-da-vida”44,
realidade inventada que irá modificar a realidade atual/primeira. Nesse duplo
movimento de escrita, escrevendo-se ao escrever seus personagens, Clarice cria duplos
em seus textos, configurando “outro, imaginário do mesmo”, de modo que a vida da
ficção é diferente da vida tida como real, pois “viver essa vida é mais um lembrar-se
indireto dela do que um viver direto”45.
Olga Borelli e os demais biógrafos – Nádia Gotlib e Benjamin Moser – foram os
responsáveis por tentar dar um fechamento/fim para a vida da escritora que ela em si
não pôde dar, pois o olhar do outro dá acabamento ao ser, como o autor dá contornos
aos personagens46, e na vida empírica só os biógrafos (ou os “outros” que permanecem
depois da morte do “eu”) podem tentar dar o acabamento para a vida da escritora e
fechar a narrativa da personagem que foi Clarice47. No entanto, o olhar do outro também
abre incessantemente o ser, alterando-o, como se percebe na abertura da biografia de
Clarice pelos biógrafos, que, na tentativa de compreender e reescrever sua vida via
textos ficcionais e relatos, mitificaram a vida da escritora, confirmando a figura
42
LISPECTOR, Clarice. Encontros: Clarice Lispector. 2011, p. 117.
43
______. Água viva.1998, p. 68.
44
SANTIAGO, Silviano. A vida como literatura: o amanuense Belmiro. 2006, p. 41.
45
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 1998, p. 69.
46
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. 1997.
47
SOUZA, Carlos Mendes de Souza. Figuras da escrita. 2000, p. 521.
22
misteriosa que foi construída em torno da mulher48 – imagem que, inclusive, ela
alimentava ao negar leituras, defender inspiração, ou imprecisar dados biográficos como
o local de seu nascimento49.
Devido a essa relação entre “escrever” e “viver” e à biografização da ficção
clariceana, como relata Benjamin Moser em sua biografia, Olga Borelli, na posição de
amiga, biógrafa, retratista e “coautora”, alternando e juntando leitura crítica e
biográfica, suprimiu um trecho referente à morte de Ângela por respeito aos familiares
da escritora, pois Ângela seria Clarice:
Ela pede para morrer. Havia uns textos em que ela pedia para a
Ângela Pralini, personagem central de Um sopro de vida, romance
póstumo organizado por mim a partir dos fragmentos deixados por
Clarice. Eu omiti uma frase. Omiti esse fato para a família não ficar
muito sofrida. Quer dizer, esse livro eram fragmentos, e um fragmento
me tocou muito, em que ela diz “eu pedi a Deus que desse a Ângela
um câncer e que ela não pudesse se livrar dele”. Porque a Ângela não
tem coragem de se suicidar. Ela precisa, porque ela diz “Deus não
mata ninguém. É a pessoa que se morre.” Clarice dizia também que
cada pessoa escolhe a maneira de morrer.51
48
Ibid., 2000.
49
GOTLIB, Nádia B. Clarice – uma vida que se conta. 1995.
50
MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. 2009, p. 361.
51
BOLELLI, Olga apud MOSER, Benjamin, 2009, p. 349.
52
Utilizaram da mesma estratégia Olga de Sá (2004) e Berta Waldman (1992), nos seus livros Clarice
Lispector: a travessia do oposto e A paixão segundo C.L., respectivamente, fazendo o jogo invertido do
fazer literário clariceano e dando palavras das personagens ao scriptor que os colocara no papel.
23
Em um trecho de seu livro, Borelli transcreve esse trecho que Clarice ditara no
seu derradeiro dia:
53
LISPCETOR, Clarice apud BORELLI, Olga, p. 70.
54
LISPECTOR, Clarice. “A explicação inútil”.In: ______.Fundo de gaveta. 1980, p. 118-121.
55
DELEUZE, Gilles. “A literatura e a vida”. In: ______. Crítica e clínica. 1993, p. 13.
56
BORELLI, Olga. p. 61.
24
“— Me dê sua mão, pensou el[?] porque preciso apertá-la para que nada doa tanto”57.
Onde seria colocado esse trecho? Seria um ele ou um ela? Comporia Um sopro de vida?
Há difusão da fronteira entre o “eu” e o “ele” assim como na passagem da crônica “se
eu fosse eu” para o romance. No dia de sua morte, Clarice dita esse trecho falando que
morrerá e quer uma mão, e no trecho é um ego experimental quem pensa. Vai-se do
ditar ao pensar. Vai-se do eu ao el[?]. Além disso, percebemos que a presença da mão é
contínua na obra de Clarice58, como um desejo contínuo e insuperável por segurar uma
mão, mão enquanto parte do corpo que permite o contato, o toque, a união com o outro,
assim como utilizava a sua mão para escrever como uma ponte entre a palavra e o papel,
a ponto de chegar a falar “eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas
minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm”59. Desejava também uma mão
para segurar no final da vida – Borelli segura-lhe a mão na hora derradeira.
Se admitirmos que Borelli não esteja mentindo acerca do ditado derradeiro,
temos o seguinte: Clarice escreveu o fragmento, uma ficção, com personagem; na hora
da morte, ela dita/encena aquilo pensado pelo personagem, ela fez-se personagem,
passou o fragmento da terceira à primeira pessoa, da escrita para a voz, e desta para a
escrita de um outro – ditando para Olga escrever. Clarice nos mostra que viver envolve
ficcionalizar e que, mesmo falando de si mesma, ela precisa criar, dividir-se em outro
ego para se escrever – como Tristão de Ataíde diz que ela faz. Marina Colosanti, sobre a
relação do corpo da escritora com o corpo de seu texto, diz que “o corpo de Clarice não
aguentava Clarice. Foi lhe cedendo o passo. Ela crescia e ele se alquebrava. [...] Ela
dava-lhe ordens, exigindo que aguentasse a alta voltagem de sua criação”60.
Certa vez, Clarice afirmou que “na literatura de livros permaneço anônima e
discreta”61, e que jamais fora pessoal em seus livros:
57
VARIN, 1986, anexos, p. 237 apud SOUSA, 2000.
58
A exemplificar pela mão sem corpo e sem rosto inventada por G.H. para segurar ao longo de seu relato,
e pela crônica do dia 11 de maio de 1968 intitulada “as três experiências”, na qual ela fala: “[...] quero
morrer dando ênfase à vida e à morte” e “Só peço uma coisa: na hora de morrer eu queria ter uma pessoa
amada por mim ao meu lado para me segurar a mão. Então não terei medo, e estarei acompanhada quando
atravessar a grande passagem.” (LISPECTOR, 1999, p. 102). Além do fato, lembrado por Carlos Mendes
de Souza, de que o epitáfio da lápide da escritora é o seguinte trecho de A paixão segundo G.H.: “Dar a
mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria”.
59
LISPECTOR, Clarice. “Declaração de amor”. In: ______. A descoberta do mundo. 1999. p. 101.
60
COLOSANTI, Marina. Artigo no Jornal do Brasil, 7/11/1992 apud ANDRADE, Ana Luíza. “O Corpo-
Texto Canibal em Clarice Lispector. 1993, p. 49-62.
61
LISPECTOR, Clarice. “Fernando Pessoa me ajudando”. In: A descoberta do mundo. 1999, p 117.
25
Um de meus filhos me diz: “Por que é que você às vezes escreve sobre
assuntos pessoais?” Respondi-lhe que, em primeiro lugar, nunca
toquei, realmente, em meus assuntos pessoais, sou até uma pessoa
muito secreta. E mesmo com amigos só vou até certo ponto. É fatal,
numa coluna que aparece todos os sábados, terminar sem querer
comentando as repercussões em nós de nossa vida diária e de nossa
vida estranha. Já falei com um cronista célebre a este respeito, me
queixando eu mesma de estar sendo muito pessoal, quando em 11
livros publicados não entrei como personagem. Ele disse que na
crônica não havia escapatória.62
Contudo, em outra crônica, quando Clarice respondeu a uma leitora que pediu
que ela não deixasse de escrever sua coluna por medo de ser pessoal, ela acaba se
contradizendo ao dizer que os outros relatavam que ela se delatava nos livros:
62
LISPECTOR, Clarice. “Vietcong”. In: Ibid., 1999, p.284.
63
LISPECTOR, Clarice. “Sentir-se útil”. In: Ibid.,1999, p. 78, grifo no original.
64
COETZEE, John M. Doubling the point: essays and interviews. 1992, p. 17.
26
por exemplo, quando questionada acerca da avó de “Feliz aniversário”, respondera que
era “[...] a avó dos outros. Dois dias depois a verdadeira resposta me veio espontânea, e
com surpresa: descobri que a avó era minha mesma, e dela eu só conhecera, em criança,
um retrato, nada mais”65. Isto é, ela reconheceu a sua família ao outrar-se na família dos
outros. No mesmo texto, ela conta que no período em que escreveu “Embriaguez de
uma rapariga”66, falou com sotaque português como a personagem, ou seja, tomou a
personagem como caminho da vida e viveu-a, outrando-se; movimento que aparece no
conto “Encarnação involuntária”, de Felicidade Clandestina. Dessa forma, escrever
seria, como lemos em sua crônica “Lembrar-Se”:
Na sua crônica “Em busca do outro”, quando trata de seu caminho, Clarice diz
saber uma coisa: “meu caminho não sou eu, é outro, é os outros”68, ao que segue:
“Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de
chegada.” De modo que Clarice aponta para a importância da alteridade, para o ato de
outrar-se como forma de se conhecer, e a literatura é o espaço em que a experiência de
ser outros é possível.
Citando em uma crônica um dos expoentes da literatura moderna, Fernando
Pessoa, que rompeu o sujeito poético de forma semelhante a que faria em seus dois
últimos livros, Clarice fala sobre a relação entre falar e se desconhecer: “O que me
consola é a frase de Fernando Pessoa, que li citada: ‘Falar é o modo mais simples de nos
tornarmos desconhecidos’”69. Ambos reconhecem a necessidade de se desconhecer, pela
divisão e multiplicação do sujeito literário via palavra, fingindo a dor ou dando a dor a
outro a fim de experimentar novos modos de existência, e experimentar a si mesmo de
outra maneira. Assim o fez Clarice em sua obra toda, dissolvendo os limites entre vida e
ficção, entre corpo e palavra, tentando tocar a coisa e a experiência do mundo em si
usando a palavra como instrumento e os personagens – seus outros “eus” – como
65
LISPECTOR, Clarice. “A explicação inútil” . In: ______. Fundo da gaveta.1980, p. 118-121.
66
Op. cit.. “Embriaguez de uma rapariga”. In: ______. Todos os contos. 2016, p. 135-144.
67
LISPECTOR, Clarice. “Lembrar-se”. In: ______. Para não esquecer. 1980, p. 42.
68
LISPECTOR, Clarice. “Em busca do outro”. In: _____. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,
1999, p. 118.
69
Ibid., p. 137.
27
70
Maria Lúcia Homem (2011) já chamou atenção para a configuração matrioskal entre Autor e Ângela,
recuperando as bonecas russas para falar de uma maternidade infinita, mas aqui – mais especificamente
no terceiro capítulo – iremos aprofundar esta metáfora com a boneca russa inserindo o leitor.
29
(con)fundem de fato. Dessa forma, podemos dizer que o texto revela o topos clariceano
da existência de uma unicidade-totalidade do mundo71 que ocorre sem que as coisas, no
entanto, percam seus contornos e sua subjetividade, mas continuam in-divíduos dentro
de sua dividualidade e formam equivocidade na relação eu-tu que demanda a
comunicação encenada no texto e a confusão da lógica que rege os dualismos.
Para iniciarmos a análise dos dualismos, podemos apontar que a dualidade e o
topos da criação já são explicitados no título e subtítulo do livro – Um sopro de vida
(pulsações) –, pois o ato de soprar causa as pulsações72, e o sopro da linguagem cria
subjetividade, pois “a linguagem é a possibilidade de subjetividade”73. No entanto, a
relação de causa e consequência é reduzida em favor do movimento entre o sopro e a
pulsação, porque o sopro depende da pulsação para acontecer: a pulsação não é um polo
e simples “consequência” do sopro, mas também sua “causa”; um ato necessita do
outro, de modo que, como está colocado na página que antecede as epígrafes – “Quero
escrever movimento puro” –, não há estagnação, mas continuidade, reversibilidade,
movimento. Quando se sopra vida, há pulsação, há origem de vida, e aqui a vida é o
próprio texto, escrito no “aqui” e no “agora” da escritura-leitura, e, como o próprio
personagem Autor, na posição de narrador, fala: “em cada palavra pulsa um coração”74.
Ou seja, o texto é uma vida, possui um corpo (o significante) e uma alma (o
significado), que, no entanto, não são separados, mas são corpo-alma construído na
escritura-leitura, são fundo e forma, fundo-forma – para recuperar termos usados por
Clarice75.
Há uma rede de sopros e pulsações, pulsações e sopros que (se) criam e (se)
transformam no texto. Vemos nas epígrafes um trecho do livro Gênesis, o relato
judaico-cristão da criação do mundo e do homem, e também uma citação de Nietzsche,
o filósofo que “matou” Deus, respectivamente a dizer que o sopro de vida de Deus fez o
ser humano um ser vivente, e a definir a criação como “alegria absoluta”. Assim, as
duas epígrafes marcam a agência criadora do ser nomeado como Deus – que perpassará
71
Apontada por João Camillo Penna (2010, p. 75), em sua análise do estado de graça clariceano –
comumente chamado de epfania– como “a revelação da unicidade das coisas”.
72
Sopro esse que é o contínuo de toda a obra de Clarice, escancarando a intratextualidade que pulsa neste
texto derradeiro.
73
BENVENISTE, Emile. “Da subjetividade na linguagem”. In: ______.Problemas da linguística geral
I.1991, p. 289.
74
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978. p.16.
75
LISPECTOR, Clarice. “Literatura de vanguarda no Brasil”. In: ______.Outros escritos. 2015, p. 78.
30
nossa análise mais para frente –, e o efeito da criação, essa alegria que seria o “estado de
graça”76 clariceano. Adentremos, então, a pulsação do sopro.
O sopro de vida da criação pulsa um texto que é dividido em quatro partes. Na
primeira parte, uma espécie de prefácio, há um narrador masculino – posteriormente
desdobrado em dois personagens77: Autor e Ângela – que relata, após ter lido seu
próprio livro, sua concepção de escrita e o motivo de ter criado Ângela. O narrador diz
ter escrito esse relato inicial depois de ter lido o seu próprio livro, que é, nas palavras
dele, uma espécie de ouroboro, de um livro cíclico:
76
Lembremos da reformulação de João Camillo Penna (2010) do termo “epifania”, muito utilizado pela
crítica especializada desde Benedito Nunes, para retirar dessacralizar a poética clariceana.
77
Pode-se especular que o desdobramento e o consequente apagamento desse narrador no texto,
lembrando que este seria o “livro definitivo” de Clarice, acompanham o caminhar de seu primeiro livro,
Perto do coração selvagem, no qual há, segundo Benedito Nunes (1995) um narrador monocêntrico e
uma gradual autonomização de Joana, que, assim como o personagem do título do livro do qual Clarice
retira o seu título – Retrato do artista quando jovem, de James Joyce –, torna-se a artista do texto e não
precisa mais de um narrador para expressá-la, pois ela se manifesta por si só. E a ela cabe as palavras
finais, em primeira pessoa, do texto. Em A paixão segundo G.H. já não há um narrador em terceira pessoa
mediando a personagem e o leitor, é a própria personagem quem narra desde o começo.
78
LISCPETOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 20.
79
Considerando a existência de um livro dentro de um livro, e, especificamente, do livro de uma criatura
dentro do livro de se criador, podemos aproximar a construção “matrioskal” – aproximação que será
melhor desenvolvida no terceiro capítulo – das pulsações clariceanas à organização do livro de Mary
Shelley, Frankenstein, publicado em 1831, que apresenta a história do enunciador via cartas, da história
por ele contada pelo criador da criatura e, no centro, da história contada pela perspectiva da criatura,
31
Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro por
que exatamente eu o disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma
maldição, mas uma maldição que salva.
fechada pela retomada da voz do criador e, depois, do enunciador. Vozes dentro de vozes que delimitam a
relação de espaço e tempo na narrativa.
80
Maria Lúcia Homem (2011) aponta, sem aprofundamentos, para a intertextualidade de “isto”, primeira
palavra do livro, com o poema “Isto”, de Fernando Pessoa, que ensaia a divisão entre o sentimento do
poema e o sentimento do escritor empírico, de modo a descolar o sentimento da palavra do ser empírico
que as colocaram no papel. Utilizando este poema como chave de leitura, vale ressaltarmos a relação
vida-obra e dizer que Clarice de fato jamais fora “autobiográfica” em seus livros, pois as palavras são
resultado de sua objetivação e da subjetivação do outro; ela (re)vive os fatos rarefeitos que narra, como
diz o poema de Pessoa, por meio da imaginação:
84
LISPECTOR, Clarice. “Escrever”. 14 de setembro de 1968. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Rocco, p. 134.
85
LISPECTOR, Clarice. “A última entrevista, por Júlio Lerner”. In: ______. Encontros: Clarice
Lispector. 2011, p. 174.
86
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 11.
87
Ibid., p. 11.
88
Ibid. p. 11.
89
Essa relação invertida é apontada por João Camillo Penna (2010) em seu artigo “o nu de Clarice
Lispector”, acerca de Perto do coração selvagem.
33
Mais adiante, o narrador relata que, para alcançar essa salvação, mesmo que as
palavras tenham se esgotado, ele gostaria de escrever um livro e “prescindir de ser
discursivo” e do “fato”90, vivendo na escrita, pois “o resultado fatal de eu viver é o ato
de escrever”91, e, para ele, “escrever é uma indagação: É assim:?”92, ressoando a
procura clariceana, presente na crônica acima mencionada, de se questionar ao escrever,
de escrever ser a procura do entender – embora, como a obra dela nos mostra, esta
procura seja sem resposta.
O narrador diz que ele precisa se colocar no vazio, abdicar-se do eu – que já é
um dêitico, gramaticalmente falando – e dirigir-se para o impessoal da vida, para o
neutro, retomando o “tudo é um” de Joana e, ao mesmo tempo, a máxima de Lóri de que
“será o mundo com sua impessoalidade soberba versus minha individualidade como
pessoa mas seremos um só”93. Assim, desde o princípio de sua obra, Clarice busca o
que atravessa todos os seres, o que liga o mundo sem, contudo, criar unicidade:
90
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 13.
91
Ibid., p. 15.
92
Ibid., p. 14.
93
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. 1999, p.. 156.
94
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 13.
95
Ibid., p. 18, grifos nossos.
96
Ibid., p. 19.
34
97
Tomando “invenção” como descoberta, de modo que a realidade ficcional é descoberta, encontrada,
isto é, é outra face desta realidade que chamamos de “real”.
98
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 19.
99
Ibid., p. 172.
100
Ibid., p. 19.
35
101
Ibid., p. 15.
102
BENVENISTE, Emile. “O aparelho formal da enunciação”. In: ______. Problemas da linguística
geral II. 1989, p. 81-90.
103
O vazio do dêitico “eu” pode ser ilustrado por esta frase de Ângela: “Eu me olho de fora para dentro e
vejo: nada.” (LISPECTOR, 1978, p. 60), pois Ângela olha dentro do “eu” e vê um vazio.
104
BENVENISTE, Emile. “Da subjetividade na linguagem”. In: ______.Problemas da linguística geral I.
1991, p. 286.
105
Nas palavras dele: “Seria preciso também distinguir a enunciação falada da enunciação escrita. Esta se
situa em dois planos: o que escreve se enuncia ao escrever e, no interior da sua escrita, ele faz os
indivíduos se enunciarem” (BENVENISTE, 1989, p. 90).
106
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 28-30.
107
Ibid., p. 65.
36
– (Eu te amo)
– (É isso então o que sou?)
– (Você é o amor que eu tenho por você)
– (Sinto que vou me reconhecer... estou quase me vendo. Falta tão
pouco)
– (Eu te amo)
– (Ah, agora sim. Estou me vendo. Esta sou eu, então. Que retrato do
corpo inteiro)113.
108
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 91.
109
Ibid., p. 40.
110
BENVENISTE, Emile. “O aparelho formal da enunciação”. In: ______. Problemas da linguística
geral II. 1989, p. 81-90.
111
NODARI, Alexandre. ““Eu, pronome oblíquo”.2015a, p. 19.
112
Ibid., p. 27.
113
LISPECTOR, Clarice. “Quem era ela”. In: ______. Para não esquecer.1980, p. 55.
37
Podemos dizer que neste texto o travessão marca o início de uma fala, mas os
parênteses – como pontuação114 que sinaliza uma informação adicional mas não
essencial, uma digressão, o que pode não ser dito – escancaram o que está para além do
dito: talvez atrás do silêncio, ou atrás do pensamento? O diálogo entre parêntese se
realiza sem palavras, mas em pensamento e por meio da poética do olhar: um alguém
está se reconhecendo ao se ver no espelho – “estou quase me vendo”. Ou, considerando
o fato de que a interlocução sinalizada acontece entre parênteses, para além do dito,
poderíamos então pensar que o diálogo encenado na crônica é um monólogo de alguém
com seu Outro refletido no espelho? O diálogo só se realiza com a presença do outro, e
este outro está presente na materialidade do enunciado: “eu te amo”. Além disso, esse
“eu” define o outro pela relação que tem com ele quando diz “você é o amor que eu
tenho por você”. Sujeito e objeto se (con)fundem. O breve diálogo acaba quando o
primeiro enunciador se vê e conclui quem é – “esta sou eu”115.
De forma semelhante, em Um sopro de vida, há o texto secundário com um
nome seguido de um travessão no início de cada fragmento marcando o enunciador (se
“AUTOR –” ou “ÂNGELA –”). Além disso, há a entrelinha/espaço em branco que
separa as falas teatralizadas de ambos os personagens, uma espécie de entrelinha
alongada que configura silêncio e intervalo subjetivo que os divide e os une ao mesmo
tempo, pois cada um se posiciona nos dêiticos quando o texto secundário os nomeia.
Cabe ao leitor ler as entrelinhas a fim de resolver a (con)fusão entre os dois personagens
– separando-os ou os diluindo – e também tentar construir coerência entre a disposição
entre os fragmentos de cada um, pois, como disse Clarice em sua crônica: “Mas já que
se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com as palavras as entrelinhas”.116
No entanto, em alguns momentos, percebemos rastros de um diálogo, que se
mostra, na verdade, um eco, um adendo um do outro, uma continuidade diferente, como
podemos ver neste trecho, quando as reticências da fala de ambos se ligam na leitura:
114
Segundo o Dicionário online Caldas Aulete, iniciar e fechar o parêntese significa: Abrir um parêntese
1. começá-lo; interromper um período de um discurso para dizer uma coisa diferente do que se dizia; pôr
na escrita o sinal (. || Fechar o parêntese 1. concluir a digressão; pôr o sinal ) na escrita. || Entre parênteses
1. por modo de digressão ou de aparte. Disponível em: http://www.aulete.com.br/par%C3%AAntese
Acesso: 05 out. 2017.
115
Semelhante ao que Narciso diz quando se dá conta de que a imagem que está vendo refletida (no
espelho d’água) é ele: “Iste ego sum” (AZEVEDO, 2004, p. 34). A recuperação de Narciso é válida pois
nos permite reforçar a ideia de que a crônica se trata de um diálogo especular (em todos os sentidos) e,
relembrando o mito, de que Narciso também é Eco, pois ecoa sua imagem na água, assim como Autor
ecoa em Ângela.
116
LISPECTOR, Clarice. “Já que há de se escrever...”. In: ______.Para não esquecer. 1984, p. 25.
38
Não são sujeitos diferentes que falam, mas vozes e camadas que formam um
mesmo sujeito, que, no entanto, não culmina na supremacia de um indivíduo uno, mas
na sua clivagem e na importância da alteridade, isto é, do outro para a constituição da
subjetividade. Como já mencionamos anteriormente, todo ego é um eco, pois, de acordo
com o dialogismo, todo enunciado carrega diversos outros enunciados ditos
anteriormente pelo próprio enunciador e por outros – configurando uma polifonia –,
ecoando os discursos que constroem e são construídos na cultura do enunciador e que
correspondem a seu horizonte identitário. Dessa forma, o locutor também é um receptor,
pois não é o primeiro locutor, mas pressupõe a existência prévia do sistema linguístico e
de enunciados anteriores, sejam estes ditos e/ou escritos por ele ou por outros119, como
o Autor mesmo diz: “Fui invadido pelas palavras dos outros”120.
117
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 93.
118
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 44, grifos nossas para enfatizar a presença do
travessão.
119
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. 1997.
120
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 93.
39
Eu, o autor deste livro, estou sendo tomado por mil demônios que
escrevem dentro de mim. Essa necessidade de fluir, ah, jamais, jamais
parar de fluir. Se parar essa fonte que em cada um de nós existe é
horrível.121
121
Ibid., p. 80.
122
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. 1997, p.313-314.
123
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 12.
40
3.2. A psicanálise
Jacqueline Authier-Revuz126 aproxima o dialogismo bakhtiniano da psicanálise
lacaniana para tratar da heterogeneidade constitutiva do sujeito e mostrar como o sujeito
moderno é cindido duas vezes pela linguagem: primeiro, por ser produto do
interdiscurso – pela enunciação, como já trabalhado na seção anterior –, e segundo,
interiormente, em sua constituição psíquica. Assim como ela, iremos tomar a
psicanálise como segunda abordagem que explica a necessidade da criação da
personagem. Podemos começar a abordá-la recuperando o estádio do espelho de que
fala Lacan, segundo a qual a (ficção da) identidade é formada pela imagem refletida no
espelho, através da qual o bebê toma “consciência” dos contornos de si quando se olha
no espelho e descobre que a mãe não é uma extensão do seu corpo 127; ao se olhar no
espelho, o bebê reduplica a realidade via imagem, através da qual “[...] formamos
nossos laços, e é a partir dela [da imagem] que assumiremos um modo de vida, enfim, é
partir dela que iniciamos uma ficção de quem somos”128.
124
A questão da leitura será desenvolvida no terceiro capítulo.
125
Apontamos que a unidade/identidade do indivíduo é ficcional considerando a identidade fragmentada,
deslocada e clivada do sujeito devido às cinco rupturas do discurso do conhecimento que descentraram a
constituição do sujeito moderno, a ser, segundo Stuart Hall (2005): o pensamento marxista, que desloca a
noção de agência individual e constroi a ideia de ação com base na coletividade; a psicanálise, que rompe
o conceito de sujeito cognoscente e racional ao descobrir o “inconsciente”; a linguística, que propôs que a
língua é um sistema social (Saussure) e que os enunciados são polifônicos (BAKHTIN, 1997) e revelam
no enunciado e na enunciação a heterogeneidade constitutiva dos enunciadores (AUTHIER-REVUZ,
1990).
126
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. “Heterogeneidade(s) enunciativa(s)”. In: Cad. Est. Ling. Campinas. v.
19.jul/dez. 1990, p. 25-42.
127
LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. 2010.
128
CERA, Flávia. “Verbete – espelho”. In Sopro. n. 55. Jul. 2011, p. 2.
41
129
Ibid., p. 27.
130
FRIAS, Joana. Um sopro de vida de Clarice Lispector: a auto-destruição criadora do jeito moderno
1998.
131
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 142.
132
LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. 2010, p. 98.
133
Ibid., p. 102, grifo no original.
134
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 165.
135
Ibid., p. 78.
136
Ibid., p. 90.
137
HOMEM, Maria Lúcia. No limiar do silêncio e da letras: traços da autoria em clarice Lispector. 2011.
42
a personagem fale quando ele não quer pensar. Em outras palavras: quando ele abre
mão do seu consciente, de modo que Ângela é tida como o pensar-sentir e apresentada
como o ilógico, o nonsense, o inconsciente. O Autor diz que Ângela fala por ele durante
o sono, logo, que Ângela é seu sonho, o que remete à criação ficcional de uma realidade
virtual durante o sonho, uma realidade outra. Dentro de sua própria realidade Ângela
sonha, pois, como indica o texto secundário, ela divaga monologamente enquanto está
sonâmbula, de modo que ela não se ouve, talvez Autor a ouça, apesar de estar sonhando.
Contudo, só o leitor pode tentar tirar sentido do sem-sentido do fluxo da in-consciência
de Ângela, porque tal trecho não passa de uma concatenação de significantes que
desviam a cada tentativa de depreender deles um sentido. O inconsciente cria
associações entre as palavras, errando entre os signos e revelando “o jogo da criação
literária e o quanto ela é marcada pela renúncia ao controle racional absoluto da
delimitação de sentidos”138, pois a cadeia de significantes é que impõe sentidos ao
buscar dizer o impossível – o não dito:
138
Ibid., p. 173.
139
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 87.
43
palavras de Ângela são antipalavras: vêm de um abstrato lugar nela onde não se pensa,
esse lugar escuro, amorfo e gotejante como uma primitiva caverna.”140
Ângela como sonho acordado do Autor pode ser relacionada com os dois
subtítulos das partes centrais do livro: “O sonho acordado é que é a realidade” e “Como
tornar tudo um sonho acordado?”. Isto é, Ângela é sonho e, portanto, realidade, sendo
que no sonho acordado141 “a razão se alia à procura do real por trás da mera realidade
referencial, do ângulo literário”142. Ela é o caminho para se alcançar a realidade, que é
sonho acordado, destarte, o livro dela – e, consequentemente, a literatura –é o acesso
e/ou resultado da/para a realidade. O Autor ainda diz que “qualquer um pode sonhar
acordado se não mantiver acesa demais a consciência”143. Maria Lúcia Homem também
aponta que Ângela é um reflexo do “eu ideal” do Autor, isto é, do que ele quer ser, do
seu sonho enquanto utopia. Ele cria uma realidade outra para que possa ser seu ideal:
Ângela é tudo o que eu queria ser e não fui. O que é ela? ela é as
ondas do mar. Enquanto eu sou floresta espessa e sombria. Eu sou no
fundo. Ângela se espalha em estilhaços brilhantes. Ângela é a minha
vertigem. Ângela é a minha reverberação, sendo emanação minha, ela
é eu.144
140
Ibid., p. 39, grifos nossos para marcar a divisão dentro dela.
141
Podemos lembrar que Antonio Candido (2006, p. 175), em seu texto O direito à literatura, definiu a
literatura como “sonho acordado das civilizações”, de modo que, se tomarmos tal definição e
aproximarmos do fato de Ângela ser sonho do Autor: Ângela é literatura. Dentro de seu caráter de homo
fictus, ela é ficção, seja como imagem especular no espelho, seja como desdobramento do Autor e de
Clarice.
142
HOMEM, Lúcia Maria. No limiar do silêncio e da letras: traços da autoria em clarice lispector. p.
180.
143
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 83.
144
Ibid, p. 31.
145
COELHO, Eduardo Prado - Os Universos da Crítica, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 479 apud FRIAS,
1998, p. 128.
44
[...] Minhas mortes não são por tristeza – são um dos modos do mundo
inspirar e expirar, a sucessão de vidas é a respiração da espera infinita,
e eu mesma, que também sou o mundo, preciso do ritmo de minhas
agonias. Mas se eu, como mundo, concordo com a minha morte, eu,
como a outra coisa que extremamente também sou, preciso que as
mãos da misericórdia recebam o corpo morto.146
Seguindo essa lógica, Autor cria Ângela para experienciar seu nascimento e sua
morte, já que essas duas experiências são sempre experimentadas via nascimento e
morte do outro. Ângela diz que a vida é um teatro no qual “na verdade nunca morremos
quando acontece a morte. Só morremos como artistas. Isso seria a eternidade?” (174) O
livro todo seria, então, uma preparação para a morte, para o sumiço do Autor, e para o
efetivo nascimento, com a autonomia e a corporificação de Ângela no final, já que,
segundo ele, “depois que eu morrer Ângela continuará a vibrar”148.
146
LISPECTOR, Clarice. “Lembrança de um verão difícil”. In: ______. Para não esquecer. p. 138,
grifos nossos.
147
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987, p. 104.
148
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 28.
45
eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu.
Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha
experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era
eu.153
149
FRIAS, Joana. “Um sopro de vida de Clarice Lispector: a auto-destruição criadora do jeito moderno”.
In Línguas e literaturas. 1998.
150
LISPECTOR, Clarice. “Lembrar-se”. In: ______. Para não esquecer. 1980, p. 42.
151
FRIAS, Joana. Op. cit. 1998.
152
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 16.
153
LISPECTOR, Clarice. “A experiência maior”. In: ______. Para não esquecer. 1980, p. 39.
154
E veremos, no terceiro capítulo, que isso também se dá na leitura.
46
155
NUNES, Benedito. “O jogo da identidade”. In: ______. O drama da linguagem. 1989, p. 170.
156
Para entrar na relação entre Clarice Lispector e Fernando Pessoa, recomenda-se o artigo Olhos nos
olhos (Fernando Pessoa e Clarice Lispector), de Nádia Gotlib.
157
PESSOA, Fernando.Nestes desdobramentos de personalidade ou, antes, invenções... Disponível em:
http://arquivopessoa.net/textos/4293 Acesso: 20 nov. 2017.
158
As outras três explicações seriam: (i) resquício da lógica infantil, (ii) temperamento dramático, histeria
e (iii) auto-mediuinidade (PESSOA, 1974).
159
Trecho da carta: “Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-
Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro
como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia
em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e,
tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos
poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha
vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu
foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o
absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim
que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio,
também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e
totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi
a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.” (PESSOA, 1974, p. 96).
47
160
SOUSA, Carlos M. Figuras de escrita. 2000.
161
Para investigar a reconstrução e os fatos e pessoas que deram origem à Macabéa e Olímpico, bem
como aos episódios do violino e da vidente na novela, recomendamos o livro Era uma vez: Eu – a não-
ficção na obra de Clarice Lispector, de Lícia Manzo (1997).
162
Evando Nascimento (2011) recupera o verbo “intertrocar” de A hora da estrela para tratar do devir e
das trocas de posições entre os sujeitos no texto.
163
NUNES, Benedito. “Jogo de identidade”. In: ______. O drama da linguagem. 1989, p. 164-165.
48
A CULPA É MINHA
OU
A HORA DA ESTRELA
OU
ELA QUE SE ARRANGE
OU
O DIREITO AO GRITO
CLARICE LISPECTOR
QUANTO AO FUTURO
OU
LAMENTO DE UM BLUE
OU
ELA NÃO SABE GRITAR
OU
UMA SENSAÇÃO DE PERDA
OU
ASSOVIO NO VENTO ESCURO
OU
EU NÃO POSSO FAZER NADA
OU
REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES
OU
HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL
OU
SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS
164
SANTIAGO, Silviano. A vida como literatura. 2006, p. 16-17.
165
SÁ, Olga de. Clarice Lispector: a travessia do oposto. 2004, p. 218.
49
máscara, vemos um jogo de máscaras. Assim como o Autor cria Ângela para poder
experimentar a morte e o nascimento, Clarice escreve para morrer-se e salvar-se pela
escrita e poder dizer “mato-me” ou “nasço”.
Ao se colocar no texto, Clarice não está se mostrando a outra de seus
personagens ou do próprio texto, mas (con)fundindo-se a eles, pois não é possível
separar concretamente no corpo do texto Autor, Ângela e Clarice. Clarice até mesmo
compartilha seus livros “físicos” com seus personagens:
Nestes dois trechos, vemos que o Autor toma a autoria de Água viva, que
apresenta uma narradora mulher, no qual Clarice usa o it, almeja o instante-já e o toque
da coisa, assim como Ângela, pois é neste livro que ela descreve um guarda-roupa; e
Ângela toma a autoria de A cidade sitiada, do conto “O ovo e a galinha”, e
consequentemente do livro Legião estrangeira, e d’”O relatório da coisa”, de Onde
estivestes de noite. Além disso, podemos citar o fato de o Autor relata que Ângela
escreve crônicas para o jornal e que não gosta, e de que, na quarta parte, descobrimos
que o livro que Ângela está escrevendo se chama “História das coisas”, que remete a
seu texto “O relatório da coisa”, no qual aparece o despertador Sveglia.
Dessa forma, Clarice se dessubjetiva para se tornar um nome, um pseudônimo
de si, pois os leitores pegarão os livros “físicos” em questão e não lerão um nome
masculino do Autor anônimo nem de Ângela Pralini, mas de Clarice Lispector. Clarice
seria o pseudônimo de seus personagens, que, no entanto, são ela, logo, o nome “Clarice
Lispector” é um pseudônimo/nome falso que volta para o verdadeiro. Clarice
166
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 115.
167
Ibid., 1978, p. 170.
50
anteriormente utilizou de pseudônimo duas vezes em sua vida: quando publicava textos
para uma revista feminina e quando escrevia como ghostwriter para uma atriz, por
motivos financeiros; e supostamente168 tentou usar o pseudônimo de Claudio Lemos, C.
L., quando publicou A via crucis do corpo e não queria admitir a autoria do livro pelo
teor erótico dos contos – ela realiza movimento parecido com a dedicatória de A hora
da estrela, mas agora o nome aparece apenas nas iniciais, revelando o rastro do nome da
escritora – como as inicias de G. H. na valise.
Considerando tudo isso, observamos, na reversão paródica de Um sopro de vida,
o que Giorgio Agamben recupera de Giorgio Manganelli: pseudonímia quadrática ou
homoheteronímia, o extremo da heteronímia no qual o pseudônimo é idêntico ao nome
verdadeiro/próprio. Nas palavras de Agamben, na pseudonímia “não só um eu cede o
lugar a outro, mas este outro pretende não ser outro, e sim identificar-se com o eu, o
que o eu só pode negar”169. O pseudônimo quadrático é um nome que espelha a si
próprio, mas cujo reflexo é um outro de si, retomando o fluxo de Heráclito: não se entra
duas vezes no mesmo rio porque a água é sempre outra, e nós também somos sempre
outros. Clarice também era sempre outra. Agamben também diz que
Dessa forma, todo “eu” seria um resíduo do eu que já não vive mais, do outro
que ficou no passado e na duração do tempo culminou no eu da enunciação, seja ela
escrita ou falada. O eu é um espaço vazio, uma abertura na linguagem. De acordo com o
que Agamben propõe, podemos esquematizar os três graus de pseudonímia
quadrática171 da seguinte forma: 1º) Eu sem pseudônimo que existe, mas que não pode
escrever; 2º) Pseudônimo de grau zero que escreve o texto ilegível do primeiro eu, e 3º)
Pseudônimo quadrático que lê, relê e perde o livro nulo.
168
É válido apontarmos que Cláudio Lemos aparece no texto “Explicação”, que abre o livro A via crucis
do corpo e que, como falamos no primeiro capítulo, não nos permite dizer se é um prefácio do livro, de
modo a anteceder a ficção, ou se já faz parte da ficção, de forma que não podemos dizer se de fato o
pseudônimo C.L. era de Clarice ou fazia parte da ficção e, portanto, algo além de um simples pseudônimo
para a escritora.
169
AGAMBEN, Giorgio. O que restou de Auschwicz: o arquivo e a testemunha. p. 133.
170
Ibid., p. 134.
171
Ibid.b, p. 134.
51
LISPECTOR, Clarice. “As três experiências”. In: ______. A descoberta do mundo. 1999, p. 102.
172
CIXOUS, Hélène. “Extrema fidelidade” In: LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela: edição com
173
a velha era anônima como uma galinha, como tinha dito uma tal de
Clarice falando de uma velha despudorada, apaixonada por Roberto
Carlos. Essa Clarice incomodava. Fazia a velha gritar: tem! Que!
Haver! Uma! Porta! De saííída! E tinha mesmo.174
176
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. 1997.
177
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 148.
178
Na primeira edição, as duas páginas seguintes a essa frase são deixadas em branco, de modo a
concretizarem na materialidade do livro físico a tentativa do Autor de ficar só.
179
Ibid., p. 151.
180
Ibid., p. 79.
54
AUTOR. – Noto com surpresa mas com resignação que Ângela está
me comandando. Inclusive escreve melhor que eu. Agora os nossos
modos de falar se entrecruzam e se confundem. 187
181
Ibid., p. 139.
182
Ibid., p. 103.
183
Ibid., p. 111.
184
HOMEM, Maria Lúcia. No limiar do silêncio e da letras: traços da autoria em claricelispector 2011, p.
172.
185
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987.
186
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 60.
187
Ibid., p. 133.
55
Ângela é espiral de finesse. Ela é intuitiva, eu sou lógico. Ela não tem
medo de errar no emprego das palavras. E eu não erro. Bem sei que
ela é uva sumarenta e eu sou a passa. Eu sou equilibrado e sensato. Ela
está liberta do equilíbrio que para ela é desnecessário. Eu sou
controlado, ela não se reprime – eu sofro mais do que ela porque estou
preso dentro de uma estreita gaiola de forçada higiene mental. Sofro
mais porque não digo porque sofro.188
Ele é lógico, reto, meia-noite, frio, racional, simples, nota musical grave. Ela é
ilógica, curva, meio-dia, sentimental, luxuosa, nota musical aguda. Esse movimento de
aproximação e afastamento e o espelhamento entre as falas dos dois – que muitas vezes
se repetem –, segundo Ana Luíza Andrade, revela a “fome de um só corpo”189, a busca
por um corpo que tenha tanto o eu quanto o não-eu, como o Autor fala: “Ângela é muito
parecida com o meu contrário. Ter dentro de mim o contrário do que sou é em essência
imprescindível[...]”190. Autor se desdobra em personagem feminina para conseguir
alcançar uma totalidade impossível.
O Autor é abstrato e vai se abstraindo ao longo do livro, indo de pessoa a
“rigoroso pleno de palavras”, pois “a palavra foi aos poucos me desmistificando”191. O
corpo feminino da personagem, por sua vez, lhe escapa a todo momento e vai se
autonomizando, pois é “conduzido ou se conduz, através do corpo a corpo consigo
mesmo”192 e com o mundo.
O trânsito do corpo-texto clariceano, esse “movimento puro” desejado, mostra
uma “economia inter(t)sex(t)ual do corpo a corpo”193 em uma escrita que
188
Ibid., p. 46.
189
ANDRADE, Ana L. O Corpo-Texto Canibal em Clarice Lispector. 1993, p. 53.
190
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 70.
191
Ibid., 1978, p. 42.
192
ANDRADE, Ana L. O Corpo-Texto Canibal em Clarice Lispector. 1993.
193
Idem, op. cit., 1993, p. 50.
194
Idem, op. cit., 1993, p. 50.
56
Autor não é apenas um ego experimental para se conhecer, isto é, um Outro, mas ele
cria uma Outra195, ou seja, inscreve a diferença sexual.
A relação entre gêneros remete à novela A hora da estrela, pois, neste, Rodrigo
S. M., um narrador-personagem masculino que se coloca como um autor escreve
Macabéa, mulher que o é – e ambos são Clarice. Como o Autor e Ângela, Macabéa é
duplo e imagem especular de Rodrigo S. M.: “Vejo a nordestina se olhando ao espelho e
– um rufar de tambor – no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós
nos intertrocamos.”196 E Rodrigo S. M., diferente do Autor, detém poder sobre a vida de
sua personagem, a ponto de matá-la no final.
A escolha de narradores masculinos nos dois últimos livros pode ser analisada
de duas formas. Por primeiro, como a realização de um irônico distanciamento do autor-
narrador-personagem em relação à escritora empírica, ou seja, como uma forma de
ironizar aqueles que falavam da sua escrita confessional, da “pieguice” e
“derramamento do eu” por ser mulher197, e ela o faz passando para o masculino, para o
gênero que comandou a escrita por tanto tempo. Assim, não por acaso, Rodrigo S. M.
diz que ninguém pode falar da personagem dele, só “outro escritor, sim, mas teria que
ser homem, porque escritora mulher pode lacrimejar piegas”198. De forma semelhante, o
Autor não nomeado das pulsações diz que ele não deixa Ângela falar de menstruação ou
se derramar sentimentalmente, pois essas são coisas de mulher: “Controlo-a como
posso, cortando-lhe as anotações apenas tolas. Por exemplo: ela está doida para escrever
sobre a menstruação por puro desabafo, e eu não deixo”199. Ademais, Ângela poderia
ser uma potencial escritora que se derramaria ao escrever Macabéa, pois, ao falar sobre
o estilo de escrita:
195
O que nos permite recuperar o trecho da crônica de Drummond: “– Como diz o outro.../ Que outro? E
desde quando ele se chama Outro? Estranho nome, este, que não identifica, não responsabiliza, não consta
de nenhum registro civil: Outro, nascido em tal data, em tal lugar, do sexo masculino. Por que nunca se
diz: Como se diz a Outra? A outra não diz nada, limita-se a ouvir o Outro, se é que ouve?”
(DRUMMOND, 1979, p. 1413-1415).
196
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 2017, p. 56.
197
MANZO, Lícia. Era uma vez: Eu – a não-ficção na obra de Clarice Lispector. 1997.
198
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 2017, p. 49.
199
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 53.
200
Ibid., p. 59, grifos nossos.
57
201
CIXOUS, Hélène. Extrema fidelidade. 2017, p. 138.
202
O Autor diz: “ela é mais forte do que eu: eu sou produto de um pensamento, ela não é produto: é ela
toda. Ela rompeu meu sistema. Ela é minha ancestral e tão pré-história minha que chega a ser inumana,
embora escreva com falsa ordem. [...] é mais livre do que eu. (LISPECTOR, 1978, p. 148, grifos nossos)
203
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, 50.
58
204
Ibid., p. 126.
205
Ibid., p. 115.
206
Ibid., p. 56, grifos nossos.
207
NASCIMENTO, Evando. Rastros do animal humano – a ficção de Clarice Lispector. 2011.
208
Lembremos que, em certo momento, o Autor fala que “Só uma coisa me liga a Ângela: somos o
gênero humano.” (LISPECTOR, 1978, p. 11.3)
59
gênero. Depois, por meio de sua personagem Ângela, há um devir-animal, já que esta dá
vida e espaço dentro do texto para seu cachorro Ulisses, não o humanizando, mas se
unindo a ele organicamente:
Em seguida, quando Ângela escreve seu livro, o fundo do sopro, ela se objetiva e
subjetiva as “coisas”, os objetos inanimados, um dos grandes motes clariceanos. Ângela
anima o inanimado, ressoando o seu “Relatório da coisa”, e ela não apenas fala pelos
objetos, mas dá voz a eles, animando-os, manifestando-os no texto. Dessa forma, ela
amplia a intertroca entre os sujeitos “humanos” do texto para o mundo não-humano,
dando voz a seu cachorro, Ulisses, e às coisas, sendo que estas são o outro absoluto da
vida humana-animada. Assim, no devir-coisa proposto pelo texto, Ângela quebra mais
uma vez o dualismo sujeito-objeto, porque, para tornar-se-outro, ela precisa se objetivar,
isto é, tornar-se-objeto. Deixar-se tocar e tornar-se-coisa, fazendo contato com a coisa
de modo que “um objeto [ela ou outra coisa] pensa um outro objeto [ela ou outra coisa]
e nossas auras se confundem”210. E, de fato, ela se se escreve como objeto no
fragmento intitulado “Mulher-coisa”:
209
Ibid., p. 63-64.
210
Ibid., p. 120.
60
Ângela se cria ao escrever e, por isso, ela vai se automatizando, perdendo de vez
a tarja preta que tinha sobre os olhos quando criada, ganhando um rosto – uma máscara
– e (se) subjetivando ao (se) objetivar. Assim, podemos pensar que, diferente do que
falamos no começo do capítulo, o texto não é o testemunho do parto de Ângela, mas da
separação de seu corpo-texto do Autor nesse processo de aproximação e distanciamento
que alterna entre proximidade e alheamento. Além de se autonomizar do criador,
Ângela se torna também uma criadora, já que o livro “História das coisas” é sua criação,
sua tentativa de representar na linguagem “um mundo paralelo ao das coisas”212.
Ângela, o sonho do Autor, de nome angelical, escreve e cria para tornar tudo um sonho
acordado que é realidade, e ela vive corpo a corpo com essa realidade.
Tanto Macabéa, no seu final trágico, quanto Ângela, são “estrela de mil pontas”
– isto é, dentro de seu caráter de homo fictus, fragmentadas e deslocadas. Contudo,
enquanto Rodrigo S. M. mata Macabéa no final, matando-se a si mesmo nesse processo.
Em Um sopro de Vida, o Autor morre – pois ele só pode existir enquanto escrever –, e
Ângela passa a se criar na descoberta da sua realidade e do seu futuro e, assim, ela
sobrevive ao reinventar a vida.
E, por fim, o livro termina se abrindo, como o ouroboro que é, tal qual muitos
outros textos clariceanos. Modo de finalizar este que pode ser relacionado a uma
abertura, relativa inclusive à experiência autobiográfica da escritora via escrita, de modo
que o livro seria um “pré-romance ou preâmbulo de um romance que vai se realizar fora
dos limites do texto”213. A paixão segundo G.H. começa e termina com seis travessões;
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres começa com uma vírgula e termina com
dois pontos; A hora da estrela termina com um “sim”, que seria parte do começo da
vida; e Um sopro de vida termina com reticências depois de um pronome relativo que
conectaria uma oração subordinada substantiva predicativa, isto é, algo a mais, assim
como assim como a frase de Macabéa diante da morte: “ – Quanto ao futuro”214. Fim
este que ecoa em Ângela, quando esta diz: “Tenho porque tenho que inventar o meu
211
Ibid., p. 119-120.
212
HOMEM, Maria Lúcia. No limiar do silêncio e da letras: traços da autoria em claricelispector. 2011,
p. 174.
213
PINTO, Cristina Ferreira. “Perto do coração selvagem: romance de formação, romance de
transformação” apud NOLASCO, Edgar C. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura 2001.
214
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos. 2017, p. 109.
61
futuro e inventar o meu caminho”215, e ela, no seu toque nas coisas, inventa essa
realidade-futuro.
Contudo, podemos dizer que, quanto ao futuro, só o leitor é capaz de dizer, este
sujeito que é também quem acha que...
215
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 98.
62
216
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 40.
217
Ibid., p. 79-84.
218
NODARI, Alexandre. “A vida oblíqua”: o hetairismo ontológico segundo G.H. 2015a.
219
Redundante se pensarmos na estrutura sintática da frase, por exemplo na frase (1) da próxima página –
“eu te respiro-me”: o verbo respirar é intransitivo ou transitivo direto (respirar algo), não transitivo direto
e indireto, como se vê nesta frase.
220
Alexandre Nodari (2015b) recupera a palavra “inter-esse” em seu texto Eu, pronome oblíquo para falar
do intercâmbio da posição sujeito na enunciação. É interessante que pensemos na origem da palavra:
“interesse”, de origem latina, se forma a partir de “inter”, que significa “entre”, e “esse”, que é
“ser/estar”, de modo que, etimologicamente falando, interesse significa “estar entre”. Disponível em:
http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/interesse. Acesso: 11 out. 2017.
221
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. 1995.
63
inexistente que fica entre mim e eu”222, um terceiro espaço de intertroca223 de posições,
um inter-esse. Como resultado do ato de obliquar-se na linguagem, podemos recuperar
este trecho de A paixão segundo G.H. no qual a narradora fala que está passando por
uma “metamorfose de mim em mim mesma [...] em que perco tudo o que tinha, e o que
eu tinha era eu”224, que culminará no ato de responder toda vez que alguém falar “eu”
de Lóri, revelando que o tu do “eu” enunciado por outro também é um eu ao se
(a)(e)nunciar225. O dêitico “eu” é uma possibilidade enunciativa, não de quem fala, mas
“do lugar de onde se fala, do mundo onde se fala”226, revelando que não é o “(mundo-
para-um-sujeito)”, mas um “(mundo-de-um sujeito)”227. A obliquação, de acordo com
Alexandre Nodari, é uma experiência que permite multiplicidade e reconhecimento de
um mundo que não o “meu”, no qual o “eu” é Outro. Analisemos as frases a seguir,
ditas por Ângela e Autor, respectivamente, para desmembrarmos a obliquidade do texto:
222
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 1999, p. 21.
223
Ecoando a palavra que Evando Nascimento (2011) recupera de A hora da estrela para falar da
subjetividade que já revela o “movimento” de troca “entre” as posições.
224
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 1999, p. 66.
225
O sujeito se anuncia ao (se) enunciar, constituindo a sua subjetividade na e pela linguagem.
226
NODARI, Alexandre. Eu, pronome oblíquo.2015a, p. 19.
227
Ibid., p. 19.
228
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 40
229
Ibid., p. 31.
64
quarta possibilidade de preenchimento do “eu” para além dos três sujeitos figurados no
esquema da frase (1):
ÂNGELA
Podemos pensar que o comprimento, quando Ângela está falando, seria o dito, o
consciente; a largura seria, como “atrás do pensamento”, o não-dito, o inconsciente; e a
profundidade seria o ato de narrar, de falar tanto do dito, por meio da citação, e do não-
dito, pela escrita. Por fim, no final, a “última palavra”, o resultado, seria a quarta
dimensão: que dimensão seria essa? Que palavra última seria essa?
Na física moderna, a partir da teoria da relatividade de Einstein, o tempo é
descrito como a quarta dimensão considerando sua relação com a espacialidade, e
também a duração e simultaneidade/sobreposição dos tempos236. Tal tempo é relativo a
um ponto de coordenadas, isto é, um ponto do espaço-tempo, e sua duração depende da
percepção das pessoas. Ao considerar o tempo como quarta dimensão, podemos pensar
na temporalidade do texto: escrito no aqui e no agora, no presente que é o passado e o
futuro da escritura. O texto é o ponto de coordenadas do espaço-tempo na leitura. A
leitura seria, portanto, a quarta dimensão, o momento em que o texto é enunciado no
espaço-tempo e, portanto, um tempo relativo237, um espaço-tempo transicional no qual
235
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 25.
236
BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade. 2006.
237
Durante debates entre professor e alunos a respeito de Água viva, em um curso sobre Clarice
Lispector, na UFPR, ficou patente a variação do tempo psicológico da leitura, e mesmo a sua duração,
pois alunos convergiram ao compartilharem a experiência temporal da leitura: houve quem disse que a
leitura era pausada pelo estilo das frases, para tentar compreendê-las, e houve quem disse que leu o livro
“de supetão” para conseguir seguir o fluxo do texto.
238
NODARI, Alexandre. Alterocupar-se. p. 12, grifo no original.
66
239
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987, p. 46-47.
240
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 95.
241
Ibid., p. 28, grifo nosso.
242
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987.
243
Ibid., p. 265.
67
constituem o escrito” 244 –, uma posição-leitor no texto que mostra que o texto demanda
ser lido, mesmo que diga querer esquecer esse sujeito:
Ele deseja esquecer o leitor, embora não consiga, porque o leitor, enquanto
posição ficcional, é o sujeito que possibilita a existência do texto como “possibilidade
de uma dialética”246, configurando-se como uma espécie de dêitico ocupado pelos
leitores singulares, empíricos, cada qual com seu horizonte e expectativas de leitura. O
Autor diz que criou Ângela para salvar a vida de alguém, contudo, ele (se) (a) escreve
para ser lido, pois o livro – e, consequentemente, ele – só ganha existência pelo leitor, a
ponto de se dirigir ao leitor: “Quem és tu que me lês? És o meu segredo ou sou eu o teu
segredo?”247. A escrita existe porque há a leitura (e vice-versa). Escrevemos para que
alguém leia, mesmo que esse alguém seja nosso pseudônimo quadrático – nós mesmos
em outro momento. Pensando a existência do leitor, Blanchot fala que a obra de arte é
sempre original porque não tem começo nem fim – assim como o narrador, sujeito
textual, ou seja, obra de arte clariciana, diz que ele não tem início: “Redondo sem início
e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final”248.
Clarice Lispector, em uma crônica na qual responde o pedido de um leitor do
Jornal do Brasil de que não tire sua intimidade de suas crônicas, duplica no leitor a
figura do escritor, pois, segundo ela:
244
BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: ______. O rumor da língua. 2004, p.64.
245
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 95.
246
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 1987, p. 9.
247
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 81.
248
Ibid., p. 11.
249
LISPECTOR, Clarice. Outra carta”. In: ______. A descoberta do mundo. 1999, p. 78, grifo no original.
68
250
Retirada da crônica, “Lembrar-se do que não existiu”, cujo título também pode ser colocado para a
frase de Nodari. Achamos válido colocar aqui a crônica inteira: “Escrever é tantas vezes lembrar-se do
que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com
um esforço de memória, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e
a lembrança é em carne viva” (LISPECTOR, 1999, p. 386, grifo nosso). Grifamos a última frase para,
assim como o Autor diz que ele começou do médio, “nunca nasci, nunca vivi”, pois nascemos a todo
instante-já, a todo presente como continuação da memória, e se vive – como diz a narradora de Água viva:
“Mesmo que eu diga ‘vivi’ ou ‘viverei’ é presente porque eu os digo já” (LISPECTOR, 1999, p. 18).
251
NODARI, Alexandre. Alterocupar-se, 2017, p. 15.
252
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2. 1996, p. 41.
253
Idem, op. cit., p. 15.
254
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987, p. 196.
255
______. O prazer do texto. 1987.
256
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2. 1996.
257
LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. 1980, p. 25.
69
solilóquio258, porque Autor tece comentários sobre Ângela que não são direcionados a
ela (indo além da estrutura dialogada do texto entre os dois e inserindo um diálogo nas
entrelinhas da cena enunciativa), mas a si mesmo e, considerando a equivocidade do
discurso e a leitura como contraparte da escrita, também ao leitor, que o perspectiva
durante a leitura.
O leitor é esse quarto sujeito que preenche o “eu” da enunciação literária, que
performa o outro e se configura como travessia. Ele é o vértice259 do texto. Tendo a
quarta dimensão em mente, analisemos mais uma sentença que mostra obliquação:
Esse “eu” pode ser preenchido por Ângela, Autor, Clarice, e também pelo leitor.
Este, ao ocupar o “eu” toda vez que aparece, é vós, isto é, os demais, juntando todas as
perspectivas do texto. Ele é o “eu” do “eu é ela” e do “eu te respiro-me”, também sendo
o “ela” e o “te”. Considerando a relação de homofonia entre o pronome pessoal “vós” e
o substantivo “voz”261, podemos dizer que o “eu” é vós e também voz, isto é, abertura
de um espaço de fala – a vez e a voz da enunciação –, assim como o grito, que é usado
para definir o livro pelo narrador na primeira parte262, que está entre a voz humana e o
258
Decidimos justapor monólogo e solilóquio por estarmos tomando os sujeitos como oblíquos, e, por
isso, encavalgados, de modo que vemos a fronteira e a distinção em solilóquio e monólogo interior como
tênue e difusa. Para fins de explicação, podemos recuperar a definição de Massaud Moisés dos termos em
seu Dicionário de termos literários (2004): o monólogo interior se refere ao inconsciente, sem intenção
de organização racional, sendo dividido entre direto e indireto – o direto é estruturado em primeira
pessoa, e o indireto, em terceira –, enquanto que o solilóquio é a manifestação do pensamento coerente e
lógico, ainda que psicológica e não-racional, da personagem, que se comunica com o leitor.
259
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2, 1999, p. 15.
260
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. 1978, p. 164.
261
Podemos dizer que a homofonia é o contrário da heteronímia – que, como aponta Nodari (2017, p. 18),
em francês e inglês pode significar “1) uma palavra com mesma grafia, mas pronúncia e sentido
diferente” –, pois as palavras têm a mesma pronúncia, mas grafia e sentido diferentes. Isto é, “vós” e
“voz” são diferentes na grafia e no sentido, mas iguais na pronúncia, demandando um contexto, quando
oralizadas, para que o interlocutor decida qual o sentido e qual a grafia. Além disso, podemos dizer que o
equívoco sonoro entre vós e voz espelha a equivocidade dos sujeitos envolvidos no texto, a exemplificar
pela relação entre as instâncias leitor e autor, que, embora diferentes, são igualmente ativas e produtoras
no contato com o texto.
262
“É um grito de ave de rapina” (LISPECTOR, 1974, p. 11).
70
silêncio, entre o urro e a palavra articulada. Dessa forma, podemos dizer que o a leitura
é o entre-lugar da voz de muitos.
Ao aproximar o dêitico “eu” da voz, podemos dizer que o livro é um objeto de
equivocidade, pois, como dizem Deleuze e Guattari263, é sempre a mesma voz – aqui,
palavra escrita –, embora sempre diferente. Com isso, podemos recuperar a
consideração de Blanchot de que “ler seria, pois, não escrever de novo o livro, mas fazer
com que o livro se escreva ou seja escrito (...) sem ninguém que o escreva”264,
presentificando-o, já que o texto não existe por si só – o leitor “ativa a interação pré-
estruturada das frases”265. Nenhuma pessoa disse a frase, a voz da frase é a escrita. A
multiplicidade de textos no texto se reúne no leitor, que é, dentro do texto, como
posição fictícia-implícita, “um homem sem história, sem biografia, sem psicologia –
apenas esse alguém que tem reunido num mesmo campo todos os traços que constituem
o escrito”. Sem abandonar lugar extra-textual e sem se confundir com ela, essa posição
é encarnada266, no ato da leitura, pelo leitor de carne e osso, que é um sujeito formado
pela combinação de elementos sócio-históricos e biográficos que luta corpo a corpo com
o texto para atravessá-lo e, nessa luta, obliqua-se, pois a palavra é a queda do ego267.
Daí a existência de diversos textos – cada leitor singular lê um texto.
Para ilustrar o jogo das subjetividades, podemos desenhar um esquema
matrioskal268 para ilustrar as transições da subjetividade em Um sopro de vida (Figura
1). A aproximação dos sujeitos envolvidos no texto com a boneca russa é produtivo
porque, assim como a boneca, um sujeito está dentro do outro e de si, (alter)ocupando(-
se) as posições de sujeito e de objeto ao mesmo tempo:
263
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. 1995.
264
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. 1987, p. 193.
265
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2. 1006, p. 15.
266
Para conversar com a crônica “Encarnação involuntária”, na qual Clarice reporta sua prática de
encarnação na qual ela não sai de seu corpo nem ocupa o corpo alheio, como faz o leitor empírico na
leitura. Para fins de ilustração, citamos seu parágrafo inicial: “Às vezes, quando vejo uma pessoa que
nunca vi, e tenho tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-
la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria autoacusação: ao
nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdoo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar
numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesmo”
(LISPECTOR, 1999, p. 295-96).
267
BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 30.
268
Maria Lúcia Homem (2012) aproxima o livro A hora da estrela da boneca russa, mas não inclui o
leitor. Quando trata de Um sopro de vida, ela aponta para o leitor fictício, mas sem aproximar leitura e
escritura.
71
Assim como as matrioskas são todas iguais mas têm tamanhos diferentes, os
sujeitos envolvidos nas pulsações clariceanas são iguais em sua diferença, pois todos
eles podem ocupar a mesma posição dentro do “eu”, concomitante e
intercambiavelmente. Assim, cada sujeito abre um monólogo-a-∞ em cada posição.
Clarice, enquanto escritora, se desdobra em narrador, Autor e Ângela, e também
inscreve o leitor em seu texto. O narrador é desdobramento de Clarice e se desdobra em
Autor, Ângela e no leitor implícito. Ângela é desdobramento de todos os supracitados e,
na posição de autora de seu livro “História das coisas”, se desdobra no leitor implícito
que a lerá e redobra todos os que se desdobraram nela. Daí o texto como uma
equivocidade matrioskal, como podemos ver na Figura 2:
pela leitura – Clarice Lispector só é Clarice Lispector na interlocução com o leitor, pois
depende desse para existir, assim como esse depende de Clarice para experimentar
outros modos de existência via ego experimental e palavra. Ao ler, o leitor se
despersonaliza para experienciar a multiplicidade subjetiva proposta pelo texto. O leitor
é também o vazio – a sombra do texto – que preenche o interior da menor boneca, pois é
uma posição textual que une das perspectivas de todos os sujeitos envolvidos. Dessa
forma, o leitor ocupa essas duas posições ao se dividir na leitura, enquanto função leitor
(para ecoar a função-autor do Foucault) e como sujeito “real” que contrapõe a “Clarice
empírica” e que realiza a leitura de fato. Muitos dos efeitos do texto se dão a partir do
jogo que ele mobiliza ao entrar em cena entre essas duas posições – um leitor implícito
e um leitor empírico269.
Chegando ao fim da leitura, o leitor desperta – nós despertamos –,
des(alter)ocupa sua posição na matrioska e volta à realidade com “a sensação de
sairmos transformados da leitura, embora nada mude ‘de fato’”270. Por que temos essa
sensação? De acordo com Iser, isso se deve ao fato de que “é o próprio leitor que está
sendo construído”271, de modo que a leitura mostra como o sujeito não é algo dado, mas
construído, dando-nos a oportunidade de nos formularmos a partir da experiência da
palavra e do pensamento dos egos experimentais que habitam e são incorporados no
texto que (nos) escrevemos enquanto lemos. No capítulo dois dissemos que Um sopro
de vida é uma espécie de testemunho da criação de Ângela, que vai, pouco a pouco, se
autonomizando, mas também podemos dizer que o livro é o espelho-testemunho da
(re)criação de nosso mundo e de nós mesmos por meio dos egos experimentais
clariceanos e da própria Clarice.
269
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2. 1996.
270
NODARI, Alexandre. Alterocupar-se. 2017. p. 16.
271
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. v. 2, p. 80.
73
tempo eterno desse monólogo, que se escreve infinitamente já que a cada nova leitura o
monólogo será reiniciado pelo vórtice dos vários sujeitos.
Na perspectiva psicanalítica, explorada a partir das análises de Joana Frias e
Maria Lúcia Homem e com respaldo na “heterogeneidade constitutiva e enunciativa” de
Jaqueline Authier-Revuz, exploramos a constituição deslocada e fragmentária da
psique: consciente e inconsciente, de modo que o Autor seria, dentro de sua lógica, sua
formação em física e com sua forma triangular e reta, o lado apolíneo e consciente,
enquanto Ângela, como sonâmbula, sonhadora, ilógica e com sua forma espiral, seria o
lado dionisíaco e inconsciente. Cada um seria, dessa forma, um representante do polo
do sujeito dividido, incluindo aqui também a divisão de gênero, pois o Autor é
masculino e Ângela é feminina. Além disso, Ângela é não apenas criatura, ou seja,
criada pelo Autor, mas é por ele descrita como seu sonho, seu inconsciente, sua
manifestação no sono e seu reflexo, pois o Autor relata que vira outra fisionomia que
não a sua no espelho, como uma experiência de desrealização e despersonalização que
fez com que a criasse – de forma que a literatura se configura como aquele espelho no
qual olhamos e vemos outra fisionomia refletida que não a nossa, mas uma fisionomia
outra. Contudo, por estarem amalgamados/mesclados, sendo difícil traçar uma fronteira
entre ambos, eles são antitéticos, isto é, Autor é logicamente ilógico e ilogicamente
lógico, e Ângela também o é. São fragmentos de um eu. Também tratamos da hipótese
de que Ângela foi criada pelo Autor para que ele vivesse o seu nascimento e sua morte,
experienciáveis apenas pela vida alheia, pois, como apontou Blanchot, quando falamos
“mato-me”, o “eu” é sempre um outro, como que a água do rio de Heráclito.
Considerando ambos como tendo gênero opostos e a relação entre criador e
criatura, analisamos a relação de poder e de concepção de arte entre os gêneros e vimos
que o Autor, enquanto função textual, não tem, como Deus, poder sobre seu
personagem, pois esta lhe escapa, sendo o mesmo com as palavras do texto, porque o
autor não tem controle sobre o significado dos significantes jogados no espaço literário,
de modo que a tão procurada “intenção do autor” pouco importa. Quem constrói o
sentido das palavras é o leitor, que também constrói o autor, já que este não é anterior
ao texto, mas é construído ao mesmo tempo que escreve e, consequentemente, na
leitura.
A terceira abordagem se refere à criação do sujeito literário e à investigação da
fronteira entre os sujeitos literários envolvidos no texto. Refutamos a proposição de
75
Benedito Nunes acerca de uma relação heteronímica entre Autor, Ângela e Clarice, na
qual esta seria o ortônimo e os dois primeiros seriam heterônimos. A partir da
aproximação da obra clariceana com Fernando Pessoa e da análise de Agamben,
propomos que Clarice é pseudônimo quadrático, pois não ela se separa de seus
personagens, e chega a eles a autoria de seus livros. Por isso, Clarice se coloca como
leitora de sua obra, pois é apenas na posição de leitor que o escritor pode voltar ao texto
– que, vale ressaltar, nunca cessa de ser escrito na(s) leitura(s).
A partir da (con)fusão dos sujeitos na textualidade, ampliamos as análises já
realizadas do livro, seja pela enunciação, psicanálise ou heteronímia, e também pela
temporalidade do texto, e acreditamos que o diferencial de nossa análise foi chamar a
atenção para a “quarta dimensão” presente no texto, a dimensão da leitura e a presença
de um quarto sujeito que adentra a criação literária – o leitor –, de modo que o
monólogo-a-três ou do diálogo-a-um ganham um a-quatro dentro do monólogo-a-∞.
Assim, por via da literatura, o texto de Clarice permitiu que repensássemos a teoria
literária: o escritor empírico só retorna para seu texto como testemunha da escrita, como
sujeito oblíquo, como aquele que já não é o que foi e que nunca alcançará o significado
último daquilo que escreveu, de modo que, assim como escrever “é lembrar-se do que
nunca existiu”, como disse Clarice, ler é “lembrar-se do que nunca se escreveu”, como
reescreve Nodari. Ao ser escrito no aqui e no agora, o livro é escrito na sua leitura, e o
leitor é o sujeito que “amarra”, que une em si todas as perspectivas jogadas no texto, de
forma que multiplica em si a constituição fragmentária de todos os sujeitos que
compõem o texto e, assim, outrando-se através da leitura, obliquando-se ao ler.
Esperamos que o trabalho em questão contribua para a fortuna crítica de Um
sopro de vida, e, considerando este como o “livro definitivo” de Clarice, que consiga
lançar luz sobre toda a obra clariceana, revelando como Clarice lidava com a escrita,
como ela (re)escreveu sua vida-obra por toda a vida, como os sujeitos literários são
constituídos, seja considerando a enunciação, a constituição psicanalítica e a alteridade
e o desdobramento necessários na criação literária. Clarice propõe, via ficção como
exercício, uma nova forma de lidarmos com a subjetividade e com a alteridade que não
apenas pela projeção ou pela empatia e compaixão, mas pelo trânsito nas posições da
enunciação em relação ao outro por meio da literatura.
***
76
Como reflexão final, abro agora um espaço para que eu, autora-escriba dessa
monografia, escreva a minha experiência com Clarice e, portanto, minha grafia-da-vida:
Clarice me inquietou, me mobilizou, me colocou em crise e me desafiou, mas ela
também me ensinou e me salvou, ela me fez ver que não só a escrita é salvação, mas
também sua contraparte, a leitura. A literatura salva ao mostrar que a vida não é uma
coisa amorfa, mas é um significante em constante construção. Aqui, fiz uma leitura do
que Clarice me soprou, da vida que o texto me soprou, e essa vida me mostrou que eu
preciso do outro para descobrir quem sou, para conversar sobre a vida, e para me olhar
no espelho do humano e do animal, do vivo e do neutro. Esse texto é uma equivocidade
das vozes que me perpassaram ao longo do ano, vozes literárias, vozes teóricas, vozes
empíricas e vozes inconscientes. Espero então que minha leitura sopre outros sopros e
que Clarice continue pulsando outras vidas com Ângela Pralini.
77
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