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«Linhas tortas», Gabriel o Pensador

Alguns às vezes me tiram o sono Um dia eu fiz uns raps e achei que tava bom
Mas não me tiram o sonho Me batizei de Pensador e quis fazer um som
Por isso eu amo e declamo, por isso eu canto Ficar famoso e rico nunca foi minha meta
e componho Minha mãe já era isso, eu só queria ser poeta.
Não sou o dono do mundo, mas sou um filho do dono
Do verdadeiro Patrão, do verdadeiro Patrono. Meu pai, um homem sério, um gaúcho de POA.
Formado em medicina, não podia acreditar
Tudo começou na aula de português Ao ver o seu garoto Gabriel
Eu tinha uns cinco anos, ou talvez uns seis Com um fone nos ouvidos, viajando com a caneta no papel.
Comecei a escrever, aprendi a ortografia
Depois as redações, para a nossa alegria. — O que cê tá fazendo? Vai dormir, moleque!
— Ah, pai, peraí, eu só tô fazendo um rap!
Professora dava tema-livre, eu demorava Ninguém sabia bem o que era, mas eu tava viciado naquilo.
Pra escolher um tema, mas depois eu viajava E viciei uma galera!
E nessas viagens os personagens surgiam
Pensavam, sentiam, choravam, sorriam. Até os professores às vezes se contaminam
Copiam minhas letras e textos e disseminam
Aí a minha tia-avó, veja só você Sementes do que eu faço, já não sei se é bom ou mau
Me deu de aniversário uma máquina de escrever Mas sei que muito aluno começa a fazer igual.
Eu me senti um baita jornalista, tchê
Que nem a minha mãe, que trabalhava na TV. Escrevendo poemas, escrevendo redações
Fazendo até uns raps e umas apresentações
Depois, já aos quinze, mas com muita timidez Me lembro dos meus filhos e a saudade é cruel
Fiquei muito sem graça com o que a professora fez Solidão me acompanha de hotel em hotel.
Ela pegou meu texto e leu pra turma inteira ouvir
Até fiquei feliz, mas com vontade de fugir. Casamento acabou, eu perdi na estrada
O amor que ainda tenho é o amor da palavra
Então eu descobri que já nasci com esse problema É falar e cantar, despertar consciências
Eu gosto de escrever, eu gosto de escrever, crer, ver Dediquei a vida a isso e a maior recompensa
Ver, crer, eu gosto de escrever e escrevo até até poema. É servir de referência pra quem pensa parecido
Pra quem tenta se expressar e nunca é ouvido
Refrão É olhar pra minha frente e enxergar um mar de gente
Meu Pai, eu confesso, eu faço prosa e verso E mergulhar no fundo dos seus corações e mentes.
Na feira eu vendo livro, no show eu vendo ingresso
Na loja eu vendo disco, já vendi mais de um milhão É esse o meu mergulho, não é o do Tio Patinhas
Se isso for um crime, quero ir logo pra prisão. [Bis] É esse o meu orgulho, escrever as minhas linhas
— Ih, pensador, isso é grave, hein! Escrevo em linhas tortas, inspirado por alguém
É, vovó dizia que eu já escrevia bem Que me deu uma missão que eu tento cumprir bem.
Tentei me controlar, me ocupar com um exporte
Surf, futebol, mas não era o meu forte.

Gabriel o Pensador, «Linhas tortas», Sem Crise [CD], s.l.,

Independente, 2012 (com supressões).

Cântico negro
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,


Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós


Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,


Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio
GRUPO I

Leia o excerto de uma entrevista do Jornal de Letras à historiadora Isabel de Pina Baleiras. Em caso de necessidade,
consulte as notas apresentadas.

ISABEL PINA BALEIRAS


A RAINHA MÁ DA NOSSA HISTÓRIA
Leonor Teles passaria como a rainha má da nossa História […] Era uma mulher ambiciosa, que foi interveniente
politicamente, tanto em decisões régias, partilhadas com o rei D.  Fernando, como na diplomacia internacional. Reza
a crónica de Fernão Lopes que tinha por amante o Conde Andeiro e que manipulava efetivamente o poder. Se o tinha
ou não, foi o que Isabel de Pina Baleiras procurou averiguar na investigação de uma tese de mestrado que agora sai
5 em livro, Leonor Teles, uma rainha inesperada, mais um volume da coleção Rainhas de Portugal, que a Temas e
Debates/Círculo de Leitores tem vindo a publicar.
JL: Porque escolheu esta rainha tão mal afamada, que passou à História como «a aleivosa 1»?
Isabel de Pina Baleiras: Se calhar por esse lado supostamente maligno. Já no liceu, a Crise de 1383-1385 foi um
período que me entusiasmou bastante. A época medieval, aliás, é aquela de que gosto mais, na História de Portugal.
10 E Leonor Teles, realmente, marcou-me, pela imagem de uma mulher bela, sedutora, de alguma forma perversa.
Sempre me atraíram as mulheres polémicas. Quando tive de escolher o tema da tese de mestrado, interessou-me
saber sobre o poder político desta rainha.
E teve-o?
Fernão Lopes diz que sim e depois praticamente toda a historiografia 2 o vai repetir. Quis ver se outras fontes o
15 confirmaram. E creio que efetivamente foi uma rainha que teve poder político. Participou ao lado do marido,
D. Fernando, em muitas doações conjuntas.
Assinaram conjuntamente muitos diplomas, como deixa claro no seu livro.
O hábito de os reis fazerem diplomas conjuntos com as rainhas consortes 3 não foi uma prática que tivesse
começado com D. Fernando. Vinha de trás. Mas D. Fernando entende que o seu poder deve ser partilhado com a
20 rainha, porque ela tem direito a uma parte do regimento 4 do reino. Como comprovei nos documentos,
nomeadamente nas mercês5 dadas ao alto clero e à nobreza. Aliás, D. Fernando era generoso, o que é referido por
Fernão Lopes e pelo cronista castelhano Pero Lopez de Ayala, que foi contemporâneo desses acontecimentos, tendo
inclusivamente combatido na Batalha de Aljubarrota. E em relação a Leonor Teles, ele tem uma posição muito
imparcial6; não faz, por exemplo, qualquer comentário sobre a existência de um amante. Só Fernão Lopes o diz.
25
Leonor Teles também teve um papel importante na diplomacia?
Nomeadamente na sucessão do reino, que foi sempre tratada por ela nos contratos de casamento da filha,
D. Beatriz. Foram cinco os casamentos planeados, consegui documentação relativa a três deles e, nesses tratados
com Castela, a rainha teve sempre participação e influência.
Por que lhe chamou uma rainha «inesperada»?
30
Porque não correspondia ao padrão que era esperado para uma rainha consorte. Fernão Lopes é claro nesse
aspeto, que, de certa forma, convinha à dinastia de Avis, para quem trabalhava. Quanto mais se denegrisse o reinado
de D. Fernando e de D. Leonor Teles, melhor se aceitaria e mais redentor seria o reinado bastardo e o golpe de
estado que foi o que se passou em 1385, porque a herdeira legítima era D. Beatriz. Mas acredito que Fernão Lopes
traduzia também uma certa mentalidade medieval. De facto, D. Fernando casou com D. Leonor Teles, mas não era
35 isso que se esperava.
Jornal de Letras, Artes e Ideias, 25 de julho de 2012 (com supressões).

Responda aos itens que se seguem, de acordo com as orientações dadas.

1
aleivosa: pérfida; desleal; traiçoeira.
2
historiografia: conjunto de estudos históricos.
3
consorte: esposa de rei, quando este é reinante.
4
regimento: governo.
5
mercê: recompensa; benefício.
6
imparcial: que é isento ao julgar alguém; que julga sem se deixar influenciar.
1. As afirmações apresentadas de (A) a (G) referem-se a Isabel de Pina Baleiras e baseiam-se em informações dadas pelo
texto introdutório e pela entrevista. Escreva a sequência de letras que corresponde à ordem pela qual essas
informações aparecem no texto. Comece a sequência pela letra (E).
(A) Explica que o poder de D. Leonor Teles fica comprovado pelos benefícios que conferia ao alto clero e à nobreza.
(B) Reforça a ideia de generosidade de D. Fernando, citando dois cronistas da época.
(C) Publica a sua tese de mestrado com o título Leonor Teles, uma rainha inesperada.
(D) Atribui grande relevância a esta rainha por esta ter dirigido o processo de sucessão do reino, particularmente na
redação dos contratos de casamento de sua filha.
(E) Admite que «a aleivosa» tinha poder político, partilhando com o seu esposo a ação governativa.
(F) Investiga, na sua tese de mestrado, a existência de um amante de Leonor Teles.
(G) Escolhe dedicar-se a esta rainha por ter ficado marcada pela imagem de mulher polémica que a ela se associa.

2. Para responder a cada item, de 2.1 a 2.5, selecione a opção que permite obter uma afirmação adequada ao sentido do
texto. Escreva o número do item e a letra que identifica a opção escolhida.
2.1 Com a expressão «rainha má» (linha 1) chama-se a atenção para
(A) a forma como a historiadora classifica o carácter de D. Leonor Teles.
(B) a urgência de se aprofundarem os estudos sobre D. Leonor Teles.
(C) a perspetiva dada pela historiografia portuguesa e pela tradição popular acerca de D. Leonor.
(D) a atitude de D. Leonor face aos sucessores de D. Fernando.
2.2 A expressão «Reza a crónica» (linha 2/3) indica que
(A) Fernão Lopes suspeita que D. Leonor era uma rainha manipulativa.
(B) a crónica de Fernão Lopes era de natureza religiosa.
(C) a crónica de Fernão Lopes apresenta como verdadeira a relação amorosa entre D. Leonor Teles e o Conde
Andeiro.
(D) a crónica de Fernão Lopes lista as personalidades históricas com quem Leonor Teles se relacionou.
2.3 Isabel de Pina Baleiras considera a escolha da «rainha tão mal afamada» (linha 7) como seu objeto de estudo como
resultado
(A) do seu fascínio pela imagem de mulheres belas, sedutoras e perversas.
(B) do seu entusiasmo pela crise de 1383-1385.
(C) das suas dúvidas acerca do poder político de D. Leonor Teles.
(D) da ideia da suposta malignidade que D. Leonor Teles teria.
2.4 Com o vocábulo «efetivamente» (linha 15), a historiadora pretende expressar
(A) probabilidade.
(B) certeza.
(C) obrigação.
(D) permissão.
2.5 Pela leitura da entrevista, é possível afirmar que
(A) D. Fernando foi inovador ao fazer diplomas conjuntos com D. Leonor.
(B) D. Fernando considerava que a rainha consorte tinha direito a uma parte do governo do país.
(C) D. Leonor Teles foi beneficiada pelo alto clero e pela nobreza.
(D) a generosidade de D. Fernando apenas se atesta nas crónicas de Fernão Lopes.

GRUPO II

A partir da leitura do texto apresentado, verifica-se que D. Leonor Teles se evidenciou no seu papel de rainha consorte, quer
durante o reinado do seu marido, sendo que D. Fernando apelou à participação ativa da mulher no governo do reino, quer
após a morte deste.
Escreva um texto no qual expresse a sua opinião sobre a igualdade ou as disparidades que existem entre homens e mulheres
na sociedade atual, nomeadamente no mundo profissional, apresentando razões e exemplos ilustrativos que sustentem o
seu ponto de vista.
O seu texto deve ter um mínimo de cento e oitenta e um máximo de duzentas e quarenta palavras.

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