Você está na página 1de 15

EROS E TÂNATUS EM CLUBE DA LUTA: UMA ANÁLISE PSICANALÍTICA DA

OBRA DE CHUCK PALAHNIUK

Por Maria ....

RESUMO

O presente trabalho analisa o livro Clube da Luta, de Chuck Palahniuk, a partir da


abordagem psicanalista de Sigmund Freud. O objetivo é explicar algumas das
motivações dos dois personagens principais da história, “Jack” e Tyler Durden. Para
tanto, dividi o trabalho em três partes. Na primeira, descrevo a trama da narrativa. Na
segunda, reconstruo os fundamentos da teoria psicanalista, acentuando seus pontos de
evolução. Na terceira, apresento uma hipótese sobre o que significa a luta para os
personagens.

INTRODUÇÃO
No livro intitulado Clube da Luta (1996), o escritor estadunidense Chuck
Palahniuk nos apresenta uma intrigante narrativa, para não dizer perturbadora, sobre um
personagem sem nome que tenta evitar que seu amigo maníaco, Tyler Durden, exploda
as bases de um edifício e destrua tanto o edifício quanto o Museu de História Natural da
cidade, seu verdadeiro objetivo.
Por que Tyler quer, simbolicamente, destruir a História? Por que o personagem
sem nome — chamado de Jack pelos amantes do livro/filme1 — é o único capaz de
impedir Tyler de cometer seus atos terroristas? O que, de fato, motivas os personagens?
É possível explicar, por meio da psicanálise freudiana, a relação de amor e ódio que
Jack e Tyler travam ao longo da obra? Estas são questões que o presente trabalho
pretende abordar. Para tal tarefa, é necessário caracterizar, a ambígua vida de Jack,
ponto originador da trama.

1. A TRAMA
Jack é funcionário de uma empresa de seguros de vida, associada a uma grande
montadora de veículos. Sua função é avaliar se sua empresa é responsável ou não pelos
acidentes de transito que ocorrem com seus clientes. Ele viaja por todo os Estados
1
Chamarei o personagem principal não nomeado de Jack, a fim de evitar repetir a todo instante o
“personagem sem nome” isso, o “personagem sem nome” aquilo e bla, bla, bla.
Unidos aplicando uma “formula” onde ocorrem os acidentes, geralmente mortais. É ele
quem diz, com a aplicação da “formula”, se é mais barato à empresa indenizar a família
do cliente morto pelo mal funcionamento mecânico do carro ou se a empresa deve fazer
um recall (recolher o lote de carros com defeitos).
Por conta do seu trabalho, Jack leva uma vida fugaz, preenchida por viagens
semanais, nas quais ele pula de hotel em hotel, firmando “amizades descartáveis” por
onde passa, sem esposas ou filhos para se preocupar. Ele até brinca ao dizer que a cada
vez que ele acorda em uma cidade diferente, sentia-se uma pessoa diferente 2. Está claro
que ele não gosta da vida que leva: “A cada decolagem e descida, quando o avião se
inclina muito para um dos lados, eu rezo por um acidente”3.
Com o seu personagem principal, o autor do Clube da Luta consegue retratar
bem o modo de vida contemporâneo, marcado pelo consumo como forma de vazão da
ansiedade social, pela monotonia, pela falta de criatividade, pela solidão, pela apatia à
condição de vida do outro, pela angústia, pela vida racionalizada e pela impossibilidade
de verdadeira expressão emocional. Jack é o típico homem do final do século XX, cuja
sociedade americana se perde no trabalho para conquistar os produtos mais sofisticados
do mercado, a ponto de o consumo ser a forma preferida de dar significado a vida
morna que levam, sem muitos anseios nem muito sofrimento e alegrias — talvez o
Clube da Luta tenha se tornado um ícone da cultura pop justamente por demonstrar o
rompimento com este tipo de vida.
Para piorar esta existência inexpressiva, Jack passa a ter insônia.
Ele não consegue dormir e suas noites se assemelham a um estado intermediário
entre um sonho e a vigília. “É assim que as coisas funcionam quando se tem insônia.
Tudo está muito longe, é uma cópia da cópia. A insônia o distancia de tudo, você não
consegue tocar em nada e nada consegue tocar em você4”.
Jack procura um médico, a fim de conseguir algum medicamento para dormir.
Este último, no entanto, diz que ele não deve se preocupar, que a insônia era muito
comum e que ela não iria lhe trazer problemas. Notando a relutância de Jack em se
tranquilizar, o médico recomenda que ele vá até os grupos de pessoas que lutam contra a
morte, os grupos de apoio aos cânceres, parasitas sanguíneos e cerebrais, e lá sim Jack
iria se deparar com uma condição preocupante.

2
Palahniuk, 2012, p. 23.
3
Ibidem, 2012, p. 27.
4
Ibidem, p. 21.
Então, Jack segue o conselho do médico e começa a frequentar as reuniões como
uma “penetra”, pois ele não há qualquer doença terminal. Compadecendo-se com a
tragédia alheia, Jack desaba a chorar. Chora tanto quanto como se fosse de fato morrer.
E isso lhe foi libertador.
“Aquilo era liberdade. Perder todas as esperanças era libertador. Se eu
não dissesse nada, as pessoas do grupo sempre supunham o pior e
choravam mais. E chorava mais. Olhe para as estrelas e desapareça
[...] Toda noite eu morria, e toda noite eu nascia. Ressuscitava” 5.

Seu problema de insônia parecia ter sido resolvido, uma vez que ele conseguia a
descarga emocional que sua vida, até então, negava-lhe. Rapidamente, ele torna-se
dependente dos grupos de apoio.
No entanto, algo desagradável acontece. Outra penetra começa a frequentar os
mesmos grupos que ele, Marla Singer, revelando que a farsa que os dois são em meio a
todo aquele sofrimento. Jack havia sido bem sucedido...

“Até está noite. Dois anos de sucesso até esta noite, pois não consigo
chorar com essa mulher me observando. Se não consigo chegar ao
fundo do poço, não posso ser salvo [...] Naquele momento a mentira
dela reflete a minha, e tudo o que consigo ver são as mentiras, bem no
meio de todas as verdades deles”6.

Sem a descarga emocional, Jack volta a ter insônia.


E desta vez pior. É ai que surge Tyler Durden. Numa praia de nudismo que
visitou em uma de suas viagens pelo pais, Jack conhece Tyler, nu, criando a projeção de
uma mão gigante com a sombra de troncos de arvore na areia. Há de se frisar que o
autor menciona que Tyler circulava por aquela praia enquanto Jack dormia7. Ele sente a
necessidade de conhecer Tyler: “Tinha que saber o que Tyler estava fazendo enquanto
eu dormia. Se eu podia acordar em um lugar diferente em uma hora diferente, será que
podia acordar como uma pessoa diferente?”8.
Quem é Tyler Durden?

5
p. 23.
6
P. 23.
7
Informação ambígua propositalmente, uma vez que e dito ao leitor que Jack estava novamente com
insônia. Chuck Palahniuk, nesta obra, foi mestre em nos dar pistas que, numa primeira leitura, não são
captadas pelos leitores desatentos.
8
P. 36.
“Tyler é garçom em um restaurante de um hotel no centro e também é
projecionista do sindicato dos operadores de projetor de cinema. Não sei dizer há quanto
tempo Tyler esteva trabalhando naquelas noite que eu não consigo dormir” 9. No meio
tempo em que Jack promete a si mesmo confrontar Marla e dizer o quanto ele precisa
dos grupos de apoio, ocorre algo inesperado: durante uma de suas viagens, o
apartamento de Jack explode. Ele perde todos os seus bens.
Não sabendo bem o que fazer e sem seus pertences pessoais de viagem (a mala
de Jack é barrada no aeroporto), ele recorre a Tyler. Em um bar, Jack pede para ficar na
casa dele até a seguradora lhe devolver os moveis e a polícia investigar o que houve
com o apartamento. Tyler concorda, sem problemas. No entanto, ele pede algo em
troca:
“Quero que me dê um soco o mais forte que conseguir”.
Os dois lutam no estacionamento do bar, sozinhos sem ninguém ver. Por incrível
que pareça, a brincadeira lhes deu uma “sensação de poder”, de confiança, já que ambos
nunca haviam lutado e não sabiam do que eram capazes.
Jack começa a morar na espelunca que era a casa de Tyler, um lugar sem luz
elétrica, com goteiras e fios soltos por todos os lados. Uma casa que reflete o caráter do
dono: desprezo por luxos, confortos e tudo aquilo que a sociedade valoriza. Tyler vive
como um anarquista, um estoico moderno. Menospreza a política, o culto pelos astros
da música e do cinema, o conhecimento, o status quo e os anseios, próprios de sua
geração, de se tonar um homem bem-sucedido. Mas principalmente, Tyler é um grande
ideólogo anticapitalismo. Para ele, a redução do homem a mero consumidor era a
intenção projeto civilizatório americano10.
A esta altura da narrativa, Jack já nem se lembra mais dos grupos de apoios nem
de Marla Singer. Adaptando ao estilo de vida de Tyler, ele desqualifica seu antigo modo
de vida:

“Você compra móveis. E pensa, este é o último sofá que vou precisa
na vida. Você compra o sofá e fica satisfeito durante uns dois anos
porque, aconteça o que acontecer, ao menos a parte de ter um sofá já
foi resolvida. Depois precisa do aparelho de jantar certo. Depois da
cama perfeita. De cortinas. E do tapete. Então você fica preso em seu
belo ninho e as coisas que costumavam ser suas agora mandam em
você”11.

9
P. 29.
10
P. 50.
11
P. 50 (itálico do autor).
Tyler figura como o grande salvador de Jack. Este reconhece que precisava
quebra com o estilo de vida regrado demais, confortável demais e instintiva de menos.
“Naquela época a minha vida parecia completa demais, e talvez tenhamos que quebrar
tudo para construir algo melhor em nós mesmos”12.
Dois fatos inusitados surgem na narrativa: Jack apreende a fazer sabão com
Tyler e, para o desgosto de Jack, Tyler passa a se relacionar com Marla.
Os problemas com insônia aparentam desaparecem novamente. Mas isso se deve
as lutas clandestinas noturnas que os dois passam a organizar em bares e boates da
cidade. “Depois de uma noite o clube da luta, tudo que existe no mundo real passa a ter
menos importância”13. O clube da luta atraiu muitos homens, todas na mesma situação
que Jack, homens que não sabiam muito bem o que fazer consigo mesmo e que não
queriam morrer sem nenhuma cicatriz. Onde quer que ele vá, sempre encontra homens
com hematomas e com os olhos roxos que lhe cumprimentam com um aceno de cabeça.
O clube da luta se torna num estilo de vida, um modelo, no qual todos os
membros cultuam os ideais de Tyler. “Apenas depois de perder tudo é que você está
livre para fazer qualquer coisa — Tyler diz”14.
As lutas clandestinas logo se tornam algo maior: o projeto de desordem e
destruição, cujo propósito é sabotar a indústria e dar lições às pessoas satisfeitas com o
nada que a vida contemporânea lhes dava. A espelunca da Rua Paper Street, o endereço
onde os dois moravam, torna-se uma concentração de homens treinados e devotos aos
ideais de Tyler.
A princípio, o projeto de desordem e destruição realizava pequenos gestões de
rebeldia, como urinar na sopa das elites, colocar trechos de pornografia em filmes
infantis e quebrar perfumes caros na casa de anfitriões burgueses. Entretanto, o clube da
luta começa a se espalhar por todo os EUA e o projeto começa a organizar atos
terroristas mais radicais, como destruir monumentos, atear fogo em centros comerciais.
Tyler roda o pais administrando as várias células e Jack perde o controle do clube.
Já no final do livro, ele começa a perseguir Tyler, a fim de impedir que o projeto
de desordem e destruição desabe o edifício Parker-Morris em cima do Museu de
História Natural, sem encontra-lo em lugar algum.
É aí que o leitor é nocauteado: Jack descobre que ele é Tyler Durden.
12
P. 62.
13
P. 57.
14
P. 84.
Ou seja, Tyler é uma criação sua, um amigo imaginário que somente ele vê. Fora
ele mesmo quem destruiu seu apartamento com os conhecimentos sobre a produção de
sabão e bombas caseiros, adquiridos durante suas noites de insônia.
No terraço do edifício prestes a explodir, membros do projeto de desordem e
destruição trazem Marla Singer até ali, a pedido de Tyler, enquanto Jack “mata
simbolicamente” Tyler com um tiro na própria bochecha.

2. A INSÔNIA COMO SINTOMA: JACK, O NEURÔTICO.

A mola propulsora da trama de o Clube da Luta é, sem dúvida, a insônia de Jack.


Resultado da vida regrada, sem muitas emoções nem expectativas, a insônia aparece
como um elemento que impossibilita Jack de continuar levando a vida que levava. Se
não fosse a insônia, não haveria Marla, nem Tyler, nem clube da luta, nem projeto de
desordem e destruição. Deste modo poderíamos interpretá-la como um sintoma.
Conforme o pai da psicanálise, Sigmund Freud, um sintoma é um indicativo
fisiológico de que o aparato psíquico, responsável por dirigir as atividades do sujeito,
não está bem15. Quer dizer que, através do sintoma, o corpo do sujeito expressa que o
conjunto orgânico está desequilibrado, que algo precisa ser resolvido.
Mas sintoma de quê, afinal?
Na minha interpretação, de que Jack estava desenvolvendo um comportamento
neurótico. Ou melhor dizendo, a neurose era a resposta imediata para o tipo de vida
monótona, regrada, inexpressiva que ele levava.
Freud teve vasta experiência no tratamento de histéricos e neuróticos. Aliás, a
histeria é uma forma de neurose. Gostava do trabalho como pesquisador laboratorial em
Viena, em meados de 188116. No início de sua carreira médica, interessou-se pela
neuropatologia, o estudo fisiológico do cérebro. Mas posteriormente, começou a
investigar o funcionamento da mente, o modo de sua configuração. “Segundo Freud, era
necessário encontrar e conseguir tornar compreensível a relação que existia entre
determinadas perturbações do corpo e da mente”17.

15
MARTÍ, 2015, p. 93.
16
Ibidem, p. 27.
17
P. 30.
Segundo Martí18, Freud descobriu, através da própria experiência como
residente, que o fator originador das crises histéricas e neuróticas de seus pacientes eram
experiência passadas mal assimilados pelo indivíduo. Os pacientes permaneciam
fortemente ligados a um acontecimento doloroso do passado.
Sua relação com esse “fato traumático” era tão intensa e emotiva que lhes era
impossível livrar-se dele e enfrentar o presente. Com frequência, a lembrança podia
chegar a ser tão angustiante que a pessoa não tinha outra opção se não reprimi-la e
sepulta-la nas profundezas de sua mente. Contudo, essa “lembrança desterrada
permanecia escondida na psique, severamente controlada por uma misteriosa fora que a
obrigava a permanecer na ‘inconsciência’. Essa luta interna, travada na própria mente
dos doentes de histeria, exteriorizava-se fisicamente...”19.
Vale dizer que Freud foi fortemente influenciado pelo médico vienense Josef
Breuer e com o eminente parisiense Jean-Martin Charcot, com quem Freud teve a
oportunidade de estudar.
Desta forma, a psicanalise surgir como uma forma de tratamento de neuróticos
desenvolvido por Freud para, posteriormente, tornar-se uma teoria filosófica sobre o
homem e sobre a cultura. No entanto, neste primeiro momento, a Freud procurava
explicar esse conflito interno travado na psique dos pacientes. A psicanálise entendia a
histeria como uma desordem nervosa e não fingimento, como até então era muito
encarada pela comunidade médica20.
Parecia haver duas instâncias conflituosas que regiam a subjetividade, não
apenas dos neuróticos, mas de todo e qualquer indivíduo. Uma, o eu consciência, o lado
racional, aclamado na tradição filosófica ocidental. E outra, uma instância
desconhecida, obscura, na qual estas lembranças traumáticas eram escondidas. Em
1900, Freud lançou a obra que marca o início da psicanálise, A Interpretação dos
Sonhos, na qual teoriza sobre esta instancia ainda desconhecida, o inconsciente e sobre
sua relação com o eu consciente. A partir da análise do conteúdo não declarado dos
sonhos dos pacientes, Freud percebeu que os sonhos eram expressões imediatas do
inconsciente.
Havia, desta forma, o conteúdo manifesto (conjunto de imagens, cenas ou
pessoas que todos conseguem recordar, ao acordar, com alguma clareza) e o conteúdo
latente (aquilo que não era expresso, não se manifestava diretamente, mas estava ali).
18
Ibidem, p. 44.
19
P.44.
20
P. 43.
Em todas as análises psíquicas dos pacientes, Freud percebia que havia uma constante:
os sonhos eram realizações disfarçadas de desejos não conscientes21.
Em síntese, com base nesta ideia, Freud formulou uma primeira explicação
possível para o funcionamento do aparato psíquico do indivíduo, a chamada primeira
tópica (topos, em grego, significa lugar), cujo objetivo era delimitar as principais
“regiões” da mente. Notou que havia instancia consciente, a inconsciente — ligada
fortemente ao lado volitivo do humano, aos desejos, anseios e temores — e uma pré-
consciente, caracterizada pela “censura” de conteúdos, isto é, um mecanismo que barra
a expressão latente de conteúdos guardados no inconsciente do sujeito, como os
traumas.
Portanto, o inconsciente, a grande novidade da psicanálise, postulava que havia
uma instancia no homem que lhe defende do sofrimento que seria ter os conteúdos
traumáticos e os “desejos autênticos” inconfessos todos presentes ao consciente. Lá
estavam armazenadas um misto de experiências, lembranças e desejos reprimidos,
desconcertantes para o próprio sujeito. Tais experiência eram sepultadas no inconsciente
“com a finalidade de não ferirem ainda mais a psique 22”, pois a palavra “trauma”, em
sua origem grega, quer dizer “ferida”. Aparato psíquico da primeira tópica tríplice23.
O homem já não era uma unidade, como o era à tradição filosófica, mas triplo.
Já nesta época, Freud percebia que os conflitos internos dos neuróticos estavam
ligados a traumas na fase infantil, geralmente de ordem sexual24. Ele estava convicto de
que, uma vez esclarecida a luta e dada a conhecer ao paciente, o psicanalista poderia
cessar as desconcertantes patologias psíquicas. Freud considerava que a natureza
humana obedecia à impulsos de ordem sexual, mas que estas, conforme o indivíduo era
civilizado, expressavam-se de forma mascarada, uma vez que a sociedade julga que a
expressão livre dos desejos sexuais dos indivíduos tornariam a vida em comum
insustentável25.
(Voltaremos a este ponto no próximo tópico)
O desejo, o Eros, tal como Platão o entendia, fazia parte significativa da psique
humana26. Mas no entender humano, a sexualidade não era uma pulsão própria dos

21
P. 49.
22
P. 66.
23
P. 65.
24
P. 45.
25
P. 101-103.
26
Em se Viagem às profundezas do Eu, Marc P. Marti conjectura que Freud, sem saber, resgata a
concepção de alma platônica tripartida: a razão, o irracional e o Eros (desejo).
jovens-adultos, mas ela se expressava já no bebe 27. Por “erótico” ou “sexual”, Freud
entendia algo bem mais amplo que o prazer genital, mas uma inclinação humana a
desejar o prazer, a buscar o gozo de todas as formas. Assim, para além da simples
satisfação fisiológica mais imediata, é erótico o prazer que o bebe sente ao sugar o peito
da mãe e as sensações que a criança obtém com o contato físico com a mãe. Com Freud,
a infância perde o caráter imaculado de inocência e adquire outra conotação.
Para explicar como ocorre a “formatação” da mentalidade infantil e a origem de
uma série de transtornos mentais, Freud desenvolve a teoria do “complexo de Édipo”,
inspirado pelo pela trágica de Sófocles. Para o psicanalista, todos, sem exceção,
passavam pela saga edípica, a qual postula, a grosso modo, que o primeiro objeto de
desejo erótico do bebe é a mãe, figura que representa a satisfação destes e que o
primeiro objeto de ódio era o pai, representante do impedimento da realização destes
desejos infantis, pois ele surge como alguém que afasta o objeto de desejo da criança28.
O pai é a figura castradora da criança, no sentido de mostrar a ela que nem todos
os seus anseios serão atendidos. Todos passam por isso e a maioria supera isso. Aqueles
que não superam o afastamento da figura da mãe podem apresentar, na forma de
sintoma, algum distúrbio neurótico na vida adulta. Como afirma Marc. P. Martí, se tudo
ocorrer favorável à criança, a única sequela que o complexo de Édipo (ou o de Electra,
para as meninas) deixará será o superego.
Para o Freud maduro, dos anos de 1920, o primeiro modelo explicativo
precisava ser aperfeiçoado. Era necessário melhor rigor conceitual para corrigir as
imperfeições da primeira tópica. Portanto, o psicanalista formula uma segunda tópica,
cujo modelo postula que o aparato psíquico é formado por três instâncias:
 o “id”, coincidindo em muitos pontos com o inconsciente, é a
instancia que a criança já nasce com, é aquilo que tendência o
humano a busca pela realização do desejos; nele se concentra a
“libido”, uma energia de caráter sexual, representativa do impulso
mais próprio do ser humano de se manter vivo, a libido é o pulsão de
vida; é regido pelo princípio de prazer29;

27
P.79.
28
P. 93.
29
Freud explica a sensação de prazer por meios psicofisiológicos, um tanto quanto materialistas: o prazer
é sentido quando há a descarga de energia psíquica acumulada, a energia que literalmente anima o
homem, que o impele à ação. O desprazer seria justamente o oposto, a impossibilidade de descarga de
energia psíquica (Ibidem, p. 72).
 o “superego”, a disposição moral do sujeito, formado através do
constrangimento dos desejos impróprios do id, é regido pelo o
princípio do dever; esta instancia é formada ao logo das vivencias da
criança. Na obra Mal-estar na Civilização, o psicanalista investiga as
origens sociais desta estrutura psíquica do sujeito.
 o “ego”, o âmbito que o homem apresenta aos demais, resultante do
conflito entre id e superego (entre a expressão erótica e seu
mecanismo repressor), seu principal objetivo é a preservação, o eu
luta constantemente para conservar sua integridade contra as forças
do id; o ego também é formado conforme as vivencias da criança; é o
princípio de realidade30.

A grande diferença da segunda para a primeira tópica se deve ao caráter


dinâmico do “ego” ou o ”eu” de se mover ora para o consciente, ora para o
inconsciente31.

3. A LUTA COMO SUBLIMAÇÃO


Se tratando da origem da neurose de Jack, o personagem principal de o Clube da
Luta, ou melhor, da sua “psicose” — algo bem mais grave, pois sua perturbação mental
o leva a “alucinar” constantemente, a agir como uma outra personalidade —, podemos
especular se a criação do amigo imaginário, Tyler Durden, não se deve ao conflito
edípico mal resolvido. Jack tanto reluta em aceitar mulheres em sua vida, como fica
expresso quando diz: “Sou um garoto de trinta anos e fico pensando se outra mulher é
mesmo a resposta de que preciso” 32 e quanto rejeita seu pai, quando diz: “Talvez não
precisamos de um pai para sermos completos”33.
Jack é civilizado, muito civilizado, alguém para quem a ideia de ainda ter a mãe
como objeto de desejo erótico (satisfação sensível, como diz Freud) seria grotesco para
si mesmo, de modo que sua instancia moral (seu superego) tenha que reprimir tais
desejos do próprio eu. Ou seja, pensando psicanaliticamente, podemos dizer os desejos
mais íntimos de Jack será a posse, a proximidade, a relação com seu primeiro objeto
30

31
P. 73.
32
Palahniuk, 2012, p. 60
33
Ibidem, p. 63.
erótico: a mãe. Como propõe Freud, uma vez que os sonhos são as veredas para o
inconsciente, o conteúdo latente (não manifesto) dos sonhos de Jack será a relação com
a mãe. No entanto, em seu sonambulismo alucinatório, Jack conhece Tyler.
Tyler não seria uma representação masculina da mãe?
Tyler não seria a transfiguração socialmente aceita do seu objeto de desejos
eróticos?
Isto é, uma vez que o mecanismo de censura impossibilita a expressão direta dos
desejos, não seria ele responsável por “distorcer”, tal como nos sonhos, o verdadeiro
conteúdo? Não é estranho Jack criar um “amigo imaginário” que justamente destruiu
seu apartamento e, de certo modo, ofereceu abrigo, como uma mãe que acolhe o filho?
Infelizmente, nem o livro nem o filme nos dão margem para levar a diante tal hipótese.
Nada nos é dito sobre os pais de Jack.
Seja como for, Jack encontra em Tyler tudo aquilo que ele nunca foi: forte,
independente, insensível a dor, aventureiro, desordeiro, alguém que não segue o status
quo, um transgressor da ordem, um líder inato.
Tyler é seu oposto, seu “alterego”, a imagem melhorada de si mesmo, cuja
criação decorre de um fenômeno psicopatológico próprio de alguém desesperado em
tentar socorrer a si mesmo, através da criação de um outro.
Mas e o clube da luta? O que ele representava para Jack? Por que o personagem
queria uma dose de violência em sua vida?
Em vários momentos do livro, Jack diz que não queria morrer sem ter algumas
cicatrizes. Tudo o que ele queria era se machucar, lutar corpo a corpo contra outro
homem. A luta, em o Clube da Luta, equivale, na teoria psicanalítica de Freud, a uma
“atividade sublimatória”. Ou seja, Jack não encontrava prazer em sua vida rotineira,
pois não encontrava formas de descarregar sua energia psíquica ou libidinal. Sua vida
era, portanto, desprazerosa.
Mas o que é sublimação? Segundo Freud34, uma vez que a livre expressão do
desejo do sujeito poderia causar conflitos nas civilizações primitivas, foi necessário que
esse energia libidinal própria do homem fosse “canalizada” para meios de expressão
socialmente aceitas. A intenção era evitar que os impulsos mais primitivos do homem
colocassem em risco a coesão do grupo35. A atividade sublimatória é um “prazer

34
Martí, 2015, p. 120.
35
Ibidem, p. 105
substituto”, algo cujo sujeito pode descarregar sua energia de ordem sexual. Conforme o
psicanalista, a própria civilização tem origem neste “desvio” de expressão36.
Civilização é sinônimo de repressão dos instintos.
Desta forma, a arte, a religião, o trabalho, a investigação intelectual, o esporte
são meios de sublimação. Freud acreditava que a sexualidade, e a consequente
sublimação, era o elemento chave para explicar o comportamento geral do homem 37. E
no caso do livro em questão, Jack encontra na luta um meio de descarregar tal energia
libidinal. Não só para Jack, a luta é prazerosa para os homens, porque ela é uma
situação em que é permitido mostrar o lado violento, cruel, agressivo, bestial que a
civilização tanto preza em reprimir. Por este motivo as lutas clandestinas se espalham
por todo os EUA.
A luta não é um simples esporte. Um hobby. Ela se torna um estilo de vida, algo
que dá “gravidade” à vida, como expressa Jack: “Você não se sente tão vivo em nenhum
outro lugar do jeito que se sente no clube da luta. Quando é você e outro cara sob aquela
única luz no meio e todos os outros assistindo38”.
Vale a pena ressaltar que a primeira forma de sublimação de Jack é o choro39.
Ele se torna viciado em grupos de apoios porque lá ele consegue descarga emocional, e
assim, sente-se aliviado — a ponto de conseguir dormir tranquilamente. Mas com o
surgimento de um agente “castrador”, Marla Singer, Jack se vê obrigado a encontrar
ume meio de sublimação em que ele não seja frustrado novamente: a luta40.
No entanto, de início, o personagem luta simbolicamente consigo mesmo. Sua
relutância em dar um soco em Tyler é, na verdade, hesitação em dar um soco em si
mesmo. É como se parte dele, nesta primeira luta, quisesse....aniquilar a outra, como se
existisse em si um impulso de...autodestruição. Como evidente no final do livro, Tyler,
seu alterego, tenta tomar as rédeas da vida de Jack, se apropriar do corpo e mente.
Freud explica a isso.
Para o psicanalista, toda expressão erótica (libidinal) esta imediatamente ligado a
uma outra pulsão, a pulsão de morte (ou “tânatos”), um impulso “que se dirige em
sentido contrário ao impulso de sexual, isto é, de regresso à inatividade própria da vida
36
P. 106.
37
P. 77.
38
Palahniuk, 2012, p. 60.
39
Um livro que giraria apenas em torno do choro, um Clube do Choro, não instigaria tanto o público. No
entanto, este é um elemento possui função importância na narrativa.
40
É quase como se seu subconsciente entendesse, a partir desta experiência frustrante com Marla, que
mulheres são impedem a realização do seu desejo; logo ele precisa descobrir uma forma de descarga
libidinal onde não há mulheres: a luta.
inorgânica”41. São tendências à agressividade e à destruição do próprio conjunto
fisiológico, bastante perceptíveis em comportamentos extremos como o sadismo ou o
masoquismo ou em sentimentos bastante cotidianos, como a culpa ou a melancolia42.
Clube da Luta sugere, a todo momento, que a vida pode ser significada através
de uma aproximação com a morte. Marla, no capitulo quatro, revela que costumava
trabalhar em uma funerária para poder se sentir bem consigo mesmo. Ela queria
experiências de morte reais. Ela queria a dramatização de ter que se despedir da vida
enquanto um câncer a destrói por completo. E justamente a isso ela encontrava nos
grupos de apoios.
Jack faz uma espécie de “pacto” com Tyler, cuja promessa se dá no
comprometimento da sua vida posterior não à conquista de dinheiro, aos bens materiais
e ao conhecimento, mas comprometimento com o autoaniquilamento. “[...] Deveria
estar me afastando do autoaperfeicoamento e correndo em direção ao desastre”43.
O pacto é selado através de um beijo na mão de Jack. O icônico “beijo de
Tyler”, uma cicatriz em formato de beijo nas costas da mão, na verdade é uma
queimadura química, decorrente da reação da saliva dos lábios de Tyler com a soda
cáustica usada para fazer sabão. Há ai uma ambiguidade. Ao mesmo tempo em que
Tyler incita Jack a atingir o “fundo do poço”, a descobrir na dor sua melhor aliada, o
personagem principal sedento por fugir do pacto, afirma que aquele é o melhor
momento da sua vida44. A experiência da dor auto-infligida é o ápice da psicose de
Jack45.
Ainda sobre a participação da temática da morte e da dor em Clube da Luta,
poderíamos citar o treinamento que Tyler desenvolve para os “macacos espaciais”. O
lema que estes homens em treinamento repetem sem parar é: “O desastre é uma parte
natural da minha evolução — Tyler sussurrou — rumo à tragédia e à dissolução” 46 e
ainda “o libertador que destruir minha propriedade estará lutando para salvar meu
espirito”47. Os macacos espaciais encontram diversão no vandalismo.
E o que dizer da história por trás da fabricação de sabão contada por Tyler?
Segundo ele, o sabão é, literalmente, fruto do sacrifício, uma vez que nos primórdios ele

41
Martí, 2015, p. 70.
42
Ibidem, p. 71.
43
Ibidem, p. 83.
44
P. 89.
45
P. 91.
46
p. 136.
47
p.137
era feito através dos restos mortais que sobravam das piras de sacrifício das sociedades
antigas. E o que dizer sobre a pretensão maior de Tyler, derrubar um prédio e um Museu
de História com bombas caseiras? Por que destruir, de modo simbólico, a história?
Violência, Violência e mais Violência.
Portanto, na obra em questão, a luta é expressão tanto da pulsão de eros
(erótico, que busca o prazer) quanto da pulsão de morte (tânatos, que busca exteriorizar
a força por meio da violência).

4. CONCLUSÃO
Jack é um personagem que representa bem o conflito pulsional inconsciente
teorizado por Sigmund Freud. Serve como modelo explicativo de como as neuroses e
psicoses tem sua origem na sexualidade infantil, mais especificamente, no complexo de
Édipo.
Freud, sem dúvida, mudou o paradigma antropológico e filosófico sob o qual o
homem era pensado na tradição ocidental. A psicanálise evoluiu de método terapêutico
de tratamento de neuróticos para uma teoria filosófica geral sobre o homem, a moral e a
civilização.
Desta forma, Freud representou a terceira afronta ao narcisismo do homem.
Desde que o homem é homem, sempre acreditou ser, dentre as existentes, a criatura
mais privilegiada. Copérnico, por meio de seus estudos, deslocou o homem do centro do
cosmos. A Terra passou a ser apenas um pontinho no imenso universo. Mas o homem
acreditava ser dono indiscutível do seu próprio habitat. Com Charles Darwin, o homem
já não é mais um animal privilegiado, mas apenas mais um descendente de espécies
primitivas. Destruídas as certezas acerca do mundo exterior, restava ainda o interior.
Freud foi responsável por demonstrar que o homem não é senhor da sua própria “casa”.
Com a descoberta do inconsciente e do caráter sexual da maioria dos comportamentos
do homem, seu domínio sob si mesmo é aparente e superficial.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

MARTÍ, Marc Pepiol. Freud — Viagem às profundezas do eu. São Paulo: Editora
Salvat, 2015.
PALAHNIUK, Chuck. Clube da Luta. São Paulo: Leya, 2012.

Você também pode gostar