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História da Filosofia

Segundo volume
Nicola A bbagnano

DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME II

TRADUÇÃO DE: ANTÓNIO BORGES COELHO

CAPA DE: J., C.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES ,@@0sé Falcão, 57 - Porto

EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 1969

TÍTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Cop3right by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL


PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 c@E. - Lisboa

XIII

A ESCOLA PERIPATÉTICA

§ 86. TEOFRASTO

Assim como a velha Academia continua a última fase do ensinamento


platónico, também A escola peripatética apresenta as características do
último período da actividade de Aristóteles, dedicado principalmente à
organização do trabalho científico e a investigações particulares.

à morte de Aristóteles, sucedeu ao mestre na direcção da escola


Teofrasto de Eresso, em Lesbos que a dirigiu até à sua morte, ocorrida
entre 288 e 286 a.C. A sua actividade científica orientou-se sobretudo
para o campo da Botânica. Conservaram-se duas obras: História das
Plantas e As Causas das Plantas, que fizeram dele o mestre daquela
disciplina durante toda a Antiguidade e até ao final da Idade Média. Foi
também autor das Opiniões Físicas, uma espécie de história das doutrinas
físicas de Tales a Platão e a Xenócrates, da qual nos restam alguns
fragmentos. Também se conservou um escrito moral, Os caracteres.

Teofrasto formulou numerosas críticas a pontos concretos da doutrina


aristotélica, mas manteve-se fiel aos ensinamentos fundamentais do
mestre. Contra a doutrina do intelecto activo objectou que são
incompatíveis com a função daquele intelecto o esquecimento e o erro.
Contra o universal finalismo das coisas, professado por Aristóteles,
notou que, na natureza, muitas coisas não obedecem à tendência para o
fim e, se esta tendência é própria dos animais, não se revela nos seres
inanimados que são os mais numerosos na natureza. Em compensação defende
a doutrina aristotélica da, eternidade do mundo contra as objecções que
lhe vinham sendo feitas.
Na obra Os caracteres, que provavelmente não nos chegou na sua forma
original mas numa redacção retocada, descreve com uma certa- argúcia
trinta tipos de caracteres morais (o importuno, o vaidoso, o
descontente, o fanfarrão, etc.) Pode dizer-se que Teofrasto aplicou à
vida moral, nesta obra, o mesmo método descritivo empregado por ele no
estudo da Botânica.

§ 87. OUTROS DISCíPULOS DE ARISTóTELES

Ao lado de Teofrasto, o mais importante dos discípulo imediatos de


Aristóteles é Eudemo de Rodes, autor de numerosos escritos de história
da ciência. Eudemo é designado como "o mais fiel"> dos discípulos de
Aristóteles. Foi o editor da obra moral de Aristóteles que é designada
precisamente pelo seu nome (Ética Eudemia) e que alguns consideram como
obra sua.

Aristóxeno, de Tarento retomou a doutrina pitagórica da alma como


harmonia, sustentada por Símias no Fédon platónico. As suas simpatias
pelo pitagorismo manifestam-se também no interesse que

sentiu pela música, à qual dedicou uma obra intitulada Harmatúa, de que
nos restam fragmentos. Foi também autor de biografias de filósofos, em
particular de Pitágoras e de Platão.

Dicearco de Messina afirmou, em oposição a Aristóteles e a Teofrasto, ia


superioridade da vida prática sobre a vida teórica. Na sua obra, Vida da
Grécia, de que nos restam poucos fragmentos, delineou uma história da
civilização grega. , No Tripolítico sustentou que a melhor constituição
é uma mescla de monarquia, aristocracia e democracia como a que se havia
desenvolvido em Esparta.

§ 88. ESTRATÃO

A Teofrasto sucedeu na direcção da escola Estratão de Lâmpsaco, que


a exerceu durante dezoito anos. O sentido da sua investigação é indicado
pelo apodo de "o físico".

De facto procurou conciliar Aristóteles e Demócrito. De Demócrito tomou


a doutrina dos átomos e do espaço vazio; mas, diferentemente de
Demócrito e conformemente a Aristóteles, considerou que o espaço vazio
não se estende até ao infinito, pira lá dos confins do mundo, mas apenas
no interior deste entire os átomos. Alé m disso, segundo Estratão, os
corpúsculos são dotados de certas qualidades, especialmente de calor e
de frio.

Na sua doutrina sobre a ordem e a constituição do mundo, Estratão


aproximava-se muito mais de Demócrito do que de Aristóteles. Não se
servia da divindade para explicar o nascimento do mundo e recorria à
necessidade da natureza ou pelo menos identificava com ela a acção de
Deus. Estratão afirmou energicamente a unidade da alma. Por causa desta
unidade não é possível uma separação nítida entre sensação e pensamento.
" Sem o pensa-

mento -dizia ele - não há sensação." Mas, por outro lado, tanto o
pensamento como a sensação não são mais que movimento e deste modo
voltam a entrar no mecanismo geral da natureza.
Depois de Estratão, a escola peripatética continuou o seu trabalho
através de numerosos representantes dos quais nos restam escassas
notícias e fragmentos. Mas estes dedicaram-se todos a investigações
naturalistas particulares e assim não trouxeram contributos relevantes à
ulterior elaboração da filosofia aristotélica.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 86. Para os escritos da ~Ia aristotélica em geral cfr. a colectânea


Die Schule des Aristoteles, Texte und Kommentar, editada por Wehrli em
BasEcia-

Fontes para a vida, os escritos e a doutrina de Teofrasto: DióGENEs


LAÉRCIO, V, 36 ss.; REGENBOGEN, Theophrastos von Eresos, Stuttgart,
1940.

Os escritos que nos ficaram, isto é, as duas obras de botânica, os


Caracteres e os fragmentos foram editados por Schneid-er, Leipzig, 1918-
21; outra edição, Wimmer, Leipzig, 1854. Sobre Teofrasto: ZELLER 11,
2, p. 806 ss.; GomPERz, III, cap. 39-42.

§ 87. Os fragmentos de Eudemo, in MULLACH, Fragmenta phil. graec., III,


p. 222 ss.. Os fragm-entos da Harmonia de Aristóxeno foram editados por
Marquard, Berlim, 1868 e por Macran, Oxford, 1903. Os fragmentos de
Dicearco, por Fuhr, Darmstadt, 1841. Sobre estes três discípulos de
Aristételes: ZELLER, U, p. 869 ss..

§ 88. Sobre a vida, os escritos e a doutrina de Estratão: DIóGENEs


LAÉRCIO, V, 58 ss. Sobre Estratã<): ZELLER, 11, 2, p. 897; GomPERz, UT,
cap. 43.

]o

XIIII

O ESTOICISMO

§ 89. CARACTERíSTICAS DA FILOSOFIA PóS-ARISTOTÉLICA

A conquista macEdónia e a consequente mudança da vida política e social


do povo grego encontra expressão no carácter fundamental da filosofia
pós-aristotélica. É costume exprimir tal característica dizendo que este
período da filosofia é assinalado pela prevalência do problema moral.

A investigação filosófica no período que vai de Sócrates a Aristóteles


dirigira-se para realização da vida teorética, entendida como unidade da
ciência e da virtude, isto é, do pensamento e da vida. Mas destes dois
termos, que já Sócrates unificava completamente, o primeiro prevalecia
nitidamente sobre o segundo. 'Para Sócrates a virtude é e deve ser
ciência e não há virtude fora da ciência. Platão conclui no Filebo os
aprofundamentos sucessivos da sua investigação dizendo que a vida humana
perfeita é uma vida mista de ciência e de prazer, na qual a ciência
prevalece. Aristóteles considera

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a vida teorética como a mais alta manifestação da vida do homem e ele
mesmo encara e defende com a sua obra os interesses desta actividade,
levando a sua investigação a todos os ramos do cognoscível. Só a partir
dos Cínicos o equilíbrio harmónico entre ciência e virtude se rompe pela
primeira vez: eles puseram o acento no peso da virtude em detrimento da
ciência e tornaram-se partidários de um ideal moral propagandístico e
popularucho, chegando a ser gravemente infiéis aos ensinamentos do seu
mestre.

Mas a rotura definitiva da harmonia da vida teorética a favor do segundo


dos seus termos, a virtude, encontra-se na filosofia pós-aristotélica. A
fórmula socrática-a virtude é ciência-é substituída pela fórmula a
ciência é virtude. O objectivo imediato e urgente é a busca de urna
orientação moral, à qual deve estar subordinada, como ao seu fim, a
orientação teorética. O pensamento deve servir a vida, não a vida o
pensamento. Na nova fórmula, os termos que na antiga encontravam a

sua unidade são opostos um ao outro, de modo que se sente a necessidade


de escolher entre eles o termo que mais importa e subordinar-lhe o
outro. A filosofia é ainda e sempre procura; mas procura de uma
orientação moral, de uma conduta de vida que não tem já o seu centro e a
sua unidade na ciência, mas subordina a si a ciência como o meio ao fim.

§ 90. A ESCOLA ESTOICA

Das três grandes escolas pós-aristotélicas, a estoica foi de longe, do


ponto de vista histórico, a mais importante. A influência do estoicismo
tornou-se decisiva no último período da filosofia grega, quando as
correntes neoplatónicas fizeram suas muitas das suas doutrinas
fundamentais, e na Patns-

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tica, na Escolástica Árabe e Latina, no Renascimento. Esta influência só


é comparável à de Aristóteles e exerceu-se muitas vezes sobre a doutrina
aristotélica, sugerindo-lhe desenvolvimentos e modificações que foram
nela incorporadas e se tornaram assim suas partes integrantes. No
próprio seio da filosofia moderna e contemporânea, a acção do estoicismo
continua, quer de maneira indirecta quer sob a forma de doutrinas que o
senso comum, a sabedoria popular e a tradição filosófica aceitaram e
aceitam sem se preocuparem com pô-las em discussão. Aqui podemos apenas
indicar algumas destas doutrinas, às quais se terá ocasião de fazer
referência mais vezes no decurso desta História. A primeira delas é a da
necessidade da ordem cósmica, com as noções que lhe estão inclusas de
destino e de providência. Esta doutrina serviu de fundamento a todas as
elaborações teológicas que se efectuaram ia partir do neoplatonismo e é
válida como critério interpretativo do próprio aristotelismo. A
definição da lógica como dialéctica, a teoria do significado, da
proposição e do raciocínio imediato dominaram o desenvolvimento da
lógica nos últimos séculos da Idade Média, constituindo uma segunda
parte acrescentada à lógica de derivação aristotélica. Os estoicos
contribuíram mesmo, a partir dos aristotélicos antigos, para integrar ou
interpretar as teorias lógicas aristotélicas. As doutrinas do ciclo
cósmico ou do eterno retorno e de Deus como alma do mundo constituíram e
constituem ainda um constante ponto de referência das concepções
cosmológicas e teológicas. A análise das emoções e a sua condenação, o
conceito da autosuficiência e da liberdade do sábio ficaram e permanecem
entre as mais típicas formulações da ética tradicional. Pela noção de
dever por eles elaborada se renova rigorosamente a ética kantiana. A
noção de valor, também por eles encontrada, revelou-se

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fecundíssima nas discussões éticas. A identificação de liberdade o


necessidade, o cosmopolitismo, a teoria do direito natural são doutrinas
de que é quase inútil sublinhar a importância e a vitalidade.

O fundador da escola foi Zenão de Gtium, em Chipre, de quem se conhece


com verosimilhança o ano do nascimento, 336-35 a.C., e o ano da morte,
264-63. Chegado a Atenas com os seus vinte e dois anos, entusiasmou-se,
através da leitura dos escritos socráticos (os Memoráveis de Xenofonte e
a Apologia de Platão), pela figura de Sócrates e julgou ter encontrado
um Sócrates redivivo no cínico Cratete, de quem se fez discípulo.
Seguidamente foi também discípulo de Estilpon e de Teodoro Crono. Por
volta do ano 300 a.C., fundou a sua escola no Pórtico Pintado (Stoà
poikíle), pelo que os seus discípulos se chamaram Estoicos. Morreu de
morte voluntária como bastantes outros mestres que lhe sucederam. Dos
seus numerosos escritos (República, Sobre a Vida segundo a Natureza,
Sobre a Natureza do Homem, Sobre as Paixões, etc.) restam-nos apenas
fragmentos. Os seus primeiros discípulos foram Ariston de Quios, Erilo
de Cartago, Perseu de Citium e Cleanto de Assos, na Tróade, que lhe
sucedeu na direcção da escola. Cleanto, nascido em 304-03, e morto em
223-22 de morte voluntária, foi um homem de poucas necessidades e de
vontade férrea, mas pouco dotado para a especulação; parece que o seu
contributo para a elaboração do pensamento estoico foi mínimo.

A Cleanto sucedeu Crisipo de Soli ou do Tarso na Cilícia, nascido em


281-78, falecido em 208-05, que é o segundo fundador do Estoicismo,
tanto que se dizia: "Se não tivesse existido Crisipo não existiria a
"Stoa". Foi de uma prodigiosa fecundidade literária. Escrevia todos os
dias quinhentas linhas e compôs ao todo 705 livros. Foi também um
dialéctico e um estilista de primeira ordem.

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Seguiram-se a Crisipo dois discípulos seus, primeiro Zenão de Tarso,


depois Diógenes de SeMucia, dito o Babilónico. Diógenes foi a Roma, em
156-55, numa embaixada de que faziam parte o académico Carnéades e o
peripatético Critolau. A embaixada suscitou muito interesse na
juventude de Roma, mas teve a desaprovação de Catão, o qual temia
que o interesse filosófico desviasse a juventude romana da vida militar.
A Diógenes seguiu-se Antipatro de Tarso.

A produção literária de todos estes filósofos, que deve ter sido imensa,
perdeu-se e dela só nos restam fragmentos. Estes nem sempre são
referidos a um autor singular, mas amiúde aos Estoicos em geral, de modo
que se torna muito difícil distinguir, na massa das notícias que nos
chegaram, a parte que corresponde a cada um dos representantes do
Estoicismo. Por isso se deve expor a doutrina estoica no seu conjunto,
mencionando, quando possível, as diferenças ou as divergências entre os
vários autores.

§ 91. CARACTERÍSTICAs DA FILOSOFIA ESTOICA


O fundador do Estoicismo, Zenão, teve como mestre e como modelo de vida
o cínico Cratete. Isto explica a orientação geral do Estoicismo, o qual
se apresenta como a continuação e o complemento da doutrina cínica. Como
os Cínicos, os Estoicos procuram não já a ciência, mas a felicidade por
meio da virtude. Mas, diferentemente dos Cínicos, consideram que, para
alcançar a felicidade e a virtude, é necessária a ciência. Não faltou
entre os Estoicos quem, corno Ariston, estivesse ligado estreitamente ao
Cinismo e declarasse inútil a Lógica e superior às possibilidades
humanas a FÍsica, aban-

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donando-se a um desprezo total pela ciência. Mas contra ele, Erilo


colocava o sumo bem e o fim último da vida no conhecer, volvendo assim a
Aristóteles. O próprio fundador da escola, Zenão, considerava
indispensável a ciência para a conduta da vida, e embora não lho
reconhecesse um valor autónomo, incluía-a entre as condições
fundamentais da virtude. A própria ciência parecia-lhe virtude e as
divisões da virtude eram para ele divisões da ciência. Tal foi
indubitavelmente a doutrina que prevaleceu no Estoicismo. "A filosofia
-diz Séneca- é exercício de virtude (studium virtutis), mas por meio da
própria virtude, já que não pode haver virtude sem exercício, nem
exercício de virtude sem virtude" (Ep., 89).

O conceito da filosofia vinha assim a coincidir com o da virtude. O seu


fim é alcançar sageza que é a "ciência das coisas humanas e divinas";
mas a única arte para alcançar a sabedoria é precisamente o exercício
da virtude. Ora as virtudes mais gerais são três: a natural, a moral e a
racional; também a Filosofia se divide, pois, em três partes: a Física,
a Ética e a Lógica. Diferente foi a importância atribuída sucessivamente
a cada uma destas três partes; e distinta foi a ordem em que as
ensinaram os vários mestres da Stoà. Zenão e Crisipo começavam pela
lógica, passavam à Física e terminavam com a Ética.

§ 92. A LÓGICA estoica

Com o termo Lógica, adoptado pela primeira vez por Zenão, os Estoicos
expressavam a doutrina que tem por objecto os logoi ou discursos. Como
ciência dos discursos contínuos, a lógica é Retórica; como ciência dos
discursos divididos por perguntas e respostas, a lógica é dialéctica.
Mais precisamente, a

16

Página da obra "Vida e doutrina dos filósofos,,5, de

Diógenes Laércio (Códice do século V)

4,,

dialéctica é definida como "a ciência daquilo que é verdadeiro e daquilo


que é falso e daquilo que não. é nem verdadeiro nem falso." (Diog. L.,
VII,
42; Séneca, EP., 89). Com a expressão "aquilo que não é nem verdadeiro
nem falso", os Estoicos entendiam provavelmente os sofismas ou os
paradoxos, sobre cuja verdade ou falsidade não se pode decidir e cujo
tratamento ocupa muito os Estoicos que, neste ponto, seguem as pisadas
dos Megáricos. Por sua vez, a dialéctica divide-se em duas partes
segundo trata das palavras ou das coisas que as palavras
significam: a que trata das palavras é a Gramática, a que trata das
coisas significadas é a Lógica em sentido próprio, a qual, portanto, tem
por objecto as representações, as preposições, os raciocínios e os
sofismas (Diog. L., VII, 43-44).

O primeiro problema da lógica estoica é o do critério da verdade. É este


o problema mais urgente para toda a filosofia pós-aristotélica que
considera o pensamento apenas como guia para a conduta: e ora, se o
pensamento não possui por si mesmo um critério de verdade e procede com
incerteza e às cegas, não pode servir de guia para a acção. Ora, para
todos os Estoicos, o critério da verdade é a representação catalética ou
conceptual (phantasia kataleptiké). São possíveis duas interpretações do
significado desta expressão e ambas se encontram nas exposições antigas
do Estoicismo. Em primeiro lugar, a phantasia kataleptiké pode consistir
na acção do intelecto que prende e penetra o objecto. Em segundo lugar,
pode ser a representação que é impressa no intelecto pelo objecto, isto
é, a acção do objecto sobre o intelecto. Ambos os significados se
encontram nas exposições antigas do Estoicismo. Sexto Empírico (Adv.
math., VII, 248) diz-nos que, segundo os Estoicos, a representação
catalética é aquela que vem de um objecto real e está impressa

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e marcada por isso em conformidade com ele próprio, de modo que não
poderia nascer de um objecto diferente. Por outro lado, Zenão (segundo
um testemunho de Cioero, Acad., 11, 144) colocava o significado da
representação catalética na sua capacidade de prender ou compreender o
objecto. Ele comparava a mão aberta e os dedos estendidos à
representação pura e simples; a mão contraída no acto de agarrar, ao
assentimento; o punho fechado à compreensão catalética. Finalmente, as
duas mãos apertadas uma sobre a outra, com grande força, eram o símbolo
da ciência, a qual dá a verdadeira e completa posse do objecto.

A representação catalética está, pois, relacionada com o assentimento da


parte do sujeito cognoscente, assentimento que os Estoicos consideravam
voluntário e livre. Se o receber uma representação determinada, por
exemplo, ver uma cor branca, sentir o doce, não está em poder daquele
que a recebe porque depende do objecto de que deriva a sensação, o
assentir a tal representação é, pelo contrário, sempre um acto livre. O
assentimento constitui o juízo, o qual se define precisamente ou como
assentimento ou como dissentimento ou como suspensão (epoché), isto é,
renúncia provisória para assentir à representação recebida ou a
dissentir da mesma. Segundo testemunho de Sexto Empírico (Adv. math.,
VII, 253), os Estoicos posteriores puseram o critério da verdade, não na
simples representação catalética, mas na -representação catalética "que
não tenha nada contra si", porque pode dar-se o caso de haver
representações cataléticas que não sejam dignas de fé pelas
circunstâncias em que são recebidas. Só quando não tem nada contra si, a
representação se impõe com força às representações divergentes e
constrange o sujeito cognoscente ao assentimento. Disto resulta
claramente que a representação catalética é aquela que é dotada de uma

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evidência não contraditada, tal que solicito com toda a força o
assentimento, o qual, no entanto, permanece livre. Consequentemente,
definiam a ciência como "uma representação catalética ou um hábito
imutável para acolher tais representações, acompanhadas pelo raciocínio"
(Diog. L., VII, 47); e consideravam que não há ciência sem dialéctica,
cabendo à dialéctica dirigir o raciocínio.

Pelo que respeita ao problema da origem do conhecimento, o Estoicismo é


empirismo. Todo o conhecimento humano deriva da experiência e a
experiência é passividade porque depende da acção que as coisas externas
exercem sobre a alma considerada como uma tabuinha (tabula rasa) e na
qual se vêm registar as representações. As representações são marcas ou
sinais impressos na alma, segundo Ocanto; segundo Crisipo, são
modificações da alma. Em qualquer caso, são recebidas passivamente e
produzidas ou pelos objectos externos ou pelos estados internos da alma
(como a virtude e a perversidade). Por isso nenhuma diferença existe
entre a experiência externa e a experiência interna. Toda a
representação, depois do seu desaparecimento, determina a recordação, um
conjunto de muitas recordações da mesma espécie constitui a experiência
(Aezio, Plac., IV, II). Da experiência nasce, por um procedimento
natural, a noção

comum ou antecipação; a antecipação é a noção natural do universal


(D@og. L., VII, 54).

Todavia, segundo eles, os conceitos não têm nenhuma realidade objectiva:


o real é sempre individual e o universal subsiste apenas nas
antecipações ou nos conceitos. O Estoicismo é, pois, um nominalismo,
segundo a expressão que foi usada na Escolástica para designar a
doutrina que nega a realidade do universal. Os conceitos mais gerais,
aqueles que Aristóteles designara com categorias, são reduzidos pelos
Estoicos a quatro: 1.* o sujeito

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ou substância; 2.* a qualidade; 3.* o modo de ser,


4.O o modo relativo (Plotino, Enn., VI, 1. 202). Estas quatro categorias
estão entre si numa relação tal que a seguinte encerra a precedente e a
determina. Efectivamente, nada pode ter um carácter relativo se não tem
um modo seu de ser; não .pode ter um modo de ser se não possui uma
qualidade fundamental que o diferencie dos outros; e só pode possuir
esta qualidade se subsiste por si, se é substância.

O conceito mais elevado e mais extenso ou, como diziam, o género


supremo, é o conceito de ser, porquanto tudo, em certo modo, é, e não
existe, portanto, um conceito mais extenso do que este.
O conceito mais determinado é, pelo contrário, o de espécie que não tem
outra espécie abaixo de si, isto é, o do indivíduo, por exemplo de
Sócrates (Diog. L., VII, 61). Outros Estoicos, pretendendo encontrar um
conceito ainda mais extenso que o de ser, recorreram ao de alguma coisa
(aliquid) que pode compreender também as coisas incorpóreas (Séneca,
Ep., 58).

A parte da lógica estoica que teve a maior influência no desenvolvimento


da lógica medieval e moderna é a que concerne à proposição e ao
raciocínio. Como fundamento desta parte da sua doutrina, os Estoicos
elaboraram a doutrina do ,significado (lektón) que se manteve de
fundamental importância na lógica e na teoria da linguagem. "São três
-diziam eles- os elementos que se ligam: o significado, aquilo que
significa e aquilo que é. Aquilo que significa é a voz, por exemplo,
"Dione". O significado é a coisa indicada pela voz e que nó s tomamos
pensando na coisa correspondente. Aquilo que é é o sujeito externo, por
exemplo, o próprio "Dione" (Sexto Emp:, Adv. math., VIII, 12). Destes
três elementos conhecidos, dois ,são,,c,or,p<>reos, a voz e aquilo que
é; um é incor-

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pórco, o significado. O significado é, noutros termos, qualquer


informação ou representação ou conceito que nos vem à mente quando
percebemos uma palavra e que nos permite referir a palavra a uma coisa
determinada. Assim, por exemplo, se com a voz <@homem" entendemos um
"animal racional", podemos indicar com esta voz todos os animais
racionais, isto é, todos os homens. O conceito "animal racional" é o
significado que consente a referência da palavra ao objecto existente.
Ele é o caminho entre a palavra (ou, em geral, a expressão verbal) e a
coisa real ou corpórea: e assim orienta, na -referência ao objecto, as
expressões linguísticas que, de outro modo, permaneceriam puros sons,
incapazes de qualquer conexão com as coisas. A referência à coisa
constitui, portanto, parte integrante do significado ou, pelo menos, é
um aspecto que lhe está intimamente ligado, porque a informação em que
consiste o significado não tem outra função senão a de tornar possível
* a de orientar tal referência. Na lógica medieval
* moderna, aquilo que os Estoicos chamavam significado foi
frequentemente designado com outros nomes como conotação, intenção,
compreensão, interpretante, sentido, enquanto a referência à coisa foi
chamada suposição, denotação, extensão, significado. Mas esta
diversidade de terminologia. não mudou o conceito de significado nos
três elementos fundamentais em que os Estoicos o tinham analisado.

Segundo os Estoicos, um significado está completo se pode ser expresso


numa frase, por exemplo, "Sócrates escreve". A palavra "escreve" não
tem, em contrapartida, significado completo porque deixa sem resposta a
pergunta "quem?". Um significado
completo é, portanto, só a proposição, a qual é definida também, com
Aristóteles, como aquilo que pode ser verdadeiro ou falso.

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O raciocínio consiste numa conexão entro as proposições simples do tipo


seguinte: "se é noite. há trevas; mas é noite, portanto existem trovas."
Este tipo de raciocínio não tem, como se vê, nada a ver com o silogismo
aristotélico porque lhe faltam as suas características fundamentais: é
imediato <não tem termo médio) e não é necessário. A falta destas
características permite aos Estoicos distinguir pela sua verdade, a
concludência de um raciocínio. o raciocínio acima exposto só é
verdadeiro se é noite mas é falso se é dia. Inversamente, é concludente
em qualquer caso porque a relação das premissas com a conclusão é
correcta. Os tipos fundamentais de raciocínios concludentes são chamados
pelos Estoicos anapodíticos ou raciocínios não demonstrativos. Sã o
evidentes por si próprios e são os seguintes: 1.* Se é dia há luz, mas é
dia; portanto, há luz. 2.* Se é dia, há luz; mas não há luz; portanto
não é dia. 3.* Se não é dia, é noite; mas é dia; portanto não é noite.
4.* Ou é dia ou é noite; mas é dia; portanto não é noite.
5.* Ou é dia ou é noite; mas não é noite; portanto. é dia (1p. Pirr, 11,
157-58; Diog. L., VII, 80). Estes esquemas de raciocínio são sempre
válidos mas sempre verdadeiros. dado que só são verdadeiros quando a
premissa é verdadeira, isto é, quando corresponde à situação de facto.
Sobre eles se modelam os raciocínios demonstrativos que são não só
concludentes mas manifestam também alguma coisa que antes era "obscura",
isto é, qualquer coisa que não é imediatamente manifesta à representação
catalética, a qual é sempre limitada ao aqui e agora. Eis um exemplo:
"Se esta mulher tem leite no seio, pariu; mas esta mulher tem leite no
seio; portanto pariu> Neste sentido o raciocínio demonstrativo é
designado pelos Estoicos como um sinal indicativo porquanto consente
trazer à luz qualquer coisa que antes estava, obscuro. Sinais remwwa-

22

tivcw sã% pelo contrário, aqueles que, mal se apresentam, tornam


evidente a recordação da coisa que foi primeiramente observada em
ligação com ela o agora não é manifesta como é, por exemplo, o fumo a
respeito do fogo (Sexto E., Adv. math., VIII,
148 ss.). Evidentemente, os Estoicos confiaram ao raciocínio
demonstrativo a construção da sua doutrina; por exemplo, a demonstração
da existência da alma ou da alma do mundo (que é Deus), feita a partir
dos movimentos ou dos factos que são imediatamente dados pela
representação catalética, constitui um sinal indicativo no sentido agora
referido.

Como se vê, a dialéctica estoica tem em comum com a dialéctica platónica


o carácter hipotético das suas Iiwemissas, mas distingue-se desta
dialéctica porque a conjunção das premissas entre si e a sua conexão com
a conclusão exprime situações de facto ou estados de coisas
imediatamente presentes. Aliás, o carácter hipotético do processo
dialéctico não é, para os Estoicos como não era para Aristóteles, um
defeito da própria dialéctica pelo qual esta seria inferior à ciência.
Para eles, a ciência não é, precisamente, outra coisa senão dialéctica
(Diog. L., VII, 47). O conceito estoico da lógica como dialéctico
difundiu-se, através das obras de Boécio, na Escolástica Latina e foi o
fundamento da chamada lógica terninística, característica do último
período da Escolástica.

§ 93. A FíSICA ESTOICA

O conceito fundamental da Física estoica é o de uma ordem imutável,


racional, perfeita e necessária que governa e sustenta infalivelmente
todas as coisas e as faz ser e conservar-se tais como são. Esta ordem é
identificada pelos Estoicos com o

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próprio Deus: assim a sua doutrina é um rigoroso panteísmo.

Os Estoicos substituem as quatro causas aristotélicas (matéria, forma,


causa eficiente e causa final) por dois princípios: o princípio activo
(poioún) e o princípio passivo (páschon) que são ambos materiais e
inseparáveis um do outro. O princípio passivo é a substância privada de
qualidade, isto é, a matéria; o princípio activo é a razão, isto é, Deus
que agindo sobre a matéria produz os seres singulares. A matéria é
inerte, e se bem que pronta para tudo, ficaria ociosa se ninguém a
movesse. A razão divina forma a matéria, dirige-a para onde quer e
produz as suas determinações. A substância de que nascem todas as coisas
é a matéria, o princípio passivo; a força pela qual todas as coisas são
feitas é a causa ou Deus, o princípio activo (Diog. L., VII, 134).
Contudo, a distinção entre princípio activo e princípio passivo não
coincide, segundo os Estoicos, com a distinção entre o incorpóreo e o
corpóreo. Ambos os princípios, seja a causa, seja a matéria são corpo o
nada mais que corpo, dado que só o corpo existe. Um rígido
materialismo é defendido pelos Estoicos na base da definição de ser
dada por Platão no Sofista (§ 56): existe aquilo que age ou suporta uma
acção. Dado que só o corpo pode agir ou sofrer uma acção, só o corpo
existe (Diog. L., VII, 56; Plut., Comm. Not., 30, 2, 1073; Stob., Ecl.,
1, 636). A alma é, pois, corpo como princípio de acção (Diog. L., VII,
156). É corpo a voz que também opera e age sobre a alma (Aezio, Plac.,
IV, 20,2). É corpo, enfim, o bem como são corpos as emoções e os vícios.
Diz Séneca a este respeito: "0 bem opera porque é útil e aquilo que
opera é um corpo.
O bem estimula a alma numa certa maneira: modela-a e tem-na sob o freio,
acções estas que são próprias de um corpo. Os bens do corpo são corpos;

24

portanto, também os da alma, pois também ela é corpo" (Ep., 106). Os


Estoicos só admitiam quatro coisas incorpóreas: o significado, o vazio,
o lugar e o tempo (Sexto E., Adv. math., X, 218).

Como se vê, nem Deus existe entre as coisas incorpóreas. O próprio Deus,
como razão cósmica e causa de tudo, é corpo: mais precisamente é fogo.
Mas não o fogo de que o homem se serve, que destrói todas as coisas: é
antes um sopro cálido (pneuma) e vital que tudo conserva, alimenta, faz
crescer e também sustém. Mas este sopro ou espírito vital, este fogo
animador é também ele corpo. Chama-se razão seminal (logos spermatikós)
do mundo porque contém em si as razões seminais segundo as quais todas
as coisas se geram. Como todas as partes de um ser vivo nascem da
semente, assim toda a parte do universo nasce de uma mesma semente
racional, ou razão seminal. Estas razões seminais são frequentemente
misturadas umas com as outras, mas, ao desenvolverem-se, separam-se e
dão origem a seres diferentes, e assim todas as coisas nascem da unidade
e se incluem na unidade. Contudo, a distinção entre as diferentes coisas
é perfeita; não existem no mundo duas coisas semelhantes, nem mesmo duas
folhas de erva.

O mundo foi gerado quando a matéria originária se diferenciou e se


transformou nos vários elementos. Ao condensar-se e tornar-se pesada,
converteu-se em terra; ao enrarecer, converteu-se em ar e logo em
humidade e água; ao fazer-se mais subtil, deu origem ao fogo. Destes
quatro elementos compõem-se todas as coisas: duas delas, o ar e o fogo
são activas; as outras duas, terra e água, são passivas. A esfera do
fogo está acima da das estrelas fixas. O mundo é finito e tem a forma de
esfera. Em torno dele há o vazio, mas dentro não há vazio porque é tudo
unido e compacto (Diog. L., VII, 137 ss.).

25

A vida do mundo tem um ciclo próprio. Quando, depois de um longo período


de tempo (grande anno), os astros tornam ao mesmo signo e â mesma
posição em que se encontravam no princípio, acontece uma conflagração
(ekpúrasis) o a destruição de todos os seres; e de novo se forma a mesma
ordem cósmica e de novo tomam a verificar-se os acontecimentos ocorridos
no ciclo precedente sem nenhuma modificação. Existe de novo Sócrates, de
novo Platão e de novo cada um dos homens com os mesmos amigos e
concidadãos, as mesmas cirenças, as mesmas esperanças, as mesmas ilusões
(Nemésio, De nat. hom., 38, 277).

Tal é de facto o destino (eimarmène), a lei necessária que rege as


coisas. O destino é a ordem do mundo e a concatenação necessária que tal
ordem põe entre todos os seres e, portanto, entre o passado e o porvir
do mundo. Todo o facto se segue a um outro e está necessariamente
determinado por ele como pela sua causa; e a todo o facto se segue um
outro que ele determina como causa. Esta cadeia não se pode quebrar
porque com ela seria quebrada a ordem racional do mundo. Se esta ordem,
do ponto de vista das coisas que encadeia, é destino, do ponto de vista
de Deus, que é o seu autor e garante infalível. é providência que rege e
conduz todas as coisas ao seu fim perfeito. Portanto, destino,
providência e razão identificam-se entre si, segundo os Estoicos, e
identificam-se com Deus, considerado como a natureza intrínseca,
presente e operante em todas as coisas (Alexandre Afr., De fato, 22, p.
191). Segundo este ponto de vista, os Estoicos justificavam a
adivinhação, definida como a arte de prover o futuro mediante a
interpretação da ordem necessária das coisas. Mas só o filósofo pode sei
adivinho do futuro porque só elo conhece a ordem n~ia do mundo (Cícero,
De divin., 11, 63, 130).

26

Identificando Deus com o cosmos, isto é, com a ordem necessária do


mundo, a doutrina estoica é um rigoroso panteísmo. É. ao mesmo tempo,
uma justificação do politeísmo tradicional: os deuses da tradição
seriam outros tantos aspectos da acção ordenadora divina. A divindade
toma o nome de Júpiter fDià) enquanto tudo existe poT obra (diá) sua, de
Zeus enquanto causa de viver (zên), de Atena enquanto governa sobre o
éter, de Hera enquanto governa sobre o ar, de Efaístos enquanto fogo-
artífice e assim por diante (Diog. L., VII, 147).

E se o mundo, na sua ordem necessária, se identifica com a própria razão


divina, só pode ser perfeito. Os Estoicos não negavam a existência do
mal no mundo, consideravam apenas que ele era necessário para a
existência do bem. Os bens são contrários aos males, dizia Crisipo, no
seu livro Sobre a Providência. É pois necessário que uns sejam
sustentados pelos outros porque sem um contrário não existiria tão-pouco
o outro contrário. Não haveria justiça se não houvesse a injustiça, pois
que ela não é mais que a libertação da injustiça. Não haveria moderação
-se não houvesse a intemperança, nem a prudência se não houvesse a
imprudência e assim por diante. Não haveria verdade sem a mentira
(Gellio, Noct. att., VII, 1). "Deus harmonizou no mundo todos os bens
com todos os males de maneira que nasça dai a razão eterna de tudo",
cantava Cleanto no Hino a Júpiter.

§ 94. A PSICOLOGIA ESTOICA

Disse-se já que, segundo os Estoicos, a alma entra no rol das coisas


corpóreas com base no princípio de que é corpo aquilo que age e que a
alma age, Crisipo servia-se da própria definição platónica da morte como
"separação da alma do

27

corpo" para tirar dela a confirmação da corporeidade da alma. "0


incorpóreo não poderia separar-se do corpo nem unir-se com ele; mas a
alma une-se ao corpo e não se separa dele, portanto a alma é corpo"
(Nemésio, De nat. nom., 2, 81). A Alma humana é uma parte da Alma do
mundo, isto é, de Deus; como Deus é fogo ou sopro vivificante; e
sobrevive à morte no seio da Alma do Mundo (Diog. L., VII, 156).

As partes da alma são quatro: 1.* o princípio directivo ou hegemónico


que é a razão; 2.* os cinco sentidos; 3.O o sémen ou o princípio
espermático;
4.<' a linguagem (Diog. L., VII, 157; Sexto E., Adv. math., IX, 102). O
princípio hegemónico gera e controla as outras partes da alma que se
prolonga nelas "como os tentáculos de um polvo". Assim, além de produzir
as representações e o assentimento, ele determina também os sentidos e o
instinto. Segundo alguns testemunhos, os Estoicos teriam posto o
princípio hegemónico na cabeça, comparada àquilo que o sol é no cosmos
(Aezio, Plac., IV, 21); mas, segundo outros, tê-la-iam colocado no
coração ou no sopro em torno do coração (1b., IV, 5, 6).

Os Estoicos partilham o conceito, já defendido por Platão e Aristóteles,


de que a liberdade consiste no ser "causa de si" ou dos próprios actos
ou movimentos. Eles conheciam também o termo autopraghia, que se pode
traduzir por autodeterminação, para indicar a liberdade e diziam que só
o sage é livre porque só ele se determina por si (Diog. L., VII, 121).
Todavia, a liberdade do sage não consiste noutra coisa senão no seu
conformar-se com a ordem do mundo, isto é, com o destino (Diog. L., VII,
88; Stobeo, Flor., VI, 19; Cicer., De fato, 17). Assim, com os Estoicos,
apresenta-se pela primeira vez a doutrina que identifica a liberdade com
a necessidade, transferindo a própria liberdade da parte para o todo,
isto é, do homem

28

para o princípio que opera e age no homem. Não faltou, porém, entre os
mestres do Stoa quem quisesse reconhecer a iniciativa do sage uma certa
margem de liberdade no confronto com a própria ordem cósmica. Crisipo
distinguia entre as causas perfeitas e fundamentais e as concomitantes
ou próximas. As primeiras agem com necessidade absoluta; as segundas
podem sofrer a nossa influência; e mesmo quando não a sofrem está no
nosso poder secundá-las ou não. Assim como quem dá um impulso a um
cilindro lhe imprime o começo do movimento mas não a capacidade de
rodar, assim os objectos externos imprimem dentro de nós a representação
mas não determinam o assentimento que permanece em nosso poder. Nestes
limites, a vontade e a índole de cada um podem influir, em conformidade
com a ordem do todo, na escolha e na execução das acções (Cícer., De
fato,
41-43; Aulo G., Noet. att., VII, 2).

§ 95. A ÉTICA ESTOICA

Deus confiou a realização e a conservação da ordem perfeita do cosmos no


mundo animal a duas forças igualmente infalíveis: o instinto e a razão.
O instinto (hormé) guia infalivelmente o animal na conservação, na
alimentação, na reprodução e em geral a tomar cuidado consigo para os
fins da sua sobrevivência (Diog. L., VII, 85). A razão é, por outro
lado, a força infalível que garante o acordo do homem consigo próprio e
com a natureza em geral.

A Ética dos Estoicos é, substancialmente, uma teoria do uso prático da


razão, isto é, do uso da razão com o Em de estabelecer o acordo entre a
natureza o o homem. Zenão afirmava que o fim do homem é o acordo consigo
próprio, isto é, o

29

viver "segundo uma razão única e harmónica". "Ao acordo consigo próprio,
Cleanto acrescentou o acordo com a natureza e por isso define o fim do
homem como "a vida conforme a natureza". E Crisipo exprimo a
mesma coisa dizendo: "viver conforme com a experiência dos
acontecimentos naturais" (Stobeo, Ecl., 11, 76, 3). Mas parece que já
Zenão tinha adoptado a fórmula do "viver segundo a natureza" (Diog. L.,
VII, 87). E indubitavelmente esta é a máxima fundamental da doutrina
estoica.

Por natureza, Cleanto entendia a natureza universal, Crisipo não só a


natureza universal mas também a humana que é parte da natureza
universal. Para todos os Estoicos, a natureza é a ordem racional,
perfeita e necessária que é o destino ou o próprio Deus. Por isso
Cleanto orava assim: "Conduz-me, 6 Zeus, e tu, Destino, aonde por vós
sou destinado e vos servirei sem hesitação: porque ainda que eu não
quisesse, vos deveria seguir igualmente como estulto" (Stobeo, Flor.,
VI, 19). Ora a acção que se apresenta conforme com a ordem racional é o
dever (kathêkon): a ética estoica é, pois, fundamentalmente uma ética do
dever e a noção do dever, como conformidade ou conveniência da acção
humana com a ordem racional, torna-se, pela primeira vez, nos Estoicos,
a noção fundamental da Ética. Efectivamente, nem a Ética platónica nem a
Ética aristotélica fazem referência à ordem racional do todo, assumindo
como seu fundamento, para a primeira, a noção de justiça, para a
segunda, a de felicidade. A noção de dever não surgia no seu âmbito e
nelas dominava a noção de virtude como caminho para realizar a justiça
ou felicidade. "Os Estoicos chamam dever -diz Diógenes Laércio- (VII,
107-09) àquilo cuja escolha pode ser racionalmente justificada... Das
acções realizadas pelo instinto algumas são próprias do

30

dever. outras nem próprias do dever nem contrárias ao dever. Próprias do


dever são aquelas que a razão aconselha efectuar, como honrar os pais,
os irmãos, a pátria e viver em harmonia com os amigos. Contra o dever
são aquelas que a razão aconselha a não fazer... Nem próprias do dever
nem contrárias ao dever são aquelas que a razão nem aconselha nem
condena, como levantar uma palha, pegar numa pena, etc.". Como nos
refere Cícero, (De offi, 111, 14), os Estoicos distinguiam o dever
recto, que é perfeito e absoluto e não pode encontrar-se em mais ninguém
a não ser no sage, e os deveres "intermédios" que são comuns a todos e
muitas vezes só são realizados com a ajuda da boa índole e de uma certa
instrução. Esta prevalência da noção do dever levou os Estoicos a uma
doutrina típica da sua Ética: a justificação do suced-io. Efectivamente,
quando as condições contrárias ao cumprimento do dever prevalecem sobre
as favoráveis, o sage tem o dever de abandonar a vida mesmo se está no
cume da felicidade (Cicer., De fin., 111, 60). Sabemos que muitos
mestres do Stoa seguiram este preceito que é, na realidade, a
consequência da sua noção do dever.

Todavia, o dever não é o bem. O bem começa a existir quando a escolha


aconselhada pelo dever vem repetida e consolidada, mantendo sempre a
sua conformidade com a natureza, até tornar-se no homem urna disposição
uniforme e constante, isto é, uma virtude (Cicer., De fin., 111, 20,
Tusc., IV, 34). A virtude é, efectivamente, o único bem. Mas só é
própria do sage, isto é, daquele que é capaz do dever recto e se
identifica com a própria sageza porque esta não é possível sem o
conhecimento da ordem cósmica à qual o sage se adequa. A virtude pode
ter nomes diferentes segundo os domínios a que é referida (a sageza
incide sobre os objectivos do homem, a temperança sobre os impulsos, a
for-

31

taleza sobre os obstáculos, a justiça sobre a distribuição dos bens


(Stobeo, Ecl., 11, 7, 60). Mas, na realidade, existe uma só virtude e só
a possui integralmente aquele que sabe entender e compreender e cumprir
o dever, isto é, só o sage (Diog. L., VII, 126).

Entre a virtude e o vício não há, portanto, meio termo. Como um pedaço
de madeira ou é direito

ou curvo sem possibilidade intermédia, assim o homem é justo ou é


injusto e não pode ser justo ou injusto só parcialmente. De facto,
aquele que tem a recta razão, isto é, o sage, faz tudo bem e
virtuosamente, enquanto quem é privado da recta razão, o estulto, faz
tudo mal e de maneira viciosa. E pois que o contrário da razão é a
loucura, o homem que não é sage é louco. Pode-se certamente progredir
para a sabedoria. Mas como quem está submerso pela água, ainda que
esteja pouco abaixo da superfície, não pode respirar como se estivesse
nas águas profundas, assim aquele que avançou para a virtude, mas não é
virtuoso, não está menos na miséria do que aquele que está mais longe
dela (Cicer., De fin., 111, 48).

A virtude é o único bem em sentido absoluto porque ela constitui a


realização no homem da ordem racional do mundo. Este princípio levou os
Estoicos a formular uma outra doutrina típica da sua Ética: a das coisas
indiferentes (adiaphorá). Se a virtude é o único bem, só devem
considerar-se bens propriamente a sabedoria, a justiça, etc., e males os
seus contrários; enquanto não são bens nem males as coisas que não
constituem virtude, como a vida, a saúde, o prazer, a beleza, a riqueza,
a glória, etc., e todos os seus contrários. Estas coisas são, portanto,
indiferentes. Mas, no domínio destas mesmas coisas indiferentes, algumas
são dignas de ser preferidas ou escolhidas como, precisamente, a vida, a
saúde, a beleza, a riqueza. etc.;

32

outras não, como os seus contrários. Existem, pois, além dos bens (a
virtude), outras coisas que não são bens mas que, todavia, são também
dignos de ser escolhidos. E para indicar o conjunto dos bens e de tais
coisas os Estoicos utilizaram a palavra valor (axia). Valor é, portanto,
"todo o contributo para uma vida conforme com a razão" (Diog. L., VII,
105) ou em geral "aquilo que é digno de escolha" (Cicer., De fin., 111,
6, 20). Com esta noção de valor fazia o seu ingresso na Ética um
conceito que devia revelar-se de grande importância na história desta
disciplina.

Faz parte integrante da Ética estoica a negação total do, valor da


emoção (pathos). Efectivamente, ela não tem qualquer função na economia
geral do cosmos que providenciou de modo perfeito na conservação e no
bem dos seres vivos, dando aos animais o instinto e ao homem a razão.
Pelo contrário, as emoções não são provocadas por forças ou situações
naturais: são opiniões ou juízos ditados pela ligeireza, por isso
fenómenos de estultícia e de ignorância que constituem em "julgar saber
o que se não sabe" (Cicer., Tuse., IV, 26). Os Estoicos distinguiam
quatro emoções fundamentais às quais reduziam todas as outras: duas
originadas pelos bens presuntivos: o desejo dos bens futuros e a
alegria dos bens presentes; duas originadas pelos males presuntivos: o
temor dos males futuros e a aflição dos males presentes. A três
destas emoções, e precisamente ao desejo, à alegria e ao temor
faziam corresponder três estados normais próprios do sage, isto é,
respectivamente a vontade, a alegria e a prudência que são estados de
calma e de equilíbrio racional. Nenhum estado normal corresponde, pelo
contrário, no sapiente àquilo que é aflição para o estulto:
efectivamente, para ele não existem males de que deva doer-se, dado que
conhece a perfeição do universo. As emoções são, portanto,

33

verdadeiras e típicas doenças que afectam o estulto mas de que o sage


está imune. A condição do sage, é, pois, a indiferença a toda a emoção,
a apatia.

A ordem racional do mundo, do mesmo modo que dirige a vida de todo o


homem singular, dirige o da comunidade humana. Aquilo que se chama
justiça é a acção, nesta comunidade, da própria razão divina. A lei que
se inspira na razão divina é a lei natural da comunidade humana: uma lei
superior à reconhecida pelos diferentes povos da terra, perfeita,
portanto não susceptível de correcções ou melhoramentos. Cícero, numa
página famosa, exprimia assim o conceito desta lei: "Por certo, existe
uma verdadeira lei, a da recta razão conforme com a natureza, difundida
entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida ao dever e
com a sua proibição dissuade do engano... Não será diferente em Roma ou
em Atenas ou hoje ou amanhã, mas como única, eterna, imutável lei
governará todos os povos e em todos os tempos" "Lactâncio, Div. inst.,
VI, 8, 6-9; Cicer., De rep., 111, 33). Estes conceitos constituem e
constituirão a base da teoria do direito natural que, por muitos
séculos, foi um fundamento de toda a doutrina do direito.

Se a lei que governa a humanidade é única, una é ia comunidade humana.


"0 homem que se conforma com a lei é cidadão do mundo (cosmopolita) e
dirige as suas acções segundo o querer da natureza conforme o qual todo
o mundo se governa" (Filon, De mundi opif., 3). Por isso, o sage não
pertence a esta ou àquela naçã o mas à cidade universal na qual todos os
homens são concidadãos. Nesta cidade não existem livres e escravos mas
todos são livres. Para os Estoicos a única escravidão natural é a do
estulto enquanto não se determina em conformidade com aquela Icí que é

34
a sua própria natureza e do mundo. A escravatura imposta pelo homem
sobre o homem, para os Estoicos, nã o passa de malvadez (Diog. L., VII,
121),

NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 89. Sobre a filosofia pôs-aristotélica: MELLI, La filosofia greca da


Epicuro ai Neoplatonici, Flo~ rença, 1922; SCHMFKEL, For8chungen zur
Philosophie des Heltení8mus, Berlim, 1938.

§ 90. Sobre a vida, os escritos e a doutrina dos antigos Estoicos as


fontes principais são: 1.1 DIóGENES LAÉRciO, VII; 2., SEXTO EMPIRICO,
Ipotiposi Pirronianas e Contra os -matemáticos (estas obras são em boa
parte tecidas com a -exposição e a crítica das doutrinas estoicas); 3.'
CICERO, cujas obras filosóficas são Inspiradas inteiramente pelo
Estoicismo, que atingiu através dos escritos dos Eclécticos,
principalmente de Possidónio, e Panézio; 4., diversos artigos de SUIDAS
no Léxico; 5., FILODEMO, os restos do escrito Sobre os Estoicos.

Os fragmentos deduzidos destas fontes e de outras menores ou mais


ocasionais foram recolhidos por VON ARNIM, Stoicorum Veterum Fragmenta:
vol. 1, "Zenão e os discípulos de Zenão", Leipzig, 1905; vol. II, " Os
fragmentos lógicos e físicos de Crisipo", Leipzig,
1903; vol. 111, "Os fragmentos morais de Crisipo e os fragmentos dos
sucessores de Crisipo", Leipzig,
1903; vol. lV, "Indíce", compilado por AMER, Leipzig, 1924.

§ 91. Sobre a doutrina estoica em geral: BARTI1, Díe Stoa, Stutgard,


1908; 4.1 ed. 1922; BRÉMER, Chrí- &ippe, Paris, 1910; 2.1 ed. 1951;
POFILENZ, Die Stoa, Gottingen, 1948; 2., ed. 1954; J. BRUN, Le
stoicisme, Paris, 1958.

§ 92. Sobre a lógica estóioa: B. MATrS, StoiC Logic, BerkeIey (Cal.),


1953; W KNEALE. e M. KNEALE, The Development of Logic, Oxford, 1962,
cap. 3.

§ 93. Sobre a física: J. MOREAu, LIâme du monde de Platon aux Stoiciens,


Paris, 1939; S. SAMBURSKI, The Physies of lhe Stoics, Londres, 1959,

§ Sobre -a ética: RIETH, Grundbegriffe der stoischen Ethik, B@rlim,


1934; KIRK, The Moral Philosophy of lhe Stoics, New Brunswick, 1951.

35

XIV

O EPICURISMO

§ 96. EPICURO

Epicuro, filho de Neocles, nasceu em Janeiro ou Fevereiro de 341 a.C. em


Samos, onde passou a sua juventude. Começou a ocupar-se de filosofia aos
14 anos. Em Samos escutou as lições do platónico Panfilo e depois do
democritiano Nausífone. Provàvelmente foi este último que o iniciou na
doutrina de Demócrito, do qual, por algum tempo, se considerou
discípulo. Só mais tarde afirmou a completa independência da sua
doutrina da do seu inspirador, a quem julgou então poder designar com o
arremedo de Lerocrito (tagarela) (Diog. L., X, 8).

Aos 18 anos, Epicuro dirigiu-se a Atenas. Não está demonstrado que tenha
frequentado as lições de Aristóteles e de Xenócrates que era naquele
tempo o chefe da Academia. Começou a sua actividade de mestre aos 32
anos, primeiro em Mitilene e em Lâmpsaco, e alguns anos depois em Atenas
(307-06 a.C.), onde permaneceu até à sua morte (271-70).

37

A escola tinha a sua sede no jardim (kepos) de Epicuro pelo que os seus
sequazes foram chamados "filósofos do jardim". A autoridade de Epicuro
sobre os seus discípulos era muito grande. Como as outras escolas, o
Epicurismo constituía uma associação de carácter religioso, mas a
divindade a que era dedicada esta associação era o próprio fundador da
escola. "As grandes almas epicuristas -diz Séneca (Ep., 6) - não as
formou a doutrina mas a assídua companhia de Epicuro". Tanto durante a
sua vida como depois da sua morte, lhe tributaram os discípulos e os
amigos honras quase divinas e procuraram modelar a sua conduta pelo seu
exemplo. "Comporta-te sempre como se Epicuro te visse"-era o preceito
fundamental da escola (Séneca, Ep., 25).

Epicuro foi autor de numerosos escritos, cerca de 300. Restam-nos apenas


três cartas conservadas por Diógenes Laércio (livro X): a primeira, a
Heródoto, é uma breve exposição de física; a segunda, a Meneceu, é de
conteúdo ético; e a terceira, a Pitocles, de atribuição duvidosa, trata
de questões metereológicas. Diógenes Laércio conservou-nos também as
Máximas capitais e o Testamento. Num manuscrito vaticano foi encontrada
uma colecção de Sentenças e nos papiros de Herculano fragmentos da obra
Sobre a Natureza.

§ 97. A ESCOLA EPICURISTA

O mais notável dos discípulos imediatos de Epicuro foi Metrodoro de


Lâmpsaco cujos escritos foram na sua maior parte de conteúdo polémico.
Mas contaram-se numerosíssimos discípulos e amigos de Epicuro e entre
eles não faltaram as mulheres como Temistia e a hetaira Leontina que
escreveu contra Teofrasto. Com efeito, as mulheres

38

podiam também participar na escola, já que ela se fundava na


solidariedade e na amizade dos seus membros o as amizades epicuristas
foram famosas em todo o mundo antigo pela sua nobreza.

Todavia, nenhum discípulo trouxe uma contribuição original para a


doutrina do mestre. Epicuro exigia dos seus sequazes a rigorosa
observância dos seus ensinamentos; e a esta observância se manteve fiel
a escola durante todo o tempo da sua duração (que foi longuíssima, até
ao século IV d.C.). Por isso, entre os seus numerosos discípulos, só
recordaremos aqueles por cuja mediação nos chegaram ulteriores notícias
acerca da doutrina epicurista. De Filodemo, que viveu no tempo de
Cícero, revelaram-nos os papiros de Herculano alguns fragmentos que
tratam de numerosos problemas sob o ponto de vista epicurista e nos
apresentam as polémicas que se desenvolviam, naquele -tempo, no próprio
interior da escola epicurista e entre ela e as outras escolas.
Tito Lucrécio Caro deixou-nos no seu De rerum natura não só uma obra de
grande valor poético mas também uma exposição fiel do Epicurismo. Pouco
se sabe da vida de Lucrécio. Nasceu provavelmente em 96 a.C. e morreu em
55 -a.C.. A notícia de que estava louco, transmitida pelos escritores
cristãos, e que havia escrito o seu poema nos intervalos da loucura, ode
ser uma invenção devida à

p exigência polémica de desacreditar o máximo representante latino do


ateísmo epicurista; em todo o caso, é pouco verosímil pela causa aduzida
da loucura do poeta: um filtro amoroso. Os seis livros da obra de
Lucrécio (que está incompleta) dividem-se em três partes, dedicadas,
respectivamente, à metafísica, à antropologia e à cosmologia, cada uma
das quais compreende dois livros. No primeiro e segundo livro trata-se
dos princípios de toda a realidade, da matéria, do espaço e da
constituição dos

39

corpos sensíveis. No terceiro e quarto livro, trata-se do homem. No


quinto e sexto, do universo e dos fenómenos físicos mais -importantes. A
obra foi editada por Cícero, que teve que reordená-la um pouco, depois
da morte de Lucrécio. O poeta latino vê em Epicuro aquele que libertou
os homens do temor do sobrenatural e da morte. Lucrécio considerava tão
grande esta tarefa que não hesitou em exaltar Epicuro como uma divindade
e em reconhecê-lo como o fundador da verdadeira ciência.

Ao século 11 d.C. pertence Diógenes de Enoanda (Ásia Menor) de quem se


encontrou em 1884 um escrito esculpido em blocos de pedra. Estas
inscrições revelam uma doutrina perfeitamente conforme com a original de
Epicuro; a única novidade é a defesa do Epicurismo contra outras
correntes filosóficas e, especialmente, contra os diálogos platónicos de
Aristóteles.

§ 98. CARACTERÍSTICAS DO EPICURISMO

Epicuro vê na filosofia o caminho para alcançar a felicidade, entendida


como libertação das paixões. O valor da filosofia é, pois, puramente
instrumental: o seu fim é a felicidade. Mediante a filosofia o homem
liberta-se de todo o desejo inquieto e molesto; liberta-se também das
opiniões irracionais e vãs e das perturbações que delas procedem. A
investigação científica destinada a investigar as causas do mundo
natural não tem um fim diferente. "Se não estivéssemos perturbados pelo
pensamento das coisas celestes e da morte e por não conhecermos os
limites das dores e dos desejos, não teríamos necessidade da ciência da
natureza" (Máximas capitais, 11). O valor da filosofia está, pois,
inteiramente em dar ao homem um "quádruplo remédio": 1.o Libertar os
homens do temor

40

EPICURO

dos deuses, demonstrando que pela sua natureza feliz, não se ocupam das
obras humanas. 2.' Libertar os homens do temor da morte, demonstrando
que ela não é nada para o homem: "quando nós existimos, não existe a
morte; quando a morte existe, não existimos nós" (Ep. a Men., 125).
3.' Demonstrar a acessibilidade do limite do prazer, isto é, o alcançar
fácil do próprio prazer; 4.' Demonstrar a distância do limite do mal,
isto é, a brevidade e a provisoriedade da dor.

Deste modo a doutrina epicurista manifestava claramente a tendência de


toda a filosofia pós-aristotélica para subordinar a investigação
especulativa a um fim prático, reconhecido como válido independentemente
da pró pria investigação, de modo que vinha a ser negado a tal
investigação o valor supremo que lhe atribuem os filósofos do período
clássico: o de ela própria determinar o fim do homem e de ser, já como
investigação, parte integrante deste fim.

Epicuro distingue três partes da filosofia: a canónica, a física e a


ética. Mas a canónica era concebida em relação tão estreita com a física
que se pode dizer que, para o Epicurismo, as partes da filosofia são
apenas duas: a física e a ética. Em todo o domínio do conhecimento o fim
que é necessário ter presente é a evidência (enàrgheia): "a base
fundamental de tudo é a evidência", dizia Epicuro.

§ 99. A CANóNICA DE EPICURO

Epicuro chamou canónica à lógica ou teoria do conhecimento enquanto a


considerou essencialmente a oferecer o critério de verdade e, portanto,
um canon, isto é, uma regra que oriente o homem para a felicidade. O
critério da verdade é constituído pelas sensações, pelas antecipações e
pelas emoções.

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A sensação é produzida no homem pelo fluxo dos átomos que se separam da


superfície das coisas (segundo a teoria de Demócrito, § 22). Este fluxo
produz imagens (éidola) que são em tudo semelhantes às coisas que as
produzem. Destas imagens derivam as sensações; das sensações derivam as
representações fantásticas que resultara da combinação de duas imagens
diferentes (por exemplo, a representação do centauro deriva da
união da imagem do homem e do cavalo). Das sensações repetidas
e conservadas na memória derivam também as representações genéricas (ou
conceitos) que Epicuro, (como os Estoicos) chamou antecipações. Com
efeito, os conceitos servem para antecipar as sensações futuras. Por
exemplo, se se diz "este é um homem" é necessário ter já o conceito de
homem, adquirido por virtude das sensações precedentes.

Ora a sensação é sempre verdadeira. Efectivamente, não pode ser refutada


por uma sensação homogénea, que a confirma, nem por uma sensação
diferente que, proveniente de um outro objecto, não pode contradizê-la.
A sensação é, pois, o critério fundamental da verdade. Finalmente, o
terceiro critério de verdade é a emoção, isto é, o prazer ou a dor, que
constitui a norma para a conduta prática da vida e está, portanto, fora
do campo da lógica.

O erro, que não pode subsistir nas sensações e nos conceitos, pode
subsistir, em contravertida, na opinião, a qual é verdadeira se é
confirmada pelos testemunhos dos sentidos ou pelo menos não contraditada
por tal testemunho; é falsa no caso contrário. Atendo-se aos fenómenos,
tal como se nos manifestam mercê das sensações, pode-se, com o
raciocínio, estender o conhecimento até às coisas que para a própria
sensação são desconhecidas; mas a regra fundamental do raciocínio é,
neste caso, o mais rigoroso acordo com os fenómenos percebidos.

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No escrito de Filodemo, Sobre os sinais, que expõe a doutrina do


epicurista Zenão, mestre de Filodemo, é desenvolvida e defendida contra
os ataques dos Estoicos a teoria do raciocínio indutivo. Os Estoicos
afirmavam: não basta verificar que os homens que existem à nossa volta
são mortais para afirmar que em todos os casos os homens são mortais;
seria necessário estabelecer que os homens são mortais, precisamente
enquanto homens, para dar àquela inferência a sua necessidade. Mas os
Epicuristas respondiam que, dado que nada se opõe à sua conclusão, uma
inferência do género na analogia, deve ser considerada válida. Dado que
todos os homens que caem na alçada da nossa experiência são semelhantes
também no que respeita à mortalidade, é necessário considerar que são
semelhantes, também neste aspecto, aqueles que estão fora da nossa
experiência (De signis, XVI, 16-29). Por outras palavras, os Epicuristas
admitiam que a indução era um processo por analogia (entendendo-se por
analogia a identidade de duas ou mais relações), no sentido de que uma
vez verificado que, na nossa experiência, uma certa qualidade (no
exemplo, "mortal") é acompanhada constantemente por outra qualidade
(aquela que os homens constituem), pode inferir-se que, também onde não
alcança a experiência, esta relação se mantém constante, isto é, que as
outras qualidades dos homens são sempre acompanhadas pela de mortal
(lb., XX, 32 e ss.). Deste modo, eles pressupunham não já a necessária
semelhança dos homens, segundo a crítica dos Estoicos, mas a semelhança,
isto é, a uniformidade, das relações entre qualidade ou factos,
uniformidade que mais tarde será chamada (por Stuart Mill) "uniformidade
das leis da natureza", enquanto distinta da "uniformidade por natureza".
Os Epicuristas partiam também de um sentido amplo de experiência e
afirmavam

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recolher "não só os sinais que nos aparecem ou que nós próprios


experimentamos mas também as coisas que aparecem na experiência de
outrem e que por ela podem ser tomadas" (1b., 32, 14). E também nisto se
afastavam dos Estoicos que reduziam a experiência ao aqui e agora
percebido e instituíam, como se viu, a força inteira do raciocínio sobre
este aqui e agora.

Acerca da linguagem Epicuro formulava, pela primeira vez, uma doutrina


que foi retomada nos tempos modernos: a linguagem é um produto natural
porque é a expressão sonora das emoções que unem os homens em
determinadas condições (Diog. L., X, 75-76). É a tese que foi defendida
no século XVIII por Rousseau.

§ 100. A FíSICA DE EPICURO

A física de Epicuro tem COMO objectivo excluir da explicação do mundo


toda a causa sobrenatural e libertar assim os homens do temor de estar à
mercê de forças desconhecidas e de misteriosas intervenções. Para
alcançar este objectivo a física deve ser: 1.o materialística, isto é,
excluir a presença no mundo de qualquer " alma" ou princípio espiritual;
2.O mecanística, isto é, servir-se na sua explicação unicamente do
movimento dos corpos excluindo qualquer finalismo. Dado que a física de
Demócrito correspondia a estas duas condições, Epicuro adoptou-a e fê-la
sua com escassas e insignificantes modificações.

Como os Estoicos, Epicuro afirma que tudo aquilo que existe é corpo
porque só o corpo pode agir ou sofrer uma acção. De incorpóreo, admite
apenas o vazio, mas o vazio não age nem sofre alguma coisa, apenas
permite aos corpos moverem-se através de si próprio (Ep. ad Her., 67).
Tudo aquilo

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que age ou sofre é corpo e todo o nascimento ou morte é mais que a


agregação ou a desagregação dos corpos. Por isso Epicuro admite com
Demócrito que nada vem do nada e que cada corpo é composto de
corpúsculos indivisíveis (átomos) que se movem no vazio.

No vazio infinito, os átomos movem-se eternamente chocando-se,


combinando-se entro s@i. As suas formas são diversas; mas o seu número,
embora indeterminável, não é infinito. O seu movimento não obedece a
nenhum desígnio providencial, a qualquer ordem finalística, Os
Epicuristas excluem explicitamente a providência estoica e a crítica a
tal providência constitui um dos temas preferidos da sua polémica.
Contra a acção da divindade no mundo, argumentam tomando como ponto de
partida a existência do mal. "A divindade ou quer suprimir os males e
não pode ou pode e não quer ou não quer nem pode ou quer e pode. Se quer
e não pode é -impotente; e a divindade não o pode ser. Se pode e não
quer, é invejosa, e a divindade não o pode ser. Se não quer e não pode,
é invejosa e impotente, portanto não é divindade. Se quer e pode (que é
a única coisa que lhe é conforme) donde vem a existência dos males e
porque não os elimina? (fr. 374, Usener). Eliminada do mundo a acção da
divindade, não ficam para explicar a ordem senão as leis que regulam o
movimento dos átomos. A estas leis nada escapa, segundo os Epicuristas;
elas constituem a necessidade que preside a todos os acontecimentos do
mundo natural.

Um mundo é, segundo Epicuro, "um pedaço de céu que compreende astros,


terras e todos os fenómenos, recortado no infinito". Os mundos são
infinitos; eles estão sujeitos ao nascimento e à morte. Todos se formam
devido ao movimento dos átomos no vazio infinito. Mas Epicuro, ao
considerar que os átomos caem no vazio em linha recta e com

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a mesma velocidade, para explicar o choque, devido ao qual se agregam e


se dispõem nos vários mundos, admite um desvio casual dos átomos da sua
trajectória rectilínea. Este desvio dos átomos é o único acontecimento
natural não sujeito à necessidade. Ele, como diz Lucrécio, "despedaça as
leis do fado". Epicuro admite, contudo, a existência das divindades
neste mundo, donde foi eliminado todo o sinal de potência divina. E
admite-as devido ao seu próprio empirismo, porque os homens têm a
-imagem da divindade e esta imagem, como outra qualquer, não pode ter
sido produzida em si senão pelos fluxos dos átomos emanados da própria
divindade. Os deuses têm a forma humana, que é a

mais perfeita e, portanto, a única digna de ser racional. Eles mantêm


uns com os outros uma amizade análoga à humana; e habitam os espaços
entre mundo e mundo (ilitermundi). Mas não se preocupam nem com o mundo
nem com os homens. Todo o cuidado deste género seria contrário à sua
perfeita beatitude, dado que lhes imporia uma obrigação e eles não têm
obrigações, antes vivem livres e felizes. Por isso, o motivo pelo qual o
sage os honra não é o temor, mas a admiração da sua excelência.

A alma é, segundo Epicuro, composta por partículas corpóreas que estão


difundidas em todo o corpo como um sopro cálido. Tais partículas são
mais subtis e Tedondas que as demais o por isso mais móvois. As
faculdades da alma, como se viu, são fundamentalmente três: a sensação
em sentido próprio; a imaginação (mens, segundo Lucrécio) que produz as
representações fantásticas; a

razão (logos) que é a faculdade do juízo e da opinião. A estas


faculdades teoréticas junta-se a

emoção, prazer ou dor, que é a norma da conduta prática. A parte


irracional da alma, que é o princípio da vida, está difundida por todo o
corpo.

46

Com a morte, os átomos da alma separam-se e cessa qualquer possibilidade


de sensação: a morte é "privação de sensações". Por isso é estulto temê-
la: "0 mais terrível dos males, a morte, não é nada para nós porque
quando existimos nós não existe a morte, quando existe a morte não
existimos nós" (Ep. ad Men., 125).

§ 101. A ÉTICA DE EPICURO

A ética epicurista é, em geral, uma derivação da cirenaica (§ 39). A


felicidade consiste no prazer: "o prazer é o princípio o o fim da vida
feliz", diz Epicuro (Diog. L., X 149). Com efeito, o prazer é o critério
da eleição e da aversão: tende-se para o prazer, foge-se da dor. Ele é
também o critério com que avaliamos todos os bens. Mas há duas espécies
de prazeres: o prazer estável que consiste na privação da dor e o prazer
em movimento que consiste no gozo e na alegria. A felicidade consiste
apenas no prazer estável ou negativo, "no não sofrer e no não agitar-se"
e é, portanto, definida como ataraxia (ausência de perturbação) e aporia
(ausência de dor). O significado destes dois termos oscila entre a
libertação temporal da dor da necessidade e a ausência absoluta de dor.
Em polémica com os Cirenaicos que afirmavam a positividade do prazer,
Epicuro afirma explicitamente que "o cume do prazer é a simples e pura
destruição da dor."

Este carácter negativo do prazer impõe a escolha e a limitação das


necessidades. Epicuro distingue as necessidades naturais e as inúteis;
das necessidades naturais, umas são necessárias, outras não. Daquelas
que são naturais e necessárias, umas são necessárias à felicidade,
outras à saúde do corpo, outras à própria vida. Só os desejos naturais e

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necessários devem satisfazer-se; os demais devem abandonar-se e


rechaçar-se. O epicurismo que, portanto, não o abandono ao prazer, mas o
cálculo e a medida dos prazeres. Tem de se renunciar aos prazeres de que
deriva uma dor maior e suportar até largamente as dores de que deriva um
prazer maior. "A cada desejo é conveniente perguntar: que sucederá se
for satisfeito? Que acontecerá se não for satisfeito? Só o cálculo
cuidadoso dos prazeres pode conseguir que o homem se baste a si próprio
e não se converta em escravo das necessidades e da preocupação pelo
amanhã. Mas este cálculo só se pode ficar a dever à sageza (frónesis). A
sageza é mais preciosa do que a filosofia, porque por ela nascem todas
as outras virtudes e sem ela a vida não tem doçura, nem beleza, nem
justiça" (Ep. ad Men., 132). A virtude, e especialmente a sageza que é a
primeira e a fundamental, aparecem assim a Epicuro como condição
necessária da felicidade. À sageza se deve o cálculo, a escolha e a
limitação das necessidades e, portanto, o alcançar da ataraxia e da
aponia.

Num passo famoso do escrito Sobre o fim, Epicuro afirma explicitamente o


carácter sensível de todos os prazeres. "Em minha opinião -diz elenão
sei conceber que coisa é o bem se prescindo dos prazeres do gosto, dos
prazeres do amor, dos prazeres do ouvido, dos que derivam das belas
imagens percebidas pelos olhos e, em geral, todos os prazeres que os
homens têm pelos sentidos. Não é verdade que só o gozo da mente é um
bem; dado que também a mente se alegra com a esperança dos prazeres
sensíveis em cujo disfrute a natureza humana pode livrar-se da dor".
(Cícer., Tusc., fil,
18, fr. 69, Usener. Confrontar com 67, 68 e 70, Usener). É claro aqui
que o bem se restringe ao âmbito do prazer sensível ao qual pertence
também o prazer que a música dá ("os prazeres dos sons")

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e a contemplação da beleza ("prazeres das belas imagens"); e que o


prazer espiritual se reduz à esperança do próprio prazer sensível. Pode
ser que o carácter polémico do fragmento (dirigido provavelmente contra
o protréptico de Aristóteles, o qual platonicamente exaltava a
superioridade do prazer espiritual, § 69), tenha levado Epicuro a
acentuar a sua tese da sensibilidade do prazer. Mas é claro que esta
tese deriva necessariamente da sua doutrina fundamental que faz da
sensação o cânon fundamental da vida do homem. Que o verdadeiro bem não
seja o prazer violento, mas o estável da aponia e da ataraxia não é
coisa que contradiga a tese da sensibilidade do prazer porque a aponia é
"o não sofrer no corpo" e a ataraxia é "o não ser perturbado na alma"
pela preocupação da necessidade corpórea.

Mas, por isto, a doutrina de Epicuro não se pode confundir com um vulgar
hedonismo. Opor-se-ia a tal hedonismo o culto da amizade que foi
característico da doutrina e da conduta prática dos Epicuristas. "De
todas as coisas que a sageza nos oferece para a felicidade da vida, a
maior é de longe a aquisição da amizade" (Max. cap., 27). A amizade
nasceu do útil, mas ela é um bem por si mesma. O amigo não é aquele que
procura sempre o útil, nem quem nunca o une à amizade, dado que o
primeiro considera a amizade como um tráfico de vantagens, o segundo
destrói a confiada esperança de ajuda que constitui grande parto da
amizade (Sentenças Vaticanas, 39, 34, Bignone).

Opor-se-ia também ao referido hedonismo a exaltação da sageza. Seria


certamente melhor, segundo Epicuro, que a fortuna tornasse próspera em
todos os casos a sageza; mas é sempre preferível a sageza desafortunada
à insensatez afortunada (Ep. ad Men., 135). Ainda que a justiça seja
somente uma convenção que os homens estabeleceram entre si

49
para a utilidade comum, isto é, para que se evite
* fazer-se recIprocamente dano, é muito difícil que
* sage se deixe arrastar a cometer uma injustiça ainda que esteja seguro
de que o seu acto permanecerá desconhecido e que, por isso, não lhe
trará dano. "Quem alcançou o fim do homem, ainda que ninguém esteja
presente, será igualmente honesto" (fr. 533, Usener).

A atitude do epicurista para com os homens em geral é definida pela


máxima: "É não só mais belo, mas também mais agradável fazer o bem do
que recebê-lo" (fr. 544). Nesta máxima o prazer surge de facto como
fundamento e a justificação da solidariedade entre todos os homens. E,
na verdade, Diógenes Laércio testemunha-nos o amor de Epicuro pelos seus
pais, a sua fidelidade aos amigos, o seu sentido de solidariedade humana
(X, 9).

Quanto à vida política, Epicuro reconhecia as vantagens que ela traz aos
homens, obrigando-os a acatar as leis que os impedem de se prejudicarem
mutuamente. Mas aconselhava ao sage que permanecesse alheio à vida
política. O seu preceito é: "vive escondido" (fr. 551). A ambição
política só pode ser fonte de perturbaçã o e, portanto, obstáculo para o
alcançar da ataraxia.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 96. As notícias antigas sobre a vida, os escritos e a doutrina de


Epicuro e dos epicuristas foram recolhidas pela primeira vez por H.
USENER, Epicurea, Leipzig, 1887. - BIGNONE, Epicuro, obras, fragmentos,
testemunhos sobre a vida, traduzidos com introdução e comentários, Bari,
1920; DIANO, Epicuri Ethica, Florença, 1946; ARRIGITEM, Epicuro. Opere,
Introdu- ção, texto critico, tradução e notas, Turim, 1960. Oo últimos
volumes recolhem também oe fragmentos encontrados nos papiros de
HercuLano. -Sobre a formaçAo da doutrina epicurista: BIGNONF,, LIAr~tele

50

perduto e Ia form_azione filosofica di Epicuro, 2 vols., Florença, 1936;


DIANO, Note epicuree, in ".4=ali Scuola normale superiore di Pisa",
1943; Questione epicuree, in. "Giornale critico filosofia italiana",
1949.

§ 97. Sobre os discípulos de Epicuro: ZELLER, M, 1, p. 378 ss.;


LuCRÉCio, De rerum natura, ed. Giussani, Turim, 1896-98. Os Fragmentos
de Filodemo encontram-se nas citadas compilaçóes: o De signis, ed.
GOMPERZ, Le-,ipzig, 1865; ed. e tradução inglesa DE LAcy, Filadélfia,
1941; Diógenes de Enoanda, fragmentos editados por WILLIAM, Leipzig,
1907.

§ 99. Sobre Epicuro em geral: BAILEY, The Greek Atomists and Epicurus,
Oxford, 1928; N. W. DE WITT, Epicurus and his Philosophy, Minneapolis,
1954.

§ 100. C. DIANO, La psicologia di Epicuro, in "Giornale critico


filosofia Italiana", 1939; V. E. ALFIERI, Studi di filosofia greca,
Bari, 1950.

§ 101. GuyAu, La morale d'Epicure, Paris, 1886; MONDOLFO, Problemi del


pensiero antico, Bolonha, 1936.

x_V

O CEPTICISMO

§ 102. CARACTERISTICAS DO CEPTICISMO

A palavra cepticismo deriva de sképsi*s, que significa indagação. Em


conformidade com a orientação geral da filosofia pós-aristotélica, o
Cepticismo tem como objecto o alcançar da felicidade como ataraxia. Mas
enquanto o Epicurismo e o Estoicismo punham a condição da mesma numa
doutrina determinada, o Cepticismo coloca tal condição na crítica e na
negação de toda a doutrina determinada, numa indagação que ponha em
evidência a inconsistência de qualquer posição teorético-prática, as
considere a todas igualmente falazes e se abstenha de aceitar alguma. A
tranquilidade do espírito em que consiste a felicidade, consegue-se,
segundo os cépticos, não já aceitando uma doutrina, mas refutando
qualquer doutrina. A indaga- ção (sképsis) é o meio de alcançar esta
refutação e, por conseguinte, a ataraxia.

Daqui resulta a mudança radical e também a decadência profunda que o


conceito de investiga-

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ção sofre por obra do cepticismo. Se se confronta o conceito céptico de


indagação, como instrumento da ataraxia, com o conceito socrático e
platónico da procura, a mudança é evidente. Para Sócrates e Platão, a
primeira exigência da procura é a de encontrar o próprio fundamento e a
própria justificação, a de organizar-se a articular-se internamente, a
de aprofundar-se a si própria para reconhecer as condições e os
princípios que a tornam possível. A indagação céptica não procura
justificação em si própria. A ela basta-lhe levar o homem à refutação de
toda a doutrina determinada e, portanto, à ataraxia. Por isso se nutre
quase exclusivamente da polémica contra as outras escolas e se aplica a
refutar os diferentes pontos de vista, sem nunca dirigir o olhar para si
própria, para o fundamento e o valor do seu procedimento.

Indubitavelmente, ainda assim, a indagação céptica desempenhou uma


tarefa histórica notável, afastando as escolas filosóficas
contemporâneas da sua estagnação dogmática e estimulando-as
incessantemente à indagação dos fundamentos dos seus postulados.

O cepticismo não é uma escola mas a orientação seguida na Grécia por


três escolas diferentes: La a escola de Pirro de Elis, no tempo de
Alexandre Magno; 2.a a média e nova Academia; Ia os Cépticos
posteriores, a começar por Enesidemo, os quais defendem um retorno ao
pirronismo.

§ 103. PIRRO

Pirro, natural de Elis, pôde ainda conhecer talvez na sua cidade, a


dialéctica da escola eleo-megárica (§ 33) que, em muitos aspectos, é um
antecedente do Cepticismo. Participou na campanha de Alexandre Magno no
Oriente juntamente com o
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democritiano Anaxarco. Fundou na pátria uma escola que depois da sua


morte teve pouca duração. Viveu na pobreza e morreu muito velho cerca de
270 a.C.. Não deixou escritos. Conhecemos as suas doutrinas através da
exposição de Diógenes Laércio (IX, 61, 108) e pelos fragmentos de Sílloi
(ou versos burlescos) com os quais o seu discípulo Tímon de Fliunte
(329-230 a.C. aproximadamente) expôs e defendeu a sua doutrina.

Os Sofistas tinham oposto a natureza à convencionalidade das leis e


tinham distinguido o que é bem por natureza daquilo que é bem por
convenção. Pirro renova esta distinção, mas apenas para negar que
existam coisas verdadeiras ou falsas, belas ou feias, boas ou más, per
natura. Tudo aquilo que é julgado tal é julgado tal " por convenção ou
por costume", não por verdade e por natureza. Já que para o conhecimento
humano as coisas não são verdadeiramente apreensíveis e a única atitude
legítima por parte do homem é a suspensão de qualquer juízo (epoché)
sobre a sua natureza: o não afirmar de qualquer coisa que é verdadeira
ou falsa, justa ou injusta e assim sucessivamente.

Esta suspensão leva a admitir que todas as coisas são indiferentes para
o homem e evita que se conceda qualquer preferência a uma mais do que a
outra. Assim a suspensão do juízo é já por si mesma ataraxia, ausência
de qualquer perturbação ou paixão. Para ser coerente, Pirro, que não
tinha fé nos sentidos, andava em redor sem olhar e sem se esquivar de
nada, afrontando os carros se os encontrava, precipícios, cães, etc.
(Diog. L., IX, 62).

Timón de Fliunte rebatia a doutrina do mestre, considerando que, para


ser feliz, o homem devia conhecer três coisas: La qual é a natureza das
coisas; 2 a que posição é necessário tomar frente a elas; Ia que
consequências resultarão dessa atitude. Mas as coisas mostram-se todas
igualmente indife-

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rentes, incertas e indiscerníveis. Por isso a única atitude possível é a


de não se pronunciar a respeito de nenhuma delas (afasia) e a de
permanecer completamente indiferente frente a elas (ataraxia).

§ 104. A MÉDIA ACADEMIA

A escola de Pirro esgotou-se muito depressa; mas a orientação céptica


foi retomada pelos filósofos da Academia que encontravam o fundamento
dela no próprio interior da doutrina platónica. Com efeito, Platão
sustentara constantemente que não pode haver ciência do mundo sensível
(§ 59). Esta concerne ao mundo do ser, não ao mundo dos sentidos, a
respeito do qual só se podem alcançar opiniões prováveis. Mas a
especulação em torno do mundo do ser já não interessava os filósofos
deste período, os quais pediam à filosofia que se convertesse em
instrumento dos fins práticos da vida. E assim, da doutrina platónica,
conservava actualidade apenas a sua parte negativa, precisamente aquela
que negava validade de ciência ao conhecimento do mundo sensível e
reduzia tal conhecimento a mera opinião provável.

Aquele que iniciou este novo rumo da Academia foi Arquesilau de Pitane
(315/14-241/40) que sucedeu a Cratete na direcção da escola. Arquesilau
não escreveu nada, de modo que conhecemos as suas doutrinas só
indirectamente.

Segundo um testemunho de Cícero (De orat., 111,


18, 67), ele não manifestou nenhuma opinião própria, mas limitou-se a
discutir as opiniões que os outros exprimiam. Quis imitar a Sócrates,
mas para ir mais longe do que o próprio Sócrates. Se Sócrates afirmava
que o homem nada pode saber a não ser precisamente que não sabe nada,
Arquesilau negava que também isto se pudesse afirmar

56

com segurança. Por Sexto Empírico sabemos que as suas críticas


principais foram dirigidas ao seu contemporâneo Zenão de Citium, o
fundador da Stoa. Arquesilau negava que existisse uma representação
catalética porque negava que existisse uma representação que não possa
tornar-se falsa. Por isso a função do sage não é a de dar o assentimento
a uma representação qualquer, mas abster-se de qualquer assentimento.
Quanto à acção, ela não tem necessidade da representação catalética.
Arquesilau sustentava que a regra daquilo que se deve escolher ou evitar
é o bom senso ou a equidade (eulogia) que é a base da sageza (Sexto E.,
Adv. math., VII, 153 ss.).

Seguiram-se a Arquesilau como chefes da escola outros mestres (Lacides,


Telecles, Evandro, Hegesino) dos quais não se sabe nada, excepto que
seguiram a orientação de Arquesilau. Ao último sucedeu Carnéades.

§ 105. A NOVA ACADEMIA

Carnéades de Cirena (214/12-129/28) é considerado o fundador da terceira


ou nova Academia e foi homem notável por sua eloquência e doutrina. Em
156155 foi em embaixada a Roma juntamente com o estoico Diógenes e com o
peripatético Critolau. Também ele não deixou escritos e as suas
doutrinas foram recolhidas pelos discípulos.

A doutrina de Carnéades define-se sobretudo em oposição à do estoico


Crisipo. "Se Crisipo não tivesse existido, também eu não existiria",
dizia Carnéades (Diog. L., IV, 62). Carnéades considera que o saber é
impossível e que nenhuma afirmação é verdadeiramente indubitável.
Durante a sua permanência em Roma, pronunciou um dia um discurso
belíssimo em louvor da justiça, demonstrando que ela é a base de toda a
vida civil. Mas, ao outro

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dia, pronunciou um novo discurso, ainda mais convincente do que o


primeiro, demonstrando que a justiça é diferente segundo os tempos e os
povos e que está muitas vezes em contradição com a sageza. E demonstrava
este contraste com o próprio exemplo do povo romano que se havia
apoderado de todo o mundo, arrancando aos outros a sua posse. "Se os
romanos quisessem ser justos -disse ele- deveriam restituir aos outros
as suas possessões e voltar para casa na miséria, mas em tal caso seriam
estultos; e assim sageza e justiça não caminham de acordo" (Lactâncio,
Ist. div., 5,
14). Carnéades criticou no mesmo espírito todas as doutrinas
fundamentais dos Estoicos e principalmente a do destino e da
providência, sustentando que as desmentia no seu pressuposto, que é a
necessidade, pela existência do acaso e da liberdade humana (Cicer., De
fato, 31-34). Ele utilizou, além disso, as antinomias megáricas, por
exemplo a do mentiroso, para demonstrar a impossibifidade de decidir com
a dialéctica aquilo que é verdadeiro ou falso. Finalmente considerou
falacioso o critério estoico da representação catalética, negando que os
sentidos ou a razão pudessem valer como critérios de verdade.

Quanto à conduta da vida e à conquista da felicidade, admitia, contudo,


um critério. Tal critério, porém, não é objectivo, isto é, não consiste
na relação da representação com o seu objecto, com base na qual a
própria representação poderia ser verdadeira ou falsa, mas subjectivo,
isto é, inerente à relação da representação com quem a possui. É
portanto um critério, não de verdade, mas de credibilidade. Se não se
pode dizer qual seja a representação verdadeira, isto é, correspondente
ao objecto, pode-se dizer qual é a representação que aparece como
verdadeira ao sujeito. A esta representação, chama Carnéades plausível
ou persuasiva

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(pitanon). Se uma representação persuasiva não é contraditada por outras


representações do mesmo género, ela tem um grau maior de probabilidade:
assim os médicos, por exemplo, diagnosticam uma doença por vários
sintomas concordantes. Finalmente, a representação provável, não
contraditada, examinada em todas as suas partes, é o terceiro e mais
alto grau de probabilidade (Sexto E., adv. math., VII, 162 ss.).

A Carnéades sucedeu na direcção da escola um seu parente com o mesmo


nome, e a este outras figuras menores, depois dos quais foi seu chefe
Fjlón de Larissa, o fundador da quarta Academia.

§ 106. OS úLTIMOS CÉPTICOS

Abandonada pela Academia, a orientação céptica foi retomada por outros


pensadores que quiseram ater-se directamente ao fundador do cepticismo,
Pirro. Estes pensadores que floresceram do último século a.C. ao 11
século d.C. não quiseram formar uma escola mas apenas uma orientação
(agoghé). Os principais foram Enesidemo, Agripa e Sexto Empírico.

Enesidemo de Cnossos ensinou em Alexandria. Escreveu oito livros de


Discursos pirrónicos que se perderam. Pelas repetidas afirmações de
Cícero, que considera extinto o pirronismo no seu tempo, deduz-se que
Enesidemo devia ter iniciado a sua actividade depois da morte de Cícero
(43 a.C.) Segundo Sexto Empírico, o cepticismo era considerado por
Enesidemo como um caminho para a filosofia de Heraclito: "0 facto de que
os contrários parecem pertencer a uma mesma coisa, leva a admitir que
eles são verdadeiramente a mesma coisa" (Pirr. hyp., 1, 210). Esta
afirmação não significa

59

que Enesidemo tenha passado do cepticismo para o heraclitismo, mas


apenas que, como já Platão no Teeteto, via no heraclitismo, que
identifica os opostos, o fundamento de toda a concepção céptica que
considera os opostos igualmente verdadeiros ou igualmente falsos.

Segundo Sexto Empírico, Enesidemo admitia dez modos (tropi) para chegar
à suspensão do juízo.
O primeiro é a diferença entre os animais, pela qual não podemos julgar
entre as nossas representações e as dos animais, porque derivam de
diferentes constituições corpóreas. O segundo é a diferença entre os
homens; o terceiro o da diferença entre as sensações; o quarto, o das
circunstâncias, isto é, das diferentes disposições humanas. O quinto é o
das posições, dos intervalos e dos lugares. O sexto, o das misturas. O
sétimo, o da quantidade e composições dos objectos. O oitavo, o da
relação das coisas entre si e com o sujeito que as julga. O nono, o da
continuidade ou raridade dos encontros entre o sujeito que julga e os
objectos. O décimo, o da educação, dos costumes, das leis, das crenças,
e das opiniões dogmáticas. Cada um destes modos estabelece uma
diversidade nos conhecimentos humanos

ou uma equivalência dos conhecimentos diversos, que se obtém segundo a


diversidade dos mesmos modos. Se as sensações são diferentes (3.' modo)
para os diferentes homens (2.' modo) ou em diversas circunstâncias (4.O
modo), como -se pode distinguir entre a verdadeira e a falsa? Se os
objectos surgem como diferentes segundo se apresentam misturados ou
simples (6.O modo) ou em número maior ou menor (7.O modo) ou segundo se
apresentam isolados ou em relação (8.' modo) ou raramente ou
frequentemente ao homem (9.' modo), como se faz para decidir qual é a
verdadeira realidade do objecto? Não resta, pois, outra possibilidade
senão

60

suspender qualquer juízo. Leva a esta mesma conclusão a consideração da


diversidade entre as crenças e as opiniões humanas, diversidade que
torna impossível decidir-se por uma ou outra delas.

A Agripa (de quem não se sabe nada), atribui Sexto Empírico outros cinco
modos para alcançar a suspensão do juízo, modos de carácter dialéctico,
úteis sobretudo para refutar as opiniões dos dogmáticos: 1.' o modo da
discordância, que consiste em mostrar um dissídio insanável entre as
opiniões dos filósofos e, por conseguinte, a impossibilidade de escolher
entre elas, 2.' o modo que consiste em reconhecer que toda a prova parte
de princípios que, por ;sua vez, exigem prova e assim até ao infinito;
3.O o modo da relação, pelo qual nós conhecemos o objecto relativamente
a nós, e não qual é em si próprio; 4.' o modo da hipótese, pelo qual se
vê que toda a demonstração se funda em princípios que não se demonstram,
mas se admitem por convenção; 5.O o círculo vicioso (dialelo), pelo qual
se assume como demonstrado precisamente aquilo que se deve demonstrar: o
que demonstra a impossibilidade da demonstração.

Outros Cépticos, sempre segundo Sexto Empírico (Pirr. hyp., 1, 178),


reduziam todos estes modos a dois modos fundamentais de suspensão, isto
é, demonstrando que não se pode compreender nada nem por si nem na base
de outro. Que nada se

possa compreender por si, resulta do desacordo existente entre as


opiniões dos homens, desacordo insanável, não havendo nenhum
critério que, por sua vez, não seja objecto de desacordo. Que nada se
possa compreender na base de outro, resulta do facto de que, neste caso,
seria necessário ir até ao infinito ou fechar-se num círculo, dado que
toda a
coisa, para ser compreendida, requererá uma outra e assim
sucessivamente.

61

§ 107. SEXTO EMPIRICO

A fonte de todas as notícias sobre o Cepticismo antigo é a obra de Sexto


que, como médico, teve o sobrenome de Empírico e desenvolveu a sua
actividade entre 180 e 214 d.C. Possuímos dele três escritos. Os
Elementos (Ipotipposi) pirronianos, em três livros, são uni compêndio de
filosofia céptica. Os outros dois surgem, tradicionalmente, sob o título
impróprio de Contra os matemáticos. Ora o màtema é o ensino em
significado objectivo, a ciência enquanto objecto do ensino; matemáticos
são pois os cultores da ciência, isto é, da gramática, da retórica e das
ciências do quadrívio (como foram chamadas na Idade Média) que Platão na
República considerava como propedêuticas da dialéctica: geometria,
aritmética, astronomia e música. Contra esta ciências são dirigidos os
livros I-IV da obra. Os livros V11-XI são dirigidos contra os filósofos
dogmáticos. Estes escritos de Sexto são importantes não só porque
representam a súmula de todo o Cepticismo antigo, como também porque são
fontes preciosas para o conhecimento das próprias doutrinas que
combatiam. Os pontos mais famosos das refutações de Sexto, além da
doutrina dos tropos, são os seguintes:

Crítica da dedução e da indução.-A dedução é sempre um círculo vicioso


(dialelo). Quando se diz: "Todo o homem é animal, Sócrates é homem,
portanto Sócrates é animal", não se poderia admitir a premissa "todo o
homem é animal" se não se considerasse já como demonstrada a conclusão,
que Sócrates, como homem, é animal. Por isso, quando se tem a pretensão
de demonstrar a conclusão, derivando-a de um princípio universal, na
realidade já se a pressupõe demonstrada. Por outro lado, a indução não
tem maior validade. Com efeito, se ela se funda apenas no exame de
alguns casos, não é

62

segura, podendo desmenti-la em qualquer altura. os casos não examinados,


e se se pretende que se funda em todos os casos particulares, o seu
objectivo é impossível porque tais casos são infinitos (Pirr. hyp.,
11, 193, 204).

Crítica do conceito de causa.-Diz-se que a causa produz o efeito,


portanto ela deveria preceder o efeito e existir antes dele. Mas se
existe antes de produzir o efeito, é causa antes de ser causa. Por outro
lado, é evidente, a causa não pode seguir o efeito nem ser contemporânea
dele porque o efeito só pode nascer da coisa que existe antes (Pirr.
hYp., 111).

Crítica da teologia estoica. -Sexto insistiu longamente nas contradições


implícitas no conceito estoico da divindade. Segundo os Estoicos, tudo
aquilo que existe é corpóreo; portanto, também Deus. Mas um corpo ou é
composto e está sujeito a decomposição, portanto mortal; ou é simples e
então é água ou ar ou terra ou fogo. Por conseguinte, Deus deveria ser
ou mortal ou um elemento inanimado, o que é absurdo (Adv. math., IX,
180). Por outro lado, se Deus vivesse sentiria, e se sentisse, receberia
prazer e dor; mas dor significa perturbação e se Deus é capaz de
perturbação é mortal. Outras dificuldades derivam de atribuir a Deus
todas as perfeições. Se Deus tem todas as virtudes, também tem a
coragem; mas a coragem é a ciência das coisas temíveis e não temíveis,
portanto é qualquer coisa de temível para Deus, o que é absurdo (lb.,
lX, 152 ss.). Sexto Empírico servia-se de todos estes argumentos para
reforçar a posição céptica da suspensão do juízo.

Na vida prática o céptico deve, segundo Sexto, seguir os fenómenos. Por


isso são quatro os seus guias fundamentais: as indicações que a natureza
lhe dá através dos sentidos, as necessidades do corpo, a tradição das
leis e dos costumes e as regras das

63

artes. Com estas regras, os últimos, Cépticos procuraram diferenciar-se


do critério, sugerido pela média Academia, da acção motivada ou
racional. Segundo Sexto, a diferença fundamental entre o Cepticismo
pirrónico o o dos Académicos é este: que enquanto os Académicos só
admitiam saber que não é possível saber nada, os pirrónicos evitavam
também esta asserção e limitavam-se à procura (Pirr. hyp., 1, 3). Sexto
Empírico quis, noutros termos, realizar o ideal de uma investigação que
seja apenas investigação, sem ponto de partida nem ponto de chegada.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 102. Sobre o desenvolvimento do cepticismo antigo: BROCHARD, Les


sceptiques grees, Paris, 1887; GOEDECKEMEYER, Die Geschichte der
griechischen 8keptizismus, Leipzig, 1905; DAL PRA, Lo scetticismo greco,
Milão, 1950.

§ 103. Sobre Pirro: noticias antigas sobre a vida e a doutrina, in


DIóGENES LAÉRCIO, ]EX, 61-108; sobre Timon: ID., IX, 1099-116; DIELS,
POêt, philOS. fragm.,
182 ss.; ZELLER, 111, 1, p. 494 ss.-ROBIN, Pyrrhon et le Scepticisme
grec, Paris, 1944. § 104. Sobre a vida, os escritos -e a doutrina de
Arquesil-au e da Média Academia: DIóGENEs LAÉRCIO, IV, 28-45
(Arquesilau), 59-61 (Lacides).

Para a doutrina, as fontes mais importantes são CICERO, Opp. filos., e


STOBEO, Eclogae, lI, 39, 20 ss..

Sobre a Média Academia: ZELLER, IlT, 1, 507 ss.; CREDARO, Lo scetticismo


degli Accademici, 2 vols., Milão, 1889-93. Sobre a lõgica: PRANTL, 1,
496 ss.

§ 105. Sobre Carnéades: DióGENES LAÉRCIO, IV,


62-66; ZELLER, M, 1, 516 ss..

§ 106. Sobre Enesidemo: DiOGENEs LAÉRCIO, IX,


109-116; ZELLER, 111, 2, 1 ss.. Sobre Agripa: DiõGENES LAÉRCIO, ]IX, 88
ss.; ZELLER, 111, 2, p. 47 ss..

§ 107. As obras de Sexto Empírico foram editadas por Bekker, Berlim,


1892. Os Elementos Pirrõ-

64
nicos e Contra os dogmáticos foram editados criticamente por Mutschmann,
Leipzig, 1912-14. Os Elementos foram traduzidos para italiano por
BISSOLATI, Ipotiposi pirroniani, Flor(-nça, 1917, e por TESCARI, Schizzi
pirroniani, Bari, 1926. Sobre Sexto, ver ZELLER, III,
2. p. 49 ss.. Sobre a lógica do Cepticismo: PRANT4 ob. cit., p. 497 ss..

65

XVI

O ECLECTISMO

§ 108. CARACTERíSTICAS DO ECLECTISMO

As três grandes escolas filosóficas pós-aristotélicas. - Estoicismo,


Epicurismo e Cepticismo , ainda que em desacordo nos seus pressupostos
teóricos, mostram um acordo fundamental nas suas conclusões práticas.
Sustentam as três que o fim do homem é a felicidade e que a felicidade
consiste na ausência de perturbação e na eliminação das paixões; colocam
as três o ideal do sage na indiferença relativamente aos motivos
propriamente humanos da vida. Esta concordância no terreno prático devia
limar necessariamente o antagonismo das respectivas posições teóricas e
aconselhar, óbviamente, a encontrar um terreno de encontro sobre o qual
as três orientações pudessem conciliar-se e fundir-se. O eclectismo (de
ek-légo, escolher) representa precisamente esta tendência.

As condições históricas favorecem o eclectismo. Depois da conquista da


Macedónia pelos romanos (186 a.C.), a Grécia tornara-se de facto uma
pro-

67

víncia do Império Romano. Roma começou a acolher e a cultivar a


filosofia grega que se torna um elemento indispensável da cultura
romana. E, por sua parte, a filosofia grega vai-se adaptando
gradualmente à mentalidade romana. Mas esta era pouco apta para dar
relevo a divergências teoréticas das quais não surgisse uma diferença na
conduta prática; de modo que o intento de escolher, nas doutrinas das
várias escolas, os elementos que se prestassem para serem conciliados e
fundidos num corpo único encontrou o mais válido apoio na mentalidade
romana. Mas, dado que a escolha destes elementos supunha um critério,
chegou-se a admitir como critério o acordo comum dos homens (consensus
gentium) sobre cortas verdades fundamentais, admitidas como subsistentes
no homem independentemente e antes de qualquer investigação.

A orientação ecléctica apareceu pela primeira vez na escola estoica,


dominou por largo tempo na Academia e foi acolhida também pela escola
peripatética. Só os Epicuristas se mantiveram estranhos ao Eclectismo,
permanecendo fiéis à doutrina do mestre.

§ 109. O ESTOICISMO ECLÉCTICO

O encaminhar da escola estoica para o Eclectismo que começou com Bocto


de Sídon (falecido em 119 a.C.), torna-se decisivo com Panézio de Rodes
que viveu entre 185 e 109 a.C.. Viveu em Roma por algum tempo juntamente
com o historiador Políbio; foi amigo de muitos nobres romanos, entre os
quais Cipião o Africano e Lélio-, mestre de muitos outros; e teve
certamente grande influência no desenvolvimento do interesse filosófico
em Roma. Dos seus escritos restam-nos os títulos. Um deles, Sobre o
Dever, foi o modelo do De officiis de Cícero. Panézio foi um grande
admira-

68

dor de Aristóteles o inspirou-se em muitos pontos na sua doutrina. Com


efeito, afirmou, com Aristóteles e contra a doutrina clássica do
Estoicismo, a eternidade do mundo. Distinguiu na alma três partes:
vegetativa, sensitiva e racional, seguindo também nisto Aristóteles e
separando nitidamente a parte racional das outras.

O mais famoso discípulo de Panézio foi Posidónio de Apameia, na


Síria, que nasceu cerca de
135 a.C. e morreu com 84 anos como chefe da escola que fundara em
Rodes, escola na qual tinha tido como auditores Cícero, e Pompeu. Das 23
obras que lhe são atribuídas apenas temos fragmentos. Posidónio recolheu
na sua doutrina muitos elementos platónicos: a imortalidade da alma
racional e

a sua pré-existência; a atribuição das emoções, que para o Estoicismo


apenas tinham importância negativa como enfermidades da alma, à alma
concupiscível, compreendida como uma potência inerente ao organismo
corpóreo.

§ 110. O PLATONISMO ECLéCTICO

A orientação céptica, que prevalecera na Academia com Carnéades e os


seus sucessores imediatos, modificou-se no sentido do Eclectismo com
Ffion de Larissa que foi a Roma durante a guerra de Mitrídates (88 a.C.)
e aqui teve, entre os seus ouvintes, Cícero. Ffion abandona já o
princípio da suspensão do assentimento que é fundamental para os
Cépticos. O homem não pode alcançar a certeza incondicionada da ciência,
mas pode conseguir formular a clareza (enàrgheia), a evidência de uma
convicção satisfatória: pode, portanto, formular uma

teoria ética completa, combatendo as falsas doutrinas morais e ensinando


as justas.

69

Mas a própria certeza incondicionada que Filon excluía foi admitida pelo
seu sucessor, Antíoco de Ascalona, com o qual a Academia abandona
definitivamente o cepticismo para inclinar-se para o eclectismo. Antíoco
(morto em 68 a.C.) foi também mestre de Cícero que ouviu as suas lições
no Inverno de 79-78 e entrou em polémica literária com Ffion. Sem uma
certeza absoluta não é possível, segundo Antíoco, nem sequer estabelecer
graus de probabilidade, dado que a probabilidade se pode julgar somente
pelo fundamento da verdade e não se pode admitir aquela se não se está
na posse desta. Como critério da verdade ele colocava o acordo entre
todos os verdadeiros filósofos e procurou demonstrar esse acordo entre
as doutrinas académicas, peripatéticas e estoicas, só o conseguindo à
custa de graves deformações.

Ao eclectismo de Antíoco liga-se o de Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.)


que deve a sua importância, não à originalidade do pensamento, mas à sua
capacidade de expor de forma clara e brilhante as doutrinas dos
filósofos gregos contemporâneos ou precedentes. O próprio Cícero
reconhece a sua dependência das fontes gregas dizendo das suas obras
filosóficas numa carta Ad Attico (XII, 52, 3): "custam-me pouca fadiga,
porque de meu incluo só as palavras que, não me faltam". Dos principais
escritos de Cícero, o De republica e o De legibus têm como fontes
Panézio e Antíoco; o Hortênsio que se perdeu inspirava-se no Protréptico
de Aristóteles; os Academia, em Antíoco; o De finibus no mesmo Antíoco
e, quanto ao epicurismo, em Zenão e Filodemo. As Tusculanae dependem dos
escritos do académico Crantore, de Panézio, de Antíoco, do estoico
Crisipo, de Posidónio. O De natura deorum, de várias fontes estoicas e
epicuristas. O De oficies, de Panézio; os outros esciftos menores, de
fontes análogas.

70

Como Antíoco, Cícero admite como critério da verdade o consenso comum


dos filósofos e explica tal consenso com a presença em todos os homens
de noções inatas, semelhantes às antecipações do Estoicismo. Na física,
rejeita a concepção mecânica dos Epicuristas. Que o mundo possa formar-
se, devido a forças cegas, parece-lhe tão impossível como, por exemplo,
obter os Annales de Énnio atirando ao chão desordenadamente um grande
número de letras alfabéticas. Mas quanto a resolver de modo positivo os
problemas da física, Ocero considera isso impossível e assim adopta,
neste ponto, uma posição céptica. Na ética, -afirma o valor da virtude
por si própria, mas oscila entre a doutrina estoica e a académico-
peripatética. Afirma a existência de Deus e a liberdade e a imortalidade
da alma, mas evita afrontar os problemas metafísicos inerentes a tais
afirmações.

Semelhante à posição de Cícero é a do grande erudito seu amigo, Marco


Terêncio Varrão (116-27 a.C.). Varrão manteve-se fiel à ética de
Antíoco. Em contrapartida, aceitava de Panézio a distinção da teologia
em mítica, física e política. A teologia mítica é constituída pelas
representações que os poetas dão da divindade. A teologia física é a que
é própria das teorias dos filósofos em torno do inundo e de Deus. A
teologia política é a que encontra a sua expressão nas disposições
legislativas que se referem ao culto. Por sua parte, Varrão aceitava o
conceito estoico da divindade como alma do mundo.

§ 111. O ARISTOTELISMO ECLÉCTICO

A orientação ecléctica nunca se radicou profundamente na escola


peripatética. Andrónico de Rodes, que de 70 a.C. em diante e durante 10
ou 11 anos foi o chefe da escola peripatética de Atenas, é

71

sobretudo famoso por ter cuidado da edição dos escritos acroamáticos de


Aristóteles e por ter iniciado os comentários às obras do mestre a que
se dedicaram em seguida todos os peripatéticos. O seu principal
interesse aparece ligado à lógica.

Entre os eclécticos peripatéticos são de enumerar o grande astrónomo


Claudio Ptolemeu, no qual exerceram influência alguns elementos da
investigação platónica e estoica e a doutrina pitagórica dos números, e
o médico Galeno (129-199 a.C.) que foi a maior autoridade em medicina
até à Idade Moderna. Ao lado das quatro causas aristotélicas: matéria,
forma, causa eficiente e causa final, Galeno admitiu uma quinta, a causa
instrumental, isto é, o instrumento ou o meio mediante o qual as outras
quatro operam e que Aristóteles considerara idêntica à causa eficiente.
Galeno foi talvez o primeiro também a -introduzir na lógica aristotélica
o tratamento dos silogismos hipotéticos, modelados sobre os anapodíticos
dos Estoicos: as afirmações de Alexandre de Atrodísia que atribuíam aos
primeiros aristotélicos (Teofrasto o Eudemo) esta inovação não encontram
confirmação. Por silogismo hipotético entende ele o silogismo que
tem como premissa uma proposição condicional ou disjuntiva, como nos
esquemas seguintes: "Se S é, é P; mas S é, portanto é P.); "S é ou P ou
Q; mas não é Q; portanto é P". Na sua Introdução à Dialéctica, Galeno
afirmava que enquanto o silogismo categórico (,isto é , aristotélico) se
requer nos raciocínios dos matemáticos, o hipotético requer-se para
discutir problemas como estes: "Existe o fado?", "Existem os deuses?",
"Existe a providência?" que são problemas da física estoica. De agora em
diante o tratamento do silogismo hipotético começou a fazer parte do
corpo da lógica aristotélica e transmitiu-se como tal, através de
Boécio, à lógica medieval.

72

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CICERO

O último peripatético de alguma importância foi Alexandre de Afrodísia


(ensinou em Atenas entre
198 e 211), o famoso comentador de Aristóteles, o exegeta por
excelência. O seu comentário só nos chegou em parte. Alexandre propunha-
se por ele aclarar e defender a doutrina de Aristóteles contra as
afirmações opostas das outras escolas e especialmente dos Estoicos. O
ponto do seu comentário que iria ter na Idade Média e no Renascimento
maior importância é o que se refere ao problema do intelecto activo.
Alexandre distingue três intelectos: 1.o intelecto físico ou material,
que é o intelecto potencial; ele é semelhante ao homem que é capaz de
aprender uma arte mas não está ainda na sua posse; 2.' o intelecto
adquirido, que é a capacidade de pensar, semelhante ao artista que
consegue a posse da sua arte; 3.O o intelecto activo que opera a
passagem do primeiro para o segundo intelecto. Este não pertence à alma
humana, mas age sobre ela de fora. Ele é a própria causa primeira, isto
é, Deus. Esta doutrina iria oferecer o ponto de partida para as
numerosas interpretações do intelecto activo que se sucederam na
Escolástica Árabe e Latina e no Renascimento.

§ 112. A ESCOLA CíNICA


Na primeira metade do século 111 a.C., Bión de Boristene iniciou
aquele género literário que foi depois a característica da escola
cínica, a diatribe. As diatribes eram prédicas morais contra as
opiniões e os costumes dominantes; prédicas enriquecidas com
múltiplos artifícios retóricos destinados a aumentar a sua eficácia.

Menipo de Gadara, pelos meados do século 111 a.C., nas suas sátiras
escritas em prosa mas intercaladas de versos, representou cenas
burlescas

73

nas quais tomou como alvo os Epicuristas e os Cépticos. Baseado no seu


exemplo, Vairrão escreveu as Sátiras menipeias. Cerca dos meados do
século 111, a escola cínica perdeu a sua autonomia e acabou por fundir-
se com a estoica. No começo da nossa era ela renasce do próprio
Estoicismo; e renasce com o mesmo carácter de discurso petulante e
sarcástico que o mais das vezes não tem nenhuma base filosófica e
nenhuma justificação moral. Difundem-se neste período 51 Cartas
atribuídas a Diógenes e a Crates. Séneca louva muito
* seu contemporâneo Demétrio, que parece ter sido
* renovador do Cinismo.

Dión, chamado Crisóstomo, que viveu nos tempos do imperador Trajano,


surge corno um propagandista popular das doutrinas tradicionais dos
Cínicos.

A escola cínica, que se reduziu a uma simples pregação moral sem


fundamento filosófico, não sofreu a influência dos sucessivos
desenvolvimentos da especulação e sobreviveu até ao século V d.C.

§ 113. SÉNECA

O Estoicismo do período romano, ainda que obedecendo à orientação


ecléctica, geral da época, orientação para a qual as divergências
teóricas passam para segundo plano frente ao acordo fundamental das
conclusões práticas, a que se subordina completamente a investigação
filosófica, mostra já de modo evidente um carácter que a fase ulterior
da especulação deveria acentuar: a prevalência do interesse religioso.
Esta prevalência funda-se no

acento que nos estoicos romanos recebe o tema da interioridade


espiritual. A concepção estoica do sage, que é auto-suficiente e alcança
por si a verdade, é o pressuposto do valor que o Estoicismo começa a
reconhecer àquilo que hoje chamamos

74

introspecção ou consciência. Para chegar a Deus e conformar-se com a sua


lei, o sage estoico não tem necessidade de olhar para fora de si; deve
apenas olhar para si próprio. Os estoicos romanos fazem deste retomo do
homem a si próprio um dos seus temas preferidos, tema que devia depois
tornar-se central e dominante no Neoplatonismo. Não se trata, contudo,
de um tema que ofereça ponto de partida para novas formulações
conceptuais. Dos numerosos estoicos da época imperial de que sabemos o
nome e algumas notícias, nenhum apresenta qualquer originalidade de
pensamento. Só quatro deles, Séneca, Musónio, Epicteto e Marco Aurélio
nos aparecem dotados de personalidade filosófica própria.

Lúcio Anneo Séneca, de Córdova, em Espanha, nascido nos primeiros anos


da era cristã, foi mestre e, por longo tempo, conselheiro de Nero, por
ordem do qual morreu em 65 d.C.. Dos seus escritos ficaram-nos sete
livros de Qestioni naturali e numerosos tratados de carácter religioso e
moral (Diálogos, Sobre a Providência, Sobre a Constância do Sage, Sobre
a ira, Sobre a Consolação a Márcia, Da Vida Feliz, Da Brevidade da Vida,
Sobre a Consolação a Políbio, Sobre a Consolação à Mãe Elvia, Dos
Benefícios, Sobre a Clemência). Foi além disso autor de vinte livros de
Cartas a Lucilio que cão uma fonte de notícias sobre o Estoicismo e o
Epicurismo.

Séneca insiste no carácter prático da filosofia: "a filosofia -escreve-


ensina a fazer, não a dizem (F-p., 20, 2). O sage é para ele o "educador
do género humano" (Ep., 89, 13). Por isso descura a lógica e só se ocupa
da física de um ponto de vista moral e religioso. Com efeito, a
ignorância dos fenómenos físicos é a causa fundamental dos temores do
homem e a física elimina tais temores. Além da grandeza do mundo e da
divindade ensina-nos

75

a reconhecer a nossa pequenez. Também, em certo sentido, a física é


superior à própria ética porque enquanto esta trata do homem, aquela
trata da divindade que se revela nos céus e em geral no mundo. (Quest.
nat., 1, Pról.). Contudo, nem a física nem a metafísica de Séneca contêm
algo de original relativamente às doutrinas comuns do Estoicismo. Pe-lo
que respeita ao conceito da alma, pelo contrário, ele inspira-se na
doutrina platónica. Depois de distinguir uma parte racional e uma parte
irracional da alma, distingue nesta última duas partes: uma irascível,
ambiciosa, que consiste nas paixões; a outra humilde, lânguida, dedicada
ao prazer, divisão que corresponde à platónica das partes racional,
irascível e apetitiva da mesma alma. Inspira-se também em Platão ao
considerar a relação da alma com o corpo: o corpo é prisão e tumba da
alma. O dia da morte é para a alma verdadeiramente o dia do nascimento
eterno (Ep.,
102, 26). Séneca está muito longe do rigorismo estoico que colocava um
abismo entre o sage que segue a razão e o estulto que a não segue. Está
convencido que existe sempre uma oposição entre aquilo que o homem deve
ser e aquilo que é na realidade; e que a oscilação entre o bem e o mal é
própria de todos os homens; por isso é levado a considerar com maior
indulgência as imperfeições e as quedas do homem. A sua máxima moral
fundamental é o parentesco universal entre os homens: "Tudo aquilo que
vês, que contém o divino e o humano, tudo é uno: somos todos membros de
um grande corpo. A natureza gerou-nos como parentes dando-nos uma mesma
origem e um mesmo fim. Ela inspirou-nos o amor recíproco e fez-nos
sociáveis" (Ep., 95, 51). Séneca afirma e a interioridade de Deus no
homem: "Não devemos erguer as mãos ao céu nem pedir ao guarda do templo
que nos permita aproximar-nos das orelhas

76

da estátua de Deus, como se assim pudéssemos mais facilmente ser


ouvidos: a divindade está próximo de ti, está contigo, está dentro de
ti" (Ep., 41).
A doutrina de Séneca é assim um estoicismo ecléctico de fundo religioso.
Alguns aspectos desta doutrina, como o conceito da divindade, da
fraternidade e do amor entre os homens e da vida depois da morte estão
tão próximas do cristianismo que fizeram nascer a lenda das relações de
Séneca com S. Paulo, lenda que levou até a falsificar uma
correspondência (que não conservamos) entre ele e o apóstolo. Tais
relações entre Séneca e S. Paulo certamente nunca existiram. Mas não há
dúvida que a sua doutrina, especulativamente pouco notável, está
impregnada por uma inspiração religiosa que lhe dá um carácter original.

§ 114. MUSóNIO. EPICTETO

Musónio Rufo de Volsínio na Etrúria, foi expulso por Nero em 65 d.C.


Regressou seguidamente a Roma e esteve em relações pessoais com o
imperador Tito. Dos seus discursos conservou-nos numerosos fragmentos o
Florilégio de Stobeo. Musónio acentua ainda mais que Séneca o carácter
prático e moralizante da filosofia. O filósofo é o educador e o médico
dos homens; deve curá-los das paixões que são as suas doenças. Para este
fim, não há necessidade de muita ciência, mas apenas de muita virtude.
Musónio inclina-se, por esta desvalorização da actividade teorética,
para o cinismo e isto retira-lhe toda a importância especulativa.

Foi seu discípulo Epicteto de Hierápolis, na

Frígia. Nasceu cerca do ano 50 d.C., era escravo de Epafrodito, liberto


de Nero. Libertado, viveu em Roma até 92-93 d.C. quando o édito de Domi-
77

ciano baniu de Roma todos os filósofos. Fundou então em Nicópolis no


Epiro uma escola à qual pertenceu entre outros Flávio Arriano que
recolheu as suas lições. Dos oito livros de Diatribes ou Dissertações
em que Arriano recolheu tais lições, restam quatro. Além disto, ficou-
nos um Manual que é uma espécie de breve catecismo moral.

A intenção de Epicteto é a de voltar à doutrina original do Estoicismo e


especialmente a Crisipo. Mas a sua doutrina conserva o mesmo carácter da
de Séneca, o predomínio da irreligiosidade. Deus é o pai dos homens
(Diss., 1, 3, 1). Ele está dentro de nós e da nossa alma; por isso o
homem nunca está só (/h., 1, 14, 13). A vida é um dom de Deus e é um
dever obedecer ao preceito divino. Estas e semelhantes expressões
que, ainda que na letra não se afastem muito das expressões análogas
dos outros estoicos, acentuam a dependência do homem em relação a
Deus, e fizeram nascer, também para Epicteto, a opinião de que ora
cristão. Durante a época bizantina, parafraseou-se e comentou-se o
Manual para uso cristão. Na realidade, a diferença entre o moralismo
religioso de Epicteto e Séneca e o Cristianismo, está no facto de que,
para o primeiro, o homem só pode alcançar a virtude através do exercício
da razão e da procura inteiramente autónoma, enquanto para o
Cristianismo o caminho do bem é outorgado ao homem pelo próprio Deus.

Segundo Epicteto, a virtude é liberdade; mas o homem só pode ser livre


desvinculando a sua própria posição interior de toda a dependência das
coisas externas. Tudo aquilo que não está em seu poder, o corpo, os
bens, a reputação e, em geral, todas as coisas que não são actos do seu
espírito não devem ter o poder de comovê-lo e dominá-lo. As coisas sobro
que deve fundar a sua liberdade são aquelas que estão em seu poder, isto
é, os
78

actos espirituais: a opinião, o sentimento, o desejo, * aversão. Sobre


estes ele pode agir, modificando-os * dominando-os de modo a tornar-se
livre. Epicteto resume a ética estoica na frase Suporta e abstém-te
(Gellio, Noct. att., XVII, 199, 6). É necessário abstermo-nos de
hostilizar aquilo que não está no nosso poder evitar, enquanto que é
necessário opormo-nos às coisas que estão no nosso poder, isto é, às
opiniões, sentimentos e desejos contra a natureza ou irracionais.

Arriano de Nicomédia, na Bitínia, foi cognominado o "segundo Xenofonte"


na medida em que nos conservou as doutrinas de Epicteto. Também ele,
como Xenofonte, foi militar e homem de acção. Recolheu de Epicteto as
Dissertações e os Colóquios que se perderam; e é também o autor daquele
resumo das Dissertações que é o Manual.

§ 115. MARCO AURÉLIO

Com Marco Aurélio o estoicismo sobe ao trono imperial de Roma. Nascido


em 121 d.C., de nobre família, Marco Aurélio foi adoptado pelo imperador
Antonino e sucedeu-lhe em 161. Morreu em
180 durante uma campanha militar. Deixou um escrito composto de
aforismos diversos, intitulado Colóquios consigo próprio ou Recordações,
em 12 livros. Como Séneca, afasta-se aqui e ali da doutrina tradicional
dos Estoicos; destaca-se principalmente no que respeita ao conceito da
alma, no qual renega o materialismo estoico. Considera que o homem é
composto de três princípios: o corpo, a alma material que é o princípio
motor do corpo, e a inteligência. Como todos os elementos do organismo
humano são partes dos correspondentes elementos do universo, assim o
intelecto humano é parte do mundo. O génio que Zeus deu a cada

79

um como guia não é mais que a -inteligência e esta é um "pedaço" do


próprio Zeus (V, 27). Das funções psíquicas, as percepções pertencem ao
corpo, os impulsos à alma, os pensamentos ao intelecto.

Como Séneca e Epicteto, Marco Aurélio considera que a condição da


filosofia é o retiro da alma em si própria, a introspecção ou a
meditação interior (IV, 3). Diz: "Olha para dentro de ti: dentro de ti
está a fonte do bem, sempre capaz de brotar, se souberes sempre escavar
em ti próprio" (VII, 59). Por isso, faz suas as teses estoicas da ordem
divina do mundo e da providência que o governa, mas afirma também, por
sua conta, o parentesco dos homens com Deus. O génio individual como
parte do intelecto universal e portanto de Zeus é o fundamento desta
convicção religiosa. Pelo seu parentesco comum, os homens devem amar-se
uns aos outros. "É próprio do homem amar também aquele que o fere. Deves
ter presente que todos os homens são teus parentes, que eles pecam
somente por ignorância e involuntariamente, que a morte nos ameaça a
todos e, especialmente, que ninguém. te pode causar dano porque ninguém
pode atacar a tua razão" (VII, 22). O homem é parte do fluxo incessante
das coisas. "A realidade é como um rio que corre perenemente, as forças
mudam, as causas transformam-se mutuamente e nada permanece imóvel" (IX,
28). Qual é o destino da alma neste fluxo? Marco Aurélio pinta com cores
resplandescentes a condição da alma que, com a morte, se liberta do
corpo, admitindo também a antiga crença do corpo como prisão e tumba da
alma. Mas, para ele, o problema de saber se esta libertação será o
inicio de uma nova vida ou o fim de toda a sensibilidade passa para
segundo plano. Pode acontecer que a alma, ao reabsorver-se no todo, se
transmute noutros seres
80

(como esta página é manuscrita, não se encontra aqui transcrita)


Página do livro "De Finibus", de Cícero (Códi(,,é,,
Palatino Latino 1513 da Bliblioteca Vaticana)

(IV, 21). Nisto Marco Aurélio é mais fiel que o platonizante Séneca à
doutrina original do Estoicismo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 109. Os dados antigos sobre o Estoicísmo Ecléctico estão recolhidos in


ZELLER, 111, 1, p. 57 ss. Os fragmentos de Panézio foram recolhidas por
FoWLER (juntamente com os de Ecatón), Bonn, 1885. Funda- mental sobre a
média Stoa a obra de SCHMEKEL, Die Philosophie der mittleren Stoa in
ihrem geschichtliche Zusammenhange, Berlim, 1892.

§ 110. Os dados antigos sobre Filon e Antíoco, ín ZELLER, EI, 1, p. 609


ss. As obras de Cícero tiveram numerosas edições críticas: ver a da
Biblioteca Teubneriana de Leipzig.

Sobre Terêncio Varrão: ZELLER, 111, 1, p. 692 ss. As obras filosóficas


de Varrão perderam-se e -apenas restam alguns fragmentos. A distinção
das três teologias foi-nos conservada por S. AGOSTINHo, De civitate Dei,
VI, 5.

§ 111. Os fragmentos de Andrónico foram recolhidos por LITTIG na sua


obra Andrónico de Rodes, II e 111 partes, 1894-95. Os fragmentos de
Cláudio Ptolomeu, in MULLER, Pragm. hist. graec., III, p. 348 ss. As
obras completas de Galeno foram editadas ao cuidado de Xuhn no Corpus
medicorum graecorum, Leipzig, 1821-33. A Introdução à Lógica, só
descoberta pelos meados do século passado, foi considerada apõcrifa por
PrantI, mas agora a sua autenticidade é geralmente admitida, Foi editada
com o título Institutio Logica por Kalbfleisch, Leipzig, 1896. De
Alexandre de Afrodísia foram publicadas as obras na "Collezione dei
Commentari greci" de ARISTõTELEs, a cargo da Academia de Berlim.

Sobre estes peripatéticos: ZELLER, M, 1, 641 ss. Sobre a lógica: PRANTL,


1, 528 ss.

§ 112. Sobre a vida, os escritos e a doutrina de Blon e de Menipo:


DIõGENEs LAÉRcio, IV, 46 ss (Bion), VI, 99 ss. (Menipo). Os fragmentos
de Bion, in MULLACH, Fragmenta phil. graec. 11, 423 ss.

Os dados antigos sobre os cínicos posteríores, in ZELLER, 111, 1, 791


ss.

81

§ 113. Os dados antigos sobra Séneza foram recolhidos ín ZELLER, HI, 1,


p. 719 ss. Das obras de Séneca ver as edições Teubnerianas de Leipzig.
Sobre Séneca: MARCHESI, Seneca, Messina, 1920; MARTIjA, Les moralistes
sous Z'Empire romain, Paris, 1896.
§ 114. Os dadosantigos sobre Mus6nio, in ZELLER, nI, 1, p. 755 ss. Os
fragmento.<,, recolhidos por HENsE, Leipzig, 1905 (BibL Teubneriana).
Sobre Epicteto e Arriano os dados antigo-s in ZELIER, 111, 1, p. 765 ss.
As Dissertações (a cargo de SCHENKL), O Manual e os fragmentos, editados
em Leipzig, 1916.
O Manual, trad. italiana de GIACOmo LEoPARDI. Sobre Epicteto: BONHOrFER,
Die Ethik der Epikt49@G Sttutgard, 1874.

§ 115. Os <lados antigos sobre Márcio Aurélio estão recolhidos in


ZELLER, 111, 1, p. 781 ss. As Recordações (In semetipsum, livros XII)
foram editados criticamente por SchenkI, Leipzig, 1913 (Bibl.
Teubneriana). Trad. italiana: ORNATO, MORICCA, MAZZANTINI.

Sobre Marco Aurélio: RENAN, M. A. et Ia fin du monde antique, Paris,


1882.

82

XVIII

PRECURSORES DO NEOPLATONISMO

§ 116. CARACTERISTICAS DA FILOSOFIA NA ÉPOCA ALEXANDRINA

A subordinação da investigação filosófica a um fim prático, posto o


reconhecido como válido independentemente da própria investigação,
devia levar a desvalorizar o significado e a função da filosofia como
indagação racional. A primeira época e a época clássica da
filosofia grega tinham reconhecido à investigação o mais alto valor:
na investigação que tende a justificar-se, a aprofundar-se em si
própria, a reconhecer o seu ponto de partida e o seu fim último, tinha
colocado o valor da personalidade humana e o único caminho para o homem
se formar como homem. Mas subordinada a investigação a um fim dado de
antemão, o valor deste fim não pode considerar-se assegurado pela
própria investigação. Este valor deve vir no fim de contas por uma
revelação transcendente ou por uma sabedoria originária, numa palavra
por uma tradição religiosa,

83

à qual a indagação filosófica tem de subordinar-se.


O valor reconhecido à tradição neste período coincide com a orientação
religiosa da investigação filosófica. A investigação filosófica na
Grécia antiga nasceu como vontade de libertação das tradições, dos
costumes e das opiniões estabelecidas; e Sócrates é o próprio símbolo de
uma tal investigação, da qual Platão tentou dar o fundamento teorético:
o homem não necessitou de receber a verdade da tradição porque esta
verdade está confiada à sua razão. Com o prevalecimento do interesse
religioso, a tradição retoma os seus direitos: a verdade é fruto de uma
revelação originária e a sua única garantia é a tradição. Daqui deriva a
tendência da época alexandrina para fabricar escritos que deveriam
testemunhar a antiguidade de cortas crenças e conferir-lhes a garantia
da tradição. O florescimento de escritos de falsa atribuição, próprio
deste período, é, pois, uma consequência natural da atitude religiosa
que a filosofia vem assumindo.
O acentuar do carácter religioso da filosofia nos

Estoicos do período romano é o início de uma orientação que se torna


cada vez mais dominante no período seguinte e que encontra a sua
primeira expressão num eclectismo que procura recolher e cerzir os
elementos religiosos implícitos na história do pensamento grego, da
religião dos mistérios ao pitagorismo e ao platonismo; depois, nas
filosofias que se enlaçam expressamente com as religiões orientais e
procuram conduzir de novo a elas o próprio pensamento grego (filosofia
greco-judaica). Em suma, a expressão mais alta desta orientação será o
Neoplatonismo.

§ 117. OS NEOPITAGóRICOS

A revivescência da filosofia pitagórica manifesta-se no século 1 a.C.


com o aparecimento dos

84

escritos pitagóricos de falsa atribuição (Ditos Áureos, Símbolos,


Cartas, atribuídas a Pitágoras; Sobre a Natureza do Todo, atribuído ao
lucano Ocello), dos quais nos restam alguns fragmentos. Todos são
caracterizados pelo reconhecimento de uma separação total entre Deus e o
mundo, reconhecimento que traz consigo a necessidade de suportar
divindades inferiores que fazem de intermediários entre Deus e o mundo.
A este mesmo tipo de escritos pertencem os que nos chegaram sob o nome
de Hermes Trismegisto, que apareceram durante o século 1 d.C. Estes
escritos tendem a relacionar a filosofia grega com a religião egípcia:
Hermes é reconhecido como o próprio deus egípcio Theut ou Thot. É comum
nos escritos de Hermes a hostilidade contra o cristianismo e a defesa do
paganismo e das religiões orientais.

Como renovador da filosofia pitagórica, Cícero assinala P. Nigídio


Fígulo, falecido em 45 a.C. Pelo final do século I d.C., Apolónio de
Tiana escreveu uma vida de Pitágoras na qual desenhou de modo novelesco
a figura do fundador do pitagorismo. Apolónio viajou por todo o Império
Romano como mago, profeta e operador de milagres. Filostrato escreveu
uma Vida de Apolórdo no princípio do século 111 d.C. Num escrito, Sobre
os Sacrifícios, de Apolónio, surge a distinção entre o primeiro deus e
as outras divindades que havia de dominar a especulação teológica deste
período.

Parece que foram compostas, por volta de


140 d.C., as duas obras que nos chegaram de Nicómaco de Gerasa, na
Arábia: Introdução à Aritmética e Manual de Música. Na primeira obra
sustenta-se a pré-existência dos números no espírito do criador
anteriormente à criação do mundo. Os números são os modelos em
conformidade com os quais todas as coisas foram ordenadas. Os princípios
da criação são o uno, que é identificado com a razão

85

ou divindade, e a dualidade que se identifica com a matéria, segundo a


doutrina dos antigos académicos.

Numénio de Apameia, na Síria, viveu na segunda metade do século 1 d.C. e


a sua doutrina é uma mistura de elementos pitagóricos e platónicos.
Segundo Numétrio, a filosofia dos gregos deriva da sabedoria oriental;
Platão é um "Moisés ateicizante". Escreveu: Dos Mistérios segundo
Platão, Sobre o Bem e Da Separação dos Académicos de Platão, obras das
quais temos fragmentos. Notável é a divisão das três divindades. Ele
distingue o demiurgo, da primeira divindade, como um segundo deus. O
primeiro deus é puro intelecto, princípio da realidade e rei do
universo. O segundo deus é o demiurgo, que opera sobre a matéria, forma
o mundo e é o princípio do devir. O mundo, produzido pelo demiurgo, é o
terceiro deus. Fundem-se nesta concepção os conceitos platónicos do bem
como princípio supremo e do demiurgo com o conceito aristotélico de Deus
como puro intelecto. No homem, Numénio distingue duas almas, uma
racional o outra irracional, e declara que o ingresso da alma num corpo
é sempre um mal, dado que a irrealidade incorpórea, e o devir corpóreo
estão entre si como a boa e a má alma do mundo.

A doutrina de Numénio apresenta características que se deviam tornar


comuns na especulação deste período: o sincretismo greco-oriental, a
conciliação entre Pitágoras e Platão, a crença em divindades katermédias
entre Deus e o mundo, a oposição entre espírito e matéria como oposição
entro bem e mal,

§ 118. O PLATONISMO MÉDIO

A mesma mistura de doutrinas dispares encontra-se nos sequazes da escola


de Platão a partir

86

do século 1 d.C. como continuação daquela orientação ecléctica que


começara com Antíoco de Asca. lona. Neste período, dos numerosos
representantes da escola o mais notável é Plutarco, de Queroncia,
nascido em 46 e morto em 120 d.C. que desenvolveu a sua actividade
científica em Atenas aonde foi no ano 66 d.C. Ficaram-nos dele
numerosíssimas obras de comentário a Platão, de polémica contra os
Estoicos e os Epicuristas, de física, de psicologia, de ética, de
religião e de pedagogia. Ele é também autor das famosas Vidas Paralelas
de gregos e romanos.

Plutarco considera impossível fazer derivar todo o mundo de uma única


causa. Se Deus fosse a única causa do mundo, não deveria existir o mal;
tem pois de se admitir, ao lado de Deus, um outro princípio que seja a
causa do mal no mundo como Deus é a causa do bem. Este princípio não é a
matéria, mas uma força indeterminada e indeterminável que é subjugada
por Deus no acto de criação, mas se mantém de modo permanente no mundo
como causa de toda a imperfeição e de todo o mal. Deus como puro bem é
assim situado absolutamente acima do mundo; e a sua relação com o mundo
é estabelecida pelas divindades intermédias ou demónios com cuja acção
Plutarco explica e justifica as crenças da religião popular dos gregos e
das outras nações.

Plutarco aceita a divisão platónica da alma em intelectiva ou racional,


irascível e apetitiva (Sobre as virtudes morais, 3). Noutros lados,
combina a divisão platónica com a aristotélica, admitindo assim cinco
partes da alma. De todas as maneiras, mantém a superioridade do
intelecto sobre as outras partes. Na ética, segue preferentemente
Aristóteles. Há coisas que não têm relação necessária connosco como o
céu, a terra, o mar, os astros; há outras que têm como o bem, o mal, o
87

prazer, a dor. As primeiras são objecto da razão (logos) científica ou


teorética, as segundas, da razão volitiva ou prática. A virtude própria
da razão especulativa é a sabedoria (sofia); a própria da razão prática
é a sageza (frónesis). A razão prática tem como fim moderar os impulsos
da parte irracional da alma e encontrar o justo meio entre o excesso e o
defeito. Determinam-se assim as virtudes morais ou éticas, que Plutarco
opõe à apatia cínico-estoica, como a harmonia e o justo meio das paixões
frente à abolição completa delas, que não é possível nem desejável.

A obra de Plutarco teve uma importância muito superior ao seu


significado especulativo. Através dela se difundiram e foram conhecidas
em todos os países as doutrinas fundamentais da filosofia grega, mais
que através das obras originais. Contudo, nada na sua filosofia existe
que tenha a potência e o rigor da especulação clássica.

§ 119. A FILOSOFIA GRECO-JUDAICA

Se, por uma parte, a filosofia grega estende a mão neste período à
sabedoria oriental, por outra a sabedoria oriental estende a mão à
filosofia grega, solidarizando-se com ela na mesma tentativa de fundir
juntamente os resultados da especulação grega e da tradição religiosa do
Oriente.

Na Palestina, no século 1 da era cristã, a seita dos Essénios, de que


nos falam Ffion, Josefo e Plínio, mostra uma profunda afinidade com o
Neopitagorismo de tal modo que faz supor que ela se tenha desenvolvido
sob a influência dos mistérios órfico-pitagóricos. Esta seita era
constituída por várias comunidades submetidas a uma disciplina severa e
a um certo número de regras ascéticas. Do ponto de vista doutrinal,
interpretavam alegó-

88

MARCO AURÉLIO

ricamente o Velho Testamento, segundo uma tradição que faziam remontar a


Moisés. Acreditavam na pré-existência da alma e na vida depois da morte,
admitiam as divindades intermédias ou demónios e a possibilidade de
profetizar o futuro. Quase todas essas crenças se encontram no
Neopitagorismo e o Platonismo médio.

Aos Essénios se costuma frequentemente atribuir as doutrinas expostas


nos documentos recentemente encontrados nas proximidades do Mar Morto e
que se designam precisamente como os "manuscritos do Mar Morto". Com
efeito, estas doutrinas não se diferenciam das dos Essénios que se
conhecem pelas fontes tradicionais; e de qualquer modo os documentos que
os contêm são uma outra prova de difusão da filosofia greco-judaica com
carácter religioso na época que precede imediatamente o advento do
cristianismo.

Afim aos Essénios foi a seita judaico-egípcia dos Terapêuticos que se


desenvolveu no Egipto.

Terreno muito favorável para a fusão dos elementos doutrinais gregos o


orientais foi Alexandria. Alguns fragmentos de Aristóbulo (cerca de 150
a.C.) procuram demonstrar que já Pitágoras e Platão tinham conhecido os
escritos do antigo Testamento.

No livro da Sabedoria do Antigo Testamento, provavelmente composto no


século 1 a.C., há claras reminiscências do Platonismo e do Pitagorismo,
-ia afirmação da pré-existência e da imortalidade da alma, do
impedimento que o corpo constitui paTa ela e na concepção de uma matéria
pré-existente e do Logos como mediador da criação divina.

§ 120. FILON DE ALEXANDRIA

Nascido em Alexandria entro o ano 30 e o ano


20 a.C., Fílon o judeu foi a Roma no ano 40 d.C. como embaixador dos
judeus alexandrinos ao

89

imperador Calígula. Temos dele grande número de escritos de argumentos


diversos, de que os principais sã o os que constituem um comentário
alegórico ao Velho Testamento.

Por um lado, Ffion está cheio de veneração pelas Sagradas Escrituras e,


em primeiro lugar, por Moisés que ele considera inspirado directamente
por Deus; por outro lado, é admirador dos filósofos eh
ade expressa por eles gregos e considera que a verd é a mesma que está
contida nos livros sagrados. A esta convicção chega -interpretando
alegoricamente as doutrinas do Velho Testamento e adaptando a elas os
conceitos da filosofia grega. O resultado é uma forma de Platonismo
muito próxima da que se desenvolvera em Alexandria e que costumava
reportar-se a Platão e a Pitágoras. Os pontos fundamentais da filosofia
de Fílon são três : a transcendência absoluta de Deus relativamente a
tudo o que o homem conhece; a doutrina do Logos como intermediário entre
Deus e o homem, o fim do homem determinado como a união com Deus. Na sua
perfeição absoluta, Deus é tal que é impossível compreender a sua
natureza. Também o homem inspirado pode ver quem ele é, não que coisa é.
Deus é superior ao bem e à unidade e não pode ter outro nome senão Ser
(como indica a própria palavra hebraica Jeová-Aquele que é). A Deus
pertencem as duas potências originais, a bondade e o poder; pela
primeira, ele é propriamente Deus, pela segunda é o Senhor. Entre estas
duas potências existe uma terceira, conciliadora de ambas, a Sabedoria,
Logos ou Verbo de Deus, que é a imagem mais perfeita do próprio Deus.

O Logos foi o mediador da criação do mundo. Antes de criar o mundo, Deus


criou um modelo perfeito, não sensível, incorpóreo, e semelhante a ele,
que é precisamente o Logos (De mundi opif., 4). E sei-vindo-se dele
criou o mundo. Criou-o ser-

90

vindo-se de uma matéria que ele próprio tinha aprontado antecipadamente


e a qual era originariamente indeterminada, privada de forma e de
qualidade: Deus determinou-a, deu-lhe forma e qualidade e deste modo da
desordem a levou à ordem, Da matéria derivam as imperfeições do mundo.
O Logos divino é a sede das ideias por intermédio das quais Deus ordena
e forma as coisas materiais. As ideias são, portanto, concebidas por
Filon como forças, porque a matéria é formada por seu intermédio.
O fim do homem é a sua união com Deus. Para chegar a Deus o homem deve,
em primeiro lugar, libertar-se da sensibilidade e dos vínculos com o
corpo, deve libertar-se também da razão e esperar a graça divina que o
eleve até à visão de Deus. Só se tem esta visão quando o homem saiu fora
de si mesmo (estasi) e está debaixo de urna espécie de furor dionisíaco,
como ébrio e enlouquecido. Trata-se de uma condição que não se pode
exprimir porque é sobrehumana e misteriosa (De ebrietate, 261-62).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 177. O material antigo sobre os Neopitagóricos, indicado em ZELLER,


111, 2, p. 124 ss, 234 ss. Os Ditos Areos em DIEHL, Anthol. 1yrica,
Leipzig,
1923. O escrito de Ocello in MULLACH, Fragm. phil. graec., I, que contém
também as Cartas atribuídas a Pitágoras, assim como a Vida de Pitágoras
de PORFIRio e de JÂMBLICO foram traduzidas para italiano por PESENTI,
Lanciano, 1922 (Cultura dell' anima).

§ 118. Dados antigos sobre Plutarco, recolhidos em ZELLER, 111, 2, 176


ss. As obras de Plutarco encontram-se em numerosas edições: ver a de 7
volumes a cargo de vários autores na Biblioteca Teubneriana de Leipzig.
D. BAssi, Il pensiero moraZe, peda, gogico, religioso di Plutarco,
Florença, 1927; P. THÉ-

91

VENAZ, LIâme du monde, le devenir et Ia matière chez Plutarque, Paris,


1939.

§ 119. Noticias antigas sobre os Essénios In ZELLER, 111, 2, p. 308 ss.


Sobre os manuscritos do Mar Morto: DuPONT-SOMMER, Observations sur le
Commentaire d'Habacuc découvert près de Ia Mer morte, Paris,
1950; ID., Observations sur le Manuel de Discipline découvert près de Ia
Mer Morte' Paris, 1951; MILLAR BURROWS, The Dead Sea, Scrolls, Nova
Iorque, 1956 (que contém também a tradução inglesa dos textos
encontrados).

§ 120. Das obras de Ffion as edições são: Mangey, Londres, 1742 (com
tradução latina); Richter, Leipzig, 1828-30; Cohn e WendIand, Berlim,
1896 ss. Commentaire allégorique des saintes lois, texto, tradução
francesa e comentário de BRÉHIER, Paris, 1909.

Sobre F'ílDn: BRÉHIER, Les idées philos. et relig. de Ph. d'Alex.,


Paris, 1908; GOODENOUCri, The Politics of Philo. Juda6us, New Haven,
1938 (com bibl.); WOLFSON, Philo. Foundations of Religious Philosophy in
Judai.sm, Christianity and Islam, Cambridge (Mass.),
2 vols., 1947.

92

XVIII

O NEOPLATONISMO

§ 121. A "ESCOLÁSTICA" NEOPLATóNICA


O Neoplatonismo é a última manifestação do Platonismo no mundo antigo.
Ele resume e leva à formulação sistemática, e (com Proelo) de um modo
escolástico, as tendências e orientações que se tinham manifestado na
filosofia grega e alexandrina do último período. Elementos pitagóricos,
aristotélicos, estoicos fundem-se no Platonismo numa vasta síntese que
devia influenciar poderosamente todo o curso do pensamento cristão e
medieval e através dele também o do pensamento moderno, O Neoplatonismo
é assim a manifestação mais notável da orientação religiosa que
prevalece na filosofia da época alexandrina. É também a primeira forma
histórica da escolástica, se com tal nome se entende a filosofia que
procura realizar uma compreensão racional das verdades religiosas
tradicionais (§ 173). Com efeito, a atitude religiosa implica que a
verdade como tal não se busca: ela foi revelada e é garantida pela
tradição. Por outro lado, é oportuno

93

compreender, explicar e defender tal verdade; para este fim se utiliza a


filosofia que melhor se presta, neste caso o Platonismo.

Por isso o Neoplatonismo não tem nada que ver com o Platonismo original
e autêntico. É, pelo contrário, uma espécie de escolástica que utiliza o
Platonismo, em mistura confusa com elementos doutrinais heterogéneos com
o fim de justificar uma atitude religiosa. O facto de Proclo, o
representante mais sabedor da escolástica neoplatónica, ter considerado
apócrifas a República e as Leis de Platão, que se prestam mal, pelo seu
dominante interesse político, a serem utilizadas para os fins de uma
apologética religiosa, constitui uma prova evidente da descontinuidade
que existe entre o Platonismo e Neoplatonismo e da impossibilidade de
utilizar este último como elemento de compreensão histórica do
Platonismo originário.

Fundador do Neoplatonismo é António Sacca, que viveu entro o ano 175 e o


242 d.C. sem deixar nenhum escrito. Era braceiro (donde o sobrenome de
"Sacca"); seguidamente ensinou em Alexandria a filosofia platónica.

Entro os seus alunos contaram-se Orígenes, que não se deve confundir com
o Orígenes cristão (§ 144), e Cássio Longino (cerca de 213-273),
retórico o filólogo, sob o nome do qual nos chegou o escrito Do sublime,
que não obstante não é seu.

A maior figura do Neoplatonismo é Plotino. Nascido em Licopoli, no


Egipto, em 203 ou 204 d.C., participou na expedição do imperador
Gordiano contra os persas para conhecer as doutrinas dos persas e dos
indianos. No regresso, estabeleceu-se em Roma, onde a sua escola contou
entre os seus ouvintes numerosos senadores romanos. O imperador Galieno
e a sua mulher Salonina estiveram entre os seus admiradores. Morreu na
Campânia com
66 anos, em 269 ou 270 depois de Cristo.

94

O s--u aluno Porfírio de Tiro (nascido em 232-33 e falecido no princípio


do IV século) publicou os escritos do mestre ordenando-se em seis
Enneadi, ou seja, livros de nove partes cada um. Porfírio é também autor
de numerosas obras originais. Entre estas são particularmente
importantes uma Vida de Plotino, uma Vida de Pitágoras e a Introdução às
Categorias de Aristóteles que é um comentário em forma de diálogo ao
escrito aristotélico. O interesse fundamental de Porfírio, é prático-
religioso. Ele tira da doutrina de Plotino motivos para defender a
religião pagã.

§ 122. PLOTINO: DEUS

Plotino acentua até ao extremo limite a transcendência de Deus, na qual


tinham já insistido os Neopitagóricos e Ffion. Mas ao passo que Ffion,
ainda identifica Deus com o ser, Plotino afirma que Deus está "para lá
do sem (V, 5, 6); "para, lá da substância" (VI, 8, 19); "para lá da
morte" (111, 8, 9) de modo que é transcendente a respeito de todas as
coisas, ainda que produzindo-as e mantendo-as ele próprio em ser (V, 5,
12). Assim a causa do ser vem de qualquer modo destacada do ser, como
aquilo que é inalcançável e inexprimível da parte do homem. O nome que é
menos inadequado para dar a Deus é, segundo Plotino, o de Uno e isto
quer porque Deus é unidade, isto é, a causa simples e única de todas as
coisas, quer porque o nome "Uno" se presta a designar aquilo que é
simples e diferente de todas as coisas que vêm depois (V, 4, 1). O
próprio Plotino adverte, porém, que este nome não contém mais que a
exclusão do múltiplo e, salvo esta exclusão, não é mais adequado que os
outros para exprimir Deus (V, 5, 6". Com estas considerações, Plotino
inicia aquilo que se chamou seguidamente a teologia negativa, isto é, a

95

determinação de Deus através do reconhecimento da impossibilidade de


predicar dele todas e cada uma das determinações finitas.

Além disso, a definição de Deus como unidade não tem nada a ver com o
monoteísmo. Conformemente a toda a tradição grega, Plotino defende
explicitamente o politeísmo como consequência necessária do poder
infinito da divindade. "Não restringir a divindade a um único ser, fazê-
la ver múltiplice: como ela própria se manifesta, eis o que significa
conhecer o poder da divindade, capaz, ainda que permanecendo aquele que
é , de criar uma multiplicidade de deuses que se ligam com ele, existem
para ele, existem para ele e vêm dele" (11, 9, 9).

Para uma divindade concebida deste modo a criação não pode ser um acto
de vontade, o que implicaria uma mudança na essência divina. A criação
acontece de tal maneira que Deus permanece imóvel no centro dela, sem
querê-la nem consenti-Ia. Ela é um processo de emanação, semelhante
àquele pelo qual a luz se difunde em torno do corpo luminoso ou o calor
em torno do corpo cálido ou, melhor, semelhante ao perfume que emana do
corpo odorífero (V, 1, 6). Utilizando a noção aristotélica de Deus como
"pensamento do pensamento" (§ 78), Plotino interpreta a própria emanação
como o pensamento que o Uno pensa de si.
O Uno, pensando-se, dá origem ao Intelecto, que é a sua imagem (V, 4,
2); o Intelecto, pensando-se, dá origem à Alma, que é a imagem do
Intelecto (IV, 8, 3). Passando rapidamente de imagem a imagem, a
emanação @ também um processo de degradação. Aquilo que emana do Uno é
inferior ao Uno, assim como a luz é menos luminosa do que a fonte donde
emana e a onda de perfume é menos intensa à medida que se afasta do
corpo odorífero. Os seres que emanam de Deus não podem--- por-

96
séneca

tanto, ter nem a sua perfeição nem a sua unidade, mas tendem cada vez
mais para a imperfeição e a multiplicidade.

§ 123. PLOTINO: AS EMANAÇõES

A primeira emanação do Uno é o Intelecto (Nous) que é a imagem mais


próxima dele. O Intelecto contém já a multiplicidade na medida em que
implica a distinção entre o sujeito que pensa e o objecto pensado. Este
Intelecto, como o Logos, ou o Verbo de Fílon, é a sede das ideias
platónicas. Ele é identificado por Plotino com o Demiurgo de que fala
Platão no Timeu.

Do Intelecto procede a segunda emanação, a Alma do Mundo, que é Verbo e


Acto Intelecto, como o Intelecto o é do Uno. Por um lado, a alma olha o
Intelecto de que provém e com o qual pensa, pelo outro olha-se a si
própria e conserva-se; pelo outro ainda, olha aquilo que está depois
dela e ordena-o, governa-o e rege-o. Assim a Alma universal tem uma
parte superior que se dirige ao Intelecto e uma parte inferior que se
dirige ao corpo: com esta governa o universo corpóreo e é Providência.

Deus, o Intelecto e a Alma do mundo constituem o mundo inteligível. O


mundo corpóreo supõe para a sua formação, além da acção da Alma do
mundo, de um outro princípio de que derivam a ,imperfeição, a
multiplicidade e o mal. Este princípio é a matéria, concebida por
Plotino negativamente, como privação da realidade e do bem. A matéria
está no extremo inferior da escala no cimo da qual está T)eus. Ela é a
obscuridade que começa onde termina luz, portanto não-ser e mal.

As almas singulares são partes da alma do mundo. A Alma universal


penetrou a matéria vivi-

97

ficando-a e penetrando-a toda, mas permanecendo em si mesma única e


indivisível. Ela produz a unidade e a simpatia de todas as coisas do
mundo, já que estas, tendo uma única alma, se ligam umas às outras corno
os membros de um mesmo animal.

Dominado como está pela Alma universal, o mundo tem uma ordem e uma
beleza perfeitas. Para descobrir esta ordem é necessário olhar o todo no
qual encontra o seu posto e a sua função cada parte singular, ainda
aquela aparentemente imperfeita ou má. O próprio vício tem uma função
útil ao todo porque se torna um exemplo da força das leis e acaba por
produzir consequências úteis (111, 2, 5).

§ 124. PLOTINO: A CONSCIÊNCIA E O RETORNO A DEUS

Na filosofia de Plotino toma-se central e dominante um conceito que já


assomara na especulação dos Estoicos: o de consciência. Consciência não
é * conhecimento dos próprios estados internos, mas * atitude do sage
que não tem necessidade de sair fora de si para encontrar a verdade e
que, por isso, tem o olhar constantemente voltado para si próprio. A
consciência é, neste sentido, o campo privilegiado em que se manifestam
na sua evidência as verdades mais altas que o homem pode alcançar e a
fonte ou o próprio princípio de tais verdades, isto é, Deus. O
pressuposto deste conceito é a auto-suficiência do sage sobre que tinham
insistido os Estoicos e que tinha dominado as especulações morais dos
estoicos romanos. A distinção estabelecida por Epicteto entre "s coisas
que estão em nosso podem, isto é, os nossos actos espirituais e "as
coisas que não estão em nosso podem, isto é, as coisas externas, como
fundamento das atitudes

98

morais do homem, não é senão um corolário do princípio da consciência.


Para indicar a consciência como introspecção ou auscultação interior,
Plotino adopta expressões como "retorno, a si próprio", "retorno à
interioridade", "reflexão sobre si próprio" e contrapõe constantemente
esta atitude própria do sage a quem, em contrapartida, se orienta, pela
conduta da sua vida, para o conhecimento das coisas externas. "0 sage
-diz Plotino- tira de si próprio aquilo que revela aos outros e olha
para si próprio dado que não somente tende a unificar-se e a isolar-se
das coisas externas, mas se dirige a

si próprio e encontra em si todas as coisas" (111,


8, 6).

O retomo a Deus é um itinerário que o homem só pode iniciar e percorrer


mediante o retorno a si próprio. As etapas do retorno a Deus são as
etapas da progressiva interiorização do homem; e, em primeiro lugar, da
sua libertação de toda a dependência ou relação com a exterioridade
corpórea. Plotino afirma, portanto, que o primeiro dever do homem é o de
subtrair-se aos seus laços com o corpo e purificar-se mediante a
virtude. As virtudes são caminhos de purificação porque são caminhos de
libertação da exterioridade. Com a inteligência e a sabedoria, a alma do
homem habitua-se a operar por si só, sem a ajuda dos sentidos cor-

póreos; com a temperança liberta-se das paixões; com a coragem não teme
separar-se do corpo; com a justiça faz que comande em si apenas a razão
e o Intelecto (1, 2, 3). A virtude como purificação constitui, contudo,
apenas uma condição libertadora do itinerário interior em direcção a
Deus. Na música, no amor e na filosofia, a alma encontra os caminhos
positivos do retorno a Deus.

Através da música, o homem deve progredir para lá dos sons sensíveis,


procurando alcançar as suas relações o as suas medidas para se erguer
até

99

àquela harmonia inteligível que é a própria beleza. Através do amor, o


homem eleva-se gradualmente (segundo o processo já descrito por Platão
no Fedro) da contemplação da beleza corpórea à da beleza incorpórea, a
qual é um reflexo ou imagem do Bem, isto é, de Deus. Com efeito, a
beleza resplandece nas coisas que estão mais próximas da perfeição; uma
estátua é mais bela do que um bloco de mármore, um corpo vivo mais belo
do que uma estátua. Mas para lá da beleza o homem deve avançar com a
filosofia para a própria fonte da beleza que é Deus. Todavia, a Deus não
se poderá chegar através da inteligência porque esta está confficionada
pelo dualismo do sujeito que pensa e do objecto pensado, enquanto que
Deus é absoluta unidade. Na visão de Deus não há já intervalo, não há já
dualidade, mas a alma une-se a Deus totalmente com um êxtase de amor.
Não se trata de uma visão mas de "êxtase e de simplificação, de descanso
e de união, de completa entrega". Esta condição só raramente pode ser
alcançada pelo filósofo. Porfírio testemunha-nos que, nos seis anos que
esteve com o mestre, Plotino só quatro vezes atingiu o êxtase.

§ 125. A ESCOLA SIRíACA

O discípulo de Porfírio, Jâmblico de Cálcide, falecido por volta de 330,


inicia o chamado Neoplatonismo siríaco, muito mais próximo das fontes
orientais do que o plotiniano. Foi autor de numerosos escritos dos quais
nos restam cinco livros da obra Sobre os mistérios dos egípcios.
Jâmblico, é mais um teólogo do que um filósofo. Elo multiplica as
emanações plotinianas subdividindo-as em outras tantas divindades, às
quais faz corresponder os deuses da religião popular. Insiste, pois,
sobre o valor da teurgia, que é a virtude mágica dos ritos

100

e das fórmulas propiciatórias. A divindade, diz ele, não pode ser


persuadida a agir pelo nosso pensamento porque a perfeição não é
levada a agir por aquilo que é imperfeito. Ela age, em contrapartida, em
virtude dos símbolos o das fórmulas que ela própria sugeriu aos
homens. O Neoplatonismo inclinava-se assim com Jâmblico para uma
teologia mítica que se prestava a justificar todas as superstições das
crenças pagãs.

Jâmblico -teve numerosos discípulos que, pelas notícias que nos


chegaram, aparecem desprovidos de qualquer originalidade. Quando o
imperador Juliano, (dito o Apóstada) quis dar nova vida ao paganismo
para pô-lo como fundamento da vida política do Império, recorreu
precisamente à filosofia neoplatónica na forma que Jâmblico lhe tinha
dado.

Entretanto, a escola platónica de Alexandria continuava e teve novo


esplendor com uma mulher, Hipázia, que caiu em 415 vítima do fanatismo
da plebe cristã, suscitada contra ela pelo bispo Cirilo.

Dos escritos do seu discípulo Sinésio de Cirena (nasceu por volta do ano
370) que em 411 se torna bispo de Ptolomaida (§ 169) parece que ela
expusera a doutrina neoplatónica segundo os ensinamentos de Jâmblico.

§ 126. A ESCOLA DE ATENAS

A última fase do Neoplatonismo foi dedicada provalentemente ao


comentário das obras de Platão o de Aristóteles. No princípio do século
V, o chefe da escola ateniense é Plutarco de Atenas, filho de Nestório,
que morreu muito velho no ano 401-02 e comentou Platão e Aristóteles.

A especulação metafísica foi, em contrapartida, cultivada por Siriano (o


mestre de Proclo), o qual se refere especialmente a Platão que
considerava

101

superior a Aristóteles e que quis conciliar com os Pitagóricos e com os


Neoplatónicos.
Proclo é o maior representante da orientação ateniense. Nascido em
Constantinopla no ano 410 e educado em Lícia, aos 20 anos dirigiu-se
para Atenas onde permaneceu até a sua morte, ocorrida em 485. As suas
obras mais importantes são o Comentário ao Timeu, à República, ao
Parménides, ao Alcibíades 1 e ao Crátilo e dois escritos sistemáticos, a
Instituição teológica e a Teologia platónica.

Proclo deu à filosofia neoplatónica a sua forma definitiva. Sucederam-


lhe numerosos pensadores que seguiram as suas pisadas mas que não
oferecem nenhuma contribuição original para a sua doutrina. À última
geração de neoplatónicos pertence Simplício, cujos comentários a muitas
obras de Aristóteles têm para nós a máxima importância como fontes de
todo o pensamento antigo, e representam também uma notável obra de
pensamento.

No ano 529 Justiniano proibiu o ensino da filosofia em Atenas e


confiscou o ingente património da escola platónica. Damáscio, que era o
seu chefe, com seis companheiros, entre os quais Simplício, refugiou-se
na Pérsia. Mas dali voltaram depressa desiludidos. Doravante o
pensamento platónico não existia mais como tradição independente porque
havia sido absorvido e assimilado pelo pensamento cristão.

O seu último representante pode dizer-se que foi Severino Boécio (§


172). Boécio traduziu e comentou os principais escritos do Organon
aristotélico e a Introdução às categorias de Porfírio. Escreveu também
um Comentário desta obra e outros trabalhos de lógica, matemática e
música. No cárcere escreveu depois a obra que o tornou famoso durante
toda a Idade Média, A consolação da filosofia. Esta obra não é original,
mas resulta da utilização de várias fontes, entre as quais o Protréptico
de Aris-

102

tóteles, talvez conhecido através de algum escritor mais recente que o


reproduzira. O ponto de vista de Boécio, é um platonismo, ecléctico. De
Platão tira Boécio o conceito da divindade como sumo Bem; com
Aristóteles considera Deus como o primeiro motor imóvel; com os Estoicos
admite a providência e o fado. Embora seja cristão, na sua filosofia
segue de perto o Neoplatonismo, da época. Apresenta na sua pessoa a
passagem da antiguidade à Idade Média; é o último romano e o
primeiro escolástico.

§ 127. A DOUTRINA DE PROCLO

O ponto fundamental da filosofia de Proclo, é a ilustração daquele


princípio triádico, que é próprio do Neoplatonismo. Todo o processo se
cumpro por via da semelhança das coisas que surgem com aquilo de que
procedem. Um ser que não produz um outro permanece em si próprio
imutável; mas a coisa produzida necessariamente se lhe assemelha. Ora o
produto, enquanto tem qualquer coisa de idêntico com o que produz, resta
nele; enquanto tem qualquer coisa de diverso, procede dele. Mas sendo
semelhante é de algum modo idêntico e diverso; portanto permanece e
procede ao mesmo tempo, e não faz nenhuma das coisas sem a outra. Ora
todo o ser, que procede por sua natureza do uma coisa, retorna a ela.
Retoma porquanto não pode fazer outra coisa senão aspirar à própria
causa que é seu bem; e todo o ser deseja o bem. Este retorno ou
conversão realiza-se pela semelhança de quem retoma com aquilo a que
retoma (Ist. Teol., 30, 32). Com isto, Próclo, distingue, no processo
das emanações de todo o ser pela sua causa, três momentos: 1.' o
permanecer (moné) lutável da causa em si mesma; 2.* o proceder (próodos)
dela pelo ser derivado que, pela sua

103

semelhança com ela, permanece aderido a ela e por sua vez se afasta
dela; 3.' o retorno ou conversão (epistrophé) do ser derivado à sua
causa originária. Aquele processo de emanação, que Plotino ilustrava em
termos metafópicos com o exemplo da luz e do odor, é justificado por
Proclo com esta dialéctica da relação entre a causa e a coisa produzida,
pela qual ao mesmo tempo se enlaçam, se separam e voltam a unir-se num
processo circular no qual o princípio e o fim coincidem.

O ponto de partida de todo o processo é o Uno, Causa primeira e Bem


absoluto que Proclo, como Plotino, considera incognoscível e
inexprimível. Do Uno procede uma multiplicidade de Unidades ou Enadi que
são também Bens supremos e Divindades e fazem de intermediários entre o
Uno originário e o mundo do Intelecto. O Intelecto, que é a terceira
fase da emanação, é dividido por Proclo em três momentos; o
inteligível (o objecto do Intelecto), que é o ser; o inteligível-
intelectual, que é a vida; o intelectual (o Intelecto como sujeito),
que é o Intelecto. O ser e a vida, por sua vez, dividem-se em vários
momentos a cada um dos quais Proclo faz corresponder uma divindade
da religião popular.
O quarto momento da emanação é a Alma, dividida em três espécies: a
divina, a demoníaca e a humana, as primeiras duas são ainda divididas e
identificadas com divindades ou seres da religião popular.

O mundo é organizado e governado pela Alma divina. O mal não deriva da


divindade, mas da imperfeição dos graus médios e baixos da escala do
mundo e da sua deficiente aceitação do bem divino. A matéria não pode
ser causa do mal porque ela foi criada por Deus como necessária para o
mundo.

Além das faculdades assinaladas na alma por Platão e Aristóteles, Proclo


admite nela uma faculdade superior a todas, o Uno na alma, que
corresponde ao Uno no mundo e é a faculdade apta a

104

conhecê-lo. O processo da elevação moral e intelectual da alma culmina


na união extática com o Uno. Os graus últimos deste processo de elevação
são o amor, a verdade e a fé. O amor leva o homem até à visão da beleza
divina; a verdade até à sabedoria divina e ao conhecimento perfeito da
realidade. Mas só a fé o leva para lá do conhecimento e de todo o devir,
ao repouso e à união mística com aquilo que é incognoscível e
inexprimível.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

121. Os dados antigos sobre Amónio Sacca, Orígenes e Longino foram


recolhidos por ZELLER, HI,
2, p. 500 ss. Para Plotino a fonte principal das notícias biográficas é
a Vida de Plotino de PORFIRIO.
As obras de Plotino foram editadas por Creuzer e Moser, O.@ffürd, 1835,
ed. reproduzida na de Firmin-Didot, París, 1855; Volkmann, Leipzig,
1883-84; na colecção "A Universidade de França" apareceu a edição e a
tradução de BRÉHIER em 6 vdls., 1924-38. Traduções italianas: CILENTo, 4
vols., Bari, 1947-49; FAGGIN, Milão, 1947-48. As fontes para a biografla
de Porfirio, são a sua Vida de Plotino e o artigo do Léxico de Suidas. A
Vida de Plotino está publicada na edição plotiniana de Creuzer e M<)ser,
o Co~tário às categorias de Aristóteles nos "Comentários gregos de
Aristóteles" da Academia de Berlim, IV, 1. Para as edições das obras de
Porfirio, ver UEBERWEG-PRAECHTER, p. 598.

Sobre Porfírio, ver BIDEZ, Vie de P. Ze philosophe néoplatonique, Gand-


Leipzig, 1913.

§§ 122, 123, 124. Sobre Plotino: INGE, The Phi-


1,osophy of P., 2 vols., Londres, 1918; BRPHIER, La philosophie de P.,
Paris, 1928; CARBONARA, La filosofia di P.' 2 vols., Roma, 1938-39;
JENSEN, Plotin, Kjijbenhavn, 1948; Les sources de Plotin. Entretiens sur
l'antiquité classique, Vandoeuvres-Genève, 1957; bibli. de MARIEN in
apéndice, -ao vol. IV da citada -tradução italiana de Cilento.

§ 125. Os dados antigos sobre Jàmblico, Giuliano, Hípãzia, Sinésio, in


ZELLER, 111, 2, p. 773 ss.

105

Sobre os mistérios dos egípcios, ed. Parthey, Berlim,


1857.

As obras de Juliano foram publicadas por Bidez e Cumont, P@tris, 1922; a


de Sinésio, por Petavio, Paris, 1612, 2.1 ed., 1633, e na Patr. Greca de
MiGNE, vol. 66. Sobre Juliano o Apóstata: BARBAGALLO, Ciu;. lIAp.,
Gênova, 1912; ROSTAGNI, Giu1. l'Ap., Turim,
1920.

§ 126. Os dados antigos sobre Proclo, foram recolhidos na Vida escrita


pelo seu disc@pulo M_ARiNo, ed. Boisonade, Leipzig, 1814. Sobre os
outros Neoplatónios da escola de Atenas os dados antigos foram
recolhidos em ZELLER, 111, 2, p. 805 ss. (Plutareo),
890 ss. (Simplício, Damáscio, Boécio).

§ 127. As obras de Proclo foram publicadas por Cousín, 6 vols. Paris,


1820-25; existem também numerosas edições de Leipzig de obras separadas.
As obras de Boécio está(> na Patr. Latina de MIGNE, vol. 63 e 64. Os
Elementos de Teologia de Proclo foram traduzidos para italiano por
LoSAceo, Lanciano, 1927. G. MARTANO, L'uomo e Dio in Proclo, Nápoles,
1952, com bibliografia.

106

SEGUNDA PARTE

FILOSOFIA PATRISTICA

O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA
§ 128. A FILOSOFIA GREGA E A TRADIÇÃO CRISTã

A Grécia foi o berço verdadeiro da filosofia. Pela primeira vez no mundo


ocidental, compreendeu e realizou a filosofia como investigação
racional, isto é, como investigação autónoma que em si mesma encontra o
fundamento e a lei do seu desenvolvimento. A filosofia grega demonstrou
que a filosofia só pode ser procura e a procura liberdade. A liberdade
implica que a disciplina, o ponto de partida, o fim e o método da
investigação sejam justificados e postos por essa mesma investigação, e
não aceites independentemente dela.

A influência do cristianismo no mundo ocidental determinou uma nova


orientação da filosofia. Toda a religião implica um conjunto de crenças
que não são fruto de qualquer investigação porque consistem na aceitação
de uma revelação. A religião é a adesão a uma verdade que o homem
aceitou devido a um testemunho superior. Tal é, com efeito, o

109

cristianismo. Aos fariseus que lhe diziam: "Tu alegas de ti mesmo e,


portanto, o teu testemunho não tem valor", Jesus respondeu: "Eu não
estou só, somos eu e aquele que me enviou (S. João, VIII, 13, 16),
apoiando assim o valor da sua doutrina no testemunho do Pai. A religião
parece, portanto, nos seus próprios princípios, excluir a investigação e
consistir antes numa atitude oposta, a da aceitação de uma verdade
testemunhada do alto, independentemente de qualquer investigação.
Todavia, logo que o homem se interroga quanto ao significado da verdade
revelada e tenta saber porque caminho pode realmente compreendê-la e
fazer dela carne da sua carne e sangue do seu sangue, renasce a
exigência da investigação. Reconhecida a verdade no seu valor absoluto,
tal como é revelada e testemunhada por um poder transcendente,
imediatamente se impõe a cada homem a exigência de se aproximar dela e
de a compreender no seu significado autêntico para com ela e dela viver
verdadeiramente. Esta exigência só pode -ser satisfeita pela
investigação filosófica. A investigação renasce, pois, da própria
religiosidade, pela necessidade que o homem religioso tem de se
aproximar, tanto quanto lhe for possível, da verdade revelada. Renasce
com uma tarefa específica, que lhe é imposta pela natureza de tal
verdade e pelas possibilidades que pode oferecer à sua efectiva
compreensão pelo homem; mas renasce com todas as características,
próprias da sua natureza, e com força tanto maior quanto maior for o
valor que se atribui à verdade em que se acredita e se pretende fazer
sua.

Da religião cristã nasceu assim a filosofia cristã. Esta tomou também


como objectivo conduzir o homem à compreensão da verdade revelada por
Cristo, de modo a que ele possa realizar o seu autêntico significado. Os
instrumentos indispensáveis para este fim encontrou-os a filosofia
cristã, prontos a

lio

servirem, na filosofia grega. As doutrinas da especulação helénica do


último período, essencialmente religioso, prestavam-se a exprimir, de
modo acessível ao homem, o significado da revelação cristã; e com
O esta finalidade foram, efectivamente, utilizadas da maneira mais
ampla.

§ 129. OS EVANGELHOS SINóPTICOS

A pregação de Cristo, por um lado, está ligada à tradição hebraica e,


por outro, renova-a profundamente. A tradição hebraica ensinava a crença
num Deus único, puro espírito e garantia da ordem moral no mundo dos
homens; um Deus que escolheu como seu povo eleito o povo hebraico, a
quem ampara nas dificuldades como pune inexoravelmente nas aberrações
religiosas e nas suas imperfeições morais. A última tradição hebraica, a
dos profetas, anunciava, depois de um período de desventuras e tremendas
punições, o renovo do povo hebreu. e o seu ressurgimento como potência
material e moral, que faria dele o instrumento directo de Deus para o
seu domínio no mundo.

Ao anúncio desta renovação, que deveria verificar-se pela obra de um


Messias directamente investido por Deus, está ligada a pregação de
Cristo. Nas tal pregação alarga imediatamente o horizonte do anúncio
profético, estendendo-o do único povo eleito a todos os povos da terra,
a todos os homens "de boa vontade", seja qual for a sua raça, a sua
civilização ou a sua posição social. Simultaneamente, retira ao
anunciado renascimento todo e qualquer carácter temporal e político e
faz dele um ressurgimento puramente espiritual que deve realizar-se na
interioridade das consciências.

O reino de Deus anunciado por Jesus não exige uma transformação


política: "Dai a César o que é

111

de César e a Deus o que é de Deus" (5. Mateus,


22, 21; S. Lucas, 20, 25). É antes uma realidade invisível e -interior
ao homem: "Não se poderá dizer "está aqui" ou "está ali", porque, na
verdade, o reino de Deus está dentro de vós". (S. Lucas, 17,
21). Ele é como o grão de mostarda que é o mais pequeno de todos os
grãos e se torna uma grande árvore; ele é como o fermento que se espalha
na farinha e a faz levedar (S. Mateus, 13, 31 e ss.; S. Marcos, 4, 30 e
ss.; S. Lucas, 13, 18 e ss.): quer dizer, é uma vida espiritual que se
desenvolve e se difunde gradualmente entre os homens. O reino de Deus
exige do homem o abandono radical de todos os interesses mundanos. Jesus
afirma explIcitamente que não veio para trazer a paz, mas a espada (S.
Mateus 10, 34); a aceitação da sua mensagem significa a ruptura
definitiva com todos os laços terrenos e a entrega total a Deus. Por
isso exclama: " Quem encontrar a sua alma perdê-la-á, e quem a perder
por mim encontrá-la-á" (S. Mateus,
39). O que esta ruptura total com o mundo e com

o seu próprio eu, o que esta total entrega a Deus implica para o homem
disse-o Jesus no Sermão da Montanha. O reino de Deus é para os pobres de
espírito, para os que sofrem, para os pacíficos, para aqueles que
desejam a justiça, para os que são perseguidos. Isto impõe ao homem o
amor. À lei do Velho Testamento: "Olho por olho, dente por dente", Jesus
opõe a nova lei cristã: "Amai os vossos inimigos, e orai pelos que vos
perseguem e caluniam, para que sejais filhos do vosso Pai que está nos
céus, o qual faz nascer o sol para os bons e os maus e dá a chuva aos
justos e aos injustos. Pois se amais apenas os que vos amam que mérito
tereis? Não fazem os publicanos 1 o mesmo? E se estimais ape-

1 Publicanos (telonai) eram os funcionários dos impostos públicos, gente


odiosa e agarrada ao dinheiro.

112

nas os vossos irmãos, que fareis de extraordinário? Não fazem os pagãos


a mesma coisa? Sede perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celeste" (S.
Mateus, 5,
44-48).

Na pregação de Jesus, Deus mais do que Senhor é o Pai dos homens; mais
do que executor daquela justiça inflexível e vingativa que lhe atribuíam
os hebreus, é fonte inesgotável de amor, que aponta a todos os homens
como primeiro e fundamental dever. A comunidade humana que deverá surgir
da pregação de Cristo será , portanto, uma comunidade fundada no amor.
Mesmo a relação entre o homem e Deus deve ser uma relação de amor. O
homem deve abandonar-se à providência do seu Pai celeste: "Procurai
antes de mais nada o reino de Deus e

a sua justiça e tudo o restante vos será concedido" (S* Mateus, 6, 33).
Mas este abandono não deve ser uma expectativa inerte. "Velai-disse
Jesus porque não sabeis o dia em que chegará o vosso Senhor. (S. Mateus,
24, 42). Esperar pelo reino de Deus significa preparar-se
incessantemente para ele. Não é concedido sem esforço: "Pedi e
recebereis; procurai e encontrareis; batei e as portas se abrirão" (S.
Lucas, 11, 9). Todo o ensinamento de Jesus pretende transmitir a
necessidade desta expectativa activa e preparatória, desta procura sem a
qual não é possível tornarmo-nos dignos do reino de Deus. Por isso Jesus
se volta de preferência para os humildes e para os que sofrem ("Eu fui
enviado apenas às ovelhas tresmalhadas da casa de Israel", S. Mateus,
15, 24), enquanto considera que o seu apelo ressoa em vão naqueles que
estão contentes consigo e nada têm que pedir à vida": "É mais fácil
passar um camelo pelo cu de uma agulha do que entrar um rico no reino de
Deus" (S. Mateus, 19,
24). Só pela dor, pela inquietação e pela necessidade nasce no homem a
aspiração da justiça, da paz e do amor, que conduz ao reino de Deus.

113

§ 130. AS "CARTAS" PAULINAS

As Cartas de S. Paulo, escritas ocasionalmente a várias comunidades


cristãs, contêm, além da apologia da doutrina fundamental de Cristo,
admoestações, conselhos, prescrições rituais. Mas contêm também a clara
expressão dos fundamentos conceptuais da nova religião, que deviam
servir nos séculos seguintes, como constantes pontos de referência das
disputas teológicas e das interpretações filosóficas. Tais fundamentos
podem recapitular-se do seguinte modo:

1.* A cognoscibilidade natural de Deus, de onde ser tomada como culpa a


ignorância ou o seu não conhecimento. Deus é, de facto, cognoscível
através das suas obras, nas quais ele mesmo se revelou e nas quais se
apoiam de modo evidente o seu poder e a sua glória (Romanos, 1, 18-25).

2.' A doutrina do pecado original o da redenÇão pela fé em Cristo.


"Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a
morte, assim a morte trespassou todos os homens porque todos pecaram"
(Rom., V, 12). A redenção do pecado realiza-se pela fé em Cristo. "Deus
é justo e justifica quem tem fé em Jesus. Onde está, pois, a razão da
vanglória? Foi excluída. Por que lei? Pela das obras? Não, pela lei da
fé. Convençamo-nos de que o homem será justificado pela fé, sem as obras
da lei" (Rom., 26-28).

3.* O conceito da graça como acção salvadora de Deus através da fé. "Não
acontece com o pecado o que sucede com a graça; pois se pelo pecado de
um pereceram muitos, muito mais abundou a graça de Deus e o dom da graça
de um homem: Jesus Cristo" (Rom., V, 15-16).

4. O contraste entre a vida segundo a carne e a vida segundo o


espírito. "Se viverdes pela carne,

114

precipitar-vos-eis na morte; se pelo espírito fizerdes morrer os actos


do corpo, vivereis. Porque todos os que seguem o espírito de Deus, são
seus filhos. (Rom. VIII, 13-114).

5.o A identificação do reino de Deus com a vida e o espírito da


comunidade dos fiéis, isto é, com a Igreja. Segundo S. Paulo, a Igreja
é o corpo de Cristo de que os cristãos são os diferentes membros
harmonizados e concordes. (Rom., XII, 5 sg).

Na comunidade cristã há lugar para as tarefas mais variadas, pois todas


contribuem para a unidade do conjunto, mas cada uni deve escolher aquela
para que foi chamado. Domina nas epístolas paulinas o conceito da
vocação (cléisis) pela qual a graça (charis') divina opera em cada
indivíduo chamando-o ao dom ou à função carismática que está mais de
acordo com a sua natureza. "Que cada um fique na vocação a que foi
chamado". (Coríntios, 1, 7, 20). "Há diversidade de carismas, mas um só
é o Espírito; há diversidade de serviços, mas um só é o Senhor; há
diversidade de operações, mas um só é Deus que opera tudo em todos. Em
cada um o Espírito se manifesta da maneira mais útil". (Cor.,
1, 12, 4-7). E assim é dada a um a sabedoria, a outro a ciência, a outro
a fé, a outro o dom da profecia e assim por diante, mas todos são como
os membros de um único corpo que é o próprio corpo de Cristo, a
comunidade dos cristãos (Cor.,
12, sg). Mas a diversidade mesma de funções na comunidade torna
necessária a harmonia espiritual entre os seus membros e esta harmonia é
garantida apenas pelo amor (agápe-charitas). O amor é a condição de toda
a vida cristã. Todos os outros dons do espírito, a profecia, a ciência,
a fé, nada são sem ele". "A caridade suporta todas as coisas, tem fé em
tudo, em tudo tem esperança, tudo mantém... Estão aqui agora estas três
coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a caridade é a maior

115

de todas" (Cor., 1, 13, 7, 13). Este acentuar o valor da caridade e a


posição central que o conceito de vocação ocupa nas epístolas paulinas
demonstram com toda a evidência que o cristianismo se tornou uma
comunidade histórica, cuja vida consiste em procurar compreender os
ensinamentos e a pessoa de Cristo e realizar o seu significado.
§ 131. O QUARTO EVANGELHO

Nos evangelhos sinópticos a doutrina de Cristo surge já estreitamente


ligada à pessoa de Cristo. Cristo deu testemunho da verdade da sua
doutrina, apelando para o Pai celeste que o enviara aos homens, com os
milagres que operou e sobretudo

com a sua ressurreição. O Evangelho de S. João é dominado, mais do que


os sinópticos, pela figura de Jesus, e apresenta, pela primeira vez, a
tentativa de compreender filosoficamente a figura do Mestre e o
princípio da sua doutrina. O prólogo do Quarto Evangelho vê em Jesus o
Logos ou o Verbo divino. "No princípio era o Logos e o Logos estava em
Deus e o Logos era Deus. No princípio Ele estava em Deus. Tudo foi
criado através dele e nada do que foi feito foi feito sem Ele. N'EIe
estava a vida e a vida era a luz dos homens. E a luz apareceu nas trevas
e as trevas não a receberam" (S. João,
1, 1-5). Nestas palavras de S. João determina-se pela primeira vez a
natureza de Cristo pelo conceito do Logos, que já tinha entrado na
tradição hebraica com o livro da Sabedoria (§ 119). Ao Logos é atribuída
a função de mediador entre Deus e o mundo, enquanto se diz que tudo foi
criado por seu intermédio. É reconhecida a sua directa filiação e
derivação do Pai (9, 35: 16, 28) e é-lhe atribuído claramente o papel de
salvador de todos os homens. "Eu não rogo apenas por estes (os
discípulos), mas por todos aqueles que por sua palavra acreditaram

116

em mim, para que todos sejam uma única coisa, como tu, 6 Pai, estás em
mim e eu em ti, para que eles estejam em nós e todo o mundo acredite que
tu me enviaste". (17, 20-21).

No Quarto Evangelho a oposição entre os laços terrenos e o reino de Deus


vem expressa como oposição entre a vida segundo a carne e a vida segundo
o espírito e apresentada como a alternativa crucial do homem. A vida
segundo o espírito é uma nova vida que traz consigo um novo nascimento.
"Em verdade, em verdade vos digo que se cada qual não nasce de novo, não
pode ver o reino de Deus". Nicodemos disse-lhe: Como pode nascer um
homem já velho? Pode ele entrar pela segunda vez no seio de sua mãe
e voltar a nascer? Jesus respondeu-lhe: Em verdade, em verdade te
digo, que se cada um não nascer da água e do espírito não
pode entrar no reino de Deus. O que nasceu da carne é carne, e o que
nasceu do espírito é espírito. Não te surpreendas se te digo: é
necessário nascer de novo. O vento sopra de onde quer, tu ouves o seu
ruído, mas não sabes de onde vem e para onde vai; assim é tudo o que é
gerado pelo espírito" (3, 3-8). Este renascer no espírito (pneuma) é o
nascimento para a verdadeira vida. "0 espírito é o que vivifica, a carne
de nada vale; as palavras que vos dirigi são espírito e vida" (6, 663).
A vida espiritual implica um novo critério de juízo, e por isso Jesus
diz aos Fariseus: "Vós julgais segundo a carne, mas eu a ninguém julgo.
E se julgo, o meu juízo é verdadeiro, porque não estou só, somos eu
e Aquele que me enviou" (8, 15-16).

§ 132. A FILOSOFIA CRISTÃ Entender e realizar a mensagem de Cristo foi a


finalidade da comunidade cristã durante os séculos que se seguiram. A
vida histórica da Igreja é a

117
tentativa contínua de aproximar os homens do significado essencial da
mensagem cristã, reunindo-os numa comunidade universal (catolicismo), na
qual o valor de cada homem se baseia unicamente na sua capacidade de
viver em conformidade com o exemplo de Cristo. Mas a condição
fundamental desta aproximação é a possibilidade de compreender o
significado daquela mensagem; e tal tarefa é própria da filosofia. A
filosofia cristã não pode ter a finalidade de descobrir novas verdades,
nem mesmo a de aprofundar e desenvolver a verdade original do
cristianismo, mas apenas a de encontrar o melhor caminho, pelo qual os
homens possam chegar a compreender e a fazer sua a revelação cristã.
Tudo o que era necessário para erguer o homem do pecado e salvá-lo foi
ensinado por Cristo e -selado com o seu martírio. Ao homem não é dado
descobrir a não ser com fadiga o significado essencial da revelação
cristã, nem pode descobri-lo apenas por si, fiando-se unicamente na
razão. Na Igreja cristã, a filosofia encaminha-se não só para o
esclarecimento de uma verdade, que já é conhecida desde o início, como
ainda para a esclarecer no âmbito de uma responsabilidade colectiva, na
qual cada indivíduo encontra um guia e um limite. A própria Igreja, nas
suas assembleias solenes (Concílios), define as doutrinas que exprimem o
significado fundamental da revelação (dogmas).

Daqui deriva o carácter específico da filosofia cristã, na qual a


procura individual encontra antecipadamente assinalados os seus limites.
Não é, como a filosofia grega, uma procura autónoma que, em primeiro
lugar, pretende fixar os termos e o significado do seu problema; os
termos e a natureza do problema já lhe foram dados. Isto não diminui o
seu significado vital: só pela reflexão filosófica a mensagem cristã, na
imutabilidade do seu signi-

118

ficado fundamental, se renovou e manteve, através dos séculos, a. força


e a eficácia do seu magistério espiritual.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 128. Acerca da relação entre o cristianismo e a filosofia grega à


qual, se refere o final deste parágrafo: RENAN, Les Evangiles et Ia
seconde génération chrét., Paris, 1877; HAVET, Le christianisme et ses
origines, 4 vols, París, 1871-84; HARNACK, Lehrbuch der
Dog~ngeschi,chte, I, 4.a ed., 1909, esp. 121-148 e
496 segs.

§ 129. A fonte para o conhecimento do cristianismo é o Novo Testamento


que é composto pelos seguintes livros: Evangelhos de S. Mateus, S.
Marcos, S. Lucas, chamados sinópticos porque a exposição que fazem da
doutrina e da vida de Cristo é concordante e forma um único quadro; IV
Evangelho ou Evange.lho de S. Joã o, que apresenta uma elaboração
filosófica da doutrina e do significado de Cristo; os Actos dos
Apóstolos; as Epístolas de, S. Pedro aos Romanos, aos Corintios (I e
II), aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos Tessalonicenses
(1 e II), a Timóteo, a Tito, a Filemon, aos Hebreus; as Epístolas
Católicas de Tiago, de Pedro (I e 11), de João (1, 11 e III), de Judas;
O Apocalipse de S. João. Os mais importantes destes escritos, sob o
ponto de vista doutrinaJ, são os quatro Evangelhos e as Epístolas de S.
Paulo, particularmente as dirigidas aos Romanos e aos Coríntios. O Novo
Testamento está escrito em grego. Entre as edições críticas mais
recentes, veja-se a de NESTLE, Stuttgart, 1928, da qual foram traduzidas
as passagens citadas no texto.

Sobre o Novo Testamento vejam-se as seguintes Introduções gerais: R.


KNOLF-H. LIETZMANN-H. WEINEL, Binfuhrung in das Neue Testament, Berlim,
1949; W. MICHAELIS, Einleitung in das Neue Testament, Bern, 2.1 ed.,
1954; A. WICKENHAUSER, Einleitung in das Neue Testament, Friburgo, 1956;
A. ROBERT-A. PEUILLET, Introduction à Ia Bible: II, Nouveau Testament,
Tournal, 1959; ao cuidado de vários autores, Introduzione alla Bíblia:
IV, I Vangeli, Turim, s. d. (1959). Actualização bibliográfica anual na
"Internationale Zeitschriftenshau fur Ribelwissenschaft und
Grenzegebiete" (Dusseldorf) e in "BibUca> (Roma)

119

§ 130. Sobre os pontos tratados no texto velam-se os seguintes


comentários à Epístola aos Romanos: T. ZAHN, Der Brief des Paulus an die
Rõmer, Leipzig,
1910; M. J. LAGRANGE, St. Paul. Êpitre aux Ramains, Paris, 1915
(numerosas reimpressões; a última de
1950); K. BART, Der Romerbrief, Munique, 1929; O. Kuss, no Regensburger
Neues Testament, Regensburger, 1940; C. K. BARRET, The Epistle to the
Romans, Londres, 1957.

§ 131. Acerca do IV EvangeMo: J. WELLHAUSEN, Das Evangelium Johannis,


Berlim, 1908; A. LOSIY, Le Quatrième Evangile, Paris, 1921; M. J.
LAGRANGE, Evangite selon Saint Jean, Paris, 1925; W. BAUER, in Handbuch
zum Neuen Testament, Tubingen, 1933; R. BULTMANN, in Kritisch
exegetischer Kommentar uber das Neues Testament, Gottingen, 1953; Supl.
1957; A. W1KENHAUSER in Regensburger Neues Testament, Regensburger,
1957; sobre o Prólogo em particular: M. E. BOISMARD, Le prologue de
Saint Jean, Paris, 1955.

120

A PATRISTICA DOS DOIS PRIMEIROS SÉCULOS

§ 133. CARACTERISTICAS DA PATRISTICA

Quando o cristianismo, para se defender dos ataques polémicos e das


perseguições, e também para garantir a própria unidade contra cisões e
erros, teve de pôr a claro os próprios pressupostos teóricos e
organizar-se num sistema doutrinal, apresentou-se como expressão
completa e definitiva da verdade que a filosofia grega tinha procurado,
embora imperfeita e parcialmente encontrada. Uma vez no terreno da
filosofia, o cristianismo defendeu a sua continuidade com a filosofia
grega e apresentou-se como a sua última e mais completa manifestação.
Justificou esta continuidade com a unidade da razão (Logos), que Deus
criou idêntica para todos os homens e em todos os tempos e à qual a
revelação cristã deu o último e mais seguro fundamento; e com isto
afirmou implicitamente a unidade da filosofia e da religião. Esta
unidade não é um problenw para os escritores cristãos dos pri-

121
meiros séculos: é mais um dado ou um pressuposto do que guia e dirige
toda a sua reflexão. E mesmo quando estabelecem uma antítese polémica
entre a doutrina pagã e a cristã (como no caso de Taciano), esta
antítese estabelece-se no terreno comum da filosofia e pressupõe,
portanto, a continuidade entre cristianismo e filosofia.

Era natural, segundo este ponto de vista, que se tentasse, por uni lado
interpretar o cristianismo mediante conceitos tirados da filosofia
grega, para assim o ligar a esta filosofia e, por outro, -reconduzir o
significado da filosofia grega ao próprio cristianismo. Esta dupla
tentativa que, na realidade, é uma só, constitui a essência da
elaboração doutrinal que o cristianismo sustentou nos primeiros séculos
da nossa era.

Nesta elaboração, os Padres da Igreja foram frequentemente ajudados e


inspirados, como era inevitável, pelas doutrinas das grandes escolas
filosóficas pagãs; e, especialmente aos Estoicos, foram eles beber
muitas das suas inspirações, impelidos até muitas vezes (como acontece
com Tertuliano) a aceitar teses aparentemente incompatíveis com o
cristianismo como a da corporalidade de Deus.

O período desta elaboração doutrinal é a Patrística. Padres da Igreja


são os escritores cristãos da antiguidade que contribuíram para a
elaboração doutrinal do cristianismo e cuja obra foi aceite e tomada
como sua pela Igreja. O período dos Padres da Igreja pode considerar-se
como terminado com a morte de João Damasceno para a Igreja grega (cerca
de 754); e com a de Beda o Venerável para a Igreja latina (735). Este
período pode dividir-se em três partes. A primeira, que vai até cerca do
ano 200, é dedicada à defesa do cristianismo contra os seus adversários
pagãos e gnósticos. A segunda, que vai de 200 até cerca de 450, é
dedicada à formulação doutrinal das crenças cristãs. A última,

122

que vai de 450 até ao final da Patrística, é mar. cada pela reelaboração
e sistematização das doutrinas já formuladas.

§ 134. OS PADRES APOLOGETAS

Os Padres Apostólicos do século 1 são os autores das Cartas que ilustram


alguns pontos da doutrina cristã e regulam questões de ordem prática e
religiosa. Tais são: o autor da chamada Carta de Bernabé, Gemente
Romano, Hermes, Inácio de Antioquia e Policarpo. Mas estes escritores
não encaram ainda problemas filosóficos.

A verdadeira actividade filosófica cristã começa com os Padres


Apologetas no século 11. Esses Padres escreviam em defesa (apologia) do
cristianismo contra os ataques a perseguições que lhe eram dirigidos.
Neste período "os cristãos são hostilizados pelos Hebreus como
estrangeiros e são perseguidos pelos pagãos" (Epist. ad Diogn., 5, 17).
Escritores pagãos adoptaram contra o cristianismo a sátira e a zombaria
(Luciano, Celso). Os cristãos são alvo de ódio da plebe pagã e das
perseguições sistemáticas do Estado.

É nestas condições que nascem as apologias. A n-ia@s antiga de que há


conhecimento é a defesa apresentada ao imperador Adriano, por volta do
ano 124, quando de uma perseguição aos cristãos, movida por Cuadrato,
discípulo dos Apóstolos. Temos apenas um fragmento, conservado por
Eusébio (Hist. Eccles., IV, 3, 2). A apologia do filósofo Marciano
Aristides foi encontrada em 1878 e é dirigida ao imperador Antonino Pio
(138-161). Nela se afirma já claramente que só o cristianismo é a
verdadeira filosofia. De facto, só os cristãos têm aquele conceito de
Deus que deriva, necessariamente, da consideração da natureza. Nesta
demons-

123

tração são usados conceitos platónicos. A ordem do mundo, tal como


aparece nos céus e na terra, faz pensar que tudo se move por necessidade
e que Deus é aquele que move e governa tudo. Aristides insiste na
inacessibilidade e inefabilidade da essência divina, para contrapor o
monoteísmo rigoroso do cristianismo às crenças dos bárbaros que adoraram
os elementos materiais, às dos gregos que atribuíram aos seus deuses
fraquezas e paixões humanas, o às dos judeus que, admitindo embora um só
Deus, servem melhor os anjos do que a Ele. Mas a primeira grande figura
de Padre apologeta e o verdadeiro fundador da Patrística é Justino.

§ 135. JUSTINO

Justino nasceu provavelmente no primeiro decénio do século 11 em Flávia


Neápolis, a antiga Siquem, agora Nablus na Palestina. Ele próprio nos
descreve a sua formação espiritual. Filho de pais pagãos, frequentou os
representantes das várias escolas filosóficas.- Estoicos, Peripatéticos
e Pitagóricos, e professou durante largo tempo as doutrinas dos
Platónicos. Por fim, encontrou no cristianismo aquilo que procurava e
desde então com a sua palavra e os seus escritos defende-o como a única
e verdadeira filosofia. Viveu muito tempo em Roma e ali fundou uma
escola, foi ainda em Roma que suportou o martírio entre 163
e 167. Das obras que nos ficaram, apenas três são seguramente
autênticas: o Diálogo com o judeu Trifon e duas Apologias. A primeira e
a mais importante é dirigida ao imperador Antonino Pio e deve ter sido
composta nos anos 150-155. A segunda, que é um suplemento ou um apêndice
da primeira, foi motivada pela condenação de três cristãos, réus apenas
por se terem confessado como tais: O Diálogo com o judeu Tri-

124

fon refere uma discussão que ocorreu em Éfeso entre Justino e Trifon e
visa, em substância, demonstrar que a pregação de Cristo realiza e
completa os ensinamentos do Velho Testamento.

A doutrina fundamental de Justino é que o cristianismo é "a única


filosofia segura e útil" (Dial., 8) e que esse é o resultado último e
definitivo que a razão pode alcançar na sua pesquisa, uma vez que a
razão não é mais do que o Verbo de Deus, ou seja, Cristo, do qual
participa todo o género humano. "Nós aprendemos -disse ele (Apo.
primeira, 46) que Cristo é o primogénito de Deus, e que é a razão de que
participa todo o género humano. E aqueles que viveram segundo a razão
são cristãos, ainda que tenham sido considerados ateus como, entre os
Gregos, Sócrates, Heraclito e outros; e entre os bárbaros, Abraão e
Ananias e Azarias e Misael e Elias. De modo que também aqueles que antes
nasceram e viveram irracionalmente eram maus e inimigos de Cristo e
assassinos daqueles que vivem segundo a razão, mas aqueles que viveram e
vivem conformes com a razão são cristãos impávidos e tranquilos".
Todavia estes cristãos "avant Ia lettre" não conheceram toda a verdade.
Neles existiam sementes de verdade, que não puderam entender plenamente.
(1b., 44). Podiam, por certo, ver obscuramente a verdade, mediante
aquela semente de razão que com eles nascera. Mas uma coisa é a semente
e a imitação e outra o desenvolvimento completo e a realidade, da qual a
semente e a imitação se geraram. (Apol. seg., 13). Aqui é adoptada a
doutrina estoica das razões seminais para fundamentar a continuidade do
cristianismo e da filosofia grega, para reconhecer nos maiores filósofos
gregos os precursores do cristianismo e para justificar a obra da razão
mediante a sua identificação com Cristo. Esta mesma doutrina permite a
Justino a identificação completa entre o

125

cristianismo e a verdade filosófica. "Tudo aquilo que se disse de


verdadeiro pertence a nós cristãos, já que, além de Deus, nós amamos e
adoramos o Logos do Deus ingénito e inefável, que se fez homem por nós,
para nos curar das nossas enfermidades participando delas" (1b., 13).

Deus é o eterno, o que não teve princípio, o inefável: o conhecimento de


Deus é um facto inexplicável, radicado na própria natureza dos homens
(Apol. sec., 6). Ao lado e abaixo dele existe outro Deus, o Logos
coexistente e gerado antes da criação, por meio do qual Deus criou e
ordenou todas as coisas (1b., 5). Assim como uma chama não diminui
quando se acende urna outra, o mesmo aconteceu com Deus na criação do
Logos (Dial., 48). Depois do Pai e do Logos está o Espírito Santo, a
quem Justino chama o espírito profético, ao qual os homens devem as
virtudes e os dons proféticos (Apol. prima, 6).

O homem foi criado por Deus, livre de fazer o bem e o mal. Se o homem
não tivesse liberdade, não teria mérito no bem nem culpa no mal
realizado (Apol. prima, 43). A alma do homem é imortal, apenas por obra
de Deus: sem esta, com a morte volveria ao nada (Dial., 6). Mas o
próprio corpo está destinado a participar na imortalidade da alma.
Efectivam-ente, deverá vir, segundo o anúncio dos profetas, uma segunda
parusia de Cristo, e desta vez ele virá em glória, acompanhado pela
legião dos anjos, ressuscitará os corpos e revestirá com imortalidade os
dos justos, ao mesmo tempo que condenará ao fogo eterno os dos iníquos
(Apol. prima, 52).

§ 136. OS OUTROS PADRES APOLOGETAS

Taciano o Assírio, discípulo de Justino em Roma, nasceu na Síria e


converteu-se em Roma

126

depois de ter conquistado nome como filósofo. Mais tarde, provavelmente,


em 172, separou-se da Igreja passando para os Gnósticos. Taciano é autor
de uma apologia intitulada Discurso aos Gregos que é, na realidade, uma
crítica do Helenismo. A obra de Taciano é essencialmente polémica. Acusa
de imoralidade os pensadores e os poetas gregos e alarga-se em
invectivas contra eles. Aos erros dos Gregos contrapõe a doutrina cristã
acerca de Deus e do mundo, do pecado e da redenção. O Logos é a potência
racional de Deus e nasceu dele através dum acto de participação, não de
separação. Como um facho acende muitos outros sem que a sua luz diminua,
assim o Logos não esgota a potência da razão do seu geriltor (Or. ad
graec., 5). No homem distingue a alnw e o espírito. Só o espírito é a
imagem e a semelhança de Deus. (lb., 12). A alma não é uma
essência simples, mas é composta de várias partes. A sua existência está
ligada ao corpo e não é separável dele, pelo que não é imortal Ub.,
15). Só pela sua união com o espírito, a alma e o corpo participam da
imortalidade. Através do espírito, o homem pode reunir-se a

Deus. Ele deve desprezar a matéria, da qual se servem os demónios para


perdê-lo, e voltar-se exclusivamente para a vida espiritual (Ib., 16).

Atenágoras de Atenas é autor de uma apologia intitulada Súplica para os


cristãos, dirigida a Marco Aurélio ou Cómodo, e por isso composta entre
176 e 180, provavelmente em 177. Esse escrito propõe-se refutar as três
acusações que eram lançadas comummente contra os cristãos: o ateísmo, os
banquetes tiesteos e o incesto à maneira de Édipo. A primeira acusação é
refutada mediante a exposição da doutrina cristã de Deus; contra as
outras duas -são aduzidos os fundamentos da moral cristã. Na Súplica
recorre, pela primeira. vez, a uma prova racional da unicidade de Deus.
Se existissem mais

127

divindades, não poderiam existir no mesmo lugar porque, sendo todas


incriadas, não poderiam cair sob um tipo ou modelo comum. Deveriam,
pois, existir em lugares diferentes. Mas não podem estar em lugares
diferentes porque o espaço para lá do mundo é a sede de um único Deus
que é essência supramundana e assim não há espaço para as outras
divindades. Uma outra divindade poderia existir num outro mundo ou em
torno de um outro mundo; mas, em tal caso, essa não chegaria até nós e,
pela limitação da sua esfera de acção, não seria a verdadeira divindade
(Supp1. pro crist., 8). Por isso, os próprios poetas e filósofos gregos
conheceram a unidade de Deus, ainda que o claro, seguro e completo
conhecimento dele só nos tenha sido dado através dos profetas (1b., 7).
O Logos gerado pelo Pai e coeterno com ele, é o modelo, a força criadora
de todas as coisas criadas, enquanto o Espírito Santo é um eflúvio de
Deus, semelhante a um raio de sol (1b., 24).

Teófilo de Antioquia foi bispo desta cidade e deixou três livros Ad


Autolico, que são três escritos independentes, o terceiro dos quais foi
composto à volta de 181-182 e os primeiros dois pouco antes. Ao desafio
de Autólico: "Mostra-nos o teu Deus", Teófilo responde: "Mostra-me o teu
homem e eu te mostrarei o meu Deus." Deus só é visto por aqueles que têm
bem abertos os olhos da alma. Como não se pode ver a face do homem no
espelho coberto de ferrugem, também o homem quando está no pecado não
pode ver a Deus (Ad. Autol., 1, 2). À pergunta: "Tu que o vês, descreve-
me o aspecto de Deus", Teófilo responde: "Escuta-me; a beleza de Deus é
indizível e inefável e não se pode ver com os olhos corpóreos" (1b.,
1, 3). Deus que é eterno e, portanto, não gerado e imutável, é o criador
de tudo: tudo ele fez do nada, para que através da sua obra se compreen-

128

desse a sua grandeza. Por isso, ele torna-se visível através da, sua
criação. "Como a alma humana que é invisível aos homens é conhecida
através dos movimentos do corpo, também Deus, que não pode ser visto
pelos olhos humanos, pode ser visto e conhecido através da sua
providência e das suas obras." (Ib., 1, 5). A via da criação divina é
o Logos Deus, mediante o Logos e a sabedoria, criou todas as coisas
(1b., 1, 7). O Logos é o conselheiro de Deus, a sua mente e a sua
prudência (1b., 11, 22). Pela primeira vez, Teófilo usou a palavra
trindade (trias) para indicar a distinção das pessoas divinas. Os três
dias da criação da luz de que fala o Génesis "são imagens da trindade,
de Deus, do seu Verbo, da sua sabedoria" (1b.,
11, 15).

Sob o nome de Justino chegou até nós uma Carta a Diogneto que certamente
não pertence a Justino pela diversidade do estilo e da doutrina.
O autor responde às dúvidas levantadas por um pagão que se interessa
pelo cristianismo. A composição da Carta não deve ter sido antes de 160,
e provavelmente nos finais do século 11. O autor responde a três dúvidas
de Diogneto. Ao culto pagão e judaico, a Carta contrapõe o culto cristão
do Deus invisível e criador. A religião cristã não é uma descoberta
humana mas uma revelação divina: Deus mandou o seu Filho, a eterna
Verdade e a eterna Palavra, a ensinar aos homens a verdadeira religião;
e o Filho de Deus veio ao mundo não como senhor mas como salvador @
libertador e encaminhou-nos para a salvação pelo amor (Ep. ad Diog., 7).

Com o título Irrisão dos filósofos pagãos, de Hermias filósofo, chegou-


nos um pequeno escrito polémico no qual se põem sarcasticamente à luz as
contradições dos filósofos gregos @na, sua dou-

129

trina sobre a alma humana (cap. 1-2) o sobre os princípios fundamentais


das coisas (cap. 3-10). A obra pertence provavelmente ao final do século
II.

§ 137. A GNOSE

A obra dos Padres Apologetas não tem de se dirigir apenas contra os


inimigos externos do cristianismo, pagãos e hebreus, mas ainda contra os
inimigos internos, contra as tendências e as seitas que, na tentativa de
interpretarem a mensagem original do cristianismo, falseavam o seu
espírito e a letra, contaminando-o com elementos e motivos heterogéneos.
O maior perigo contra a unidade espiritual do cristianismo foi
representado nos primeiros séculos pelas seitas gnósticas que se
difundiram amplamente no Oriente e no Ocidente, especialmente nas
esferas dos doutos e produziram uma rica o variada literatura. No
entanto, esta literatura, com excepção de poucos escritos, conservados
em traduções coptas, perdeu-se o só a conhecemos através dos passos
citados pelos Padres Apologetas que os refutaram.

A importância da tentativa dos gnósticos reside no facto de que é a


primeira investigação de uma filosofia do cristianismo. Mas esta
investigação foi conduzida sem rigor sistemático, misturando juntamente
elementos cristãos, míticos, neoplatónicos e orientais num conjunto que
nada tem de filosófico. A palavra Gnosis, como conhecimento religioso
distinto da pura fé, foi tirada da tradição grega, especialmente do
pitagorismo, no qual significava o conhecimento do divino próprio dos
iniciados. Foi assim empregada para indicar um grupo de pensadores
cristãos do século II que fizeram do conhecimento a condição da
salvação. Atribuíram a si próprios, pela primeira vez, o
130

nome de gnósticos, os Ofitas ou sócios da serpente, que depois se


dividiram em numerosas seitas. Estes utilizavam grande quantidade de
textos religiosos atribuídos a personalidades bíblicas: tal era o
Evangelho de Judas, a que se refere Irineu (Adv. haer.,
1, 31, 1). Outros escritos do género foram encontrados recentemente em
traduções coptas, o mais importante dos quais é a Pistis Sophia, que foi
editada em 1851 e expõe, em forma de diálogo entre o Salvador
ressuscitado e os seus discípulos, particularmente Maria Madalena, a
queda e a redenção de Pistis Sophia, um ser pertencente ao mundo dos
Eones (seres intermédios entre o homem e Deus), e o caminho para a
purificação do homem mediante a penitência. Os principais gnósticos de
que temos conhecimento são Basílides, Carpócrates, Valentino e
Bardesanes.

Basilides, que ensinou em Alexandria entre 120 e 140, escreveu uni


Evangelho, um Comentário e Salmos. A sua doutrina é conhecida através
das obras de Clemente de Alexandria (Stromata) e das refutações de
Irineu (Contra os heréticos) e de Hipólito (Filosofemi). Para Basilides,
a fé é uma entidade real, uma coisa, deposta por Deus no espírito dos
eleitos, isto é, dos predestinados para a salvação. Levado pela
necessidade de explicar o mal no mundo, Basilides foi levado a admitir
dois princípios da realidade, um como causa do bem, o outro do mal: a
luz e as trevas. Postas em contacto entre si, as trevas procuraram unir-
se à luz e participar dela, enquanto a luz, por sua vez, permanecia
retraindo-se sem absorver as trevas. As trevas originaram assim uma
aparência e uma imagem da luz, que é o mundo, no qual o bem se encontra
por isso em quantidade desprezível e o mal predomina. Esta concepção de
Basilides é muito semelhante à maniqueia, mas não admite, como esta, a
luta entre os dois princípios.

131

De Carpócrates de Alexandria apenas sabemos que uma sua sequaz,


Marcellina, foi a Roma nos tempos de Aniceto (cerca de 160), e "provocou
a ruiria de muitos" (Irineu, Contra os hereges, 1, 25,
4). Carpócrates, para explicar a superioridade de Cristo sobre os
homens, serve-se da teoria platónica da reminiscência. Cristo torna-se
superior aos outros homens, porque a sua alma recordou mais
abundantemente quanto tinha visto durante o seu curso com o Pai não
gerado, onde este lhe deu uma virtude particular que o tornou capaz de
escapar ao predomínio do mundo e de regressar livremente até ele. O
mesmo acontecerá a toda a alma que se atenha à mesma linha de conduta.
Os sequazes de Carpócrates ou carpocracianos admitiam a transmigração da
alma de corpo em corpo, enquanto não tivesse completado o ciclo das
experiências pecaminosas; só no termo desta odisseia, a alma seria digna
de voltar para o Pai, libertando-se de todas as ligações com o corpo.

O maior número de sequazes pertence à escola de Valentino que, segundo


Irineu, foi a Roma nos tempos do bispo Higino (135-140). No cume da
realidade, Valentino e os seus seguidores colocavam um ser intemporal e
incorpóreo, não gerado e incorruptível a quem chamavam Pai ou Primeiro
Pai ou ainda Eone (do grego: aión=eterno) perfeito. Este primeiro
princípio é formado por pares de termos, Abismo e Silêncio; e também os
eones que emanam dele são constituídos por pares. Efectivamente, do
primeiro Eone derivam a Mente e a Verdade, da qual procedem por emanação
a Razão e a Vida; e dos quais procedem ainda o Homem (como determinação
divina) e a Comunidade (ecclesia, comunidade de vida divina). O conjunto
destas oito determinações divinas (ogdoade) é o reino da perfeita vida
divina ou Pleroma. Ora o último Eone, a Sabedoria, quis descobrir o
primeiro, o

132

Abismo, e procurou subir até às regiões superiores do Pleroma. Mas isso


não foi avante e neste esforço inútil deu origem ao mundo, o qual por
isto apresenta as características de um esforço incompleto o os erros e
o pranto que o esforço fracassado produz. "Da ansiedade e da inquietação
nasceram as trevas; do temor e da ignorância nasceram a malícia e a
perversão; da tristeza e do pranto as Contes de água e os mares. Cristo
foi mandado pelo Pai Primeiro, inviolável no seu mistério, a restaurar o
equilíbrio desfeito pelo louco sonho da Sabedoria" 'Tertuliano, Contra
os Valentinianos, 2). Deste modo, o universo nasce na rebelião infecunda
do cone Sophia que dá origem à obra plasmadora de um Demiurgo. Valentino
repartia o género humano em três categorias: a massa dos homens carnais,
o conjunto dos psíquicos e a casta dos espirituais (pneumáticos). Os
primeiros estão destinados à perdição; os segundos podem salvar-se à
custa de um esforço; aos privilegiados basta, para alcançar a beatitude,
a gnose, isto é, o conhecimento dos mistérios divinos.

Bardesanes, nascido em Edessa em 154 e falecido em 222, foi discípulo de


Valentino. É essencialmente um astrólogo e um naturalista que, da
astrologia babilónica e egípcia, retira a teoria da influência dos
astros sobre os acontecimentos do mundo e sobre as acções humanas.

O persa Mani, nascido provavelmente cerca de


216, proclamou-se Paráclito, isto é, aquele que devia trazer a doutrina
cristã à sua perfeição. A sua religião é uma mescla fantástica dos
elementos gnósticos, cristãos e orientais, fundamentada no dualismo da
religião de Zaratustra. Ele admite efectivamente, dois princípios
originais, um, o do mal ou princípio das trevas, o outro do bem ou
princípio da luz, que se combatem perpetuamente no mundo. Também no
homem existem duas almas,

133

uma corpórea que é o princípio do mal, a outra luminosa que é o bem. O


homem atinge a sua perfeição com um tríplice selo, isto é, abstendo-se
da comida animal e dos discursos impuros (signaculum oris), da
propriedade e do trabalho (signaculum manus) e do matrimónio e do
concubinato (signaculum sinus). O maniqueísmo encontrou o seu grande e
implacável adversário em S. Agostinho.

§ 138. A POLÉMICA CONTRA A GNOSE

Na polémica contra o gnose o cristianismo atinge uma mais rigorosa


elaboração doutrinal. Neste ponto era necessário, em primeiro lugar,
individualizar e defender as fontes genuínas da tradição cristã e, em
segundo lugar, fixar o significado autêntico desta tradição contra as
perversões e erros que pretendiam disputá-la e exprimir o seu verdadeiro
significado. Um certo número de obras antignósticas perdeu-se, de outras
obras (de Agrippa Castor, Egesipo, Rodón, Filipe de Cortina, Heraclito)
restam escassos e insignificantes fragmentos (Migne, Patr. grec., 5.0).
Em contrapartida, temos as obras de Irineu e de Hipólito.

Irineu nasceu cerca de 140 na Ásia Menor, provavelmente em Esmima. No


tempo da perseguição de Marco Aurélio, era padre da igreja de Lyon e,
segundo uma tradição que remonta a S. Jerónimo, morreu mártir mas
ignora-se em que data. Irineu escreveu numerosas obras. Eusébio, na sua
História Eclesiástica (V, 20), cita um tratado: Sobre a monarquia ou
sobre não ser Deus autor do mal; um outro, Sobre ogdoade; várias cartas
e escritos menores um dos quais contra os pagãos, intitulado Sobre a
ciência. De todos estes escritos só restam escassos fragmentos (em
Migne, Patr. grec., 7.0),
1225-74). Em contrapartida, conserva-se uma grande

134

obra contra o gnosticismo, intitulada Refutação e desmascaramento da


falsa gnose, comummente chamada Adversus haereses. Mas chegou-nos não no
seu original grego, mas uma versão latina do século IV; existem,
contudo, fragmentos do texto grego, especialmente do primeiro livro, sob
a forma de citações dos escritores posteriores.

A verdadeira gnose é, segundo Irineu, aquela que foi transmitida pelos


apóstolos da Igreja. Mas esta gnose não tem a pretensão de superar os
limites do homem, como a falsa gnose dos heréticos. Deus é
incompreensível e impensável. Todos os nossos conceitos -são para ele
inadequados. Ele é intelecto, mas não é semelhante ao nosso intelecto. É
luz, mas não é semelhante à nossa luz. "É melhor não saber nada, mas
crer em Deus e permanecer no amor de Deus, do que arriscar-se a perdê-lo
com investigações subtis" (Adv. haer., 11, 28, 3).
O que podemos saber de Deus, podemos conhecê-lo somente por revelação:
sem Deus não se pode conhecer Deus. E a revelação de Deus acontece
também através do mundo que é obra dele, como reconheceram até os
melhores entre os pagãos. A mais grave blasfémia dos gnósticos é,
segundo Irineu, (11, 1, 1) a tese de que o criador do mundo não é o
próprio Deus, mas uma emanação sua. Que Deus tenha tido necessidade de
seres intermédios para a criação do mundo, significaria que ele não
teria tido a capacidade de levar a efeito aquilo que tinha projectado.
Contra a doutrina gnóstica de que o Logos e o Espírito Santo são eones
subordinados, Irineu afirma a igualdade de essência e de dignidade entre
o Filho, o Espírito Santo e o Pai. O Filho de Deus não teve princípio.
pois que ele é desde a eternidade coexistente com o Pai, nem teve
princípio o Espírito Santo, o qual como o Filho está desde a eternidade
junto ao Pai. Nem se pode admitir a emanação do Filho e do

135

Espírito Santo do Pai. A simplicidade da essência divina não consente a


separação do Logos ou do Espírito Santo do Pai (11, 13, 8). O Filho é o
órgão da revelação divina e está subordinado ao Pai não pelo seu ser ou
pela sua essência, mas apenas pela sua actividade (V, 18, 2).

Pelo que se refere ao homem, Irineu, contra a distinção gnóstica de


corpo, alma e espírito, afirma que o homem resulta da alma e do corpo e
que o espírito é apenas a capacidade da alma pela qual o homem se torna
perfeito e se constitui à imagem de Deus. Mas para que o espírito
transfigure e santifique a figura humana é necessária a acção do
Espírito Santo. A alma humana está entre a carne o o espírito e pode
voltar-se para uma ou para outro. Apenas pela fé e pelo temor de Deus, o
homem participa do espírito e se eleva à vida divina (V, 9, 1). Mas os
gnósticos erram ao afirmar que a carne em si é um mal ou a origem do
mal.
O corpo como a alma é uma criação divina e não pode, portanto, implicar
o mal na sua natureza (IV,
37, 1). A origem do mal está antes no abuso da liberdade e, por isso,
deriva não da natureza, mas do homem e da sua escolha (IV, 37, 6). O bem
consiste em obedecer a Deus, em acreditar nele, em guardar os seus
perceitos, o mal consiste na desobediência e na negação de Deus (IV, 39,
1).
O bem conduz o homem à imortalidade que é concedida à alma por Deus, mas
não é intrínseca à sua própria natureza; o mal é punido com a morte
eterna. Também os corpos ressuscitarão; mas ressuscitarão com a nova
vinda de Cristo, que se verificará depois do reino do Anticristo. Então
as almas, tendo readquirido os seus corpos, poderão chegar à visão de
Deus (V, 31, 2; 27, 2).

Da vida de Hipólito, discípulo de Irineu, dá-nos algumas indicações a


própria obra que nos ficou dele, os Philosophoumena. Contra o papa
Calisto

136

(217-22) colocou-se à cabeça de um partido cismático e foi assim um dos


primeiros antipapas que a história conhece. O motivo do cisma foi o
abrandamento da disciplina eclesiástica, introduzido por Calisto, que
permitira a readmissão na Igreja daqueles que retornavam das seitas
heréticas, a concessão das dignidades eclesiásticas aos bígamos, etc.
(Philos., lX, 12). Em 235, Hipólito foi exilado para a Sardenha com o
segundo sucessor de Calisto, Ponziano, e ali se reconciliaram
provavelmente o papa e o antipapa. Falecidos ambos na Sardenha, os seus
corpos foram transportados para Roma e sepultados no mesmo dia, a 13 de
Agosto de 236 ou 237. A estátua de Hipólito, encontrada mutilada no ano
de 1551 e conservada no Museu de Latrão, tem, nos lados do pedestral,
uma lista incompleta dos seus numerosos escritos. Entre as obras de
Orígenes andava incluí do, em muitos manuscritos, o primeiro livro de
uma Refutação de todas as heresias, que certamente não pertence a
Orígenes porque o autor se intitula bispo. Em 1842, num manuscrito do
monte Athos, foram encontrados os livros IV-X da mesma Refutação, a qual
hoje é universalmente atribuída a Hipólito com o título impróprio de
Philosophoumena. Das outras obras chegaram-nos fragmentos; entre estes o
capitulo final do escrito Contra Noetum. Restam-nos completos um escrito
apologético Sobre o Anticristo e um Comentário ao profeta Daniel, que é
a primeira tentativa do género entre os teólogos cristãos. Outros
fragmentos de obras de Hipólito conservaram-se em eslavo, arménio,
siríaco, etc.

Hipólito propõe-se refutar os heréticos mostrando que eles vão beber a


sua doutrina não na tradição cristã, mas na sabedoria pagã. Por isso, o
I e o IV livro (no último dos quais talvez se possa ver também o 11 e o
111), traçam um quadro da sabedoria pagã, enquanto os últimos seis
expõem e

137

Tefutam as heresias. Ao papa Calisto reprova Hipólito o facto de não


estabelecer uma distinção suficiente entre o Pai e o Logos e o de
atribuir, portanto, toda a obra redentora ao Pai mais que ao Filho. A
sua doutrina do Logos tende essencialmente a estabelecer esta distinção.
O Pai e o Filho são duas pessoas (prosopa) diferentes, ainda que
constituam uma só potência (dynamis). Primeiramente o Logos existia no
Pai impessoalmente, em inseparável unidade com ele, como Logos não
expresso. Quando o Pai quis e da maneira que quis, ele procedeu do Pai e
tornou-se uma pessoa à parte como outro em relação a ele. Finalmente com
a incarnação, o Logos tornou-se o verdadeiro e perfeito Filho do Pai.
Hipólito insiste sobre a arbitrariedade da geração divina do Logos. "Se
Deus tivesse querido, diz ele, (Philos., X, 33), teria podido fazer um
homem Deus (ou o homem) em vez do Logos". Afirma assim a subordinação da
natureza do Logos à do Pai. Contudo, ao afirmar que o Logos é distinto
de Deus, ele não pretende dizer que sejam duas divindades: a relação
entre o Pai e o Logos é semelhante à que existe entre a fonte luminosa e
a luz, entre a água e a fonte, entre o raio e o sol. Com efeito, o Logos
é uma potência que deriva do todo e o todo é o Pai de cuja potência
procede (Contra Noet., 11). A procedência do Logos do Pai era necessária
para a criação do mundo, pois que o Logos é o intermediário da obra
criadora. Além do Pai e do Filho, Hipólito admite a terceira instituição
(economia), o Espírito Santo. "0 Pai manda, o Filho obedece, o Espírito
Santo ilumina; o Pai está acima de tudo, o Filho é por tudo, o Espírito
Santo está em tudo. Não podemos pensar num único Deus, se não
acreditarmos no Pai, no Filho e no Espírito Santo" (Contra Noet., 14).

138

O homem foi criado por Deus dotado de liberdade e Deus deu-lhe. através
dos profetas e especialmente de Moisés, a lei que deve guiar a sua
vontade livre. O homem não é Deus; mas se quiser pode tornar-se Deus: "
Sô seguidor de Deus e co-herdeiro de Cristo, em vez de servir os
instintos e as paixões e tornar-te-ás Deus" (Philos., X, 33).

§ 139. TERTULIANO

Frente aos apologetas orientais que tentaram estabelecer a continuidade


entre o cristianismo e a filosofia grega e apresentaram a doutrina
cristã como a verdadeira filosofia que a revelação de Cristo conduziu à
sua última perfeição, os apologetas ocidentais tendem a reivindicar a
originalidade da revelação cristã em confronto com a sabedoria pagã e a
fundá-la sobre a natureza prática e imediata da fé, mais que sobre a
especulação. Este carácter da apologética latina demonstra-se,
sobretudo, no seu maior representante, Tertuliano.

Quinto Septímio Fiorente Tertuliano nasceu cerca de 160 em Cartago de


pais pagãos. Teve uma educação excelente e exerceu, provavelmente em
Roma, a profissão de advogado. Entre 193 e 197 converteu-se ao
cristianismo e recebeu a ordenação sacerdotal. Desenvolveu então uma
intensa actividade polémica a favor da nova fé; irias, a meio da sua
vida, passou para a seita dos montanistas e começou a polernizar contra
a Igreja Católica com violência pouco menor do que aquela que tinha
usado contra os hereges. Finalmente, fundou uma seita própria, os
"tertulianistas" (Agostinho, De haeres., 86). Parece que viveu até idade
avançada (Jerónimo, De vir. iII., 53). A actividade literária de
Tertuliano é vastíssima, mas exclusivamente polémica. As suas obras
costumam dividir-se
139

em três grupos: apologéticas, em defesa do cristianismo; dogmáticas, em


refutação das heresias; prático-ascéticas, sobre questões de moral
prática e de disciplina eclesiástica. Ao primeiro grupo pertencem: o
Apologeticus, dirigido no ano de 197 aos governadores das províncias do
Império Romano; o Ad nationes, pouco anterior ao primeiro; o De
testimonio animae, que pretende fundar a fé no testemunho da alma,
"naturaliter christiana"; a carta Ad Scapulam, dirigida a um procônsul
de África que perseguia os cristãos; o Adversus judaeos, que,
provavelmente, só nos primeiros oito capítulos pertence a Tertuliano. As
obras dogmáticas são: o De praescriptione haereticorum que é um dos seus
escritos filosóficamente mais significativos; Adversus Marcionem,
Adversus Hermogenem e Adversus Valentinianos, dirigidos contra os
Gnósticos; o Scorpiace, também dirigido contra os Gnósticos, comparados
aos escorpiões; o De baptismo, que declara inválido o baptismo dos
heréticos; o De carne Christi que confirma a realidade do corpo de
Cristo contra o docetismo; o De ressurrectione Christi, em defesa da
ressurreição da carne; o Adversus Praxean; o De anima, que é o primeiro
escrito de psicologia cristã. Os dois últimos escritos pertencem ao
período montanístico. As obras prático-ascéticas são: o De patientia, o
De oratione, o De poenitentia, o De pudicitia, a carta Ad martyras, o De
exortatione castitatis, o De monogamia, todos dirigidos contra o segundo
matrimónio; o De spectaculis, contra a intervenção dos cristãos nos
jogos pagãos; o De idololatria, contra a participação dos cristãos na
Vida pública e na actividade artística; o De corona, contra o serviço
militar; o De cultu foeminarum, contra os adornos das mulheres; o De
virginibus velandis; o De fuga in persecutione, que declara ilícita a
fuga durante as perseguições; o De ieiunio adversus psychícos, contra os
jejuns dos
140

católicos; o De palfio, em defesa da veste que havia adoptado ao


abandonar a toga.

O traço característico de Tertuliano é a irrequietude. No tratado De


patientia, que dirige sobretudo a si próprio, existe indubitàvelmente
uma confissão sincera: "Pobre de mim, que ardo continuamente com a febre
da impaciência." E, na realidade, ele era incapaz de deter-se sobre os
problemas e examiná-los com profundidade. O trabalho paciente e rigoroso
da pesquisa não era para ele; por alguma coisa, como veremos,
desvaloriza a investigação ante a fé. Servido por uma habilidade
polémica excepcional e por uma faculdade oratória pouco comum, examina
os problemas tomando as posições mais simples e extremistas com suprema
indiferença por toda a cautela crítica e toda a exigência de método.
Este homem que nega o valor da pesquisa e passa a vida à procura de
qualquer coisa; este adversário implacável de todas as seitas que depois
passa a uma delas e acaba por fundar uma; este defensor do cristianismo
que afirma a corporeidade de Deus e da alma, perdendo assim a primeira
conquista não só do cristianismo mas de qualquer religião; este defensor
intransigente do pudor que se detém com complacência a descrever o acto
carnal do amor (De an., 27), este causídico que defende com igual
violência polémica a trindade de Deus e a forma do seu vestir, revela em
todas as suas atitudes uma carência fundamental de clareza e de
sinceridade consigo próprio. Com demasiada frequência deixa transparecer
na sua arrogância polémica, sob o manto oratório das frases incisivas, a
inconsistência da sua espiritualidade e o carácter formalístico da sua
fé. Aquela seita dos montanistas, que tinha as características do seu
fundador Montano, ex-sacerdote de Cibele, formada por exaltados que
viviam em contínua agitação à espera do iminente regresso de Cristo,
141

pôde seduzi-lo por algum tempo, mas não pôde detê-lo. E assim, se
imprimiu à especulação cristã do Ocidente a sua terminologia, não
conseguiu dar-lhe um contributo substancial de pensamento.

§ 140. TERTULIANO: AS DOUTRINAS

O ponto de partida de Tertuliano é a condenação da filosofia. A verdade


da religião funda-se na tradição eclesiástica-, da filosofia só nascem
as heresias. Não existe nada de comum entre o filósofo e o Cristo, entre
o discípulo da Grécia e o dos céus (Apol., 46); os filósofos são "os,
patriarcas dos heréticos" (De an., 3). A raiz de todas as heresias está
nos filósofos gregos. Valentino, o gnóstico, era discípulo de Platão;
Marción, dos Estoicos. Para negar a imortalidade da alma recorre-se aos
Epicuristas; para negar a ressurreição da carne, ao acordo unânime dos
filósofos. Quando se fala de um Deus-fogo recorre-se a Heraclito. E a
coisa mais inútil de todas é a dialéctica do desgraçado Aristóteles que
serve tanto para edificar como para destruir e que se adapta a todas as
opiniões (De praescr., 7). Que valor têm então as palavras de Cristo:
"Procurai e achareis"? É necessário procurar a doutrina de Cristo
enquanto não a encontrarmos, isto é, enquanto não acreditamos nela. "Se
procuramos para encontrar e encontramos para crer, põe-se fim, com a fé,
a toda a ulterior investígação e achamento. Eis o limite que o próprio
resultado da investigação estabelece. Eis aqui o fosso que traçou
diante de ti aquele que quer que tu creias só naquilo que te ensinou
e que não busques outra coisa" (De praescr., 10). A investigação excluí
pois a posse e a posse exclui a investigação. Procurar, depois que se
alcançou a fé, significa precipitar-se na heresia (1b., 14). Nada há
142

mais estranho à mentalidade de Tertuliano do que a exigência de uma


investigação que nasça e se alimente da fé: esta exigência encarnará na
grande figura de S. Agostinho. Medido pelo critério de Tertuliano, S.
Agostinho seria incrédulo ou herético.

A verdade do cristianismo funda-se, portanto, apenas no testemunho da


tradição. Às seitas heréticas que procuram interpretar a seu modo as
Sagradas Escrituras, ele opõe que a interpretação delas diz respeito
apenas às autoridades eclesiásficas, às quais foi transmitido, por
hereditariedade ininterrupta, o ensinamento de Cristo. Com mentalidade
de advogado defende este direito da Igreja, que foi instituída, através
dos Apóstolos, como herdeira da mensagem de Cristo. Mas admite também,
além da tradição eclesiástica, um outro testemunho a favor da fé: o da
alma. Mas a alma não é para ele, como será para S. Agostinho, o
princípio da interioridade, o rincão interior onde ressoa do alto a voz
da verdade divina; é a voz do senso comum, a crença que o homem da rua
manifesta nas expressões correntes da sua linguagem. "Eu não invoco a
alma que se formou nas escolas, exercitada nas bibliotecas e inchada
pela sabedoria das academias e dos pórticos da Grécia. Eu invoco a alma
simples, rude, inculta e primitiva, tal como a possuem aqueles que só a
têm a ela, a alma que se encontra nas encruzilhadas e bifurcações dos
caminhos" (De testimon. an., 1). E Tertuliano recolhe o testemunho desta
alma nas expressões mais simples e mais frequentes que o vulgo emprega,
com a convicção de que tais expressões são "vulgares porque comuns,
comuns porque naturais, naturais porque divinas" (lb., 6).

O testemunho da alma é, pois, para Tertuliano, o testemunho da linguagem


ou do senso comum mais que o testemunho da consciência. O princípio da
consciência é, efectivamente, estranho a Ter-

143

tuliano, que aceita dos Estoicos a corporeidade do ser.

"Tudo aquilo que é, é o corpo de um género determinado. Nada é


incorpóreo a não ser aquilo que não é" (De carne Christi, 11). O próprio
Deus é corpo ainda que seja espírito, pois que o espírito não é mais do
que um corpo sui generis. A diferença entre a natureza espiritual da
alma e a natureza carnal do corpo é a diferença entre dois corpos: o
espírito é um sopro que dá vida à carne, mas que é ele próprio corpóreo.
O mundo sensível e o mundo intelectual diferenciam-se entre si só
enquanto um é visível e aparente e o outro evanescente e imperceptível.
O primeiro cai sob a sensibilidade, o segundo sob o intelecto. Mas o
próprio entender é um sentir e o sentir é um entender. A sensação é
efectivamente a inteligência da -realidade que se sente e a intelecção é
a sensação da realidade que se percebe (De an., 18). A alma tem, pois, a
mesma figura do homem e, precisamente, do corpo que a contém (lb., 9).
Ela é definida por Tertuliano como "uma substância simples, nascida do
sopro de Deus, imortal, corpórea e dotada de uma figura, capaz por si
mesma de sabedoria, rica em atitudes, partícipe de arbítrio, sujeita às
circunstâncias, mutável de humor, racional, dona da sua capacidade, rica
de virtudes, adivinhadora, multiplicando-se a partir de um único ramo
(Ib., 22).

Esta última determinação exprime a convicção de Tertuliano de que a alma


se transmite, em conjunto com o corpo, de pai para filho através da
geração (traducianisnio). No resoluto materialismo de Tertuliano
exprime-se, por um lado, a necessidade de dar ao espírito a realidade
mais sólida e concreta pelo outro a sua incapacidade para conceber um'@
realidade estável e firme fora do corpo. Contudo, isso permite-lhe
afirmar com extrema energia a unidade indissolúvel do homem. "Se a morte
não é mais que a separação entre o corpo e a alma, aquilo que é

144

contrário à morte, a vida, não será outra coisa senão a união da alma e
do corpo. Estão fundidos pela vida os elementos que são desintegrados na
morte" (1b., 27). Por isso, Tertuliano defende a realidade do corpo de
Cristo contra aqueles que o reduziam a uma pura aparência (docetismo).
No De carne Christi detém-se, com aquela complacência no repugnante e no
abjecto que lhe é tão característica, nos mais grosseiros detalhes da
geração e do nascimento, para defender a total e plena humanidade do
homem. "Cristo, diz ele (De carne Christi, 4), amou o homem tal como é.
Se Cristo é o criador, amou justamente o que era seu; se vem de outro
Deus, o seu amor é mais meritório porque se redimiu a um estranho. Era,
pois, lógico que amasse também o seu nascimento, a sua carne; é
impossível amar um objecto qualquer sem amar o que é uno com ele. Acaba
com o nascimento e faz-me ver um só homem que seja; suprime a carne e
diz-me que coisa pôde Deus remir, se de um e da outra resultou a
humanidade que Deus redimiu". A realidade e o valor da carne justificam
a ressurreição de Cristo. E a este respeito encontramos palavras
paradoxais que exprimem aquela exasperada tensão entre a certeza da fé e
a verdade do intelecto que se expressou na fórmula (que não se encontra
em Tertuliano): credo quia absurdum. "0 Filho de Deus foi crucificado;
não é vergonhoso porque poderia sê -lo. O Filho de Deus morreu: é crível
porque é inconcebível. Sepultado, ressuscitou: é certo porque é
impossível" (De carne

Chr., 5). Aqui a fé tem tanta maior certeza quanto mais repugna às
avaliações naturais do homem.

A ressurreição de Cristo é a garantia da ressurreição do homem.


Tertuliano deduz as provas da imortalidade da alma dos testemunhos do
senso comum, da necessidade implícita em todos de viver de qualquer modo
para lá do túmulo, necessidade que se funda numa instintiva certeza do
futuro (De

145

testim. an., 6). Mas à imortalidade da alma andará unida a ressurreição


da carne. O homem deverá ressurgir na sua natureza inteira e esta não
seria tal sem a carne (De ressur. carnis, 56-57).

Na sua doutrina do Logos, Tertuliano liga-se expressamente aos Estoicos:


"Deus criou todo o mundo com a palavra, com a sabedoria e com a
potência. Também os vossos sábios chamam Logos, isto é, palavra e
sabedoria, ao artífice do universo. Zenão chama-lhe o autor da ordem que
dispôs todas as coisas; Cleanto redu-lo a um espírito e afirma que
penetra o universo. E nós à Palavra, à Sabedoria e à Potência pela qual
Deus criou todas as coisas, atribuímos-lhe, como substância própria, o
Espírito, no qual existe a Palavra para mandar, a Razão para dispor e a
Potência para efectuar" (Apol., 21). Tertuliano admite, contudo, a
subordinação do Filho e do Espírito Santo ao Pai. O ser pertence
principalmente ao Pai, do qual se comunica ao Filho e, através do Filho,
ao Espírito Santo. Tudo aquilo que o Filho é vem-lhe da substância do
Pai; toda a sua vontade, todo o seu poder lhe vem do Pai (Adv. Praexan.,
3-4).
O Logos tem um duplo nascimento, o imanente e o emanewe; pelo primeiro,
é gerado na sensibilidade de Deus; pelo segundo afasta-se do Pai e
procede à criação do mundo (1b., 7).

§ 141. APOLOGETAS LATINOS

Contemporâneo de Tertuliano foi Minúcio Félix, autor de um diálogo


intitulado Octavius, que é uma das primeiras apologias do cristianismo.
Pouco sabemos do autor, que se intitula advogado (causidicus) em Roma.
No diálogo, faz de árbitro na disputa entre o cristão Octávio Gennaro e
o pagão Cecilio Natale que, no final, se declara vencido. A apologia

146

de Minúcio Félix é, no seu espírito, uma obra mais próxima dos


escritores gregos do que de Tertuliano.
O cristianismo é apresentado como monoteísmo e caracterizado acima de
tudo através da sua moral prática. Não se fala dos mistérios da fé nem
da Sagrada Escritura. A concordância de todos os filósofos sobre a
unicidade de Deus faz concluir que "ou os cristãos são os filósofos de
agora ou os filósofos de então eram cristãos" (Oct., 20). Todavia, a
obra apresenta no seu conteúdo uma grande afinidade com o Apologeticum
de Tertuliano. Não é fácil elucidar a prioridade de uma ou de outra
obra. Como quer que seja, as teses que, em Tertuliano, têm uma forma
violenta e extrema, tomam em Minúcio Félix uma forma atenuada e cortês,
que as torna mais aptas para influir persuasivamente sobre os pagãos
cultos a quem a obra se dirige. À posição céptica de Cecílio, o
interlocutor pagão que, reconhecendo a impossibilidade da mente humana
para olhar os mistérios divinos, julga que nos devemos contentar com as
crenças dos nossos pais, Octávio contrapõe a evidência pela qual o Deus
único se manifesta na sua obra: o céu e a terra. Como quem entra numa
casa e, ao vê-Ia bem ordenada e disposta, atribui esta ordem ao dono, do
mesmo modo quem considera a ordem, a providência e a lei que regem o céu
e a terra, deve crer num senhor do mundo que o move, o alimenta e o
governo (1h., 18). Como Tertuliano, Minúcio recorre ao testemunho da
alma simples e reconhece nela "a palavra espontânea da multidão". A
crença cristã num Deus único confirmada juntamente pela demonstração dos
filósofos e pelo sentido comum da maioria, e contraposta por Minúcio ao
politeísmo pagão, tal como a moral cristã se opõe à moral pagã,
degenerada e corrupta.

Nos escritos prático-ascéticos de Tertuliano se inspirou frequentemente


Tascio Cecilio Cipriano (morto em 258), em tratados e cartas que tratam

147

apenas questões referentes à disciplina eclesiástica e não têm, por


conseguinte, interesse filosófico. Em contrapartida, tem conteúdo
filosófico a apologia de Arnóbio intitulada Adversus nationes, composta
no tempo da perseguição de Diocleciano (303-305) ou pouco depois.
Arnóbio era professor de retórica em Sicca, na África romana. Uma visão
convenceu-o a converter-se e para vencer a desconfiança do bispo, que
devia acolhê -lo na comunidade cristã, publicou esse escrito contra o
paganismo. Tal é, ao menos, o relato de S. Jerónimo (De vir. ÚI., 79).
Pelo seu conceito pessimista da condição do homem, Arnóbio foi comparado
a Pascal. Tudo no homem lhe parece baixo, repugnante e ignóbil. A sua
própria existência é inútil para a economia do mundo, que permaneceria
imutável se o homem não existisse (11, 37). A convivência humana não
chega nunca a ser justa e duradoira; a história é um suceder de
violências e de crimes (11, 38) que se repetem eternamente da mesma
maneira (1, 5). Posto isto, parece a Arnóbio "um crime de impiedade
sacrílega" admitir que haja sido criada por Deus, autor da ordem e da
perfeição do mundo, "esta coisa infeliz e mísera, que se dói de ser, que
detesta e chora a sua condição e não entende ter sido criada por outrem
senão para difundir o mal e perpetuar a sua miséria" (11, 46). Portanto,
o homem deve -ter sido criado por uma divindade inferior em dignidade e
potência, e em muitos graus, ao sumo Deus, ainda que pertencente à sua
família (11, 36). Arnóbio admite assim divindades inferiores,
subordinadas ao Deus supremo. Nem sequer exclui a existência das
divindades pagãs: se existem, serão também divindades de ordem inferior
subordinadas ao Deus dos cristãos (1, 28; 111, 2-3; VII, 35).

A alma humana não tem, pois, o carácter divino que os Platónicos lhe
tinham atribuído. Arnóbio combate expressamente a doutrina platónica da

148
reminiscência. Um homem que tivesse estado desde o seu nascimento em
completa solidão teria o espírito vazio e não chegaria de modo algum a
ter conhecimento das coisas ultraterrenas. A sensação é a origem única
de todo o conhecimento humano (11, 20). Uma só ideia é inata no homem, a
ideia de Deus, o único criador e senhor de tudo (1, 33); com ela se
revela também a certeza da existência de Deus, da sua bondade e da sua
perfeição. Ainda devido à sua natureza inferior, a alma não é
naturalmente imortal. Ela não é puro espírito nem puro corpo, mas de uma
qualidade intermédia e de natureza incerta e ambígua (11, 14). Só Deus
pode subtraí-Ia à morte e conferir-lhe a imortalidade; ele confere a
imortalidade àqueles homens que o reconhecem e servem, enquanto os
demais serão por ele condenados à verdadeira morte e consumidos até ao
aniquilamento pelo fogo do inferno (11, 14). Erram pois os Epicuristas
ao afirmar incondicionalmente a morte da alma (11, 30) e também Platão
ao afirmar a sua imortalidade incondicionada (11, 4)0. O destino da alma
é um resultado da sua conduta.

Discípulo de Arnóbio, segundo parece, foi Lúcio Célio - Firmiano


Lactâncio que também havia ensinado retórica em África e desenvolvera já
uma certa actividade literária quando se converteu ao cristianismo.
Chamado por Diocleciano para ensinar retórica latina em Nicomédia, a
nova capital do Império, conheceu a vida errante e pobre quando, no ano
de 305, foi obrigado pela perseguição a deixar o seu ofício. Mas alguns
anos depois assistia à mudança radical da política do Império,
relativamente ao cristianismo, por obra de Constantino e compunha o De
mortibus persecutorum, no qual, com amargo espírito de vingança, se
compraz com a ruína em que caíram os perseguidores dos cristãos. Na sua
velhice foi, na Galiá, perceptor de Crispo, filho de Constantino. A sua
obra mais importante, os 7 livros

149

das Divinae institutiones são, ao mesmo tempo, a apologia do


cristianismo contra os seus inimigos e um manual de toda a doutrina
cristã. Um compêndio desta obra é o Epitome divinarum institutionum.
O tratado De opificio Dei tem como fim demonstrar contra os Epicuristas
que o organismo humano é uma criação de Deus; e o tratado De ira Dei,
contra a indiferença atribuída pelos Epicuristas à divindade, pretende
demonstrar a necessidade da ira divina. A obra principal de Lactâncio é
a primeira tentativa, realizada no ocidente, para reduzir a sistema a
doutrina cristã expondo-a de modo orgânico e completo. Pela forma
literariamente apreciável desta exposição, Lactâncio foi chamado pelos
humanistas o Cicero cristão; mas a sua obra apresenta escassa
originalidade de pensamento. Que existe uma providência que rege o mundo
é evidente, segundo Lactâncio, a quem quer que erga os olhos ao céu. Só
pode haver dúvidas sobre a quem pertence tal providência, se a um único
Deus ou a várias divindades; a alternativa é, pois, entre monoteísmo e
politeísmo. Mas admitir mais divindades significa aceitar que Deus não
tinha poder suficiente para reger por si só o mundo, com o que se nega a
Deus uma potência infinita e se elimina o próprio conceito de Deus.
Divindades diversas poderiam estabelecer no mundo leis antagónicas que
lutassem entre si, o que está excluído pela unidade e a ordem do mundo.
Além disso, como no corpo humano os diferentes membros e os diversos
aspectos da vida espiritual são dirigidos por uma única alma, assim o
mundo deve ser regido por uma única mente divina (Instit. div., 1, 2).
A doutrina cristã do Logos não divide nem multiplica o único Deus. O Pai
e o Filho não estão separados um do outro, pois nem o Pai pode ser dito
tal sem o Filho, nem o Filho pode ser gerado sem o Pai. Constituem entre
ambos uma única razão, um único espírito, uma única substância. Mas o
Pai é como a fonte

150

transbordante, o Filho é a torrente que emana da fonte; o Pai é como o


sol, o Filho é o raio irradiado pelo sol; como a torrente não pode
separar-se da fonte e o raio não pode separar-se do sol, também o Filho
não pode separar-se- do Pai. Como uma casa que pertença a um dono que
ame o seu único filho

e o reconheça igual a si, não cessa com isto de ser juridicamente uma só
casa com um só dono, assim o mundo é a casa de Deus e o Pai e o Filho
que a habitam são um único Deus (1b., IV, 29). O Filho foi gerado antes
da criação do mundo para ser o conselheiro de Deus na concepção e na
realização do plano da criação (Ibid., 11, 10). E o mundo não foi criado
por Deus para si próprio, pois não tem necessidade dele, mas para o
homem; Deus criou, em contrapartida, o homem para si, para que o
reconhecesse e lhe prestasse o devido culto, compreendendo e medindo a
perfeição da obra que tem diante de si (Ib., VII, 5). Deus também não
teve necessidade, na criação, de uma matéria pré-existente: o homem tem
necessidade da matéria para todas as suas obras, mas Deus cria a
própria matéria (1b., 11, 9). O homen-i é composto de alma e corpo. A
alma não tem nenhum peso terreno: é tão ténue e subtil que escapa até
aos olhos da mente (1b., VII,
12-13). Alma e mente não são idênticos; a alma é o princípio da vida e
não entorpece no sonho nem se extingue na loucura; a mente é o princípio
do pensamento, aumenta ou diminui com a idade, perde-se no sonho e na
loucura (1b., VII, 12). A alma e o corpo estão ligados entre si e
contudo são opostos: aquilo que é bem para a alma como a renúncia à
riqueza, aos prazeres, o desprezo pela dor e pela morte é um mal para o
corpo; aquilo que é um bem para o corpo é um mal para a alma que se
relaxa e extingue com os prazeres e com o desejo da riqueza (1b., VII,
15). O homem é formado por princípios diferentes e contrários, como o
mundo é formado

151

por luz e trevas, vida e morte. Estes princípios combatem dentro dele e
se nesta luta a alma vence será imortal e admitida à luz eterna; se
vence o corpo, a alma estará sujeita às trevas e à morte (1b., 11, 13).
Mas a imortalidade não é só o termo e o prémio da virtude: é condição da
própria virtude. Seria estulto renunciar àqueles prazeres aos quais o
homem é naturalmente inclinado e entrar num caminho que é hostil e
mortificante para a natureza humana, se a imortalidade não existisse
para dar um sentido à obra contra a natureza da virtude (lb., VII, 9).

Reaparece aqui como pressuposto da vida moral o pessimismo de Amóbio


sobre a condição do homem. A natureza humana é radical e totalmente
contrária à vida moral e religiosa. Nada existe nela que a resgate e a
atraia para o espírito; pelo contrário, o espírito a dana, pois o seu
único bem é o prazer, o único mal a dor. Mas este pessimismo é usado por
Lactâncio como fundamento da vida moral e religiosa. Se a natureza
humana não fosse fundamentalmente perversa, a própria virtude seria
impossível. Os Estoicos que negam o vício no homem retiram do mesmo modo
a própria virtude, pois que coisa seria a mansidão se não existisse a
ira, e a continência se não existisse desejo sexual? A virtude, com
termo médio, supõe os extremos viciosos (lb., VI, 15). Pela virtude, a
alma, desligando-se da sua natureza e da sua ligação corpórea, tende
para aquela imortalidade que lhe será dada como prémio, Mas isto
significa que o sumo bem do homem só e alcançável na religião (1b., 111,
10), não em toda a religião mas só naquela com a qual está
essencialmente ligada a esperança na imortalidade: a cristã (lb., 111
12). Tudo está para o homem no reconhecimento e no culto de Deus: esta é
a sua esperança e

a sua salvação, este é também o sumo grau da sabedoria (Ib., VI, 9). Mas
este grau mais alto da sabedoria não é a filosofia. A filosofia procura
a

152

sabedoria, mas não é a própria sabedoria (1b., 111, 2). Ela não atinge o
conhecimento das causas, como ensinam com razão Sócrates e os
Académicos. A disparidade das escolas filosóficas torna impossível
orientar-se alguém nas suas opiniões se se não possui antecipadamente a
verdade. Só a revelação pode, pois, dar a verdade. E a dialéctica é
inútil (1b., 111, 13).

NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 133. São fundamentais para o estudo da Patristica as seguintes obras:


MIGNE, Patrologiae cursus completus, série L, "Ecelesia graeea>, 162
volumes (com tradução latina) que chega até ao século xv, Paris, 1857-
66; série 2.1 "Eeclesia latina", 221 vols. até ao princípio do século
MU, Paris, 1844-64. Corpus scriptorum ecelesiasticorum latinorum, a
cargo da Academia de Viena, Viena, 1866, ss.; Monumenta Germaniae
historica. Auctores antiquissimi, 13 vols. Berlim, 1877-98; Escritores
gregos cristãos dos priineiros trêo sécu7,os, Academia de Berlim, 31
vols. a partir de 1897; S.S. Patruum opuscula selecta, editados por
HuRTER, 43 vols. 1868-85; outra série: 6 vo,18-,
1884-92. Sobre a Patrística em geral: STÜCKL, GCSchichte der christliche
Philosophie zur Zeit der Kirchen-Vãter, Mogúncia, 1891. Bibliografia in
UEBERWEGGEYER, Die Patristiche und scholastische philosophie, Berlim,
1928, p. 640 e ss.

§ 134. Sobre os apologistas em geraJ: HARNACK, Der Vorwurf des Atheismus


in den ersten drei Jahrunderten, 1905; ZÜCKLER, Geschichte der Apologie
des Christentums, 1907; CORBIÈRE, Le christianisme et Ia fin de Ia
philosophie antique, Paris, 1921; CARRINGSTON, Christian Apologetes of
the 2nd Century in their Relation to Modern Thought, Londres, 1921*, M.
PELLEGRINO, Gli Apologeti greci del II secolo, Roma, 1947.

§ 135. As obras de Justino em Patr. Graec., vol. 6.1; Apologia, edição


Pautigny, Paris, 1904; edição Rauschen, Bonn, 1911; edição Pfattisch,
Münster,
1912. Sobre Justino: LAGRANCE, Saint Justin, Paris
1914; MARTINDALE, St. Justin, Londres, 1921; RIVIÈRE, st. Justin et les
apologistes du Ile. siècle, Paris, 1907;

153

GOODENOUGH, The Theology of Justin Martyr, Iena,


1923.

§ 136. As obras dos padres apologetas estão impressas no Corpus


apologetarum christianorum saeculi II, edição d3 OTTO, 9 vols., Iena,
1847-72; nova edição dos primeiros 5 vols., 1876-81.

O escrito de Hermias, Jn DIELs, Doxographi.graeci, Berlim, 1879, pp.


649-656.

§ 137. Os fragmentos dos gnósticos estão recolhidos (de mo-do


incompleto) na colectânea de W. VOLKER, Quellen zur Geschichte der
christlischen Gnosis (SammIung ausgewãhlter kirchen-und dogmengesch.
Quellenschriften) hrgg. v. g. G. KRUGER NF 5), Tübingen, 1932; uma
selecção de textos traduzidos em italiano é a de E. BUONAIUTI, Frammenti
gnostici, Roma, 1923. Tratados gnõsticos conservados em língua copta
publicados (em tradução alemã) por C. SCHMIDT, Koptisch-gnostiche
Schriften, Berlim,
1905 (com actualização de W. TILL), 1954; W. TILL, Die gnostische
Schriften des koptischen Papyrus Berolinensis 8502 ("Texte und
Untersuchungen", LX), Berlim, 1955. Em 1946 foram descobertos no Alto
Egipto 11 vols. contendo 48 escritos de inspiração gnóstica. Sobre eles:
11. CH. PuECH, Les nouveaux écrits gnostiques découverts en Ilaute-
Egypte, in "Coptie Studies in Honour of Walter Ewing Crum", (Mass.),
1950, p. 91-154. Desta bibliografia gnóstica foram publicados até agora:
o valentiniano Evangelium veritatis, edição de M. MALILINE-H. Cil.
PUECII-G. QUISPEL, Zürich, 1956; O Evangelho segundo Tomás, trad.
francesa, Paris, 1959; trad. alemã e Inglesa, Leide, 1959.

Sobre a gnose: W. BOUSSET, Hauptprobleme der Gnosis, Gottingen, 1907; A.


V. HARNACK, Marcion. Das Evangelium vom fremden Gott, Leipzig, 1924; E.
DE FAYE, Gnostiques et gnosticisme, Paris, 1925; F. C. BURKITT, Church
and Gnosis, Cambridge, 1932. S. PÉTREMENT, Essai sur le dualisme chez
Platon, les gnostiques et les manichéens, Paris, 1947; G.
QUISPEL, Gnosis aIs Weltreligion, Zurich, 1951; H. JONAS, Gnosis und
spãtantiker Geist, Gottingen,
1954; H. CH. PUECII, Gnostische Evangelien und verwandte Dokumente, in
E. H.ENNECKE~W. SCHNEEMÉLCHER, NeutestamentUsche Apokryphen, I,
Tubingen,
1959 (fundamental). Sobre o maniqueísmo: H. CH.

154

PUEcH, Le manichéisme. Son fondateur, sa doetrine, Paris, s. d. (ma-9


1949).

§ 138. As obras de IRINEU, in Patr. Graec., vol. 7.o; Adversus haereses,


edição Harvey, Cambridge, 1857; edição Stieren, Londres, 1848-53. Sobre
Irineu: HITCHCOCK, Irenaeus of Lugdunum, Cambridge, 1914; BON=SCH, Die
Theologie des Irenaeus, Güterslok, 1925.

As obras de Hipólito, in Patr. Graec., vol., 10.1. Há também edição


berlinense em 3 vols., 1897-1916. Sobre Hipólito: A. DIALÉs, La
théologie de St. Hyppolite, Paris, 1906.

§ 139. As obras de TERTULIANO, em P. L.@ 1.---2.o e no Corpus de Viena@


20.o 47.o; edição de OEHLER@
3 voIs. Leipzig, 1851-54; edição menor, Leipzig, 1854. Sobre Tertuliano:
MONCEAUX, Hist. litt. de l'Afrique chrétienne, vol. 1, Paris, 1901;
BUONAIUTI, 11 cristianesimo' nell'Africa romana, Bari, 1928, p. 37-208;
LORTZ, Tertullian aIs apologets, 2 vols., Münster,
1927-28.

§ 141. A obra de MINucio FÉLIX, in P. L.,


3.1 edição, Teubner, Leipzig, 1912. Sobre W11núcio. BARDENHEwER, Gesch.
der altkirch. Litter., 1, Friburgo, 1913, p. 337 ss; BU0NAlUTI, ob.
cit., p. 217 ss.

A obra de ARNõBIO, in P. L., 3.1 e no Corpus de Viena, 4.1. Sobre


Arnóbio: MONcEAux, Hist. Litt. de PAfrique chrétienne, võl. III, p. 275
ss; BUONAIUTI, ob. cit., p. 278 ss.

As obras de LACTÂNCIO, in P. L., 6.---7.g e no Corpus de Viena, 19.o,


27.o. Sobre Lactâncio: PICHON, Lactance, Paris, 1901; BU0NAlUTI, ob.
cit., pp. 285 ss.

155

HI

A FILOSOFIA PATRISTICA NOS SÉCULOS III E IV

§ 142. CARACTERISTICAS DO PERIODO


´
A elaboração doutrinal do cristianismo, iniciada pelos apologetas para
defender a comunidade eclesiástica contra os perseguidores e heréticos,
foi continuada e aprofundada nos séculos seguintes por uma necessidade
interna, que se afirma cada vez mais dominante no próprio campo da
Igreja. Nesta elaboração seguinte dominam menos os motivos polémicos e
mais a exigência de constituir a doutrina eclesiástica num organismo
único e coerente, fundado numa sólida base lógica. A parte da filosofia
torna-se, por isso, cada vez maior. A continuidade que os apologetas
orientais, a começar em Justino, tinham estabelecido entre o
cristianismo e a filosofia pagã consolida-se e aprofunda-se. O
cristianismo apresenta-se como a autêntica filosofia que absorve e leva
à verdade o saber antigo, do qual pode e deve @servir-se para trazer
elementos e motivos para a sua própria justificação. As doutrinas

157

fundamentais do cristianismo encontram, mediante este trabalho, a sua


sistematização definitiva. O período que vai de 200 a cerca de 450 é
decisivo para a construção de todo o edifício doutrinal do cristianismo.
As esperanças escatológicas das numerosas seitas cristãs, que tinham
dominado no período precedente, vingam menos. Se, frente ao iminente
regresso de Cristo, o trabalho longo e paciente da investigação
doutrinal parecia quase inútil e os ritos preparatórios e propiciatórios
ocupavam o primeiro lugar, uma vez esmorecida a esperança deste retorno,
a investigação doutrinal torna-se a primeira e fundamental exigência da
Igreja, que é a que deve garantir a sua unidade o a sua solidez na
história.

O primeiro impulso para tal investigação foi dado pela escola


catequística de Alexandria, que existia já há muito tempo quando, em
180, se tornou seu chefe Panteno, que lhe deu as características de uma
academia cristã , na qual toda a sabedoria grega era utilizada para os
fins apologéticos do cristianismo. A escola alcançou o seu máximo
esplendor com Clemente e Orígenes; mas quando, em 233, Orígenes procurou
na Palestina uma nova pátria e abriu em Cesareia a sua escola, esta
suplantou a outra e tornou-se a sede de uma grande biblioteca que foi a
mais rica de toda a antiguidade cristã.

§ 143. CLEMENTE DE ALEXANDRIA

Tito Flávio Clemente nasceu cerca de 150, provavelmente em Atenas.


Convertido ao cristianismo viajou pela Itália, a Síria, a Palestina e,
finalmente, o Egipto. Em Alexandria, pouco antes de 180, torna-se
discípulo de Panteno e, seguidamente, padre daquela Igreja. Cerca de 190
foi colaborador e

158

ajudante no ensino de Panteno e, depois da morte deste (cerca de 200),


tornou-se chefe da escola catequística. Em 202 ou 203, foi obrigado a
deixar Alexandria devido à perseguição de Sétimo Severo; cerca de 211
estava na Ásia Menor junto do seu discípulo Alexandre, que foi depois
bispo de Jerusalém. Numa carta de Alexandre a Orígenes, de
215 ou 216, fala-se de Clemente como de um padre já falecido (Eusébio,
Hist. ecc1., VII, 14, 8-9).

Os três escritos de Clemente que nos restam, Protréptico aos gregos,


Pedagogo e Stromata foram concebidos por ele como três partes de um
plano único, de uma progressiva introdução ao cristianismo. O
Protréptico, ou exortação aos gregos, aproxima-se muito, pelo conteúdo e
a forma, da literatura apologética do século H. O Pedagogo, em três
livros, procura educar na vida cristã o leitor que já se afastou do
paganismo. Os Stromata ou Tapetes, isto é, "tecidos de comentários
científicos sobre a filosofia" deviam ter como finalidade expor
cientificamente a verdade da revelação cristã. Perdeu-se a sua obra
intitulada Hipotiposis (esquemas ou esboços) e chegou até nós uma
liomilia com o título Qual o rico que se salvará?

O primeiro fim de Clemente é o de elaborar o próprio conceito de uma


gnose cr,,'stã. Não há dúvida de que o conhecimento é o limite mais alto
que o homem pode alcançar. Ele é a realização (teleiosis) do homem; é a
só lida e segura demonstração daquilo que foi aceite pela fé e, frente a

ele, a fé é apenas o conhecimento abreviado e sumário das verdades


indispensáveis (Stromata, VII,
10). Mas, por outro lado, a fé é condição do conhecimento. Entre a fé e
o conhecimento existe a

mesma relação que os Estoicos estabeleciam entre os prolepsi, isto é, o


conhecimento preliminar dos primeiros princípios, e a ciência; como a
ciência pressupõe a "prolepsi" assim a gnose pressupõe a

159

fé. A fé é tão necessária ao conhecimento como os quatro elementos são


necessários à vida do corpo (1b., 11, 6). Fé e conhecimento não podem
subsistir um sem o outro (1b., 11, 4). Mas para chegar da fé ao
conhecimento é necessária a filosofia. A filosofia teve para os gregos o
mesmo valor que a lei do Velho Testamento para os hebreus: conduziu-os a
Cristo. Clemente admite, corno Justino, que, em todos os homens, mas
especialmente naqueles que se dedicaram à especulação racional, está
presente um "eflúvio divino", uma "centelha do Logos divino" que lhes
faz descobrir uma parte da verdade, ainda que não os torne capazes de
alcançar toda a verdade que só é revelada por Cristo (Prop.,
6, 10; 7, 6). Por certo, os filósofos misturaram o verdadeiro e o falso;
trata-se agora de escolher entre as suas doutrinas aquilo que é
verdadeiro, abandonando o falso, e a fé fornece o critério desta escolha
(Stromata, 11, 4). A filosofia deve ser neste sentido a serva da fé como
Agar de Sara (1b.,
1. 5). Nesta subordinação da filosofia à fé reside o carácter da gnose
cristã. A gnose dos Gnósticos é a falsa gnose porque estabelece entre a
filosofia e a fé a relação inversa: se ao gnóstico fosse dado escolher
entre a gnose e a salvação eterna, ele escolheria a gnose porque a julga
superior a todas as coisas (1b., IV, 22).

Este conceito da gnose influi poderosamente sobre as doutrinas


teológicas de Clemente. O cristianismo é a educação progressiva do
género humano e Cristo é essencialmente o Mestre, o Pedagogo. Tal
interpretação torna-se predominante na Igreja à medida que diminuem as
esperanças no imediato regresso de Cristo e, portanto, na iminente
destruição e regeneração do mundo. Ao conceito de uma regeneração
instantânea substitui-se o da regeneração gradual que deve verificar-se
através da história com a assimilação e a compreensão pro-

160

gressiva dos ensinamentos de Cristo. Esta interpretação, já clara em


Clemente, dominará toda a obra de Orígenes.

Frente a Deus, que é inatingível porque supera toda a palavra e todo o


pensamento e de quem podemos saber aquilo que não é mais do que aquilo
que é, o Logos é a sabedoria, a ciência, a verdade, e, como tal, o guia
de toda a humanidade (Ped., 1, 7). O Logos é o alfa e o omega porque
tudo se move por ele e tudo regressa a ele (Strom., IV, 25). A própria
acção do Espírito Santo está subordinada ao Logos porque o Espírito é a
luz da verdade, luz da qual participam, sem multiplicá-la, todos aqueles
que têm fé (1b., IV, 16). Como supremo mestre, o Logos é também o guia e
a norma da conduta humana. A máxima estoica de viver segundo a razão
assume em Clemente o significado de viver segundo o ensinamento do Filho
de Deus (lb., VII, 16). Mas obedecer ao Logos significa amá-lo; a
obediência e o amor estão condicionados pelo conhecimento. À fé é dado o

conhecimento, ao conhecimento o amor, ao amor o prémio celeste (1b.,


VII, ]0).

§ 144. ORÍGENES: VIDA E ESCRITOS

Orígenes nasceu de pais cristãos em 185 ou 186, provavelmente em


Alexandria. O pai, Leónidas, morreu mártir na perseguição de Sétimo
Severo, em 202 ou 203, e o filho, que queria partilhar a sorte do pai,
foi salvo pela mãe (Eusébio, Hist. ecc1., VI, 2-5). Com 18 anos, em 203,
foi colocado por Demétrio, bispo de Alexandria, à frente da escola
catequística como sucessor de Clemente que se tinha afastado. Desta data
até 215 ou 216 desenvolveu uma actividade ininterrupta; e, através do
estudo dos filósofos gregos e dos textos sagra-
161

dos, conseguiu formular as bases do seu sistema. Neste período, o seu


zelo religioso levou-o a castrar-se. Tomara por certo à letra a palavra
evangélica (Mateus, 19, 12) que louva aqueles que se fazem eunucos por
amor do reino dos céus. Mas, provavelmente, como observa ainda Eusébio
(IV,
23, 1), queria tirar todo o pretexto à malignidade pública, dado que a
sua escola era também frequentada por mulheres. Em 215 ou 216 os
massacres praticados por Caracala em Alexandria obrigaram Orígenes a
fugir para a Palestina onde os bispos Alexandre de Jerusalém e Teoctisto
de Cesareia o acolheram com honra e o fizeram pregar nas suas i,-rejas.
Demétrio não aprovou esta pregação de um laico e impôs a Orígenes o
regresso a Alexandria. Aqui retomou a sua actividade de mestre e de
escritor que era intensíssima: um discípulo, Ambrósio, pusera à sua
disposição sete estenógrafos e vários copistas (Eus., IV, 23, 2).
Ordenado padre durante uma viagem, caiu em desgraça do bispo Demétrio e
foi expulso de Alexandria. Demorou-se então em Cesareia onde fundou
uma escola teológica que, em breve, se tornou florescentíssima e onde
permaneceu até à morte. Morreu mártir durante a perseguição de Décio.
Orígenes suportou a tortura na prisão e pouco depois morreu em Tiro, com
69 anos, e portanto em 254 ou 255. Um seu discípulo, Gregório o
Taumaturgo, fornece interessantes pormenores acerca do seu ensino em
Cesareia (Panegiricum in Orig.,
7-15). O princípio e base do ensino de Orígenes era o estudo da
dialéctica. Seguia-se o estudo das ciências naturais, das matemáticas,
da geometria, da astronomia; a geometria era considerada como o modelo
de todas as outras ciências. Seguidamente, estudava-se a ética que tinha
por objecto as quatro virtudes cardiais de Platão e a Caridade cristã. A
filosofia grega tinha um posto eminente neste

162

curso de estudos e o seu ponto culminante era representado pela


teologia.

A produção literária de Orígenes foi vastíssima: atribui-se-lhe um


número de obras que vai de
6000 (segundo Epifânio, Haer., 64, 63) a 800 (segundo S. Jerónimo,
Epist., 33). Mas o édito de Justiniano contra Orígenes (543) e a
sentença do V Concílio Ecuménico (553) que o incluía entre os heréticos
provocaram a perda de boa parte da produção de Orígenes. Chegaram-nos:
uma obra apologética em oito livros Contra CeIsum, dirigida contra o
neoplatónico> Celso que, em 178, escrevera um Discurso verdadeiro de
refutação do cristianismo; um tratado dogmático De principiis que nos
chegou apenas numa tradução latina refundida por Rufino, o qual se
preocupou em atenuar ou eliminar as afirmações que contrastavam com as
decisões do Concílio de Niceia; partes ou fragmentos dos seus
vastíssimos comentários bíblicos; dois escritos Sobre a oração e
Exortação ao martírio,- duas cartas e fragmentos de outras obras. As
obras exegéticas que, indubitavelmente, constituíam a sua mais vasta
produção, eram de três espécies: scolli, isto é, notas sobre passos
difíceis da Bíblia; homilias, isto é, discursos sagrados sobre
capítulos da Bíblia; comentários ou tomos que eram análises minuciosas
de livros inteiros da Bíblia. De todos estes escrites, as partes mais
notáveis que nos restam sã o o Comentário ao Evangelho de S. Mateus, do
qual ternos os livros X-XVII, o Comentário ao Evangelho de S. João, do
qual temos 9 livros não consecutivos, e o da Epístola aos romanos, de
que temos um arranjo de Rufino em 10 livros.

§ 145. ORIGENES: FÉ E GNOSE

A doutrina de Orígenes, é o primeiro grande sistema de filosofia cristã.


No prólogo de De piin-

163

cipiis, ele próprio traça a finalidade que se propôs. "Os apóstolos,


diz, transmitiram-nos com a maior claridade tudo aquilo que julgaram
necessário a todos os fiéis, mesmo aos ma-is lentos no cultivo da
ciência divina. Mas deixaram àqueles que são dotados dos dons superiores
do espírito e especialmente da palavra, da sabedoria e da ciência o
cuidado de procurar as razões das suas afirmações. Sobre muitos outros
pontos, limitaram-se à afirmação e não deram nenhuma explicação, para
que aqueles seus sucessores que têm a paixão da sabedoria possam
exercitar o seu génio" (De prine. pref. 3). Orígenes distingue aqui as
doutrinas essenciais e as doutrinas acessórias do cristianismo. O
cristão que recebeu a graça da palavra e da ciência tem a obrigação de
interpretar a primeira e de explicar a segunda. A primeira função é
indispensável a todos; a segunda é uma investigação supletória, movida
por um amor particular da sabedoria e que consiste no simples exercício
da razão. Orígenes empreendeu uma e outra investigação. O seu trabalho
exegético dos textos bíblicos tende a fazer luz sobre o significado
oculto e, portanto, procura a justificação profunda das verdades
reveladas. Ele distingue um tríplice significado das Escrituras o
somático, o psíquico e o espiritual, que estão entre si como as três
partes da alma: o corpo, a alma e o espírito (De princi., IV, 11). Mas,
na prática, contrapõe ao significado corpóreo ou literal o significado
espiritual ou alegórico e sacrifica resolutamente o primeiro ao segundo
sempre que o considera necessário (1b., IV, 12).

A passagem do significado literal ao significado alegórico das Sagradas


Escrituras é a passagem da fé ao conhecimento. Orígenes acentua a
diferença entre uma e outra e afirma a superioridade do conhecimento que
compreende em si a fé (In Joan., XIX, 3). Aprofundando-se em si própria,
a fé

164

torna-se conhecimento: este processo verificou-se nos próprios Apóstolos


que, primeiramente, atingiram pela fé os elementos do conhecimento,
depois progrediram no conhecimento e tornaram-se capazes de conhecer o
Pai (In Mat., XII, 18). A própria fé, por uma exigência intrínseca,
procura, pois, as suas razões e torna-se conhecimento. Veremos de
seguida que a redenção do homem, o seu ,retorno gradual à vida
espiritual, de que gozava no mundo inteligível no acto de criação, é
entendido por Orígenes como a sua educação para o conhecimento. Ora
frente ao mais alto grau do conhecimento, o ensinamento das Escrituras é
insuficiente. As Escrituras são apenas elementos mífflmos do
conhecimento completo e constituem a sua introdução (In Joan., XIII, 5-
6). Acima do Evangelho histórico e como complemento das verdades nele
reveladas, existe um evangelho eterno que vale em todas as épocas do
mundo e só a poucos é dado conhecer (De princ., IV, 1 ss; In Joan., 1,
7).

§ 146. ORIGENES: DEUS E O MUNDO

A primeira preocupação de Orígenes é a de afirmar contra os heréticos a


espiritualidade de Deus. Deus não é um corpo e não existe num corpo: a
sua natureza é espiritual e simplicíssima. O seu ser homogéneo,
indivisível e absoluto não pode ser considerado nem como o todo nem como
uma parte do todo, porque o todo é feito de partes (Contra Cels., 1,
23). Para indicar a unidade de Deus, Orígenes serve-se do termo
pitagórico mónada, ao lado do qual emprega o termo neoplatónico de
énada, que expressa ainda mais nitidamente a singularidade absoluta de
Deus (De princ., 1, 1, 6).

Deus é superior à própria substância, pois que não participa dela: a


substância participa de Deus,

165

mas Deus não participa de nada. Do Logos pode dizer-se que é o ser dos
seres, a substância das substâncias, a ideia das ideias; Deus está para
lá de todas estas coisas (1b., VI, 64). Orígenes rejeita decididamente
os antropomorfismos do Velho Testamento, interpretando-os
alegóricamente. Dizer que Deus tem forma humana e é agitado por paixões
como as nossas é a maior das impiedades (1b., IV,
71). A omnipotência de Deus encontra um limite na sua perfeição. Deus
pode fazer tudo aquilo que não é contrário à sua natureza, mas não pode
cometer a injustiça, porque o poder ser injusto é contrário à sua
divindade e à sua potência divina (1b., 111, 70). Deus é vida, mas num
significado diferente da vida no nosso mundo, ele é a vida absoluta,
isto é, na sua absoluta imutabilidade (In Joha., 1, 31). Deus é o bem no
sentido platónico já que só a ele pertence a bondade absoluta: o Logos é
a imagem da bondade de Deus, mas não o bem em si (In Math., XV, 10). A
providência divina dirige-se, em primeiro lugar, à educação dos homens.
Retomando e ampliando o conceito de Clemente, Orígenes compara a acção
de Deus à de um pedagogo ou de um médico que pune ou inflige males e
dores para corrigir ou para curar (Contra Cels., VI, 56). Assim se
explica a própria severidade divina, da qual os livros do Velho
Testamento dão tantos exemplos. "Se Deus fosse apenas bom e não fosse
severo, desprezaríamos a sua bondade; se fosse apenas severo sem ser
bom, os nossos pecados conduzir-nos-iam ao desespero" (In Jerem., IV,
4).

Frente à transcendência divina, afirmada em termos tão rigorosos, o


Logos encontra-se numa posição subordinada. Ele é certamente coeterno
com o Pai, o qual não seria tal se não gerasse o Filho, mas não é eterno
no mesmo sentido. A eternidade do Filho depende da vontade do Pai: Deus
é a vida e o Filho recebe a vida do Pai. O Pai

166

é o Deus, o Filho é Deus (In Joan., 11, 1, 2).


O Espírito Santo é criado não directamente por Deus, mas através do
Logos (lb., 11, 10). Aquele é compreendido por Orígenes como uma força
puramente religiosa que não tem no mundo nenhuma tarefa própria.

Retomando a doutrina platónica do Fedro, não sem sofrer a influência dos


gnósticos e especialmente de Valentino, Orígenes explica a formação do
mundo sensível com a queda das substâncias intelectuais que habitavam o
mundo inteligível. As inteligências incorpóreas que constituem o mundo
inteligível são criadas e como tal sujeitas a mudança; são, além disso,
providas de livre arbítrio. A sua queda explica-se pela preguiça e
repugnância para e esforço que a prática do bem exige. Deus estabelecera
que o bem dependesse exclusivamente da sua vontade e tinha-o por isso
criado livre. Descuidando e opondo-se ao bem, elas provocaram a sua

queda dado que a ausência do bem é o mal o na medida em que alguém se


afasta do bem cai no mal. Assim as inteligências foram conduzidas ao
mal, segundo descuraram mais ou menos o bem, conformemente ao movimento
secreto de cada uma delas (De princ., 11, 9, 2; fr. 23 a). Orígenes
insiste na liberdade do acto que provocou a sua queda. A doutrina
gnóstica negara essa liberdade: Orígenes combate vivamente o gnosticismo
(1b., 1, 8, 2-3). o próprio demónio, - diz ele - não é mau por natureza,
mas tornou-se pela sua vontade (In Joan. XX, 28). A queda é devida a um
acto livre de webelião contra Deus, no qual participaram todos

os seres supra-sensíveis com excepção do Filho de Deus. A primeira


consequência da rebelião é que as inteligências se tornam almas,
destinadas a revestir-se de um corpo, mais ou menos luminoso ou mais ou
menos tenebroso, segundo a gravidade da culpa originária, o segundo grau
da queda é

167

precisamente o revestimento do corpo. Surge então o mundo visível na


variedade e na multiplicidade dos seres que o constituem. E assim
algumas inteligências tornam-se as almas dos corpos celestes etéreos,
luminosos e subtis. Outras tornam-se anjos, aos quais Orígenes dá os
nomes bíblicos de tronos, potestades, dominações etc., destinados a ser
os ministros de Deus junto dos homens. Outros ainda "descem até à carne
e ao sangue" e tornam-se homens. Finalmente os últimos tomam-se diabos.

O mundo visível não é mais, portanto, do que a queda e a degeneração do


mundo inteligível e das puras essências racionais que o habitam.
Orígenes admite uma pluralidade sucessiva de mundos; mas, corrigindo o
Estoicismo, nega que estes mundos sejam a repetição um do outro. A
liberdade de que os homens estão dotados impede tal repetição (Contra
Cels., IV, 67-68). Todavia, depois de se sucederem um número
indeterminado de mundos, chega ao fim. O mundo visível voltará ao mundo
invisível. Os seres racionais terão expiado através da série das vidas
sucessivas nos vários mundos o seu pecado inicial e alcançarão a
perfeição e a salvação finais. Poderão então ser restituídos à sua
condição primitiva e conhecer Deus (In Joan., 1,
16, 20).

Neste processo de queda do mundo inteligível no mundo sensível e de


retorno do mundo sensível ao mundo inteligível, o Logos tem uma parte
essencial. Em primeiro lugar, Orígenes atribui ao Logos a mesma função
que lhe atribuíam os Estoicos: o Logos é a ordem racional do mundo, a
força que determina a sua unidade e o dirige. Precisamente como tal, ele
é distinto de Deus. Apenas o Pai é Deus em si (Autothéos); o Logos é a
imagem e o reflexo de Deus. Ele é diferente do Pai "pela essência e pelo
substracto" e deixaria de ser Deus se não contemplasse continuamente o
Pai Ub., 1,
168

11, 2). Por esta sua natureza subordinada, o Logos recebeu do Pai a
tarefa de penetrar a obra da criação e de infundir-lhe ordem e beleza
(Ib., VI, 38,
39). Mas, em segundo lugar, o Logos vive nos homens e todos participam
dele (1b., 1, 3): ainda que permanecendo idêntico a si mesmo, o Logos
adapta-se aos homens e à sua capacidade de atingi-lo (Co.,dra Cels., IV,
15); e reveste formas diversas, segundo aqueles que conseguem conhecê-
lo, isto é, segundo a sua disposição e a sua capacidade de progresso
Ub., IV, 16). O Logos é, portanto, a força imanente que diviniza o mundo
e o homem. Na mesma medida em que se aproxima do mundo e do homem para
penetrá-los e reconduzi-los à perfeição originária, assim se afasta do
Pai.

Precisamente a função do Logos no homem exige e justifica a encarnação.


Por ela o Logos apropria-se de um corpo mortal e de uma alma humana. Nem
uma nem a outra são algo divino: divino é somente o Logos que permanece
imutável na sua essência e não sofre nada do que acontece no corpo e na
alma de Cristo (Contra Cels., IV, 15). O elemento divino e o elemento
humano não permanecem, contudo, justapostos em Cristo depois da
encarnação (a que Orígenes chama economia para indicar o seu carácter
providencial); a alma e o corpo de Jesus constituem com o Logos uma
unidade absoluta (lb., 11, 9).

§ 147. ORíGENES: O DESTINO DO HOMEM

O destino do homem faz parte integrante do movimento conjunto do mundo a


que o homem pertence. O homem era primeiramente uma substância racional,
uma inteligência; com a queda tornou-se uma alma. A alma é algo de
intermédio entre a inteligência e os corpos: a inteligência, corno

169

pura vida espiritual, é refractária ao mal; a alma, pelo contrário, é


susceptível do bem e do mal (Itz Joan., XXX11, 18). Como a queda do
homem foi um acto de liberdade, assim será um acto de liberdade a
redenção e o retorno a Deus. Com efeito, a liberdade é o dote
fundamental da natureza humana que é capaz de agir em virtude de razão,
portanto de escolher. Como Clemente, Orígenes interpreta a acção da
mensagem cristã como uma acção educadora que conduz gradualmente o homem
à vida espiritual. Esta é a função do Logos encarnando-se em Cristo.
"Jesus afasta a nossa inteligência de tudo aquilo que é sensível e leva-
a ao culto de Deus que reina sobre todas as coisas" (Contra Cels., 111,
34). Nisto consiste a obra da redenção. Comentando o prólogo do IV
Evangelho, Orígenes interpreta a acção iluminadora do Logos, não como
uma revelação súbita, mas como a penetração progressiva da luz nos
homens, como a chamada incessante do homem para que queira livremente
voltar a Deus (In Joan., 1, 25-26). O caminho para este retorno pode ser
longuíssimo. Se a existência num mundo não basta, o homem renascerá no
mundo seguinte e depois noutros ainda até que tenha expiado a sua culpa
e tenha retornado à perfeição primitiva. Precisamente a necessidade da
educação progressiva do homem justifica a pluralidade sucessiva dos
mundos que Orígenes tomou do Estoicismo. Os mundos são outras tantas
escolas nas quais se reeducam os seres que caíram (De princ., 111, 6,
3).
A educação do homem como retorno gradual à condição de substância
inteligente opera-se através de graus sucessivos de conhecimento. Do
mundo sensível o homem eleva-se à natureza inteligível que é a do Logos
e do Logos a Deus. O Logos é, com efeito, a sabedoria e a verdade e, só
através dele, se pode discernir o ser e para lá do ser o poder

170

e a natureza do Deus (In Jomi., VIII, 19). Mas quando for possível este
conhecimento directo de Deus, quando Deus não for visto já através do
Filho, na imagem de uma imagem, mas directamente corno o próprio Filho o
vê, o ciclo do retorno do mundo a Deus, da apocatastasi, estará completo
e Deus será tudo em todos (lb., XX, 7).

Tais são os traços fundamentais do sistema de Orígenes no qual pela


primeira vez o cristianismo encontrou uma formulação doutrinal orgânica
e completa. O Platonismo e o Estoicismo constituíram as duas raízes
fundamentais pelas quais se une à filosofia grega. Mas Orígenes adaptou
com grande equilíbrio, da mensagem cristã, a doutrina platónica da queda
e da redenção dos seres espirituais e a doutrina cosmológica dos
Estoicos. Por certo, alguns elementos que a consciência religiosa
contemporânea considerava essenciais nesta mensagem foram perdidos na
síntese de Orígenes. o conceito da criação é, no fundamental, estranho a
Orígenes para quem a criação das substâncias racionais é eterna. Na sua
natureza o Logos está subordinado a Deus Pai e o Espírito Santo ao
Logos, na sua natureza e na sua função. O sacrifício de Cristo não
encontra urna própria e verdadeira justificação e a ressurreição da
carne, sobre a qual tanto insistiram outros padres (por exemplo
Tertuliano) é explicitamente excluída (De princ., 11,
10, 3; Contra Cels., V, 18). Mas, em compensação, Orígenes elevou, pela
primeira vez. à clareza da reflexão filosófica o significado mais
profundo e universal do cristianismo. Foi o primeiro que viu no facto
histórico da redenção o destino da humanidade inteira que, decaída da
vida espiritual, deve retornar a ela. Foi o primeiro que reuniu numa
única visão de conjunto a sorte da humanidade e a sorte do mundo,
fazendo da antropologia cristã o elemento de uma concepção cosmológica.
Foi o pri-

171

meiro que afirmou a exigência de liberdade humana que se havia perdido


não só nas doutrinas duaUsticas dos gnósticos, mas também todas as
interpretações que faziam do homem o sujeito da obra redentora de
Cristo.

Finalmente temos de recordar que Orígenes foi o primeiro que exprimiu


claramente o princípio em que deviam inspirar-se as doutrinas políticas
do cristianismo nos séculos seguintes. Utilizando também aqui um
conceito estoico, afirma que "existem duas leis fundamentais, a natural,
cujo autor é Deus, e a escrita que é formulada nos diversos estados."
Nesta base, afirma a independência dos cristãos perante a lei civil:
"Quando a lei escrita não está em contradição com a de Deus convém que
os cidadãos a observem e a anteponham às leis estrangeiras; mas quando a
lei da natureza, isto é, a lei de Deus ordena coisas contrárias à lei
escrita, a razão aconselha-te a deixar de bom grado as leis escritas e a
vontade dos legisladores e a obedecer unicamente à lei de Deus, a
regular a tua vida segundo os seus ensinamentos mesmo se isto custa
fadiga, morte e desonra" (Contra Cels., V, 37).
O princípio estoico do direito natural era assim utilizado para defender
a liberdade dos cristãos frente à lei civil.

§ 148. SEQUAZES E ADVERSÁRIOS DE ORÍGENES

Discípulo de Orígenes foi Dionísio de Alexandria, ao qual Eusébio dá o


qualificativo de grande. A partir de 231-32 foi chefe da escola
catequética de Alexandria sucedendo a Heraclito; em 247-48 tornou-se
bispo da cidade e morreu em 264 ou
265. Os Discursos sobre a natureza, de que Eusébio nos conservou
fragmentos, eram dirigidos contra

172

o atomismo de Demócrito e dos Epicuristas. Entre as numerosas Cartas,


muitas das quais tratam de questões dogmáticas ou disciplinares, as
escritas contra o sabelianismo acentuavam a diferença entre o Logos e
Deus Pai, fazendo dele uma criação do Pai. Mas uma obra
seguinte, intitulada Refutação e defesa, abandonava a sua interpretação
e dava uma outra completamente ortodoxa.

Discípulo de Orígenes foi também Gregório o Taumaturgo, que nasceu por


volta do ano 213 em Neo-Cesareia, no Ponto, e que foi depois bispo da
sua cidade natal e morreu no tempo de Aureliano (270-275). Duas
biografias, uma de Gregório Niceno, outra siríaca, que é um arranjo da
primeira, narram uma série de histórias miraculosas que explicam o seu
cognome. Gregório é autor de um Discurso de acção de graças, no qual se
exalta a obra do mestre Orígenes, de um escrito "A Teopompo sobre a
capacidade e incapacidade de padecer em Deus", conservado em siríaco e
no qual se discute a questão de saber se a impassibilidade de Deus
implica a sua despreocupação pelos homens; e de outros escritos menores,
exegéticos e dogmáticos. Atribui-se-lhe também o breve tratado Sobre a
alma, a Taciano, que examina a natureza da alma, fora de qualquer prova
tomada das Escrituras.

Eusébio, bispo de Cesareia, nascido em 265, morto em 340 é conhecido


principalmente como historiador dos primeiros séculos da Igreja.
Discípulo de Pânfilo, do qual por reconhecimento assumiu o nome (Eusébio
de Pânfilo) e a quem acompanhou quando o mestre foi encerrado no
cárcere. Em conjunto, compuseram uma Apologia de Orígenes, em 5 livros,
dos quais resta apenas o primeiro num arranjo de Rufino. Eusébio é autor
de uma crónica que tem o título de Histórias Várias e de uma História
Eclesiástica que vai até 423 e constitui um riquíssimo arquivo de
factos, documentos

173

e estratos de obras de toda a espécie, da primeira época da Igreja.


Escreveu, além disso, um panegírico e um elogio do imperador
Constantino, do qual foi amigo entusiasta. As obras dogmáticas Contra
Marcelo e Sobre a Teologia Eclesiástica mostram uma acentuada tendência
para o arianismo de que defende a tese fundamental, a da não identidade
de natureza entre o Pai e o Logos. As obras apologéticas, Preparação
Evangélica, em 15 livros, e Demonstração Evangélica, em 20 livros (dos
quais só nos chegaram os primeiros 10) pretendem demonstrar a
,superioridade do cristianismo sobre o paganismo o o judaísmo. Um
estrato destas duas obras é o escrito Sobre a Te~da, em 5 livros, de que
existem fragmentos em grego e uma versão siríaca completa. Permanecem de
Eusébio outras obras apologéticas (Introdução Geral Elementar, Contra
Gerocles) e partes ou fragmentos da sua vasta obra exegética das
Sagradas Escrituras. O escrito filosoficamente mais significativo é a
Preparação Evangélica, na qual Eusébio, utilizando a rica biblioteca de
Cesareia, acumulou um vastíssimo material de estratos de escritos
gregos, que muitas vezes são preciosos também para nós, por se terem
perdido as obras de que foram tirados. Esta obra é dominada pela
convicção de que filosofia e revelação sã o idênticas e que no
cristianismo encontrou plena expressão a verdade que alvorecera já nos
filósofos gregos. É a mesma convicção que animara Justino, Clemente e
Orígenes e que dominará a obra de S. Agostinho. Aquela identidade parece
a Eusébio evidente sobretudo no que diz respeito ao platonismo. Platão é
por ele considerado como um profeta (XIII, 13) ou como um "Moisés
aticizante" (XI, 10). Platão e Moisés estão de acordo e têm as mesmas
ideias; Platão conheceu a trindade divina porque pôs, ao lado de Deus e
do Logos, a alma do mundo (XI,
16). Nas doutrinas éticas e pedagógicas, coincidem

174

Platão e Moisés, Platão e S. Paulo, e a própria república platónica


encontrou a sua realização na teocracia judaica (XIII, 12). Contudo,
Platão permanece amarrado ao politeísmo e admite o dualismo de Deus e da
matéria eterna, o que é inconciliável com o cristianismo; ele chegou,
pois, ao vestíbulo da verdade, não à própria verdade (XIII,
14). Esta é revelada pelo cristianismo porque ele é a verdadeira e
definitiva filosofia. No cristianismo, não só os homens são filósofos
mas também as mulheres, os ricos e os pobres, os escravos e os senhores
(1, 4). Que a filosofia grega tenha podido alcançar tantos elementos da
verdade cristã, explica-se com a sua derivação das fontes hebraicas (X,
1); ou talvez também porque Platão foi orientado para a verdade pela
própria natureza das coisas ou por Deus (XI, 8).

Adversário de Orígenes foi, em contrapartida, Metód@o, bispo de Filipo,


que morreu mártir por volta do ano 311. Contra Orígenes era dirigido o
seu escrito Sobre a@ Coisas Criadas de que nos restam fragmentos. É
depois autor de três diálogos ao modo de Platão: Banquete ou sobre a
Virgindade, Sobre o Livre Arbítrio, que nos foi transmitido grande parte
em grego e numa tradução eslava, e Sobre a Ressurreição, do qual existem
fragmentos do texto grego e uma versão eslava abreviada. Para demonstrar
a eternidade do mundo, Orígenes afirmara que, se não houvesse mundo,
Deus não seria o criador e o senhor. Metódio responde que Deus é então
por si incompleto e só atinge a sua perfeição através do mundo, o que é
contrário ao princípio, posto pelo próprio Orígenes, de que Deus é por
si próprio perfeito (De creatis, 2). Contra a doutrina de Orígenes,
segundo a qual os homens e os anjos existiam no mundo inteligível como
substâncias espirituais do mesmo género e que só com a queda se
diferenciaram, Metódio defende a dife-

175

rença entre as almas humanas e os anjos e nega a pré-existência das


almas humanas relativamente ao corpo (De ressurectione, 10, 11). No
escrito sobre o livre arbítrio, nega que o mal dependa de uma matéria
eterna (era a doutrina gnóstica) e afirma que é produto da vontade livre
da criatura racional.

Boa parte da actividade especulativa no século IV foi posta ao serviço


da disputa sobre o arianismo. Ario (morto em 336) afirmara que o Logos
ou Filho de Deus foi criado do nada exactamente como todas as outras
criaturas e que, portanto, não é eterno. Se nas Sagradas Escrituras é
chamado Filho de Deus, é no sentido em que o são todos os homens.
Portanto, a sua natureza é diferente da do Pai; a sua substância é
diversa.

De Ario conservou-nos alguns fragmentos o seu grande opositor Atanásio.


Nascido por volta do ano 295, Atanásio teve uma parte predominante na
condenação que o primeiro Concílio Ecuménico da Igreja, que teve lugar
em Niceia no ano de 325, pronunciou sobre o arianismo. Mas a setença do
Concílio não foi acatada de repente e a polémica entre os cristãos
continuou por muito tempo. Atanásio, que fora nomeado bispo de
Alexandria, sofreu perseguições e condenações por obra dos arianos e
morreu a 2 de Maio de 373, em Alexandria. A parte mais notável da
actividade literária é a dedicada à polémica contra o irianismo:
Discursos contra os Arianos, Carta a Serapião, Livro sobre a Trindade e
sobre o Espírito Santo. Escreveu também obras histórico-polémicas e
ascéticas e duas apologias, Discurso contra os Gregos e Discurso sobre a
Encarnação do Verbo, que são duas partes de um único escrito. Atanásio
afirma energicamente a identidade de natureza do Filho com o Pai; se o
Filho fosse uma criatura, não poderia reunir a Deus as criaturas porque
teria por sua vez necessidade desta união. O Filho tem em comum com o

176

Pai toda a plenitude da divindade e participa do seu próprio poder. O


Espírito Santo procede conjuntamente do Pai e do Filho. Há, portanto,
uma única divindade e um só Deus em três pessoas. As formulações de
Atanásio constituíram a doutrina oficialmente aceite pela Igreja no
Concílio de Niceia.

Esta doutrina teve como defensores "os três luminares de Capadócia":


Basílio o Grande, Gregório Nazianceno e Gregório de Nisa. Basílio foi
sobretudo homem de acção; Gregório Nazianceno, orador e poeta; Gregório
de Nisa, pensador.

§ 149. BASíLIO O GRANDE

Nascido por volta de 331, Basílio estudou em Cesareia, em


Constantinopla e em Atenas. Aqui estreitou com Gregório Nazianceno uma
amizade que se fundava principalmente na comunidade dos estudos e das
doutrinas. Fruto da colaboração dos dois amigos, foi uma antologia das
obras de Orígenes, intitulada Filocalia. Nomeado bispo de Cesareia
participou nas lutas teológicas do tempo e morreu no dia 1.* de Janeiro
de 379. Basílio deixou obras dogmáticas, exegéticas, ascéticas e também
homilias e cartas. As obras dogmáticas (Contra Eunómio, Sobre o Espírito
Santo) são dedicadas à polémica sobre o arianismo. Entre as obras
exegéticas vêm em primeiro lugar as 9 homilias sobre Hexamerón, nas
quais Basílio utiliza, a propósito das diferentes fases da criação do
mundo, as doutrinas científicas da Antiguidade, especialmente de
Aristóteles. As homilias de Basílio foram também famosas na Antiguidade
e colocaram o seu autor entre os maiores oradores da Igreja. Só 24 delas
são, de certeza, autênticas.

177

Basílio apela explicitamente. na sua luta contra a heresia, para a


tradição eclesiástica. A fé precede o intelecto: "Nas discussões em
torno de Deus deve ser tomada como guia a fé, a fé que leva mais
fortemente ao assentimento do que a demonstração, a fé que não é causada
pela necessidade geométrica mas pela acção do Espírito Santo" (Hom. in
Ps.,
115, 1). O conteúdo da fé é determinado pela tradição: "Nós não
aceitamos nenhuma nova fé que nos seja prescrita por outros, nem
pretendemos expor os resultados da nossa reflexão para não dar como
regra de religião aquilo que é só sabedoria humana. Nós comunicamos a
quem nos pergunta só aquilo que os Santos Padres nos ensinaram" (Ep.,
140, 2). Basílio admite, contudo, que se possam acolher, além dos
ensinamentos da Escritura, também as tradições eclesiásticas que não se
oponham a elas (De Spir. S., 29, 7 1).

Nas suas discussões trinitárias, Basílio mantém firme o fundamento: uma


só substância ou essência (ousía), três pessoas (ypostaseis). Em Deus,
afirma, há uma certa e incompreensível comunidade o juntamente uma
diversidade: a distinção das pessoas não elimina a unidade de natureza e
a comunidade de natureza não exclui a particularidade dos caracteres
distintivos" (Ep., 38, 4). Euriómio de Cizico, no Apologético (composto
por volta de 360), contra o qual é dirigido um escrito de Basílio,
sustentara que a essência de Deus consiste em ser ingénito e que, por
isso, tal essência não pode ser participada pelo Filho, que é gerado
pelo Pai. Basílio opõe que a essência divina é ingénita enquanto não
depende de outra coisa senão de si própria e, em tal sentido, quer o Pai
quer o Filho são ingénitos porque participam da mesma essência. Mas, na
essência divina, o Pai é o único que recebe o seu ser de pessoa por si
próprio, enquanto o Filho o recebe do Pai. O Filho é, portanto, gerado
como

178

pessoa, não como essência e portanto só como pessoa se distingue do Pai.


Por sua vez, o Espirito Santo recebe o ser do Filho e tem, portanto, o
seu lugar depois dele (Adv. Eun., 111, 1). Contra a afirmação de Eunómio
de que conhecemos directamente a essência de Deus (que seria
precisamente a não gerabilidade), Basílio opõe que podemos conhecer Deus
através das suas obras, mas a sua essência permanece inacessível para
nós. "As criaturas, diz (lb., 11, 32), fazem-no conhecer certamente o
poder, a sabedoria e a arte do criador, mas não a sua natureza. Mais
ainda, nem sequer manifestam necessariamente o poder do criador, pois
pode acontecer que o artista não ponha toda a sua capacidade na obra,
mas só a exercite nela de maneira restrita. Que se tivesse aplicado todo
o seu poder na obra, seria possível por ela medir a potência dele, mas
nunca compreender a essência, na sua natureza." Mesmo depois da
revelação, o conhecimento de Deus só nos é dado de modo que o infinito
pode ser conhecido pelo finito e até na vida futura a essência de Deus
nos será incompreensível. A conclusão é uma bela e profunda frase que
Basílio coloca como corolário da sua doutrina: "0 conhecimento da
essência divina consiste apenas na percepção da sua
incompreensibilidade" (Ep., 234, 2).
O limite que o homem encontra no conhecimento do transcendente é a mais
directa e evidente revelação do mesmo transcendente.

§ 150. GREGóRIO NAZIANCENO

Gregório Nazianceno nasceu por volta do ano


330 em Arianzo, próximo de Nasâncio, e foi educado em Cesareia, em
Alexandria e Atenas, onde travou amizade com Basílio. Foi nomeado bispo
de Sásima e depois de Constantinopla (em 379), mas

179

renunciou a ambos os ofícios recolhendo-se a uma vida solitária,


dedicada apenas ao labor literário. Morreu em Arianzo, onde nascera, em
389 ou 390. Gregório escreveu sermões, cartas e poesias. Dos
45 Sermões, os que vão do número 27 ao 31 são os mais importantes e
famosos. Foram designados pelo autor como Sermões Teológicos e
grangearam-lhe o apelido de teólogo. Foram proferidos em Constantinopla
e tinham como objectivo justificar a doutrina da Trindade contra o
ariano Eunómio (de quem se falou já a propósito de Basílio) e o semi-
ariano Macedónio (morto depois de 360), o qual ao mesmo tempo que
afirmava a estreita semelhança de essência do Filho e do Pai, fazia do
Espírito Santo uma natureza subordinada ao Pai e ao Filho e em tudo
semelhante ao@ anjos. As cartas de Gregório, escritas em forma literária
apuradísima, por conseguinte destinadas ao público, referem-se a certos
sucessos da vida do autor ou .dos seus parentes e por isso só algumas,
entre elas a última, tratam de questões teológicas. Em contrapartida, as
poesias são de natureza polémica, dirigidas especialmente contra os
apolinaristas (Apolinário, bispo de Laodiceia, na Síria, falecido por
volta de 390, negava a humanidade de Cristo considerando-o somente Deus;
o Logos divino teria tomado em Cristo o lugar da alma intelectiva). Têm
escasso valor poético e não são mais que prosa versificada. A
especulação de Gregório não tem originalidade nem força, se bem que
expressa numa forma oratória eloquente. Devido a esta forma, ela
contribuiu, contudo, para a difusão e a vitória das doutrinas que os
seus grandes contemporâneos haviam formulado.

Segundo Gregório, podemos chegar a conhecer, mediante apenas a razão, a


existência de Deus, considerando a ordem e a perfeição do mundo visível,
mas não podemos conhecer a substância

180

ou essência de Deus. Sabemos que ela é superior * todas as outras


essências, é "um oceano infinito * indeterminado de essências" (Or.,
38), mas foge à nossa possibilidade determinar-lhe a natureza. Ao
mistério da essência divina acrescenta-se o mistério da trindade. "Esta
profissão de fé, diz Gregório (1b., 40, n.' 41), eu te dou como
companheiro o guia de toda a vida: uma única divindade e poder que se
encontra unida em Três e Três diversas compreende; que não é diferente
por essência nem por natureza; que não se aumenta por acrescento nem
diminui por subtracções; que é totalmente igual, mais ainda totalmente a
mesma, como a beleza e grandeza única, do céu, que é a infinita
conjunção de três infinitos; e cada um destes, considerado
separadamente, é Deus, o Pai como o Filho, o Filho como o Espírito
Santo, e cada um conserva

a sua propriedade, ao mesmo tempo que, considerados os três


conjuntamente, são ainda Deus, o uno pela unidade da essência, o outro
pela unidade do comando".

Contra o apolinarismo, Gregório defende a integridade da natureza humana


em Cristo e assim tem ocas-ião de expor a sua antropologia. Ao homem
pertencem o corpo, a alma e o intelecto. Mas o intelecto não é distinto
da alma ; é uma força da própria alma e, portanto, parte integrante da
natureza humana (Ib., 14). Cristo que tomou a natureza humana teve de
tomar também o intelecto humano; de outro modo, o homem seria um animal
privado de razão (1b., 5 1).

§ 151. GREGóRIO DE NISA: A TEOLOGIA

Gregório de Nisa era irmão de Basílio o Grande e bastante mais jovem do


que ele. Encaminhado para a carreira de professor de retórica, foi
retirado

181

dela por Basílio que o nomeou bispo de Nisa. Como tal Gregório
participou na luta contra os arianos. Em 394 estava em Constantinopla
para participar num sínodo que devia resolver uma controvérsia entre
bispos árabes; depois o seu nome deixa de aparecer; muito provavelmente,
a sua morte ocorreu pouco depois daquela data. A sua obra mais notável é
o Discurso Catequético Grande, demonstração e defesa dos dogmas
principais da Igreja contra os pagãos, judeus e heréticos. A obra mais
extensa é o escrito Contra Eunómio, réplica ao escrito Em Defesa da
Apologia, com o qual Eunómio respondem a Basílio. Gregório escreveu
mais: duas obras Contra Apolinário: vários tratados ou diálogos (Contra
os Gregos, Sobre a Fé, Sobre a Trindade, Sobre a Alma e a Ressurreição,
Contra o Fado, Sobre os Meninos que Morrem Prematuramente). Compôs, além
disso, numerosos escritos exegéticos, dos quais os mais notáveis são o
Apologético sobre Hexameron e o De opificio hominis e outros discursos
ascéticos, discursos e cartas.

Como Basílio, Gregório, afirma a distinção entre a fé e o conhecimento e


a subordinação deste àquela. A fé apoia-se na revelação divina e não tem
necessidade da lógica e das suas demonstrações. Ela é o critério de toda
a verdade e deve ser tomada como a medida de todo o saber. Por sua
parte, a ciência deve fornecer à fé os conhecimentos naturais
preliminares que, na Idade Média, se chamarão preambula fidei e, em
primeiro lugar, a demonstração da existência de Deus (Or. catech.,
pref.). Em particular, a dialéctica fornece o método para sistematizar o
conteúdo da fé e constitui o instrumento mediante o qual os princípios
da fé podem ser fundados e se pode progredir para a gnose ainda que isto
se faça com grande cautela e em forma hipotética. (De hom. opif., 16). O
próprio Gregório

182

pôs em prática este procedimento na medida mais lata, como só Orígenes


fizera antes, e apela continuamente, para lá do testemunho da tradição,
para princípios e demonstrações racionais. O seu Discurso Catequético
bem como o diálogo Sobre a Alma e a Ressurreição são inteiramente
guiados por investigação puramente racional. No diálogo citado, vê na
dúvida uma ajuda metódica da pesquisa.
Na sistematização da teologia cristã, Gregório preocupa-se, em primeiro
lugar, por estabelecer a unicidade de Deus. Divindades diferentes só
poderiam distinguir-se entre si por qualquer propriedade ou perfeição
que pertencesse a uma e não a outra: mas assim nenhuma delas seria
perfeita. O próprio conceito de Deus como substância perfeitíssima
implica a unicidade de Deus e exclui o politeísmo. Da perfeição divina
deriva também a trindade das pessoas. No homem, a razão é limitada e
mutável e não é, portanto, subsistente por si. Mas em Deus ela é
imutável e eterna e não tem, pois, o carácter de uma força impessoal,
mas subsiste corno pessoa (Or. catech., 1). O mesmo vale para o
espírito. Em nós o espírito serve de mediador entre a palavra interna
que é o pensamento e a palavra externa na qual se exprime. Em Deus a
palavra externa não é corno para o homem um som, uma coisa como as
outras, mas faz parte da sua essência e procede, pois, do Pai e do Filho
como uma outra pessoa que tem a sua própria subsistência e a sua própria
eternidade (1b., 1). O cristianismo, admitindo a unidade e trindade de
Deus, conciliou o politeísmo pagão com o monoteísmo judaico: admitiu com
o judaísmo a unidade da natureza divina,

com o paganismo a plural-idade das pessoas (1b., 3).

Na interpretação da trindade, Gregório serve-se do princípio platónico


da unidade da essência (ousía), princípio de que se servirá na Idade
Média, com o mesmo fim, Anselmo de Aosta. Se o nome de

183

Deus, diz ele no tratado Adversus Graecos, significa a pessoa,


necessariamente falando de três pessoas, falamos de três divindades. Mas
se o nome de Deus indica a essência, podemos reconhecer que há um único
Deus porque uma só é a essência das três pessoas. Ora na realidade o
nome de Deus indica a essência divina. É um costume abusivo da linguagem
o de indicar com o plural do nome que significa a natureza comum os
indivíduos múltiplices que participam dela. Por exemplo, dizemos Podro,
Paulo e Barnabé são três homens e não um só homem, como se deveria dizer
desde o momento em que a palavra homem significa a essência universal e
não a existência parcial ou própria dos indivíduos singulares. Gregório
toma neste caso (como foi muitas vezes observado) o significado
abstracto da palavra, que não admite o plural, em vez do significado
concreto que, ao contrário, o admite. Contudo, o sentido da sua doutrina
é claro. A essência, toda a essência, a divina como a humana, e uma
única realidade una e simples, que não é multiplicada pelo número de
pessoas (ou ipostasi) que participam dela. A essência humana pode ser

participada por um número indeterminado de pessoas, a essência divina só


por três; mas como todos os homens são tais em virtude de uma única
essência humana, assim as três pessoas divinas subsistem na única
essência divina e constituem um único Deus. O traço que distingue a
essência divina de todas as outras é que ela, pela sua perfeição,
implica também a urky'dade de acção das pessoas que participam dela.
Enquanto os homens têm actividades diferentes e às vezes contrárias,
ainda que participando da mesma essência, as pessoas divinas têm uma
única actividade. "Toda a actividade procedente de Deus, que se refere à
criatura e é denominada de modo diverso segundo a diversidade do
objecto, parte do Pai, procede através do Filho

184
e cumpre-se no Espírito Santo. Não se trata, por isso, de actividades
que se diversificam segundo as pessoas que são activas, porque a
actividade de cada pessoa singular não está separada da outra e tudo
quanto acontece, quer diga respeito à providência sobre os homens quer
concerne o governo e a ordenação do mundo, acontece por intermédio das
três pessoas sem que, todavia, seja trino". De tal modo, a essência
divina encontra, na unidade da acção divina, a sua característica
fundamental e própria frente às essências criadas. Tal é a interpretação
de Gregório no que se refere à unidade divina. No que se refere à
trindade, Gregório expõe uma interpretação que funda a diversidade das
pessoas na diversidade das relações de origem, formulando um princípio
que devia tornar-se a base da interpretação trinitária nos séculos
seguintes. Com efeito, a distinção das pessoas divinas é explicada
admitindo que delas uma é a causa, a outra causada e distinguindo dois
tipos de causalidade que correspondem à segunda e à terceira pessoa da
trindade. Deus Pai é a causa; o Filho é imediatamente causado pelo Pai
de maneira que lhe corresponde o carácter de unigénito; o Espírito Santo
é causado pelo Pai através da mediação do Filho e não é ingénito como o
PaI nem unigénito como o Filho.

§ 152. GREGÓRIO DE NISA: O MUNDO E O HOMEM

O mundo é uma criação de Deus. A questão de saber por que modo uma
essência absolutamente simples, incorpórea e imutável, como Deus, tenha
podido produzir uma realidade composta, mutável e, sobretudo, corpórea,
só pode encontrar resposta se se considera a natureza do corpo. Todo o

185

corpo resulta de partes que, tomadas de per si, são momentos ou


potências puramente inteligíveis, como a quantidade, a qualidade, a
figura, a cor, a grandeza e assim sucessivamente. Se se prescinde delas,
nada resta do corpo. Portanto, o corpo como tal é apenas a ligação de
qualidades em si próprias incorpóreas e ele mesmo é incorpóreo no seu
fundamento. Pode-se, pois, conceber como possa ter sido criado por uma
essência incorpórea (De hom. opif., 23-24). Partindo da exigência
teológica de eliminar o abismo entre a natureza de Deus e a da criação,
Gregório foi assim levado a formular uma doutrina da pura
inteligibilidade do mundo corpóreo, voltando ao contrário o materialismo
de Tertuliano que exprimia, contudo, uma tendência muito difundida entre
as primeiras seitas cristãs. Enganar-se-ia, porém, quem interpretasse
esta inteligibilidade como subjectividade das qualidades corpóreas em
sentido idealístico. A inteligibilidade confirma e reforça a pura
objectividade das qualidades porque, aproximando-as da natureza de Deus,
as eleva ao princípio supremo da objectividade, que é o próprio Deus.

No mundo, o homem foi criado por um acto de "amor superabundante" (Or.


catech., 5). O mundo não podia permanecer privado de finalidade e, por
isso, Deus quis que ele servisse para um ser que pudesse participar do
bem que nele havia espalhado. Por um lado, o homem é um microcosmo que
compreende em si o ser das coisas inanimadas, a vida das plantas, a
sensibilidade dos animais e a racionalidade dos anjos. Pelo outro, é a
imagem de Deus; como, em Deus, do Pai ingénito procede o Logos e do Pai
e do Logos o Espírito, assim, no homem, da alma ingénita procede a
palavra inteligível e de ambas a inteligência. Atributo fundamental do
homem é a liberdade. A razão, que o faz distinguir entre o bem e o
mal, seria inútil se
186

não pudesse escolher entre o bem e o mal. Sem liberdade não haveria
virtude nem mérito nem pecado (1b., 5). Só na liberdade está a origem do
mal. O corpo não é um mal nem causa do mal porque é uma criação de Deus.
O mal está na nossa interioridade e consiste no desvio do bem devido ao
livre arbítrio (1b., 5). O mal não tem nenhuma essência na realidade em
que é apenas privação do bem, que é a única realidade positiva. Como a
obscuridade é a privação da luz ou a cegueira a privação da vista, assim
o mal não é outra coisa senão a falta do bem. "A maldade tem o seu ser
no não-ser: e não tem outra origem senão a privação do sem (De an. et
resur., p. 223).

§ 153. GREGóRIO DE NISA: A ApoCATÁSTASIS

O relato bíblico sobre o primeiro homem é interpretado por Gregório no


sentido platónico, na base da distinçã o entre o homem ideal e o homem
empírico. O primeiro homem foi criado, diz Gregório, provido de um
estado semelhante ao dos anjos. A sua natureza era a racionalidade e
nenhum elemento irracional fazia parte dele; por isso não tinha corpo
material nem sexo, era privado de todas as tendências e dos impulsos que
derivam do corpo e superior à doença e à morte. Era o homem perfeito, o
homem ideal, o homem feito verdadeiramente à imagem e semelhança de
Deus. Com o pecado, o homem perdeu esta condição feliz. Como
consequência do pecado nasceu o homem empírico, que se encontra Emitado
pela sua natureza animal e tem todas as qualidades e impulsos de tal
natureza (De hom. opif., 17). Nesta condição, o homem encontra-se em
contraste com a sua natureza originária, com a ideia perfeita do homem.
187

O homem deve retornar então à sua condição originária. Para orientá-lo


na via do retorno, foi necessária a encarnação do Logos. Contra a
encarnação não vale a objecção de que o finito não pode abarcar o
infinito e de que, por isso, a natureza humana não pode receber em si a
divina, dado que a encarnação do Logos não significa mais do que a
infinidade de Deus se ter encerrado nos Emites da carne como num vaso. A
natureza divina uniu-se com a humana mais como a chama se une ao corpo
inflamável ou também como a alma supera os limites do nosso corpo e se
move livremente com o pensamento através da criação inteira (Or.
catech.,
10). Com a morte e a ressurreição de Cristo, o Deus-homem, a natureza
humana como tal, recuperou a sua condição originária, da qual o pecado a
tinha feito cair. Mas com ela não retornaram à condição primitiva todos
os indivíduos nos quais, depois da queda, se multiplicou e dispersou. A
obra redentora de Cristo deve, portanto, frutificar através dos
indivíduos singulares e reconduzi-los todos à condição originária.

Segue-se daqui que a punição que cai sobre o mal na outra vida só pode
ser purificador. Aqueles que deixaram por si a sujidade do vício com a
água do baptismo não terão necessidade de outra purificação, mas aqueles
que não participaram desta purificação sacramental serão necessàriamente
purgados pelo fogo (1b., 35). Finalmente, a natureza chega por
necessidade inevitável à apocatástasis, à reconstrução da condição
feliz, divina e livre de toda a dor, como era a originária (1b., 35).
Gregório afirma decididamente o carácter universal da apocatástasis:
"Até o inventor do mal, isto é, o demónio, unirá a sua própria voz no
hino de gratidão ao Salvador (1b., 26). Já um escritor antigo (Germano
de Constantinopla em Fozio, Bibli. cod., 233) adiantara a hipótese de
uma posterior falsificação dos
188

escritos de Gregório nos pontos em que trata da apocatástasis universal.


Mas esta hipótese não tem nenhum fundamento dado que aquela doutrma
corresponde ao espírito e ao tom geral da obra de Gregório. O ciclo do
mundo ficaria incompleto ou coxo se uma parte dos seres se subtraísse à
apocatástasis e não fosse restituída à sua condição ideal originária.
Esta condição originária é concebida platónicamente por Gregório como o
ser, a substância ou a norma de toda a existência: portanto, a
existência permanece tal, mesmo depois que, afastando-se do bem, se
incline para o nada, só pela possibilidade, que lhe é própria, de uma
restituição à sua substância originária.

Precisamente em virtude da exigência desta total reintegração da


realidade no seu ser próprio, Gregório defende a ressurreição do corpo
num sentido que não tem nada já de material. A alma é dominada por uma
tendência natural para o corpo que lhe pertence e por isso imprime ao
próprio corpo a sua própria forma (eidos) que permanece na matéria
constitutiva do corpo e permitirá à alma reconhecê-la, e voltar a
apropriar-se dela no momento da apocatástasis (De hom. opif., 27). Aqui
a força organizadora e modeladora da alma (a forma) é utilizada para
explicar a crença cristã na ressurreição.

O fim último do destino humano é, segundo Gregório, o conhecimento


místico de Deus, o êxtase. Alcançou-se quando se passa para lá das
aparências sensíveis e da própria razão; e nele o ver consiste em não-
ver, dado que a essência divina é inconcebível e inexprimível. Para ele,
como para Basílio, o único modo de uma relação directa com a
transcendência divina é a impossibilidade de relação. O motivo
fundamental e permanente da especulação mística encontra nestas fórmulas
a sua expressão.

189

Gregório representa, com Orígenes, a expressão máxima da especulação


cristã dos primeiros séculos.
O cristianismo alcançou com ele a sua primeira sistematização doutrinal
na base de um encontro substancial com a filosofia grega. Contudo, o
princípio da interioridade espiritual afirmado pelo cristianismo e o
princípio do objectivismo, fundamento de toda a filosofia grega, não
encontram ainda, na obra dos Padres orientais, o seu ponto de encontro e
de fusão. Só o encontrarão em S. Agostinho mercê de um conceito renovado
da natureza e da finalidade da investigação.

§ 154. OUTROS PADRES ORIENTAIS DO SÉCULO IV

Foi escassa a contribuição que deram à elaboração filosófica do


cristianismo os outros e numerosos escritores que, nesta época,
participaram nas disputas teológicas da Igreja. Epifânio, bispo de
Constância (a antiga Salamina), nascido por volta de 315, falecido em
403, é autor de um escrito intitulado Panario (ou caixinha de medicinas)
no qual pretende apresentar uma defesa para aqueles que são mordidos
pelas serpentes, isto é, contaminados pelas heresias. Enumera 80
heresias, mas 20 delas são seitas ou doutrinas pré-cristãs. Entre as
heresias está incluída a doutrina de Orígenes.

Macário, bispo de Magnésia, é autor de uma grande apologia, O Unigénito


ou Resposta aos Pagãos, que foi encontrada incompleta em 1867, e combate
as objecções que opusera ao cristianismo o neoplatónico Porfírio nos
livros que se perderam contra os cristãos. A um outro Macário, dito o
Egípcio, foram atribuídos erradamente 50 homilias (às quais se juntaram
outras sete encontradas em
1918) que apresentam uma curiosa mescla de Estoi-

190

cismo e de Misticismo. Segundo Macário, tudo aquilo que existe,


incluindo a alma e as suas faculdades, é corpóreo, excepto Deus. Mas a
alma corpórea tem em si uma "imagem celeste" de Deus e é esta imagem
celeste de Deus que é pouco a pouco libertada e purificada pela acção de
Deus sobre a alma com a cooperação da vontade humana. Este processo de
purificação é o processo de elevação a Deus, que parte da apatia e,
através da iluminação, da visão e da revelação da comunhão com Deus,
chega ao grau mais alto, ao êxtase, que é a união com Deus.

Carácter escassamente especulativo têm as homilias de João, dito


Crisóstomo ou Boca de oiro pela sua eloquência, que foi patriarca de
Constantinopla e morreu em 407. Em 428, Nestório, patriarca de
Constantinopla, começou nas suas prédicas a defender a doutrina que nega
a unidade da pessoa de Cristo. Esta doutrina fora precedentemente
sustentada por Diodoro de Tarso (falecido por volta do ano 394) e pelo
seu discípulo Teodoro de Mopsuestia (falecido por 428). Consistia em
admitir que em Cristo coexistiam não só duas naturezas, mas também duas
pessoas, uma das quais habitava na outra como num templo. Nestório
negava que Maria fosse mãe de Deus e considerava fábula pagã a ideia de
um deus envolto num sudário e crucificado. Contra esta doutrina,
combateu Cirilo, bispo de Alexandria, morto em 444. Reafirmou a unidade
da pessoa de Cristo, aduzindo que o Logos assumiu a natureza humana na
unidade da sua pessoa, conjuntamente divina e humana. A obra de Cirilo,
importantíssima para a definição do dogma da encarnação, como a de
Anastásio para o dogma da trindade, não tem particular significado
filosófico.

O mais douto adversário de Grilo foi Teodoreto, que nasceu por volta do
ano 386 em Antioquia, discípulo de Crisóstomo e de Teodoro de Mopsuestia
e condiscípulo de Nestório. Primeiramente favorável

191

à doutrina de Nestório, que só abandonou nos últimos anos de vida


(morreu pelo ano 458), Teodoreto combateu a doutrina contrária de
Eutiques, bispo de Constantinopla, que defendia uma só natureza em
Cristo, não no sentido de um só indivíduo, como ensinara Cirilo, mas no
sentido de uma natureza mista na qual existissem fundidas a divina e a
humana. Contra esta doutrina, Teodoreto escreveu o Mendigo ou Polimorfo
porque ela lhe parecia uma aberração retirada de muitas heresias
precedentes. A favor da tese de Nestório, escreveu o Pentalogium de que
apenas temos fragmentos. Teodoreto escreveu a última e mais completa das
apologias cristãs que nos transmitiu a antiguidade grega. Intitula-se
Cura das Enfermidades Pagãs ou Conhecimento da Verdade Evangélica por
meio da Filosofia Pagã. Ele utiliza as apologias precedentes,
especialmente os Stromata de Clemente Alexandrino e a Preparação
Evangélica de Eusébio.

§ 155. OS PADRES LATINOS DO IV SÉCULO

É escasso o contributo da patrística latina, para a especulação cristã,


anterior a S. Agostinho. Júlio Fírmico Materno é autor de uma obra, De
errore profanarum religionum, escrita com o objectivo de converter os
imperadores Constâncio e Constante a uma enérgica política contra o
paganismo. O escrito foi composto à volta do ano 347 o é urna análise
polémica do culto pagão.

As conquistas da especulação do Oriente foram tornadas acessíveis à


igreja latina por Hilário de Poitiers, morto em 366, cuja obra mais
importante é a que leva o título De trinitate, mas originariamente devia
chamar-se De fide ou De fide adversus arianos. Nos 12 livros desta obra
são recolhidos e expostos

192

minuciosamente todos os argumentos da polémica da Igreja contra o


arianismo. Mas, por maior que seja a importância de Hilário como
divulgador e defensor das doutrinas ortodoxas, é menosprezível o
conteúdo especulativo da sua obra.

Uma grande figura de homem de acção é Ambrósio, que nasceu cerca de 340,
bispo de Milão de 374 a 397, ano da morte. Ambrósio escreveu numerosas
exegeses dos livros bíblicos, obras dogmáticas dirigidas contra os
arianos, cartas, sermões e um tratado, De officiis núnistrorum, que tem
semelhança com os três livros do De officiis de Ocero. Nele Ambrósio
segue de perto a obra de Cícero, mas completa-a em sentido cristão,
apontando como último limite da moralidade a felicidade em Deus. Nas
suas obras dogmáticas, de que as principais são o De fide ad Gratianum
Augustum e o De Spiritu Sancto ad Gratianum Augustum, inspira-se
preferentemente nas obras de Anastásio e de Basilio o Grande.

Como tradutor da Bíblia para latim, destaca-se o nome de Sofrónio


Aurélio Jerónimo, nascido em Estridón (entre a Dalmácia e a Panónia) e
morto em Belém, onde havia muitos anos se retirara para a vida erma, em
420. Reviu a versão latina, então em uso, do Novo Testamento e traduziu
do hebraico o Velho Testamento, com excepção dos livros de Baruch,
Macabeos 1 e II, Eclesiastes e Sabedoria porque duvidava da sua
canonicidade. Muito importante é a sua obra De vitis illustribus,
composta em 392 em Belém, que é uma história dos escritores
eclesiásticos, cuja matéria, para os escritores gregos dos três
primeiros séculos, é tomada da obra de Eusébio de Cesareia (§ 148),
enquanto que, para os escritores latinos e gregos posteriores, Jerónimo
se baseia no conhecimento directo. Temperamento do polemista, Jerónimo
redigiu também polemicamente as suas obras dogmáticas; as suas

193

obras mais conseguidas são as Cartas que constituem algumas vezes


verdadeiros tratados. Contudo, a sua importância está toda na sua obra
de crudito o de historiador.

Agostinho nomeia com louvor nas Confissões (VIII, 2) o retórico africano


Mário Vitormo. Convertido ao cristianismo em idade avançada, traduziu
para latim o Isagogo de Porfírio, as Categorias e a Interpretação de
Aristóteles e escreveu diversos escritos contra os arianos e maniqueus.
O escrito De definitionibus, que está entre as obras lógicas de Boécio,
deve ser atribuído a ele. Aparece nas suas obras teológicas a doutrina
da predestinação.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 143. As obras de Clemente in P. G., 8.1 e 9.1; ed. Dindorf, 4 vols.,


Oxford, 1869; ed. Stãhlin, 3 vols., Berlim, 1906-1909. Sobre Clemente:
DE FAYE, Clément d?Alexandrie. Êtude sur les rapports du christianisme
et de Ia philosophie grecque au II Wele, Paris, 1898, 2.1 edição 1906;
MEYBOOM, Clemens Alexandrinus, Leiden,
1912; TOLLINGTON, Clemens of AIex. A Study in Christian Liberalism, 1-2,
Londres, 1914.

§ 144. As obras de Origenes in P. G., 11.1, 17.1, ed. berlinense na


colecção patrística, 12 vols., 1899-1955.

§ 145. Sobre Orígenes: E. DE FAYE, Origène. Sa vie, son oeuvre, sa


pensée, 3 vols., Paris, 1923-28; A. MIURA-STANGE, CeIsus und Origene,
Giessen, 1926; G. Rossi, ;Saggi su" metafisica di Origene, Milão, 1929;
H. KocH, Pronoia und Paideusis. Studien über Origene und sein Verhãltniz
zum Platonismus, Berlim, 1932; R. CADIOU, La jeunesse d10rigène, Paris,
1936; H. DE LuBACH, Histoire et esprit. Lintelligence de I'Écriture
d'après Origène, Paris, 1950; M. HARL, Origène et Ia fonction
révélatrice du Verbe Incarné ' in "Patristica, Sorboniensia", Paris,
1958 (com bibl.).

§ 148. Os escritos de Dionísio de Alexandria in P. G., 10.,, 1233-1344,


1575-1602; os,de Gregório Taumaturgo In P. G., 10.-, 963-1232. As obras
de Eusébio in

194

P. G., 19.1-24.1 e na edição berlinense dos Padres da Igreja, 6 vols.


1902-13.

Os escritos de Metódio in P. G., 18.,, 9-408; e na edição berlinense dos


Padres da Igreja, 1917.

As obras de Anastásio in P. G., 25.---28.,. § 149. As obras de Basílio o


Grande in P. G.,
29.---32.1. Sobre Basílio: CLARRE, St. Basil the Great, Cambridge, 1913.

§ 150. As obras de Gregório Nazianeeno in P. G.,


35.---38.1. Sobre Greg6rio: PINAULT, Le platonísme de St. Gr. de Naz.,
Paris, 1926.

§ 151. As obras de Gregório de Nisa, in P. G.,


44.1~46.1. Contra Eunonium, ed. Jaeger, 2 vols, Berlim,
1921-24; Cartas, ed. Pasquali, Beillim, 1925; Oratio Catech. Magna, ed.
Mèrídier, Paris, 1908; Qp. ascetiche, ed. Jaeger e outros, Leyde, 1954;
Opuscoli dogmatici, ed. Muller, Leyde, 1958.

§ 152. Sobre Gregório: H. CHERNISS, The P,aton~ of Gregory of N-yssa,


Berkeley, 1930; M. PELLEGRINO, Il platonismo di S. Grego-rio Nisseno, in
"Riv. di filos. neoscol.", XXX, 1938; A. A. WEiswuRm, The Nature of
Human Kno-w"ge according to St. Greg. de Nysse, Paris, 1953; W. VOLKER,
Gregor von N. aIs Mystiker, Wiesbaden, 1955.

§ 154. As obras de Epifânio in P. G.@ 41.---43.o: de Macário de


Magnesia, ed. a cargo de C. Blondel, Paris, 1876; de Macário o Egípcio,
in P. G., 34., e as outras 7 hornilias in MARRIOTT, Macarii aneedota,
Cambridge, 1918; de João Crisóstomo, in P. G., 47.---64.,; de Diodoro,
de Tarso in P. G., 33.1; de Teodoro de Mopsuestia. in P. G., 66.o; de
CiriIo in P. G. 77.o; Sobre todos, ver bibliografia especial in
BARDENHEWER, GeSchichte der altkirchlichen Literatur, III, Friburgo in
Brisg., 1923; e CHRIST-SCHMID-STAMIN, Geschichte der griech. Literatur,
11, 2, Mónaco, 1924.

§ 155. O escrito de Firmico Materno in P. L.,


12.,, 9891-1050; e no Corpus de Viena, 2.o, 1867. Os escritos de Hilário
in P. L., 9-10.1 e no Corpus de Viena, 22.1. As obras de Ambrósio ín P.
L., 14.---17-e no Corpus de Viena, 32.1 e 64.,. As obras de Jerónimo in
P. L., 22.0-30.1. os escritos de Mário Vitorino in P. L., 8.", 999-1310;
o De definitionibus in P. L., 64.%
891-910, Sobre todos, ver bibliografia nas obras citadas de BARDENHEWER
E CHRIST.

195

IV

SANTO AGOSTINHO

§ 156. A FIGURA HISTóRICA DE SANTO AGOSTINHO

Pela primeira vez na personalidade de Agostinho a especulação teológica


deixa de ser puramente objectiva, como se conservara mesmo nas mais
poderosas personalidades da patrística grega, para se unir ao próprio
homem que a institui. O problema teológico é em Santo Agostinho o
problema do homem Agostinho: o problema da sua dispersão e da sua
inquietude, o problema da sua crise e da sua redenção, da sua razão
especulativa e da sua obra de bispo. Aquilo que Agostinho deu aos outros
foi aquilo que conquistou para si próprio. A sugestão e a força dos seus
ensinamentos que não diminuíram através dos séculos, muito embora tenham
mudado os termos do problema, deriva precisamente do facto de que em
toda a sua especulação, mesmo nos aspectos que parecem mais afastados de
qualquer referência imediata à vida, apenas procurou e alcançou a
clareza sobre si mesmo e sobre o seu próprio destino, o significado
autêntico da sua vida interior.

197

O centro da especulação de Agostinho coincide verdadeiramente com o


centro da sua personalidade. A atitude de confissão não se limita só ao
escrito famoso, mas é a atitude constante do pensador e do homem de
acção que, em qualquer coisa que diga ou empreenda, não tem outra
finalidade senão a de ver claro em si mesmo e de ser aquilo que deve
ser. Por isso declara que não quer conhecer mais nada senão a alma e
Deus e mantém-se constantemente fiel a este programa: a alma, isto é, o
homem -interior, o eu na simplicidade e verdade da sua natureza; Deus,
isto é, o ser na sua transcendência e na sua normatividade sem o qual
não é possível reconhecer a verdade do eu.

Por certo, nesta radical interiorização da investigação filosófica,


Agostinho tem predecessores; e tais predecessores são "os Platónicos"
que evoca muitas vezes nas suas obras e especialmente Plotino. Mas para
os Neoplatónicos. o retomo a si próprio, a atitude da introspecção só
pode ser privilégio do sábio; para Santo Agostinho está ao alcance de
todo o homem. Agostinho recolheu também o melhor da especulação
patrística precedente; e os conceitos teológicos fundamentais, já então
adquiridos pela especulação e aceites pela Igreja, não sofrem na sua
obra desenvolvimentos substanciais. Mas enriquecem-se com um calor e com
um significado humano que antes não tinham, tornam-se elementos de vida
interior para o homem, dado que são tais para ele, para Santo Agostinho.
E assim consegue uni-]os à inquietação e às dúvidas, à necessidade de
amor e de felicidade que são próprias do homem, fundá-los, numa palavra,
na procura. Procura que encontra na razão a sua disciplina e

o seu rigor, mas não é exigência de pura razão. Todo o homem procura:
toda a parte ou elemento da sua natureza, intranquilidade da sua
finitude, dirige-se para o Ser que é o único que pode dar-lhe

198

consistência e estabilidade. Santo Agostinho representa na especulação


cristã a exigência da pesquisa com a mesma força com que Platão a havia
apresentado na filosofia grega.

Mas, diferentemente da platónica; a procura agustiniana Tadica-se na


religião. Desde o começo Santo Agostinho abandona a iniciativa a
Deus: Da quod jubes et jube quod vis. Só Deus determina e guia a
procura humana seja como especulação seja como acção; e assim a
especulação é na sua verdade fé na revelação e a acção é na sua
liberdade graiça concedida por Deus. A polémica antipelagiana
ofereceu a Agostinho ensejo para exprimir na forma mais extrema e
enérgica o fundo da sua convicção; mas não constitui uma ruptura na sua
personalidade, uma vitória do homem da Igreja sobre o pensador. Nele o
pensador vive todo na esfera da religiosidade, a qual só a Deus
reconhece necessariamente a iniciativa da procura e encontra, portanto,
a sua melhor expressão na frase: só Deus é a nossa possibilidade.

§ 157. SANTO AGOSTINHO: A VIDA

Aurélio Agostinho nasceu em 354 em Tagaste, na África romana. Seu paÂ,


Patrício, era pagão; sua mãe, Mónica, cristã, e exerceu sobre o filho
uma ' profunda influência. Passou a sua meninice e a adolescência entre
Tagaste e Cartago. De temperamento ardente, rebelde a todos os freios,
levou neste período uma vida desordenada e dispersa de que se acusou
asperamente nas Confissões. Mas cultivava os estudos clássicos,
especial-mente latinos, o dedicava-se com paixão à gramática a ponto de
considerar (como confessa com horror, Conf., 1, 18) tira solecismo mais
grave do que um pecado mortal. Pelos 19 anos, a leitura do Hortênsio de
Cícero trouxe-o à filosofia. A obra de Cícero (que se per-
199

deu) em, como se disse (§ 110), exortação à filosofia que seguia de


perto os passos do Protréptico de Aristóteles. Assim, Santo Agostinho,
do entusiasmo pelas questões formais e gramaticais, encaminhou o seu
entusiasmo para os problemas do pensamento e, pela primeira vez,
orientou-se para a investigação filosófica. Aderiu então à (374) seita
dos maniqueus (§ 137). Com 19 anos começou a ensinar retórica em Cartago
e manteve o seu erwino nesta cidade até aos 29 anos, entre amores de
mulheres e o afecto dos amigos, do que se acusou e arrependeu igualmente
depois. Com 26 ou 27 anos compÔs o seu primeiro livro Sobre o Belo e o
Conveniente (De pulchro et apto) que se perdeu. O seu pensamento ia
amadurecendo; leu e compreendeu por si mesmo o livro de Aristóteles
Sobre as Categorias e outros escritos, e entretanto formulava as
primeiras dúvidas sobre a verdade do maniqueísmo, dúvidas que se
confirmaram quando viu que nem o próprio Fausto, o mais famoso maniqueu
do seu tempo, sabia resolvê-las. Com
29 anos, em 383, dirigiu-se a Roma com a intenção de continuar ali o
ensino de retórica; era movido pela esperança de encontrar uma
estudantada menos turbulenta e mais preparada do que a cartaginesa
e talvez também pela ambição de conseguir sucesso
e dinheiro. Mas as suas esperanças não se realizaram e ao fim de um ano
dirigiu-se a Milão para ensinar oficialmente retórica, cargo que
obtivera do perfeito Simaco. O exemplo e a palavra do bispo Ambrósio
persuadiram-no da verdade do cristianismo e tornou-se catecúmeno. Em
Milão reuniu-se-lhe sua mãe, cuja influência teve importância decisiva
na críse espiritual de Agostinho. A leitura dos escritos de Plotino na
tradução de Mário Vitorino, um famoso retórico que se convertera ao
cristianismo, fornece a Agostinho a orientação definitiva. Não encontrou
nos livros dos Neoplatónicos

200

S
1 . AGOSTINHO (Ambrósio Berognone)

ensinada a encarnação do Verbo e, por conseguinte, o caminho da


humildade cristã, mas encontrou afirmada e demonstrada claramente a
incorporeidade e incorruptibilidade de Deus e isto libertou-o
definitivamente do materialismo, ao qual permanecera ligado até então ao
ponto de acreditar que o universo estava cheio de Deus à maneira de uma
esponja gigantesca que ocupasse o mar (Conf., VII, 5). No Outono de 386,
Agostinho deixa o ensino e retira-se, com uma pequena companhia de
parentes e amigos, para a vila de Verecondo, em Cassiciaco, próximo de
Milão. Da meditação nesta vila e das conversações com os amigos nascem
as suas primeiras obras: Contra Académicos, Sobre a Ordem, Sobre a
Felicidade, Solilóquios. A 25 de Abril de 387 recebia o baptismo das
mãos de Ambrósio. Convence-se então de que a sua missão era a de
difundir na sua Pátria a sabedoria cristã; pensou, pois, no regresso. Em
Ostia, enquanto esperava o embarque, passou com a sua mãe dias de
intensa alegria espiritual discorrendo com ela sobre questões
religiosas, mas Mónica morreu ali. A partir daquele momento a vida de
Santo Agostinho é uma contínua procura da verdade e uma luta contínua
contra o erro. Depois de uma nova permanência em Roma, voltou a Tagaste
onde em 391 foi ordenado sacerdote; em 395 foi consagrado bispo de
Hipona. A sua actividade dirigiu-se então não só a defender e a
esclarecer os princípios da fé, mediante uma procura de que a fé é mais
o resultado que o pressuposto, mas também a combater os inimigos. da fé
e da Igreja: o maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo. O saque de
Roma, perpretado em 410 pelos "os de Alarico. voltara a dar actualismo à
velha tese de que a segurança e a força do Império Romano estavam
ligadas ao paganismo e que o cristianismo representava por isso um
elemento de debilidade e de dissolução.

201

Contra esta tese escreveu Santo Agostinho, entre 412 e 426, a sua obra-
prima: A Cidade de Deus. Mas, entretanto, um flagelo análogo, a invasão
dos Vândalos, abateu-se em 428 sobre a África romana. Havia três meses
que as tropas de Genserico assediavam Hipona quando, a 28 de Agosto de
430, Agostinho morreu.

158. SANTO AGOSTINHO: AS OBRAS

Os primeiros escritos de Agostinho que chegaram até nós foram os que


compôs em Cassiciaco@ Contra Acadêmicos, Sobre a Felicidade, Sobre a
Ordem, Solilóquios. De uma exposição completa de quase todas as artes
liberais só acabou, em Tagaste, a parte que respeita à Música. Em Roma,
enquanto esperava a partida para a África, compôs o escrito Sobre a
Quantidade da Alma, relativamente às relações entre a alma e o corpo. De
volta a Tagaste, terminou o escrito Sobre o livre Arbítrio, começado em
Roma, compôs o livro Sobre o " Génesis" contra os Maniqueus, o diálogo
Sobre o Mestre e o livro Sobre a Verdadeira Religião que é um dos seus
escritos filosóficos mais notáveis. A polémica contra os maniqueus
ocupou-o largamente. Os seus escritos polémicos contra a seita são
numerosos (Sobre a Utilidade de Crer, composto em 391 em Hipona; Sobre
as duas Almas; Contra Fortunato; Contra Adimanto; Contra Fausto; Sobre a
Natureza do Bem, e outros). Tornado bispo, S. Agostinho desenvolve a sua
polémica, por um lado contra os donatistas que propugnavam por uma
igreja africana independente e resolutamente hostil ao Estado romano (§
165), pelo outro contra os pelagianos que negavam ou pelo menos
limitavam a acção da graça divina. Contra os donatistas compôs, entre
393 e 420, muitos e 'tos (Contra a carta de Parmeniano; Sobre o scri
Baptismo; Contra os Donatistas; Contra a Carta de
202

Petiliano Donalista; Cartas aos Católicos contra os Donatistas; Contra o


Gramático Crescónio; Sobre o único Baptismo; Contra Petiliano, etc.).
Contra os pelagianos, Agostinho abriu a sua luta em 412 com o escrito
Sobre a Culpa e sobre a Remissão dos Pecados e sobre o Baptismo dos
Meninos, ao qual se seguiram: Sobre o Espírito e sobre a Letra, a
Marcelino; Sobre a Natureza e sobre a Graça; Carta aos bispos Eutropio e
Paulo; Sobre a Gesta de Pelágio: A Graça de Cristo e o Pecado Original;
e vários outros. Por altura de uma carta de Santo Agostinho em 418 (Ep.,
194), os monges de Adrumeto (Susa) começaram a rebelar-se contra os seus
abades, sustentando que, sabido que a boa conduta depende exclusivamente
do socorro divino, os seus superiores não deviam dar ordens, mas apenas
elevar preces a Deus pelo seu melhoramento. Para tranquilizar e iluminar
aqueles monges sobre o verdadeiro significado da sua doutrina, Agostinho
compôs em 426 ou
427 o escrito sobre a Graça e sobre o Livre Arbítrio e outro Sobre a
Correcção e sobre a Graça. Como o movimento pelagiano se difundia na
Gália meridional, sob a forma atenuada que se chamou depois
semipelagianismo, o qual declarava inútil a graça no início da obra de
salvação e na perseverança da justificação conseguida, Agostinho
escreveu contra tal doutrina outros dois escritos: Sobre a Predestinação
dos Santos e Sobre o Dom da Perseverança.

Juntamente com estas e outras obras polémicas menores, compunha o


importante escrito Sobre a Trindade, e Sobre a Doutrina Cristã, o
exegético Sobre o Génesis à Letra e a sua obra mais vasta: A Cidade de
Deus (413-426). Por volta de 400, escreveu os 13 livros das Confissões
que são a obra chave da sua personalidade de pensador. Para o final da
sua vida, em 427, nas Retratações, lançava um olhar retrospectivo sobre
toda a sua obra literária a partir
203

da conversão em 386. Agostinho recorda, por ordem cronológica e, um por


um, todos os seus escritos, excluindo as cartas e sermões, e muitas
vezes indica a ocasião e o fim da sua composição e ao mesmo tempo faz a
revisão crítica das doutrinas neles contidas, corrigindo os seus erros
ou as imperfeições dogmáticas. A obra é um guia precioso para
compreender o desenvolvimento da actividade literária de Agostinho.

§ 159. CARACTERISTICAS DA INVESTIGAÇÃO AGOSTINIANA

Santo Agostinho foi chamado o Platão cristão. Esta definição é


verdadeira não tanto porque se encontrem na sua doutrina pontos e
motivos doutrinais do Platão autêntico ou do Neoplatonismo, mas porque
renova no espírito do cristianismo a investigação que fora a realidade
fundamental da especulação platónica. A fé está para Agostinho no termo
da investigação, não no seu início. Por certo a fé é a condição da
procura que não teria direcção nem guia sem ela; mas a procura dirige-se
para a sua condição e trata de, esclarecê-la com o aprofundamento
incessante dos problemas que suscita. Por isso a procura encontra o
fundamento e o guia na fé e a fé encontra a sua consolidação e
enriquecimento na procura. Por um lado, na medida em que leva a
esclarecer e a aprofundar a própria condição, a procura estende-se e
robustece-se porque se aproxima da verdade e se funda nela; por outro
lado, a própria fé é alcançada e possuída através da procura na sua
realidade mais rica e consolida-se no homem triunfando da dúvida. Nada é
tão contrário ao espírito de Agostinho como uma pura gnose, um
conhecimento puramente racional do divino, a não ser talvez a afirmação
desesperada da irracionalidade da fé,

204

que se encontra em Tertuliano. Para Agostinho, a procura empenha o homem


todo não apenas o intelecto. A verdade para que tende é também, segundo
a palavra angélica, a via e a vida: procurá-la significa procurar a
verdadeira via e a verdadeira vida. Por isso, não é só a mente que tem
necessidade dela, mas o homem inteiro e deve dar satisfação e repouso a
todas as exigências do homem. Por outro lado, a procura agustiniana
impõe a si própria uma disciplina rigorosa: não se entrega facilmente a
crer, não fecha os olhos diante dos problemas e das dificuldades da fé,
não tenta evitá-los e iludi-los, mas afronta-os e considera-os
incessantemente, retornando sobre as próprias soluções para as
aprofundar e esclarecer. A racionalidade da procura não é para Santo
Agostinho o seu organizar-se como sistema, mas antes a sua disciplina
interior, o rigor do procedimento que não pára frente ao limite do
mistério, mas faz deste limite e do próprio mistério um ponto de
referência e uma base. O entusiasmo religioso, o ímpeto místico para a
verdade não agem nele como forças contrárias à procura mas robustecem a
própria procura, dão-lhe um valor e um calor vital. Daqui deriva o
enorme poder de sugestão que a personalidade de Agostinho exerceu não só
sobre o pensamento cristão e medieval, mas também sobre o pensamento
moderno e contemporâneo.

§ 160. SANTO AGOSTINHO: O FIM DA PROCURA: DEUS E A ALMA

No início dos Solilóquios (1, 2), que são uma das suas primeiras obras,
Agostinho declarava o fim da sua investigação deste modo: "Desejo
conhecer Deus e a alma. E nada mais? Nada mais, absolutamente". E tais
foram na realidade os termos para os quais se dirigiu constantemente a
sua especulação

205

do princípio ao fim. Mas Deus e a alma não requerem para Agostinho duas
investigações paralelas ou diversas. Com efeito, Deus está na alma e
revela-se na mais recôndita interioridade da própria alma. Procurar a
Deus significa procurar a alma e procurar a alma -significa reclinar-se
sobre si mesmo, reconhecer-se, na própria natureza espiritual,
confessar-se. A atitude de confissão que deu origem à mais famosa das
obras agustinianas é, na realidade, desde o princípio, a atitude
fundamental de S. Agostinho, aquela que ele mantém e observa
constantemente em toda a sua actividade de filósofo e de homem de acção.
Esta atitude não consiste em descrever para si e os outros as
alternativas da própria vida interna ou externa, mas em pôr a claro
todos os problemas que constituem o núcleo da própria personalidade.
Mesmo as Confissões não são uma obra autobiográfica: a autobiografia é
um dos seus elementos que fornece os pontos de referência dos problemas
na vida de Santo Agostinho, mas não é o seu carácter dominante, tanto
que, num certo ponto, no livro X todo o acento autobiográfico cessa e
Santo Agostinho passa nos outros três livros a tratar de problemas de
pura especulação teológica. O esforço de Santo Agostinho nesta obra é
dirigido no sentido de fazer luz sobre os problemas que constituem a sua
própria existência. quando, consegue aclarar a natureza da inquietação
que dominou a primeira parte da sua vida e que o levou a dissipar-se e a
divagar desordenadamente, dá-se conta que, na realidade, nunca desejou
outra coisa a não ser a verdade, que a verdade é o próprio Deus, que
Deus se encontra no interior da sua alma. "Não, saias de ti mesmo, volta
* ti próprio, no interior do homem habita a verdade; * se verificas que
a tua natureza é mutável, transcende-te para lá de ti mesmo" (De vera
rel., 39). Apenas o retorno a si próprio, o encerrar-se na própria
interioridade é verdadeiramente o abrir-se à

206

verdade e a Deus. É necessário chegar até ao mais íntimo e escondido


núcleo do eu para encontrar mais além dele ("transcende-te para lá de ti
mesmo") a verdade de Deus.

Na busca desta interioridade que se transcende e se abre a Deus


encontra-se uma certeza fundamental que elimina a dúvida. Não foi por
acaso que a carreira de escritor de Santo Agostinho se iniciou com uma
refutação do cepticismo académico. Não podemos permanecer firmemente na
dúvida, como pretendiam os Académicos, e na suspensão do assentimento.
Quem duvida da verdade está certo de duvidar, isto é, de viver e de
pensar; tem, por conseguinte, na própria dúvida uma certeza que o
subtrai à dúvida e o leva à verdade (Contra acad., 111,
11); De vera rel., 39; De trin., X, 10). Este movi. mento de pensamento
para o qual a própria dúvida é tomada como fundamento de uma certeza,
que não é imóvel porque apenas significa que se pode e se deve procurar,
encontrar-se-á nos começos da filosofia moderna em Descartes. Em
Agostinho, esta atitude significa que a vida interior da alma não pode
encerrar-se na dúvida e que até a dúvida permite à alma transcender-se e
mover-se para a verdade.

A verdade é, pois, ao mesmo tempo interior ao homem e transcendente. O


homem só pode procurá-la encerrando-se em si próprio, reconhecendo-se
naquilo que é, confessando-se com absoluta sinceridade. Mas não pode
reconhecer-se nem confessar-se se não pela verdade e frente à verdade, a
qual se afirma, precisa-mente, naquele acto em toda a sua transcendência
como guia e luz da pesquisa. A verdade revela-se como transcendente
àquele que a procura como deve procurar-se: na interioridade da
consciência. Com efeito, a verdade não é a alma, mas a luz que do alto
guia e chama a alma à sinceridade do reconhecimento de si e à humildade
da confissão. A verdade não é a razão mas é a lei da razão, isto

207

é, o critério de que a razão se serve para julgar as coisas. Se a razão


é superior às coisas que julga, a lei, na base da qual ela julga, é
superior à razão.
O juiz humano julga na base da lei, mas não pode julgar a própria lei. O
legislador humano, se é honesto e sábio, julga das leis humanas, mas
consulta, ao fazer isto, a lei eterna da razão. Mas esta lei escapa a
todo o juízo humano porque é a própria verdade na sua transcendência (De
vera rel., 30-31).

§ 161. SANTO AGOSTINHO: A PROCURA DE DEUS

A verdade é Deus: este é o princípio fundamental da teologia


agostiniana. O carácter fundamental da verdade está no facto de que ela
nos revela aquilo que é, em contraste com o falso que faz aparecer ou
crer aquilo que não é. A verdade é a revelação do ser como tal. Ela é o
ser que se revela, o ser que ilumina a razão humana com a sua luz e lhe
fornece a norma de todo o juízo, a medida de toda a avaliação. Neste
revelar-se do ser na interioridade do homem, neste seu valer frente ao
homem como o princípio iluminante da sua procura, tal é a verdade. Mas o
Ser que se revela e fala ao homem, o Ser que é a Palavra e Razão
iluminante, é Deus no seu Logos ou Verbo (De vera rel., 36). A verdade
não é, pois, mais que o Logos ou Verbo de Deus. A primeira e fundamental
determinação teológica do Deus cristão nasce do próprio implantar da
pesquisa agostiniana. Precisamente, enquanto o homem procura Deus na
interioridade da sua consciência, Deus é para ele Ser e Verdade,
Transcendência e Revelação, Pai e Logos. Deus revela-se como
transcendência ao homem que incessantemente e amorosamente o procura na
profundidade do seu eu: isto quer dizer que Ele não é ser senão enquanto
é conjuntamente manifestação de si como tal, isto é, Verdade, que não é
transcen-

208

dência senão enquanto é conjuntamente revelação; que não é Pai senão


enquanto é conjuntamente Filho, Logos ou Verbo que se acerca do homem
para o trazer a si. As duas primeiras pessoas da Trindade manifestam-se
ao homem na procura; e também a outra, o Espírito Santo, que é amor.
Deus é Amor além de Verdade; amor e verdade vão conjuntamente porque não
se pode ser amor senão pela verdade e na verdade. Amar a Deus significa
amar o Amor, mas não se pode amar o Amor se não se ama quem ama. Não é
amor aquele que não ama ninguém. Por isso o homem não pode amar a Deus,
que é o Amor, se não ama o outro homem. O amor fraterno entre os homens
"não só deriva de Deus mas é o próprio Deus" (De trin., VIII, 12). Deus
revela-se como verdade só a quem procura a verdade; Deus oferece-se como
Amor só a quem ama. A procura de Deus não pode ser, portanto, apenas
intelectual, é também necessidade de amor. Parte da pergunta
fundamental: "Que coisa amo, ó Deus, quando te amo"? (Conf., X, 6).

Aqui está o nó da procura que se dirige à alma e da procura que se


dirige a Deus, nó que é o centro da personalidade de Agostinho. Não é
possível procurar Deus senão submergindo-se na própria interioridade,
senão confessando-se e reconhecendo o verdadeiro ser próprio; mas este
reconhecimento é o próprio reconhecimento de Deus como verdade e
transcendência. Se o homem não se procura a si próprio não pode
reconhecer a Deus. Toda a experiência da vida de Agostinho se exprime
nesta fórmula, dado que só para lá de si, naquilo que transcende a parte
mais elevada do eu, se entrevê, pela própria impossibilidade de alcançá-
la, a realidade do ser transcendente. Por um lado, as determinações de
Deus radicam-se na procura dado que Deus se revela como transcendência e
verdade apenas na procura; por outro lado, a procura funda-se nas

209

determinações da transcendência divina. Por certo o homem não pode


conhecer a transcendência se não a procura, mas não pode procurar se a
transcendência não o chama a si e não o sustém revelando-se na sua
imprescrutabilidade. Deus precisamente na sua transcendência, é o
transcendente da alma, a condição da sua procura, de toda a sua
actividade. E é ao mesmo tempo a condição das relações interhumanas.
Deus é o Amor e condiciona e torna possível todo o amor. Mas não é
possível reconhecê-lo como amor e, portanto, amá-lo se não se ama; e não
se pode amar senão o outro homem. Amar o Amor significa, em primeiro
lugar, amar, e não se pode amar a não ser o homem. O amor fraterno, a
caridade cristã, condiciona. a relação entre Deus e o homem; e ao mesmo
tempo é condicionado por ela. Também aqui o Amor divino, o Espírito
Santo é, na sua transcendência, o transcendental da procura que leva o
homem para o outro homem.

O tema de toda a especulação de Santo Agostinho é um só e é o tema da


sua vida: a relação entre a alma e Deus, entro a procura humana e o seu
termo transcendente e divino. Mas esta relação manifesta-se em Santo
Agostinho religiosamente, não filosoficamente<) seu acento não cai sobre
a possibilidade humana na procura do transcendente mas sobre a presença
do transcendente no homem como possibilidade da procura. A iniciativa é
abandonada a Deus. Mais precisamente, enquanto o homem se entrega à
iniciativa da procura e queima no ardor dela as escórias da sua
humanidade inferior, deve reconhecer que a iniciativa não é sua, mas é
de Deus; que ele consegue relacionar-se com a transcendência divina
apenas porque ela se lhe revela, consegue amar a Deus só porque Deus o
ama. O esforço filosófico transforma-se em humildade religiosa: a
procura torna-se fé. A liberdade da iniciativa filosófica surge como
graça. A exigência de referir todo o esforço,
210

todo o valor humano à graça divina não é um puro resultado da polémica


contra os pelagianos, um resultado que negaria os motivos agostinianos
mais profundos, mas é exigência intrínseca da especulação agostiniana.
Tal exigência funda-se na relação com que, na personalidade de
Agostinho, se enlaçam a filosofia e a religião, a procura e a fé:
relação de tensão, pela qual se a-traem o ao mesmo tempo se opõem uma à
outra.

§ 162. SANTO AGOSTINHO: O HOMEM

A possibilidade de procurar a Deus e de amá-lo está radicada na própria


natureza do homem. Se fôssemos animais, poderíamos amar apenas a vida
carnal e os objectos sensíveis. Se fôssemos árvores não poderíamos amar
nada daquilo que tem movimento e sensibilidade. Mas somos homens,
criados à imagem do nosso criador que é a verdadeira Eternidade, a
eterna Verdade, o eterno e verdadeiro Amor; temos, portanto, a
possibilidade de voltar a ele, no qual o nosso ser não terá mais morte,
o nosso saber não terá mais erros, o nosso amor não terá mais ofensas
(De civ. Dei, XI, 28). Esta possibilidade de retornar a Deus na tríplice
forma da sua natureza, está inscrita na tríplice forma da natureza
humana, enquanto imagem de Deus. "Eu sou, eu conheço, eu quero. Sou
enquanto sei e quero; sei por ser e querer; quero ser e saber. Veja quem
pudor como nestas três coisas existe uma vida inseparável, uma única
vida, uma única mente, uma única essência e como a distinção é
inseparável e, todavia, existe". (Conf. XIII, 11). São os três aspectos
do homem que se revelam nas três faculdades da alma humana, a memória, a
inteligência e a vontade, as quais conjuntamente, e cada uma por si,
constituem a vida, a mente e a substância da alma. "Eu, diz Agostinho
(De trin., X, 18), recordo por ter memória, inteligên-

211

cia e vontade; entendo por compreender, querer e recordar; e quero


querer, recordar e compreendem. E recordo toda a minha memória, toda a
inteligência e toda a vontade e do mesmo modo compreendo e quero todas
estas três coisas; as quais coincidem plenamente e, não obstante a sua
distinção, constituem uma unidade, uma só vida, uma só mente e uma só
essência. Nesta unidade da alma que se diferencia nas suas faculdades,
cada uma das quais compreende as outras, está a imagem da trindade
divina, imagem desigual mas imagem.

A própria estrutura do homem interior torna, pois, possível a procura de


Deus. Que o homem seja feito à imagem de Deus significa, portanto, que o
homem pode procurar a Deus e amá-lo e relacionar-se com o seu ser. Deus
criou o homem a fim de que ele seja, dado que o ser, mesmo em grau
menor, é sempre um bem e o Ser supremo é o supremo Bem; mas o homem pode
afastar-se e decair do ser e, em tal caso, peca. A constituição do homem
como imagem de Deus, se lhe dá a possibilidade de se relacionar com
Deus, não lhe garante a realização necessária desta possibilidade. Com
efeito, o homem é, em primeiro lugar, o homem velho, o homem exterior ou
carnal que nasce e cresce, envelhece e morre. Mas, em segundo lugar,
pode ser também homem novo ou espiritual, pode renascer espiritualmente
e conseguir submeter a sua alma à lei divina. Também este homem novo tem
as suas idade que, contudo, não são dadas pelo transcorrer do tempo, mas
pelo seu progressivo aproximar do divino (De vera rel., 26). Todo o
indivíduo é pela sua natureza um homem velho, mas deve tornar-se um
homem novo, deve renascer para a vida espiritual- Este renascimento
apresenta-se-lhe como a alternativa em que deve escolher- ou viver
segundo a carne e debilitar e romper a própria relação com o ser, isto
é, com Deus e cair na mentira e no pecado; ou viver

212

segundo o espírito estreitando a sua relação com Deus e preparar-se para


participar na sua própria eternidade (De civ. Dei, XIV, 1, 4). Mas a
primeira escolha não é verdadeiramente uma escolha nem uma decisão. A
verdadeira escolha é aquela com o que o homem decide aderir ao ser, isto
é, relacionar-se com Deus. A causa do pecado, quer dos anjos rebeldes a
Deus quer dos homens, é uma só: a renúncia àquela adesão. "A causa da
beatitude dos anjos bons é que eles aderem àquilo que verdadeiramente é;
enquanto a causa da miséria dos anjos maus é que eles se afastaram do
ser e se voltaram para si próprios que não são o ser. O seu pecado foi,
pois, o da soberba." (Ib., XII, 6). Precisamente esta soberba da
vontade, que nos aparta do ser e nos ata ao que tem menos ser, é o
pecado, o qual, por isso, não tem causa eficiente mas apenas causa
deficiente: não é uma realização (effectio) mas uma defecção (defectio).
É renúncia àquilo que é supremo para adaptar-se àquilo que é -inferior.
Querer encontrar as causas de tais defecções é como querer ver as trevas
ou ouvir o silêncio: tais coisas só se podem conhecer ignorando-as,
enquanto que, conhecendo-as, se ignoram (1b., XII, 7).

§ 163. SANTO AGOSTINHO: O PROBLEMA DA CRIAÇÃO E DO TEMPO

Enquanto é ser, Deus é o fundamento de tudo o que é; é, portanto, o


criador de tudo. E de facto a mutabilidade do mundo que nos rodeia
demonstra que este não é o ser: teve, pois, de ser criado e leve de ser
criado por um ser eterno (Conf., XI, 4). Deus criou tudo através da
Palavra, mas a palavra de que fala a narração do Génesis não é a palavra
sensível, mas o Logos ou Filho de

213

Deus, que é coeterno como ele (1b., XI, 7). O Logos ou Filho tem em si
as ideias, isto é, as formas ou as razões imutáveis das coisas que são
eternas como eterno é ele próprio: e em conformidade com tais formas ou
razões são formadas todas as coisas que nascem e morrem (De div.
quaest., 83, q; 46). Estas formas ou ideias não constituem, portanto,
como queria Platão, um mundo inteligível, mas a eterna e imutável Razão,
através d a qual Deus criou o mundo. Separar o mundo inteligível de
Deus significaria admitir que Deus está privado de razão na criação do
mundo ou antes dela (Retract., 1, 3). As ideias divinas são comparadas
por Agostinho às raízes seminais de que falavam os Estoicos (§ 93). A
ordem do mundo, que depende da divisão das coisas em géneros e espécies,
é garantida precisamente pelas razões seminais que, implícitas na mente
divina, determinam, no acto da criação, a divisão e o ordenamento das
coisas singulares.
Alguns Padres da Igreja, por exemplo Orígenes, consideravam que a
criação do mundo era eterna não podendo implicar uma mudança na vontade
divina. O problema apresenta-se também * Agostinho. "Que coisa fazia
Deus antes de criar * céu e a terra"? Poder-se-ia responder ironizando:
"Preparava o inferno para quem quer saber demais"; mas seria iludir com
uma graça um problema sério. Na realidade, Deus é o autor não só daquilo
que existe no tempo, mas do próprio tempo. Antes da criação não havia
tempo: não havia portanto um "antes" e não tem sentido perguntar-se que
coisa fazia Deus "então". A eternidade está acima de todo o tempo: em
Deus nada é passado e nada é futuro porque o seu ser é imutável e a
imutabilidade é um presente eterno em que nada passa. Mas o que é o
tempo?

214

Certamente, a realidade do tempo não é nada permanente. O passado é tal


porque não é mais, o futuro é tal porque não é ainda; e se o presente
fosse presente e não se transformasse continuamente em passado, não
seria tempo, mas eternidade. Não obstante esta fuga do tempo, nós
conseguimos medi-lo e falamos de um tempo breve ou longo, quer, passado
quer futuro. Como e onde, efectuamos à sua medição? Agostinho responde:
na alma. Certamente não se pode medir o passado que não é mais, ou o
futuro que não é ainda; mas nós conservamos a memória do passado e
estamos à espera do futuro.
O futuro não é ainda, mas existe na alma a espera das coisas futuras; o
passado não existe já, mas existe na alma a memória das coisas passadas.
O presente está privado de duração e num instante transforma-se, mas
dura na alma a atenção às coisas presentes. O tempo encontra na alma a
sua realidade: no distender-se (distensio) da vida interior do homem
através da atenção, da memória e da espera, na continuidade interior da
consciência que conserva dentro de si o passado e tende para o futuro.
Partindo à procura da realidade objectiva do tempo, Agostinho consegue,
no entanto, aclarar a sua subjectividade. Uma vez mais o voltar da
consciência sobre si mesma surge como o método resolutivo de um problema
fundamental.

§ 164. SANTO AGOSTINHO: A POLÉMICA CONTRA O MANIQUEISMO

Alcançada a determinação da natureza do pecado, S. Agostinho estava à


vontade para afrontar o problema do mal no mundo e combater
vitoriosamente as afirmações dos Maniqueu. Aquilo que, segundo S.
Agostinho, desmente irrefutavelmente o próprio princípio do maniqueismo
é o carácter fundamental

215

de Deus: a incorruptibilidade que é própria de Deus na medida em que é o


próprio Ser. A argumentação do seu amigo Nebridio fazia ver o contraste
entre este carácter da divindade e as teses dos Maniqueu. Estes admitiam
que Deus devia combater eternamente com o principio do mal. Mas se, o
principio do mal pode prejudicar Deus, Deus não é incorruptível porque
pode receber uma ofensa. E se não pode ser ofendido, falta algum motivo
porque Deus tenha de combater (Conf., VII, -2). Assim o reconhecimento
da incorruptibilidade de Deus retira todo o fundamento à afirmação
maniqueia de um princípio do mal; mas ao mesmo tempo volta a propor em
toda a sua urgência e grandiosidade o problema do mal no mundo. Se Deus
é o autor de tudo e também do homem, donde deriva o mal? Se do mal é
autor o diabo, donde deriva o próprio diabo? Se o mal depende da matéria
de que o mundo é formado, porque é que Deus ao ordená-la deixou nela um
resíduo de mal? Qualquer que seja a solução a que se recorra, a
realidade do mal contradiz a bondade perfeita de Deus: não resta, pois,
mais que negar a realidade do mal, E tal é a solução por que se decide
Agostinho.

Tudo aquilo que é, enquanto é, é bem. Também as coisas corruptíveis são


boas, dado que se tais não fossem não poderiam, corrompendo-se, perder a
sua bondade.. Mas à medida que se corrompem, elas não perdem apenas a
bondade, mas também a realidade; dado que se perdessem a bondade
continuando a ser, chegaríam a um ponto em que seriam privadas de toda a
bondade e, contudo, seriam reais, portanto incorruptíveis. Mas
incorruptível é Deus e é absurdo supor que as coisas, corrompendo-se, se
aproximam de Deus. É necessário, pois, admitir que, à medida que se
corrompem, as coisas perdem a sua realidade, que

216

o mal absoluto é o nada absoluto e que o ser e o bem coincidem (Conf.,


VII, 12 ss).

Não pode, pois, haver outro mal no mundo senão o pecado e a pena do
pecado. Ora o pecado consiste, como se viu, na deficiência da vontade
que renuncia ao ser e se entrega ao que é inferior. Como não é um mal a
água, enquanto, pelo contrário, é um mal o precipitar-se voluntariamente
na água, assim nenhuma coisa criada, por humilde que seja, é um mal, mas
é mal entregar-se a ela como se fosse o ser e renunciar por isso ao ser
verdadeiro. (De Vera rel., 20). Da tese maniqueia que fazia do mal não
apenas unia realidade, mas um princípio substancial do mundo, Santo
Agostinho chegou à tese oposta: a negação total da realidade ou
substancialidade do mal e a sua redução à defecção da vontade humana
frente ao ser. O mal não é, portanto, realidade nem sempre no homem,
dado que é defecção, deficiência, renúncia, não-decisão, não-escolha;
também no homem é, pois, não-ser e

morte. No pecado, Deus que é o ser abandona a alma, precisamente como na


morte do corpo a

alma abandona o corpo (De civ. Dei, XIII, 2).

§ 165. SANTO AGOSTINHO: A POLÉMICA CONTRA O DONATISMO

A segunda grande polémica de Agostinho é a

que dirige contra o donatismo. Trata-se de uma polémica que levou


Agostinho a esclarecer vigorosamente pontos fundamentais da sua
construção religiosa. O donatismo (assim chamado de Donato de Casas
Negras, um dos seus corifeus), quando Agostinho foi consagrado bispo,
estendia-se pela África romana havia quase um século. Era um Movimento
cismático fundado no princípio da abso-

217

luta intransigência da igreja frente ao Estado. A Igreja é uma


comunidade de perfeitos que não devem ter contactos com as autoridades
civis. As autoridades religiosas que toleram tais contactos perdem a
capacidade de administrar os sacramentos * os fiéis devem considerá-los
traidores e renovar * baptismo e os outros sacramentos recebidos deles.
Estas afirmações dos Donatistas tornavam impossível toda a hierarquia
eclesiástica porque davam a

qualquer fiel o direito de indagar dos títulos do seu

superior hierárquico e negar-lhe, quando o julgasse oportuno, obediência


e disciplina. Além disso. ligando o valor dos sacramentos à pureza de
vida do ministro, expunham os próprios sacramentos a uma dúvida
contínua. Estabeleciam finalmente entre a Igreja e o Estado uma antítese
que estirilizava a

acção da Igreja numa pura negação.

Contra o donatismo, Agostinho afirma a validade dos sacramentos


independentemente da pessoa que os administra. É Cristo que opera
directamente através do sacerdote e confere eficácia ao sacramento que
lhe administra; não podem, portanto, existir dúvidas sobre tal eficácia.
Além disso a comunidade dos fiéis não pode restringir-se a uma minoria
de pessoas que se isolam do resto da humanidade. "0 sangue de Cristo foi
o preço do universo, não de uma minoria. Só a Igreja que levantou as
suas

tendas por toda a parte onde há vida civil, testemunha, com a sua
existência, a validade do Evangelho no mundo. E esta Igreja é a Igreja
de torna." Assim Santo Agostinho via na universalidade da Igreja a
demonstração de facto do valor da mensagem cristã e ao mesmo tempo
defendia essa universalidade contra a tentativa de a negar e de reduzir
* comunidade cristã, como queriam os Donatistas,
* um conventículo de isolados.

218

§ 166. SANTO AGOSTINHO, A POLÉMICA CONTRA O PELAGIANISMO

A terceira grande polémica agostiniana é a que dirige contra o


pelagianismo. Foi a polémica que teve maior importância na formulação da
doutrina agostiniana, levando Agostinho a fixar com extraordinária
energia e clareza o seu pensamento sobre o problema do livre arbítrio e
da graça.

O monge inglês Pelágio vivia em Roma nos primeiros anos do século V. Ali
teve, pela primeira vez, informação sobre a doutrina agostiniana da
graça expressa na famosa invocação a Deus: "Dá aquilo que mandas e manda
aquilo que queres" (Da quod jubes et Jube quod vis). Tendo Pelágio ido
depois a Cartago com o seu amigo Celestio, na altura em que à
aproximação dos Godos muitas famílias romanas se refugiavam em África,
as suas críticas ao agostinismo difundiram-se principalmente por obra de
Celestio, na própria grei do bispo Agostinho. O ponto de vista de
Pelágio consistia essencialmente em negar que a culpa de Adão tivesse
debilitado radicalmente a liberdade originária do homem e, portanto, a
sua capacidade de fazer o bem. O pecado de Adão é apenas um mau exemplo
que pesa, sim, sobre as nossas capacidades e torna mais difícil operar o
bem, mas não o toma impossível e principalmente não priva os homens da
possibilidade de reagir e de decidir-se pelo melhor. Para Pelágio, o
homem, quer antes do pecado de Adão, quer depois, é naturalmente capaz
de operar virtuosamente sem necessidade do socorro extraordinário da
graça. Mas esta doutrina levava a considerar inútil a obra redentora de
Cristo. Se o pecado de Adão não colocou o homem na impossibilidade de
salvar-se só com as suas forças, o homem não tem evidentemente
necessidade da ajuda sobrenatural que lhe trouxe a encarnação do Verbo,
nem tem necessi-

219

dade, por conseguinte, de fazer-se participe desta ajuda pela obra


mediadora da Igreja e dos sacramentos que ela administra.

Frente a uma doutrina que se apresentava tão destruidora para a


dogmática cristã e a obra da Igreja, Agostinho reagiu energicamente,
afirmando que com Adão e em Adão pecou toda a humanidade e que,
portanto, o género humano é uma só "massa condenada" e nenhum membro
dela se pode subtrair à devida punição a não ser pela misericórdia e
pela não devida graça de Deus (De civ. Dei, XIII, 14). E para justificar
a transmissão do pecado, Agostinho foi levado a defender, acerca da
origem da alma, não o criacionismo (dado que não se pode admitir que
Deus crie uma alma condenada), mas o traducianismo pelo qual a alma é
transmitida de pai a filho através da geração do corpo. O vigor com que
Agostinho defendeu estas teses levou-o a não hesitar diante de nenhuma
das consequências. Inclinou-se para um pessimismo radical sobre a
natureza e a possibilidade do homem, considerado incapaz de dar o mais
pequeno passo no caminho da elevação espiritual e da salvação; e foi
levado a insistir no carácter imperscrutável da escolha divina que
predestina alguns homens e condena os outros. Mas por mais que estas
conclusões pareçam paradoxais (e a própria Igreja católica teve de
mitigar-lhes o rigor), não há dúvida de que o princípio sobre o qual S.
Agostinho as funda tem na sua doutrina um alto valor, de todo
independente da polémica antipelagiana. Este princípio é a identidade da
liberdade humana com a graça divina. A vontade, segundo Agostinho, só é
livre quando não está escravizada pelo vício e o pecado; e é esta
liberdade que só pode ser restituída ao homem pela graça divina (lb.,
XIV, LQ. O primeiro livre arbítrio, aquele que foi dado a Adão,
consistia no poder não pecar. Perdida esta liberdade pelo pecado
original, a liber-

220

dade final, aquela que Deus dará como prémio, consistirá no não poder
pecar. Esta última liberdade -será dada ao homem como um dom divino,
dado que não pertence à natureza humana, e tornará esta última partícipe
da impecabilidade própria de Deus. Mas pois que a primeira liberdade foi
dada ao homem a fim de que ele procure a última e completa liberdade, é
evidente que só esta última exprime aquilo que o homem verdadeiramente
deve ser e pode ser. O não poder pecar, a libertação total do mal é uma
possibilidade do homem fundada numa dádiva divina: "0 próprio Deus é a
nossa possibilidade" diz Agostinho (Sol., 11, 1; De gratia Chr., 25).

Estas palavras de Santo Agostinho exprimem a entidade essencial da


liberdade e da graça. Aquilo que no homem é esforço de libertação,
vontade de procurar e amar a Deus é, na sua última possibilidade, a
acção gratificante de Deus. Agostinho não pode admitir, como faziam os
pelagianos ou os semipelagianos, uma cooperação do homem com Deus, dado
que o homem não está no mesmo plano de Deus. Deus é o Ser que lhe dá
existência, a Verdade que dá lei à sua razão, o Amor que o chama a amar.
Sem Deus o homem só pode afastar-se do ser, da verdade e do amor, isto
é, só pode pecar e condenar-se. Por isso ele não possui méritos próprios
que faça valer perante Deus. Os méritos do homem não são mais que dons
divinos; e o homem deve atribuí-los a Deus, não a si (De gratia et
libero arbítrio, 6). A iniciativa só pode pertencer a Deus porque Deus
como Ser, Verdade e Amor é a única força do homem. A graça divina
revela-se no homem como liberdade, como procura da verdade e do bem,
afastamento do erro e do vício, aspiração à impecabilidade final.
Verdadeiramente a vontade humana de libertação é acção de graça. S.
Agostinho concebeu a relação entre Deus
221

e o homem no modo mais intrínseco; e assim reconhece à iniciativa divina


todos os caracteres positivos do homem.

§ 167. SANTO AGOSTINHO: A CIDADE DE DEUS

A vida do homem singular é dominada pela alternativa fundamental: viver


segundo a carne ou viver segundo o espírito. A mesma alternativa domina
a história da humanidade. Esta é constituída pela luta de duas cidades
ou reinos: o reino da carne e o reino do espírito, a cidade terrena ou a
cidade do diabo, que é a sociedade dos impios, e a cidade celeste ou
cidade de Deus que é a comunidade dos justos.

Estas duas cidades nunca dividem nitidamente o seu campo de acção na


história. Nenhum período da história, nenhuma instituição é dominada
exclusivamente por uma ou por outra das duas cidades. Elas nunca se
identificam com os elementos particulares de que a história dos homens é
construída, dado que dependem apenas daquilo que cada homem singular
decide ser. "O amor de si levado até ao desprezo de Deus gera a cidade
terrena; o amor de Deus levado até ao desprezo de si gera a cidade
celeste. Aquela aspira à glória dos homens, esta coloca acima de tudo a
glória de Deus, testemunhado pela consciência... Os cidadãos da cidade
terrena são dominados por uma estulta cupidez de predomínio que os induz
a subjugar os outros; os cidadãos da cidade celeste oferecem os seus
serviços uns aos outros com espírito de caridade e respeitam docilmente
os deveres da disciplina social" (De civ. Dei, XIV, 28). Nenhuma marca
exterior distingue as duas cidades que estão misturadas desde o começo
da história humana e o estarão até ao fim dos tempos. Só interrogando-se
a si
222

próprio, cada um poderá averiguar a qual das duas pertence.

Toda a história dos homens no tempo é o desenvolvimento destas duas


cidades: ela divide-se em três períodos fundamentais. No primeiro os
homens vivem sem leis e não há ainda luta contra os bens do mundo; no
segundo os homens vivem sob a lei e por isso combatem contra o mundo,
mas são vencidos. O terceiro período é o tempo da graça em que os homens
combatem e vencem. Agostinho distingue estes períodos na história do
povo de Israel. Atenas e Roma são julgadas por Santo Agostinho
principalmente através do politeísmo da sua religião. Roma é a Babilónia
do Ocidente. Na sua origem está um fratricídio, o de Rómulo, que
reproduz o fratricídio de Caim do qual nasceu a cidade terrena. A
própria virtude dos cidadãos de Roma são virtudes aparentes, na
realidade são vícios porque a virtude sem Cristo não é possível (1b.,
XIX, 25).

O livro VIII do De Civitate Dei é dedicado ao exame da filosofia pagã.


Agostinho detém-se principalmente em Platão a quem chama "o mais
merecidamente famoso dos discípulos de Sócrates". Platão reconheceu a
espiritualidade e a unidade de Deus, mas nem sequer o glorificou e
adorou como tal, antes como os outros filósofos pagãos admitiu o culto
politeísta (lb., VIII, 11). As coincidências da doutrina platónica com a
cristã são explicadas por Agostinho com as viagens de Platão ao Oriente
durante as quais pôde conhecer o conteúdo dos livros sagrados (1h.,
VIII, 12). Quanto aos Neoplatónicos viu-se como o próprio Agostinho foi
orientado para o cristianismo pelos escritos de Plotino: eles ensinaram
a doutrina do Verbo mas não que o Verbo encarnara e se sacrificara pelos
homens (Conf., VII, 9). Est" filósofos entreviram, sem dúvida, ainda que
de maneira obscura, o fim do
223

homem, a sua pátria celeste, mas não puderam ensinar-lhe o caminho que é
o assinalado pelo apóstolo João: a encarnação do Verbo (De civ. Dei, X,
29).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 157. A principal fonte para a vida de Santo Agostinho são as


Confissões em 13 livros dos quais só têm carácter autobiográfico os
primeiros 10. Sobre a conversão de S. Agostinho ver especialmente:
TruMME, Augustins geistige Entwickelung in den ersten Jahren nach seiner
"Bekehrung", Berlim, 1908; ALFARIE, L'évolution intellectuelle de Saint-
Augustin, Paris, 1918. Bibliografia completa sobre o tema no artigo
Augustin de PoRTALiÉ no "Dictionnalre de Théologie catholique". Ver
também: BUONAIUTI, II Cristianesimo nell'Africa romana, Bari, 1928, p.
341 ss; PINCHERLE, SantIAgostino vescovo e teologo, Bari, 1930.

§ 158. As obras de Santo Agostinho em MIGNE, P. L., 32.1-47.1; no Corpus


seript. ecel. lat. da Academia de Viena; e no Corpus Christianorum,
Série latina, Turnhout-Paris. Além disso: Confissões, ed. Skutella,
Leipzig, 1934; De civitate Dei, ed. Dombart-Kalb, Leipzig, 1928-29;
Retractiones, ed. Ynoll, no Corpus de Viena.

O melhor estudo de conjunto sobre Santo Agostinho é GILSON, Introduction


à I'étude de Saint-Augustin, Paris, 1943. Além disso: DE PLINVAL, Pour
connaitre Ia pensée religieuse de Saint-Augustin, Paris,
1954; MARRou, Saint-Augustin et Ilaugustinisme, Paris,
1955.

§ 159. Sobre as relações entre a razão e a fé em Santo Agostinho:


GRABMANN, Die Geschichte der scholastichen Methode, 1, 1909, p. 125-143.

§ 161. Sobre o conceito de verdade: BoyEn, Llidée de vérité dans Ia


philosophie de Saint-Augustin, Paris,
1921; GUZZ0, Dai "Contra academicos" ai "De vera religione", Florença,
1925.

§ 162. Sobre as doutrinas morais: ROLAND-GosSELIN, Lcs morale de St.-


Augustin, Paris, 1925.

224
§ 163. Sobre a doutrina das razões seminais: WIE=, Geschichte der Lehre
von den Koimekrãften,
1914, p. 108-224.

§ 164. Sobre o maniqueismo: CUMONT, Recherches sur le manichéisme,


Bruxelas, 1908.

§ 165. Sobre o donatismo: BATTIFOL, Le catholicisme de Saint-Augustin,


Paris, 1920; BONAIUTI, Op. cit., p. 292 ss.

§ 166. Sobre a luta antipelagiana: DuCHESNE, Histoire ancienne de


IÊglise, Paris, 1910; BONAlUTI, La genesi della dottrina agostiniana
intorno al pecato originale, Roma, 1916; Guzzo, Agostinho contra
Pelagio, 2.1 ed., Turim, 1934; BU0NAlUTI, Il Cristianismo ne111 Africa
romana, p. 361 ss.

§ Sobre a cidade de Deus: SCHOLZ, Glaube und Unglaube in der


Weltgeschichte, 1911; TROELTSCH, Augustin, die chrL,@tliche Antícke und
das Mittelalter, Mónaco, 1915.

225

A úLTIMA PATRÍSTICA

§ 168. DECADÊNCIA DA PATRÍSTICA

A partir dos meados do século V a patrística perde toda a vitalidade


especulativa. No Oriente, a sua actividade sobrevive nas disputas
teológicas que, contudo, passam cada vez mais para o serviço da política
eclesiástica e perdem portanto todo o valor filosófico. No Ocidente, a
civilização romana rompeu-se sob os golpes dos bárbaros e não se formou
ainda a nova civilização europeia. O letargo do pensamento filosófico é,
na realidade, o letargo da civilização europeia. A cultura vive a
expensas do passado. O poder do criação diminuiu; permanece a actividade
erudita que se reduz à compilação dos estratos ou dos comentários e
parte de uma renúncia prévia a qualquer investigação original.

No Ocidente permanece, todavia, um núcleo de interesse laico pelas sete


artes liberais, o trivio (gramática, retórica, dialéctica) e o quadrivio
(aritmética, geometria, astronomia, música). O conteúdo deste interesse
manifesta-se em poucas obras que

227

compendiam na forma mais genérica a sabedoria da Antiguidade: a História


Natural de Plínio o Velho, o De officiis de Cícero, a Farsália de Lucano

e a Consolação da filosofia de Boécio. Devido a estas obras salva-se a


tradição humanística que é característica e que conduzirá ao
florescimento do século XIII.

§ 169. ESCRITORES GREGOS

Mais próximo do Neoplatonismo do que do cristianismo está, mesmo depois


da conversão, Sinésio de Cirena, nascido entre 370 e 375 e falecido por
volta de 413. Fora discípulo da neoplatónica Hipázia (§ 125) com a qual
manteve relações amigáveis mesmo depois. Em 409 foi nomeado bispo de
Ptolomaida com a condição de renunciar à mulher e às suas convicções
filosóficas. Algumas obras suas não mostram sinais do cristianismo. Tais
são: os discursos sobre o poder real; o escrito sobre o dom do
astrolábio, as narrações egípcias ou sobre a providência; o elogio da
calvície, sátira aos Sofistas que falam sem tom nem som; a apologia de
Dion Crisóstomo; um escrito sobre os santos. Têm carácter mais
estritamente cristão numerosas cartas, duas homilias, duas orações e
alguns hinos. Sinésio considera Deus neoplatonicamente como a unidade da
unidade e nega a ressurreição da carne e o fim do mundo.

Bastante próximo do neoplatonismo está também Nemésio que foi bispo de


Emessa na Fenícia e compôs, no final do século IV ou princípio do século
V, um escrito Sobre a Natureza do Homem, que se difundiu na Idade Média
através da versão latina feita no século XI provavelmente por Alfano
(1058-1085), arcebispo de Salerno. O homem é, segundo Nemésio, o traço
de união entre o mundo sensível e o mundo supra-sensível: pelo espírito
par-

228

tence ao mundo supra-sensível, isto é, ao mundo dos seres espirituais ou


anjos; pelo corpo pertence ao mundo sensível. Por isso o primeiro homem
não foi criado imortal nem mortal; podia tornar-se uma ou outra coisa e
cabia a ele escolher uma ou outra alternativa. Transgredindo o mandado
divino, torna-se mortal; mas pode de novo, retornando a Deus, participar
da imortalidade (De nat. hum., 1). Nemésio aceita a definição
aristotélica da alma como "enteléquia de um corpo físico que tem a vida
em potência". Como tal a alma é uma substância imaterial e incorpórea
que subsiste por si e não é, portanto, gerada no corpo ou com o corpo. A
sua união com o corpo não é uma mistura de substâncias mas uma relação
pela qual a alma está toda presente em todas as partes do corpo e o
vivifica do mesmo modo que o sol ilumina com a sua presença o ar (1b.,
3). A alma está dotada de livre arbítrio porque a sua natureza é
racional. Quem pensa pode também reflectir e quem reflecte deve também
poder escolher livremente (1b., 41). Foge à liberdade humana aquilo que
foge à reflexão: a saúde, as doenças, a -morte e assim sucessivamente
(1b., 40).

Quando as escolas retóricas do mundo grego se aproximavam já da ruína,


tiveram um breve florescimento as escolas da cidade síria de Gaza. Entre
os mestres desta escola dois têm um certo relevo e figuram como
apologetas do cristianismo. Um é Procópio, cuja vida decorre entre 465 e
528, que foi autor dos comentários do Velho Testamento; o outro é Encias
que viveu no mesmo tempo e que deve a sua celebridade na Idade Média ao
diálogo Teofrasto ou sobre a imortalidade da alma e sobre a ressurreição
do corpo, composto antes de 534. O escrito é dirigido contra a doutrina
da pré-existência da alma e da sua transmigração. As almas não existem
antes da sua união com o corpo, mas

229

são criadas por Deus no momento desta união. Deus criou todas as
inteligências incorpóreas de uma vez, mas cria diariamente as almas dos
homens.
Na mesma linha de pensamento navega o irmão de Eneias, Zacarias, que foi
bispo de Mitilene, dito o escolástico (isto é, o retórico) e morto antes
de 533. Zacarias é autor de um diálogo intitulado Ammonio, destinado a
combater a doutrina da eternidade do mundo. É notável o facto de que,
para negar a eternidade, Zacarias negue a necessidade do mundo,
procedimento que seguem todas as críticas do género que virão depois. O
mundo foi criado pela vontade de Deus, por isso não é o efeito
necessário da natureza divina e não é coeterno com Deus. À objecção de
que se Deus não tivesse criado o mundo ab aeterno, não seria o eterno
criador e feitor do bem, Zacarias responde que Deus tem em si, desde a
eternidade, a ideia do mundo e de todas as coisas que o compõem e também
a potência e a vontade de criá-lo. Um construtor é sempre construtor,
mesmo no momento em que não construa nada e um retórico é sempre tal
mesmo se nem sempre pronuncia discursos.

Contra a eternidade do mundo escreveu também uma obra o gramático


alexandrino João, dito Filipono pela sua incansável actividade. É também
autor de uma obra teológica intitulada Árbitro ou sobre a Unidade, de
uma outra, Sobre a Ressurreição do Corpo e de um comentário à narração
bíblica da criação, intitulado Sobre a Construção do Mundo. Este último
e o escrito Sobre a Eternidade conservaram-se; das outras duas obras
temos fragmentos conservados pelo seu adversário Leôncio de Bizâncio e
João Damasceno. João Filipono entendia por natureza a essência comum dos
indivíduos e por hipostasis ou pessoa a mesma natureza circunscrita à
existência singular de determinadas qualidades. Flor isso entendia a
unidade de substância

230

em Deus como a natureza comum das três hipóstasis e fazia assim, das
três pessoas divinas, três existências particulares, isto é, três
divindades. Ao lado desde trideísmo (que, por outro lado, teve neste
período, como no precedente, numerosos defensores) João admitia o
monofisismo no que respeita à encarnação. Não podem subsistir duas
naturezas numa única hipóstasis: na pessoa de Cristo não pode, portanto,
subsistir senão a natureza divina. O pressuposto destas interpretações
dogmáticas é a lógica aristotélica, à qual João dedicara um comentário:
de facto o significado de natureza e de hipóstasis é tirado de
Aristóteles. É curioso notar que quando a lógica aristotélica for de
novo empregada, por acção de Roscelino de Compiègne, na interpretação do
dogma da trindade, chegar-se-á à mesma conclusão trideIstica.

Ao tempo de Justiniano pertence Leôncio de Bizâncio que viveu entre 475


e 543 aproximadamente, autor de três livros contra os Nestorianos

o os Eutriquianos e de dois escritos contra Severo, o patriarca


monofisita de Antioquia. O fundamento das interpretações dogmáticas de
Leôncio é a lógica aristotélica filtrada através dos escritos dos
Neoplatónicos. Para salvar a interpretação ortodoxa do dogma da
encarnação, segundo o qual na única pessoa de Cristo subsistem as duas
naturezas, humana e divina, e para manter firme conjuntamente o
princípio aristotélico de que cada natureza não pode subsistir senão
numa única hipóstasis, Leôncio introduz o conceito de etúpostasi, isto
é, de uma natureza que subsista, não numa hipóstasis própria, mas na
hipóstasis de uma outra natureza. Tal é o caso da natureza humana de
Cristo, a qual não tem uma hipóstasis sua mas subsiste na hipóstasis
própria da sua natureza divina. Mas nem nesta doutrina, que se encontra
já em Cirilo, o máximo antagonista dos monofisitas, nem nas

231

outras, Leôncio atinge uma verdadeira originalidade de pensamento.

§ 170. PSEUDO-DIONíSIO O AEROPAGITA

Pelos princípios do século VI começam a ser conhecidos e citados alguns


escritos cujo autor se qualifica como Dionísio, aquele que, segundo os
Actos dos Apóstolos (XVII, 34), foi convertido ao cristianismo pela
prédica do apóstolo Paulo diante do Aerópago. Motivos internos e
externos demonstram que tais escritos não podem remontar para lá do fim
do século V e que, portanto, a sua atribuição a Dionísio é impossível.
Na verdade, a fonte principal destes escritos é o neoplatónico Proclo
(418-485), de quem o autor nalguns pontos inclui estratos textuais.

Como Proelo, Dionísio distingue uma teologia afirmativa, a qual,


partindo de Deus, se dirige para o finito com a determinação dos
atributos ou nomes de Deus e uma teologia negativa, a qual procede do
finito para Deus e o considera acima de todos os predicados ou nomes com
que podemos designá-lo. A este segundo tipo de teologia pertence o breve
tratado Teologia Mística, segundo o qual o mais alto conhecimento é o
não saber místico: só prescindindo de toda a determinação de Deus, se
compreende Deus no seu ser em si. No tratado Sobre os Nomes Divinos,
Dionísio insiste na impossibilidade de designar adequadamente a natureza
de Deus. Ainda que seja a unidade absoluta e o bem supremo de que todas
as coisas participam e sem o qual não poderiam ser, Deus é superior à
própria unidade tal como é concebida por nós: é o Uno super-essencial,
que é causa e princípio de todo o número e de toda a ordem. Elo não pode
ser designado verdadeiramente nem como unidade, nem como trindade, nem
como número,

232

nem como qualquer outro termo de que nos servimos para as coisas
finitas. O próprio -nome de Bem, que é o mais alto de todos, é
inadequado para a altura da perfeição divina. A emanação das coisas por
Deus, que tem em si as ideias ou modelos de toda a realidade, é
compreendida por Dionísio como criação. O mundo não é um estádio do
desenvolvimento de Deus, mas um produto da vontade divina. Contudo os
seres do mundo sã o todos manifestações ou símbolos de Deus e por isso a
sua consideração permite ao homem ascender a Deus e refazer assim no
inverso o caminho da criação.

Nos dois tratados Sobre a Jerarquia Celeste e Sobre a Jerarquia


Eclesiástica, Dionísio coloca Deus no centro das esferas em que se
ordenam todas as coisas criadas. Mais próximas dele estão as criaturas
mais perfeitas, enquanto nas esferas periféricas estão situadas as
criaturas menos perfeitas. A hierarquia celeste é constituída pelos
anjos que se distribuem em 9 ordens reunidas em disposições ternárias. A
primeira é a dos Tronos, dos Querubins e dos Serafins; a segunda é a das
Potestades, das Dominações e das Virtudes; a terceira é a dos Anjos, dos
Arcanjos e dos Principados (De celesti hier., 6 ss). Ã hierarquia
celeste corresponde a eclesiástica, disposta também em três ordens. A
primeira é constituída pelos Mistérios: Baptismo, Eucaristia, Ordens
sacras. A segunda é constituída pelos órgãos que administram os
mistérios: o Bispo, o Padre, o Diácono. A terceira é constituída por
aqueles que através destes órgãos são conduzidos à graça divina:
Catecúmenos, Energúmenos e Penitentes. O termo da vida hierárquica é a
deificação, a transfiguração do homem em Deus. Só se consegue através da
ascensão mística e o seu cume é o não saber místico, a muda contemplação
do Uno.

Os livros de Dionísio seguem a direcção neoplatónica, adaptando-a o


melhor possível às exigên-

233

cias cristãs, mas servindo-se contudo da terminologia dos mistérios, em


que se comprazia o neoplatonismo. Traduzidos por João Erígena, tiveram
na Idade Média uma difusão larguíssima e constituíram o fundamento da
mística e da angeologia medieval.

§ 171. MÁXIMO CONFESSOR. JOÃO DAMASCENO

Nos escritos do falso Dionísio se inspira Máximo, dito o Confessor,


nascido em Constantinopla em 580, falecido em 622. Foi o maior
adversário do chamado monoteletismo segundo o qual todos os actos de
Cristo dependeriam da sua vontade divina, da qual a natureza humana
seria o instrumento passivo. Esta doutrina foi depois condenada no VI
Concílio Ecuménico de 680; mas a luta contra ela custou a Máximo
perseguições e suplícios. Contudo, escreveu numerosas obras quase todas
na forma de comentários ou de recolhas de sentenças. Entre essas obras
estão os comentários ao Pseudo-Dionísio e a Gregório Nazianceno (Ambígua
in S. Gregorium theologum), opúsculos teológicos e várias recolhas ou
florilégios de sentenças. Segundo S. Máximo, o homem pode conhecer Deus
não em si próprio mas apenas através das coisas criadas de que Deus é a
causa. Por isso só pode chegar a determinar os atributos de Deus que as
próprias coisas revelam: a eternidade, a infinidade, a bondade, a
sabedoria e assim sucessivamente. No seu ser em si, Deus é inconcebível
e inexprimível. As próprias perfeições que nós lhes atribuímos, fundadas
na consideração das coisas criadas, estão abaixo da sua natureza e
podem, por isso, ser quer negadas quer afirmadas dele. A influência da
teologia negativa do Pseudo-Dionísio é aqui evidente. E é também
evidente na doutrina mística de S. Máximo. Se voltarmos as costas às
paixões

234

que contrastam com a razão e nos elevarmos ao perfeito amor de Deus,


podemos conseguir um conhecimento de Deus que transcende a razão e o
procedimento discursivo e no qual Deus se revela imediatamente. Mas a
este conhecimento de Deus não se pode chegar com a capacidade da
natureza humana, mas mercê da graça divina, a qual, todavia, não age por
si só, mas eleva e aperfeiçoa as capacidades que são próprias do homem
(Quaest. ad Thalassium, q. 59). O centro das especulações teológicas de
S. Máximo é o Deus-Homem. Para ele o Logos é a razão e o fim último de
todo o criado. A história do mundo efectua um duplo processo: o da
encarnação de Deus e o da divinização do homem. Este último só se Pôde
iniciar com a encarnação e com o f@n de restabelecer no homem a imagem
de Deus. Como princípio deste segundo processo, Cristo devia
necessariamente ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem. As duas
naturezas nele não se misturam nem rompem a unidade da pessoa e dado que
a cada uma das duas naturezas está unida a capacidade de querer, em
Cristo subsistiam duas vontades, a divina e a humana, mas a vontade
humana era levada à decisão e à acção pela vontade divina (Patr. Grec.,
91.*, col. 48).

João Damasceno resume as características do último período da patrística


e conclui a própria patrística no seu ramo oriental, retomando e
sistematizando os resultados. Não se conhece o ano do seu nascimento.
Sabe-se que pertencia a uma família cristã do Damasco na qual era
hereditário de pai para filho um ofício público por conta do governo
árabe; e João tinha de facto o nome árabe de Mansur. Por volta de 730
começa a sua actividade de escritor teológico a favor do culto das
imagens que fora proibido alguns anos antes por Leão o Isáurico. Quando
João foi condenado em 754 por um concílio iconoclasta de Constantinopla,
havia já falecido.

235

é a Fonte do ConheA mais famosa das suas Obras primeira


Ciniento, que se divide em três partes. A ,uma introdução filosófica que
segue de perto parte é a lógica de Aristóteles. A segunda é a
metafísica e mosta em boa parte urna história das
heresias, COIr sobre o Panário 'de Epifânio (@ 154). A terceira é
dedicada à exposição da fé Ortodoxa e com este @e (De fide ortodoxa) foi
traduzida título precisamente ndione de Pisa (falecido em 1194) para
latim por Burgu ndamentais da escolásticae tornou-se um dos textos
fu de urna

A obra de João Damasceno não passa compilação sendo a parte original


escassissima. Mas

tom o mérito de recolher e reordenar sistematicamente toda a especulação


da patrística grega que a Igreja reconheceu e fez sua. A sua obra é,
portanto, uma espécie de florilégio da própria patrística, unificada
pelo critério da ortodoxia. João fixa o principio da subordinação das
ciências profanas à teologia e

afirma designadamente que a filosofia deve ser a

serva da teologia segundo uma expressão que devia, ser retomada n@


escolástica por Pedro Damião. Como serva da teologia, a filosofia
fornece certos pressupostos fundamentais da fé e em primeiro lugar a
demonstração da existência de Deus. A demonstração é retirada por João
de outros esmitores, mas a formulação que ele lhe dá é aquela de que
partiram muitos escolásticos, entre eles S. Tomás. Em primeiro lugar,
tudo aquilo que é criado é mutável, dado que a própria criação é mudança
(do nada ao ser). Mas tudo aquilo que existe no mundo sensível ou
espiritual é mutável, portanto criado: supõe, portanto, um

criador, que não seja criado por sua vez mas incriado; e este é Deus. Em
segundo lugar, a conservação e

a duração das coisas supõem a existência de Deus, dado que elementos


diversos e contrastantes como o fogo, a água, a terra, o ar não poderiam
permanecer unidos sem destruir-se se não interviesse uma força
omnipotente para mantê-los e conservá-los juntos;
236

esta força omnipotente é Deus- Finalmente, a ordem

e a harmonia do mundo não podem ser produzidos pelo puro acaso e


pressupõeM um principio ordenador que é Deus (De fide orthod., 1, 3),
Mas se a

existência de Deus pode ser alcançada pela razão humana, a sua essência
é incompreensível. "A divindade, diz joão (Ib., 1, 4), é indeterminável
e incOm-

pode ser compreendido dela, a preensivel; e só isto


preensibilidade". sua indeterminabilidade e incOM trasta com a
sua Podemos negar dela tudo o que con r-lhe tudo aquilo

ao infinita e podemos atribui perfeiç~


inho que está implícito em tal perfeição; mas o cairi -guro é o negativo
porque todo O atributo mais se positivo é desigual a Deus. Trata-se,
como sc vê,

de noções familiares a toda a patrística oriental, que

masceno reproduz com as mesmas fórmulas. COM Da


ureza da alma igual procedimento aborda a nat humana que considera
naturalmente imortal, porque

o das substâncias incorpóreas e pertence ao númer


não é espirituais e é dotada. de livre, arbítrio. Isto

negado pela presciência divina, que tudo Prevê 'a'

não predetermina tudo: o mal depende unicamente do livre querer do homem


(Ib., 11, 30).

§ 172. ESCRITORES LATINOS

Os escritores latinos da última patrística caminham sobre os passos de


S. Agostinho e manifestam a mesma falta de originalidade especulativa
dos seus

contemporâneos gregos e a mesma tendência para expor, coordenar e


sistematizar doutrinas já conhecidas.

o iniciador do semipelagianismo foi JO" Cassiano, nascido por volta do


ano 360 na Gália

em 435, autor de um escrito sobre ,meridional, falecido regras dos


mosteiros e de unia a organização e as tiones, que é a rela0o dos
colóobra intitulada Colla

237

quios travados por ele e seu amigo Germano com eremitas egípcios.
Precisamente nesta obra, Cassiano considera a tese de que Deus ilumina e
reforça a boa vontade que nasce no homem, mas que esta vontade tem
origem apenas no esforço humano. Se o querer bem não basta ao homem,
quando não é socorrido pela graça divina, todavia esta graça só é dada
àquele que tem boa vontade. A tese de Cassiano difundiu-se largamente
nos mosteiros do Sul da Gália.

Claudino Mamerto, que foi padre em Viena no Delfinado e morreu por volta
de 474, é autor de um escrito em três livros, De statu anin2ac, composto
em 468 ou 469, no qual se defende a incorporeidade da alma humana. É
impossível que a ffima caia sob a categoria da quantidade, que é própria
do corpo, dado que o seu poder, memória, razão, vontade estão privados
de quantidade, portanto são incorpóreos. Ora estas faculdades da alma
são a sua própria substância, dado que toda a alma é razão, vontade,
memória; segue-se daqui que toda a alma está privada de quantidade e é
incorpórea (De statu an.,
111, 4). A alma é a vida do corpo e está, portanto, presente em todas as
partes do corpo; mas está presente num modo que exclui a sua
distribuição espacial porque está toda em todo o corpo e toda em cada
parte singular do corpo. A sua presença no corpo é idêntica à de Deus no
mundo. Portanto, a alma tem a mesma incorporeidade de Deus. Trata-se de
um resumo da demonstração agostiniana da imaterialidade da alma.

Por volta de 430, Marciano Capela compunha o seu escrito De nií,Ptiis


Mercurii et Philologiae, um prospecto de todas as artes liberais, que
subsistiu como um dos textos fundamentais da erudição medieval. Mas a
quem se deve a sobrevivência de uma parte notável da filosofia grega na
Idade Média é a Ãneio Mânho Torquato Severino Boécio, nascido

238

em Roma por volta de 480, cônsul de Roma sob o

rei Teodorico, depois caído em desgraça deste, encarcerado e morto em


524. Boécio empreendeu a tarefa de traduzir e interpretar todas as obras
de Platão o de Aristóteles e de demonstrar o seu acordo fundamental, mas
só em pequena parte conseguiu realizar este vasto projecto. Possuímos as
versões dos Analíticos 1 e 11, dos Tópicos (de que se perdeu um

comentário), dos Elencos Sofísticos e do De interpretatione com dois


comentários, das Categorias com um comentário. Temos, além disso, o
comentário à versão de Mário Vitorino do Isagogo de Porfírio, a sua
versão do Isagogo com um comentário e outros trabalhos de lógica, Entre
estes últimos são importantes os do silogismo hipotético dado que neles
Boécio, seguindo o próprio exemplo dos Aristotélicos, insere a lógica
estoica no tronco da lógica aristotélica; e foi por estes escritos e
pelos de Cícero que os escritores medievais tiveram conhecimento da
lógica estoica.

Mas a obra mais famosa de Boécio é o De consolatione philosophiae, que é


também pouco original porque resulta da utilização de várias fontes
entro as quais o Protréptico de Aristóteles, conhecido talvez através de
algum escrito mais recente que o

reproduzia. A obra está redigida em forma retórica o alegórica e a


filosofia é apresentada na figura de uma nobre dama que conforta Boécio
e responde às suas dúvidas. Nada de especificamente cristão se

encontra na obra e assim não faltou quem, em tempos recentes,


acreditasse que Boécio era pagão, ou então cristão só de nome, e que
portanto fossem apócrifos os opúsculos teológicos que nos chegaram dele
(De Sancta Trinitate; Utrum Pater et Filius et Spirictus Santus de
divinitate substantialiter praedicentur; Quomodo substantiae in eo quod
sint bonae sint; De fide; Liber contra Nestorium et Eutychen). Mas a
autenticidade destes escritos, com excepção do

239

De fide, está comprovada, não só pelo testemunho dos códices, como pelo
do contemporâneo de Boécio, Cassiodoro, e portanto não pode ser posta em
dúvida. Além disso, se o De consolatione não tem qualquer referência aos
mistérios do cristianismo, está impregnado por aquele espírito platónico
ou neoplatónico que os escritores da patrística consideram
substancialmente cristão. As traduções e os escritos lógicos de Boécio
asseguraram a sobrevivência da lógica aristotélica mesmo no período da
maior obscuridade medieval e fizeram dela um elemento fundamental da
cultura e do ensino medieval. Quanto à De consolatione, está entre as
obras mais famosas da Idade Média. Divide-se em 5 livros e é mista em
verso e prosa. O primeiro livro é uma espé cie de introdução na qual a
filosofia se apresenta a Boécio na forma de augusta matrona que vem
trazer-lhe conforto na triste condição em que se encontra, não por sua
culpa, mas por ter querido seguir a verdade
e a justiça. No segundo livro, a filosofia faz ver a Boécio que a
felicidade não consiste nos bens da fortuna, que são mutáveis e caducos
e que, mesmo quando se possuem, trazem consigo o perigo e o temor da sua
perda. A felicidade deve consistir numa condição que exclua qualquer
temor deste género e compreenda em si todos os bens que tornam o homem
suficiente por si próprio. O terceiro livro contém, precisamente, a
teoria da felicidade assim compreendida. É evidente que não pode
consistir nem na riqueza, nem no poder, nem nas honras, nem na glória,
nem nos prazeres. Nenhum destes é o bem supremo, o bem melhor de todos e
que torna o homem auto-suficiente. Defende pois que a felicidade
consiste no próprio Deus, enquanto é o ser de que não se pode conceber
melhor, portanto o bem supremo. Deus é conjuntamente a origem de todas
as coisas e o fundamento da verdadeira felicidade humana (111, 10). O
quarto livro examina em que

240

S. GREGÓRIO MAGNO

o mundo e modo Deus, como supremo bem, rege expõe uma teoria da
providência e do fado. A proVidência é o plano da ordem e da disposição
do mundo na inteligência divina; o fado é a própria ordem que por
aquele plano vem a ser determinada no mundo. "A providência é a
própria razão (ratio) divina que, constituída como supremo
Princípio de tudo, dispõe todas as coisas; o fado é a disposição
inerente às coisas mutáveis, disposição pela qual a Providência assinala
a cada coisa a sua ordem própria" (IV, 6). A ordem do fado, na
multiplicidade dos seus desenvolvimentos temporais, depende pois da
própria razão de Deus. Os problemas que nascem deste conceito da
Providência e do fado são examinados no quinto livro. A Providência e o
fado parecem excluir à primeira vista a liberdade, mas em tal caso seria
inútil para o homem a razão que serve para julgar e escolher livremente.
A resposta da filosofia ao problema é que, se Deus prevê tudo, não prevê
que tudo aconteça com necessidade. A previsão de um acontecimento não
implica que o acontecimento se deva realizar necessariamente. Além
disso, em Deus a previsão é inerente à natureza da sua vida, que é uma
eternidade privada de qualquer sucessão. Nele não existe nem o passado
nem o futuro e a sua ciência é o conhecimento total e simultâneo de
todos os acontecimentos que se verificam sucessivamente no tempo (V, 6).
Nele estão presentes também os

acontecimentos futuros, mas estão presentes no mesmo modo do seu


acontecimento; e aqueles que dependem do livre arbítrio estão presentes
precisamente na sua contingência (V, 6). A importância de Boécio para a
cultura medieval foi enorme. A De consolatione teve numerosíssimos
comentários, as obras lógicas introduziram a lógica aristotélica (como
se disse) no ensino e na cultura escolástica. Os seus opúsculos
teológicos forneceram às discussões teológicas medievais os conceitos, a
terminologia e o método. Com

241

tudo isto, Boécio não assume o lugar de pensador original. É um hábil


compilador e uni retóricO CIO-

adaptar à língua e à mentalidade quente que soube seguindo a


sombra de latina a especulação grega, S. Agostinho de quem tomou a
divisa: unir, nos

limites do possível, fé e razão,

Contemporâneo e amigo de Boécio mas de têmpera diferente foi Magno


Aurélio Cassiodoro, nascido cerca de 477 em Squillace na Calábria,
ministro de Teodorico e dos seus sucessores. Em 540 abandonou a corte e
retirou-se para o mosteiro de Vivario que fundara, para se dedicar à
vida espiritual e à ciência. Morreu em 570. De Cassiodoro têm grande
interesse histórico as cartas que escreveu por conta de Teo(10-

rico, cuja recolha leva o nome@de Variae, e a História dos godos de que
só nos chegou um estrato A obra mais importante, que escreveu no
claustro, são as

Istitutiones divinarum et saecularium lectiOnum em

dois livros: o primeiro indica os autores que são estudados Corno guias
das disciplinas teológicas; o

segundo é uni manual das sete artes liberais. A obra

devia servir aos monges e foi na Idade Média um dos manuais mais usados.
Num breve escrito, De a?úma, Cassiodoro propõe-se demonstrar, nas
pegadas de Claudiano Mamerto, a incorporeidade da alma humana. O escrito
reproduz os argumentos de Mamerto que, por sua vez, como se viu, foram
retirados de S. Agostinho.

A última figura da patrística é verdadeiramente


O papa Gregório Magno, nascido em Roma provavelmente em 540, consagrado
pontifico em 590, falecido em 604. Documento da actividade papal de
Gregório é o Registrum epistolarum, colecção das suas cartas Oficiais. O
Uber regulae pastoralis estabelece a missão do pastor de almas. Os
Diálogos tratam da vida e dos mil@gres dos diferentes homens pios de
Itália, o mais conhecido dos quais é S. Bento de Nórcia. Gregório
escreveu também uma exposição do livro de Job e

242

duas colectânias de homilias sobre os Evangelhos e sobro Ezequiel. A


parte especulativa de todos estes escritos é muito restrita. A
importância de Gregório está toda no ter procurado conservar, num
período de decadência total da cultura, as conquistas dos séculos
passados. O tempo em que vivia parecia ter levado à destruição total da
cultura e de to-da a civilização e prenunciar o fim do mundo. "As
cidades estão despovoadas, escrevia Gregório (Dial., 111, 38), as
aldeias arrasadas, as igrejas queimadas, os mosteiros dos homens e das
mulheres destruidos, os campos abandonados pelos homens estão privados
de quem os cultive, a terra está deserta na solidão e nenhum
proprietário a habita, as bestas ocuparam os lugares onde antes se
aglomeravam os homens. Não sei o que acontece nas outras partes do
mundo. Mas na terra em que vivemos, o fim do mundo não só se anuncia,
mas já se mostra em acto". A desolação de uma civilização quebrada e
despodaçada não se
podia descrever melhor. Nesta desolação, a cultura mantém-se viva apenas
nalguma figura solitária de erudito que a atinge nas obras do passado e
a transmite em rudes e desordenados compêndios.

Assim Isidoro de Sevilha, nascido cerca de 570 e falecido em 636, compôs


uma série de obras que deviam servir às escolas abaciais e episcopais
onde se

formavam os clérigos. Estas obras têm um carácter de pura compilação:


são justapostas noções heterogéneas sem sequer uma tentativa de
unificação. No De natu@a rerum Isidoro expõe a astronomia e a medicina
tiradas das Questioni naturali de Séneca. No De ordine

creaturarum descreve a hierarquia dos seres espírituai,s, segundo o


modelo neoplatónico. Nas Sententiae faz a história da humanidade desde a
criação e trata da graça, das condições da vida terrestre do homem e de
direito natural. A obra mais célebre são os 20 livros de Origini ou
Etimologias, uma espécie de enciclopédia, onde está condensado todo o
saber do

243

passado, das artes liberais à agricultura e às outras artes manuais.


Grande parte desta enciclopédia é destinada a investigações gramaticais,
mas não se descura aquilo que pode ser útil a uma educação filosófico-
teológica. Há entremeados estratos retirados das obras de escritores
clássicos e dos padres da Igreja, em particular de Gregório Magno. A
filosofia é definida com os Estoicos como "a ciência das coisas humanas
e divinas" e é dividida em física, ética e lógica. Através da obra de
Isidoro, de Sevilha os resultados da ciência antiga eram salvos do
naufrágio e destinados a alimentar o trabalho intelectual dos séculos
seguintes.

A mesma natureza têm os escritos de Boda o Venerável, nascido em 674 em


Inglaterra, morto em
735 no claustro de Jarrow. Boda forneceu ao catolicismo inglês o mesmo
arsenal intelectual que Isidoro forneceu ao espanhol. O seu De natura
rerum, baseado principalmente na obra de Plínio o Velho, dá-nos a mesma
imagem do mundo que o tratado homónimo de Isidoro. Boda é também autor
de escritos gramaticais e cronológicos e de uma História eclesiástica da
gente dos Anglos que vai até 731. Do ponto de vista filosófico, Boda
inspira-se nas obras de S. Agostinho. Em particular considera que a
matéria do mundo contém as sementes de todas as coisas e que delas, como
de causas primordiais, se desenvolvem no curso do tempo todos os seres
do mundo.
O homem é um microcosmo; a história divide-se em partes correspondentes
aos sete dias da criação. Boda é um outro anel da cadeia através da qual
a

cultura antiga se transmite à Idade Média.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 168. Sobre a história deste período: DAWSON, Les origines de I'Europe,


Paris, 1934. Sobre os escritores gregos deste período: KRUMBACHER,
Geschichte der byzantinische Literatur, 2.1 edição, 1897.

244

§ 169. Os escritos de Sinésio in P. G.@ 66.o; de Nemésio in P. G.@ 40.o9


504-817 (tradução latina do De natura hominis -a cargo de Holzinger,
Leipzig, 1887); de Procópio de Gaza in P. G., 87.1 p. I-III; de Eneias
de Gaza e de Zacarias Escolástico in P. G.@ 85.% 871-1004; de João
FilipGno, edição teubneriana do De mundi aeternitate, a cargo de Rabe,
1899, e do De opificio mundi, a cargo de Reichardt, Leipzig, 1897; de
Leõncio de Bizâncio in P. G., 86.o, p. I-U. - JAEGFR, Nemesios von
Nemesa, Berlim, 1914.

§ 170. As obras do falso Dionísio in P. G.@ 3.o-4.o. Sobre o carácter


pseudo-epigráfico dos escritos: STIGLMAYR in "Hist. Jahrb.", 1895, 253-
273, 721-748; KOCH, in "Theal. QuartaIschr.", 1895, 353-420, 1896, 290-
298; Forschungen zur christ. Litteratur-und Dogmengeschichte, 1, 2-3,
Mogúncia, 1900. Sobre a doutrina de Dionísio: M-ULLER, nos "Beitrãge" do
Baeumker, XX, 3-4; RoQuEs, LIunivers dionysien. Structure hiérarchique
du monde selon le Pseudo-Denys, Paris, 1954 (com bibl.).

§ 171. Os escritos de Máximo Confessor in P. G.,


90.---91.1; de João Damasceno in P. G., 94.o-96.,. Sobre João Damasceno:
PRANTL, Gesch. der Logik, 1, 657-658; GRABMANN, Gesch. der scholast.
Methode, 1, 108-113; 11,
93 ss., 389 ss.

§ 172. Os escritos de Cassiano in P. L., 49.o-50.* e no Corpus de Viena,


13., e 17.1; os de Mamerto in P. L., 53.,, 697-780 e no Corpus de Viena,
11.1. o escrito de Marciano Capella, ed. Eyssenhardt, 1866. As obras de
Boécio in P. L.@ 63.---64.o e no Corpus de Viena,
48.o e 67.o; os Opúsculos Teológicos, ao cuidado de STEWART e RAND,
Londres, 1926.

Sobre a autenticidade dos escritos teológicos e o testemunho de


Cassiodoro: USENER, Anecdoton Holderi, Bonn, 1877. Sobre a não
autenticidade do De fide: RAND, in "Jahrbucher für klass. Philol.",
supl., 1901,
405-461. Sobre as obras lógicas de, Boécio: GRABMANN, Die Gesch. der
scholast. Methode, 1, 149-160; 11, 70-72; DCRR, The Propositional Logie
of Boethius, Amsterdão,
1951; VANN, The Wisdom of Boethius, Londres, 1952.

As obras de Cassiodoro in P. L., 69.---70.1; de Gregório Magno in P. L.,


75.---79.1; de IsidorG in P. L.,
81.---84.o; de Beda in P. L., 90-95.o.

Sobre todos: bibliografia especial in UEBERWEG-GEYFR, Die patr. und


schol. Philos., Berlim, 1928, p. 669-672; e in VASOLI, La filosofia
medievale, Milão,
1961, p. 516 ss.

245

íNDICE

XII - A ESCOLA PERIPATÉPTICA ... ... 7

§ 86. Teofrasto, ... ... ... ... ... 7 §87. Outros


discípulos de Aristóteles 8 §88.
Estratão ... ... ... ... ... ... 9

Nota bibliográfica ... ... ... 10

XM-O ESTOICISMO ... ... ... ... ... 11

§89. Características da Filosofia pós-

-Aristotética ... ... ... ... ... 11 §90. A escola estoica


... ... ... ... 12 §91. Característica da Filosofia estoica
15 §92. A Lógica ... ... ... ... ... 16 §93. A
Física ... ... ... ... ... 23 §94. A Psicologia ...
... ... ... ... 27 §95. A
ntica ... ... ... ... ... ... 29

Nota bibliogrãfica ... ... ... 35

XIV -0 EPICURISMO ... ... ... ... ... 37

§ 96. Epicuro ... ... ... ... ... ... 37 § 97. A escola
epicurista ... ... ... 38

247

§ 98. Características do epicurismo § 99. A Canónica ... ... ... ... §


100. A Física § 101. A Ética ... ... ... ... ...

Nata bibliográfica ... ...

XV-0 CEPTICISMO ... ... ... ...

§ 102. Características do cepticismo § 103.


Pirro ... ... ... ... ... § 104. A média
Academia ... ... § 105. A nova Academia ... ... § 106.
Os últimos cépticos ... ... § 107. Sexto
empírico ... ... ...
Nota bibliográfica ... ...

XVI --0 ECLECTISMO . . ... ... ...

§ 108. Características do Eclectismo § 109. o estoicismo Ecléctico ...


§ 110. o Platanismo Eclético ... § iii. o Aristotelismo Ecléctico

248

§ 112. A Escola Cinica ... ... ... ... 73 § 113. Séneca


... ... ... ... ... ... 74 § 114. Musónio.
Epicteto ... ... ... 77 § 115. Marco
Aurélio ... ... ... ... 79

Nota bibliográfica ... ... ... 81

XVII --PRECURSORES DO NEOPLATO-

NISMO ... ... ... ... ... ... ... 83

§ 116. Características da Filosofia na

época Alexandrina ... ... ... 83 § 117. Os Neopitagóricos


... ... 84 § 118. O Platonismo médio ... ...
86 § 119. A Filosofia greco-judaica ... 88 § 120. Filon
de Alexandria ... ... ... 89

Nota bibliográfica ... ... ... 91

XVIII -0 NEOPLATONISMO ... ... ... .. 93

§ 121. A "Escolãstica" Neoplatónica ... 93 § 122. Plotino:


Deus ... ... ... ... 95 § 123. Plotino: as emanações ... ... 97

249

§ 124. Plotino: a consciência e o retorno a


Deus ... ... ... ... 98 § 125. A escola siriaca
... ... .. 1 100 § 126. Aescola de Atenas ... ... ...
101 § 127. A doutrina de Proclo ... ... 103

Nota bibliográfica ... ... ... 105

SEGUI-4DA PARTE

FILOSOFIA PATRISTICA

1-0 CRISTIANISMO E A FILOSOFIA 109

§ 128. A Filosofia grega e a tradição

cristã ... ... ... ... ... ... 109 § 129. Os evangelhos
sinópticos ... ... 111 § 130. As "cartas" Paulinas ...
... 114 § 131. O quarto evangelho ... ... ... 116 § 132.
A Filosofia cristã ... ... ... 117
Nota bibliográfica ... ... ... 119

250

A PATRISTICA DOS DOIS PR=IROS SÊCULOS ... ... ... ... ... ...
121

§133. Caracteristicas da Patristica ... 121

§134. Os padres Apologetas ... ... 123 §135. Justino ...


... ... ... ... ... 124 §136. Os outros padres Apologetas
... 126 §137. A Gnose .. . ... ... ... ... 130 §138. A
polémica contra a gnose ... 134 §139. Tertuliano ... ...
... ... ... 139 §140. Tertuliano: as doutrinas ... ... 142
§141. Apologetas latinas ... ... ... 146

Nota bibliográfioa ... ... ... 153

III -A FILOSOFIA PATRISTICA NOS SÊ-

cULOS M E IV ... ... ... ... ... 157

§142. Caractexisticas do período ... 157 §143. Clemente de


Alexandria ... ... 158 §144. Origenes: vida e -escritos
... 161 §145. Orígenes: Fé @e gnose ... ... 163 §146.
Origenes: Deus e o mundo ... 165 §147. Origenes: o destino
do hom@em 169

251

§118. Sequazes e adversários de


Orígenes ... ... ... ... ... ... 172 §149. Basílio o
grande ... ... ... 177 §150. Gregório Nazianceno
... ... 179 §151. Gregõrio de Nisa: a Teologia ... 181
§152. Gregório de Nisa: o mundo e o

homem ... ... ... ... ... ... 185 §153. Gregório de Nisa:
a Apoca-

tástasis ... ... ... ... ... 187 §154. Outros padres
orientais do sé-

culo IV ... ... ... ... ... 190 §155. Os padres latinos
do IV século 192

Nota bibliográfica ... ... ... 194

IV -SANTO AGOSTINHO ... ... ... ... 197

§ 156. A figura histórica ... ... ... 197 § 157. A vida


... ... ... ... ... ... 199 § 158. As
obras ... ... ... ... ... 202 § 159. Características da
investigação

Agostiniana ... ... ... ... ... 204 § 160. O fim da procura
Deus e a
alma ... ... ... ... ... ... 205

252

§ 161. A procura de Deus ... ... ... 208 § 162. O homem


... ... ... ... ... 211 § 163. O problema da criação e do

tempo ... ... ... ... ... ... 213 § 164. A polémica contra
o mani-

queísmo ... ... ... ... ... 215 § 165. A polémica contra
o donatismo 217 § 166. A polémica contra o
pelagia-

nismo ... ... ... ... ... ... 219 § 167. A cidade de Deus
... ... ... 222

Nota bibliográfica ... ... ... 224

V-A CLTIMA PATRISTICA ... ... ... 227

§ 168. Decadência da patrística ... 227 § 169.


Escritores gregos ... ... ... 228 § 170. Pseudo-Dionísio o
ae@roípagita ... 232 § 171. Máximo confessor. João Da-

masceno ... ... ... ... ... 234 § 172. Escritores


latinos ... ... ... 237

Nota bibliográfica ... ... ... 244

253

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