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Logic, Language and Knowledge.

Essays on Chateauriand’s Logical Forms


Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e

CDD: 149.7

Jogos de palavras
ULYSSES PINHEIROS
Departamento de Filosofia
Universidade Federal do Rio de Janeiro/Pesquisador CNPq
RIO DE JANEIRO, RJ
ulyssespinheiro@gmail.com

Resumo: Partindo das referências diretas a Espinosa nos Ensaios de Teodiceia, veremos que o exame
atento do modo como Leibniz recebeu, criticou e eventualmente assimilou as teses espinosanas pode ser
usado como um princípio hermenêutico para compreender a elaboração de seu próprio sistema.
Palavras-chave: Leibniz, Espinosa, monismo, determinismo, liberdade.

Abstract: By considering the straightforward references Leibniz makes to Spinoza in his Theodicy, we
may show that close examination of how Leibniz received, criticized and eventually assimilated the
theories of Spinoza can be used as a hermeneutical principle for understanding the development of his
own system.
Key-words: Leibniz, Spinoza, monism, determinism, freedom.

“São apenas jogos de palavras em tor-


no do termo necessidade”.
G.W. Leibniz, Extraits de Spinoza 1

“Não se pode tentar desconstruir essa


transcendência sem embrenhar-se, ta-
teando através dos conceitos herda-
dos, no inominável”.
Jacques Derrida, A voz e o fenômeno 2

1 Leibniz (Grua, I, 279).


2 Derrida (1994), pp. 87-88.

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Desde o momento em que finalmente pôde ler a Obra Póstuma de


Espinosa, no começo de 1678 3 , Leibniz a comentou em cartas, rabis-
cou anotações à margem do texto, sublinhou frases e expressões, trans-
creveu algumas de suas passagens (tendo em vista produzir um extrato
ou resumo de leitura 4 ) e analisou criticamente suas teses centrais. Essa
leitura não foi realizada de uma só vez, mas retomada ao longo do tem-
po. Como era natural, ele não deu uma atenção igual às mesmas passa-
gens nas diversas ocasiões em que retomou sua leitura e realizou as a-
ções listadas acima. Ao percorrermos as diversas reações de Leibniz ao
texto da principal obra de Espinosa, a Ética 5 (algumas vezes, inscritas no
próprio texto impresso, seja na forma de notas manuscritas ou de tre-
chos sublinhados), constatamos que há apenas uma única interseção
entre todas elas: a Proposição 17 da Parte I, com seus dois Corolários e
seu Escólio 6 . Talvez isso seja a indicação de que precisamente essa Pro-
posição desempenhou uma função central na leitura leibniziana, e de
que haveria, no fato de que sua atenção foi repetidamente capturada
por ela, a possibilidade de reconhecer uma sua característica que nos

3 Como nota Jonathan Israel, Leibniz foi um dos primeiros leitores da Obra
Póstuma – Schuller, membro do círculo dos amigos de Espinosa que editou e
publicou seus textos ao longo do ano da morte do autor, em 1677, enviou-lhe
um exemplar no início de 1678. Cf. Israel (2001), Cap. 16: “Publishing a Ban-
ned Philosophy”, pp. 275-294.
4 Leibniz comumente escrevia extratos dos livros mais significativos que lia.

Cf. Friedmann (1962), p. 138.


5 Cf. Carta a Justel, 4 de fevereiro de 1678: “Les Œuvres posthumes de feu M.

Spinosa ont été enfin publiées. La plus considérable partie est Ethica,
composée de cinq traités… J’y trouve de quantité de belles pensées conformes
aux miennes, comme savent quelques-uns de mes amis qui l’ont été aussi de
Spinosa” (trecho citado por Friedmann (1962), p. 133).
6 Necessariamente, apenas elementos retirados da Parte I da Ética poderiam

ser comuns a todos esses registros, uma vez que um deles, e na verdade o mais
importante, é um comentário extenso que abrange apenas essa primeira Parte
do livro (ele encontra-se em G I, 139-150).

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ajudaria a decifrar os comentários, variados e inconstantes, feitos sobre


todas as outras proposições do livro – como se encontrássemos aí um
elemento solar em torno do qual gravitariam as demais anotações e
marcas periféricas 7 . Mas pouco importa aqui decidir sobre essa especu-
lação. Será o bastante observar, ao longo dessas diversas ações realiza-
das por Leibniz, o modo como ele sucessivamente leu a Proposição 17,
deixando que elas produzam um certo efeito – uma espécie de imagem
residual de Espinosa que ressalta do esboço incompleto dos anos ante-
riores 8 e passa a compor um retrato no interior do pensamento leibni-
ziano. Essa figuração no pensamento permitirá, melhor do que qualquer
hipótese sobre uma suposta e indecidível centralidade da Proposição

7 Embora de forma mais discreta, Friedmann endossa essa tese, pelo menos

no que diz respeito ao que é provavelmente o mais antigo grupo de anotações,


editado por Grua (I, p. 277-284): “La réaction de loin la plus intéressante est
celle que manifeste Leibniz au célèbre scholie de la proposition XVII du livre I
sur l’entendement et la volonté de Dieu”; e mais adiante: “Mais cela ne lui
suffit pas, et il se retourne encore, tenacement, vigoureusement, contre cette
proposition et son scholie, dont la teneur choque profondément ses pensées
sur Dieu dans ses rapports avec l’univers et l’homme” (Friedmann, 1962, p.
138).
8 Leibniz menciona Espinosa pela primeira vez em 1669, em carta de 30 de

abril a Jacob Thomasius: ele comenta, não muito favoravelmente, Os princípios


da filosofia de Descartes. Em 1670, com a publicação do Tratado teológico-político,
Leibniz envolve-se em uma intensa troca de cartas, principalmente com cor-
respondentes que, como ele, viam no livro um ataque à religião. No ano, se-
guinte, porém, escreve a Espinosa uma carta cordial (a única que restou da
correspondência entre os dois filósofos, publicada, a contragosto de Leibniz,
na edição da Opera Posthuma do filósofo herético). Em Paris, entre os anos de
1672 e 1676, fez contatos com membros do “círculo espinosista” – principal-
mente o jovem matemático e cientista Tschirnhaus, cuja indiscrição hesitante
lhe permitiu os primeiros contatos com a expressão máxima da obra de Espi-
nosa, o manuscrito da Ética, que circulava entre poucos no movimento “radi-
cal” subterrâneo que se formava então na Europa. Ainda em busca de Espino-
sa, Leibniz faz um longo desvio de sua viagem de Paris até Hanover, onde
ocuparia o cargo de bibliotecário da Corte, passando por Haia para conversar
pessoalmente com o autor do livro tão ansiosamente aguardado.

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17, circunscrever os limites do pensamento de Leibniz, traçando como


fronteira negativa sua relação com Espinosa e com o “espinosismo”.

***

Antes de começar esse percurso, assinalando as datas e circuns-


tâncias nas quais essas ações se realizaram, é preciso, porém, lembrar as
principais teses apresentadas por Espinosa na Proposição 17; essa últi-
ma tem a seguinte redação: “Deus ex solis suae naturae legibus et a nemine
coactus agit” (“Deus age exclusivamente pelas leis de sua natureza e sem
ser coagido por ninguém” 9 ). A oposição entre ação e coação, presente
no enunciado, remete implicitamente para a Definição 7 da Parte I, que
tem por objeto a liberdade 10 , o que é tornado explícito pela conclusão
do segundo Corolário dessa mesma Proposição 17: “Adeoque (per defin.
7) solus [Deus] est causam libera” (“Logo (pela def. 7), só ele é causa li-
vre”). Que a Proposição 17 tenha como tema a liberdade de Deus é um
dado significativo para explicar, se quiséssemos explicar esse fato, a
importância concedida a ela por Leibniz. Para que isso ficasse claro,
entretanto, não bastaria entender sobre o que essa proposição discorre –
dever-se-ia entender também, e talvez sobretudo, como ela procede para
demonstrá-lo. Embora o conteúdo da Proposição 17 seja relativamente
simples (dado, evidentemente, tudo o que foi demonstrado antes), sua
função é complexa; de fato, trata-se de uma complexidade herdada da
Proposição que a antecede imediatamente. A Proposição 16 marca, pe-
lo menos segundo Martial Gueroult a interpreta 11 , um ponto de infle-

9 Utilizo a tradução da Ética de Tomaz Tadeu (2008). Para o texto latino, utili-

zo a Ethica Ordine Geometrico demonstrata (1999).


10 Definição 7: “Ea res libera dicitur, quae ex sola suae naturae necessitate

existit et a se sola ad agendum determinatur; necessaria autem, vel potius coacta,


quae ab alio determinatur ad existendum et operandum certa ac determinata
ratione” (grifo meu).
11 Gueroult (1968), Cap. VIII: “Le Dieu cause”, p. 243. Deve-se notar que a

Proposição 16 não recorre a nenhuma outra proposição anteriormente de-

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xão na ordem das razões do texto: passa-se da determinação da essência


de Deus considerada em si mesma para uma investigação sobre Deus
visto como causa universal de todas as coisas (i.e., de si mesmo e de
todos os seus modos), investigação essa que rege todo o restante da
Parte I, desembocando na demonstração da equivalência entre essência
e potencia divinas em suas proposições finais. Um novo elemento en-
tão junta-se à constatação de que o tema da Proposição 17 é a liberda-
de, a saber: a compreensão de que essa última será explicada no contex-
to de um discurso sobre Deus considerado como potência absolutamente
infinita de produzir tudo aquilo que Ele pode produzir (ou, o que é o
mesmo, tudo o que é logicamente possível). Em outras palavras, a conci-
liação entre liberdade e necessidade, anunciada na Definição 7, encon-
tra aqui seu local de demonstração.
Além de marcar um ponto de inflexão no texto de Espinosa, a
Proposição 17, como sugere Georges Friedmann, também marca um
ponto de inflexão em uma das anotações leibnizianas sobre a Parte I da
Ética 12 . Nesse texto, segundo Friedmann 13 , as observações sobre as
Proposições 1 a 16 são mais simpáticas a Espinosa, muitas vezes procu-
rando aperfeiçoar ou até mesmo complementar suas demonstrações 14 ,
enquanto os comentários sobre as Proposições 17 a 36 são mais impa-

monstrada (seu único pressuposto é a Definição 6), tendo, assim, um caráter


axiomático; de fato, sua Demonstração começa precisamente por chamar a
atenção do leitor para essa sua auto-evidência (e, portanto, para a dispensabili-
dade da própria Demonstração): “Esta proposição”, diz aí Espinosa, “deve ser
evidente para qualquer um”.
12 O que se encontra reproduzido em G I, 139-150. Falaremos desse texto

mais adiante.
13 Friedmann (1962), p. 145.
14 É interessante notar também que, sobretudo nos comentários a esse grupo

inicial de Proposições, Leibniz muitas vezes se mostra hesitante em suas to-


madas de posição contra Espinosa: formula objeções, mas imagina respostas
possíveis de seu interlocutor imaginário; nega teses, mas se pergunta se elas
não seriam defensáveis, etc. (é exemplar, nesse sentido, seu comentário tortuo-
so sobre a Proposição 2).

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cientes, contendo críticas ásperas à forma das demonstrações, razão


pela qual Friedmann chega a sugerir que eles foram redigidos em uma
época posterior. Essa hipótese não é inteiramente convincente, pois,
como vimos, o tema tratado a partir da Proposição 16 talvez já fosse
suficiente para explicar a mudança no tom das críticas; quer aceitemos
ou não que a Proposição 17 representa uma espécie de novo começo
cronológico da leitura, retomada após algum tempo de meditação, é
certo que, em um sentido ou em outro, ela é um novo princípio lógico
que Leibniz procurou negar. A Proposição 17 remete a apenas duas
Proposições anteriores, a 15 e a 16, respectivamente sobre a imanência
de todas as coisas em Deus e Sua produtividade infinita, derivada exclu-
sivamente de Sua essência. Como o próprio Espinosa deixa entrever na
Demonstração da Proposição 17, seu conteúdo limita-se a explicitar
algo que já estava contido nas quatro teses expostas na Proposição 16 e
em seus três Corolários, a saber: 1- que Deus produz infinitas coisas
(i.e., tudo o que pode cair sob um intelecto infinito), 2- que Deus é cau-
sa eficiente de todas as coisas, 3- que Deus é causa por si mesmo, e não
por acidente e, finalmente, 4- que Deus é causa absolutamente primeira
de tudo. Dessas quatro teses segue-se, por simples equivalência 15 , que
Deus é causa exclusiva de tudo e, portanto, é causa livre. Essa equiva-
lência é explicitada por uma expressão entre parênteses, “quod idem est”
(“o que é o mesmo”), presente na primeira frase da Demonstração da
Proposição 17: “Ex sola divinae naturae necessitate, vel (quod idem est) ex solis
eiusdem naturae legibus, infinita absolute sequi, modo prop. 16 ostendimus” (“A-
cabamos de demonstrar, na prop. 16, que infinitas coisas se seguem
exclusivamente, de maneira absoluta, da necessidade da natureza divina,
ou, o que é o mesmo, exclusivamente das leis de sua natureza”). Trata-
se, em suma, de entender o que são as Leis de Deus, as Leis pelas quais

15 A Proposição 15 intervém na Demonstração da Proposição 17 apenas para


provar a segunda frase de seu enunciado, a saber, que Deus “não é coagido
por ninguém”, contraparte negativa de sua primeira frase, segundo a qual Deus
“age apenas pelas leis de sua natureza”.

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Ele rege Sua própria ação, bem como (no Escólio) sua relação (inco-
mensurável?) com a vontade humana.
A Proposição 17 e seus dois Corolários conjugam uma tese co-
mumente aceita sobre a causalidade de Deus – aceita, entre outros, por
Leibniz –, a saber, que Deus é causa livre de todas as coisas, com outras
duas teses heterodoxas: que a produção de Deus é necessária e que, por
isso mesmo, só ela é livre. Ao negar, aparentemente, a liberdade aos ho-
mens 16 e ao tornar equivalentes os predicados divinos de “ser livre” e
“ser necessário” (i.e., ao negar a liberdade ao próprio Deus, ao menos
na medida em que ela é entendida tradicionalmente como poder de
escolha), o movimento demonstrativo da Proposição 17 já inclui ele-
mentos bastante polêmicos para justificar a atenção privilegiada que lhe
dispensou Leibniz. Mas há uma razão adicional, e potencialmente mais
perturbadora, que poderia igualmente explicar a admiração, tomando
esse termo em seu sentido espinosano 17 , que essa Proposição aparen-
temente provocou em Leibniz. Trata-se do movimento abruptamente
polêmico que o Escólio introduz em sequência à Proposição e a seus
dois Corolários. De maneira inédita até este momento do texto, a for-
ma virulenta com que o Escólio volta-se contra os erros dos filósofos
retira consequências heterodoxas apenas entrevistas nas provas formais
que ele comenta e ilustra 18 . Espinosa enfatiza o tom contundente do

16 Na Parte V da Ética, será demonstrado que os homens podem ser livres –

embora, nesse ponto da argumentação, já tenha se tornado claro que o concei-


to verdadeiro de liberdade não inclui, entre suas notas características, a propri-
edade de “poder escolher entre contrários”.
17 Cf. Ética, Parte III, Definições dos Afetos, Definição 4. Voltaremos a ex-

plorar essa analogia na conclusão deste texto.


18 O Escólio 2 da Proposição 8 já havia introduzido um tema polêmico – mas,

ali, tratava-se sobretudo de criticar os devaneios do vulgo, segundo os quais


árvores podem falar e os homens provêm das pedras. O longo Escólio da
Proposição 15, por sua vez, tratava, assim como o da Proposição 17, de uma
disputa filosófica. No entanto, o primeiro, ao provar que a extensão não é “in-
digna da natureza divina”, reconhece que os argumentos da tradição estão cor-
retos em parte, quando negam que Deus seja corpóreo, errando apenas ao não

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Escólio ao referir-se com certa impaciência, no momento mais duro de


sua crítica aos filósofos tradicionais, a seu próprio ato enunciativo –
também aqui através de uma expressão entre parênteses: “(liceat aperte
loqui)” (“que me seja permitido falar abertamente”). Se é verdade, como
quer Gilles Deleuze 19 , que os escólios formam uma espécie de “Ética
subterrânea” no interior do livro, articulando-se em uma outra lógica
argumentativa, esse trecho marca um movimento de ataque contunden-
te que será repetido algumas vezes ao longo do texto. Talvez esse estilo
da escrita tenha sido o responsável por despertar Leibniz para o com-
bate contra Espinosa.
Ao denunciar o erro daqueles que acreditam que Deus é dito “li-
vre” apenas se Lhe for atribuído o poder de fazer com que as coisas
não se realizem, o Escólio mostra que isso seria o mesmo que afirmar
que Ele pode fazer com que, da natureza do triângulo, não se siga que a
soma de seus três ângulos é igual a dois ângulos retos – “ou seja”, escla-
rece Espinosa, “que de uma dada causa não se siga um efeito”. É im-
portante observar que, no momento mesmo em que introduz a analogia
com um objeto matemático, ele a transcreve em termos causais, i.e., na-
turais. Toda causa é necessária e suficiente para a produção de seu efei-

distinguir duas maneiras de conceber a extensão, uma das quais, a imaginação,


a vê como divisível, finita e composta de partes e outra, a do intelecto, a con-
cebe como substância, eterna e infinita. É verdade que Espinosa mostra aí que
os que negam que Deus seja extenso “não compreendem o que eles mesmos
dizem”, pois não podem explicar por qual potência divina a extensão poderia
ter sido criada, mas o erro surge de uma espécie de ilusão quase inevitável da
faculdade humana de imaginar, e o erro dos filósofos emerge de um argumen-
to dialético que aceita em parte suas razões. Já o Escólio da Proposição 17, ao
criticar teses filosóficas sobre a natureza e a ação divinas, também situa o erro
na imaginação, como era de se esperar, mas se opõe a elas em bloco, sem con-
cessões, caracterizando-o como um tipo de erro mais trivial, uma espécie de
lapso do raciocínio que é, em seguida, complementado pela hipótese imaginativa
(a saber, uma “projeção antropomórfica” da natureza humana sobre a natureza
divina).
19 Deleuze (1997).

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to, de tal modo que, dada a causa, o efeito se segue necessariamente.


Mas o Escólio apresenta logo a seguir outra razão, de certa forma ante-
rior a essa primeira, por que não é possível atribuir a Deus o poder de
não fazer certas coisas: esse poder negativo, com efeito, deveria ser
concebido como uma faculdade, ou seja, como uma potência entendida
como uma potencialidade, de fazer ou não fazer certas coisas. Ora, diz Es-
pinosa, é possível demonstrar que “à natureza de Deus não pertencem
nem o intelecto nem a vontade”. É justamente porque esses filósofos e
teólogos figuram um Deus pessoal que eles deduzem daí que a onipo-
tência de Deus é incompatível com a ação de sua vontade de criar tudo
aquilo que Ele entende – o que significaria, acrescentam, que Ele não
poderia criar mais nada. É só ao manter infinitas possibilidades como
que em reserva no reino do que não existiu, não existe nem existirá que
essa Pessoa divina evitaria um conflito entre suas faculdades – as quais,
porque foram atribuídas a um ser dotado de uma consciência unificada
sob a forma de um Eu, necessariamente entrariam em confronto caso
uma delas (o intelecto) não fornecesse à outra (a vontade) nenhuma
nova matéria sobre a qual pudesse se exercer, limitando assim sua atua-
lização por esse Sujeito de ambas as faculdades. A partir daí, um sistema
de superstições passa a ser engendrado, investido por um desejo de sub-
missão a sua própria ficção: ao invés de abandonar a ideia problemática
da pessoalidade de Deus, preferem 20 atribuir-Lhe uma vontade absoluta
e indiferente de escolher, dentre as ideias de Seu intelecto, aquelas que,
a Seu bel prazer, criará. É fácil ver que esse mesmo Eu indiferente é
atribuído à alma dos homens, mostrando, entre outras coisas, que a
gênese da ideia ilusória de um sujeito humano unificado responde pro-
priamente não apenas a uma certa imagem do exercício do poder, mas
também a uma certa vontade de poder.
Não será necessário resumir aqui todas as teses polêmicas conti-
das no Escólio (de qualquer forma, elas serão retomadas mais adiante,
quando nos detivermos nos comentários de Leibniz sobre a Proposição
20 “Preferiram, assim, instituir um Deus indiferente a tudo...” (grifo meu).

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17). Basta ressaltar um último trecho, no qual está contida uma dificul-
dade que é simultaneamente formal – poderíamos mesmo dizer, estilísti-
ca – e relativa ao conteúdo; trata-se da famosa passagem na qual Espi-
nosa mostra que, ao atribuirmos o intelecto e a vontade à essência de
Deus, deveríamos concluir que nem um nem outro teriam nada em
comum com o intelecto e a vontade humanos a não ser o nome – assim
como ocorre na relação que há “entre o cão, constelação celeste, e o
cão, animal que ladra”. Alexandre Koyré já mostrou, em um texto fa-
moso 21 , que, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, Es-
pinosa não endossa a tese da incomensurabilidade entre Deus e os ho-
mens, uma vez que seu argumento é uma redução ao absurdo, que tem
como premissa a proposição “O intelecto e a vontade pertencem à es-
sência de Deus”. Ora, como é bem sabido, a Ética nega essa premissa
(pois intelecto e vontade não só não são atributos divinos, e sim modos
infinitos imediatos do atributo do Pensamento – o que retira deles, pre-
cisamente, sua caracterização como faculdades de um sujeito –, mas, além
disso, distinguem-se apenas por uma distinção de razão). A tese da in-
comensurabilidade, portanto, deve ser atribuída aos adversários aludi-
dos pelo Escólio, e não ao próprio Espinosa. O interesse de ressaltar
esse trecho do Escólio, destacando-o dos demais, consiste em remetê-
lo pontualmente ao comentário de Leibniz: é importante observar que,
desde a que é provavelmente a primeira das anotações que registraram
sua leitura dessa passagem (G I, 146-147), ele não enxerga aí uma redu-
ção ao absurdo da posição contrária à de Espinosa, mas lhe atribui e-
quivocadamente sua defesa. Entretanto, ao invés de ver aí simplesmen-
te um erro de Leibniz, pode ser mais interessante tomar seu lapso como
o sintoma de um posicionamento mais geral com relação ao texto de
Espinosa. Para tornar esse aspecto claramente perceptível, percorra-

21 “Le chien, constellation céleste, et le chien, animal aboyant” (Koyré (1951)).

Como nos ensina Koyré, o exemplo, retomado no título de seu artigo, ilustra
uma relação de pura homonímia, e já havia sido formulado nas discussões so-
bre analogia em textos de Filon o Judeu, de Maimônides e de Averróes.

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mos, pois, a série de marcas de leitura e anotações feitas por Leibniz à


margem da Proposição 17.
Data provavelmente do momento em que Leibniz folheou pela
primeira vez a Obra Póstuma o traço com que sublinha, em seu exemplar
da Ética 22 , uma frase do Escólio da Proposição 17. Trata-se justamente
do começo da redução ao absurdo que constitui a maior parte desse
Escólio. O trecho sublinhado é o seguinte:

“Com efeito, o intelecto e a vontade, que constituiriam a essência de


Deus, deveriam diferir, incomensuravelmente, de nosso intelecto e de
nossa vontade e [....] em nada concordariam além do nome”.

Como vimos acima, Leibniz não percebeu que se tratava da premissa de


uma redução ao absurdo, atribuindo ao próprio Espinosa a tese que
destaca do texto 23 . Isso fica claro quando lemos o comentário que faz
parte de suas notas de leitura, provavelmente do mesmo período que a
marca de sublinhado 24 . Vale a pena transcrevê-las integralmente. Pri-
meiramente, Leibniz resume a tese do Escólio:

22 Em Grua, I, p. 279, nota 57, encontramos a referência a esse trecho subli-


nhado.
23 Na frase anterior, porém, Espinosa havia declarado que a tese enunciada a

seguir não poderia lhe ser atribuída; diz ele aí: “Além disso,” [quer dizer, além
do argumento que acabara de ser formulado contra a tese segundo a qual a
onipotência de Deus implicaria que Ele não pode criar tudo o que concebe]
“direi aqui também alguma coisa sobre o intelecto e a vontade que comumente
atribuímos a Deus”. “Comumente”, quer dizer, antes da reflexão filosófica.
24 Em sua edição dessas notas, Gaston Grua observa que, até sua transcrição,

os comentadores tomavam esse conjunto de anotações de Leibniz por um


simples extrato da Ética, não percebendo que se encontravam aí também ob-
servações críticas do próprio Leibniz; diz Grua: “Il copie, ou corrige, sans dou-
te en vue de l’encyclopédie, presque toutes les définitions de l’Éthique, même
incluses dans les scolies. Quant aux propositions, il en note d’abord peu, puis
presque toutes. Commencé comme un choix, il s’achève en analyse, complète
et fidèle pour Éthique, III-V et de intellectus emendatione, épisodique pour les
lettres”. Grua explicita, ainda nesse mesmo trecho, seus critérios editoriais:
“Aussi je reproduis ce texte, en l’abrégeant lorsqu’il copie exactement Spinoza,

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“Deus faz tudo aquilo que pode, e da natureza de Deus seguem-se


sempre e necessariamente todas as coisas, assim como as afecções do
triângulo [seguem-se] de sua essência (prop. 17, esc.”).

Em seguida, acusa Espinosa de, através dessa comparação, promover


um simples “jogo de palavras” em torno do termo “necessidade” (“Ha-
ec consistunt in lusibus vocabulorum circa vocem necessitas”):

“São apenas jogos de palavras em torno do termo necessidade. E a


comparação com o triângulo é pouco precisa, porque, no triângulo,
não intervém nenhum pensamento, enquanto o pensamento intervém
em Deus”.

Finalmente, nota haver uma contradição entre o Escólio da Proposição


17 e a Proposição 3:

“Há contradição entre a prop. 17 esc. fin e a prop. 3. Pois, [segundo] a


prop. 3 p. I a causa e o efeito têm algo em comum, mas ao contrário
no esc. [diz] que o intelecto [divino] convém com o nosso apenas no
nome. A comparação entre Deus e o triângulo é inepta”.

Se, em sua primeira observação crítica, Leibniz pode afirmar que


Espinosa estaria propondo um simples “jogo de palavras” ao comparar
Deus e o triângulo, isso se deve ao fato de que o modo como as pro-
priedades se seguem necessariamente da essência do triângulo não pode
ser comparado com o modo como ações se seguem necessariamente da
essência de um sujeito pensante. Para um ser dotado de inteligência, o
modo pelo qual ele produz efeitos depende da consideração da bonda-
de dos fins visados. A bondade, por sua vez, depende do intelecto e do
poder de escolha, pois um ser que agisse apenas devido à necessidade
de sua natureza não poderia ser considerado bom. Quanto à contradi-

jusqu’à Eth. III, prop. 13; ensuite, seulement les rares remarques mêlées à
l’analyse. En note, les passages soulignés dans les Opera posthuma et notes
marginales encore inédites. J’ajoute titres et références” (Grua, I, p. 277, nota
51).

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ção assinalada ao final dessa anotação, Leibniz formula uma versão po-
sitiva da negação expressa pela Proposição 3 (“No caso de coisas que
nada têm de comum entre si, uma não pode ser causa da outra”), se-
gundo a qual a causa e o efeito devem ter alguma coisa em comum,
contrapondo-a à negação enunciada no Escólio da Proposição 17, se-
gundo a qual não há, entre o intelecto humano e o divino, nada de co-
mum exceto o nome, o que, pela Proposição 3, excluiria a possibilidade
de haver entre eles uma relação de causalidade.
Voltaremos ao primeiro problema assinalado por Leibniz mais
adiante; por ora, nos concentremos no segundo, pois ele não reaparece-
rá explicitamente nas futuras abordagens da Proposição 17. Haveria
realmente uma contradição entre essa última e a Proposição 3? Espino-
sa afirma, de fato, que, se algo é a causa tanto da existência quanto da
essência de outra coisa, então não pode haver entre elas nenhuma comu-
nidade (ao contrário, se algo – digamos, um homem – é causa apenas
da existência de outra coisa – de outro homem –, os dois podem con-
cordar inteiramente quanto à essência, que é uma verdade eterna 25 , de-
vendo diferir na existência). O Escólio formula essa lei metafísica de
uma maneira universal: “causatum differt a sua causa praecise in eo, quod a
causa habet” (“o que é causado difere da respectiva causa precisamente
naquilo que ele recebe dela”). Ora, Deus é causa universal da essência e

25 Assinalemos o uso dos verbos modais: se x causa a existência de y, então x


pode (mas não deve) ter a mesma essência que y, mas deve diferir quanto à
existência. Isso é compatível com as Proposições 2 e 3? Voltaremos a esse
ponto a seguir. Outra dificuldade, porém, apresenta-se nessa mesma passagem:
Espinosa parece referir-se às essências concebidas como universais; mais adi-
ante, no entanto, na Parte II da Ética, a “ciência intuitiva” terá como objeto as
essências singulares. Deixaremos de lado a discussão sobre se, nesta passagem
da Parte I, ele está tomando as essências como sendo universais dotados de
uma certa realidade (na medida em que são produzidas por Deus) ou se ele está
apenas reportando a opinião daqueles que critica justamente pela redução ao
absurdo (o que o eximiria de concordar com sua premissa).

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104 Ulysses Pinheiro

da existência de todas as coisas 26 . Logo, conclui o Escólio, o intelecto


de Deus (o mesmo vale para Sua vontade), “enquanto concebido como
constituindo a essência divina” (grifo meu), “difere do nosso intelecto,
tanto no que toca à essência quanto no que toca à existência”, concor-
dando com ele apenas “in nomine”. A ênfase que demos à palavra “en-
quanto” serve justamente para assinalar a distância de Espinosa com
relação à conclusão do argumento, indicando que se trata de um emba-
raço apenas para aqueles que partiram da premissa inicial e querem
conciliá-la com a tese de que o homem foi feito à imagem e semelhança
de Deus. Na verdade, mais do que um embaraço, trata-se de demons-
trar que os defensores dessa tese não conseguem figurar um dos termos
da relação causal (precisamente, a causa) de tal modo a derivar daí uma
verdadeira explicação. Isso não significa que o Escólio não seja de modo
nenhum ambíguo, e que poderíamos atribuir o “erro” de Leibniz a uma
leitura descuidada ou apressada (hipótese tanto mais estranha se consi-
derarmos que o mesmo “erro” se repetirá nas anotações futuras sobre
esse mesmo trecho). De fato, a conclusão transcrita acima vem acom-
panhada de uma série de marcas textuais que parecem indicar a adesão
de Espinosa a seu conteúdo. Destaquemos, em primeiro lugar, o uso da
expressão “que é o que queríamos demonstrar”, com que ele finaliza o
argumento: ela pode indicar ou bem que o que “queríamos” (“ut voleba-
mus”) era conduzir o leitor ao absurdo da conclusão, levando-o assim a
negar a premissa, ou bem que a lei metafísica enunciada acima encon-
trou uma instância correta de aplicação. Em segundo lugar, notemos
que a frase contendo a restrição assinalada acima (“enquanto”) é prece-
dida por uma outra, na qual não há nenhuma restrição – ao contrário,
ela parece ser enunciada categoricamente, exprimindo, assim, a posição
do próprio Espinosa. Diz ela: “Ora, o intelecto de Deus é causa tanto
da essência quanto da existência de nosso intelecto”. É verdade que o
tom categórico pode ser interpretado como um mero recurso retórico

26Espinosa afirma, no Escólio, já ter demonstrado essa tese; no entanto, uma


demonstração explícita só é oferecida na Proposição 25.

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Jogos de palavras 105

utilizado em um dos passos de uma redução ao absurdo; entretanto,


ainda que aceitemos essa hipótese, poderíamos nos perguntar em que
sentido Deus pode, na Ética, ser dito ao mesmo tempo causa universal
de todas as coisas e diferir delas quanto à essência e à existência. Na já
mencionada Proposição 25 desta mesma Parte I, Espinosa prova que
Deus é causa não apenas da existência, mas também da essência das
coisas, usando o Axioma 4 para sua Demonstração: se Deus não fosse
causa da essência das coisas, elas poderiam ser concebidas sem Ele, o
que (pela Proposição 15) é absurdo. Ora, o Axioma 4 afirma que o co-
nhecimento do efeito depende do e envolve o conhecimento da causa.
“Depende e envolve”: por que essa aparente duplicação? Na verdade,
com o uso do segundo verbo, parece que Espinosa quis qualificar o
tipo de dependência em jogo na relação de conhecimento: trata-se de
encontrar uma explicação que leve em conta a função da natureza da
causa na produção do efeito – o que pressupõe, portanto, uma comu-
nidade qualitativa entre causa e efeito. Se a essência, expressa por uma
definição, é justamente o que a coisa é, i.e. sua qualidade, então Espinosa
não estaria solapando as bases de sua própria teoria com a redução ao
absurdo proposta no Escólio?
De forma aparentemente paradoxal, Espinosa evita esse proble-
ma ao interpretar a produtividade divina como uma causalidade imanen-
te: as coisas finitas são modificações existentes em Deus. O que poderia
parecer à primeira vista vir reforçar a dificuldade assinalada acima, na
medida em que a relação de imanência pressuporia a homogeneidade
qualitativa entre a substância e suas modificações, na verdade a solucio-
na, pois é possível agora afirmar simultaneamente que os modos de
Deus são qualitativamente idênticos a Seus atributos (no caso em ques-
tão, ao atributo Pensamento) e que a essência de Deus (que não se iden-
tifica com nenhum de seus atributos) difere de forma incomensurável da
essência das coisas finitas, justamente porque essas Lhe são imanentes,
pois enquanto a primeira é definida como uma substância absolutamen-
te infinita, as segundas são definidas como modificações dessa substân-

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106 Ulysses Pinheiro

cia única. Se, ao contrário, fossem atribuídos à essência de Deus o inte-


lecto e a vontade, seria preciso admitir uma heterogeneidade qualitativa
entre eles e nosso intelecto e nossa vontade. Espinosa, entretanto, a-
firmará justamente o contrário na Parte II da Ética: tanto o intelecto
humano quanto o divino são ambos apenas modificações de Deus, o
primeiro estando contido no segundo, de tal maneira que o conteúdo
de nossas ideias adequadas é exatamente o mesmo que o de Deus 27 .
O segundo grupo de anotações no qual figura a Proposição 17
deve ter sido escrito no mesmo ano que o primeiro 28 . Ele não apresen-
ta diferenças notáveis com relação a seu provável antecessor, mas será
precisamente através exploração de algumas pequenas diferenças aí pre-
sentes que poderemos responder mais completamente a primeira ques-
tão formulada acima. Mesmo que não repita a acusação contra Espino-
sa, segundo a qual ele estaria propondo um simples “jogo de palavras”
ao comparar Deus e o triângulo relativamente à necessidade das afec-
ções que se seguem de suas respectivas naturezas, o espírito deste novo
registro de leitura é semelhante – e até mesmo sua letra. Após transcre-
ver o enunciado da Proposição 17, Leibniz acrescenta uma expressão
logo em seguida, retirada da Demonstração (“quia nihil extra ipsum”
(“pois nada há fora dele”)) 29 . Quanto aos dois Corolários, ele se limita a
copiá-los sem modificações (apenas omitindo a explicação do Corolário
II). Como era de se esperar, os comentários críticos só surgem no Es-

27 O que mostra que, no Escólio da Proposição 17, foi por uma mera conces-
são a seu objetor que Espinosa admitiu que nosso intelecto é, ao contrário do
divino, posterior às coisas – ele nota aí, entre parênteses, que essa tese é “co-
mo quer a maioria”, separando-a assim de sua própria visão (lembremos que a
sabedoria, como é dito no final do livro, é tão difícil quanto rara). O ônus de
Espinosa é, pois, o de demonstrar que o intelecto humano também é, como o
de Deus, anterior às coisas. Esse tema foi desenvolvido por ele no Tratado da
reforma do entendimento.
28 Esse segundo grupo encontra-se em G I, 139-150.
29 G I, 145-146. Utilizo, com algumas modificações, a tradução de Homero

Santiago (Leibniz (2011), pp. 215-253).

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Jogos de palavras 107

cólio – o qual, aliás, é referido, por um lapso, como “os escólios” (“in
scholiis”), no plural 30 . Eis sua formulação:

“Nos escólios ele explica mais longamente que Deus criou tudo o que
está em seu intelecto (porém, como parece, criou apenas o que quis).
Diz que o intelecto de Deus também em essência difere de nosso inte-
lecto, e a não ser equivocadamente pode-se atribuir a um e outro o
nome de intelecto, tal como cão, signo celeste, e cão, animal que ladra.
O causado difere de sua causa naquilo que ele recebe dela. O homem
difere do homem quanto à existência que recebeu do homem e, de
Deus, quanto à essência que recebeu de Deus”.

A mesma crítica formulada nas anotações anteriores reaparece


aqui, embora com mais ênfase (Leibniz transcreve uma maior parte do
Escólio, inclusive a lei metafísica segundo a qual “o causado difere de
sua causa naquilo que ele recebe dela”). Curiosamente, é o que ele omitiu
nessa nota o que mais chama a atenção: Leibniz não se detém, como o
fez anteriormente, na tese de que a ação divina é necessária, mas apenas
na tese, novamente atribuída de forma equivocada a Espinosa, da in-
comensurabilidade entre o intelecto de Deus e o do homem. Além dis-
so, é de se notar que ele não formula qualquer crítica a essa tese (a não
ser a observação en passant entre parênteses, provavelmente formulada
não como uma restrição, mas como um complemento à demonstração
de Espinosa). O que era uma observação secundária nas primeiras ano-
tações torna-se agora o tema exclusivo a reter sua atenção – e deve-se
notar que esse tema corresponde ao trecho sublinhado em seu exem-
plar da Ética, o que poderia nos levar a suspeitar que essa marca foi fei-
ta nessa ocasião.
Isso significa que Leibniz passou a considerar a possibilidade de
essa tese ser verdadeira? Certamente trata-se aqui novamente de uma
especulação indecidível sobre esse texto. Entretanto, ao nos voltarmos
para o terceiro conjunto de observações sobre a Ética, redigido cerca de

30 Como observa o tradutor do texto na nota 2 da p. 239.

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108 Ulysses Pinheiro

30 anos depois das primeiras, algo sobre essa questão poderá ser deci-
dido.
Esse terceiro momento em que Leibniz se dedica a examinar e
criticar a Ética é formulado em um contexto inteiramente diferente dos
demais: aqui, o texto de Espinosa é abordado como que indiretamente, no
interior de um comentário sobre o livro De recondita hebraeorum philoso-
phia, aut Elucidarius cabalisticus do teólogo J. G. Wachter 31 , que se utiliza
largamente da obra de Espinosa para tratar do tema do pensamento
místico da Cabala. Em 1853, Foucher de Careil descobre esse manus-
crito, datado por ele entre os anos de 1706 e 1710, e o publica com o
título sedutor, e um tanto enganoso, de Réfutation inédite de Spinoza par
Leibniz 32 – embora, como nota Foucher de Careil em sua introdução ao
livro, o manuscrito de Leibniz contivesse um título próprio, Animadver-
siones ad Joh. Georg. Wachteri librum de recondita Hebraeorum philosophia. Fri-
edmann questiona a importância desse grupo de anotações justamente
por causa de seu caráter enviesado e indireto: trata-se de um comentá-
rio de Leibniz sobre um comentário de Wachter sobre Espinosa. Ou,
nos termos do título do Capítulo de seu livro dedicado a esse comentá-
rio 33 , trata-se de ler Espinosa através de Wachter e da Cabala, isto é, a-
través de uma discussão sobre o misticismo. Ainda assim, Friedmann
reconhece que a existência desse texto tem a importância de um sintoma:
ao final de sua vida, mostra que Leibniz ainda tinha em Espinosa a figu-
ra de seu grande opositor 34 . O que importa por ora, porém, é examinar

31 Para um esclarecimento do significado que essa obra teve para Leibniz, cf.

Friedmann (1962), pp. 201-229 e Lacerda (2009). O texto de Wachter havia


sido publicado nesse mesmo ano de 1706.
32 Para a versao bilíngue (latim-farncês) desse texto, cf. Leibniz (1854), pp. 48-

55.
33 “Spinoza vu à travers J. G. Wachter et la Cabale”, Friedmann (1962), Cap.

7, pp. 201-229.
34 “Leur importance doit être ramenée à ses justes proportions mais non sous-

estimée. Elles nous rappellent, vers la fin de sa longue carrière intellectuelle,


avec plus de précision et de développements que dans une lettre ou un

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Jogos de palavras 109

o modo como, nesse texto tardio, Leibniz volta novamente sua atenção
para a Proposição 17. Após um longo comentário sobre a Proposição
16, no qual ataca o necessitarismo espinosano, Leibniz faz a transição
para o comentário sobre a Proposição 17 – ou melhor, exclusivamente
sobre seu Escólio, o que indica, mais uma vez, que foi ela que captou
sobretudo sua atenção; diz ele aí:

“ – Espinosa então diz, (Ética, p. 1, Esc. Proposição 17), Conheço mui-


tos filósofos que pensam poder provar que o supremo intelecto e a
vontade livre pertencem à natureza de Deus; pois, dizem eles, não co-
nhecemos nada mais perfeito que possamos atribuir a Deus do que a-
quilo que é, em nós, a maior perfeição. Por essa razão, preferiram to-
mar Deus como indiferente a todas as coisas, e somente criando o que
resolveu criar por uma certa vontade absoluta. De minha parte, penso
ter mostrado, de modo suficientemente claro, que todas as coisas se-
guem do supremo poder de Deus pela mesma necessidade, assim co-
mo se segue da natureza do triângulo que seus três ângulos são iguais a
dois retos. A partir das primeiras palavras, é evidente que Espinosa ne-
ga a Deus intelecto e vontade livre. Ele está certo ao negar que Deus
seja indiferente e decrete algo por uma vontade absoluta. Ele decreta
por uma vontade livre fundada em razões. Mas ele não dá nenhuma
prova desta asserção, que todas as coisas seguem-se de Deus como
propriedades de um triangulo, nem há qualquer analogia entre essên-
cias e coisas existentes”.

O comentário sobre o Escólio segue em um próximo parágrafo:

“No Escólio da Proposição 17, ele afirma que o intelecto e a vontade


de Deus concordam com o nosso apenas em nome, porque o nosso é
posterior e o Dele, anterior a todas as coisas; mas não se segue de mo-
do algum daí que eles concordam só em nome. Ainda assim, ele afirma
em outro lugar que o pensamento é um atributo de Deus, e que os
modos particulares do pensamento devem ser referidos a ele (Ética, p.
2, Proposição 1). Mas nosso autor [i.e., Wachter] crê que então ele está
falando da palavra externa de Deus, porque ele diz (Ética, p. 5) que
nossa alma é uma parte do Intelecto Infinito”.

mémoire, les réactions de Leibniz à certains thèmes spinozistes” (Friedmann


(1962), p. 229).

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110 Ulysses Pinheiro

Apesar de, novamente aqui, Leibniz não identificar explicitamen-


te o argumento de Espinosa com uma redução ao absurdo, ele reco-
nhece claramente, pela primeira vez, que o Escólio nega que o intelecto
e a vontade sejam atributos de Deus – o que poderia ser um indício de
que, implicitamente, a redução ao absurdo foi igualmente reconhecida.
Sua crítica, nesse momento, concentra-se em dois pontos: a ausência de
provas para a tese de que Deus não tem, essencialmente, nem intelecto
nem vontade e a impropriedade da comparação de uma essência (a do
triângulo) com uma coisa existente (Deus). Pela segunda crítica, Leibniz
pretende distinguir dois tipos de conexão, uma delas (essencial) sendo
necessária e a outra (existencial), mediada pela vontade livre de um ser
racional, contingente. Já a primeira crítica, a de que Espinosa não for-
neceu nenhum argumento (“nullo argumento comprobatur”) para sua tese,
trai novamente uma certa incompreensão da forma da prova como uma
redução ao absurdo. A frase que começa o segundo parágrafo de sua
crítica ao Escólio confirma essa impressão, pois nela Leibniz volta a
atribuir a Espinosa a premissa da redução ao absurdo, criticando-o por
um non sequitur: mesmo admitindo que o intelecto divino é anterior, e o
nosso posterior às coisas, diz Leibniz, daí não se segue que ambos con-
cordem só em nome. Vimos, porém, que o argumento de Espinosa não
se reduz a esse ponto.
O exame desses três grupos de comentários, e particularmente
esse último, torna mais claro como entender o “erro” de Leibniz em
sua interpretação do Escólio da Proposição 17 – ou melhor, em que
sentido esse “erro” indica uma determinação anterior que o condicio-
nou. Havia algo de impensável para Leibniz no argumento de Espinosa –
alguma coisa em seu conteúdo que o levou a interpretar problematica-
mente sua forma, deixando de percebê-la como uma redução ao absur-
do. Esse ponto cego é justamente a possibilidade de figurar uma Res
Cogitans à qual não fossem atribuídos essencialmente um intelecto e
uma vontade, ou um pensamento impessoal, que assume a figura de um
intelecto apenas quando se modifica de determinada maneira. Para

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Jogos de palavras 111

Leibniz, ao contrário, Deus só podia ser figurado como um sujeito de


faculdades, à imagem do Qual o homem foi feito. Daí por que a compa-
ração da natureza de Deus com a do triângulo foi considerada por ele
como “inepta”: a ação divina não poderia ser entendida a não ser como
decorrente de um sujeito dotado de intelecto e de vontade, que delibera
sobre suas escolhas. Se o pensamento é, como quer Leibniz, essencialmen-
te um intelecto e uma vontade, entendidos como as faculdades de um
sujeito, e se esse sujeito transcendente cria o intelecto e a vontade hu-
manos, então eles não podem diferir inteiramente de nosso intelecto e
de nossa vontade.
A presença permanente, embora muitas vezes velada, das primei-
ras críticas à Ética de Espinosa na obra mais tardia de Leibniz manifes-
ta-se de modo peculiar no único livro que ele publicou em vida, os En-
saios de Teodiceia. No § 173, o momento em que inicia sua crítica mais
detida do “espinosismo”, Leibniz volta, sem citá-lo explicitamente, ao
Escólio da Proposição 17, particularmente à tensão, identificada por
ele, entre a atribuição a Deus do pensamento e a recusa em Lhe atribuir
intelecto e vontade, tal como já notara no comentário à obra de Wach-
ter:

“173. Espinosa foi mais longe [do que Hobbes]: ele parece ter ensinado
expressamente uma necessidade cega, tendo recusado o intelecto e a
vontade ao autor das coisas, e imaginado que o bem e a perfeição rela-
cionam-se apenas a nós, e não a Ele. É verdade que a opinião de Espi-
nosa sobre esse tema tem algo de obscuro. Pois ele concede o pensa-
mento a Deus, após lhe retirar o intelecto, cogitationem, non intellectum con-
cedit Deo”.

Ao invés de nos determos novamente na análise interna da críti-


ca de Leibniz, o que envolveria uma certa redundância, talvez fosse
mais proveitoso tentar ir além, pensando na imagem singular de Espi-
nosa que emerge da leitura da Teodiceia, lida sobre o pano de fundo das
anotações anteriores sobre a Proposição 17, procurando encontrar, na
sua especificidade, a fixação de uma espécie de caráter literário, de uma

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personagem chamada “Espinosa”, a partir do contraste com a qual a


constituição positiva do sistema leibniziano poderá ser apresentada.
Nesse sentido, creio que Friedmann tem razão ao afirmar, no Capítulo
de seu livro dedicado à Teodiceia 35 , que a figura desse último, quase to-
das as vezes em que aparece no texto, serve o propósito de fornecer
uma “vizinhança cômoda” 36 que, por contraste, tornasse a tese leibnizi-
ana da “necessidade moral” uma alternativa mais palatável ao público
leitor, por oposição à “necessidade absoluta e geométrica” de Hobbes,
de Estratão e do próprio Espinosa. Nessa trindade de autores conde-
nados, Espinosa destaca-se dos demais por ter levado ao extremo a tese
necessitarista 37 , retirando da essência de Deus o intelecto e a vontade, o
que fez com que a incorporação da necessidade no vocabulário da nova
ciência mecanicista tivesse fundamentos demonstrados sistematicamen-
te segundo o modo geométrico. A “vizinhança cômoda” com Espinosa
é, sem dúvida, uma estratégia retórica de Leibniz, como bem nota Fri-
edmann – mas ela é mais do que isso também: é o signo de um posi-
cionamento mais profundo com relação às alternativas teóricas então
disponíveis, além de ser um dispositivo de diferenciação constitutivo do
pensamento leibniziano. Se, por um lado, o “espinosismo” precisava
ser refutado por uma doutrina filosófica sólida, tal como a exposta na
Teodiceia, e não por meros anátemas superficiais, como Leibniz dizia já a
Thomasius em 1670, por outro lado Leibniz isola, como em um eco do

35 Friedmann (1962), Capítulo VIII: “Théodicée et dernières années (1706-


1716)”.
36 Friedmann (1962), p. 238.
37 No segundo Apêndice à Teodiceia, intitulado Reflexões sobre a obra que M. Hobbes

publicou em inglês sobre a liberdade, a necessidade e o acaso, Leibniz sempre hesita ao


atribuir a Hobbes o mesmo tipo de “necessidade matemática” que cabe a
Estratão e a Espinosa; o § 3 é exemplar nesse sentido: “... cette nécessité
aveugle, par laquelle Epicure, Straton, Spinoza, et peut-être M. Hobbes, ont cru
que les choses existaient sans intelligence e sans choix, et par conséquent sans
Dieu, dont en effet on n’aurait point besoin, selon eux, puisque suivant cette
nécessité tout existerait par sa propre essence, aussi nécessairement qu’il faut
que deux et trois fassent cinq” (meu grifo).

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Jogos de palavras 113

verbete “Espinosa” do dicionário de Bayle 38 , essa estranha doutrina a


uma seita obscura e com poucos adeptos. Nem mesmo os jansenistas,
com sua teoria sobre a predestinação da graça divina, são os verdadei-
ros inimigos: “No fundo”, diz Leibniz no § 371 da Teodiceia, “creio que
se deve reprovar apenas os sectários de Hobbes e de Espinosa por des-
truir a liberdade e a contingência” 39 . “Não nos divertiremos aqui”, a-
firma Leibniz em outro trecho (§ 173), “a refutar uma opinião tão má e
até mesmo tão inexplicável”. Uma seita de poucos composta por mem-
bros que aderem a uma doutrina inefável: vê-se pouco, de fato, a neces-
sidade de uma contestação rigorosa em tal caracterização do espinosis-
mo.
O posicionamento de Leibniz frente à figura de Espinosa na Teo-
diceia torna-se, porém, mais compreensível se a percebermos sobre o
pano de fundo de suas críticas do final da década de 1670 – e aqui mi-
nha leitura se afasta da de Friedmann. De fato, o erro de Espinosa, se-
gundo Leibniz, encontra-se não tanto em sua defesa da necessidade dos
atos divinos, mas na sua radicalidade desmedida: deslocadas do intelec-
to e da vontade divinos para um ponto de partida dedutivo anterior,
que os abrange e os despe de sua liberdade e intencionalidade, as pre-
missas do espinosismo constituem um sistema de proposições que só

38 Cf. Chauí (2009), pp. 324-325: “Dispondo-se a realizar a tarefa que, em sua
opinião, ainda não fora levada a cabo por ninguém, ou seja, a refutação defini-
tiva do espinosismo, "a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar",
Bayle, apoiado nas testemunhas, afirma que "por modéstia" Espinosa recusara
dar seu nome a uma seita e que poucos são seus seguidores. Entre estes, não
são muitos os que estudaram a obra e, destes, raros os que a compreenderam,
"desencorajados pelas perplexidades e abstrações" que a caracterizam. Com
isso, Bayle afasta o temor generalizado de que o espinosismo pudesse ter-se
espalhado e contaminado toda a Europa, atribuindo sua pequena presença à
obscuridade da própria doutrina. Assim procedendo, o refutador delimita seu
campo de ação: o processo não visa aos poucos espinosistas existentes, mas à
obra de Espinosa”.
39 Apud Friedmann (1962), p. 238. Ver referência aos jansenistas nessa mesma

página.

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pode ser refutado se for reduzido ao silêncio. Trata-se agora menos de


demonstrar a falsidade das premissas e o erro lógico das deduções, tal
como fora feito em 1678, do que da construção de uma imagem que se
encontre no limite daquela que ele mesmo quer encarnar, mostrando
que tanto a liberdade de indiferença quanto o determinismo cego são
inexprimíveis 40 . Nesse sentido, longe de ser visto como uma caricatura
pouco generosa com Espinosa, a construção de sua imagem nesse livro
indica que ele ocupa um lugar central, ainda que opaco, no sistema
leibniziano exposto na Teodiceia: ao contrário da figura que emerge do
dicionário de Bayle, o que ressalta principalmente na imagem desenha-
da por Leibniz não é o de um ateu que elaborou inabilmente um siste-
ma filosófico contraditório e confuso, mas o de alguém que simboliza a
exigência de uma sistematização rigorosa do pensamento, que pretendia
tornar todas as alternativas sistemáticas a ele anuladas por seu aparato
lógico irrefutável. Mas não são os detalhes desse equívoco que interes-
sam agora a Leibniz, tal como fora em 1678, e sim a construção de uma
imagem que se encontre no limite daquela que ele mesmo quer encar-
nar. Ao invés de ler, nas passagens rápidas e até mesmo descuidadas
nas quais se refere a Espinosa, a mera lembrança um tanto impaciente
de um trabalho de refutação já realizado décadas antes, tal como pro-
põe Friedmann, sugiro que vejamos esse aparente descuido positiva-
mente: mais do que o pietismo agnóstico de Bayle, é Espinosa um dos
antagonistas mais profundos e ocultos da Teodiceia , tal como ocorria
nos Novos ensaios 41 – e as menções elusivas feitas a ele só o tornam mais

40 Não é demais lembrar que o próprio Espinosa, na Parte I da Ética, Proposi-

ção 33, Esc. II, havia aproximado essas duas teses, afirmando que a liberdade
divina, embora seja idêntica à necessidade de sua essência, seria menos errada
se fosse figurada pela sua caracterização como indiferença absoluta da vontade
no ato de escolha do que pela escolha do melhor
41 No inicio dos Novos ensaios, é traçado um conflito dramático constitutivo da

obra, o qual não opõe, como se poderia supor, as teorias de Leibniz e Locke,
mas antes as de Leibniz e Espinosa: o primeiro, travestido sob a figura de Teó-
filo, parece confessar, numa espécie de autobiografia intelectual, ter, em certa

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Jogos de palavras 115

onipresente ao longo de suas páginas. É o espinosismo que traça os


limites negativos do procedimento demonstrativo de Leibniz a favor da
justiça divina, como a fronteira a partir da qual reina o impensável, e
apenas dentro da qual deduções legítimas podem ser pensadas. De fato,
das 35 vezes que o nome “Espinosa” é mencionado na Teodiceia, nove o
fazem acompanhar dos adjetivos “geométrico” ou “matemático”, ou
em contextos que envolvem diretamente analogias com exemplos ma-
temáticos, o que, sem dúvida, evoca no leitor o modo de demonstração
da obra mais importante de Espinosa, a Ética demonstrada à maneira dos
geômetras. Em suma, a figura de Espinosa que emerge das páginas da
Teodiceia, lendo essa última a partir das anotações que Leibniz fez sobre
ele em 1678, é o de alguém que estabeleceu os limites do solo explicati-
vo no qual as demonstrações do próprio Leibniz teriam de se basear.
Isso não significa, obviamente, que foi Espinosa quem induziu Leibniz
a pensar no projeto de uma ciência filosófica rigorosa, fundamentada
em axiomas e definições claras e distintas e desenvolvida a partir dos
cálculos inerentes a uma linguagem do pensamento formalizada e isenta
de ambiguidades. Mas foi Espinosa quem concretamente construiu a
mais ambiciosa teoria demonstrativa sobre Deus, sobre a necessidade e
a contingência, o bem e o mal, a individuação e a salvação; foi contra
esse sistema que as demonstrações leibnizianas se defrontavam implici-
tamente, combatendo com as armas escolhidas por esse inimigo especi-
al. É ele quem dá o limite negativo de uma pretensão de pôr de pé um
sistema total do mundo, ordenado geometricamente – geometria essa
que, por diversas razões, teria extrapolado da forma de demonstração para o
conteúdo demonstrado, legando-nos, assim, uma teoria que afirma geometri-
camente a necessidade geométrica da natureza. Ao confundir a necessidade

época, quase se “convertido” ao espinosismo. A resistência a essa conversão é


suficientemente importante para justificar o batismo de ninguém menos do
que do protagonista do diálogo; Leibniz descreve aí a tentação de aderir à filo-
sofia de Espinosa, para acrescentar logo em seguida: “mas essas novas luzes
me curaram, e desde essa época adoto às vezes o nome de Teófilo” (Cf. Leib-
niz (1990), I, 1).

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matemática do modo de demonstração com a necessidade do objeto


demonstrado é que Espinosa, aos olhos de Leibniz, ultrapassou de
forma ilegítima um limite. É nesse limite preciso que residem as tensões
teóricas que agitaram o pensamento de um século que queria, de forma
talvez impossível, conciliar a necessidade das leis naturais com a liber-
dade de Deus e dos homens. Se Leibniz foi a figura mais representativa
desse projeto compatibilista, é a Espinosa que ele deve a colocação ri-
gorosa do problema que incessantemente procurou responder.
É assim que, no ano de sua morte, isolado em Hanover em uma
corte que não mais existia, Leibniz ainda pensa no desenvolvimento de
um sistema metafísico rigoroso: “Descartes e Espinosa”, escreve ele
escreve a Bourguet, “afastando-se do rigor da forma em suas pretensas
demonstrações metafísicas, caíram em paralogismos” 42 . No mesmo ano
de 1716, em carta a Remond, ele afirma esperar ainda “poder levar al-
gumas meditações até a demonstração” 43 . Uma tarefa irrealizada, como
ele próprio admitiu – uma vez que seu sucesso não dependia apenas
dele, mas da constituição de toda uma comunidade científica voltada
para o projeto de elaboração de uma linguagem universal do pensamen-
to.
Porém, seria aconselhável pensar essa não-realização completa
do sistema dedutivo de Leibniz não só como uma contingência históri-
ca, mas antes positivamente, como uma característica constitutiva de
sua obra. Entre os comentadores, é recorrente a constatação do caráter
disperso e fragmentário da vastidão do corpus leibniziano, com cuja pu-
blicação completa ainda hoje nos defrontamos como uma tarefa longe
de ser realizada. Ao colocarmos Espinosa como o limite que dá sentido
a seu projeto filosófico, essa dispersão torna-se ainda mais significativa:
enquanto a Ética demonstrada à maneira dos geômetras, publicada postuma-
mente, não por desejo do autor, mas apenas devido a insuperáveis pres-
sões políticas externas, apresenta uma doutrina baseada em axiomas e

42 Apud Friedmann (1962), p. 242. Lettre a Bourguet, Erd., p. 722 b.


43 Apud Friedmann (1962), p. 243. G III, 673.

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Jogos de palavras 117

definições e desenvolvida em teoremas encadeados matematicamente, a


linguagem universal de Leibniz nunca se materializou concretamente
em um sistema filosófico publicado durante a vida de seu autor. Não se
trata apenas de constatar que as anotações privadas de um determinado
escritor ultrapassam em muito suas publicações autorizadas – fenôme-
no relativamente comum na história da filosofia –, mas sim de contras-
tar as pretensões de Leibniz de influir diretamente na situação religiosa
e política de seu tempo, construindo um sistema filosófico dedutivo
rigoroso que fosse uma alternativa tanto ao Deus oculto dos agnósticos
quanto à ausência do Deus pessoal constatada no vazio claro e distinto
deixado pela Substância única espinosista, com a ausência de um siste-
ma nitidamente discernível nas suas publicações feitas em vida. Nem
mesmo a publicação dos Ensaios de Teodiceia, em 1710, ameniza esse tra-
ço da relação de Leibniz com a materialidade de seu texto escrito que
permite a emergência de seus textos, pois nesse livro, como o próprio
autor admite, estão costuradas, de forma um tanto desordenada, anota-
ções feitas ao longo dos anos (quando havia tempo para colocar no
papel as lições dadas à princesa Sofia) e recheadas de digressões, em
“uma imensa rede de verificações” que “encerra de todos os lados”
uma verdade simples 44 – pois, como bom historiador, os fatos e as ge-
nealogias o interessavam demais para serem descartadas de uma obra
tão ambiciosa. É verdade que as formas de intervenção de Leibniz em
seu tempo presente não se resumiram à produção de obras teóricas.
Suas atividades como diplomata, conselheiro político e jurídico, funda-
dor e projetista de academias e, sobretudo, de incansável escritor de
cartas com algumas das personalidades intelectuais e políticas mais in-
fluentes de sua época (a lista de seus correspondentes ultrapassa mil
nomes) atestam que as inserções institucionais deveriam bem, a seus
olhos, passar por muitas vias. Mas não deixa de ser um tanto surpreen-
dente constatar o descompasso entre seu projeto de elaboração de um

44 Nas palavras de Jacques Brunschwig, no Prefácio dos Essais de théodicée


(1969).

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cálculo universal que formulasse uma linguagem lógica para uma filoso-
fia que reunificasse a cristandade e a ausência de uma obra publicada
em vida que fosse exemplar pelo menos do que esse sistema poderia vir
a ser.
Não é tampouco incomum, entre os comentadores, a menção ao
“sistema” de Leibniz – mas essa menção parece indicar mais o reco-
nhecimento de que ele sempre perseguiu um sistema do que a identifi-
cação de um paradigma claramente determinado, ao contrário do que
ocorre com o espinosismo, no qual a Ética é uma referência central e
solar, iluminando a totalidade da obra. Comparada à solenidade hieráti-
ca das Proposições da Ética, com sua linguagem emanada do ponto de
vista da eternidade, a linguagem da Teodiceia, guiada pela exploração da
obra de Bayle, embrenhada em seus múltiplos labirintos, é bem mais
terrena e circunstancial 45 . Ao percorrermos as inúmeras listas de defini-
ções de Leibniz, suas teorias para a elaboração de uma linguagem for-
mal, os variados esboços ou resumos de um sistema dedutivo comple-
to, não podemos nos impedir de ficar impressionados com seu caráter

45 Sobre o estilo em que deve ser escrita a filosofia, cf. Roger Ariew (1995), p.
25, na qual é citada uma carta a Simon Foucher escrita em 1675 (A I, ii 245-
249; G I 369-374). Nela, a descrição de Leibniz parece prefigurar o estilo dos
Ensaios de Teodiceia, escritos 35 anos depois, o que talvez indique apenas a fide-
lidade a uma preferência literária: “It is true that I often glanced at Galileo and
Descartes, but since I became a geometer only recently, I was soon repelled by
thier manner of writing, which requires deep meditation. As for myself, though
I always liked to meditate, I always found it difficult to read books that cannot
be understood without much meditation. For, when following one’s own
meditation, one follows a certain natural inclination and gains profit along with
pleasure, but one is enormously cramped when having to follow the medita-
tions of others. I always liked books that contained some fine thoughts, books
that one could read without stopping, for they aroused ideas in me which I
could follow at my fancy and pursue as I pleased. This also prevented me from
reading geometry books with care, and I must admit that I have not yet
brought myself to read Euclid in any other way than one commonly reads
novels. I have learned from experience that this method in general is a good
one…”

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Jogos de palavras 119

fragmentário. Isso não deve ser visto como uma falha, mas como um
traço essencial do estilo leibniziano de escrita, um autor em busca de
um sistema que, no entanto, deparou-se com sua dificuldade inaudita e
laborou em sua direção através de ensaios e notas. Mais do que uma
dificuldade, porém (o que ainda remete para uma negatividade ou incom-
pletude contingentes), trata-se mais propriamente de um adiamento: en-
quanto Espinosa poderia escrever encerrando-se a si mesmo em um
sistema fechado, Leibniz tinha de se defrontar previamente com a tare-
fa de unificar o domínio dissonante da cristandade, resolvendo o pro-
blema da teodiceia sem deixar de levar em conta que, diante de ques-
tões tais como a predestinação da graça e sua relação com o livre arbí-
trio dos homens, as respostas dos cristãos não encontravam um solo
comum obviamente compartilhado. Leibniz não podia, à imagem de
Espinosa, partir de uma “ideia verdadeira dada”, pois se tratava preci-
samente de construir a unidade cristã através de seus escritos. Ou seja,
tratava-se ainda de um domínio não unificado, parcial, mutilado e con-
fuso, que exigia, como contrapartida, uma forma de escrita aberta, po-
rosa. Para Espinosa, a decisão já estava feita: a verdade fora da escritura a
comandava por inteiro. Leibniz tinha de se defrontar, ao contrário, com
uma tarefa no interior imanente da linguagem. Note-se bem: não estou
afirmando que Leibniz não quis construir um sistema – bem o contrá-
rio –, nem tampouco que ele não pôde realizá-lo, mas apenas que não
encontramos em sua obra nada semelhante à Ética, e que essa ausência
deve ser vista positivamente 46 . O sentido positivo dessa ausência pode

46 Na Seção final do Capítulo 1 de seu livro sobre Leibniz, intitulada “On


Leibniz’s Sincerity”, Robert Adams (1994), pp. 50-52, ao discutir a questão da
sinceridade de Leibniz na Teodiceia, cita um texto que data provavelmente de
1676 (em A VI, iii, 573), no qual a omissão é caracterizada como uma estraté-
gia discursiva: “Metaphysics should be written with accurate definitions and
demonstrations, but nothing should be demonstrated in it that conflicts tôo
much with received opinions. For thus this metaphysics will be able to be re-
ceived. If it is once approved, then afterwards, if any examine it more pro-
foundly, they will draw the necessary consequences themselves”. Essa regra,

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ser encontrado ao percebermos que há um núcleo comum no pensa-


mento de Leibniz que atravessa muitos de seus escritos, por mais dis-
persos que possam parecer, mas que sua unidade profunda manifesta-se
necessariamente em uma multiplicidade de expressões, cada uma delas
relacionando-se determinadamente com a verdade central. A recusa de
– ou seria mais correto falar em resistência a? – um sistema parece que-
rer sempre evitar a contaminação da forma necessária das demonstra-
ções com a necessidade dos conteúdos demonstrados, esforçando-se
por preservar a contingência na multiplicidade textual de uma obra, ao
invés de repelir a ideia de sistema, a convoca, adiando-a. Nada mais
errado do que pensar que Leibniz é o autor de “artigos” autônomos: há
ideias centrais de seu pensamento que são uma presença virtual guiando
a redação de muitos deles, mesmo quando reconhecemos que elas evo-
luíram e se modificaram ao longo do tempo. Mas a atualização dessa
presença virtual faz a verdade submeter-se ao regime imanente de uma
escrita polêmica – e o sistema é, nesse regime, continuamente adiado, é
um excesso ou um resto que extrapola o texto efetivamente escrito.
Nesse sentido, as anotações à margem das páginas da Ética, feitas em
1678, indicam exemplarmente a relação de Leibniz com Espinosa no
que diz respeito à forma da escrita e da relação do autor com suas pu-
blicações – trata-se propriamente de uma escrita às margens de um siste-
ma. Mas, o que é um autor senão o efeito dessas formas de escrita, o tra-
ço que elas deixam e a voz que portam?

porém, conclui Adams após a transcrição desse trecho, falha pelo menos com
relação à Teodiceia, pois nela tantas “definições acuradas” são omitidas “that
one must turn to other works to find the material necessary for a more pro-
found examination” (p. 52).

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Jogos de palavras 121

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Concluamos, pois, o desenho da imagem que emerge das análises


de Leibniz. Vimos, acima, que a Proposição 17 da Parte I da Ética pare-
ce ter provocado em Leibniz, a julgar pela constância com que a reto-
ma, marca e assinala em suas primeiras leituras da obra de Espinosa,
uma certa admiração, no sentido espinosano do termo, tal como ele é
apresentado nas Definições dos Afetos, acrescentadas como Apêndice no
final da Parte III. Na Definição 4, com efeito, a Admiração é caracteri-
zada como “a imaginação de alguma coisa à qual a mente se mantém
fixada porque essa imaginação singular não tem qualquer conexão com
as demais”. Ora, como nota Espinosa na Explicação que segue a Defi-
nição 4, essa última, compreendida corretamente, justamente exclui que
a Admiração seja considerada como um afeto, apesar de se encontrar,
paradoxalmente, logo no início de uma lista geral dos afetos – sendo,
portanto, à primeira vista, não só um deles, mas também, aparentemen-
te, um dos mais primitivos. Espinosa tenta desfazer o ar de paradoxo
dessa definição auto-refutadora ao assinalar que a Admiração é uma
modalidade da imaginação: a mente humana passa de uma imagem a
outra porque todas as ideias imaginativas estão encadeadas entre si de
um modo necessário. Quando uma nova imagem surge, falta-lhe, preci-
samente, essa maneira ordenada de se integrar ao conjunto das demais
ideias – daí por que “a mente se deterá na consideração dessa coisa até
que seja determinada, por outras causas, a pensar em outras coisas”. A
Admiração não é, pois, um afeto, mas uma imaginação que se distingue
das demais apenas pelo fato de lhe faltar “uma causa que a determine a
passar da consideração de uma coisa ao pensamento de outras” – ela é,
em suma, apenas uma “mentis distractio” (“distração da mente”) sem ne-
nhuma “causa positiva” (i.e., um afeto). Pode ser adequado, portanto,
atribuir a Leibniz essa espécie de Admiração – pela Proposição 17, mas
também pela imagem singular de Espinosa que ela ajudou a fixar. Ao
invés de explicar essa relação por uma espécie qualquer de afeto – uma

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obsessão ou um sentimento de dívida recalcado, por exemplo –, que


nos conduziria diretamente a elucubrações biográficas de pouca utilida-
de, seria melhor usar esse afeto-que-não-é-afeto para explicar um mo-
vimento que, em seu sentido próprio, é intelectual, e não passional. Por
se situar nos limites do pensável, a imagem de Espinosa se singulariza no
pensamento de Leibniz precisamente como algo “novo”, que não se
relaciona com qualquer outra imagem – anomalia selvagem, para usar a
expressão de Antonio Negri. Momento certamente imaginativo no inte-
rior de um pensamento que se organiza em torno do ideal de clareza
perfeita de uma linguagem universal. Mas talvez esse núcleo imaginati-
vo seja justamente aquilo que, estando fora do sistema, entretanto ao
mesmo tempo o possibilita e marca um obstáculo insuperável a seu
desenvolvimento. Leibniz reagiu a essa imagem de Espinosa construin-
do seu próprio sistema como uma espécie de alternativa em muitos
pontos simetricamente oposta, e por isso mesmo semelhante a ela – pois,
como mostra Wolfgang Iser, em uma leitura só “reagimos a uma ima-
gem, à medida que construímos uma nova” 47 .

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