Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CDD: 149.7
Jogos de palavras
ULYSSES PINHEIROS
Departamento de Filosofia
Universidade Federal do Rio de Janeiro/Pesquisador CNPq
RIO DE JANEIRO, RJ
ulyssespinheiro@gmail.com
Resumo: Partindo das referências diretas a Espinosa nos Ensaios de Teodiceia, veremos que o exame
atento do modo como Leibniz recebeu, criticou e eventualmente assimilou as teses espinosanas pode ser
usado como um princípio hermenêutico para compreender a elaboração de seu próprio sistema.
Palavras-chave: Leibniz, Espinosa, monismo, determinismo, liberdade.
Abstract: By considering the straightforward references Leibniz makes to Spinoza in his Theodicy, we
may show that close examination of how Leibniz received, criticized and eventually assimilated the
theories of Spinoza can be used as a hermeneutical principle for understanding the development of his
own system.
Key-words: Leibniz, Spinoza, monism, determinism, freedom.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
92 Ulysses Pinheiro
3 Como nota Jonathan Israel, Leibniz foi um dos primeiros leitores da Obra
Póstuma – Schuller, membro do círculo dos amigos de Espinosa que editou e
publicou seus textos ao longo do ano da morte do autor, em 1677, enviou-lhe
um exemplar no início de 1678. Cf. Israel (2001), Cap. 16: “Publishing a Ban-
ned Philosophy”, pp. 275-294.
4 Leibniz comumente escrevia extratos dos livros mais significativos que lia.
Spinosa ont été enfin publiées. La plus considérable partie est Ethica,
composée de cinq traités… J’y trouve de quantité de belles pensées conformes
aux miennes, comme savent quelques-uns de mes amis qui l’ont été aussi de
Spinosa” (trecho citado por Friedmann (1962), p. 133).
6 Necessariamente, apenas elementos retirados da Parte I da Ética poderiam
ser comuns a todos esses registros, uma vez que um deles, e na verdade o mais
importante, é um comentário extenso que abrange apenas essa primeira Parte
do livro (ele encontra-se em G I, 139-150).
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 93
7 Embora de forma mais discreta, Friedmann endossa essa tese, pelo menos
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
94 Ulysses Pinheiro
***
9 Utilizo a tradução da Ética de Tomaz Tadeu (2008). Para o texto latino, utili-
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 95
mais adiante.
13 Friedmann (1962), p. 145.
14 É interessante notar também que, sobretudo nos comentários a esse grupo
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
96 Ulysses Pinheiro
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 97
Ele rege Sua própria ação, bem como (no Escólio) sua relação (inco-
mensurável?) com a vontade humana.
A Proposição 17 e seus dois Corolários conjugam uma tese co-
mumente aceita sobre a causalidade de Deus – aceita, entre outros, por
Leibniz –, a saber, que Deus é causa livre de todas as coisas, com outras
duas teses heterodoxas: que a produção de Deus é necessária e que, por
isso mesmo, só ela é livre. Ao negar, aparentemente, a liberdade aos ho-
mens 16 e ao tornar equivalentes os predicados divinos de “ser livre” e
“ser necessário” (i.e., ao negar a liberdade ao próprio Deus, ao menos
na medida em que ela é entendida tradicionalmente como poder de
escolha), o movimento demonstrativo da Proposição 17 já inclui ele-
mentos bastante polêmicos para justificar a atenção privilegiada que lhe
dispensou Leibniz. Mas há uma razão adicional, e potencialmente mais
perturbadora, que poderia igualmente explicar a admiração, tomando
esse termo em seu sentido espinosano 17 , que essa Proposição aparen-
temente provocou em Leibniz. Trata-se do movimento abruptamente
polêmico que o Escólio introduz em sequência à Proposição e a seus
dois Corolários. De maneira inédita até este momento do texto, a for-
ma virulenta com que o Escólio volta-se contra os erros dos filósofos
retira consequências heterodoxas apenas entrevistas nas provas formais
que ele comenta e ilustra 18 . Espinosa enfatiza o tom contundente do
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
98 Ulysses Pinheiro
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 99
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
100 Ulysses Pinheiro
17). Basta ressaltar um último trecho, no qual está contida uma dificul-
dade que é simultaneamente formal – poderíamos mesmo dizer, estilísti-
ca – e relativa ao conteúdo; trata-se da famosa passagem na qual Espi-
nosa mostra que, ao atribuirmos o intelecto e a vontade à essência de
Deus, deveríamos concluir que nem um nem outro teriam nada em
comum com o intelecto e a vontade humanos a não ser o nome – assim
como ocorre na relação que há “entre o cão, constelação celeste, e o
cão, animal que ladra”. Alexandre Koyré já mostrou, em um texto fa-
moso 21 , que, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, Es-
pinosa não endossa a tese da incomensurabilidade entre Deus e os ho-
mens, uma vez que seu argumento é uma redução ao absurdo, que tem
como premissa a proposição “O intelecto e a vontade pertencem à es-
sência de Deus”. Ora, como é bem sabido, a Ética nega essa premissa
(pois intelecto e vontade não só não são atributos divinos, e sim modos
infinitos imediatos do atributo do Pensamento – o que retira deles, pre-
cisamente, sua caracterização como faculdades de um sujeito –, mas, além
disso, distinguem-se apenas por uma distinção de razão). A tese da in-
comensurabilidade, portanto, deve ser atribuída aos adversários aludi-
dos pelo Escólio, e não ao próprio Espinosa. O interesse de ressaltar
esse trecho do Escólio, destacando-o dos demais, consiste em remetê-
lo pontualmente ao comentário de Leibniz: é importante observar que,
desde a que é provavelmente a primeira das anotações que registraram
sua leitura dessa passagem (G I, 146-147), ele não enxerga aí uma redu-
ção ao absurdo da posição contrária à de Espinosa, mas lhe atribui e-
quivocadamente sua defesa. Entretanto, ao invés de ver aí simplesmen-
te um erro de Leibniz, pode ser mais interessante tomar seu lapso como
o sintoma de um posicionamento mais geral com relação ao texto de
Espinosa. Para tornar esse aspecto claramente perceptível, percorra-
Como nos ensina Koyré, o exemplo, retomado no título de seu artigo, ilustra
uma relação de pura homonímia, e já havia sido formulado nas discussões so-
bre analogia em textos de Filon o Judeu, de Maimônides e de Averróes.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 101
seguir não poderia lhe ser atribuída; diz ele aí: “Além disso,” [quer dizer, além
do argumento que acabara de ser formulado contra a tese segundo a qual a
onipotência de Deus implicaria que Ele não pode criar tudo o que concebe]
“direi aqui também alguma coisa sobre o intelecto e a vontade que comumente
atribuímos a Deus”. “Comumente”, quer dizer, antes da reflexão filosófica.
24 Em sua edição dessas notas, Gaston Grua observa que, até sua transcrição,
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
102 Ulysses Pinheiro
jusqu’à Eth. III, prop. 13; ensuite, seulement les rares remarques mêlées à
l’analyse. En note, les passages soulignés dans les Opera posthuma et notes
marginales encore inédites. J’ajoute titres et références” (Grua, I, p. 277, nota
51).
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 103
ção assinalada ao final dessa anotação, Leibniz formula uma versão po-
sitiva da negação expressa pela Proposição 3 (“No caso de coisas que
nada têm de comum entre si, uma não pode ser causa da outra”), se-
gundo a qual a causa e o efeito devem ter alguma coisa em comum,
contrapondo-a à negação enunciada no Escólio da Proposição 17, se-
gundo a qual não há, entre o intelecto humano e o divino, nada de co-
mum exceto o nome, o que, pela Proposição 3, excluiria a possibilidade
de haver entre eles uma relação de causalidade.
Voltaremos ao primeiro problema assinalado por Leibniz mais
adiante; por ora, nos concentremos no segundo, pois ele não reaparece-
rá explicitamente nas futuras abordagens da Proposição 17. Haveria
realmente uma contradição entre essa última e a Proposição 3? Espino-
sa afirma, de fato, que, se algo é a causa tanto da existência quanto da
essência de outra coisa, então não pode haver entre elas nenhuma comu-
nidade (ao contrário, se algo – digamos, um homem – é causa apenas
da existência de outra coisa – de outro homem –, os dois podem con-
cordar inteiramente quanto à essência, que é uma verdade eterna 25 , de-
vendo diferir na existência). O Escólio formula essa lei metafísica de
uma maneira universal: “causatum differt a sua causa praecise in eo, quod a
causa habet” (“o que é causado difere da respectiva causa precisamente
naquilo que ele recebe dela”). Ora, Deus é causa universal da essência e
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
104 Ulysses Pinheiro
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 105
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
106 Ulysses Pinheiro
27 O que mostra que, no Escólio da Proposição 17, foi por uma mera conces-
são a seu objetor que Espinosa admitiu que nosso intelecto é, ao contrário do
divino, posterior às coisas – ele nota aí, entre parênteses, que essa tese é “co-
mo quer a maioria”, separando-a assim de sua própria visão (lembremos que a
sabedoria, como é dito no final do livro, é tão difícil quanto rara). O ônus de
Espinosa é, pois, o de demonstrar que o intelecto humano também é, como o
de Deus, anterior às coisas. Esse tema foi desenvolvido por ele no Tratado da
reforma do entendimento.
28 Esse segundo grupo encontra-se em G I, 139-150.
29 G I, 145-146. Utilizo, com algumas modificações, a tradução de Homero
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 107
cólio – o qual, aliás, é referido, por um lapso, como “os escólios” (“in
scholiis”), no plural 30 . Eis sua formulação:
“Nos escólios ele explica mais longamente que Deus criou tudo o que
está em seu intelecto (porém, como parece, criou apenas o que quis).
Diz que o intelecto de Deus também em essência difere de nosso inte-
lecto, e a não ser equivocadamente pode-se atribuir a um e outro o
nome de intelecto, tal como cão, signo celeste, e cão, animal que ladra.
O causado difere de sua causa naquilo que ele recebe dela. O homem
difere do homem quanto à existência que recebeu do homem e, de
Deus, quanto à essência que recebeu de Deus”.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
108 Ulysses Pinheiro
30 anos depois das primeiras, algo sobre essa questão poderá ser deci-
dido.
Esse terceiro momento em que Leibniz se dedica a examinar e
criticar a Ética é formulado em um contexto inteiramente diferente dos
demais: aqui, o texto de Espinosa é abordado como que indiretamente, no
interior de um comentário sobre o livro De recondita hebraeorum philoso-
phia, aut Elucidarius cabalisticus do teólogo J. G. Wachter 31 , que se utiliza
largamente da obra de Espinosa para tratar do tema do pensamento
místico da Cabala. Em 1853, Foucher de Careil descobre esse manus-
crito, datado por ele entre os anos de 1706 e 1710, e o publica com o
título sedutor, e um tanto enganoso, de Réfutation inédite de Spinoza par
Leibniz 32 – embora, como nota Foucher de Careil em sua introdução ao
livro, o manuscrito de Leibniz contivesse um título próprio, Animadver-
siones ad Joh. Georg. Wachteri librum de recondita Hebraeorum philosophia. Fri-
edmann questiona a importância desse grupo de anotações justamente
por causa de seu caráter enviesado e indireto: trata-se de um comentá-
rio de Leibniz sobre um comentário de Wachter sobre Espinosa. Ou,
nos termos do título do Capítulo de seu livro dedicado a esse comentá-
rio 33 , trata-se de ler Espinosa através de Wachter e da Cabala, isto é, a-
través de uma discussão sobre o misticismo. Ainda assim, Friedmann
reconhece que a existência desse texto tem a importância de um sintoma:
ao final de sua vida, mostra que Leibniz ainda tinha em Espinosa a figu-
ra de seu grande opositor 34 . O que importa por ora, porém, é examinar
31 Para um esclarecimento do significado que essa obra teve para Leibniz, cf.
55.
33 “Spinoza vu à travers J. G. Wachter et la Cabale”, Friedmann (1962), Cap.
7, pp. 201-229.
34 “Leur importance doit être ramenée à ses justes proportions mais non sous-
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 109
o modo como, nesse texto tardio, Leibniz volta novamente sua atenção
para a Proposição 17. Após um longo comentário sobre a Proposição
16, no qual ataca o necessitarismo espinosano, Leibniz faz a transição
para o comentário sobre a Proposição 17 – ou melhor, exclusivamente
sobre seu Escólio, o que indica, mais uma vez, que foi ela que captou
sobretudo sua atenção; diz ele aí:
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
110 Ulysses Pinheiro
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 111
“173. Espinosa foi mais longe [do que Hobbes]: ele parece ter ensinado
expressamente uma necessidade cega, tendo recusado o intelecto e a
vontade ao autor das coisas, e imaginado que o bem e a perfeição rela-
cionam-se apenas a nós, e não a Ele. É verdade que a opinião de Espi-
nosa sobre esse tema tem algo de obscuro. Pois ele concede o pensa-
mento a Deus, após lhe retirar o intelecto, cogitationem, non intellectum con-
cedit Deo”.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
112 Ulysses Pinheiro
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 113
38 Cf. Chauí (2009), pp. 324-325: “Dispondo-se a realizar a tarefa que, em sua
opinião, ainda não fora levada a cabo por ninguém, ou seja, a refutação defini-
tiva do espinosismo, "a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar",
Bayle, apoiado nas testemunhas, afirma que "por modéstia" Espinosa recusara
dar seu nome a uma seita e que poucos são seus seguidores. Entre estes, não
são muitos os que estudaram a obra e, destes, raros os que a compreenderam,
"desencorajados pelas perplexidades e abstrações" que a caracterizam. Com
isso, Bayle afasta o temor generalizado de que o espinosismo pudesse ter-se
espalhado e contaminado toda a Europa, atribuindo sua pequena presença à
obscuridade da própria doutrina. Assim procedendo, o refutador delimita seu
campo de ação: o processo não visa aos poucos espinosistas existentes, mas à
obra de Espinosa”.
39 Apud Friedmann (1962), p. 238. Ver referência aos jansenistas nessa mesma
página.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
114 Ulysses Pinheiro
ção 33, Esc. II, havia aproximado essas duas teses, afirmando que a liberdade
divina, embora seja idêntica à necessidade de sua essência, seria menos errada
se fosse figurada pela sua caracterização como indiferença absoluta da vontade
no ato de escolha do que pela escolha do melhor
41 No inicio dos Novos ensaios, é traçado um conflito dramático constitutivo da
obra, o qual não opõe, como se poderia supor, as teorias de Leibniz e Locke,
mas antes as de Leibniz e Espinosa: o primeiro, travestido sob a figura de Teó-
filo, parece confessar, numa espécie de autobiografia intelectual, ter, em certa
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 115
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
116 Ulysses Pinheiro
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 117
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
118 Ulysses Pinheiro
cálculo universal que formulasse uma linguagem lógica para uma filoso-
fia que reunificasse a cristandade e a ausência de uma obra publicada
em vida que fosse exemplar pelo menos do que esse sistema poderia vir
a ser.
Não é tampouco incomum, entre os comentadores, a menção ao
“sistema” de Leibniz – mas essa menção parece indicar mais o reco-
nhecimento de que ele sempre perseguiu um sistema do que a identifi-
cação de um paradigma claramente determinado, ao contrário do que
ocorre com o espinosismo, no qual a Ética é uma referência central e
solar, iluminando a totalidade da obra. Comparada à solenidade hieráti-
ca das Proposições da Ética, com sua linguagem emanada do ponto de
vista da eternidade, a linguagem da Teodiceia, guiada pela exploração da
obra de Bayle, embrenhada em seus múltiplos labirintos, é bem mais
terrena e circunstancial 45 . Ao percorrermos as inúmeras listas de defini-
ções de Leibniz, suas teorias para a elaboração de uma linguagem for-
mal, os variados esboços ou resumos de um sistema dedutivo comple-
to, não podemos nos impedir de ficar impressionados com seu caráter
45 Sobre o estilo em que deve ser escrita a filosofia, cf. Roger Ariew (1995), p.
25, na qual é citada uma carta a Simon Foucher escrita em 1675 (A I, ii 245-
249; G I 369-374). Nela, a descrição de Leibniz parece prefigurar o estilo dos
Ensaios de Teodiceia, escritos 35 anos depois, o que talvez indique apenas a fide-
lidade a uma preferência literária: “It is true that I often glanced at Galileo and
Descartes, but since I became a geometer only recently, I was soon repelled by
thier manner of writing, which requires deep meditation. As for myself, though
I always liked to meditate, I always found it difficult to read books that cannot
be understood without much meditation. For, when following one’s own
meditation, one follows a certain natural inclination and gains profit along with
pleasure, but one is enormously cramped when having to follow the medita-
tions of others. I always liked books that contained some fine thoughts, books
that one could read without stopping, for they aroused ideas in me which I
could follow at my fancy and pursue as I pleased. This also prevented me from
reading geometry books with care, and I must admit that I have not yet
brought myself to read Euclid in any other way than one commonly reads
novels. I have learned from experience that this method in general is a good
one…”
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 119
fragmentário. Isso não deve ser visto como uma falha, mas como um
traço essencial do estilo leibniziano de escrita, um autor em busca de
um sistema que, no entanto, deparou-se com sua dificuldade inaudita e
laborou em sua direção através de ensaios e notas. Mais do que uma
dificuldade, porém (o que ainda remete para uma negatividade ou incom-
pletude contingentes), trata-se mais propriamente de um adiamento: en-
quanto Espinosa poderia escrever encerrando-se a si mesmo em um
sistema fechado, Leibniz tinha de se defrontar previamente com a tare-
fa de unificar o domínio dissonante da cristandade, resolvendo o pro-
blema da teodiceia sem deixar de levar em conta que, diante de ques-
tões tais como a predestinação da graça e sua relação com o livre arbí-
trio dos homens, as respostas dos cristãos não encontravam um solo
comum obviamente compartilhado. Leibniz não podia, à imagem de
Espinosa, partir de uma “ideia verdadeira dada”, pois se tratava preci-
samente de construir a unidade cristã através de seus escritos. Ou seja,
tratava-se ainda de um domínio não unificado, parcial, mutilado e con-
fuso, que exigia, como contrapartida, uma forma de escrita aberta, po-
rosa. Para Espinosa, a decisão já estava feita: a verdade fora da escritura a
comandava por inteiro. Leibniz tinha de se defrontar, ao contrário, com
uma tarefa no interior imanente da linguagem. Note-se bem: não estou
afirmando que Leibniz não quis construir um sistema – bem o contrá-
rio –, nem tampouco que ele não pôde realizá-lo, mas apenas que não
encontramos em sua obra nada semelhante à Ética, e que essa ausência
deve ser vista positivamente 46 . O sentido positivo dessa ausência pode
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
120 Ulysses Pinheiro
porém, conclui Adams após a transcrição desse trecho, falha pelo menos com
relação à Teodiceia, pois nela tantas “definições acuradas” são omitidas “that
one must turn to other works to find the material necessary for a more pro-
found examination” (p. 52).
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 121
***
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
122 Ulysses Pinheiro
Referências bibliográficas:
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
Jogos de palavras 123
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.
124 Ulysses Pinheiro
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 91-124, jan.-jun. 2011.