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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.

03048

DEFINIÇÕES DE LIVRE ARBÍTRIO E GRAÇA EM AGOSTINHO


DE HIPONA: SUBSÍDIOS PARA A MORAL NA ANTIGUIDADE
CRISTÃ

PIRATELI, Marcos Roberto (Fund. Araucária/SETI/UNESPAR/FAFIPA-GTSEAM)


PEREIRA MELO, José Joaquim (DFE/PPE/UEM-GTSEAM)

Agostinho (354-430), Bispo de Hipona, norte da África, é tido como um dos


pensadores mais importantes da Antiguidade cristã, posto que seu legado
teológico/filosófico contribuiu significativamente para construção da cultura ocidental.
Em meio à consolidação do cristianismo no fim da Antiguidade, Agostinho e os
Padres da Igreja contribuíram para uma nova orientação ao processo formativo, que
passava pela santificação do Homem. Não obstante, contraditoriamente, salvaram os
elementos do pensamento antigo, representando um equilíbrio entre a herança da cultura
clássica (verdade filosófica, racionalidade, etc.) e a religião cristã (verdade revelada,
auxilio divino, etc.).
Nesse processo, o exercício intelectual de Agostinho respaldou a sua luta
apologética para munir a fé de argumentos racionais; desse modo, com sua obra nascia a
filosofia cristã por elaborar o primeiro conjunto filosófico efetivamente ligado à teologia.
Destarte, ao canalizar o pensamento grego e latino para o cristianismo, possibilitou que a
razão se abrisse à transcendência. Em suas reflexões constatou pontos importantes para a
ética cristã, tidas como expressivas e conciliares entre si, segundo a qual marcam o
caminhar histórico e formativo do Homem, a saber, o livre arbítrio e a graça. A primeira
tem por característica a ação do Homem, enquanto que a segunda constitui-se na ação de
Deus.

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Livre arbítrio

Um dos temas mais caros tratados pelos cristãos na época patrística foi o conceito
de liberdade. Tal importância fica explícita na medida em que os Padres da Igreja
inseriram a questão da liberdade no debate sobre a moral. Não só isso, colocando a
liberdade como questão de ética ligada ao sobrenatural, devido às suas preocupações
essencialmente religiosas, não entenderam a liberdade senão como algo que passava por
duas vias: o esforço humano e o auxílio divino.

Os padres dos primeiros séculos, sobretudo aqueles que tiveram sua formação a
partir da cultura grega, destacaram a racionalidade do Homem como fator do bom uso do
livre arbítrio: Justino (†163?), por exemplo, ao combater a ideia de determinismo
argumentou que a salvação dos Homens passava por sua vontade livre, isto é, como
criaturas racionais tinham a capacidade de escolher entre o justo ou injusto; a moral cristã
em Clemente de Alexandria († antes de 215) também passava pelo juízo humano na
libertação das paixões; Orígenes (†253/4) no livro terceiro do seu De principiis aponta para
a responsabilidade do Homem frente à sua liberdade, sobretudo por sua alma ser fundada
na racionalidade. Essa argumentação também esteve presente nos padres latinos: Lactâncio
(†330?), para citar um caso, isentou Deus do abuso de imposições posto que a razão é
essencial para uso da liberdade na prática do bem, logo, tal escolha está inerente à escolha
dos Homens. (OSBORN, 2002; QUASTEN, 2004).

Esses interesses resultaram em implicações morais e perpassaram inúmeros tratados


patrísticos, sobretudo aqueles que diziam respeito à moral familiar ou mesmo vinculadas a
questões comportamentais. Taciano (séc. II) em seu Discurso contra os gregos chegou a
afirmar que a astrologia era uma invenção demoníaca, um tipo de escravidão posta pelo
livre arbítrio; em Tertuliano (†220?) a prática do bem é resultado da espontaneidade
garantida pelo livre arbítrio; e Novaciano (séc. III) no De bono pudicitiae argumenta que o
domínio dos desejos resulta em um certo tipo de paz, visto que a superação destes desejos
significava a recuperação da liberdade (QUASTEN, 2004).

Nas discussões sobre o livre arbítrio nos padres contemporâneos de Agostinho é


possível identificar uma moral rigorosa, até mesmo radical. Para Basílio de Cesaréia
(†379) sem o livre arbítrio não poderia haver base para elogio e/ou censura, vinculando

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assim moral com o exercício da livre escolha humana; em sua luta contra gnósticos e
maniqueístas Ticônio (†390?) insistiu no valor do livre arbítrio como fator decisivo junto à
graça para a salvação; o poeta cristão Cláudio Mário Vitor (†450) fez questão de
mencionar e defender o livre arbítrio apontando a liberdade humana como sua maior
glória. Em João Crisóstomo (†407), tal como Agostinho, o livre querer é distinto de
liberdade, logo, é responsabilidade moral escolher fazer o bem ou o mal. (OSBORN, 2002;
SIMONETTI, 2007; DI BERARDINO, 2007).

Nessas elaborações não há dúvida quando ao papel marcante de Agostinho, que,


sustentados em seus predecessores (teólogos), recapitulou o tema do livre arbítrio como
ponto central da ética cristã, sistematizando o debate ao estabelecer a diferença entre livre-
arbítrio e liberdade, definindo o tema da liberdade como condição para o agir moral.

O livre arbítrio garantiria ao Homem, em certo sentido, um estado de “poder”: ou


seja, o fazer aquilo que se quer. Nesse sentido, o Bispo de Hipona destacou a importância
da vontade humana – num sentido de tendência e/ou disposição do espírito:

[Agostinho] – Portanto, penso que agora já vês: depende de nossa


vontade gozarmos ou sermos privados de tão grande e verdadeiro bem.
Com efeito, haveria alguma coisa que dependa mais de nossa vontade do
que a própria vontade? Ora, quem quer que seja que tenha esta boa
vontade, possui certamente um tesouro em mais preferível do que os
reinos da terra e todos os prazeres do corpo (O Livre-arbítrio, I, 12, 26).

Dessa forma, a liberdade é própria da vontade, pois mesmo a razão humana, como
portadora do saber e do pensar, assim como a conhecedora do bem, não lhe cabe a decisão
de aceitação ou rejeição do bem, por ser tarefa exclusiva da vontade. Mesmo sendo
pertencente ao espírito, a vontade (entendida como movimento da alma) difere da razão
(exercício intelectivo). O conhecimento cabe à razão, mas à vontade caberia a escolha.
Essa potencialidade da alma humana, a vontade livre, constituiu-se para Agostinho
como outro elemento que diferenciava homens e animais (O Livre-arbítrio, III, 5, 15).
Aliás, somente existe o livre arbítrio devido àquele outro elemento que particulariza o
Homem, a razão:

E é justamente por possuir a razão que o homem tem a capacidade de


identificar ou conhecer a “perfeita ordem” dos seres criados, estabelecida
por Deus, e, conhecendo-a, poder escolher livremente (livre-arbítrio)

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entre respeitá-la, contribuindo, assim, para reta ordem, ou transgredi-la,
gerando a desordem, ou o mal. Assim, diferentemente dos demais seres
do universo, que não têm a capacidade de escolher, mas estão
programados deterministicamente para agirem sempre de acordo com a
ordem, o homem é livre para seguir ou não a ordem estabelecida por
Deus (COSTA, 2002, p. 288).

Em Agostinho o termo arbitrium apareceu pela primeira vez no livro I, cap. 6, 14


de O Livre-arbítrio – finalizado entre os anos 391 e 395 – com um sentido de decisão
autoritária, por estar separado de liberum; mas no decorrer da obra aparece a locução
liberum arbitrium (mais de uma dezena de vezes, assim como no título da obra), em que a
expressão assumiu o sentido de determinação da vontade a partir de um ato de liberdade
psicológica (ASSIS OLIVEIRA, 2001).
A partir disso, a boa vontade passava a ser o desejo pelo qual o Homem procurava
atingir a sabedoria, o que na ótica do cristianismo significava a vida reta e a santificação
(O Livre-arbítrio, I, 12, 25). O desejo da vida feliz, ou o seu insucesso, com a vida infeliz,
dependem então não mais da determinação dos deuses (conforme a cultura greco-romana),
mas da vontade dos Homens:

[Agostinho] – Logo, que motivo existe para crer que devemos duvidar –
mesmo se até o presente nunca tenhamos possuído aquela sabedoria – que
é pela vontade que merecemos e levamos uma vida louvável e feliz; e
pela mesma vontade, que levamos uma vida vergonhosa e infeliz? (O
Livre-arbítrio, I, 13, 28).

O livre arbítrio, apesar de ser um bem, comporta um perigo: o pecado. Todavia,


justamente através dele que se torna possível o estágio da beatitude a partir do momento
em que o Homem percebe tanto a necessidade de voltar-se para o Soberano Bem (Deus),
como o do querer este determinado estado. Logo, para tal realização, é preciso, antes, ser
livre, como resultado da ação própria da vontade, e do desempenho da memória e da
inteligência (A Trindade, X, 11, 17-18). No referente à correção do erro (pecado), a
vontade é a ação mais importante, visto intervir “em todos os atos do espírito e
constituindo o centro da personalidade humana” (MOTTA PESSANHA, 1999, p. 5).
Mesmo que no diálogo com Evódio (em O Livre-arbítrio) Agostinho tenha
chegado, juntamente com o amigo, à conclusão de que o erro (pecado, ou qualquer que seja
o termo) era decorrente e dependia do livre arbítrio (I, 11a, 21c), não chegaram a uma
conclusão sobre a procedência do impulso que levava o movimento da alma (vontade) a ir

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da perfeição ou felicidade para o pecado ou defecção (II, 20, 54). A única afirmativa que se
encontra no colóquio era que tal impulso não provinha nem de um agente supranatural, isto
é, Deus – pois neste caso para eles não se poderia identificar o pecado, mas sim, uma
“injustiça divina” – , nem de uma força inferior ao Homem, por falta de poder. Portanto, o
movimento de afastamento provinha somente da vontade da alma. Destarte não se pode
falar em destino no pensamento agostiniano, seja na perfeição ou imperfeição humana, mas
em um movimento da alma, o livre arbítrio (III, 1, 2).
Em virtude disto, a causa da aversio Deo – caminho do ser para o não-ser: o mal –
ocorre mediante a vontade. Portanto, o desvio da vontade, resultado do mau uso do livre
arbítrio, resultava no pecado:

[Agostinho] – Logo, só me resta concluir: se, de um lado, tudo o que é


igual ou superir à mente que exerce seu natural senhorio e acha-se dotada
de virtude não pode fazer dela escrava da paixão, por causa da justiça, por
outro lado, tudo o que lhe é inferior tampouco o pode, por causa dessa
mesma inferioridade, como demonstram as constatações precedentes.
Portanto, não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da
paixão a não ser a própria vontade e o livre-arbítrio (O Livre-arbítrio, II,
11a, 21c).

Contudo, segundo Agostinho, para a consumação da má obra é preciso, antes,


existir a má vontade:

Deus, Autor das naturezas, não dos vícios, criou o homem reto; mas,
depravado por sua própria vontade e justamente condenado, gerou seres
desordenados e condenados [...]. Por isso, do mau emprego do livre-
arbítrio originou-se verdadeira série de desventuras (A Cidade de Deus,
XIII, 14).

Para Agostinho o pecado original – transgressão da Lei – teve por conseqüência


uma rebelião do corpo contra a alma, alterando a função de ambos: o corpo assume o
comando e passa a reger a alma. Logo, a alma, ao praticar o mal, mediante o livre arbítrio,
volta-se para a matéria, fartando-se com o sensível, crendo somente na realidade da
matéria: não crendo em mais nada, começa a se considerar um corpo (GILSON, 2001),
voltando-se para as coisas temporais (A Verdadeira Religião, VI, 38, 70).
Assim sendo, o mundo, criado pelo Sumo Bem, presencia o mal. Essa defecção foi
denominada no sistema agostiniano como “pecado”, que é sempre um ato voluntário,

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proveniente do livre arbítrio (Confissões, VII, 3, 5), devido ao fato de a alma mover-se
conforme a sua vontade. Daí, para Agostinho, o mal ser tido como “justo” castigo para o
Homem, pelo motivo mesmo do padecimento que acarreta. A vontade é, para ele, a causa
primeira do pecado, e sem ela não poderia haver pecado (O Livre-arbítrio, III, 17, 49).
Tudo dependia do movimento da alma, nada havia seguindo um destino ou ordem
supranatural para a execução do pecado:

Se essa inclinação para os bens inferiores fosse natural à vontade, isto é,


necessária, então não haveria culpa alguma no homem. O movimento
pelo qual uma pedra é impelida e cai é-lhe natural; mas o movimento da
alma em direção às coisas inferiores não é; diferentemente da pedra, ela
pode detê-lo (CUNHA, 2001, p. 75).

Pensando dessa forma, colocou a liberdade como essência da vontade racional, o


que faz com que o Homem também tenha parcela nos méritos ao praticar o bem, como
sentenciou no seu tratado contra o maniqueísta Fortunato: “All’anima razionale che è
nell’uomo, Dio infatti ha dato il libero arbitrio, per cui l’uomo poteva avere merito soltanto
a condizione di essere buono per sua volontà, non per necessità” (Contro Fortunato, 15).

Não obstante, ao elaborar esse conceito de livre arbítrio, concomitantemente surgiu


um novo problema para o pensamento agostiniano: seria o livre arbítrio um mal, uma vez
que sem ele o homem não teria pecado? A resposta é negativa, primeiramente porque foi
dado por Deus – que em tese seria o sumo bem –, logo, para ele não poderia ser um mal, e
em segundo lugar, como faculdade que permite ao Homem a escolha do pecado, garantia-
lhe por extensão, a possibilidade da procura da perfeição:

[Agostinho] – ... parecia a ti, como dizias, que o livre-arbítrio da vontade


não devia nos ter sido dado, visto que as pessoas servem-se dele para
pecar. Eu opunha à tua opinião que não podemos agir com retidão a não
ser pelo livre-arbítrio da vontade. E afirmava que Deus no-lo deu,
sobretudo em vista desse bem (O Livre-arbítrio, II, 18, 47).

Agostinho acreditou resolver essa problemática ao “assegurar” aos Homens a


possibilidade de serem “perfectíveis” (O Livre-arbítrio, II, 17, 46). Para tal, colocou a
vontade livre entre o Bem supremo e os bens mutáveis, logo, classificou o livre arbítrio
como um bem médio, mas um bem (II, 19, 52).

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Em conseqüência do pecado, promovido pelo mau uso do livre arbítrio, a alma
decaída não mais pode se salvar por suas próprias forças, pois o querer não é suficiente, é
preciso poder. Isso posto, a teoria do pensador cristão centrou-se na incapacidade do
homem caído e, da indispensabilidade da graça redentora como socorro divino outorgado
por Deus ao livre arbítrio. Se a ação do Homem evidencia-se no livre arbítrio, a graça
constituía-se na ação de Deus. Nisto constituíram os fundamentos básicos da doutrina da
graça tão marcante no Bispo de Hipona.

Graça

As interpretações feitas por Agostinho sobre o conceito de graça foram tão


impactantes no cristianismo subseqüente que, pelo menos no ocidente, os usos técnicos
e/ou teológicos do termo [graça] ficaram condicionados às suas reflexões. Não por acaso o
tradição posterior o cognominou “Doutor da Graça”. Isto não significa dizer que os padres
orientais, sobretudo aqueles que escreveram em grego, por não elaboraram obras
sistemáticas, ou não intitularem seus tratados com o comum “De gratia”, não tivessem se
preocupado com o auxilio divino para a economia da salvação. Nos mais notórios dos
padres gregos a graça é ponto importante para a consecução das exigências morais: para
Clemente de Alexandria a graça é elemento de filiação divina; Orígenes acentua que o
progresso do Homem livre se dá por meio do Espírito divino, isto é, em virtude da graça;
Basílio de Cesaréia insistiu no senhorio do Espírito empregando inúmeras vezes o termo
graça. Semelhante às reflexões agostinianas, Gregório de Nissa (†394) estabelece ligação
entre liberdade humana e graça divina, em que esta cooperaria para os esforços da vontade,
e em João Crisóstomo a graça era como que a força que impelia a alma a fazer o bem. Os
padres latinos também contribuíram para essas construções teológicas: de forma radical,
Cipriano de Cartago (†258) definiu a graça como gratuita, mas, somente seria possível ter
este auxilio na Igreja; Hilário de Poitiers (†367) também estabelece relação entre liberdade
humana e graça, a primeira como vontade e a segunda como auxilio. No entanto, os
debates nos quais se envolveu Agostinho lhe oportunizaram estabelecer conclusões que
foram assumidas pela Igreja universal; isto posto, seu entendimento de que a graça é (a)
“medicina” para os decentes de Adão e (b) “auxílio” indispensável para praticar o bem, por
extensão, para a salvação, foi adotado como fundamento nos textos e discursos do clero,

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por extensão, desempenhou um papel decisivo para formação dos cristãos (STUDER,
2002).
No entendimento agostiniano, Deus, mediante sua Lei, já havia demonstrado ao
Homem o mal a ser evitado e o bem a ser praticado. Contudo, a eficácia, em conseqüência
do pecado, somente seria possível com o auxilio da graça. Em suma, para se fazer o bem,
são necessárias duas condições: o dom de Deus, que é a graça, e o livre arbítrio, conforme
seu próprio testemunho:

Portanto, quem de modo conveniente se serve da lei, chega ao


conhecimento do mal e do bem e, não confinado na sua força, refugia-se
na graça, cujo auxílio lhe dá forças para se afastar do mal e fazer o bem.
E quem recorre à graça? Não é aquele cujos passos são orientados pelo
Senhor e escolhe seus caminhos? (Sl 36, 23). Assim, o desejo da graça é
início da graça, da qual fala o salmista: Então eu digo: Agora começo:
está mudado a destra do Altíssimo (Sl 76, 11). Conseqüentemente,
devemos confessar que temos liberdade para fazer o mal e o bem; mas
para fazer o mal, é mister libertar-se da justiça e servir ao pecado, ao
passo que na prática do bem, ninguém é livre, se não é libertado por
aquele que disse: Se, pois, o Filho vos libertar; sereis, realmente, livres
(Jo 8, 36). Mas ninguém pense que, uma vez libertado da sujeição ao
pecado, não lhe é mais necessário o auxílio do libertador. Pelo contrário,
ouvindo dele: Sem mim nada podeis fazer (Jo 15, 5), responda-lhe: Tu és
minha ajuda; não me deixes (Sl 26, 9) (A correção e a graça, 1, 2).

Nesse sentido, estabeleceu-se uma relação tríplice – característica sempre presente


em Agostinho, que em muitos aspectos utilizou-se das características humanas como
reflexo da Trindade Divina – a saber: liberdade, vontade e graça. Uma síntese desta relação
foi apresentada por Étienne Gilson:

Sem o livre-arbítrio, não haveria problema; sem a graça, o livre-arbítrio


não quereria o bem, ou, se o quisesse, não poderia consuma-lo. Portanto,
a graça não tem por efeito suprimir a vontade, mas, tendo esta se tornado
má, faze-la boa. Esse poder de utilizar direito o livre-arbítrio (liberum
arbitrium) é precisamente a liberdade (libertas). Poder fazer o mal é
inseparável do livre-arbítrio, mas poder não faze-lo é um sinal de
liberdade, e encontrar-se confirmado em graça a ponto de não mais poder
fazer o mal é o grau supremo de liberdade. O homem que a graça de
Cristo domina da maneira mais completa é, pois, também o mais livre:
libertas vera est Christo servire (GILSON, 2001, p. 155).

Apesar de Agostinho desde o início de sua vida cristã estar certo da


indispensabilidade da graça para a concretização de santificação do Homem, “Eis a

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misericórdia e o juízo; misericórdia para a eleição que alcançou a justiça de Deus; juízo
para os demais que ficaram cegos. No entanto, os que quiseram, acreditaram; os que não
quiseram, não acreditaram. Portanto, a misericórdia e a justiça verificam-se nas próprias
vontades. Pois esta eleição é obra da graça, não dos méritos. Um pouco antes o Apóstolo
dissera: Assim também no tempo atual constituiu-se um resto segundo a eleição do graça;
e se é por graça, não é pelos obras; do contrário a raça não é mais graça (Rm 11, 5-10).
Portanto, gratuitamente foi alcançada porque foi alcançada a eleição” (A Predestinação dos
Santos, VI, 11), foram os debates teológicos em que se envolveu entre os anos 411 a 418,
que lhe deram o estímulo para a intensificação da propagação de sua doutrina.
Tais embates tiveram como precursor, Pelágio – monge bretão que estabeleceu-se
na África como fugitivo de Roma após o saque de Alarico, em 410 –, que acusou
Agostinho de formulação de idéias que compreendiam na anulação do livre arbítrio. A
crítica de Pelágio centrou-se principalmente no seguinte trecho das Confissões: “daí-me o
que me ordenais, e ordenai-me o que quiseres” (X, 29, 40). (MORESCHINI; NORELLI,
2000).
Esses debates ficaram mais acentuados quando suas idéias, ao assumirem corpo
doutrinário, foram difundidas por dois de seus discípulos Celéstio e Juliano de Eclano –
este bispo italiano que defendeu as teorias de Pelágio, e destinou suas obras no combate às
exposições de Agostinho.

O pelagianismo proclamava a onipotência moral da vontade; mesmo


quando não quer o bem nem o pratica, o homem pode faze-lo por virtude
exclusiva das suas forças naturais. Não é verdade que existe na sua
natureza uma falha essencial, uma força secreta que o empurre para o
mal; o pecado original não existe, e Adão, criado mortal e concupiscente,
não nos prejudicou senão pelo seu exemplo. Portanto, o batismo não é
estritamente necessário e a graça santificante não é indispensável à vida
sobrenatural. Não há, pois, necessidade – visto que a vontade do homem
é o único fator em jogo – de que “a autoridade divina penetre no
coração”. Como conseqüência, em última análise, a Redenção perde o seu
sentido de regeneração da morte para a vida: quando muito, é um
exemplo de elevação para Deus (DANIEL-ROPS, 1991: p. 38).

Em decorrência disso, o bispo de Hipona dedicou significativo número de livros


para refutá-lo, utilizando-se de argumentações doutrinais, pois esses embates visaram
resolver questões centrais – essenciais – do cristianismo. Não há dúvida quanto a

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complexidade da “crise pelagiana”, e após a difusão do pelagianismo pela África,
Agostinho não mediu esforços para combatê-la.
O resultado foi a conquista de sucessivas vitórias por parte de Agostinho, como a
condenação do pelagianismo no Concílio de Cartago, em 411, e posteriormente
conseguindo sua condenação pelo papa Inocêncio I, em 417, que por ser de Roma alcançou
significado universal, e com isso, expressiva conseqüência para o cristianismo subseqüente
(DENZINGER, 2007).
Em face disso, a graça tem, para Agostinho, e para o cristianismo, um aspecto
salutar para a santificação e salvação: a sua gratuidade:

O próprio conceito de [graça] como auxilium gratuitum, adotado na


problemática pelagiana, isto é, da relação entre o Deus transcendente a
liberdade humana corrompida, inclui, depois, amplamente a doutrina
sobre Deus e sobre o homem, melhor, a cristologia e a eclesiologia. Para
o próprio Agostinho, o auxilium, necessário a cada descendente de Adão,
é sempre graça de Cristo e [graça] comunicada na Igreja (STUDER,
2002, p. 638).

Essa foi a novidade em sua ação em relação aos Padres da Igreja que o precederam;
e, foi além, em sua insistência na relação entre o auxilio divino para salvação sem a
necessidade dos méritos, e isto, em um local específico, a Igreja.

Considerações Finais

A rigor, o livre arbítrio em Agostinho representa uma característica da natureza do


Homem: enquanto aspecto poderoso de sua vontade que lhe outorga as condições
(racionais) de escolher o bem ou o mal. Concluiu assim que livre arbítrio e liberdade são
distintos: enquanto o primeiro diz respeito à possibilidade de escolher/fazer algo, a
liberdade era fazer/escolher o bem, daí a importância do papel divino. O mal uso dessa
faculdade, por meio da má vontade do próprio Homem, limita este na possibilidade de
alcançar uma formação ideal, o que somente seria possível com o auxílio divino, a graça.
Tal definição, posteriormente, o levou a debates teológicos, cujo clímax centrou-se
nos embates com Pelágio, marcando uma nova época para o pensamento agostiniano,
sobretudo ao propor uma antropologia filosófica que vinculou profundamente Homem e
Deus, mais precisamente ao identificar Deus como ator do drama histórico ao definir seu

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conceito de graça, isto é, Deus não seria somente espectador, como afiançou os
pelagianos; mas auxilia os homens, como asseverou Agostinho.
Ao trilhar este caminho, o pensador cristão apontou o que acreditava ser a solução
para as expectativas do homem de seu tempo, contribuindo para as discussões sobre a
moral tendo em vista a formação do Homem espiritual e religioso do mundo que estava
nascendo, o medievo; o que lhe garantiu o título de “Doutor da Graça”.

REFERÊNCIAS

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