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A Doutrina da Eleição na História da 

Igreja
Publicado em 4 de agosto de 2010 

Por Ronaldo Guedes Beserra

Deus predestina os eleitos para a salvação com base única e


exclusivamente em sua soberania, a despeito de sua
presciência, ou Deus predestina os eleitos para a salvação
com base em sua presciência? Deus elegeu os salvos
unicamente conforme a sua soberana vontade,
independentemente de em sua presciência já saber quem
responderia afirmativamente ao convite do evangelho, ou
Ele elegeu os salvos baseado no fato de que, por sua
presciência, conhecendo de antemão àqueles que
responderiam afirmativamente ao evangelho, a estes elegeu,
a estes predestinou? O que a história da teologia nos diz a
respeito deste assunto? O que pensaram sobre essas
questões os primeiros pensadores da igreja, os chamados
pais da igreja? Como pensavam a respeito dessas questões
os Reformadores? Responder a estas interrogações é o
objetivo desta pesquisa.

I. OS PAIS DA IGREJA

Os primeiros pais da igreja, embora aparentemente não


haviam ainda mergulhado profundamente nesta discussão
teológica, acreditavam no fato de que, baseado em sua
presciência, Deus determinava o futuro dos homens. Louis
Berkhof em sua Teologia Sistemática fala sobre o assunto:
A predestinação não constitui um importante assunto de
discussão na história até o tempo de Agostinho. Os
primeiros pais da igreja, assim chamados, aludem a ela, mas
em termos que fazem pensar que não tinham ainda uma
clara concepção do assunto. Em geral a consideravam como
a presciência de Deus com referência aos atos humanos,
baseado na qual Ele determina o seu destino futuro.
(BERKHOF, 1992, p. 110).

Os que hoje defendem que a predestinação de Deus está


baseada unicamente em sua soberania, a despeito de sua
presciência, são chamados de calvinistas ou calvinistas
extremados. Um dos assim chamados cinco pontos do
Calvinismo é conhecido como “graça irresistível”, ou seja,
aqueles a quem Deus por sua soberania elegeu para a
salvação não podem resistir à graça de Deus, não podem
resistir à salvação que lhes foi predeterminada desde antes
da fundação do mundo. Para os arminiamos, que fazem o
contra-ponto ao calvinismo (e também para alguns assim
chamados calvinistas moderados), este ponto do calvinismo
anula o livre-arbítrio do homem, ou seja, sua liberdade de
optar ou não pela salvação que Deus, em Cristo, oferece ao
ser humano. Temos então dois pólos da discussão teológica
que surgiu na história da teologia: (1) o homem é livre para
fazer suas escolhas; aquilo que Deus determina, Ele o faz
baseado em sua presciência; e (2) o homem não tem total
liberdade de escolha e, portanto sua salvação e seu futuro
está totalmente determinado por Deus com base em sua
soberania.[1] Normam Geisler, em seu livroEleitos, mas
livres dedica todo um capítulo para mostrar o que os pais da
igreja disseram sobre o assunto da eleição e livre-arbítrio, e
concorda com o fato de que praticamente todos eles (os pais
da igreja) acreditavam que Deus determina o futuro baseado
em sua presciência da escolha ou da liberdade de escolha de
cada um. Geisler introduz as citações dos pais da igreja
sobre eleição divina e livre-arbítrio humano da seguinte
forma:
Com exceção dos escritos dos últimos anos de Agostinho,
que após sua experiência na controvérsia donatista concluiu
que as pessoas podiam ser forçadas a crer, quase todos os
grandes pensadores até a Reforma afirmaram que o ser
humano tem o direito de escolher o contrário, mesmo no
estado caído. Ninguém cria que um ato coagido é um ato
livre. Em resumo, todos teriam rejeitado o pensamento do
calvinismo extremado de que Deus age irresistivelmente
sobre quem não quer. (GEISLER, 2005, P. 170).

Geisler faz uma citação do que Justino Mártir (100-165


D.C.) fala sobre livre-arbítrio (Dialogue, CXLI) e de como
ele entendia a punição de Deus sobre os ímpios (anjos ou
homens) com base na presciência divina:
Deus, no desejo de que homens e anjos seguissem sua
vontade, resolveu criá-los livres para praticar a retidão. Se a
Palavra de Deus prediz que alguns anjos e homens
certamente serão punidos, isso é porque ela sabia de
antemão que eles seriam imutavelmente ímpios, mas não
porque Deus os criou assim. De forma que quem quiser,
arrependendo-se, pode obter misericórdia (GEISLER, 2005,
p. 170).

Geisler cita ainda algumas palavras de outro Pai da Igreja,


Ireneu (130-200 D.C.), que também falou sobre o livre-
arbítrio do homem (Contra as heresias, IV, 37.1,4):
A expressão “Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos [...]
mas vocês não quiseram” ilustra bem a antiga lei da
liberdade do homem, porque Deus o fez livre desde o início,
com vontade e alma para consentir nos desejos de Deus sem
ser coagido por ele. Deus não faz violência, e o bom
conselho o assiste sempre, por isso dá o bom conselho a
todos, mas também dá ao homem o poder de escolha, como
o tinha dado aos anjos [...] Sendo, porém, o homem livre na
sua vontade, desde o princípio, e livre é Deus, à semelhança
do qual foi feito, foi-lhe dado, desde sempre, o conselho de
se ater ao bem, o que se realiza pela obediência a Deus
(GEISLER, 2005, p. 171).

Geisler cita também Tertuliano (155-225), conforme


registrado nos escritos deste pai da igreja conhecidos
como Contra Marcião (2.5):
Eu acho, então, que o ser humano foi feito livre por Deus,
senhor de sua própria vontade e poder; indicando a
presença da imagem de Deus e a semelhança com ele [...] o
ser humano é livre, com vontade ou para a obediência ou
para a resistência [...] tanto a bondade quanto o propósito
de Deus são descobertos no dom da liberdade em sua
vontade dado ao ser humano (GEISLER, 2005, p. 173).

Geisler cita também Orígenes (C. 185-254), falando sobre o


tema do livre-arbítrio humano em seus escritos
intitulados De Principiis:
Isso também é claramente definido no ensino da Igreja de
que cada alma racional é dotada de livre-arbítrio e volição
[...] Há, de fato, inúmeras passagens nas Escrituras que
estabelecem com extrema clareza a existência da liberdade
da vontade (GEISLER, 2005, p. 173, 174).

II. PELÁGIO

Um pensador do quarto século d.C., cujo nome era Pelágio


(354-418), foi um dos defensores da liberdade de escolha do
ser humano. Ele defendeu a salvação do homem baseada na
presciência que Deus tem desta liberdade de escolha da
espécie humana. Berkhof citando Wiggers, nos informa que
“Segundo Pelágio, a predeterminação da salvação ou
condenação, funda-se na presciência. Conseqüentemente,
ele não admitia uma ‘predestinação absoluta’, mas, em
todos os aspectos, uma ‘predestinação condicional’”
(BERKHOF, 1992, p. 110). Em seu livro Deus é brasileiro:
as brasilidades e o reino de Deus, Jorge Pinheiro faz uma
descrição da visão e teologia de Pelágio em relação a vários
aspectos. Pinheiro o chama de “arauto da liberdade” e, em
relação ao assunto em estudo nesta dissertação nos diz o
seguinte a respeito de Pelágio:
As reflexões de Pelágio [...] consideravam existir uma
bondade inata na natureza humana, fruto da imago Dei. Por
isso, dirá que podemos inferir a bondade do ser humano a
partir do amor do Criador. Isto porque Deus transmitiu à
humanidade na criação os atributos da liberdade, que
possibilitam a livre escolha e o domínio próprio. Deus
desejaria para o ser humano a liberdade de ação e não a
ação sob coerção. Por esta razão, deixou-o livre para fazer
suas próprias decisões e para escolher entre a vida e a
morte, entre o bem e o mal, e viver conforme lhe parecesse
melhor” (PINHEIRO, 2008, p. 19, 20).
Pinheiro ainda faz referência a uma visita que Pelágio fez a
Roma, quando ficou escandalizado com o luxo no qual
viviam os sacerdotes da igreja romana, o que prontamente
criticou por estar em desacordo com o que acreditava e com
as práticas de ascetismo praticadas por ele e outros que
compartilhavam de sua maneira de pensar. Pinheiro nos diz
que Pelágio “obteve como resposta, a partir de citação das
Confissões de Agostinho, que Deus em sua vontade
determina uns para o luxo e outros para a abstinência”
(PINHEIRO, 2008, p. 21). No trabalho de Pinheiro, ainda
encontramos uma citação sobre o pensamento de Pelágio, o
qual discordou fortemente das idéias de Agostinho:

Pelágio não acreditava que a natureza humana estivesse


degenerada pela alienação de Adão. Defendia que eram os
atos que levavam o ser humano a herdar a danação. E
discordou de Agostinho quando este afirmou que o ser
humano só poderia ganhar a salvação através da igreja.
Considerou a doutrina do pecado original sem base
neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem
pecado e, diante de seus delitos, são salvos pela graça de
Deus, que ninguém merece e que é entregue através de
Cristo e sua igreja. Até aquele momento, a visão de Pelágio e
de seus seguidores traduziam a filosofia cristã do livre
arbítrio humano e de que a maldade presente na natureza
humana não tinha caráter degenerativo (PINHEIRO, 2008,
p. 21).

III. AGOSTINHO

Agostinho, por sua vez, atacou fortemente as idéias de


Pelágio, embora em sua juventude tinha uma posição mais
próxima às idéias pelagianas, ou seja, que a predestinação
dependia da presciência divina das ações humanas Com o
passar do tempo, todavia, mudou sua maneira de pensar.
[2] O jovem Agostinho pensava como os pais da Igreja que
foram seus antecessores no desenvolvimento do
pensamento cristão. Geisler diz que “desde o começo,
Agostinho seguiu os ensinos dos pais da Igreja que vieram
antes dele”, os quais, conforme Geisler continua dizendo,
pensavam que “o ser humano, mesmo caído, possui o poder
da livre-escolha” (GEISLER, 2005, p. 191). Para demonstrar
a mudança ocorrida no pensamento de Agostinho “jovem”,
para Agostinho “mais velho”, Geisler chama a atenção para
os seguintes fatos:
Nos seus escritos antipelagianos anteriores, por sua vez,
Agostinho nunca adotara a posição radical sobre o livre-
arbítrio e a expiação limitada que ele acabou manifestando
em seus escritos posteriores, particularmente depois de 417.
O endurecimento das artérias teológicas de Agostinho é
manifesto em diversas áreas. Em sua visão anterior, igual à
que foi sustentada por todos os pais ao longo de toda a
história da Igreja até Lutero, ele abraçou a
expiação ilimitada; posteriormente, afirmou a
expiação limitada. No período anterior, ele sustentava que
Deus nunca coage um ato livre; isso foi descartado em favor
da graça irresistível sobre o que não quer, nos últimos anos
de sua vida. Isso, naturalmente, resultou no endurecimento
de sua visão da predestinação, em que Deus foi ativo tanto
no destino do eleito quanto no do não-eleito, e na negação
de que há condições para se receber o dom da salvação
incondicional de Deus. De fato, para o Agostinho mais
velho, em contraste com o Agostinho mais jovem, a raça
humana está tão depravada que não tem livre-escolha em
relação às coisas espirituais” (GEISLER, 2005, p. 190).
Segundo Roger Olson, em sua obra História da Teologia
Cristã, “toda a soteriologia de Agostinho decorre de duas
crenças principais: a absoluta e total depravação dos seres
humanos depois da queda e o poder e a soberania absoluta e
total de Deus” (OLSON, 2001, p. 275). No sistema teológico
de Agostinho, a vontade humana sempre pende para o
pecado, portanto, além de a natureza humana estar escrava
do pecado, sem o auxílio da graça divina o homem não tem
capacidade nem mesmo para buscar a Deus. Como
conseqüência, a redenção do ser humano se dá apenas por
causa da eleição livre e incondicional de Deus. Para
Agostinho, para que a graça de Deus aos pecadores seja
imerecida, tem de ser necessariamente livre e soberana. Por
isso, Deus elege pecadores, na eternidade, não com base em
sua presciência de suas obras ou de sua fé, mas com base em
sua soberania. Segundo Agostinho, esta graça livre e
soberana é também irresistível aos eleitos, e até mesmo a fé
que a pessoa tem em Cristo não é mérito pessoal, mas sim
um dom de Deus.[3]
Em sua História do Pensamento Cristão, Paul Tillich, ao
expor a teologia de Agostinho sobre vários assuntos,
comenta a respeito do que este grande teólogo pensava em
relação ao assunto tratado nesta dissertação:
O homem perdeu a possibilidade de se voltar para o bem
supremo por causa de sua pecaminosidade universal.
Estamos sob a lei da escravidão vista no aprisionamento da
vontade. Portanto, a graça é, antes de tudo, gratia
data, graça dada sem qualquer mérito. Dada por Deus a um
certo número de pessoas que não pode ser aumentado nem
diminuído; essas pessoas pertencem a Deus eternamente. O
resto da humanidade é abandonado à condenação que
merece. Não há qualquer razão no homem para a
predestinação de alguns ou para a rejeição de outros. A
razão está apenas em Deus; é um mistério. Assim, não se
pode falar de pré-ciência ou de previsão do que o homem
haverá de fazer [...] “Ele nos elegeu não porque pudéssemos
ser santos, mas para nos fazer santos”. Não há razão alguma
no homem para a predestinação. Deus realiza tanto o querer
como a plenitude desse querer. (TILLICH, 2007, p. 140,
141).
Como parte de seu sistema teológico, e em conseqüência dos
pontos enfatizados acima, Agostinho acreditava também na
perseverança dos eleitos. Tillich escreve o seguinte,
traduzindo o pensamento de Agostinho: “Os predestinados
não podem recair. Recebem o dom da perseverança que lhes
impede de perder a graça uma vez recebida. Nada disso
depende de mérito” (TILLICH, 2007, p. 141).

Agostinho ensinava a dupla predestinação, ou seja, tanto os


eleitos como os reprovados são objetos da predestinação
divina, embora em alguns de seus textos ele fala dos
reprovados como objeto da presciência de Deus.[4]
IV. SEMIPELAGIANISMO

Na tentativa de se estabelecer uma síntese entre o


pensamento de Pelágio e Agostinho, surgiu outra corrente
teológica denominada semipelagianismo. “Os
semipelagianos, embora admitindo a necessidade da graça
divina para a salvação, reafirmavam a doutrina de uma
predestinação baseada na presciência”, afirma Berkhof, que
continua dizendo ainda que os semipelagianos “não faziam
justiça à doutrina da dupla predestinação” (BERKHOF,
1992, p. 111).
Bengt Hagglund, em sua História da Teologia, chama a
atenção para o fato de que “os semipelagianos acreditavam
que se poderia evitar a heresia pelagiana sem fazer uso das
idéias extremadas inerentes à doutrina da graça de
Agostinho” (HAGGLUND, 1986, p. 120). João Cassiano, em
meados do século V, foi o principal representante da posição
semipelagiana, e como tal, acreditava que “Deus não deseja
a condenação de qualquer homem. Quando isto acontece, é
feito contra a sua vontade” (HAGGLUND, 1986, p. 120).
[...] Cassiano, enquanto aceitava o conceito de pecado
original de Agostinho, rejeitava a idéia da onipotência da
graça. Por outro lado, acreditava que a conversão e a
regeneração resultam da cooperação da graça e do livre-
arbítrio. A rejeição não encontra sua origem na vontade de
Deus (HAGGLUND, 1986, p. 120).

Os semipelagianos, conforme asseveram Ferreira e Myatt,


não acreditavam na negação do livre-arbítrio como
Agostinho acreditava, ou seja, eles afirmavam o livre-
arbítrio humano. Eles não aceitavam também a graça
irresistível e não criam na imputação do pecado original a
todos os homens por ocasião da queda, embora
acreditassem que a raça humana recebeu uma herança
maldita por causa do pecado, e não obstante a isso, o
homem ainda tem o poder de se voltar para o Criador e se
envolver na prática de boas obras. A fé não foi ensinada
como dom de Deus pelos semipelagianos, mas foi descrita
como um produto da própria pessoa. Para os
semipelagianos a graça poderia ser resistida e a
perseverança do crente não é garantida pela soberania
divina, mas é dependente da vontade da pessoa.[5]
V. CATOLICISMO ROMANO

Tanto Berkhof, como Ferreira e Myatt, em seus respectivos


trabalhos (ambos denominados Teologia
Sistemática), procuram traçar uma visão da doutrina da
eleição ou predestinação no decorrer da história da igreja e
da teologia, e as duas obras trazem informações sobre o
pensamento do Catolicismo Romano a respeito do tema de
pesquisa desta dissertação. Vejamos inicialmente o que nos
diz Berkhof:
Nos fins da Idade Média, ficou bem evidente que a Igreja
Católica Romana admitiria ampla latitude quanto à doutrina
da predestinação. Conquanto os seus mestres sustentassem
que Deus queria a salvação de todos os homens, e não
apenas dos eleitos, podiam igualmente, com Tomaz de
Aquino, mover-se na direção do agostinianismo, quanto à
predestinação, ou, com Molina, seguir o curso do
semipelagianismo, como melhor lhes parecesse. Significa
que, mesmo no caso daqueles que, como Tomaz de Aquino,
criam na dupla e absoluta predestinação, esta doutrina não
podia ser desenvolvida coerentemente e não podia ser posta
como fator determinativo do restante da sua teologia
(BERKHOF, 1992, p. 111).
Ferreira e Myatt também trazem um parágrafo bastante
esclarecedor sobre o pensamento Católico Romano a
respeito da doutrina da eleição, conforme reproduzido
abaixo:

Segundo a teologia católica, o livre-arbítrio do ser humano


foi enfraquecido na queda, mas não totalmente
incapacitado. Por causa do livre-arbítrio, a pessoa tem pleno
poder de cooperar, contribuindo com a sua parte, e assim
cumprir com as condições de salvação ou mesmo recusá-la.
A implicação é que Deus não escolheu ou elegeu as pessoas
para serem salvas. No fim, tudo depende da resposta da
própria pessoa. Não há um grupo que tenha sido
predestinado para a salvação e outro que permaneceu em
seu pecado. O livre-arbítrio da pessoa, então, é a palavra
final para determinar quem será salvo ou não. Se a pessoa
não se preparar, ela não pode receber a graça de Deus
(FERREIRA & MYATT, 2007, p. 713).

VI. REFORMADORES

Segundo Berkhof, “todos os reformadores do século


dezesseis defenderam a mais estrita doutrina da
predestinação” (BERKHOF, 1992, P. 111). Dois dos maiores
nomes entre os reformadores e que se manifestaram a
respeito desta doutrina da eleição, foram Lutero e Calvino.
Para Lutero, após a queda, o ser humano havia perdido
completamente a liberdade de escolha com relação à
salvação, estando desta forma cativo pelo diabo e
completamente corrompido pelo pecado. Lutero ensinou a
predestinação individual, dupla e absoluta, pois para ele, em
função de o ser humano já nascer escravizado pelo pecado,
não tem nenhuma boa predisposição para com o evangelho
e para com Deus. Na teologia de Lutero, em relação à
salvação, toda a glória deve ser rendida somente a Deus,
pois a salvação não pode ser alcançada mediante boas obras
ou alicerçada em méritos humanos.[6] Nos seus últimos
anos de vida, Lutero abrandou um pouco suas convicções
quanto à doutrina da predestinação, em função da
declaração bíblica de que Deus “deseja que todos os homens
se salvem, e venham ao conhecimento da verdade” (1
Timóteo 2.4),[7] tanto que na ortodoxia luterana posterior,
desenvolvida principalmente no século XVII, pensava-se da
seguinte forma:
A ortodoxia luterana [...] dizia [...] que a predestinação, ou
eleição, só se refere aos que chegam a crer em Cristo e que
permanecem nesta fé até o fim. Deus os escolheu para a vida
eterna em Cristo antes da criação do mundo. Por outro lado,
a condenação se refere aos que persistem na descrença e
impenitência até o fim. Estes recebem o justo juízo da morte
eterna. Isto também se baseia sobre um “decreto” eterno.
Mas nenhum destes decretos é incondicional: a eleição é
concretizada por causa de Cristo e se baseia no fato de que
Deus prevê quem permanecerá fiel até o fim (ex praevisa
fide). A condenação, por sua vez, se baseia no fato que Deus
prevê quem permanecerá impenitente até o fim
(HAGGLUND, 1986, p. 272, 273).

Quanto a Calvino, pode-se afirmar que ele “sustentou


firmemente a doutrina agostiniana da predestinação dupla e
absoluta” (BERKHOF, 1992, p. 111). Ele fazia uma analogia
entre o curso do mundo e a salvação eterna. Da mesma
forma como todo curso da história do mundo está debaixo
da providência de Deus, assim também depende da vontade
soberana e predestinação de Deus a salvação ou condenação
de cada um dos seres humanos. Para Calvino, tudo visava à
glorificação total de Deus, mesmo a punição e a condenação
eterna dos maus. Calvino cria em uma natureza oculta de
Deus, que era sua explicação para o fato de que embora
Deus não seja a origem do mal, Ele o emprega de maneira
secreta e inescrutável. Calvino afirmava que, mesmo diante
da rejeição de alguém por parte de Deus, Ele permanece
justo, sendo que a justiça divina é inescrutável,
impenetrável à mente humana quando esta tenta entender o
fato de Deus rejeitar alguém eternamente. Para Calvino, a
salvação tem como base um decreto eterno de Deus e,
portanto, não se baseia em algo que o homem possa fazer
para alcançá-la. A salvação é somente pela graça e a dupla
predestinação é a garantia final desta salvação.[8]
Assim com Lutero, Calvino vislumbrou um aparente conflito
entre os textos bíblicos de 1 Timóteo 2.3,4 e 2 Pedro 3.9 e a
doutrina da predestinação dupla defendida por ele. Na
busca de uma solução para o problema, Calvino elaborou o
ensino da vontade revelada e da vontade secreta de Deus. A
todos aqueles que se arrependem e crêem, a vontade
revelada de Deus oferece perdão e misericórdia; já a vontade
secreta de Deus, predestina alguns à perdição eterna e
determina que eles pecarão e nunca se arrependerão.[9]
Calvino ensinou a doutrina da predestinação como absoluta,
particular e dupla. Absoluta, conforme explicam Ferreira e
Myatt, “no sentido de que não está condicionada a nenhuma
contingência finita, mas baseia-se somente na vontade
imutável de Deus”. Explicam também que a predestinação
segundo Lutero é particular “no sentido de que pertence a
indivíduos e não a grupos de pessoas. A eleição da graça
aplica-se a cada pessoa individualmente”. Quanto a ser
dupla, explicam que “Deus, para o louvor da sua
misericórdia, ordenou alguns indivíduos para a vida eterna,
e para o louvor da sua justiça enviou outros para a
condenação eterna” (FERREIRA & MYATT, 2007, p. 715).
Paul Tillich, em sua obra História do pensamento
cristão, em sua explicação sobre a doutrina da
predestinação ensinada por Calvino, faz alguns comentários
pertinentes, e faz também algumas interessantes citações do
próprio Calvino:
O próprio Calvino sentia o aspecto terrível dessa doutrina.
“Fico me perguntando muitas vezes como é que a queda de
Adão, independente de qualquer remédio, envolveu tantas
nações arrastando até crianças à morte eterna, apenas por
causa da vontade de Deus [...] trata-se de um decreto
horrível, confesso!” Contudo, ao ser atacado, especialmente
nos últimos anos de sua vida – em face da morte – sua
resposta era um pouco diferente: “Sua perdição depende da
predestinação divina, de tal maneira, que a causa e a
matéria dessa perdição se acham neles próprios”. A causa
imediata, portanto, passa a ser a livre vontade do ser
humano. Como Lutero, Calvino estava pensando em dois
níveis. A causa divina não é realmente uma causa, mas um
decreto, algo misterioso, para o qual a categoria da
causalidade emprega-se apenas simbolicamente e não em
sentido literal. Além disso Calvino sabia, como os outros
reformadores e todos os adeptos da doutrina da
predestinação, que quando Deus decreta a predestinação, o
faz por meio da liberdade finita do homem (TILLICH, 2007,
p. 265).

Hagglund declara que “foi Teodoro Beza quem perpetuou a


tradição calvinista pura. Beza desenvolveu a doutrina da
predestinação mesmo mais rigidamente que Calvino e lhe
conferiu posição mais central ainda em sua cosmovisão”
(HAGGLUND, 1986, p. 229). Conforme nos informa Alister
E. McGrath em sua obra Teologia sistemática, histórica e
filosófica, Teodoro Beza em sua sistematização teológica,
utilizou como ponto de partida “seu sistema nos decretos
divinos da eleição – isto é, na decisão divina de eleger certas
pessoas para a salvação, e outras para a condenação. Todo o
restante de sua teologia se preocupa com a investigação das
conseqüências dessas decisões”. Conforme McGrath enfatiza
também, na teologia desenvolvida por Teodoro Beza, “a
doutrina de predestinação assume a posição de um princípio
determinante” (McGRATH, 2005, p. 534). Como reação à
doutrina calvinista da predestinação surgiu um movimento
teológico denominado arminianismo, liderado por Jacobus
Armínius. Para tratar da crescente oposição à doutrina
calvinista da predestinação reuniu-se o Sínodo de Dort.
[10] Por ocasião do Sínodo de Dort, a soteriologia
reformada, ou seja, o entendimento da salvação associada
aos escritores calvinistas, desenvolveu os assim chamados
“cinco pontos do calvinismo”, os quais são os seguintes: (1)
Depravação total da natureza pecadora do ser humano; (2)
Eleição incondicional, pois os seres humanos não são
predestinados com base em aspectos previstos, como algum
mérito, qualidade ou conquista; (3) Expiação limitada, pois
Cristo morreu somente pelos eleitos; (4) Graça irresistível,
pela qual os eleitos são inevitavelmente chamados e
redimidos; (5) Perseverança dos santos, pelo fato de que
aqueles que são verdadeiramente predestinados por Deus
não podem de maneira nenhuma abandonar esse chamado.
[11]
VII. ARMINIANISMO
Os assim chamados “cinco pontos do calvinismo” foram
elaborados no Sínodo de Dort, em 1618, como reação aos
cinco pontos do arminianismo, apresentados em uma
representação chamada Articuli Arminiani sive
Remonstrantia, também conhecido como Manifesto
Remonstrance de 1610. Neste manifesto, após a morte de
Arminius, dois de seus colegas e sucessores, Johannes
Uytenbogaert e Simon Episcopus, definiram os termos da
discussão em relação à doutrina calvinista da eleição.[12] Os
cinco pontos apresentados pelos sucessores de Arminius,
conforme descritos por Ferreira e Myatt, são os seguintes:
(1) A realização do decreto de Deus de salvar pecadores é
condicionada à perseverança na fé e na obediência daqueles
que crerão em Jesus. A eleição está baseada na presciência
que Deus tem daqueles que responderão ao evangelho, em
fé e obediência; (2) Cristo morreu por todos no mesmo
sentido, isto é, a expiação de Cristo foi feita com a intenção
de dar oportunidade da salvação a todos; (3) Os arminianos,
originalmente entenderam que a queda afetou totalmente o
ser humano, e por isso, o homem necessita da regeneração
para ser salvo. Posteriormente, esta posição foi modificada,
e os arminianos passaram a afirmar que a queda afetou
seriamente o ser humano, mas não deixou o homem num
estado de total incapacidade; (4) Já que, para os
arminianos, a vontade de Deus é que todos os homens sejam
salvos, então, o ser humano é livre para resistir e rejeitar a
graça e o plano de Deus; (5) Ainda que afirmassem alguma
forma de segurança cristã, os arminianos sugeriram que,
mesmo que tenha rendido a vida a Deus e recebido a Cristo
como salvador, a pessoa pode ainda resistir ao Espírito
Santo e apostatar da fé, perdendo assim sua salvação.[13]
Conforme argumenta McGrath, os arminianos preservaram
a idéia da predestinação, embora tenham alterado
radicalmente o seu referencial. O Sínodo de Dort entendeu a
predestinação como uma questão individual, enquanto que
os arminianos entenderam-na de forma coletiva. Para os
arminianos, Deus não predestinou ou elegeu indivíduos,
mas predestinou o grupo específico de pessoas que seria
salvo, ou seja, aqueles que crêem em Jesus Cristo.
[14] McGrath também informa que “o arminianismo logo
alcançou uma posição relevante em meio ao evangelicalismo
do século XVIII. Apesar das perspectivas mais calvinistas de
George Whitefield, as idéias arminianas foram
vigorosamente afirmadas no meio metodista por Charles
Wesley (1707-1788)” (McGRATH, 2005, p. 535). Outro
teólogo protestante identificado como arminiano, foi John
Wesley, que embora contestasse como rótulo sem sentido a
designação de arminianos e calvinistas, quando foi acusado
de ser um arminiano, concordou prontamente com esta
acusação.[15]
VIII. KARL BARTH

Segundo o entendimento de Hagglund, Berkhof, McGrath,


Grenz, Olson, Ferreira e Myatt, o teólogo contemporâneo
Karl Barth, trouxe uma nova contribuição para a doutrina
da predestinação na história. McGrath enfatiza que “o
tratamento que Barth dispensou à doutrina reformada da
predestinação é particularmente interessante, pois
demonstra o modo como ele consegue lançar mão de termos
tradicionais e atribuir-lhes um novo significado, no contexto
de sua própria teologia” (McGRATH, 2005, p. 536).

Berkhof escreve que a elaboração da doutrina da


predestinação feita por Barth, “nem de longe se relaciona
com a de Agostinho e Calvino”. Berkhof salienta também
que Barth “sustenta que esta doutrina acentua a soberana
liberdade de Deus em Sua eleição [...] Ao mesmo tempo, não
vê na predestinação uma predeterminada separação feita
entre os homens, e não entende a eleição como uma eleição
particular” (BERKHOF, 1992, p. 112). No pensamento de
Barth a respeito da doutrina da predestinação, o único
homem eleito e rejeitado é Jesus Cristo, de forma que nele
estão incluídos e por ele são representados todos os seres
humanos. Para Barth, nenhum decreto terrível de
predestinação dupla divide a humanidade em salva e
maldita, pois Jesus Cristo é o único objeto da eleição e da
maldição de Deus.[16]
[...] todos estão incluídos em Jesus Cristo, que é tanto o
Deus que elege como o ser humano eleito por ele, e os
benefícios de sua obra salvadora estendem-se sobre todos
eles. É somente ele quem sofre a rejeição de Deus e,
obviamente, isso é Deus rejeitando a si mesmo: “na eleição
de Jesus Cristo, que é a vontade eterna de Deus, Deus
oferece ao homem [...] eleição, salvação e vida; e a Si mesmo
designa [...] rejeição, perdição e morte”. Assim, para Barth,
a predestinação significa que, desde a eternidade, Deus
decidiu absorver a humanidade a um alto preço para si
mesmo (GRENZ & OLSON, 2003, p. 87).

Conforme McGrath argumenta, “Barth elimina qualquer


idéia de uma ‘predestinação para a condenação’ em relação
à humanidade. O único que é predestinado à condenação é
Jesus Cristo que ‘desde toda a eternidade escolheu sofrer
por nós’” (McGRATH, 2005, p. 537). A morte e a
ressurreição de Cristo parecem ser bastante importantes
nesse sistema teológico de Barth a respeito da doutrina da
predestinação, no qual Cristo é o eleito e o rejeitado de Deus
Pai. Hagglund destaca que “Barth encara a morte e a
ressurreição de Jesus como analogia ao processo eterno de
Deus rejeitar e escolher o Filho [...] A rejeição de Cristo por
parte de Deus Pai não é tornada clara até o momento de sua
morte, enquanto que a ressurreição retrata sua eleição
eterna” (HAGGLUND, 1986, p. 348). Tem existido uma
questão em torno da teologia barthiana, que se relaciona
com seu entendimento da doutrina da eleição, que é a
questão se Barth teria ou não ensinado o universalismo.
Quanto a esta questão, conforme afirmam Grenz e Olson,
“Barth recusou-se a dar uma resposta direta: ‘Não é isso que
ensino, mas também não é isso que não ensino!’” (GRENZ &
OLSON, 2003, p. 87). Hagglund opina sobre esta questão da
seguinte forma: “A cristologia de Barth, finalmente, resulta,
pois, em uma espécie de doutrina especulativa de salvação
universal” (HAGGLUND, 1986, p. 348). Olson nos diz que
“Barth admitiu a possibilidade de que a ‘contagem’ final dos
eleitos talvez não inclua inteiramente todos os seres
humanos existentes no mundo, mas ao mesmo tempo
descartou qualquer limitação da salvação final. A liberdade
e o amor de Deus exigem que as possibilidades fiquem em
aberto” (OLSON, 2001, p. 601). Já para McGrath, as
conseqüências da abordagem da doutrina da predestinação
conforme entendida por Barth são claras:

Embora todas as aparências indiquem o contrário, a


humanidade não pode ser condenada. No final, a graça
triunfará, até mesmo sobre a descrença. A doutrina da
predestinação de Barth elimina a possibilidade de rejeição
da humanidade. Pelo fato de Cristo haver suportado a pena
e a dor da rejeição de Deus, isso não mais caberá à
humanidade. Aliada a sua ênfase característica sobre o
“triunfo da graça”, a doutrina da predestinação de Barth
aponta para a restauração e salvação universal da
humanidade (McGRATH, 2005, p. 537).

IX. BIBLIOGRAFIA
BERKHOF, Louis. Teologia sistemática. 2. ed. Campinas:
Luz Para o Caminho Publicações, 1992.
FERREIRA, Franklin & MYATT, Alan. Teologia
sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética
para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007.
GEISLER, Norman. Eleitos, mas livres: uma perspectiva
equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. 2. ed.
São Paulo: Editora Vida, 2005.
GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento
cristão: Da Reforma Protestante ao século 20. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2004, 3 v.
GRENZ, Stanley J. & OLSON, Roger E. A teologia do século
20: Deus e o mundo numa era de transição. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2003.
HAGGLUND, Bengt. História da teologia. 3. ed. Porto
Alegre: Concórdia Editora, 1986.
McGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e
filosófica: uma introdução à teologia cristã. São Paulo:
Shedd Publicações, 2005.
OLSON, Roger E. História da teologia cristã: 2000 anos de
tradição e reformas. São Paulo: Editora Vida, 2001.
PINHEIRO, Jorge. Deus é brasileiro: as brasilidades e o
reino de Deus. São Paulo: Fonte Editorial, 2008.
TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. 4. ed. São
Paulo: ASTE, 2007.

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