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Identidade sem Pessoa

G. Agamben

O desejo de ser reconhecido pelos outros é inseparável do ser


humano. Tal reconhecimento, de outro modo, é para ele tão essencial
que, segundo Hegel, cada um, para obtê-lo, está disposto a colocar
em jogo a própria vida. Não se trata, com efeito, apenas de satisfação
ou de amor próprio: ao contrário, é somente por meio do
reconhecimento dos outros que o homem pode constituir-se como
pessoa.

Persona significa, na origem, “máscara”, e é por meio da máscara


que o indivíduo adquire um papel e uma identidade social. Assim, em
Roma, todo indivíduo era identificado por um nome que exprimia o
seu pertencimento a um gens, a uma estirpe, mas esta era, por sua
vez, definida pela máscara de cera do ancestral que toda família
patrícia custodiava no átrio da própria casa. Daí a fazer da persona a
“personalidade” que define o lugar do indivíduo nos dramas e nos
ritos da vida social, foi um passo breve, e persona acabou por
significar a capacidade jurídica e a dignidade política do homem livre.
Quanto ao escravo, assim como não tinha nem ancestrais, nem
máscara, nem nome, não podia sequer ter uma “persona”, uma
capacidade jurídica (servus non habet personam). A luta pelo
reconhecimento é, portanto, luta por uma máscara, mas essa
máscara coincide com a “personalidade” que a sociedade reconhece
a cada indivíduo (ou com a “personagem” que, com a sua conivência
às vezes reticente, ela faz dele).

Não surpreende que o reconhecimento da própria pessoa tenha sido


por milênios o domínio mais significativo e cuidado com mais zelo. Os
outros seres humanos são importantes e necessários antes de mais
nada porque podem me reconhecer. Assim também o poder, a glória,
as riquezas, a que os “outros” parecem ser tão sensíveis, têm sentido,
em última análise, apenas em vista desse reconhecimento da
identidade pessoal. Por certo é possível caminhar como incógnitos
pelas ruas da cidade, vestidos como mendigos, como, segundo
contam, amava fazer o califa de Bagdá, Hárún al-Rashíd; mas se não
houvesse jamais um momento em que o nome, a glória, as riquezas e
o poder fossem reconhecidos como “meus”, se, como certos santos
recomendam fazer, eu vivesse toda a vida no não-reconhecimento,
então também a minha identidade pessoal seria perdida para sempre.

Na nossa cultura, a “pessoa-máscara” não tem, entretanto, apenas


um significado jurídico. Ela contribuiu também de modo decisivo à
formação da pessoa moral. O lugar em que isso aconteceu foi,
sobretudo, no teatro. E, também, a filosofia estoica, que modelou a
sua ética sobre a relação entre o ator e a sua máscara. Tal relação é
definida por uma dupla intensidade: por um lado, o ator não pode
pretender escolher ou refutar o papel que o autor lhe designou; por
outro, não pode nem mesmo identificar-se sem resíduos com ele.
“Recorda”, escreve Epiteto, “que tu és como um ator no papel que o
autor dramático quis te colocar; breve, se breve, longo, se longo. Se
ele quiser que tu encenes um papel de mendigo, faça-o
convenientemente. E faça o mesmo para um papel de estropiado, de
magistrado, de simples particular. Escolher o papel não te diz
respeito: mas encenar bem a pessoa [persona] que te foi designada,
isso depende de ti” (Ench. XVII). E, todavia, o ator (como o sábio que
o toma como paradigma) não deve identificar-se por completo com o
seu papel, confundir-se com seu personagem. “Logo chegará o dia”,
ainda adverte Epiteto, “em que os atores acreditarão que a sua
máscara e os seus costumes [costumi] sejam eles próprios” (Diss. I,
XXIX, 41).

Ou seja, a pessoa moral se constitui por meio de uma adesão e,


conjuntamente, por uma separação em relação à máscara social:
aceita-a sem reservas e, ao mesmo tempo, toma dela, quase de
modo imperceptível, distâncias.

Talvez em nenhum lugar esse gesto ambivalente e, ao mesmo tempo,


a separação ética que ele abre entre o homem e a sua máscara
apareçam com tanta evidência como nas pinturas ou nos mosaicos
romanos que representam o diálogo silencioso do ator com a sua
máscara. O ator aí é representado em pé ou sentado diante da sua
máscara, que segura na mão esquerda ou está colocada sobre um
pedestal. A ligação idealizada e a expressão absorta do ator, que
mantém fixo o olhar nos olhos cegos da máscara, testemunham o
significado especial da sua relação. Esta atinge o seu limiar crítico – e,
também, o seu ponto de inversão – no início da idade moderna, nos
retratos dos atores da Commedia dell’Arte: Giovanni Gabrielli,
chamado Il Sivello, Domenico Biancolelli,
chamadoArlecchino, Tristano Martinelli, também ele Arlecchino.Agora
o ator não olha mais a sua máscara, esta que, pelo contrário, segura
com a mão e exibe; e a distância entre o homem e a “pessoa”, tão
apagada nas representação clássicas, é acentuada pela vivacidade do
olhar que ele dirige decidida e interrogativamente em direção ao
espectador.
Na segunda metade do século XIX, as técnicas de polícia conhecem
um desenvolvimento inesperado, que implica uma transformação
decisiva do conceito de identidade. Esta não é mais, então, algo que
diga respeito essencialmente ao reconhecimento e ao prestígio social
da pessoa, mas responde à necessidade de assegurar um outro tipo
de reconhecimento, aquele, feito por parte do agente de polícia, do
criminoso reincidente. Não é fácil para nós, habituados desde sempre
a saber-nos registrados com precisão em cartórios e fichários,
imaginar quão árduo podia ser a averiguação da identidade pessoal
em uma sociedade que não conhecia a fotografia nem os documentos
de identidade. É fato que, na segunda metade do século XIX, justo
isso se torna o problema principal daqueles que se concebiam como
os “defensores da sociedade” diante do aparecimento e da difusão
crescente da figura que parece constituir a obsessão da burguesia
oitocentista: o “delinquente habitual”. Tanto na França quanto na
Inglaterra, foram votadas leis que distinguiam claramente entre o
primeiro crime, cuja pena era a prisão, e a reincidência, que era
punida, por sua vez, com a deportação para as colônias. A
necessidade de poder identificar com certeza a pessoa presa por um
delito torna-se, nesse período, uma condição necessária para o
funcionamento do sistema judiciário.
Foi tal necessidade que levou um obscuro funcionário do
comissariado de polícia de Paris, Alphonse Bertillon, a colocar em
funcionamento, por volta do fim dos anos setenta, o sistema de
identificação dos delinquentes baseado na medição antropométrica e
na fotografia sinalética, que, em poucos anos, torna-se célebre no
mundo inteiro como Bertillonage. Quem quer que, por alguma razão,
fosse parado ou preso, era de imediato submetido a um conjunto de
medições do crânio, dos braços, dos dedos das mãos e dos pés, das
orelhas e da face. Logo em seguida, o indivíduo suspeito era
fotografado tanto de frente quanto de perfil, e as duas fotografias
eram coladas na “folha Bertillon”, que continha todos os dados úteis
para a identificação, segundo o sistema que o seu inventor tinha
batizado como portrait parlé.

Nos mesmos anos, um primo de Darwin, Francis Galton,


desenvolvendo os trabalhos de um funcionário da administração
colonial inglesa, Henry Faulds, começou a trabalhar em um sistema
de classificação das impressões digitais, que permitiria a identificação
dos criminosos reincidentes sem possibilidade de erro. Curiosamente,
Galton era um convicto apoiador do método antropométrico-
fotográfico de Bertillon, cuja adoção na Inglaterra defendia; mas
sustentava que o levantamento das impressões digitais era
particularmente adaptado aos nativos das colônias, cujos traços
físicos tendiam à confusão e pareciam iguais aos olhos de um
europeu. Um outro âmbito em que o procedimento teve uma precoce
aplicação foi a prostituição, pois se sustentava que os procedimentos
antropométricos implicassem uma promiscuidade constrangedora em
relação às criaturas do sexo feminino, em quem as longas cabeleiras
tornavam, por outro lado, mais difícil a medição. É provável que
tenham sido razões desse tipo, de algum modo ligadas a preconceitos
raciais e sexuais, a retardar a aplicação do método de Galton para
além do âmbito colonial ou, no caso dos Estados Unidos, dos cidadãos
afro-americanos ou de origem oriental. Mas já nos primeiros vinte
anos do século XX o sistema se difunde por todos os estados do
mundo e, a partir dos anos vinte, tende a substituir ou a ser
concomitante ao Betillonage.

Pela primeira vez na história da humanidade, a identidade não era


mais função da “pessoa” social e do seu reconhecimento, mas dos
dados biológicos que com aquela não podiam ter nenhuma relação. O
homem retirou de si a máscara, na qual se fundara por séculos a sua
possibilidade de ser reconhecido, para entregar a sua identidade a
algo que lhe pertence de modo íntimo e exclusivo, mas com o qual
não pode de modo algum identificar-se. Não são mais os “outros”, os
meus semelhantes, os meus amigos ou inimigos, a garantir o
reconhecimento, e nem mesmo a minha capacidade ética de não
coincidir com a máscara social que, no entanto, assumi: a definir a
minha identidade e a minha possibilidade de ser reconhecido agora
estão os arabescos insensatos que o meu polegar tingido deixou
sobre uma folha em um comissariado de polícia. Isto é, algo de que
não sei absolutamente nada e com o qual, e do qual, não posso em
nenhum caso identificar-me nem tomar distância: a vida nua, um puro
dado biológico.

As técnicas antropométricas foram pensadas para os delinquentes e


permaneceram por longo tempo seu privilégio exclusivo. Ainda em
1943, o Congresso dos Estados Unidos rejeitou o Citizen Identification
Act, que tinha como objetivo instituir para todos os cidadãos carteiras
de identidade com as impressões digitais. Mas é por lei, que quer que
aquilo que foi inventando para os criminosos, os estrangeiros e os
judeus, que, mais cedo ou mais tarde, as técnicas que tinham sido
elaboradas para os reincidentes serão aplicadas a todos os seres
humanos enquanto tais, isto é, serão, no curso do século XX,
estendidas a todos os cidadãos. A foto sinalética, por vezes
acompanhada também pela impressão digital, torna-se então parte
integrante do documento de identidade (uma espécie de “papel
Bartillon” condensada) que estava de maneira gradativa se tornando
obrigatório em todos os estados do mundo.

Mas o passo extremo foi cumprido apenas nos nossos dias e está, até
agora, em plena realização. Graças ao desenvolvimento de
tecnologias biométricas que podem revelar rapidamente as
impressões digitais ou a estrutura da retina ou da íris por meio
de scanners ópticos, os dispositivos biométricos tendem a sair dos
comissariados de polícia e dos escritórios de imigração para penetrar
a vida cotidiana. A entrada dos restaurantes estudantis, dos colégios
e até mesmo das escolas elementares (as indústrias do setor
biométrico, que conhecem atualmente um frenético desenvolvimento,
recomendam que se habituem os cidadãos desde pequenos a esse
tipo de controle) em alguns países já são reguladas por um dispositivo
biométrico óptico, no qual o estudante coloca distraidamente a mão.
Na França, e em todos os países europeus, prepara-se a nova carteira
de identidade biométrica (INES), munida de um microchip eletrônico
que contém os elementos de identificação (impressões digitais e
fotografia numérica) e um copião de firma para facilitar as transações
comerciais. E, na irrefreável deriva governamental do poder político,
em que convergem curiosamente tanto o paradigma liberal como o
estatístico, as democracias ocidentais começam a organizar o arquivo
do DNA de todos os cidadãos, com fins tanto de segurança e de
repressão dos crimes quanto de gestão da saúde pública.

De vários lados se chamou a atenção sobre os perigos ínsitos em um


controle absoluto, e sem limites, por parte de um poder que disponha
dos dados biométricos e genéticos dos seus cidadãos. Nas mãos de
um tal poder, o extermínio dos judeus (e qualquer outro genocídio
imaginável), que foi cumprido com bases documentárias
incomparavelmente menos eficazes, teria sido total e velocíssimo.

Ainda mais grave, pois de todo inobservadas, são as consequências


que os processos de identificação biométrica e biológica têm sobre a
constituição do sujeito. Que tipo de identidade pode se construir
sobre dados meramente biológicos? Por certo não uma identidade
pessoal, que era ligada ao reconhecimento dos outros membros do
grupo social e, ao mesmo tempo, à capacidade do indivíduo de
assumir a máscara social sem entretanto a ela deixar-se reduzir. Se a
minha identidade é agora determinada, em última análise, por fatos
biológicos, que não dependem de modo algum da minha vontade e
sobre os quais não tenho nenhum controle, a construção de algo
como uma ética pessoal torna-se problemática. Que relações posso
instituir com as minhas impressões digitais ou com meu código
genético? Como posso assumi-los e, ao mesmo tempo, tomar deles
certas distâncias? A nova identidade é uma identidade sem pessoa,
em que o espaço da ética, que estávamos habituados a conceber,
perde o seu sentido e deve ser repensado por inteiro. E enquanto isso
não acontecer, é lícito esperar um colapso generalizado dos princípios
éticos pessoais que regeram a ética ocidental por séculos.

A redução do homem à vida nua é hoje a tal ponto um fato cumprido,


que ela já está na base da identidade que o estado reconhece aos
seus cidadãos. Como o deportado de Auschwitz não tinha mais nome
nem nacionalidade, e já era apenas o número que em seu braço tinha
sido tatuado, assim o cidadão contemporâneo, perdido na massa
anônima e equiparado a um criminoso em potência, é definido
apenas pelos seus dados biométricos e, em última instância, por uma
sorte de fado antigo tornando ainda mais opaco e incompreensível: o
seu DNA. E, todavia, se o homem é aquele que sobrevive
indefinidamente ao homem, se ainda há sempre humanidade além do
inumano, então uma ética deve ser possível também no extremo
limiar pós-histórico, ao mesmo tempo hilário e terrificante, em que a
humanidade ocidental parece estar encalhada. Como todo dispositivo,
também a identificação biométrica captura, com efeito, um desejo
mais ou menos inconfessado de felicidade. Nesse caso, trata-se da
vontade de liberar-se do peso da pessoa, da responsabilidade, tanto
moral quanto jurídica, que ela carrega consigo. A pessoa (tanto na
sua veste trágica como na cômica) é também o portador da culpa, e a
ética que ela implica é necessariamente ascética, pois fundada sobre
uma cisão (do indivíduo em relação a sua máscaras, da pessoa ética
em relação à jurídica). É contra essa cisão que a nova identidade sem
pessoa faz valer a ilusão não de uma unidade, mas de uma
multiplicação infinita das máscaras. No ponto em que fixa o indivíduo
numa identidade puramente biológica e associal, ela lhe promete
deixar assumir, na internet, todas as máscaras e todas as segundas e
terceiras vidas possíveis, e nenhuma destas jamais poderá a ele
pertencer de modo próprio. A isso se acrescenta o prazer, desenvolto
e quase insolente, de ser reconhecido por uma máquina, sem o fardo
das implicações afetivas que são inseparáveis do reconhecimento
operado por um outro ser humano. Quanto mais o cidadão
metropolitano perde a intimidade com os outros, quanto mais ele se
torna incapaz de olhar os seus semelhantes nos olhos, tanto mais
consoladora é a intimidade virtual com o dispositivo, o qual aprendeu
a escrutar-lhe o mais fundo da retina; quanto mais desaparece toda
identidade e toda aparência real, tanto mais gratificante é ser
reconhecido pela Grande Máquina, nas suas infinitas e minuciosas
variantes, desde a catraca de ingresso no metrô até o caixa rápido,
da câmera que, benevolente, observa-o enquanto entra no banco ou
caminha pela praça, ao dispositivo que lhe abre a porta da sua
garagem, e até mesmo a futura carteira de identidade obrigatória que
o reconhecerá sempre e onde quer que esteja, de modo inexorável,
por aquilo que é. Eu existo se a Máquina me reconhece ou, ao menos,
vê-me; eu estou vivo se a Máquina que não conhece sono ou vigília, e
está eternamente desperta, garante que eu vivo; eu não sou
esquecido se a Grande Memória registrou os meus dados numéricos
ou digitais.

Que tal prazer e tais certezas sejam postiças ou ilusórias é evidente,


e os primeiros a saber disso são por certo aqueles que experimentam
isso cotidianamente. O que significa, com efeito, ser reconhecidos, se
o objeto de reconhecimento não é uma pessoa, mas sim um dado
numérico? E por trás do dispositivo que parece me reconhecer
porventura não estão ainda outros homens, que, na realidade, não
querem me reconhecer, mas apenas me controlar e me acusar? E
como é possível comunicar-se não por um sorriso ou por um gesto,
não com polidez ou reticência, mas por meio de uma identidade
biológica?

Entretanto, segundo a lei que quer que na história não aconteçam


retornos a condições perdidas, devemos nos preparar sem lamentos
nem esperanças a procurar, para além tanto da identidade pessoal
quanto da identidade sem pessoa, aquela nova figura do humano –
ou, talvez, simplesmente do vivente –, aquele rosto além tanto da
máscaras quanto da facies biométrica que não conseguimos ainda
ver, mas cujo pressentimento, por vezes, faz-nos estremecer
inadvertidamente tanto nos nossos turbamentos como nos nossos
sonhos, tanto nas nossas inconsciências como na nossa lucidez. 

Giorgio Agamben. Identità senza persona. In.: Nudità. Roma: Nottetempo, 2008. pp.


71-82. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

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